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  • 7/30/2019 CARNEIRO, Leonel Martins. A ateno em A preparao do ator de Stanislvski.pdf

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    vol. 12, n. 2, dez 2012, p. 122-133Sala aberta

    A ateno emA preparao do atorde Stanislvski

    Leonel Martins Carneiro1

    Resumo

    O presente artigo visa discutir a influncia da ateno, proposta como conceito pela psicologia, noincio do sculo XX, na obraA Preparao do Atorde Stanislvski. Tal empreitada feita a partir de umaminuciosa reviso da obra, aps a qual, prope-se uma reordenao na sequncia do treinamento,proposto no livro pelo Diretor russo.

    Palavras-Chave: Stanislvski; Ator; Ateno

    Attention in StanislvskisAn actor prepares

    Abstract

    This article aims to discuss the influence of the attention, proposed as a concept by the Psychology,in the early twentieth century, into the Stanislvskis An actor prepares. Such task is achieved from areview of this book, after which is suggested a reorganization of the training sequence proposed, in thebook written by the Russian director.

    Keywords: Stanislvski; Actor; Attention

    Constantin Stanislvski sem dvida um dos mais influentes pensadores teatrais do

    sculo XX. Seu mtodo de preparao de atores e criao de personagens representou

    uma verdadeira revoluo no fazer teatral ocidental revoluo que j era apontada como

    necessria por Diderot (2005) e posteriormente por Craig (2004), ao dizer que o teatro

    poderia alcanar novos patamares com a sistematizao do trabalho do ator.

    O esforo de Stanislvski empregado na construo de um teatro que fosse

    eficiente em sua comunicao com o espectador teve como mais expressivas as ence-naes das peas de Anton Tchkhov desenvolvidas junto ao Teatro de Arte de Moscou.

    Esta experincia originou diversas teorias, sendo que algumas compartilham e vertica-

    lizam as ideias de Stanislvski, ao passo que outras trabalham na negao da mesma.

    Apesar de negar as suas pretenses cientficas na introduo de El trabajo Del

    actor sobre si mismo (2010)2, Stanislvski no tem como negar a influncia que o pensa-

    1 Ator, diretor, e doutorando em artes cnicas pelo PPGAC da USP sob a orientao da Prof Dr Slvia Fernandes.

    Graduado em Artes Cnicas pela UNICAMP e mestre em Artes Cnicas pela USP.

    2 Utiliza-se como base deste estudo a traduo espanhola da obra feita por Jorge Saura a partir do original Russo.

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    mento cientfico exercia naquele momento sobre o seu mtodo. Como nos aponta Jorge

    Saura, em suas notas edio espanhola, ele conhecia e utilizava diversos termos da

    biologia e da psicologia para estruturar seu pensamento e de certa forma valid-lo.

    Em numerosas ocasies Stanislvski cita em seus escritos obras de mdicos,

    psiclogos e bilogos, hoje j esquecidos, como forma de validar cientificamente suas

    descobertas e dedues empricas. A falta de interesse da cincia para com o teatro,

    expressada em diversas ocasies pelo diretor russo, manifestava seu temor que as

    suas teorias sobre a arte do ator pudessem no ser levadas a srio. Deve-se ter em

    vista que quando Stanislvski escreve seu livro (por volta de 1935) havia apenas

    quarenta anos que a profisso do ator tinha deixado de ser considerada, na Rssia,

    prpria de pessoas incultas e de ndole duvidosa. (STANISLVSKI, 2010, P. 25).

    Por outro lado, acredita-se que o surgimento do pensamento cientfico no teatro,

    que tem como marco a produo bibliogrfica de Stanislvski, provm de uma necessi-

    dade caracterstica do fim do sculo XIX, de revisar todos os conhecimentos humanos

    a partir do olhar da cincia. Como aponta Crary (2001), este perodo foi marcado

    pela relativizao da objetividade do conhecimento emprico; a partir deste perodo o

    mundo ocidental passa a atribuir certa parcialidade ao olhar humano.

    O cientfico em Stanislvski est pautado, principalmente, no dilogo que sua

    obra estabelece com os conceitos colocados em pauta pela nova cincia da psicologia

    (como os do subconsciente, da ateno, da imaginao e da memria), principal-

    mente, no estabelecimento das bases de um mtodo (cientfico) de criao cnica. Do

    legado escrito deixado pelo encenador russo, este trabalho concentra-se sobre seus

    apontamentos acerca da preparao do ator (Stanislvski, 2010).

    Ao analisar o livro de Stanislvski e os treinamentos que temos em escolas e

    universidades de teatro no Brasil, constata-se o quanto seus escritos foram funda-

    mentais para o desenvolvimento de um modelo para a preparao do ator, que hoje

    predominante, tanto no ensino tcnico quanto no ensino universitrio. Tendo esse fato

    em vista necessrio levantar uma questo: qual verso de Stanislvski ensinada

    aos alunos brasileiros? Quando se faz uma leitura atenta da obra em suas verses

    traduzidas diretamente do russo (neste caso as edies espanhola e italiana) em

    comparao com a verso traduzida da obra americana, percebe-se que a verso

    Esta traduo foi colocada em comparao com as tradues brasileira e italiana e mostrou-se a mais completa

    e confivel, uma vez que no foi possvel o acesso ao texto original em Russo.

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    americana impera no Brasil, uma vez que a traduo de Pontes de Paula Lima, feita

    a partir da traduo americana, a nica disponvel no Brasil, em lngua portuguesa.

    Deseja-se no meramente supor que h uma leitura correta do mtodo, mas

    relativizar a viso que se tem do livro como uma obra fechada e sagrada. H na obra

    estudada uma srie de aberturas, decorrentes em especial da tendenciosa traduo

    americana, que permitem, ainda hoje, que diversas leituras sejam feitas, atualizando

    o pensamento do autor diante do mundo contemporneo. Seria impossvel, em um

    artigo, destrinchar a obra ponto a ponto, comparando as verses russa e americana e

    este um dos motivos (dentre os muitos) que faz com que este estudo se concentre

    na questo da ateno.

    Mas por que a ateno? Pode haver diversas respostas a esta pergunta. Pode-se

    dizer que dentre os fundamentos principais do treinamento, como nos aponta Farber

    (2008), a ateno , nos dias de hoje, o primeiro tpico do ensino de teatro nas princi-

    pais escolas Russas, como a SPAGATI (Academia Estadual de Teatro de So Peters-

    burgo) e a RATI-GITIS (Academia Russa de Teatro). Estas escolas abordam a ateno

    no sentido de desenvolv-la, para que no palco e na vida o ator possua uma maior

    capacidade de concentrao, criao e ao. Ainda pode-se dizer, tal como um dos

    principais psiclogos do incio do sculo XX, Hugo Munsterberg, que a ateno a

    primeira e a principal funo interna que cria o significado do mundo externo para

    ns. Tudo que percebemos controlado pela relao entre a ateno e a desateno.

    (MUNSTERBERG, 2004, p.31)

    O livro El trabajo del actor sobre si mismo (2010), que contm a base do mtodo

    de preparao do ator para Stanislvski, organizado em forma de um suposto dirio

    de trabalho do aluno Kstia, um iniciante no estudo da arte teatral que est sob a tutela

    do diretor Trtsov. Por ser escrito na forma de um dirio, possvel dizer que a obra

    em questo apresenta uma relao direta entre o treinamento e o tempo, ou seja, a

    proposta de Tortsv (personagem da obra que representa a voz do autor) desenvolve

    um contedo ordenado dos conhecimentos mais bsicos para os mais avanados, em

    uma linha temporal contnua.

    Para analisar o treinamento proposto por Stanislvski, no aspecto relativo orde-

    nao de seus contedos, temos duas possibilidades: ao seguir a ordem aparente de

    seu livro pode-se dizer que a preparao tcnica do ator, para possibilitar que sejam

    feitas as primeiras cenas, passa sequencialmente por exerccios de 1.ao, 2.imagi-

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    nao, 3.ateno e 4.relaxamento; Mas ao olhar, num segundo momento, parece que

    esta ordem deriva de um erro do diretor Trtsov na conduo do treinamento

    deve-se levar em considerao que o livro est escrito na forma de um romance e no

    de um manual ou seja, a ordem efetivamente proposta pelo mtodo diferente da

    ordem aparente e seria composta por um treinamento que possui a seguinte ordem

    cronolgica 1.ateno, 2.imaginao, 3.ao e 4.relaxamento.

    Portanto, quando depois de passar por exerccios de imaginao (no captulo 5),

    Trtsov percebe que sem a ateno no possvel nem ao, nem imaginao desen-

    volverem-se plenamente, ele demonstra que a ateno seria verdadeiramente o primeiro

    passo para o treinamento tcnico do ator que estivesse disposto a seguir seu mtodo.

    Ao reconhecer a ateno como elemento primordial do treinamento do ator,

    Stanislvski introduz no teatro uma descoberta que havia sido feita por psiclogos

    como Helmoltz3 e Munsterberg4 no incio do sculo XX: que todo o mundo cognitivo

    deve passar pela ateno para poder ganhar o nvel do consciente. Diante disso, torna-

    -se necessrio ao ator uma ateno diferenciada do no-ator. Para explicitar melhor

    o que seria a ateno no teatro, o diretor Trtsov formula uma explicao que parece

    copiada de um livro de Hugo Munsterberg, ou de algum outro psiclogo de seu tempo:

    Quanto mais chamativo for o objeto, mais atrair a ateno. No h um s

    momento na vida de um homem em que sua ateno no se sinta atrada poralgum objeto. E quanto mais interessante for o objeto, maior ser seu podersobre a ateno do artista. Para distra-lo da plateia, deve-se introduzirhabilmente um objeto interessante aqui, no palco, como a me distrai acriana com um brinquedo. (STANISLVSKI, 2010, p.104)

    Neste trecho demarca-se ao mesmo tempo sua viso de como a ateno do ator

    age, bem como a postura que o diretor deve ter diante disto. Para Stanislvski o prin-

    cipal problema que seu sistema busca abordar, no que se refere a ateno, relativo

    ao ator que deixa de se concentrar em sua personagem e no palco para concentrar-se

    na plateia, no crtico, no diretor etc. Para reforar a suposta ligao entre o mtodo de

    trabalho de Stanislvski e a pesquisa da psicologia do incio do sculo XX, transcreve-se

    abaixo um trecho do livro no qual Hugo Munsterberg analisa a ateno no evento teatral:

    O foco da ateno dado pelas coisas que percebemos. Tudo o que barulhento, brilhante e incomum atrai a ateno involuntria. Devemos voltarnossa mente (ateno) para o lugar onde ocorre uma exploso, temos que

    3 Mdico, filsofo e psiclogo alemo que foi um dos precursores dos estudos sobre a ateno.

    4

    Psiclogo alemo e professor na Universidade Harvard. Foi quem desenvolveu primeira teoria sobre o filmeao aplicar seus conhecimentos sobre os processos mentais superiores sobre a temtica da recepo da cena

    (teatral e flmica).

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    ler o anncio luminoso que pisca. Certamente, o poder de motivao daspercepes impostas ateno involuntria pode ter origem em nossasreaes. Tudo o que mexe com nossos instintos naturais, tudo o que provocaesperana, medo, entusiasmo, indignao, ou qualquer outra emooforte assume o controle da ateno. [...] Seguramente, no faltam meiosde canalizar a ateno involuntria para pontos importantes no teatro. Para

    comear, o ator que fala prende nossa ateno com mais fora do que osque esto calados naquele momento. [...] O ator que vai at o proscnioest imediatamente no primeiro plano de nossa conscincia. Aquele quelevanta o brao enquanto os outros esto parados ganha a ateno para si.Sobretudo, cada gesto, cada personagem organiza e ritma multiplicidadede impresses organizando-as em benefcio da mente. A ao rpida,a ao incomum, a ao repetida, a ao inesperada, a ao de forteimpacto exterior vai forar nossa mente perturbando o equilbrio mental.(MUNSTERBERG, 2004, P. 32- 33)

    Diante do discurso de Munsterberg que expressava, de certa forma, uma continui-

    dade do discurso de William James5, Thodule Ribot6, Wilhelm Wundt7 e outros psic-

    logos do incio do sculo XX, percebem-se diversas aproximaes ao vocabulrio utili-

    zado por Stanislvski. Evidencia-se o conhecimento do encenador russo da pauta de

    discusso da psicologia. No se pode deixar de reparar na carga terica e conceitual

    que recai sobre termos que ele utiliza, tais como: subconsciente e ateno dirigida. Ainda

    que num processo de treinamento pudesse haver uma referncia ateno enquanto

    uma metfora de trabalho, a ideia de uma ateno dirigida ou focalizada est direta-

    mente ligada aos conceitos desenvolvidos pela psicologia de seu tempo.

    um vestgio dessa influncia a afirmao de Stanislvski de que a ateno

    dirigida a um objeto desperta ainda mais a observao do ator. Deste modo a ao

    entrelaada com a ateno cria um forte vnculo com o objeto. (STANISLVSKI, 2010,

    p.105). A partir desta afirmativa pode-se concluir que a ateno e a ao esto entrela-

    adas de modo definitivo no momento da apresentao tal como iria figurar na prtica

    de Stanislvski, anos mais tarde.

    Deduz-se de seus escritos, que a ateno do ator durante o treinamento diferente

    da utilizada ao longo da apresentao. No momento do treinamento necessrio que

    a ateno voluntria do ator seja treinada separadamente da ao e da imaginao

    conforme acompanha-se pela prpria organizao de seu livro. J no momento da apre-

    5 Psiclogo e filsofo estadunidense considerado o pai da psicologia moderna. Foi um dos principais mentores

    de Hugo Munsterberg, sendo o responsvel por traz-lo para Harvard.

    6 Psiclogo Francs que influenciou diretamente as teorias de Stanislvski sobre o ator. Destaca-se a influncia

    de seu livro A Psicologia da Ateno (de 1889), o primeiro dedicado exclusivamente ao assunto, do qual

    Stanislvski empresta diversos termos empregados em sua obra.

    7 Psiclogo, mdico e filsofo alemo. um dos pioneiros da psicologia experimental, tendo fundado o primeiro

    laboratrio de psicologia do mundo.

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    sentao, durante a qual a ateno do ator est em sua maior parte dominada pela fora

    do hbito, ela deve integrar-se de forma definitiva ao e imaginao. Como aponta

    Jorge Saura em suas notas sobre o livro El trabajo del actor sobre si mismo,

    Com esta interveno de Trtsov [sobre a conduo da ateno do ator],

    Stanislvski salienta a natureza ativa da ateno cnica, ideia que ganhoufora na prtica pedaggica de seus ltimos anos e que foi desenvolvida porseus discpulos. Se no princpio os exerccios sobre esta rea tendiam a fixara ateno sobre um objeto durante um tempo mais ou menos prolongado oua ampliar e reduzir os crculos de ateno, com o passar do tempo a atenose converteu em parte integrante da ao, ao emanar da ao. (SAURAApud STANISLVSKI 2010, p.105)

    A afirmativa de Saura refora nossa proposio de uma leitura da ateno e

    da ao como elementos indissociveis no processo de criao e de atuao para o

    encenador russo. Sem dvida, a principal estrutura para entender a ateno no treina-

    mento proposto pelo sistema de Stanislvski a dos crculos de ateno.

    Para compreender a proposta dos crculos de ateno nos voltamos por um

    instante para a teoria do holofote descrita por Cristian Wolf8 em 1740, segundo a

    qual a ateno visual se comporta tal como um foco de luz de um holofote: quanto

    mais rea ela abrange, mais rarefeita sua luz e mais geral; por outro lado, quanto

    menor o foco, mais concentrada ser sua luz, permitindo o detalhamento. A teoria de

    Wolf parece conter a explicao bsica do modo como Stanislvski utiliza a palavra

    ateno em seu trabalho, a partir da relao espao/detalhamento da percepo.

    Para Stanislvski (2010, p. 111) o crculo de ateno j no se trata de um s

    ponto [de ateno], mas de todo um setor de pequena extenso que compreende

    muitos objetos independentes. Ele prope que o crculo de ateno pode ser subdivi-

    dido em trs partes, segundo sua rea de abrangncia.

    O pequeno crculo consiste em uma focalizao (que pode ser feita atravs de uma

    luz ou do olhar focalizado) de um pequeno espao fora de seu corpo, do qual seu corpo

    geralmente o centro. Este o circulo da solido, pois quando no se v o espectador,

    tem-se a sensao de que se est s em seu prprio quarto. O crculo mdio uma

    focalizao em uma rea bem ampla, onde no se pode atentar para todas as coisas ao

    mesmo tempo. O olhar tem que percorrer o espao em busca de identificar sua delimi-

    tao. A grande rea iluminada pelo foco de luz (no caso do exerccio que utilizava focos

    de luz) j traz a impresso de que no se est s. O crculo grande o maior de todos.

    8 Um dos mais importantes filsofos alemes. Sua teoria dos holofotes foi precursora dos estudos psicolgicos

    sobre a ateno visual.

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    As suas dimenses dependem do alcance da vista. Portanto num local aberto como

    uma praia, esse crculo s teria como delimitao fsica o horizonte.

    De que serve a repetio de exerccios para a ateno durante o treinamento do

    ator? Segundo Stanislvski (2010, pp.116-117) para que o ator possa ter um treina-

    mento que aumente a eficcia de sua ateno durante a cena, no deixando que ele

    se distraia de seu objetivo. A proposio pode ser entendida mais claramente a partir

    da fbula hindu contada por Trtsov sobre o maraj que escolhe para seu ministro

    aquele que no sendo distrado por nenhum estmulo externo seja capaz de dar a

    volta caminhando sobre a muralha da cidade com um copo de leite cheio at as bordas

    sem derrubar uma gota sequer. Para Stanislvski o bom ator esse, capaz de concen-

    trar-se em seus objetivos.

    Convm ressaltar que esta conceituao de ateno utilizada por Stanislvski

    tem como referncia a ateno visual, est em acordo com as pesquisas dos psic-

    logos do incio do sculo XX. No entanto, a sua teoria se afasta da psicologia quando

    se refere ao objeto da ateno. Neste ponto Stanislvski deixa o rigor cientfico para

    abordar o tema de um modo prtico e mais metafrico.

    Quando ele prope uma distino dos objetos internos e externos, ao que

    parece, est se referindo ao efeito que a lembrana de uma experincia causa no

    ator e no diretamente a ateno sensorial. Diz que o objeto externo faz referncia a

    uma lembrana, em geral associada viso. Por outro lado ele considera que objeto

    interno aquele relacionado a uma reao corporal efetiva, como salivar, que est

    mais ligada ao paladar, ao tato, ao olfato e audio. Transcreve-se abaixo um trecho

    no qual o assunto abordado de forma mais clara.

    (Trtsov diz) Paulo, recorde o sabor do caviar.

    - J recordei respondeu.

    - Onde se encontra o objeto de sua ateno?

    - Em princpio tive a imagem de um grande prato de caviar colocado sobrea mesa.

    - Ou seja, que o objeto estava fora de voc.

    - Mas em seguida a viso me provocou sensaes gustativas na boca e nalngua lembrou.

    - Ou seja, dentro de voc observou Trtsov-. Para a tambm se dirigiu asua ateno. Paulo, recorde agora da marcha fnebre de Chopin. Onde est

    o objeto?

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    - Em princpio fora de mim, no cortejo fnebre. Mas os sons da orquestrasoam em meus ouvidos, ou seja, dentro de mim mesmo disse Paulo.

    - Para onde se dirige a sua ateno, certo?

    - Sim.

    -Por consequncia, na vida interna ns criamos no incio representaesvisuais sobre a mesa do caviar ou sobre o cortejo fnebre, mas depois atravsdessas representaes despertamos as sensaes interiores de algum doscinco sentidos e fixamos definitivamente nesse lugar nossa ateno, que,portanto, converge em objeto de nossa vida imaginria, no por uma viadireta, mas por via indireta, atravs do que podemos chamar de um objetoauxiliar. Isso o que ocorre com nossos cinco sentidos. (STANISLVSKI,2010, pp. 119-120)

    Neste pequeno dilogo Trtsov induz Paulo, com sua ateno voluntria, a

    pensar em objetos fora e dentro de seu corpo. A partir disso percebemos que, ao

    menos nessa obra, o autor est nos propondo exerccios justamente para fortalecer

    a ateno voluntria e impedir que a ateno involuntria desvie o ator de seu papel.

    Portanto a ateno do ator , neste caso, sempre voluntria visando ao hbito atravs

    do treinamento.

    Outra pista sobre a concepo de ateno para Stanislvski est em sua expli-

    cao de porque possvel para um equilibrista de circo fazer diversas coisas ao

    mesmo tempo: A razo de ele poder realizar tudo isso ao mesmo tempo que no

    homem a ateno tem mltiplos planos que no interferem um no outro.[...] Por

    sorte muito do habitual se torna automtico. Com a ateno pode ocorrer o mesmo.

    (STANISLVSKI, 2010, p.125)

    Pode-se dizer, a partir da anlise dos escritos do autor, que numa situao teatral

    ideal, o ator deve agir prioritariamente a partir de sua ateno voluntria e do hbito

    por ela gerado, enquanto o espectador deve se utilizar principalmente de sua ateno

    involuntria para fruir o espetculo.

    Antes do incio do treinamento tcnico do ator, Stanislvski prope que seja feito

    um diagnstico da capacidade atentiva do ator e de seus hbitos atravs de uma prova

    de palco. J no primeiro ensaio para esta prova de aptido (como chamamos nos dias

    de hoje o teste para ingressar no curso de teatro) Stanislvski demonstra-nos a fragi-

    lidade da ateno pouco treinada nas palavras de Kstia:

    Assim que pisei no tablado, apareceu em minha frente a imensa boca decena e por trs dela uma interminvel penumbra. Pela primeira vez vi a partirdo palco a plateia, agora vazia e deserta. Sentia-me totalmente desorientado.

    [...] Durante um longo tempo no pude me orientar no amplo espao rodeadopor cadeiras, nem concentrar minha ateno no que sucedia ao meu redor.(STANISLVSKI, 2010, p.21)

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    A experincia na prova de palco serve de incio para o treinamento prtico, forne-

    cendo ao diretor um diagnstico da capacidade de concentrao de cada aluno. Em

    seguida a esta prova ele demonstra, em vrios trechos, a importncia da ateno no

    treinamento do ator e como esta deve ser conduzida.

    No incio do captulo 3, no qual se introduzem exerccios tcnicos para o ator,

    ele desenvolve uma cena exemplar, na qual o personagem de Trtsov fica sentado,

    imvel, em uma cadeira. A ao de Trtsov sentado na cadeira (STANISLVSKI, 2010,

    p.53) atrai de forma definitiva a ateno do aluno-espectador. Utilizando a focalizao

    de sua ateno em cena, Trtsov provocava reaes, sensaes e pensamentos em

    seu pblico, de acordo com seus objetivos.

    A importncia de um treinamento da ateno voluntria do ator para a realizao de

    seus objetivos fica explcita tambm no exerccio que Trtsov prope a Maria (STANISL-

    VSKI, 2010, p.56-57). Ele pede que ela procure um broche no palco e sugere uma histria

    (fictcia) como pano de fundo. No entanto, Maria se esquece do broche e fica represen-

    tando sentimentos, com a ateno voltada para os espectadores que a observam.

    Neste ato narcisstico a atriz esquece o seu real objetivo em cena e, com isto,

    faz com que a cena perca sua eficcia no que diz respeito comunicao com o

    espectador. Isto est ligado concepo de Stanislvski sobre a qualidade da ao

    do ator. Para Trtsov (e consequentemente para Stanislvski) a boa ao est ligada

    eficcia do estmulo sobre a ateno do espectador, e por consequncia ao afeto de

    sua memria, sua imaginao e sua emoo.

    Sobre a importncia da ligao entre ateno, ao, memria e imaginao para

    a gerao de uma cena de qualidade, no captulo 3 ele diz:

    [em cena, Kstia est fingindo que seus fsforos imaginrios se apagamdiversas vezes enquanto ele tenta acender a lareira. Trtsov diz-lhe queeste tipo de ao mecnica e sem fundamento acontecem, em cena, numa

    velocidade muito maior do que os atos conscientes e fundamentados eexplica o porqu]

    - Isso no estranho explicou -. Quando voc atua mecanicamente,sem um fim determinado, no h nada que retenha sua ateno. No levamuito tempo para mudar de lugar algumas cadeiras; mas se voc querorganiz-las de um modo diferente, com um fim determinado, mesmo queapenas porque tem convidados e quer lhes oferecer o assento segundo suacategoria, demorar um longo tempo para mudar de lugar essas mesmascadeiras. (STANISLVSKI 2010, p.60- 61)

    Percebemos ao longo de sua obra, em especial no captulo 10, no qual tratado o

    tema da comunicao, que a finalidade do trabalho com a ateno do ator maximizara efetividade da relao que este estabelece com o espectador durante a apresen-

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    tao, criando assim a possibilidade de se estabelecer uma comunicao efetiva entre

    o palco e a plateia. Como nos mostra Guerrieri, em sua introduo edio italiana

    da obra, Stanislvski deixou apenas fragmentos de seus escritos sobre o espectador,

    mas no por isso que ele desconsiderado pelo seu mtodo.

    A presena do pblico (o seu campo magntico como dizia Jouvet) produz,em um primeiro sentido, efeitos negativos sobre o ator: o hipnotiza, inibesua fantasia, ou, ao contrrio, faz com que ele se exiba, narcisismo esteque interfere em sua atividade de intrprete e a desvia. Com uma sriede exerccios que trabalham a presena e que reforam a capacidade deconcentrao, de ateno, de solido em pblico, combatendo a presenado pblico e reforando a sua presena de ator, Stanislvski ensina, emprimeiro lugar, a no se estar sob o domnio do pblico. [...] Faz partedesta concepo a estratgia de abordagem indireta no confronto com oespectador: o dever do ator chegar ao pblico no por via direta, masmediado pela personagem. Assim a comunicao se d em nveis diversoscomo o visual, o sonoro, e tambm de subconsciente para subconsciente.

    E a chegamos ao segundo ponto. O pblico o plo receptor dacomunicao teatral, o ctodo do fludo da corrente cnica, e neste sentidointegra e interpreta o evento cnico segundo certos processos mentais eestruturas fantsticas, que o ator deve conhecer e deve levar em conta.(GUERRIERI APUD STANISLVSKI, 2008, p.XXVII)

    Diante desta afirmao de Guerrieri, prope-se que enquanto os captulos 3, 4, 5

    e 6 (que falam sucessivamente sobre a ao, a imaginao, a ateno e o relaxamento

    muscular) esto preparando o ator para o encontro com o espectador, no sentido de

    torn-lo capaz de manter a sua prpria ateno em seu objetivo, em sua ao, em sua

    imaginao e em seu corpo, os captulos 10 e 11 (que versam, respectivamente, sobre a

    comunicao e a adaptao) abordam do ponto de vista do intrprete o momento da apre-

    sentao. Nestes captulos mostra-se a importncia do conhecimento do ator acerca dos

    mecanismos de recepo do espectador. Explicita-se como a ateno do ator deve agir

    neste momento para capturar e conduzir o espectador pela trama do espetculo.

    Esta ao de comunicao do ator, consigo mesmo e com seu companheiro,

    gera uma abertura sensorial e racional do espectador que vai captando involunta-

    riamente as palavras e aes dos interpretes (STANISLVSKI, 2010, p. 252). Esta

    captao involuntria da qual Stanislvski fala pode ser compreendida como a ao

    da ateno involuntria do espectador agindo sobre a pea.

    Portanto, o captulo 10 trata, em resumo, de como o ator deve conhecer e estar sensi-

    bilizado ateno do espectador. Postula que ao manter a ateno voltada para seu objetivo

    e, ao mesmo tempo, manter-se aberto para comunicar-se com as coisas e pessoas ao seu

    redor, durante a apresentao do espetculo, o ator permite ao pblico um estado de pron-

    tido e porosidade que libera sua ateno involuntria para agir sobre a pea.

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    Uma particularidade do captulo 10 que fala sobre a comunicao do ator o

    emprego da palavra irradiao. Esta palavra utilizada de forma provisria por Stanis-

    lvski para designar a comunicao sem palavras, por um caminho invisvel, como

    uma transmisso de raios.

    Neste ponto pode-se inferir novamente que ele conhecia e utilizava toda a

    discusso instaurada pela psicologia, pois como aponta Saura o termo irradiao9

    foi tomado por Stanislvski do livro Psicologia da ateno de Ribot. (SAURA Apud

    STANISLVSKI, 2010, p.268) A irradiao seria utilizada no sentido de afinar a ateno

    e a sensibilidade do intrprete para melhorar seu desempenho espetacular.

    A questo da irradiao est diretamente ligada questo da ateno, figura-

    -se como mais uma das omisses/distores de aspectos fundamentais da obra de

    Stanislvski feitas pela traduo de Elizabeth Hapgood. Por no parecer um elemento

    importante da obra de Stanislvski na traduo americana, os treinamentos de irra-

    diao foram deixados de lado pela maioria de seus discpulos da escola americana

    e das por ela influenciadas.

    O captulo 11 fala mais especificamente sobre a adaptao que, nas palavras

    de Stanislvski (2010, p. 280), pode ser descrita como os meios internos e externos

    com os quais as pessoas se adaptam umas as outras para se comunicar e ajudam-se,

    mutuamente, a alcanaro objeto. A adaptao em cena um recurso, uma estratgia

    que ajuda a atrair a ateno da pessoa com quem se deseja estar em contato.

    A partir de todas essas evidncias possvel concluir que trabalhar a ateno

    do ator, segundo a perspectiva de Stanislvski, buscar cercar o material insondvel

    do inconsciente a partir de seus vestgios mais epidrmicos. conhecer mais sobre a

    natureza humana para poder aumentar a eficcia da comunicao que deve existir no

    momento da cena.

    Por isso, a obra de Stanislvski sobre a preparao do ator um ponto funda-

    mental da retomada da discusso da ateno do ator. A partir da reviso da obra de

    Stanislvski (2010) percebe-se a importncia e a potncia que ela tem, ainda hoje,

    para os estudantes de teatro, em especial para os atores. Mostram-se novos hori-

    zontes para o treinamento do ator, nos quais a ateno figura-se como um elemento

    fundamental, tal como j ocorre nas escolas russas de teatro.

    9 O conceito de irradiao foi desenvolvido de forma vertical pelo aluno de Stanislvski, Michael Chekhov (2010)

    em seu livro Para o Ator.

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