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34 Indo & Vindo 26 EDUCAÇÃO EM FOCO Diante desse cenário, resolvemos convidar o antro- pólogo Roberto DaMatta para ajudar a interpretar o que está por trás desses dados. DaMatta é especialista reconhecido no Brasil e lá fora. Ele escreveu um dos principais livros que analisam o comportamento do brasileiro ao volante, “Fé em Deus e pé na tábua: ou como e porque o trânsito enlouquece no Brasil”. Desde 2011 o Teleatendimento 1746, da Pre- feitura, registra o número geral de reclama- ções sobre os motoristas profissionais. Aquela que nunca saiu do primeiro lugar no ranking é a atitude do motorista de não parar no ponto. Na sua avaliação, por que esse é o item mais criticado pelos passageiros? Penso que um ponto crucial do elo entre o mundo público — o universo da rua, como tenho enfatizado no meu trabalho, — e o cidadão — o usuário que, Hora de embarcar em mais uma Carona com a UCT! Desta vez, chamamos a atenção para um assunto muito sério, rodoviário. Um tema que interessa principalmente ao motorista de ônibus! Levantamento da Prefeitura do Rio de Janeiro, pelo disque 1746, alerta para as reclamações vindas dos passageiros sobre os condutores profissionais. O ato de não parar no ponto lidera o ranking de críticas. “Parar no ponto é, no meu entender, um ato de engajamento positivo!” Carona com a UCT na "rua", transforma-se num "usuário" e num "passageiro" de um "co- letivo" — é a sua vivência negativa da impessoali- dade e do anonimato. A experiência brasileira tem um dado marcante: o con- traste entre a vida social na intimidade da casa, em que todos são alguém: têm nome, gosto, respeito, posição, numa ordem por gênero e idade, e a disso- lução de algumas dessas dimensões quando a pessoa vai para o trabalho e imediatamente muda de palco e de papéis. Em casa é filho; na rua é, eventualmen- te, uma vítima. Em casa, ele é atendido com esmero; na rua, é um ser transitório, que se vê constrangido a aceitar o que lhe é imposto por uma dinâmica de transporte público quase sempre ineficiente, agressiva no modo de conduzir o veículo, e — eis a resposta — que não o enxerga como uma criatura dotada do direito de ser vista de um ângulo pessoal. Porque um amigo, na condução de um ônibus, iria parar perto dele ou esperar pacientemente por ele, mas o moto- rista que não o conhece, muitas vezes, nem o vê, ou, como observa a pesquisa, não para no ponto. Ora, o "parar no ponto" é tornar-se cidadão, é reconhecer que o usuário não é parte de uma multidão sem rumo ou alma; ele (ou ela) é, isso sim, usuário e cliente fiel de uma empresa e de um modo de transporte. Da Reclamações sobre motoristas de ônibus Item “Não parou no ponto”: 2015: 2.620 (janeiro a abril) 2014: 9.934 2013: 15.999 2012: 14.854 2011: 2.625 Fonte: Rio Como Vamos/ Teleatendimento 1746

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Page 1: Carona com a UCT “Parar no ponto é, no meu entender, um ... · amigo, na condução de um ônibus, iria parar perto dele ou esperar pacientemente por ele, mas o moto-rista que

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EDUCAÇÃO EM FOCO

Diante desse cenário, resolvemos convidar o antro-pólogo Roberto DaMatta para ajudar a interpretar o que está por trás desses dados. DaMatta é especialista reconhecido no Brasil e lá fora. Ele escreveu um dos principais livros que analisam o comportamento do brasileiro ao volante, “Fé em Deus e pé na tábua: ou como e porque o trânsito enlouquece no Brasil”.

Desde 2011 o Teleatendimento 1746, da Pre-feitura, registra o número geral de reclama-ções sobre os motoristas profi ssionais. Aquela que nunca saiu do primeiro lugar no ranking é a atitude do motorista de não parar no ponto. Na sua avaliação, por que esse é o item mais criticado pelos passageiros?

Penso que um ponto crucial do elo entre o mundo público — o universo da rua, como tenho enfatizado no meu trabalho, — e o cidadão — o usuário que,

Hora de embarcar em mais uma Carona com a UCT! Desta vez, chamamos a atenção para um assunto muito sério, rodoviário. Um tema que interessa principalmente ao motorista de ônibus! Levantamento da Prefeitura do Rio de Janeiro, pelo disque 1746, alerta para as reclamações vindas dos passageiros sobre os condutores profi ssionais. O ato de não parar no ponto lidera o ranking de críticas.

“Parar no ponto é, no meu entender, um ato de engajamento positivo!”

Carona com a UCT

na "rua", transforma-se num "usuário" e num "passageiro" de um "co-letivo" — é a sua vivência negativa da impessoali-dade e do anonimato. A experiência brasileira tem um dado marcante: o con-traste entre a vida social na intimidade da casa, em que todos são alguém: têm nome, gosto, respeito, posição, numa ordem por gênero e idade, e a disso-lução de algumas dessas dimensões quando a pessoa vai para o trabalho e imediatamente muda de palco e de papéis. Em casa é fi lho; na rua é, eventualmen-te, uma vítima. Em casa, ele é atendido com esmero; na rua, é um ser transitório, que se vê constrangido a aceitar o que lhe é imposto por uma dinâmica de transporte público quase sempre inefi ciente, agressiva no modo de conduzir o veículo, e — eis a resposta — que não o enxerga como uma criatura dotada do direito de ser vista de um ângulo pessoal. Porque um amigo, na condução de um ônibus, iria parar perto dele ou esperar pacientemente por ele, mas o moto-rista que não o conhece, muitas vezes, nem o vê, ou, como observa a pesquisa, não para no ponto. Ora, o "parar no ponto" é tornar-se cidadão, é reconhecer que o usuário não é parte de uma multidão sem rumo ou alma; ele (ou ela) é, isso sim, usuário e cliente fi el de uma empresa e de um modo de transporte. Da

Reclamações sobre motoristas de ônibus

Item “Não parou no ponto”: 2015: 2.620 (janeiro a abril)2014: 9.9342013: 15.9992012: 14.8542011: 2.625Fonte: Rio Como Vamos/ Teleatendimento 1746

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mesma maneira que ele é um "pagante", ele espe-ra ser atendido como tal. E, o parar no ponto é, no meu entender, um ato de engajamento positivo neste mundo inevitável de impessoalidade e anonimato em que vivemos. Ao parar no ponto, eu começo a sair do anonimato, porque sou reconhecido como pessoa ou como "gente", e não como um "bicho”.O que justifi ca esse comportamento dos motoristas?

Do ponto de vista do motorista, há o chamado empoderamento que a máquina lhe fornece. No "coletivo", ele pode agir coletivamente; isto é, per-dendo o sentido de que o coletivo é feito de gente como ele. Seria talvez curioso fazer com que moto-ristas vivessem essa experiência de modo mais pe-dagógico, com o intuito de, neles, despertar a cons-ciência do pedestre e do usuário. Essa talvez seja uma razão. A outra tem, obviamente, a ver com a ausência de espaço para parar de modo adequado. Neste sentido, valeria investir no signifi cado social dos "pontos de ônibus", provendo-os de espaço, conforto e segurança.A má conservação da frota (item que aparece entre as principais reclamações), em sua opi-nião, pode infl uenciar na relação do passagei-ro com o motorista/cobrador?

É um fator-chave no ponto de vista do passageiro, que, obviamente, não quer ser tratado como um objeto ou como "gado", falando coloquialmente. Entrar num veículo limpo, com todos os seus equipamentos em or-dem, dirigido por alguém impecavelmente uniformiza-do e gentil, é como entrar num carro particular. Esse elo de confi ança, de atenção e, consequentemente, de soli-dariedade é, no meu entender, básico para compensar o automatismo e a impessoalidade como sinais de subor-dinação que elas possuem no Brasil. Um ônibus limpo

e em ordem é como uma casa que não teme uma visita e, se recebê-la, demonstra o grau de respeito que tem em relação a ela.Com todos os treinamentos e sensibilizações para a direção segura, nota-se, na pesquisa, que a reclamação sobre o comportamento perigoso no trânsito se repete todos os anos. Sabemos que não é uma postura só do condutor profi ssional, mas de boa par-te daqueles que enfrentam

o trânsito das grandes cidades. Como você avalia esse cenário? Medidas recentes, como a redução de velocidade nas vias urbanas, como ocorreu em São Paulo, ajudam a mudar essa realidade?

Talvez a redução ajude, porque ela obriga a prestar atenção no modo de conduzir o veículo. Eu penso que, no cenário de caos que estamos vivendo, qualquer ex-periência honestamente introduzida, com a necessária preparação do público, pode e deve ser realizada.O comportamento inadequado dos motoristas sempre é associado à falta de treinamento. Esta apreciação, em sua opinião, não simpli-fi ca demais a questão? A visão mais antro-pológica das relações sociais pode ajudar a compreensão dessa situação e sensibilizar responsáveis em relação a outras alternativas capazes de melhorar essa representação?

Sem nenhuma dúvida. O problema do trânsito no Brasil é de "estilo"; de modo de perceber a "rua" e os que nela estão como "outros", como estranhos. É isso que está elaborado, com veemência, no livro “Fé em Deus e pé na tábua”. Os gerentes públicos devem ser mais administradores do que políticos, e pensar a ci-dade também como um espaço de prestação de servi-ços. Em aldeias não existe condução; mas nas cidades o elo entre casa e trabalho é algo realizado rotineira-mente. Como, então, mudar esse estilo? Realizando uma ampla pesquisa e, a partir dela, atuar em todos os atores do cenário público. O momento olímpico seria uma bela oportunidade para tanto.

*Roberto DaMatta é antropólogo, confe-rencista, consultor, colunista do jornal “O Globo” e professor do Departamento de

Ciências Sociais da PUC-RJ.

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O Conselho da Universidade Corporativa do Trans-porte recebeu, neste semestre, novos membros. São eles:

1) Alexander Costa: representante do Sinfrerj;2) Douglas Azevedo: representante da Secretaria de Estado de Transportes do Rio de Janeiro;3) Sebastião José da Silva: representante da Federa-ção Interestadual dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários – FITTR;4) Rafael Picciani: secretário municipal de Transpor-tes do Rio de Janeiro.

O Conselho UCT é atualmente formado por 15 con-selheiros, que contribuem com seus conhecimentos especializados nas estratégicas para dirigir políticas, programas e serviços prestados pela instituição.

Vem aí mais uma formatura do Projeto Rodoviário Cidadão. Se você foi aprovado nos programas Mo-torista Cidadão e Formação de Lideranças e ainda não teve a oportunidade de participar da formatura, então aproveite a chance. O evento deste semestre será realizado no Centro de Convenções SulAmérica, na Avenida Paulo de Frontin, 1, Cidade Nova, Rio de Janeiro (RJ). Anote na agenda: 2/12/15, às 18h30!

E quem disse que o programa Direção por Simu-lador, da UCT, dorme no ponto? Já são dois anos de existência, e os resultados só mostram que a Univer-sidade Corporativa do Transporte tem muito o que comemorar:- 1.725 alunos;- 305 turmas;- 173 instrutores;- 103 empresas.

O Programa de Direção por Simulador está divi-dido em três cursos: Formação de Instrutores (para capacitar os instrutores das empresas a multipli-carem as informações), o Capacitação de Motoris-tas M1/BRT1 (para motoristas com experiência no setor) e o Ambientação (para novos motoristas). Algumas empresas afirmam que, após os profis-sionais passarem pelo curso, o índice de acidentes diminuiu em 40%.

Recentemente, foi realizada uma pesquisa para medir a avaliação dos participantes:- 96% dos alunos avaliam de forma positiva a expe-riência de utilizar o simulador;- 98% aprovam o conteúdo abordado no programa;- 78% afi rmam que o curso superou as expectativas.

Você encontra esta matéria completa no site da Universidade Corporativa do Transporte:www.uct-fetranspor.com.br. Os interessa-dos devem realizar as inscrições de seus ins-trutores pela PGA. Faça contato com a UCTpara conhecer outros avanços dessa açãoeducacional inédita. Envie e-mail para:[email protected].

Conselho UCT

Rodoviário Cidadão

Direção por Simulador

Fique por dentro!

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Leia outros artigos da colunista publicados na revista. Acesse www.uct-fetranspor.com.br e clique na seção "Artigos". Andrea Ramal é doutora em Educação. Atualmente é consultora do “Bom Dia Rio”, sempre às terças-feiras, e do programa “Encontro com Fátima Bernardes”, ambos da Rede Globo.

Cortesia no ponto certoCom a palavra, Andrea Ramal

Paulo saiu para o trabalho atrasado. Havia tido uma noite maldormida, com o fi lhinho de seis meses com có-licas, chorando e pedindo cuidados. De manhã teve que dar a medicação, preparar o lanche da escola do outro fi lho, e tudo isso preocupado: a crise estava apertando na empresa. As demissões aumentaram. Se ele perdesse o emprego, o que seria da família? Não queria nem pensar.

Por isso, não conseguiu deixar de se sentir revoltado quando a sua condução chegou e passou direto pelo ponto, sem parar. Os passageiros que aguardavam não acreditavam, alguns até falaram palavrões; uma mulher, que levava a mãe ao hospital, quase chorou.

Paulo sabia que o próximo ônibus só passaria dali a uns 30 minutos e, provavelmente, bastante cheio. O dia seria complicado. Talvez levasse bronca. Talvez fosse des-contado. Dinheiro para táxi, nem sonhando. Sentiu uma sensação de amargura no peito. Ele tentava fazer tudo certo. Por que isso estava acontecendo logo naquele dia? Vontade de pegar aquele ônibus no laço e voltar o tempo.

A cena vivida por Paulo dá o que pensar. Como diz o ditado, “a vida não é fácil para ninguém”, e cada pessoa sabe “onde o seu calo aperta”. Cada um sabe o tamanho dos seus problemas. Mas há momentos rápidos, em que nossa existência se cruza com a de um desconhecido, e uma pessoa pode afe-tar, de algum modo, para o bem ou para o mal, a vida do outro. É o que acontece num ônibus.

O motorista de ônibus tem um papel importante no dia a dia de cada pessoa. Ao respeitar as normas

de trânsito e dirigir com prudência, está cuidando de vidas, fora e dentro do veículo. Sua função so-cial vai muito além de dirigir. Ele lida com valores preciosos na vida de cada um: o tempo, o trabalho, a família.

Se um ônibus não para no ponto, pode estar em jogo um emprego, um atendimento num posto de saúde, uma oportunidade de carreira num vestibular. Por outro lado, se o motorista é cordial, recebendo o passageiro como se o ônibus fosse a sua casa, aquele momento pode contribuir para estimular a boa convi-vência, a tranquilidade, o bem-estar.

Gosto de pensar no motorista como o comandante de um navio ou de um avião. Ele é o líder da viagem. Tem que tomar decisões a todo momento, lidar com tri-pulantes que nem sempre são fáceis, enfrentar “tempo ruim”. Mas ele tem um foco: levar todos ao seu destino, com qualidade e segurança.

Toda essa roda que interliga tantas vidas em suas mãos começa com um gesto simples: parar no pon-to para recolher ou para deixar o passageiro em seu destino. Esse gesto não é só uma obrigação profi ssio-nal, é uma atitude de respeito que gera respeito de uns pelos outros. Afi nal, como dizia o famoso profeta das ruas da nossa cidade: “gentileza gera gentileza”. Quando o ônibus para no ponto certo, não é só o transporte que está chegando, são valores de gentile-za e cortesia, essas coisas simples que podem tornar nossa vida bem melhor.