carta À comunidade

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92 3 TRAJETORIAS DOCENTES: A ESCOLHA DA PROFISSÃO – PROFESSORA? POR QUÊ? [...] diferentes trajetórias e distintos momentos (...) Histórias no plural; formas de falar a vida (fora ou dentro da escola) no plural; maneira de mudar essa vida no plural também. E é nesse plural que reside à singularidade que faz de nós seres humanos, que nos permite descontinuar para continuar. ( KRAMER, 1994, p.199) A escolha da profissão de professor (a) está relacionada a uma diversidade de relações (plural) que marca o percurso da vida escolar de modo muito singular. Cruzam-se acasos, circunstanciais e coincidências que vão se construindo nas trajetórias e selecionando escolhas. A leitura dos relatos de histórias de formação das professoras da creche, referente ao eixo trajetórias docentes, possibilita a aproximação de como cada uma dessas professoras, a seu modo, e do lugar que privilegiou falar, abordam processos que estão envolvidos na constituição do “ser professora”, “a escolha da profissão”, “porque ser professora”. Ao analisar fragmentos dessas falas, passo a observar que o cotidiano escolar dessas professoras não são seus unicamente, mas são nossos, porque neste cotidiano da prática docente parece estar as experiências vividas de toda uma geração que se educou e educou desde as últimas cinco décadas. Assim, vejo que o “ser professora” se constitui historicamente, ou melhor, o processo em que um sujeito se torna professor (a) é histórico, mesmo sem o pretender, pois assim como Kramer (1994) sinalizou acima, é no plural que se constitui o singular. Essas professoras, nas relações sociais de seu tempo, ao se constituírem em professoras vão se apropriando das vivências, [...] práticas intelectuais, de valores éticos e das normas que regem o cotidiano educativo e as relações no interior e no exterior do corpo docente. Nesse processo, vão construindo seu “ser profissional”, na adesão a um projeto histórico de escolarização. (FONTANA, 2000, p.48) Sendo assim, torna-se pertinente à questão: quais são os fatores históricos-sociais que determinam a escolha pela profissão de professora? Por que mesmo com a desvalorização salarial que o magistério está vivenciando existe um número significativo de mulheres que o procuram? Estas questões já vêm sendo abordadas há algum tempo por pesquisadores na área da formação de professores, sendo possível elucidar muitos argumentos e até mesmo ampliar o conhecimento do espaço sociocultural que envolve a mulher professora e sua relação com a educação. Nos capítulos anteriores, já mencionei alguns elementos que justificam o magistério, como escola prioritária do sexo feminino, principalmente por ser somente no século passado que o ensino tornou-se extensivo a todos, inclusive às mulheres. Remetendo-me às professoras, dessa pesquisa, o que as levou a escolha de ser professoras revelam a “vocação” como um discurso conclusivo:

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Page 1: CARTA À COMUNIDADE

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3 TRAJETORIAS DOCENTES: A ESCOLHA DA PROFISSÃO – PROFESSORA? POR QUÊ? [...] diferentes trajetórias e distintos momentos (...) Histórias no plural; formas de falar a vida (fora ou dentro da escola)

no plural; maneira de mudar essa vida no plural também. E é nesse plural que reside à singularidade que faz de nós seres humanos, que nos permite descontinuar para continuar. ( KRAMER, 1994, p.199)

A escolha da profissão de professor (a) está relacionada a uma diversidade de relações

(plural) que marca o percurso da vida escolar de modo muito singular. Cruzam-se acasos,

circunstanciais e coincidências que vão se construindo nas trajetórias e selecionando escolhas.

A leitura dos relatos de histórias de formação das professoras da creche, referente ao eixo

trajetórias docentes, possibilita a aproximação de como cada uma dessas professoras, a seu modo, e

do lugar que privilegiou falar, abordam processos que estão envolvidos na constituição do “ser

professora”, “a escolha da profissão”, “porque ser professora”.

Ao analisar fragmentos dessas falas, passo a observar que o cotidiano escolar dessas

professoras não são seus unicamente, mas são nossos, porque neste cotidiano da prática docente

parece estar as experiências vividas de toda uma geração que se educou e educou desde as últimas

cinco décadas. Assim, vejo que o “ser professora” se constitui historicamente, ou melhor, o

processo em que um sujeito se torna professor (a) é histórico, mesmo sem o pretender, pois assim

como Kramer (1994) sinalizou acima, é no plural que se constitui o singular.

Essas professoras, nas relações sociais de seu tempo, ao se constituírem em professoras

vão se apropriando das vivências, [...] práticas intelectuais, de valores éticos e das normas que regem o cotidiano educativo e as relações no interior e no exterior do corpo docente. Nesse processo, vão construindo seu “ser profissional”, na adesão a um projeto histórico de escolarização. (FONTANA, 2000, p.48)

Sendo assim, torna-se pertinente à questão: quais são os fatores históricos-sociais que

determinam a escolha pela profissão de professora? Por que mesmo com a desvalorização

salarial que o magistério está vivenciando existe um número significativo de mulheres que o

procuram? Estas questões já vêm sendo abordadas há algum tempo por pesquisadores na área da

formação de professores, sendo possível elucidar muitos argumentos e até mesmo ampliar o

conhecimento do espaço sociocultural que envolve a mulher professora e sua relação com a

educação. Nos capítulos anteriores, já mencionei alguns elementos que justificam o magistério,

como escola prioritária do sexo feminino, principalmente por ser somente no século passado que

o ensino tornou-se extensivo a todos, inclusive às mulheres. Remetendo-me às professoras,

dessa pesquisa, o que as levou a escolha de ser professoras revelam a “vocação” como um

discurso conclusivo:

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“Cursei pedagogia com habilitação em pré-escola e séries iniciais e pós-graduação na mesma área. Não poderia ser outra coisa á não ser professora. Acredito sinceramente que esta é a minha vocação, pois desde criança nunca sonhei ou idealizei outra coisa”. Professora Ivana. “[...] meu pai me matriculou... depois de uma longa conversa com meus pais, optei pelo magistério... quando você casar pode trabalhar em um período só, dá tempo para cuidar da casa, do marido e dos filhos.Professora Andréia Pruner

A questão da escolha de ser professora pode ser identificada, nestes fragmentos, na

medida em que a vocação surge como uma das principais justificativas pela escolha, bem como a

influência dos pais, ficando expresso um discurso “naturalista” da vocação. Neste sentido, o

magistério é visto como profissão que não recebeu influência externa. Também outras professoras

fizeram menção à existência de certo tipo de herança familiar na escolha da profissão, ou seja, a

influência da mãe-professora, como é o caso das professoras Beatriz, Elizângela e Elly Simone,

respectivamente: “No segundo grau, optei por cursar o magistério por influência da minha mãe que era professora e também pelo fato de gostar da companhia das crianças”. “ Minha vida escolar teve inicio somente com a entrada na primeira série. Minha mãe era professora...”

“Fui aluna desde o berçário da minha mãe que era professora... e fui incentivada pela minha tia e outros parentes a tentar o vestibular da Acafe e cá estou hoje (professora)...”

Poderiam estas professoras me perguntar que mal haveria no fato delas terem tido essa

influência? A questão não está propriamente em “seguir o exemplo da mãe”, mas desejo ressaltar

como nossos comportamentos vão sendo reproduzidos e produzidos em um contínuo processo de

significações. Assim, Rosemberg (1982, p.10) comenta sobre a crescente escolarização da mulher

nos últimos anos, mas, paradoxalmente, observa que: [...] apesar da expansão da sua escolaridade, as mulheres e os homens continuam seguindo carreiras diferentes. De uma forma constante através dos anos e de uma forma sistemática na história individual dos estudantes, as mulheres tendem a seguir cursos impregnados de conteúdos humanísticos e que desembocam, imediata ou posteriormente, em profissões tipicamente femininas, entre elas o magistério.

Admito que exista uma possibilidade de autonomia do sujeito frente aos padrões

culturais, entretanto, essa autonomia só será conquistada a partir de um espaço reflexivo sobre

diversos fatores responsáveis pela padronização dos nossos comportamentos.

Então, estas falas permitem pensar o magistério como uma atividade de amor, de doação,

de gostar de crianças, ou seja, a realização da ação docente tem como pressuposto a “vocação”.

Este discurso ao longo do tempo, fortaleceu o abandono dos homens nas salas de aulas,

principalmente na educação infantil, sendo que este fato caracterizou-se, também, como a forma de

legitimação da entrada das mulheres na profissão, visto também como a entrada desta no domínio

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público. O magistério passa então a ser associado a características “tipicamente femininas” como:

paciência, afetividade e doação. Características estas que se articulam à tradição religiosa da

atividade docente, enfatizando assim a idéia de que a docência constitui-se mais enquanto

“sacerdócio” do que profissão. Este pensar sobre o modo de ser professora como “trabalhadora

dócil, dedicada e pouco reivindicadora” é o que mais tarde surge como forma de justificativa para

os baixos salários, dificultando as discussões a respeito da profissão de ser professora.

Nessa análise, observa-se que os relatos estão carregados das marcas sociais e culturais do

lugar em que vivem, pois mesmo nos cursos de formação é fortalecido o discurso da prática

docente como sendo feminino voltado à vocação, afetividade, estudo, qualificação, provisoriedade,

autonomia, paixão, disponibilidade, amizade, criatividade, sacrifício, conquista, luta, etc. A

afetividade é destacada por estas professoras como um dos atributos mais importantes para exercer

a função de professora na educação infantil. Acentuam a necessidade da privacidade familiar e o

amor materno como indispensáveis ao desenvolvimento físico e emocional das crianças, aparecem

assim o desejo de cursar Psicologia, não sendo possível talvez a Pedagogia preencha esta vontade,

atendendo ainda o desejo dos pais, conforme relata a professora Priscila, acreditando ter feito a

escolha certa. “[...] meu desejo era cursar Psicologia, recordo claramente de uma psicóloga que aplicava testes vocacionais, nos ajudando a identificar uma possível melhor escolha. Então prestei vestibular pela 2 vez , novamente não me classifiquei. Em meu 3 vestibular optei pelo desejo de meus pais e minha segunda opção, prestando assim vestibular para Pedagogia... Cada dia que passa tenho certeza de que fiz a escolha certa, pois amo o que faço e principalmente as crianças... [...] das profissões que um dia queria aprofundar-me, como ser uma pediatra ou uma psicóloga, o meu ideal seria trabalhar com crianças.

Na fala desta professora há resquício, ainda, compartilhado pela sociedade

contemporânea, ou seja, o projeto burguês para a mulher permanece. Desta maneira, para as

mulheres serem predominantes em sala de aula da educação infantil a questão de gênero é

predominante. Assim, para o magistério legitimar-se socialmente, “precisa tomar de empréstimo

atributos que são tradicionalmente associados às mulheres, como amor, sensibilidade, cuidado, etc.

para que possa ser reconhecido como profissão admissível ou conveniente”. (LOURO, 1997, p. 96-

97)

Percebe-se que, apesar dos percursos serem singulares, há evidências de que a escolha de

ser professora não é um fato decorrente de uma escolha livre de pressões, mas sim, produto de

imposições e determinações valorativas de classe e gênero1. Neste sentido é perceptível que

algumas escolheram ser professora devido a necessidade de se profissionalizar em curto prazo com

1 Conferir esta idéia na pesquisa de Belmira Bueno: “Autobiografia e formação de professores: um estudo sobre representações de alunas de um curso de magistério” (1996)

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pouco investimento financeiro e encontraram algumas vantagens que outras profissões não

oferecem. Assim, relatam que de principio não tinham como escolha ser professora, desejavam

outros cursos, trabalhavam no comércio sendo a remuneração mais atrativa: “[...] sempre tive vontade de cursar Direito, mas não foi possível. Então continuei com a Pedagogia. Sempre gostei de crianças e acreditei que era possível fazer algo que gostava. Sem falar que não trabalhava aos sábados e com aquela idéia de dois meses de férias. Além de prazeroso seria vantajoso.Professora Elisângela “[...] minha mãe dava força para fazer o magistério, mas aquela história professor ganha pouco e eu tinha arrumado um estágio de dois anos no Besc, então fiz Técnico em Administração. Quando terminei o segundo grau, resolvi ficar um ano sem estudar, estava trabalhando na Collci, nessa época. Então, no ano seguinte, fiz cursinho pré vestibular no Potencial e prestei prova para Comércio Exterior, fui chamada mas não fiz a matricula. Queria fazer pedagogia, mas o lado financeiro me decepcionava. Então fui trabalhar na Pega Mania e depois de pensar muito fiz o vestibular para Pedagogia, passei e comecei a cursar[...] Professora Anelise.

“[...] quando cheguei no ensino médio, resolvi fazer o magistério. Fiz, mas não tinha muito interesse em seguir carreira. O que eu queria mesmo era trabalhar em escritório. Quando me formei no magistério, fui trabalhar no escritório das Lojas HM. Não satisfeita com o trabalho, minha irmã estava grávida e precisava de alguém para substituí-la quando ganhasse nenê. Ela foi já no escritório e mandou eu pedir a conta. Pedi e fui trabalhar no lugar dela na... Deste dia em diante não parei mais ... não foi “eu”quem escolheu ser professora de educação infantil e nem creche. Tudo foi acontecendo. Primeiro fiz o magistério, mas não queria seguir a carreira, pois queria trabalhar em escritório, mas como não estava me adaptando, minha irmã mais velha (hoje aposentada) era professora e estava grávida, quando foi falar comigo para eu sair do meu trabalho para substituí-la Não pensei duas vezes. Acho que chegou a hora de mudar.Experiência nova e me identifiquei com a educação infantil.”Professora Sônia.

Neste relato, a professora destaca o dom inato, ainda que não expressa claramente, porém

quando afirma “tudo foi acontecendo” demonstra a naturalização da função, pois assim como sua

irmã foi professora é natural que seja também. Outra professora destaca o curso de Pedagogia

como a decisão de ser professora:

“[...] quando comecei o 2ª grau, decidi fazer Ciências Contábeis... quando terminei o 2ª grau parei de estudar, não queria fazer faculdade, pois em Brusque não tinha nenhuma que eu me interessava, e fiquei quatro anos sem estudar. Comecei a trabalhar na Companhia Industrial Schlösser S/A... quando resolvi sair da empresa, já estava cursando a faculdade de Pedagogia e tinha decidido trabalhar como professora.” Professora Siomara.

A professora Naide demonstra a importância que tinha a professora em seu lugar social,

tanto que sua mãe incentivou a seguir este caminho. O nível de satisfação em aceitar a sugestão de

sua mãe em relação à profissão se deve a ascensão social obtida em relação à sua família de

origem, se não em termos de quantidade de capital econômico, ao menos no que toca à maior

quantidade de capital cultural adquirido pelo aumento do nível de escolarização, do fundamental

para o superior :

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“[...] minha mãe disse para fazer o magistério, pois era uma profissão muito importante e valorizada. Então lá fui eu...Tive aulas de Psicologia com a Dona Ude, que hoje é a Reitora da Unifebe. Era um curso legal, acabei gostando pelo menos me livrei dos cálculos. Gostava de fazer os trabalhos, de ler as apostilas, mas sempre muito tímida...[...] prestei o vestibular para Administração como 1 opção e Pedagogia como 2 opção. [...] passei em Pedagogia para minha revolta.. [...] o tempo passou e fui tomando gosto pela faculdade... ” Professora Naide

O valor do magistério é decorrente da trajetória social desta professora, pois ao que tudo

indica, conforme outro depoimento “é que me sentia um Bicho do mato do interior na cidade grande”, vivia

em uma cidade que a grande maioria trabalhava com a terra, eram agricultores, portanto, ser

professora neste lugar social representava status. Além de desenvolver uma função importante,

estaria longe dos cálculos, nestas circunstâncias ser professoras seria uma boa escolha.

Esta facilidade e simplicidade de raciocínio que marcou a tomada de decisão quanto à

escolha de ser professora, aparece desenhado na memória de outra professora: “[...] sempre gostei mais

das aulas de português, história, Geografia etc. do que das ciências exatas. Esse foi um dos motivos que me levou a

cursar o 2ª grau Magistério”Professora Elisângela. Parece, assim, que a escolha em cursar o magistério

resulta do insucesso em outras tentativas, seja financeira ou ainda de conhecimento, como é o caso

de não se identificar com cálculos, as ciências exatas. Neste sentido, o diploma de magistério se

torna útil e funcional. Estas perspectivas estão relacionadas ao status profissional e à pouca

legitimidade de que goza o magistério, valores estes socialmente atribuídos a esta profissão e que

estas contribuem para o reforço de maneira inconsciente, pois faz parte do projeto de escolarização

das depoentes.

No entanto, segundo seus relatos, após ingressarem no magistério, estas passaram a gostar

da experiência e acreditam ser esta realmente a “vocação”, romantizando então a profissão.

Variados relatos evidenciam uma visão romântica da profissão, como se pode verificar nos

excertos retirados das entrevistas.

“[...] acredito, após ouvir diversas colegas, diretoras, etc que sou professora para os pequenos. Sou mesmo, pois amo trabalhar com eles.”Professora Elly Simone

“Então fui trabalhar na Unimed Cooperativa de Trabalho Médico, no setor de serviço social. Fiquei nesta empresa por dois anos e meio e lá tive certeza que queria ser professora, pois o serviço social (através dos projetos) me revelou que poderia ser uma boa educadora.” Professora Siomara.

“[...] pude contribuir e dar a minha parcela de amor, carinho e educação, cuidados e muitos abraços, beijos e sorrisos.” Professora Naide.

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Estas professoras protagonistas desta pesquisa são jovens professoras, algumas já são mães

com experiências, outras não, percursos, tempos diferentes, o que exige atenção na análise, pois

constituem um grupo com diferentes histórias de como escolheram ou foram “escolhidas” para

exercer a prática docente na Educação Infantil e que se assemelham, por vezes, pois fazem parte do

mesmo projeto de escolarização. Assim, o que as levou a ter esta escolha ou serem escolhidas

repetem em seus relatos o ambiente de familiaridade, de afetividade, quase que ausência de

competição, de exigência, que se vivia na escola, então afirma a professora Ana Paula:

“Procuro estar sempre de bem com todos os meus alunos, ter uma relação de respeito e muito afeto, gosto de tê-los sempre ao meu redor” e a professora Elly Simone continua: “[...] não sei, mas acho que é minha vocação cuidar dos pequenininhos, amo acariciá-los, sentir o amor deles pela professora, ensinar a falar, acalmar seus medos e receios.”

Poderia inferir que além de analisar os motivos de escolha em relação ao ser professora,

hoje já está mais presente que mulheres desejam profissionalizar-se. As razões são muitas, entre

elas as

decorrentes das mudanças sociais, econômicas e culturais que marcaram o momento atual, entre as quais a expansão dos meios de produção, maior necessidade de mão-de-obra e de escolarização, maior apelo ao consumo, o papel dos meios de comunicação criando e transmitindo novos valores e necessidades, movimentos reivindicatórios em prol de direitos sociais e cidadania, o controle da natalidade, novos papéis e funções a serem desenvolvidas pela mulher. (BUENO, 1996, p. 98-99)

Assim também relata a professora Siomara: “Pretendo continuar sendo professora nos próximos anos, a experiência foi muito gratificante. Quero me profissionalizar mais, fazendo uma pós-graduação em educação infantil... Tenho muita força de vontade, e isso ajuda a sempre querer mais, saber mais. São pequenos gestos, pequenas demonstrações que fazem valer todo o nosso esforço de fazer uma faculdade, uma pós-graduação etc...”

É neste contexto que estas professoras vão se constituindo professoras, porém há a

possibilidade de autoconhecer, de criticar-se, optando por outro processo de se fazer professoras,

assim como propõe FONTANA (2000, p. 48), [...] somente o distanciamento da experiência imediata e o confronto com outras perspectivas emergentes na prática social tornam possível a esse individuo perceber-se no contexto em que se foi constituído professor (a), analisar a emergência, a articulação e a superação das muitas vozes e das categorias por elas produzidas, para significar os processos culturais e então criticar-se ( ou não) e rever-se ( ou não), aderindo ( ou não ) a um outro projeto de escolarização.

Nesta perspectiva, a professora Andréia Ristow relata:

“[...] Sabemos que a visão sobre a educação infantil na sociedade ainda é muito “atrasada”. Embora já tenha conseguido ser amparada por lei e reconhecida como primeira etapa da educação básica com gratuidade e não obrigatoriedade. Muitos ainda têm a visão apenas do cuidar principalmente em creches. Sentimos isso todos os dias, onde os pais ainda preocupam-se com os cuidados, alimentação e higiene. Mesmo que

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conversamos, explicamos e os envolvemos nos projetos educativos, ainda não são a grande parte que muda a sua concepção de educação infantil como primordial para o desenvolvimento global da criança. Mas não vamos desistir, pois cada vez mais lutamos para conseguir que a sociedade, os pais entendam e valorizem o trabalho na educação infantil. Sempre trabalhei com maternal e jardim I e II, mas o que sempre me identifiquei foi com a turma de 0 a 3 anos ( integral), o trabalho em creche, embora não seja valorizado externamente, é muito gratificante e nos preenche, pois temos mais tempo com as mesmas crianças onde conseguimos criar um vínculo afetivo maior, ajudando-os assim no dia-a- dia em nossa prática pedagógica... Acredito ser por estas questões a minha escolha pela educação infantil e preferencialmente por turmas de creche onde sei que elas têm potencial a serem explorados e podemos contribuir para que o desenvolvimento ocorra.” Professora Andréia Ristow.

Ao que tudo indica esta professora, entre outras, vem acompanhando a busca da

construção de outra maneira de se ver professora da creche, ou seja, a sua função. Recentemente,

vem se discutindo sobre o atendimento da infância no Brasil, como já demonstraram Kulhmann Jr.

(1999) e Bujes (2001), estes entre outros pesquisadores afirmam que em relação a atividade

educativa da creche vêm tomando espaço o movimento em relação ao profissional que nela atua.

Esse “deslizamento” da função do atendimento centrado no “cuidar” para o “educar” vem

provocando muitos debates acerca da relação doméstica e educação. Mas, nesse espaço

educacional, chamado creche, quando se tem apenas a função de substituir a família, torna-se uma

dificuldade problematizar como um espaço educativo que não meramente assistencialista. No

entanto, já se percebe, novas políticas públicas para a educação infantil, então, talvez comecem a

emergir propostas de qualificação e escolarização desses profissionais também em serviço, ou seja,

a formação contínua, que se constitui em um avanço sobre a função do profissional desse segmento

de ensino, pensando em um outro projeto de escolarização para esta profissional, que envolva a

reflexão sobre a sua constituição como professora.

Diante destes depoimentos, é possível considerar os relatos de história de formação das

alunas/professoras como uma representação, em seu caráter constitutivo, pois as idéias que as

professoras têm sobre gênero, sua condição social, idade... não são apenas o modo como expressam

os significados atribuídos, mas formas de produzir a prática docente na educação infantil, neste

sentido faz-se necessário incluir nas políticas públicas para este segmento de ensino o trabalho com

memórias. Busco então auxílio em Foucault (1993) em seu artigo intitulado A escrita de si (p.135 –

150), quando ele analisa alguns procedimentos de enunciação biográfica e mostra sua validade para

as artes de si mesmo. Uma conclusão que chego após sua leitura, é que a escrita de si é sempre uma

forma de constituir uma representação de si, seja pela enunciação do visível, seja pela descoberta

do invisível. Entretanto, a despeito dela consistir, em si, em uma representação, sua utilidade reside

no fato de poder, ao repensar a trilha dos acontecimentos, alimentarem o potencial de diferenciação

de si mesmo. Ou seja, ao escrever sobre si, as professoras registram as marcas subjacentes a um

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estado de ser atual. Isso é importante à medida que se recupera a potencialidade destas marcas e, de

certa forma, estas se predispõem ao atravessamento pelas forças vivas do mundo, pelos

acontecimentos. Ao serem atravessadas pelo acontecimento, a estabilidade se abala e, tendo

vivificadas as memórias, elas tem disponível o potencial de vir a ser algo diferente do que tem sido.

No entanto, a professora Kelli afirma que sua escolha na profissão de professora se

definiu com o nascimento do seu filho: “[...] o nascimento do meu filho Lucas foi um momento marcante em minha vida, despertou em mim o desejo e a necessidade de me dedicar à criança desta faixa etária, conhecer seus anseios, suas limitações, suas necessidades, seu potencial... quando somos mães, conhecemos verdadeiramente a necessidade de afeto que uma criança pequena precisa para sentir-se bem no ambiente escolar, pois aqui será a sua 2ª casa!”

Isto justifica que em decorrência da feminização, a professora passou culturalmente a se

relacionar com a professora-mãe, com a conotação de ter que cuidar de crianças, das exigências de

meiguice, docilidade, paciência... Tais características são percebidas em nossa sociedade como

pertinentes ao sexo feminino, sendo representada como uma professora ideal, dotada de expressão

afetiva e obrigações morais, conforme relata a revista Veja na década de 70, mostrando como

durante todas estas últimas décadas a professora vem se construindo, ou se desqualificando, pois as

pesquisas realizadas pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos2 já revelavam o despreparo

das jovens professoras recém-formadas nas escolas normais.

2 Ministério da Educação e Cultura, 1970.

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FIGURA 3 – Imagem retirada da revista Veja de 1970

Ziraldo (1995) contrapondo-se a esse tipo de professora idealizada escreve o livro:

“Uma professora muito maluquinha”, editado pela primeira vez em 1995, conta a historia de uma

professora apaixonante que se torna fundamental na vida de seus alunos. Define sua professora

inesquecível de maluquinha, pois suas características são diferentes desta anterior citada: “tinha o

sorriso solto, parecia com a Rita Haywort, era dinâmica, criativa e desvendava junto com os alunos

os mistérios da linguagem...”.

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É pertinente pensar se algumas dessas professoras, quando concretizam a escolha de ser

professora se basearam num modelo de professora inesquecível de Ziraldo, uma maluquinha, ou se

basearam mais com o modelo de professora ideal divulgada na década de 70 pela revista Veja.

Então, do refrão popular já muito cantarolado até por professoras, as quais por vezes se

orgulhavam em ouvir “Que saudade da professorinha que me ensinou o b-a-bá à história da

professora maluquinha há uma distância. Distância essa que no percurso da vida escolar dessas

professoras aqui registrado permite identificar quatro categorias referentes à escolha de se tornar

professora: vocação, influência da mãe-professora e demais pessoas da família, gênero, a entrada

no magistério e no curso de Pedagogia, por meio de suas professoras com seus modos de ministrar

as aulas.

Esta última categoria, a entrada no magistério e no curso de Pedagogia é determinante

para a escolha de ser professora, que se concretiza em detrimento das outras categorias citadas,

pois quando uma das professoras afirma “foi muito rico o aprendizado” permite inferir que os (as)

professores (as) ensinavam bem. Portanto, para a professora Kelli, o ingresso no Magistério foi a

decisão de ser professora, lembrando que já anteriormente ela afirma que a chegada do filho define

esta escolha, alegando agora que no magistério aprendeu muito, enquanto que o curso de

Pedagogia deixa a desejar: “[...] Quando cheguei no magistério onde eu resolvi ser professora, não tive muito incentivo, pois eu trabalhava no escritório de uma transportadora. Os familiares e amigos achavam o fim do mundo, sair do escritório para trabalhar com criança pequena: ouvir choro, trocar fralda, etc...[...] eu não estava realizada sempre tive vontade de fazer uma faculdade, [...] o magistério, onde aprendi muito, foi muito rico o aprendizado comparando com os dias atuais de hoje que estou na faculdade.O professor Nelson, um ótimo professor de didática [...] consegui uma vaga de auxiliar (apoio) no “Centro de Educação Infantil Tia Ana”. Foi um ano muito bom, não encontrei muitos problemas, pois como eu era mãe, deu para tirar de letra. Estou apaixonada de trabalhar com crianças dessa faixa etária.

Há professoras que enaltecem o curso de Pedagogia, outras demonstram que o curso

pouco contribuiu para a vida profissional, como é o caso desta professora.

Ao analisar estas falas, volto a pergunta inicial, o que leva essas mulheres a escolherem o

curso de Pedagogia e se tornarem professoras, se mesmo, por vezes, o curso apresenta falhas, e

conforme já foi sinalizado há a desvalorização salarial e por conseqüência, certo desprestigio

social, conforme os familiares da professora Kelli observaram, afirmado ser o “fim do mundo” sair

de um trabalho intelectualizado para cuidar de bebês.

Neste viés, faz-se necessário analisar como o curso de Pedagogia está construindo ou

desconstruindo os motivos da entrada das alunas, como está auxiliando as professoras no fazer

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docente, afastando ou confirmando o discurso da profissão professores como uma missão, um

sacerdócio.

Esta análise será visualizada no item a seguir quando as professoras relatam o processo de

formação inicial e contínua. Assim, continuarei a busca de desvelar, por meio dos relatos de

história de formação, o processo através dos quais as professoras constituíram um estilo didático,

uma vez que, como já foi dito, ninguém se forma no vazio.

Será que há professores (as) guardados na memória dessas professoras e que despertou o

interesse por esta profissão? A depoente Elly Simone justifica a sua decisão final às professoras do

curso de Pedagogia, afirmando que para continuar na profissão deu continuidade aos estudos,

fazendo uma especialização na área. Então ela recorda: “[...] o curso de Pedagogia me fez um bem danado, pois até então eu era tímida e reservada... a professora Maria de Lourdes (Udi)... admirava e desejava ser como ela e como a professora tão querida e especial, D. Bernadete Fischer; que na época era Diretora do colégio Dom João Becker e me ofereceu meu 1ª emprego como professora substituta. Como sei que a profissão exige, resolvi fazer um curso de pós-graduação, o qual me incentivou e me ajudou ainda mais para que continuasse nessa profissão.”

Assim como Elly Simone, provavelmente, outras professoras guardam na memória

professores (as) que pela forma de lecionar, de ensinar na sala de aula possibilitaram mudanças na

vida, pois passaram a se conhecer melhor, ao mesmo tempo em que oportunizaram um modo de ser

diferente que traz a sensação de prazer, alívio, conquista, que por sua vez define a escolha de ser

professora. Quando a professora em seu relato afirma que o curso de Pedagogia “lhe fez um bem

danado” isso permite inferir que as professoras citadas por ela possibilitaram uma mudança no jeito

de ser que ao tudo indica ser provocada pela estruturação da estrutura estruturada/estruturante

denominada aqui pelo “modo de ensinar”. Durante os capítulos anteriores, venho afirmando que

essa estrutura opera o habitus professoral bem-sucedido, e que esse, por sua vez, pode passar por

reestruturação, como no caso deste relato acima, pelo modo como a aluna era tratada pelas

professoras e como ministrava as aulas, a tal ponto destas professoras possibilitarem a vencer o

obstáculo da timidez. Assim, mais uma vez mostro que as experiências vividas durante a história

de formação são reveladoras dos meandros das práticas pedagógicas.

A escolha da profissão para estas professoras passou por momentos de dúvidas,

oscilações, que podem ser lidas, por um lado como um espaço de autonomia desta professora, uma

possibilidade de elaboração do próprio projeto de vida. Porém, observa-se, por outro lado, a

escolha não é livre, a tomada de decisão foi marcada, em geral, por influências da família e da

escola. A influência familiar se dá através da orientação dos pais ou porque tinha algum parente

(mãe ou tia) professora. O peso do meio escolar aparece através da identificação com alguns

professores marcantes. A entrada no magistério e no curso de Pedagogia define a escolha de ser

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professora por ser legitimado para a formação de professores, sendo que a especialização, vista

como formação contínua, contribuiu para permanecer no exercício da prática docente. São fatos

que relativizam a autonomia do sujeito, que acaba por fazer suas escolhas de frente ao leque de

opções que a sociedade lhe oferece.

As análises realizadas até aqui auxiliam para reforçar que: nas experiências vividas na

história da escolarização há um habitus professoral que se desenvolve por meio de processos que

engendram a mudança de um determinado conhecimento para outro. Essas professoras que

recordam professores (as) principalmente do magistério ou da pedagogia, mencionaram ser a

qualidade do trabalho que é resultante do modo de ministrar as aulas, que esses (as) professores

(as) ficaram guardados (as) na memória desde alunas.

Vejo importante ressaltar que o trabalho com memórias na formação de professores (as)

foi (é) pouco visitado por pesquisadores, e, assim, “todo cuidado é pouco”, pois as constatações

aqui realizadas, por meio da análise dos relatos de história de formação, podem até contribuir para

a desvalorização do nosso jeito de ser professoras do que para justificar que somos proprietários de

um estatuto de conhecimentos próprios, bem como dar um estatuto ao saber da experiência,

conforme reforça Nóvoa (1995, p. 25). Neste sentido, a intenção é valorizar a professora na sua

profissão, por meio da reinserção do feminino na história, que é permitido quando cada professora

passa a se autoconhecer, autocriticar, passando a refletir sobre o projeto de escolarização que a

constituiu/constitui, assim há o fortalecimento de continuar na profissão, resistindo a dominação, a

naturalização, pois ao se olharem eles vêem, nos olhos uns dos outros, noites como a sua: noites onde habitam a paixão pela vida, a memória e o desejo de resistir. Noites que não são interioridades, mas processos criativos de multiplicidades e singularidades. Noites que não expulsam jamais de si, noites que nunca abandonam.(BELTRÃO, 2000, p. 90)

É nesta perspectiva que a seguir irei observar como a formação inicial e contínua vem

auxiliando, ou não, as professoras no cotidiano docente.

Page 13: CARTA À COMUNIDADE

104

3.1 PROCESSOS DE FORMAÇÃO: FORMAÇÃO INICIAL E CONTÍNUA

Textos que os mestres constituem para dizer de si próprios a si próprios (...) ao serem trabalhados, esses

relatos favorecem o redimensionamento das experiências de formação e das trajetórias profissionais e tendem a fazer com que se infiltrem na prática atual novas opções, novas buscas e novos modos de conduzir o ensino (CATANI,

1997, p. 18).

Assim como Catani propõe, reconstituíram, no item anterior, fatos, acontecimentos,

situações, que privilegiaram como significativos em torno das lembranças do processo de escolha

da profissão, sendo que neste item, serão evidenciadas as experiências vividas nos cursos de

formação inicial e contínua. Será que é possível visualizar como essas professoras se tornaram o

que são em sala de aula? Como foi produzida “professora e como está se produzindo “professora”?

Nesse sentido é que me proponho a olhar o processo de formação de professoras a partir da sua

produção e da sua subjetividade, deslocando-a das questões referentes à produção acadêmica, pois

como aponta Pereira (1996, p. 15) A produção da subjetividade responde a uma espécie de orquestração de forças, visíveis e invisíveis, que compõem o mundo do sujeito. Quero dizer que aquilo que sou agora é uma forma que resulta de uma certa combinação de traços produzidos e/ou acumulados em minha vida, vitalizados pela interferência de forças outras, visíveis (oriundas do campo das virtualidades, das forças vivas do mundo).

Olhando sob esse aspecto, vivenciamos a urgência do debate sobre a subjetividade,

banida, por um longo período, das construções científicas. Subjetividade entendida, no contexto

deste estudo, como produção, como processo de subjetivação.

As aprendizagens situadas em tempos e espaços determinados e precisos atravessam a

vida dessas professoras e o acesso ao modo como cada professora se forma, como a sua

subjetividade é produzida, permite conhecer a singularidade da sua história, o modo singular como

age, reage e interage com os seus contextos.

Nesta perspectiva, proponho pensar o processo de produção do ser professor a partir de

devires, de agenciamentos que atravessam os sujeitos e configuram subjetividades. Nos relatos de

história de formação, as professoras podem identificar as rupturas e as continuidades, as

transferências de preocupações e de interesses, as referências presentes no cotidiano docente.

Esta pesquisa entende formação como um processo que atravessa toda a vida da pessoa,

pois conforme Catani (1997, p.25 e 34), durante muito tempo a formação de professores foi

entendida como inculcação de um conjunto de conhecimentos produzidos de forma alheia ao

professor. De maneira oposta, a autora afirma que o modo de ser professora não se constitui

somente a partir dos estudos das teorias pedagógicas, mas estão “enraizadas em contextos e

Page 14: CARTA À COMUNIDADE

105

histórias individuais que antecedem, até mesmo, a entrada deles na escola, estendendo-se a partir

daí por todo percurso escolar e profissional”.

Em relação a um momento da trajetória da formação, no que tange à escolha do curso

universitário, nem todas as professoras tinham a certeza de ser a escolha certa a Pedagogia, mas

por vezes oscilaram entre Psicologia, outras, o desejo era o curso de Administração, Direito. Para

algumas, a opção se fez por Pedagogia, primeiro por não passar na primeira opção do vestibular,

ficando com a segunda opção que se refere à Pedagogia; segundo por ser Pedagogia o curso mais

próximo da sua condição financeira.

Os sentidos de muitas situações parecem ser dados depois do acontecimento, neste

sentido, aqui, cabe a reflexão a respeito da visão de história com a qual se está operando. Como

coloca Bourdieu (1997), seria a vida um todo coerente e orientado, ou, muito mais,

descontinuidade, elementos justapostos que requerem uma criação artificial de sentido? Os sujeitos

inventam sentidos, mas esses sentidos não se constituem sob o nada, mas, sob o que já é dado,

historicamente, porque essas professoras ao contarem sua história de formação estabelecem uma

certa coerência por meio de laços lógicos entre acontecimentos-chaves.

Compreender como cada professora se formou é encontrar as relações entre as

pluralidades que atravessam a vida pessoal e profissional (Nóvoa, 1995, p.114), pois Dominicé,

citado por Nóvoa (1995, p.115), trabalha largamente o conceito de processo de formação,

identificando-o a um desenrolar complexo, um conjunto em movimento, uma globalidade própria à

vida de cada pessoa.

Conforme Nóvoa (1995, p.116): o processo de construção de uma identidade profissional própria não é estranho à função social da profissão, ao estatuto da profissão e do profissional, à cultura do grupo profissional e ao contexto sócio-político em que se desenrola, ou seja, essa identidade vai sendo desenhada não só a partir do enquadramento intraprofissional, mas também, com a contribuição das interações que se vão estabelecendo entre o universo profissional e os outros universos sócio-culturais.

Assim a professora Andéia Ristow comenta: “[...] o Fábio (agora meu esposo) que na época fazia faculdade de ciências da computação na (UNIVALI), sendo que a primeira coisa que fez foi me incentivar a voltar a estudar. Trazia folders dos cursos para que eu pudesse ver qual me agradava, como eu trabalhava em uma loja de roupas de crianças e me identificava e gostava delas, interessei-me por Pedagogia... [...] tive professores nota 10, compreensivos, inovadores e muito preocupados com a prática na sala de aula. Durante a minha faculdade, não tive a oportunidade de estar vivenciando os conteúdos com a prática escolar, pois eu era gerente da loja onde trabalhava e o meu salário era muito bom. Por este motivo, não pude lecionar antes de me formar.”

O fato de gostar de crianças levou esta professora escolher o curso de Pedagogia, seus

professores lhe foram significativos, como ela mesmo comenta, preocupados com a prática na sala

Page 15: CARTA À COMUNIDADE

106

de aula, no entanto, ação essa que ela não exercia, mas ao que tudo indica seria noções básicas para

atuar em sala de aula, que por sua vez não ficou tão claro assim por justamente ela não estar no

exercício da função. Nóvoa (1995) observa que a formação inicial está cada vez mais ligada ao

caráter meramente introdutório que lhe compete. Não há dúvidas de que o trabalho, a prática, nas

diferentes escolas, vai ensinando, vai completando a formação da professora, através do auxílio e

da influência de outros colegas, mas, também, da própria seleção que o exercício individual do

magistério vai fazendo. O professor vai “aprendendo fazendo com seus alunos”, e retendo o que dá

certo, incorporando-o para futuras soluções.

Também no Magistério, na Pedagogia, nesta formação inicial, a professora Elizângela

procurou uma oportunidade de fazer novas aprendizagens no campo cultural, social e do

conhecimento, e assim relata: “[...] magistério... [...] foi a melhor época de estudo. Aprendi muita coisa referente a educação mas também foi uma época muito divertida. [...] tivemos ótimos professores que nos trouxeram muitos conhecimentos... [...] aprendemos à escrita correta das letras, passo a passo, para ensinar aos futuros alunos. [...] professora envolvente, contagiante, sempre queria que escrevêssemos e falássemos com a alma.[...] então continuei com a Pedagogia. Sempre gostei de crianças e acreditei que era uma oportunidade de fazer algo que gostava. Foi com a Pedagogia que conheci os verdadeiros autores da educação... [...] Agora estou cursando a pós-graduação em Educação Infantil e Séries Iniciais.

Esta professora demonstra a necessidade de continuar estudando, então investe na

formação contínua, da mesma forma a professora Beatriz afirma: “Somente após 08 anos que retomei os

estudos, fiz a pós-graduação em Desenvolvimento da Criança em Brusque. Neste intervalo, porém, não deixei de me

atualizar, pois participava com empenho a todos os cursos promovidos pela Secretaria da Educação entre outros.

Há professoras que relatam que a formação inicial foi importante, no entanto, o que foi

mais importante foram os cursos de aperfeiçoamento profissional, chamados de formação contínua,

que acabam tendo um maior significado na vida profissional, por talvez tratar de maneira mais

prática, ou seja, atendem as expectativas emergenciais ao que se refere ao cotidiano docente. Nesta

perspectiva, a professora Lúcia afirma: “[...] a faculdade me deu suporte teórico, mas onde eu encontrava novidades e jeitos diferentes de lecionar eram nos cursos que a prefeitura incentivava, e eu participava de todos com vontade de aprender cada vez mais. Havia muita troca de idéias.”

Segundo Nóvoa, as experiências profissionais não são formadoras de si. È o modo como

as pessoas as assumem que as tornam potencialmente formadoras. (1995, p. 137). Portanto, para

algumas professoras com quem realizai esta pesquisa, a profissão é a mediação que lhes permite

uma intervenção no espaço social na sua dimensão macro. Elas vêem na profissão um meio

privilegiado de contribuição no sentido da mudança e, por isso, empenham-se nela fortemente.

Essa argumentação é possível conferir na fala da professora Andréia Ristow:

Page 16: CARTA À COMUNIDADE

107

“[...] o professor tem uma grande responsabilidade em suas mãos, responsabilidade esta de estar incentivando o hábito pela leitura, escrita, autonomia, etc... [...] de plantar, dentro de cada vida, a necessidade de buscar e não se acomodar. Pois a sociedade, as crianças, os pais, ou seja, as famílias precisam de educadores comprometidos com a educação e que tenham a consciência de que podemos sim, transformar, mudar a concepção de educação que muitos ainda possuem.”

Esta professora pode-se inferir, vê na escola um espaço de abertura de perspectivas e de

valores, descobrindo também que a profissão que exerce pode se configurar em um projeto capaz

de dar um novo sentido ao fazer docente.

Analisando estas falas até aqui, concordo com Nóvoa (1995, p. 145) que é possível pensar

que os processos de formação de cada professora é o resultado da ação conjugada de três processos

de desenvolvimento: processo de crescimento individual, em termos de capacidade, personalidade

e capacidade pessoal de interação com o meio; processo de aquisição e aperfeiçoamento de

competências de eficácia no ensino e de organização do processo de ensino-aprendizagem; e o

processo de socialização profissional, em termos normativos ou de adaptação ao grupo profissional

a que pertence e a escola onde trabalha.

Nas histórias de formação dessas professoras revelam que seus processos de formação

não se constituíram apenas por meio de cursos freqüentados em escolas e universidades durante

determinado períodos de suas vidas. Concordando com Nóvoa (1991, p. 70) “estar em formação

implica um investimento pessoal, livre e criativo sobre os percursos e os projetos próprios, com

vista a construção de uma identidade pessoal, que é também uma identidade profissional”. Então, a

formação se constrói por meio de um trabalho de reflexibilidade crítica sobre as práticas e de

reconstrução permanente de uma identidade pessoal. Nesta perspectiva, relata a professora Andréia

Pruner: “Estou adorando, venho através das outras professoras e orientadora fazendo um bom trabalho. Busco sempre informações, em livros e na internet, sobre essa faixa etária para poder desenvolver meu trabalho melhor ainda”.

A professora Priscila observa que o Estágio foi um momento significativo,

provavelmente, por oportunizar a relação teoria e prática, sendo que a pós-graduação lhe trouxe um

maior aperfeiçoamento, assim como ela registra: “Um ponto marcante desta fase fora o Estágio que realizei na Escola Círculo Bom Samaritano, tendo como objetivo incentivar o gosto pela leitura infantil. [...] Iniciei minha pós-graduação em paralelo ao oitavo semestre da faculdade. Minha sala era composta por muitas colegas da faculdade. Meu aperfeiçoamento foi obtido nesta pós-graduação [...]”

Estas falas remete a pensar segundo Candau (1997, p. 64) a formação continuada não pode ser considerada como meio de acumulação (cursos, palestras, seminários, etc., de conhecimentos ou de técnicas), mas sim como um trabalho

Page 17: CARTA À COMUNIDADE

108

de reflexibilidade crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente de uma identidade pessoal e profissional, em interação mútua.

Esta pesquisa possibilita detectar falhas, dúvidas, expectativas que as professoras têm em

relação ao seu fazer docente. As professoras afirmam ser a universidade um espaço de reflexão e

de reconstrução de saberes, porém, quando concluem seu curso superior, algumas dúvidas

permanecem tendo duas opções a seguir: ou “entrar” na rotina realizando seu fazer docente sempre

do mesmo modo, “viciado” em chavões, macetes e improvisações, ou repensar, reconstruir

conforme seus saberes teóricos e práticos.

A professora Kelli conclui: “O trabalho em grupo é muito bom. Hoje não tenho medo nem insegurança, é isso mesmo que eu quero para mim. Em 2004, entrei na faculdade, estou no 4 período, tenho muita coisa para aprender, principalmente em relação aos autores. Mas na prática é o meu dia-a-dia na sala de aula que me enriquece”.

A professora observa que a faculdade é importante, pois lhe trará conhecimentos teóricos,

mas, por sua vez, reforça a troca entre colegas como essencial, assim como revela a prática ser a

constituidora de seu fazer docente. Pode se inferir que esta professora chama a atenção da

importância de serem ouvidas, ou imbuídas de repensar a própria prática. Esse ouvir talvez não só

entre colegas como ela citou a importância do trabalho em grupo, mas se constituir num espaço em

que se pensa a própria formação continuada. Todos os relatos dessas professoras têm ligações com

o percurso profissional em Educação Infantil, nas suas falas, na relação de troca entre as colegas de

trabalho, que se reconstroem e se constituem sujeitos socioculturais, ou seja, estão sempre se

fazendo num permanente constituir-se.

Então, concluo que estas professoras dependendo do meio ou grupo no qual estão

inseridas, são influenciadas diretamente no seu modo de vida profissional e pessoal. Nòvoa (1995,

p. 82) afirma: Há muitos fatores que influenciam o modo de pensar, de sentir, e de actuar dos professores, ao longo do processo de ensino: o que são como pessoas, os seus diferentes contextos biológicos e experienciais, isto é, as suas histórias de vida e os contextos sociais em que crescem, aprendem e ensinam.

É justamente este contexto social em que as professoras ensinam que nos remete aos

aprendizes que são as crianças também inseridas em um contexto social e histórico. Para um

melhor entendimento sobre esses sujeitos aprendizes se faz necessário revisitar, teoricamente, a

história da infância e da Educação Infantil, revendo as concepções de criança, infância e educação

infantil, fundamentais para a qualidade no trabalho pedagógico.

Provavelmente no momento em que as professoras conseguirem situar histórica e

socialmente estas crianças, com auxílio dos cursos de formação, seja a pedagogia ou a pós-

Page 18: CARTA À COMUNIDADE

109

graduação, acredito que o projeto pedagógico dá e para a Educação Infantil mudaria, e se ligaria a

um projeto político e social mais amplo, contribuindo desta forma para a construção formação

dessas professoras.

Considero, portanto, que a formação dessas professoras resulta não apenas de um

treinamento específico, numa instância acadêmica. Tomo em conta sim, a idéia de que a

pessoalidade e a profissionalidade dessas professoras andam juntas, isto é, ser a professora nais

quais estas se tornaram é uma alternativa, uma saída que estas construíram, a fim de realizar um

projeto emergente em sua subjetividade. Não aceito aqui a idéia de vocação, missão ou entrega,

mas ao contrário, considero que ser professora é um modo de ser de um sujeito que, tendo vivido

um dado quadro existencial, coloca-se agora como sujeito atuante de uma carreira. È uma diferença

de si que elas acolheram.

O processo de formação, tanto inicial como contínua, irão à última instância,

instrumentalizá-las, podendo legitimar e institucionalizar sua escolha. Pensar, portanto, o processo

de formação dessas professoras passa, a meu ver, pelo pensar o processo de produção de si. Então

volto a perguntar: Como se vem a ser a professora que se está sendo? Como se constituem os

quadros de referências dessas professoras que fizeram esta escolha? De que modo os meios formais

(os cursos de formação, por exemplo) interferem e contribuem no desempenho do ser professora?

Como se processam os cruzamentos entre as referências vividas ao longo da própria história e

aquelas representadas no processo de formação? Como se desenvolvem as competências

necessárias ao exercício da profissão? Para tanto faz-se necessário uma investigação articulada

com a reflexão sobre a sua própria prática, que visa possibilitar a identificação de alguns dos

principais dispositivos e caminhos de engendramento da prática profissional que oportunizam a

construção de um estilo didático e é o que irei discutir no último item deste terceiro capítulo.

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110

3.2 UM ESTILO DIDÁTICO: UMA CONTRUÇÃO “[...] na responsabilidade de seguir e assumir um trabalho; nas experiências novas; nos desafios; nos

tropeços e nas tentativas frustrantes de investidas que acabaram dando certo, que hoje sou o que sou, aprendi o que aprendi, consegui o que fui atrás, devido a tudo isso dou valor a muitos valores que são para mim o princípio e a base

para a construção de um sujeito e também a base para a sua caminhada na escola.” Professora Naide.

A base para a caminhada na escola, a prática docente, conforme o que relata esta

professora é construída a partir de experiências vividas durante todo o período da escolarização, e,

também, durante toda a vida, pois esta permite aprender as estruturas estruturadas/estruturantes de

um habitus professoral. Estas estruturas se referem justamente a tudo aquilo que a professora

mencionou: “nas experiências novas, nos desafios, nos tropeços...” que se constituem os modos de pensar e

agir, por meio das representações, que vão se organizando resultando em práticas que “acabam dando

certo”, definindo o seu jeito de ser e estar no mundo, ou seja, de atuar como professora, ou melhor,

ainda irão permitir a construção de um estilo didático.

Desta forma, a partir do momento que as práticas pedagógicas são efetivadas, por meio de

um estilo didático construído, segundo um esquema gerador pré-estabelecido, elas podem sofrer reestruturação advindas de novos elementos sócio-históricos-culturais que vão sendo engendrados no seio da sociedade como um todo. É nessa medida que se pensa, aqui, o engendramento do habitus professoral: um modo de pensar e agir na situação de ensino escolarizado.( SILVA, 2003, p. 39)

Com auxílio desta pesquisadora, passo a observar que assim as professoras vão

construindo um estilo didático, pois a professora Ana Paula confirma que seu estilo de trabalhar se

desenvolve a partir das práticas boas das pessoas e procura aprender com os erros: “Não sei se tive uma professora em que me inspiro tento ‘copiar’ das pessoas sempre as coisas boas que elas têm e aprender com os erros... Meu estilo de trabalhar é baseado mais nas brincadeiras, jogos, e trabalho coletivo concreto, penso que as crianças aprendem mais com o que podem tocar e pegar.”

Esta professora, da mesma maneira, lembra como iniciou na profissão e revela como foi

se constituindo a professora que é, deixando explícito que as experiências vividas são guardadas na

memória e a partir do que foi significativo é que se evidencia na prática. Assim, as experiências

acumuladas, ou melhor, todo esse “equipamento cultural acumulado” é que a professora se apóia

para trabalhar nas salas de aulas da creche, ou seja, constitui-se em um jeito de dar aulas, em um

habitus professoral, confirmando que não somente o curso de Pedagogia poderá oportunizar este

aprendizado do modo de ensinar, mas também o resultado de aprendizagem não intencional. È

neste viés que a relação teoria e prática se concretizam pelo jeito de dar aulas, pelo modo do qual

um determinado conteúdo é explicado que se torna significativo, resultante de um habitus

professoral bem sucedido que, por sua vez, será utilizado na prática docente, possibilitando novas

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111

cenas para o cotidiano das creches. Utilizo-me do elemento explicação dos conteúdos, apoiando-

me em Silva (2003, p.93), quando esta observa que este elemento “qualifica as questões que dizem

respeito à relação teoria e a prática”, tendo em vista que as professoras ao relatarem sobre como

construíram um estilo didático, ressaltam a importância deste elemento para que possam efetivar

uma prática docente eficiente e igualmente reclamam quando isto não acontece, pois entendem que

quando há uma boa explicação da matéria, entendida por elas como uma habilidade de minuciar de

maneira estratégica um assunto, oportunizando o entendimento de ações práticas, de situações

cotidianas, enriquecendo a atuação docente e a criação de novas práticas. Dessa maneira, reforça-

se a idéia de que para investigar os estilos didáticos utilizados por essas professoras para ensinar as

crianças da creche é relevante analisar e refletir sobre as experiências vividas na história da

escolarização, incluindo a trajetória profissional. Nesta perspectiva revela a professora Priscila “[...]

acumulei experiências em sala de aula substituindo professoras em várias oportunidades e escolas. Conforme

Fontana (2000, p. 52), [...]os estudos afirmam, por exemplo, que os professores atribuem significados a suas experiências e à trajetória vivida e consideram que se formam na própria trajetória da docência com os alunos e com os colegas... mas não abordam ou problematizam os processos pelos quais a formação pelo outro e esses significados foram produzidos e se consolidaram.

Observo, então, que ao analisar os fragmentos de seus relatos, elas próprias enumeram

muitas estratégias utilizadas para driblar o dia-a-dia, quando a insegurança e o que fazer diante de

situações práticas que a teoria não explica, partilham entre colegas tais práticas docentes, “trocam

idéias, experiências que deram certo, reúnem-se para estudar, participam de cursos específicos”,

assim como diz a professora Andréia Ristow: “[...]fiz inúmeros cursos... 1ª jornada Curitibana de Educação Escolar e Pré-Escola, realizada nas dependências da PUC – PR... participei do 3ªEncontro Nacional de Jardim de Infância e Pré-Escola, realizado em Balneário Camboriul... Neste ano, encontrei a Clarice leal que falava sobre Motivação e Valorização Profissional. Foi maravilhoso!!! E assim fui tentando suprir a falta da prática docente, para o complemento da faculdade.

Também se utilizam da estratégia da interação professoras e crianças, como elas próprias

relataram “ouvem mais as crianças, as acompanham de perto, respeitando os seus interesses”. No

entanto, não se aproximam da dinâmica em que vão sendo produzidas, aproximando-nos do “perceber-se professor” já constituído e não dos processos pelos quais se foi constituído. A gênese e o desenvolvimento, nos indivíduos, do seu “ser profissional” não são traçados.Eles são inferidos a partir das representações já constituídas e da interpretação que delas se faz com base nas teorias assumidas.. . Embora se assuma o sujeito como histórico e social, congela-se o movimento e fixa-se o sujeito. (FONTANA, 2000, p. 53) .

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112

Este se configura em um desafio, pois essas professoras entram em contato com

diferentes teorias, significam, resignificam suas práticas, nas experiências vividas, no movimento

da construção/formação do ser professora, com o propósito de aqui apresentá-lo, mesmo na sua

incompletude, sempre a partir do outro, que se mescla no seu ser e que é revelado nos relatos no

próprio processo de constituição e é “nesse jogo, seria necessário explicitar, quem se diz e quem é

dito, quem silencia quem, o que é silenciado, por quem e por quê.” (FONTANA, 2000, p.55).

Este outro, em algumas vezes, são as colegas de trabalho, é assim que a professora

Siomara se vê ao observar o quanto foi rápido para ela estar em sala de aula e qual foi a sua atitude

diante do exercício, da profissão, quando a insegurança, o medo de planejar a acompanhava: “Penso que foi tudo muito rápido, de repente lá estava eu, em uma sala de maternal com 18 crianças. Foi difícil, principalmente no primeiro mês, era totalmente inexperiente e sabia da responsabilidade de cuidar e educar essas fofurinhas. Pude contar com a Roberta (auxiliar) que foi ainda continua sendo, o meu refúgio, para ajudar em todas as situações... Não trabalhamos como eu professora e ela auxiliar, trabalhamos juntas, ela me ensina e me auxilia em todas as tarefas ... Eu escolhi ser professora de creche, porque eu achava que era mais fácil. Como iniciei agora, eu pensava que seria mais leve e que poderia aprender e ver como seria para mais tarde (quem sabe) ser uma professora de 1ª a 4ª série. Com certeza já tive algumas experiências que não é mais fácil, nem mais leve, pelo contrário, precisamos estar dispostas e com muita vontade dia-a-dia.... Meu grande medo era como fazer planejamento, o que fazer com as crianças, o dia todo... Penso que tudo que a criança aprende na creche é através, muitas vezes, do estilo didático de cada professora. Para ser uma professora de creche, você deve se doar por inteiro para as crianças, você deve ser carinhosa, atenciosa,,paciente e com certeza gostar de crianças.”

Esta professora chama a atenção para o desconforto causado no inicio do exercício da

profissão, frisa que se apoiou na amiga de trabalho (o outro), esta que lhe ensinou a ser professora,

e ainda, escolheu ser professora de creche, porque a imagem que tinha da professora, deste

segmento, era aquela que só iria cuidar, então não havia necessidade de conhecimentos mais

elaborados, no entanto, o dia-a-dia lhe fez sentir que não é tão fácil assim. Então, penso que hoje

esta professora pode ver este momento como uma oportunidade pedagógica necessária e que o

desconforto daquele momento vivido hoje pode se transformar em questionamentos igualmente

necessários para o seu fazer docente que, por sua vez, a propiciou avançar na prática pedagógica.

Ainda é pertinente pensar, a professora estava cursando o segundo ano do curso de pedagogia,

curso este legitimado para a formação docente, como ainda não sabia planejar aulas? Quando e

como se aprende a ser professora? A ministrar aulas?

Poderia inferir que ao aceitar o desafio de ser professora beneficiou-se de imediato das

experiências vividas como aluna, mesmo que inconscientemente, e, naquele momento, como

professora, que estava se apoiando ainda na amiga. É provável que no seu modo de ser professora

encontram-se as representações que construiu sobre o cotidiano do mundo escolar, bem como

sobre a profissão-professora (o outro). Nesta perspectiva, habitus consiste na matriz de percepções,

Page 22: CARTA À COMUNIDADE

113

de observações e ações, que tem por objetivo orientar tanto a prática planejada da professora em

sala de aula, como a improvisação que eventualmente ocorrem, tanto a concretização de receitas

didáticas como a invenção de novas estratégias, tanto as ações inconscientes como as atitudes mais

bem pensadas.

Esta idéia fortaleceu o pensamento de que as vivências que são concretizadas no âmbito

das práticas sociais podem construir habitus, o que já foi comentado nos capítulos anteriores, e

novamente constatado aqui. A esta noção de habitus, já explorado, exaustivamente, por Bourdieu,

poderia ainda somar um outro questionamento: porque essas professoras não buscaram auxílio em

manuais didáticos, sendo estes autorizados para serem explorados no exercício da profissão, pois

não é aí que contém informações necessárias referentes aos saberes imprescindíveis a uma prática

pedagógica eficiente?

Estas professoras utilizaram-se, mesmo que inconsciente, das experiências vividas como

alunas, ora mesclando com o auxílio de amigas que ensinam a exercer a profissão e buscando

efetivar um trabalho docente por meio da construção de um habitus, que se deu ao valorizar o

trabalho docente de professoras ( o outro) que para elas obtiveram um resultado bem-sucedido,

tirando uma lição que ficou guardada na memória, e hoje se utilizam na efetivação da prática. Pois

é assim mesmo que afirma uma dessas professoras “as crianças aprendem por meio do estilo didático de

cada professora”. Também quando sua atuação docente, ou seja, a constituição de um determinado

habitus, não é bem-sucedido, passa a ser estruturado por um outro habitus professoral. Esta

situação se expõe no relato da professora Andréia Ristow: “É assim que ocorre o meu trabalho com as crianças, nada mecânico, nada sem objetivos de interesse da criança... Meu fazer pedagógico foi construído ao longo desta caminhada de sete anos de sala de aula, sempre observando, pesquisando, fazendo e refazendo várias ações, pois erramos muito nesta caminhada, lembro-me da vez que dava aula no planalto, onde uma aluna sempre na hora dos brinquedos, retirava a caixa de papelão, entrava dentro e brincava com a caixa. Eu sempre brigava dizendo para sair, para não estragar a caixa. Somente no outro ano “caiu a minha ficha” que era importante para ela e que estava aprendendo bem mais com a caixa que ela tanto explorava, do que com os brinquedos que eu/professora achava mais interessante para ela. Desta forma, é claro, comecei a mudar minha prática e observar e analisar o que realmente é interessante e significativo para as crianças. Não é a toa que hoje, meus alunos conseguem brincar mais, explorar objetos, construir e destruir caixas, sucatas e serem mais independentes.”

Este depoimento permite admitir que é pela prática docente ser desenvolvida por habitus,

que se pode questionar a disciplina de Didática, entendendo esta como a responsável por construir

um estilo didático, ou seja, por se tornarem professoras. No entanto, todas as professoras, ao iniciar

na profissão, não buscaram, ou não encontram subsídio para desenvolver a prática docente no

curso de pedagogia e mais especificamente na disciplina de Didática, pois nenhuma mencionou em

Page 23: CARTA À COMUNIDADE

114

suas memórias, mas sim buscaram refúgio nas amigas de trabalho e nas experiências vividas na

história da escolarização, bem como na prática do dia-a-dia, “pesquisado, fazendo e refazendo”, pois o

que todas, sem exceção, deixaram explícito é que desejavam ao exercer a função, saber como é ser

professora na educação infantil, tanto que a professora Siomara “... achava que seria mais fácil...”, pois

até então o curso de pedagogia não deu conta de ensinar o modo de ser professora.

Ao falarem sobre o conhecimento adquirido para exercer a função de professora, uma

delas apenas se refere ao professor de Didática: “Acredito que toda a minha didática foi embasada no meu Magistério que como já falei foi muito rico em atividades práticas, pesquisas, etc... O professor, destaque desta época, foi o professor Nelson Frener, um ótimo professor de didática... Hoje curso o terceiro período da faculdade na Unifebe (Pedagogia) onde estou aprofundando mais meus conhecimentos. Porém sinto dificuldade na relação entre teoria e prática, pois penso que a Universidade deveria fazer esta ponte. Mas na prática é o meu dia-a-dia na sala de aula que me enriquece”.

Ao que tudo indica, não é a disciplina em si que é importante, mas sim o modo pelo qual

o professor lecionou as suas aulas, o que conta é a qualidade do encontro, a qualidade do trabalho

que não resulta do pedagogismo, mas sim da relação estabelecida que desperta sentidos,

significados que motivam o aprendizado, sendo oportunizado pela atividade prática, ou seja, “rico

em atividades práticas, pesquisas” . Confirmando que a qualidade do encontro propiciada pelo modo de

lecionar implica na explicação de teorias, de conteúdos, utilizando-se o professor da estratégia de

aula expositiva, que está sendo tão criticada e até em desuso, pois o discurso contemporâneo

implica em se utilizar de diferentes estratégias como por exemplo a multimídia, e no entanto, estas

professoras e outras não questionam a necessidade de se utilizarem de diferentes estratégias, mas

sim uma boa explicação de um determinado assunto teórico, que se relacione de alguma forma com

as questões do cotidiano da prática docente. Então ao se perguntar de quais experiências essas

professoras constroem o seu saber docente, confirma-se cada vez mais que os professores tomam como fonte básica de orientação para seu fazer cotidiano conselhos ou prescrições de professores mais experientes , e/ou imitam professores ou evitam agir como professores de que não gostavam, muitas vezes minimizando indicações dos especialistas. (DIAS DA SILVA, apud SILVA, 2003, p. 100)

Portanto, ao se referir ao curso de pedagogia que hoje está cursando, a professora Kelli

fez uma crítica, não a disciplina por sua natureza, mas pelo fato de como os (as) professores (as)

ministram as suas aulas, ou seja, não fazem a relação teoria e prática, o que cresce o desestímulo

em continuar cursando. Esta afirma que a prática do dia-a-dia lhe engrandece, como uma forma de

suprir este referencial que não encontra no curso, ou seja, não ajuda no desempenho do trabalho de

sala de aula, na efetivação da prática, porque a prática pedagógica de seus (as) professores (as)

assim é vista ineficiente. Assim, também, comenta a professora Jandira: “Profissionais que fazem

Page 24: CARTA À COMUNIDADE

115

confundir suas atitudes, pois dominam a “teoria”, mas a prática.... Este comentário da professora confirma

aquela idéia do educador americano John Dewey, quando se diz que um professor tem dez anos de

experiência , será que tem mesmo? Ou tem um ano de experiência repetido dez vezes? Então,

Nóvoa (1995) afirma que só uma reflexão sistemática e continuada é capaz de promover a

dimensão formadora da prática.

Os grupos de professoras confirmam que aprenderam a prática docente no exercício do

cotidiano das salas de aula, na prática. Esta observação não se baseia na qualidade dos

ensinamentos oferecidos pelo curso de pedagogia, formação inicial ou contínua, mas porque

estabeleciam relação com o modo pela qual tinham aprendido a ser professoras que se reforça na

atuação do dia-a-dia. Apesar de estas professoras legitimarem o curso de pedagogia como essencial

para a atuação docente e reforçam que para permanecer na função é necessária a formação

contínua, insistem em afirmar igualmente que se aprende a ser professora, a construir um estilo

didático na prática. Prática esta que se constróe a partir das experiências já vividas no mundo

escolar, aliada ao auxílio de colegas de trabalho, na discussão sobre a prática, como confere uma

dessas professoras: “Eu e a Rosi, planejamos sempre juntas e trabalhamos bem unidas, construímos um elo de

amizade bem verdadeiro e uma sempre ajuda a outra e assim nosso trabalho acontece. Professora Andréia Ristow.

Na mesma ótica, confirma a professora Lúcia: “[...] a Solange me ajudou muito com incentivos, carinho e mostrando tudo o que eu precisava... marcou muito... eu pensava em ser uma professora carismática, cheia de idéias, dinâmica... tudo o que eu via nela me admirava muito. Ela sentou-se comigo para me mostrar como preparar uma aula, foi comigo a sala e me mostrou como deveria fazer a aula acontecer... senti a necessidade de procurar mais, então prestei o vestibular e entrei na faculdade. Passei o curso todo estudando e procurando respostas de como eu conseguiria me superar e estar melhorando, cada vez mais, sendo também dinâmica, cheia de novidades para os alunos. A faculdade me deu suporte mas onde encontrei novidades e jeitos diferentes de lecionar eram nos cursos que a prefeitura incentivava... havia muitas trocas de idéias.

A professora acima observa o quanto é significativo para o seu fazer docente, o falar,

refletir sobre, ou seja “trocar idéias”, que motivem a continuar na profissão, assim como é

significativo da mesma forma iniciar o exercício da profissão, podendo se espelhar em outra

professora que lhe dá apoio para a prática docente cotidiana. Então, passo a me questionar se essa

prática da qual elas se referem não seria o modo como cada uma delas se inseriu na profissão, ou

seja, no mercado de trabalho, como se usufruiu ainda, que inconsciente das experiências didáticas

acumuladas durante a história da escolarização.

Continuo a vasculhar e buscar me certificar como os saberes didáticos foram ensinados e

aprendidos nesses cursos por estas professoras. Passo então a pensar que essas professoras

poderiam estar estabelecendo uma relação entre os saberes didáticos (resultado da disciplina de

Page 25: CARTA À COMUNIDADE

116

Didática) e a efetivação da prática docente. Mas por outro lado, elas não mencionam esta

disciplina, com exceção da professora Kelli, sendo que todas as demais observam apenas que

necessitam de conhecimentos teóricos, mas que por sua vez, estes se distanciam da prática. Parece-

me o mais conveniente afirmar que o estabelecimento de um habitus é construído a partir do

efetivo exercício da prática pedagógica à qual essas professoras foram submetidas quando alunas

durante sua história de escolarização, aliando ao auxílio de colegas de trabalho que se tornam

exemplos significativos de uma prática docente eficiente, como uma dessas professoras se referiu

um “refúgio”.

Posso dizer, assim, que a construção de um estilo didático antecede a formação que se dá

no magistério, na pedagogia, enfim, nos cursos responsáveis pela preparação para o exercício da

profissão docente. Ela se associa à própria história de vida da professora. O percurso de vida é um

percurso formador e, sem dúvida, não apenas marca, como sobretudo determina a vida profissional,

como se pode constatar nos fragmentos dos relatos aqui registrados e ainda mais estes que

marcaram a vida profissional destas professoras: “[...] prestei vestibular para Pedagogia pela Furb. Iniciei o curso no 1ª semestre de 1987. Também foi neste mesmo ano que comecei a lecionar. Foram quatro anos que enriqueceram e aprimoraram muito os meus conhecimentos a respeito da Educação. Foi a época em que fiz muitas amizades... Em uma das aulas tínhamos que dar uma aula fictícia. Esta aula era filmada para depois assistirmos e observarmos os pontos positivos e os negativos. Lembro-me que ao assistir a fita observei que falava com freqüência a palavra “né”. Até hoje me policio em torno desta palavra.”Professora Beatriz.

Observo que o que mais marcou foram as amizades e o fato de dar aula, mesmo que seja

fictícia, evidencia a prática como um dos momentos importantes e que oportunizou mudar o seu

jeito de se expressar, fez refletir sobre o seu modo de ensinar, oportunizando uma mudança na vida

prática.

A professora Anelise observa que o inicio da sua profissão foi significativo pela ajuda que

teve de colegas de trabalho, auxiliando-a a planejar aulas: “Algumas pessoas que trabalhavam no Osvaldo

Reis me ajudaram e eu preparava muito bem as aulas, estudava pesquisava cresci muito na ano que estava nesta

escola.. Esta, por sua vez, também chama atenção para o significado da prática, ao que tudo indica é

fazendo, atuando que se aprende a ser professora, sendo que este aprender se dá também pela ajuda

de outras professoras.

Neste viés, atualmente, começa-se a reconsiderar o papel do sujeito que reaparece face às

estruturas e aos sistemas, e, com ele, reaparece a qualidade face à quantidade e à vivência face ao

instituído. Assim, os sujeitos sociais e os atores sociais, não apenas do caso da Educação, mas nas

Ciências Humanas de um modo geral, são levados em consideração nas investigações e podem

Page 26: CARTA À COMUNIDADE

117

descobrir que são capazes de alterar o significado das realidades institucionais e, fazendo isso,

modificam o significado de si mesmos.

Essas novas concepções teóricas, acerca da participação dos sujeitos nos processos

históricos, trazem conseqüências para os estudos sobre formação docente. Diferentemente do que

se acreditava nas décadas passadas, hoje se trabalha com a hipótese de que a identidade

profissional é inseparável da identidade pessoal, como já foi refletido nos capítulos anteriores.

Portanto, os estudos atuais procuram destacar que há uma relação estreita entre o que o professor é,

como ele se vê e a forma como desempenha a sua função profissional. Há relações estreitas entre

identidades profissionais e as pessoais em todas as dimensões ( sua identidade de gênero, de classe,

de etnia etc.). Como afirma Nóvoa (1992, p.25): “O professor é a pessoa e uma parte importante da

pessoa é o professor”.

Por isso, os estudos mais recentes vêm afirmando que a formação docente é algo muito

mais profundo e complexo do que a aquisição de habilidades e de competências. Durante as

décadas de 70 e 80, o movimento pedagógico insistiu em mudar os conteúdos sabidos, os

conteúdos dominados pelos professores. Era a crença de que, se o professor mudasse suas

concepções de Educação e tivesse maior domínio teórico, teríamos uma prática educativa de

melhor qualidade. Isso justifica o fato de no inicio da Educação Infantil, em Brusque, neste período

histórico, as coordenadoras insistirem tanto em estudar as teorias piagetianas, wigotskianas, sendo

que na prática tudo era muito confuso, demonstraram em seus depoimentos que a teoria se

distanciava da prática.

Entretanto, alguns estudiosos3 têm dado maior relevância ao fato de que a questão da

formação docente, a questão da configuração profissional, não é apenas algo relacionado ao

domínio de novas técnicas, nem de novos paradigmas teóricos. Não se trata apenas de uma questão

cognitiva, mas, também, de uma questão de se compreenderem os valores, as definições éticas e as

visões do homem sobre a Educação e o mundo em que essas professoras, por exemplo,

introjetaram-se e vêm se introjetando ao longo de suas vidas pessoais e profissionais.

A formação docente, baseada no modelo de racionalidade técnica e, segundo Schon,

baseada em soluções técnicas para a solução de problemas, começa a ser questionada já na década

de sessenta. Outros aspectos como complexidade, incerteza, instabilidade, singularidade e conflito

de valores passam a ser considerados.

A formação não é algo meramente precedente ao fazer pedagógico. Ela, sem dúvida,

acontece nos cursos de formação, nos cursos de Licenciatura, mas o local no qual ela se configura e

3 Por exemplo: Antônio Nóvoa, Ivo F. Goodson, Donald A. Schon, Philippe Perrenoud, Marilda da Silva, Denice Catani, Belmira Bueno e outros.

Page 27: CARTA À COMUNIDADE

118

no qual o profissional cria forma definitiva é no próprio trabalho, sendo exaustivamente

confirmado pelas depoentes desta pesquisa. A configuração da profissional da creche se dá,

portanto, no seu cotidiano e é, a partir dos conflitos que vivenciam na sua prática diária, que a

professora elabora e reelabora teorias, constrói novos saberes e novos saber-fazer. Ou seja, nesta

perspectiva, se sai da lógica do “estar preparada” para o preparando-se a partir do surgimento da

questão. É nesta perspectiva que estas professoras, na sua grande maioria, apresentaram quais

teorias e quais práticas pedagógicas guardam na memória e que permanecem em suas vivências

docentes e quais práticas e teorias se romperam a partir do que foi ensinado e criaram condições

para novas cenas na educação infantil, construindo um estilo didático, portanto, por meio de um

habitus professoral. Isto se justifica quando as professoras enaltecem a prática como a responsável

pelo fazer docente, ou seja, aprendem a ser professoras no exercício da função, observando no jeito

de ministrar aulas, procedimentos pedagógicos semelhantes aos vividos como alunas, e, agora,

reproduzidos como professoras, escolhendo um estilo didático para ministrar as aulas na creche.

As teorias piagetianas e wigotskyanas permanecem em seus discursos, no entanto, na prática

docente há rupturas que são oportunizadas pelo próprio fazer docente, nas trocas com as colegas de

trabalho quando passam a refletir sobre o fazer, sobre os conflitos, frustrações vividas, então

observam os erros, as práticas pedagógicas bem-sucedidas, nas quais foram submetidas quando

alunas e a professora que estão sendo, que darão lugar a novas ações, pensando assim, as teorias

também passam por rupturas (ou não), pois nesta ótica, essas professoras elaboram e reelaboram

teorias por meio dos saberes que constroem na efetivação da prática, no saber-fazer.

Também é preciso considerar que a prática docente envolva uma série de ações que, por

vezes, as professoras não sabem descrever com precisão, eis o motivo das falas das professoras se

contradizerem, como por exemplo: “da responsabilidade de cuidar e educar... Para ser uma professora de

creche, você deve se doar por inteiro para as crianças, você deve ser carinhosa, atenciosa,,paciente e com certeza

gostar de crianças.”Professora Siomara.. A professora Jandira continua afirmando: “Hoje, em toda comunidade, os pais sentem o dom o qual tenho pela Edu. Infantil. Isso acontece pela aceitação das crianças e o repasso das atividades acontecidas durante o ano, pelas quais a criança modifica suas ações, demonstra conhecimento e mais, procuro sempre interagir com os pais, pois os mesmos nos proporcionam mudança de atitude, além de ser parceiro da escola, repassa segurança e estar acompanhando seus filhos, e interagindo com eles através das pesquisas...Diante de minha vida profissional, procurei trabalhar de forma lúdica, vivenciando a realidade através da fantasia transformando em conhecimento,a criança demonstra através de atitude a mudança de comportamento...”

Ora, estas professoras afirmam a necessidade de desenvolver um trabalho com

responsabilidade em que devem estar presentes o cuidado e a educação, subentendendo que é

necessário um conhecimento teórico na área para exercer a função de ser professora de creche, ou

seja, usando de termos mais contemporâneos, ser a profissional dotada de um curso de pedagogia,

Page 28: CARTA À COMUNIDADE

119

pós-graduação; ora a professora se contradiz afirmando que deve se doar por inteiro, prevalecendo

a vocação, o dom, então gostar de criança e ser afetuosa já é o suficiente, romantizando, portanto, a

profissão. Assim, como já foi sinalizado por Valle (2003), no fazer docente, permanecem os

aspectos da identidade vocacional mesclados aos aspectos da identidade profissional numa

perspectiva mais contemporânea.

No entanto, “existe um saber que se dá no fazer”. Esse saber tácito ou conhecimento

prático é adquirido por meio do exercício da atividade, a partir da experiência adquirida. As

professoras dão respostas imediatas a problemas que se enquadram dentro da mesma estrutura que

outros problemas já resolvidos, então, a professora Naide acredita que “[...]cabe a nós, professores de educação infantil, “perseguir” tais características, pois é aí que se esconde uma rica fonte de conhecimentos e um canal para trocas e internalizações de novos conhecimentos. Hoje, percebo tudo isso trabalhando com a faixa etária de 02 anos. Tem dias que eu quero sair correndo, pois não deu nada certo daquilo que eu planejei. Chego em casa, paro e reflito e percebo que de uma maneira indireta houve aprendizagem, troca e, principalmente amadurecimento, pois sempre se aprende a conhecê-los e poder melhorar nosso trabalho com os fatos que ocorrem no dia-a-dia. Gostaria de ficar muito tempo com a Educação Infantil, “ela” e eu temos muito o que trocar, dialogar e aprimorar para obter cada vez mais qualidade no atendimento e buscar dar contribuições e mediações mais acertadas no que diz respeito a construção de sujeitos que não se deixem passar por anônimos na sociedade em que vivem e sim dêem sua parceria de contribuição no sucesso de um mundo melhor e com um futuro promissor para as demais gerações.

Desta maneira, o modelo de racionalidade técnica mostra-se inadequado, uma vez que

desconhece o papel do educador como agente de construção da sua própria prática. Ou seja, não

reconhece a professora como alguém que define quais são os problemas que merecem serem

levados em conta, a partir de sua filosofia de vida, das suas concepções de educação ou, ainda, a

partir da maneira como percebe o seu fazer docente.

Esse modelo é mais uma vez inadequado por não levar em consideração o saber da

experiência, ou seja, o saber que a professora da creche constrói na sua relação cotidiana com o

contexto educativo. No modelo de racionalidade técnica, concebe-se a prática pedagógica como

sendo uma transposição direta de preceitos teóricos, de métodos de trabalho e de receitas didáticas.

Considera-se a prática da professora como sendo a simples aplicação do que ela aprendeu nos seus

cursos de formação. Os diferentes fatores que influenciam e determinam a ação educativa não são

levados em conta pelo modelo de racionalidade técnica. Então, concluo que pelo fato destas

professoras terem sido formadas nessa concepção, prevalece a atitude de perguntar aos formadores

como devem fazer, de que forma, e com qual receita, sendo que nos relatos da história de

escolarização, mesmo que inconscientemente, revelam a gênese e o desenvolvimento do ser

professora, da construção de um estilo didático aqui traçados.

Page 29: CARTA À COMUNIDADE

120

Diante do relato da professora Naide acima valorizado, esta pesquisa, aposta em uma

outra concepção acerca da formação docente que procura ressaltar o fato de que as professoras se

tornaram as professoras que são porque retraduzem para si, a partir das suas características

pessoais, os conhecimentos teóricos, as interações que vivenciam dentro e fora da escola, as

observações que fazem de outras práticas docentes antes de se tornarem professoras e o próprio

contexto onde atuam, que constituiu o engendramento do habitus professoral, que se traduz no

modo de pensar e agir no cotidiano da prática docente.

De acordo com esta perspectiva de análise, as professoras criam, a partir de sua

experiência, soluções para os problemas que elas próprias definiram como sendo relevantes, como

foi pontuado pela professora Naide no fragmento destacado acima. Ou seja, as professoras

constroem saber, constroem conhecimentos e não apenas se utilizam dos conhecimentos

produzidos nas instâncias consideradas responsáveis pela formação docente. No meu

entendimento, estas professoras passam a ter como perspectiva uma posição investigativa, de

pesquisa cotidiana.

Assim, é necessário compreender como e em que condições o conhecimento das

professoras, acerca da sua prática, vem sendo produzida nas escolas. Não basta afirmar que a

formação docente deve ocorrer concomitantemente à prática educativa, nem tão pouco que as

professoras devem ser reflexivas e autônomas. È preciso que se questione o modo como as práticas

escolares, com seus condicionamentos, podem limitar ou restringir a ação das professoras e

influenciar a sua formação, como afirma Perronoud (2001) o desafio consiste em levar o (a)

professor (a) habituado (a) a cumprir rotinas, a repensar a sua profissão.

Na medida em que fica evidenciada a importância dos saberes produzidos na prática e,

ainda, o papel que a própria professora tem na formação da sua identidade profissional, entendo

que a configuração da professora da creche relaciona-se a esses dois aspectos: o subjetivo e o da

formação.

Utopia? Parafraseando Caetano Veloso, “eu não espero o dia em que todos os homens

concordem, apenas sei de diversas harmonias possíveis no juízo final...” Assim, esta pesquisa

contribuiu para que eu pudesse construir uma reflexão significativa: é na explicação, por meio da

linguagem, do jeito de lecionar aulas (seja de professores mais experiente, os colegas de trabalho,

ou de seus professores ao longo da história da escolarização das experiências vividas como alunas

e a professora que está se sendo, a prática em si), que se configura o elemento principal para a

constituição do habitus professoral, é, portanto, a maneira de ser que qualifica, ou desqualifica a

relação teoria e prática que as professoras tanto desejam, sendo o modo de ensinar significativo,

Page 30: CARTA À COMUNIDADE

121

quando lhes possibilita a mudança na vida prática, ou seja, a constituição de um outro habitus

professoral, sendo esta reflexão amalgamada nos depoimentos.

Não se trata de afirmar que somente se constrói um estilo didático por meio da

constituição de um habitus professoral, nem tão pouco desprezar os cursos destinados para a

formação de professores, mas cabe aqui uma reflexão sobre quais práticas e quais teorias

constróem a professora da creche, considerando que tanto os cursos de formação quanto as

experiências vividas na história da escolarização (habitus) guardam em si suas peculiaridades que

merecem procedimentos diferenciados para serem investigados, levando em conta que um depende

do outro, tendo em vista que ambos estão imbuídos no processo de ensinar e aprender.

Page 31: CARTA À COMUNIDADE

122

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: DA HISTÓRIA VIVIDA À ANÁLISE DAS

EXPERIÊNCIAS DE OUTRAS HISTÓRIAS

Analisar as experiências vividas durante a história da escolarização das professoras da

creche se configurou em uma reflexão que, por sua vez, possibilitou constatar que o fazer docente

se constitui por habitus professoral. As memórias das professoras mostram como esse habitus se

constitui e como ele é no cotidiano da vida docente por meio do modo de ensinar, que oportuniza

uma mudança na vida prática, sendo assim definido: a constituição do habitus professoral se dá ao

longo do percurso da vida, independe de uma formação específica, tendo em vista que a prática

docente não se constitui apenas quando são assimiladas e entendidas as teorias pedagógicas, mas

desde muito cedo se encontram envolvidas em contextos e histórias individuais e que se prolongam

por toda a vida escolar e profissional resultando em um modo de ser e agir.

Desta forma, foi possível compreender os modos como as professoras vivenciam e

representam o processo do trabalho docente no cotidiano da creche, entendendo-o como um

processo de construção de experiências vividas singulares, que são possíveis de serem identificadas

a partir das trajetórias discentes e docentes as quais as professoras dão significado.

Chego a conclusão, então, que permanências e rupturas entretecem-se na produção das

práticas sociais cotidianas e na constituição da singularidade, apresentando contradições no

desenvolvimento da profissional da creche. Tornam-se professoras deste segmento tanto pela

apropriação e reprodução de concepções já estabelecidas no meio social e inscritos no saber

dominante da escola (permanências), quanto pela criação de maneiras de entender o exercício

docente nascidos na vivência pessoal com o ensino, seja como aluna ou como professoras nas

interações com suas crianças, com os colegas de trabalho, em movimentos reinvidicatórios que se

configuram em mudanças, oportunizadas pelas rupturas no modo de ser e agir, que se constitui por

sua vez em um habitus professoral.

Estas professoras foram oportunizadas a fazerem-se narradoras, assim não hesitei em

permanecer nos fragmentos, sendo apresentados apenas como exemplos, mas procurei explicitar a

possibilidade de singularização, a heterogeneidade e as transformações que poderão ocorrer, por

meio da análise do conteúdo dos relatos. Estes conteúdos ao serem reunidos e os fragmentos

selecionados são carregados de significados que possibilitaram visualizar como a professora da

creche se torna professora, como se constrói, como se forma. As narrativas produzem sentidos ao

fazer docente, quando assumem que o eu pessoal e o eu profissional constituem-se, de forma

recíproca, mostrando como se sentem e se dizem professoras, como foram se construindo entre

maneiras distintas de ser e conflitantes de encarar a profissão docente, nas diversas fases da

carreira. Debruçada sobre os depoimentos das professoras e sobre as ações por elas narradas,

Page 32: CARTA À COMUNIDADE

123

destaco que as representações acerca do ser professora da creche são produzidas num movimento

de ambigüidade, oscilando entre conformação e resistência. Com relação a escolha e permanência

na função de professoras da creche mostram, portanto, comportamentos de conformação e de

resistência, levando em conta que há uma opção inicial relacionada à sobrevivência e à

permanência, também inicial, resultante da falta de outras possibilidades de trabalho na condição

de mãe que são ou desejam ser, ao mesmo tempo que o gostar de crianças aparece, contrapunham

uma identificação por parte de outras, ainda que muito tímida, voltada a atividade profissional

baseada no desejo encontrado diante às possibilidades de transformação e formação cultural das

novas gerações, neste caso das crianças com as quais trabalham.

Assim, algumas professoras mostram que vivem a profissão com o sentido de sacerdócio,

a abnegação sem limites, pois isso ao longo dos anos afeta tanto, que são movidas pela salvação

nacional da recompensa das flores recebidas, dos abraços e das lágrimas de pais reconhecedores do

seu trabalho. Ao mesmo tempo, outras professoras passam no seu dia-a-dia por momentos de

descobertas quando ensinam crianças, percebem-se fazendo aquilo que foram submetidas quando

viveram o papel de alunas, ou seja, práticas que deram certo. Por outro lado, quantas vezes

percebem que aquilo que desejavam ensinar acabavam de aprender na prática. Acreditam que na

sala de aula não se ensina somente o que está estipulado no programa, mas que se desenvolvem

práticas outras que são marcantes e significativos tanto para a professora quanto para a criança que

oportunizam mudanças na vida prática.

Constatei que a problemática da relação teoria e prática concretiza-se pelo jeito de dar

aulas, ou seja, é explicitado pelo conceito de habitus bourdiano, e mais propriamente pelo habitus

professoral de Silva (2003), pois está relação se dá pelo modo do qual um determinado conteúdo é

explicado (dimensão teórica), tornando-se significativo é apropriado pela aluna-professora

(dimesão prática), proporcionando a construção de um estilo didático, possibilitando em alguns

casos novas cenas para o cotidiano docente na educação infantil/ creche.

Repensar a prática docente, para esta pesquisa, exige, agora, uma postura menos

romântica, porém sem perder a ternura que nela se envolve. É dizer que esta prática é política, pois

acontece em espaços de conflitos e de negociações, é recolocar-se como professoras, que significa

compreender o sentido da própria atividade profissional, é modificar-se, é ir além de si mesma,

oportunizando a reconstrução de um outro habitus professoral.

Quem sabe, tão logo, muitas representações que maximizam o afeto e o amor como

atributos femininos vinculados ao magistério da educação infantil possam ser questionados nos

cursos de formação pelas pessoas mais interessadas nessa ruptura, (ou não?) as mulheres/

professoras.