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    Histria do Tempo Presente, eventos traumticos e documentos sensveis - o caso brasileiro

    VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 28, n 47, p.43-59,jan/jun 2012

    Histria do Tempo Presente,eventos traumticos edocumentos sensveis

    o caso brasileiro*

    History of the Present, traumatic events and

    sensitive documents

    the Brazilian experience**

    cARLoS FIco

    Professor Titular de Histria do Brasil da UFRJ e pesquisador do CNPqLargo de So Francisco de Paula, 01. Centro

    Rio de Janeiro, RJ, CEP [email protected]

    RESUMO O artigo trata dos fundos documentais produzidos pelo regimemilitar brasileiro (1964-1985) a partir do enfoque da Histria do Tempo Pre-sente e da noo de eventos traumticos.

    Palavras-chave ditadura militar, Histria do Tempo Presente, eventostraumticos

    ABSTRACT This paper analyses the formerly condential documents of theBrazilian military dictatorship (1964-1985) considering the notions of Historyof the Present and traumatic events.

    Keywords military dictadorship, Present History, traumatic events

    * Artigo recebido em: 18/01/2012. Autor convidado.** Agradeo a leitura e comentrios de Ronald Polito.

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    Carlos Fico

    Si le pass (qui a eu lieu et forme dun moment dcisif au cours dune crise) estrefoul, il revient mais subreptice, dans le prsent do il a t exclu.

    (Michel De Certeau. Psychanalyse et Histoire)

    A recente aprovao da nova legislao brasileira sobre o acesso sinformaes pblicas coroa um longo processo de lutas contra o excessode sigilo na esfera governamental que se iniciou muitos anos atrs, antesainda do m da ditadura militar.1 O tema envolve questes que ultrapassamo campo de atuao do historiador, interessando o cidado em geral, in-clusive as vtimas do regime militar que necessitam de documentos outrorasigilosos para fundamentar pedidos de anistia.2 Para algumas instituies,como o Arquivo Nacional, a abertura dos chamados arquivos secretosda ditadura militar conitaria com o direito privacidade, proteo daimagem e da honra das vtimas, por vezes descritas naqueles documentos

    em situaes degradantes. Tais fundos documentais, portanto, podem serentendidos como arquivos sensveis, expresso mais comum em outrospases que viveram graves violaes dos direitos humanos.3 Em se tratandode um processo histrico que envolveu grande dose de violncia sobre-tudo a priso arbitrria de pessoas, seguida quase sempre de tortura e,vrias vezes, de morte , a ditadura militar brasileira pode ser pensada emconjunto com outros eventos traumticos caractersticos do sculo XX, oque situa esse tema no contexto dos debates tericos sobre a Histria doTempo Presente. So essas as questes que abordarei no presente artigo.

    Ele consolida reexes que tenho publicado, esporadicamente, em outrasocasies.

    Testemunhos do tempo vivido

    Uma das principais peculiaridades da Histria do Tempo Presente apresso dos contemporneos ou a coao pela verdade, isto , a possi-bilidade desse conhecimento histrico ser confrontado pelo testemunhodos que viveram os fenmenos que busca narrar e/ou explicar. Trata-se,

    talvez, da nica particularidade que verdadeiramente distingue essa es-pecialidade das demais, embora muitos autores tenham tentado destacaroutras singularidades do ponto de vista metodolgico ou mesmo terico.4

    1 Os governadores da oposio eleitos em 1982 tiveram de lidar com os rgos de segurana e de informaesligados s Secretarias Estaduais de Segurana Pblica, os antigos DOPS.

    2 A Comisso de Anistia foi instalada pelo Ministrio da Justia no dia 28 de agosto de 2001.3 Ver, por exemplo, WSCHEBOR, Isabel e MARKARIAN, Vania. (orgs.)Archivos y derechos humanos: los casos de

    Argentina, Brasil y Uruguai. Montevideo: Archivo General de la Universidad de la Repblica, 2009.4 Ver, a propsito, Richard Rorty em HASKELL, Thomas L. Objectivity: perspective as problem and solution. History

    and Theory, v.43, n.3, p.346, oct. 2004; Martin Broszat em KLESSMANN, Christoph e SABROW, Martin. ContemporaryHistory in Germany after 1989. Contemporary European History, v.6, n.2, p.220, jul. 1997; CHARTIER, Roger. Le

    regard dun historien moderniste. In: Institut DHistoire du Temps Present. Ecrire lhistoire du temps prsent: enhommage Franois Bdarida. Paris, CNRS, 14 mai. 1992.Actes de la journe dtudes de lIHTP. Paris: CNRSditions, 1993, p.252; LAGROU, Pieter. Sobre a atualidade da Histria do Tempo Presente. In: PRTO JR, Gilson.

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    De fato, a marca central da Histria do Tempo Presente sua imbricaocom a poltica decorre da circunstncia de estarmos, sujeito e objeto,mergulhados em uma mesma temporalidade, que, por assim dizer, noterminou.5 Isso traz importantes consequncias epistemolgicas para oconhecimento que se deseja construir.6

    A principal delas diz respeito ao estatuto do testemunho. Em termosgerais, pode-se dizer que, desde a Antiguidade, o testemunho do histo-riador era a segurana de credibilidade para a histria, especialmente otestemunho ocular, garantia de que se trabalhava com fatos que presen-ciramos com nossos prprio olhos e no apenas de que ouvramosfalar, como mencionou Isidoro de Sevilha. A nfase no videre tambmfoi reiterada por So Jernimo e outros autores da Idade Mdia. Para SoBeda, a histria deveria ser feita a partir de trs fontes: os documentosantigos, a tradio dos maiores e o seu prprio conhecimento (mea

    ipse cognitione scire potui) o que mescla o ver e o testemunhar.7

    Tal convico ancestral no foi inteiramente abandonada, como sev em Eric Hobsbawm, que se considera mais capacitado para compre-ender os episdios do sculo XX do que um jovem historiador que noos viveu.8 Esse otimismo longevo, entretanto, vinha sendo questionadodesde o sculo XVIII9 e sofreria grave interdio no XIX quando Leo-pold von Ranke, j octogenrio, tomou uma posio denitiva contra Histria do Tempo Presente (que ele praticara quando mais jovem). Elerenunciou s reexes polticas sobre os acontecimentos de sua poca.

    Ranke, havia algum tempo, construra paulatinamente a convico deque o historiador somente alcanaria objetividade quando se afastassedo turbilho dos acontecimentos recentes. Referindo-se a Georg Gervi-nus que havia lanado uma polmica introduo histria do sculoXIX disse: Gervinus destruiu o presente.10 Depois de aposentado,quando escreveu um texto sobre Frederico Guilherme IV, armou quefaria apenas poucas consideraes sobre o monarca prussiano porqueas simpatias e antipatias concorrentes ainda intervinham diretamenteno presente.11 Assim, Ranke sublinhou as supostas distores factuais,

    Histria do Tempo Presente. Bauru: EDUSC, 2007, p.34; HOBSBAWM, Eric. O presente como histria. In: Sobrehistria: ensaios. So Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.245.

    5 Sobre a ideia de que o tempo presente no terminou ver, entre outros, WOODWARD, Llewellyn. The study ofContemporary History.Journal of Contemporary History, v.1, n.1, p.1-13, 1966.

    6 Discuto o tema em detalhes na conferncia Histria do tempo vivido que integrar os anais do 4o SeminrioNacional de Histria da Historiograa: Tempo Presente & Usos do Passado, promovido pela Sociedade Brasileirade Teoria e Histria da Historiograa (SBTHH), na UFOP, em agosto de 2010, a sair pela Editora FGV.

    7 KARKOV, Catherine E. Text and picture in Anglo-Saxon England:narrative strategies in the Junius 11 Manuscript.Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p.177; ERNST, Fritz. Zeitgeschehen und Geschichtschreibung:Eine Skizze. Welt als Geschichte, v.17, p.141, 1957.

    8 HOBSBAWM, Eric. Sobre histria, p.247.9 Ver, por exemplo, a famosa armao de Wilhelm von Humboldt, em 1797, de que o ltimo e derradeiro juzo

    ca sempre reservado para a posteridade. HUMBOLDT, Wilhelm von. Gesammelte Schriften, Berlin, Deutsche

    Akademie der Wissenschaften zu Berlin, v.2, p.30, 1904.10 Apud ERNST, Fritz. Zeitgeschehen und Geschichtschreibung: Eine Skizze, p.160.11 ERNST, Fritz. Zeitgeschehen und Geschichtschreibung: Eine Skizze, p.161.

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    iluses e ignorncia de qualquer um que queira escrever a histria do seuprprio tempo, a mais abrangente, mais pretensiosa e ainda mais perigosatarefa a que pode ousar um autor preocupado com a verdade.12

    Essa interdio do tempo presente perduraria com fora, inclusive apso trmino do predomnio da escola metdica rankeana. Na verdade, aindahoje persiste alguma suspeita contra a histria que no tenha um bom recuotemporal, na medida em que isso impossibilitaria a anlise imparcial dosfenmenos. Muitas vezes se confunde recuo temporal e perspectiva (nosentido de ngulo ou ponto de vista): a distncia cronolgica estabiliza aperspectiva, disse Eric Hobsbawm,13 mesmo sendo evidente que o recuotemporal no conduz necessariamente a uma anlise isenta de perspecti-va, j que se pode analisar um objeto muito recuado no tempo a partir dediversos enfoques.

    A questo da neutralidade ou da imparcialidade era o ponto importante

    para Ranke. Para ele, o distanciamento temporal fundamentava sua preten-so de abstrair-se do presente. Alis, Ranke julgava que a questo centralno estava na proximidade ou distncia de seus objetos:

    A diferena da histria contempornea para a histria remota (...) apenas umaquesto de grau. O remdio para ambas alm do carter moral do historiador era construir seu ponto de vista acima da perspectiva individual e identicaro objeto histrico com uma verdade mais geral. O historiador deve conquistarum ponto de vista independente a partir do qual a verdade objetiva, uma visogeral, torna-se cada vez mais convel.14

    Inmeros historiadores corroborariam o anseio objetivista, comoFustel de Coulanges, para o qual nosso olhar sobre o presente sempretendencioso por causa de interesses pessoais, preconceitos e paixes:Compreendemos melhor os acontecimentos e revolues dos quais nadatemos a temer nem nada a esperar, disse.15 Foi a rejeio do subjetivismoem favor da busca pelo historiador de uma pretensa neutralidade ou im-parcialidade a parfait indpendance de son esprit,16 longe das injunespolticas ou morais que afastou a Histria do Tempo Presente da esfera

    do conhecimento acadmico rigoroso.17

    12 RANKE, Leopold von. Burnets history of his own times. In: A history of England principally in the seventeenthcentury, 1859-1869. Oxford, 1875, p.46.

    13 HOBSBAWM, Eric. Un historien et son temps prsent. In: Institut Dhistoire du Temps Prsent, p.102.14 Os trechos entre aspas simples so de Rankeapud KRIEGER, Leonard. Ranke:The meaning of History. Chicago:

    The University of Chicago Press, 1977, p.271.15 COULANGES, Fustel de. La mission de lhistorien. In: SAUVIGNY, G. Bertier de. (ed.) Recherches et questions.

    Notes sur lhistoire en France au XIXe sicle. Suivies dextraits des historiens franais du XIXe sicle. Paris: CollectionRessources, 1913, p.664-665.

    16 MONOD, Gabriel. Introduction: du progrs des tudes historiques en France depuis le XVIe

    sicle. Revue Historique,Paris, Librairie Germer Baillire et Cie, t.1, anne 1, p.37, Janvier Juin 1876.17 WOODWARD, Llewellyn. The study of Contemporary History, p.1.

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    Assim, o paulatino descrdito da tradicional histria do tempo vivido afe-tou gravemente o papel da testemunha ocular.18 O historiador presente aosacontecimentos, outrora o ador da narrativa verdadeira, tornou-se suspeitode envolvimento, de tendenciosidade. Desde ento, assumiu prepondern-cia heurstica o documento escrito, sobretudo o ocial, especialmente aquelenobilitado pela ptina do tempo. Esse um aspecto mais conhecido: apso predomnio quase fetichista do documento desse tipo no nal do sculoXIX e incio do sculo XX, algumas correntes, como a Escola dos Annales,contriburam para a ampliao do rol de fontes utilizadas pelo historiador.

    Alm disso, a reabilitao da Histria do Tempo Presente, em novosmoldes, aps as grandes guerras mundiais, introduziu o relato testemunhalcomo um dado essencial para a compreenso daqueles conitos. A Pri-meira Guerra Mundial j havia despertado algum interesse nesse sentido,mas a segunda foi mais importante. No ps-guerra, vrios institutos foram

    criados com o propsito de conservar documentos e depoimentos,19 mas ostemas caractersticos da Histria do Tempo Presente como a deportaode judeus ou a problemtica da memria s se tornariam marcantes apartir dos anos 1980.20

    Assim, praticamos, hoje, uma Histria do Tempo Presente bastantedistinta da que prevaleceu na Antiguidade e Idade Mdia e perdurou dealgum modo at a interdio estabelecida por Ranke. Aps uma fase debusca de legitimao posterior Segunda Guerra Mundial,21 o recurso sfontes orais e temtica dos eventos traumticos tornou a questo do tes-

    temunho proeminente.22 Muito dessa histria se fez a partir do depoimentodos que sobreviveram a aqueles eventos. Frequentemente, isso se deucom o propsito explcito (e poltico) de se evitar o esquecimento. A velhaquesto terica da perspectiva transparece, muito embora esse debate notenha animado os historiadores.23 Apesar disso, em alguns momentos elese imps: o historiador francs Henry Rousso entendeu que no devia atuarcomo perito e recusou-se a testemunhar diante do tribunal que julgou, nonal de 1997 e incio de 1998, Maurice Papon, acusado de colaboracionismocom o regime de Vichy. No Brasil, a recm-criada Comisso da Verdade

    certamente suscitar debates desse tipo. Os historiadores devem participarde uma iniciativa que, quase sempre, resulta em uma narrativa unvoca?

    18 KOSELLECK, Reinhart. Ponto de vista, perspectiva e temporalidade. Contribuio apreenso historiogrca dahistria. In: Futuro passado: contribuio semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro: Contraponto, PUC-Rio, 2006, p.174.

    19 LAGROU, Pieter. Lhistoire du temps prsent en Europe depuis 1945, ou comment se constitue et se dveloppeun nouveau champ disciplinaire. La Revue pour lHistoire du CNRS, n.9, nov. 2003.

    20 ROUSSO, Henry. El duelo es imposible y necesario. Entrevista concedida a Claudia Feld. Puentes, Dic. 2000, p.32.21 Descrita em cores quase picas no contexto francs, como se v em REMOND, Ren. Quelques questions de

    porte gnrale en guise dintroduction. In: Institut DHistoire du Temps Prsent.

    22 Sobre o tema consultar WIEVIORKA, Annette. Lre du tmoin. Paris: Plon, 1998.23 No obstante, consulte a instigante reexo sobre a questo do distanciamento histrico de HOLLANDER, JaapDen. Contemporary History and the art of self-distancing. History and Theory, n.50, p.51-67, dec. 2011.

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    Sabe-se que a Associao Nacional de Histria encaminhou demanda nessesentido ao governo, a quem incumbe nomear os membros da comisso.24

    No uma questo simples. Ela conita com as dimenses epistemol-gica e tico-moral da Histria do Tempo Presente. Tenho exemplicado essatenso com a narrativa de dois episdios que de fato aconteceram comigo.Vou referi-los brevemente para no enfadar algum raro leitor frequente. Noprimeiro, durante uma palestra, eu fui contestado por uma ex-militante daesquerda que no concordava com minha tentativa de desmiticar o tomheroico que algumas narrativas sobre a luta armada tm assumido: Eufui torturada!, ela disse, levantado-se e me calando. No segundo, duran-te uma entrevista que fazia com um militar, eu o agrei quando ele diziaque o AI-5, decretado em 1968, veio depois do sequestro do embaixadornorte-americano, ocorrido em 1969; mas ele no estava mentido: para oconforto de seu esprito, a memria do velho general construiu essa cro-

    nologia adequada.O testemunho verdadeiro do primeiro exemplo interditou o debate. No

    segundo caso, a falsa memria do general forneceu-me uma percepocompreensiva da constituio de sua trajetria. Como historiador, no tenhocomo denir o que a verdade histrica, mas posso estimular a reexosobre a multiplicidade de interpretaes possveis.

    Violncia/trauma, esperana/frustrao

    A condenao do mal um trusmo; explica pouco. Por isso, impor-tante desmontar simplismos e esteretipos decorrentes dessa tendncianatural. Entretanto, a busca por explicaes complexas, renadas, no podeser confundida com o que poderamos chamar de humanizao do algoz.Se todas as interpretaes so possveis, o historiador deve legitimar a leiturada represso? Esse um dos riscos implcitos na atuao do historiadorcomo perito, mas compreender o passado no signica justic-lo.

    H, portanto, um limite tico-moral que tornaria quase cnico contrapor--se a algum que, em defesa de seus pontos de vista, levanta o argumento

    de que foi torturado. No se trata de abrir mo das explicaes plurais,mas de se perceber que os eventos traumticos possuem esse carterinterminvel justamente em funo de sua constante reelaborao atravsdas memrias. Portanto, a memria dos eventos traumticos integra inelu-tavelmente o esforo de construo do conhecimento histrico sobre taisprocessos. Ao contrrio do que possa parecer em um primeiro momento,no se trata de uma contraposio entre memria e histria: no caso daHistria do Tempo Presente, trata-se de uma imbricao constituinte.

    24 Para conhecer os motivos de minha opinio contrria da Associao veja a videopalestra sobreo tema que profer i no b log Brasi l Recente. D isponve l em: .

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    Essa atitude compreensiva poderia comprometer a objetividade doconhecimento histrico? Infelizmente, desenvolvemos uma reexo aindaincipiente sobre o papel da emoo na compreenso histrica, como dizDominick LaCapra, para quem o historiador deve se pr no lugar do outrosem tomar seu lugar nem converter-se em seu substituto e sem sentir-seautorizado a falar com sua voz. Desse modo, a empatia em relao svtimas de experincias traumticas admissvel, mas preciso distingui--la da ideia de identicao, confuso que conduz idealizao e at sacralizao da vtima.25 Trata-se de uma fronteira tnue.26

    Por exemplo, os debates sobre a Comisso da Verdade, no Brasil, tmsuscitado a questo de que os dois lados deveriam ser investigados. amesma tese que, na Espanha, chamada de equivalencia e, na Argen-tina, de dos demonios, isto , a violncia da represso comparar-se-ia violncia da esquerda. Por que esse argumento, aparentemente sbrio,

    falso? H uma resposta formal: as comisses da verdade so criadas paraapurar crimes cometidos pelo Estado, no por pessoas. Mais importante,entretanto, o seguinte: o Estado brasileiro, mesmo durante o regime au-toritrio, poderia ter combatido a luta armada sem apelar para a tortura e oextermnio. Alm disso, muitos ex-integrantes da luta armada ao menosos que sobreviveram j foram julgados e punidos.

    No Brasil pequeno o movimento em prol do que, na Argentina, j foichamado de memorias denegadas,27 isto , o esforo de grupos sociais,sobretudo os militares, de terem reconhecido ocialmente pelo Estado o

    estatuto de memria traumtica para suas interpretaes sob a alegaode que tambm tiveram suas vtimas, combateram em nome da democra-cia, cumpriram ordens de escales superiores e assim por diante.28 Para anarrativa histrica, esse no um problema difcil de resolver: tudo dependeda maneira como construmos tal narrativa. Para a realidade poltica, trata-sede um confronto de memrias sem uma soluo possvel. Uma narrativaocial, como as que surgem de comisses da verdade, resvala para oterreno da simples ideologia, da memria ocial constituidora de heris,vtimas etc.

    Assim, o uso da noo de trauma para descrever os eventos relaciona-dos s ditaduras militares latino-americanas deve ser cuidadoso, muito mais

    25 LACAPRA, Dominick. Historia em trnsito: experiencia, identidad, teora crtica. Buenos Aires: Fondo de CulturaEconmica, 2006, p.94-95.

    26 Veja, a propsito, o sempre renovado ensaio de Michel De Certeau, Psicanlise e histria, que agora conta comboa edio brasileira: CERTEAU, Michel de. Histria e Psicanlise: entre cincia e co. Traduo de GuilhermeJoo de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autntica, 2011. (Coleo Histria & Historiograa coordenada por Elianade Freitas Dutra). Sobre a questo da simpatia consultar p.72.

    27 CATELA, Ludmila da Silva. Violencia poltica y dictadura en Argentina: de memorias dominantes, subterrneas ydenegadas In: FICO, Carlos et al. (orgs.) Ditadura e democracia na Amrica Latina: balano histrico e perspectivas.

    Rio de Janeiro: FGV, 2008, p.179-199.28 Para um exemplo brasileiro, veja o site do Grupo Terrorismo Nunca Mais. Disponvel em: .

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    do que no caso do Holocausto.29 A violncia foi muito diferente em pasescomo o Chile, a Argentina ou o Brasil. Se, na Argentina, ela denitivamenteperpassou a sociedade, no Brasil ela foi escamoteada pela censura e outrosmecanismos. A Guerrilha do Araguaia foi censurada, as aes armadasurbanas eram vistas pela sociedade como terrorismo, a tortura era negadae ocultada do grande pblico.

    A palavra trauma soa algo grandiloquente quando se trata de analisara ditadura militar brasileira. A ideia de que a violncia e o trauma podem serboas chaves analticas para entendermos os fenmenos que marcaram onal do sculo XX est por trs desse uso talvez excessivamente espraiado.Para Henry Rousso, a queda do muro de Berlim, a incriminao de antigoschefes da polcia poltica alem nos anos 1990, o julgamento na Frana, 50anos depois, de crimes acontecidos durante a Segunda Guerra Mundial,bem como a derrubada de ditaduras militares na Amrica Latina, seriam

    correlatos e integrariam um momento que possvel comparar.30 O estu-dioso de literatura, Andreas Huyssen, tambm considera haver um vnculoque identica os processos histricos posteriores aos eventos traumticosde pases que viveram totalitarismos, ditaduras militares, oapartheideex-termnios do nal do sculo XX. Segundo sua interpretao, a reviso dosrespectivos passados nacionais, regionais ou locais deveria ser pensadaem conjunto. Ele v no Holocausto um ndice ou chave do sculo XX edo fracasso do Iluminismo: o evento teria se transformado em uma metforade outras histrias traumticas, como as polticas genocidas em Ruanda,

    Bsnia e Kosovo.31 A marca do tero nal do sculo XX seria a de umagrande instabilidade e angstia diante de mudanas demasiado aceleradas.Essa nova temporalidade geraria um intenso pnico pblico pelo esqueci-mento que explicaria a converso da memria em uma obsesso culturalde propores monumentais no mundo inteiro.32 A professora argentinade literatura, Beatriz Sarlo, tambm compartilha a ideia de que os debatessobre o Holocausto e a transio democrtica no sul da Amrica Latina seentrelaaram nos meados dos anos 1980.33

    H certa generalizao nesse uso, mas no deixa de ser til considerar-

    mos a questo do trauma no caso brasileiro. Diferentemente da Argentina(para mencionarmos um exemplo prximo), o trao marcante da memriasobre a ditadura militar brasileira no o trauma pela violncia, mas afrustrao das esperanas. Naturalmente, trauma e frustrao no so a

    29 Ver, a propsito, SENKMAN, Leonardo. El horizonte de la Shoa y el nazismo en la memoria del terrorismo de estadoen Argentina y Chile. Revista Digital do NIEJ, n.5, ano 3, p.18-29, 2011.

    30 ROUSSO, Henry. El duelo es imposible y necesario, p. 39.31 Sobre as perdas de indivduos em situaes diferentes como na frica do Sul ou na Alemanha, ver LACAPRA,

    Dominick. Trauma, absence, loss. Critical Inquiry, v.25, n.4, p.698, summer 1999. Para a suposio de que possvelencontrar relaes signicativas e de informao mtua entre acontecimentos como o Holocausto, genocdiosetc. ver LACAPRA, Dominick. Historia em trnsito, p.356.

    32 HUYSSEN, Andreas. En busca del tiempo futuro. Puentes, n.2, p.15, 18, 19, 22 e 23.33 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memria e guinada subjetiva. So Paulo/Belo Horizonte: Companhiadas Letras/UFMG, 2007, p.46.

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    mesma coisa, mas integram o vocabulrio psicanaltico que predominano debate que estamos mencionando. Talvez seja possvel identicar doismomentos culminantes que nos permitiriam entender a ditadura brasileiracomo um fenmeno que no terminou, ambos marcados pela frustrao:rero-me Lei de Anistia, de 1979, e Campanha das Diretas, em 1984.

    No se deve confundir a Campanha da Anistia com a lei de 1979. Acampanha surgiu ainda em 1975, quando foi criado o Movimento Femininopela Anistia. Em 1977, com a ecloso de manifestaes estudantis em di-versas cidades do pas, a campanha ganhou maior flego: realizaram-se osDias Nacionais de Protesto e Luta pela Anistia e formaram-se os ComitsPrimeiro de Maio pela Anistia, que teriam durao efmera. Finalmente,em 1978, formou-se o Comit Brasileiro pela Anistia, lanado no Rio deJaneiro com o apoio do general Pery Bevilacqua, punido pelo AI-5 em 1969.A exigncia de uma anistia ampla, geral e irrestrita tornou-se oslogan da

    campanha.34 Ela foi marcada pela esperana. A Lei da Anistia, ao contrrio,aprovada em agosto de 1979,35 compunha uma estratgia delineada por umgrupo restrito de integrantes do regime (especialmente Geisel, Golbery e Pe-trnio Portela) e fazia parte da lgica segundo a qual era preciso enfraquecero partido de oposio, o MDB, a m de se garantir o controle da aberturapoltica, planejada para transcorrer sem maiores percalos e, sobretudo,sem que os responsveis pelos desmandos da ditadura fossem punidos.Com a anistia e o m do bipartidarismo esperava-se que lderes polticosexilados retornassem ao Brasil e criassem novos partidos, enfraquecendo

    a sigla de Ulysses Guimares. A excluso da anistia dos condenados pelaprtica de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal eo chamado perdo aos torturadores frustraram a expectativa otimista dacampanha. A lei de 1979, que beneciou oposicionistas, mas tambm foiuma autoanistia, tornou-se a principal clusula da transio democrticados anos 1980 e consagrou a impunidade.36

    A Campanha das Diretas, anos depois, tentou contrapor-se ao projetode abertura lenta, gradual e segura dos militares que, alm de outrasetapas preliminares,37 pressupunha a escolha do primeiro presidente civil

    atravs do sistema indireto no famoso Colgio Eleitoral. Os comcios dacampanha, em diversas cidades brasileiras, eram muito concorridos, com apresena de multides. O clima era festivo, mas havia um forte componentepoltico. dolos populares, como cantores e atores, animavam o pblico,

    34 Sobre a campanha pela anistia, consultar GRECO, Heloisa Amlia. Dimenses fundacionais da luta pela anistia.2003. Tese (Doutorado em Histria), UFMG, Belo Horizonte; DEL PORTO, Fabola Brigante.A luta pela anistia no

    regime militar brasileiro: a constituio da sociedade civil no pas e a construo da cidadania. 2002. Dissertao(Mestrado em Cincias Polticas), UNICAMP, Campinas.

    35 A Lei da Anistia a de n 6.683, de 28 de agosto de 1979.36 Para maiores detalhes consultar FICO, Carlos. A negociao parlamentar da anistia de 1979 e o chamado perdo

    aos torturadores. Revista Anistia Poltica e Justia de Transio, Braslia, Ministrio da Justia, n.4, p.318-333, jul./dez. 2010.37 O abrandamento da censura (1975), o m do AI-5 (1978), a anistia e o m do bipartidarismo (1979).

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    mas as multides tambm se emocionavam com lderes polticos, ouvindoatentamente os discursos de governadores, parlamentares e sindicalistas.A ideia era pressionar o Congresso Nacional a aprovar a Emenda Dantede Oliveira, apresentada pelo at ento desconhecido parlamentar mato--grossense. Como o partido do regime militar, o PDS (sucessor da ARENA),detinha a maioria, era impossvel conseguir a aprovao sem o apoio deparlamentares governistas. A Campanha das Diretas foi to impactanteque muitas pessoas acreditaram na vitria. No dia da votao, quando aderrota foi conrmada, a TV mostrou pessoas chorando pelo Brasil afora.Como planejado, a escolha do presidente foi indireta, atravs de negociaopoltica que consagrou a conciliabilidade. A morte inesperada de TancredoNeves enfatizaria o carter frustrante do processo.38

    A frustrao diante da impunidade e da ausncia de uma verdadeiraruptura torna a transio brasileira um processo que no terminou. No

    surpreende que ainda estejamos s voltas com o tema. Em 2008, a Ordemdos Advogados do Brasil (OAB) registrou no Supremo Tribunal Federal (STF)uma Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental cujo objetivoera excluir os crimes comuns praticados pelos agentes da represso contraopositores polticos durante o regime militar dos abrangidos pela Lei daAnistia de 1979.39 A ao somente foi julgada em 2010 e o STF conrmouo entendimento do perdo aos torturadores.

    H um aspecto a mais que vincula o tema da frustrao ao dos docu-mentos secretos: a desconana da poltica. A antiga percepo de que

    seria difcil realizar uma histria poltica sobre o perodo vivido, na medidaem que as decises realmente importantes so ocultadas do pblico pro-blemtica muito discutida quando da divulgao, em 1918, de documentosanteriores ecloso da Primeira Guerra Mundial ,40 ressurgiu, de algummodo, com os debates sobre a liberao de documentos sigilosos das po-lcias polticas dos regimes totalitrios e, mais recentemente, das ditadurasmilitares latino-americanas.41 Aps o colapso da antiga Alemanha Oriental, adeciso de praticamente liberar todos os arquivos, sem a observncia dosprazos regulamentares, tambm criou uma situao inusual do ponto de

    vista tico. Por essa razo, a Associao Alem de Historiadores aprovou,em 1994, uma resoluo aparentemente bvia, reiterando que as fontestm valor informativo apenas limitado, que preciso observar os contextosdiferenciados, os vnculos do historiador etc.42

    38 Sobre o impacto da morte e do funeral de Tancredo Neves consultar MARCELINO, Douglas Attila. O corpo da NovaRepblica: funerais de presidentes e memria de Tancredo Neves. 2011. Tese (Doutorado em Histria), UFRJ, Riode Janeiro.

    39 A arguio foi registrada no STF sob o n 153, em 21 de outubro de 2008, e teve como relator o ministro ErosGrau.

    40 ERNST, Fritz. Zeitgeschehen und Geschichtschreibung: Eine Skizze, p.182.41 O mesmo pode ser dito, de algum modo, em relao liberao de documentos sigilosos da diplomacia e do

    servio de inteligncia das grandes potncias, notadamente dos Estados Unidos da Amrica, em funo doalcance das operaes secretas que tais pases patrocinaram sobretudo durante a Guerra Fria.42 KLESSMANN, Christoph e SABROW, Martin. Contemporary History in Germany after 1989, p.224-226.

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    Documentos sensveis

    A transio brasileira foi, assim, marcada pela impunidade, concilia-o e frustrao, lgica que prevaleceu at pouco tempo. De fato, ela noacabou, como estou tentando sugerir, e talvez esteja sendo retomada em

    outros moldes, sobretudo em funo do que se costuma chamar de justiade transio, isto , os procedimentos atravs dos quais as pessoas atin-gidas por violaes dos direitos humanos buscam reparaes em pasesque viveram regimes autoritrios ou outros processos violentos. No casodo Brasil, tudo comeou tardiamente, dez anos aps o trmino da ditadura,quando o presidente Fernando Henrique Cardoso criou, em 1995, uma leique reconheceu como mortas pessoas desaparecidas durante o perodo.A morte de mais de cem desaparecidos foi imediatamente reconhecida euma comisso foi criada para examinar outras denncias. A partir de 2001,

    uma Comisso de Anistia passou a analisar pedidos de indenizaes depessoas atingidas pelo regime militar e grande polmica se criou em funodo valor elevado de algumas reparaes.

    Outros episdios foram despertando a sociedade para o carter incon-cluso da transio brasileira. Um deles, por seu carter pungente, chama aateno para a violncia da represso, que muitos desconheciam durantea ditadura em funo da censura. Rero-me s buscas dos restos mortaisdos militantes que foram mortos durante a chamada Guerrilha do Ara-guaia, tentativa de levante popular na regio centro-oeste e norte do Brasilna primeira metade dos anos 1970. O Exrcito brasileiro, que reprimiu aguerrilha, at hoje no forneceu informaes sobre a localizao dos corposdas vtimas e alguns familiares acalentam a esperana de que documentossigilosos possam trazer essa informao. Assim, a luta pela abertura dosdocumentos da ditadura, que em um primeiro momento mobilizou apenasalguns poucos historiadores, passou a ser assumida por outros setores ea ter repercusso na imprensa.

    No Brasil, a demanda pela abertura dos arquivos do regime militarassumiu grande centralidade, tornando-se um aspecto decisivo da Justiade Transio. Os pedidos de anistia tambm tm sido importantes para am-

    pliar o debate: todos os documentos comprobatrios reunidos por vtimasque pleitearam suas indenizaes junto Comisso de Anistia constituemum acervo documental peculiar, na medida em que cada processo umaespcie de antidossi, o reverso dos velhos dossis da espionagem ouda polcia poltica. Para muitas dessas vtimas, a necessidade de reunirdocumentos para solicitar a devida reparao Comisso de Anistia foi umprocesso doloroso. Entretanto, alm das reparaes materiais, a constituiodesses antidossis permitir outra forma de justia, na medida em que,

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    agora, temos a verso dos que foram espionados, presos e torturados eno apenas a dos que espionaram, prenderam e torturaram.43

    No por acaso, a questo do conhecimento histrico foi bastantelembrada pelos ministros do STF quando julgaram a ao que contestavaa Lei de Anistia de 1979. Um dos argumentos apresentados pelos que im-petraram a ao reclamava o direito verdade. Por isso, embora tenhamconrmado a interpretao segundo a qual a lei perdoou os torturadores,quase todos os juzes se pronunciaram como a ministra Crmen Lcia, quedisse: o direito verdade, o direito histria, o dever do Estado brasileirode investigar, encontrar respostas, divulgar e adotar as providncias sobreos desmandos cometidos no perodo ditatorial no esto em questo.44

    J relativamente longo o histrico da luta pela abertura dos arquivosda ditadura. Os acervos das antigas delegacias de ordem poltica e social(DOPS), vinculadas s secretarias estaduais de segurana pblica, come-

    aram a ser liberados no incio dos anos 1990, como foi o caso do DOPSde So Paulo.45 Outros assemelhados vieram com o tempo.46

    A documentao federal passou por um longo processo at chegarmos situao atual. Eu prprio z uma solicitao, em 1993, visando aberturado que seria o primeiro fundo documental do servio de informaes doregime militar a vir a pblico, o da extinta Diviso de Segurana e Informa-es do Ministrio da Justia, um rgo de informaes do regime militarinstalado em todos os ministrios civis, que se subordinava hierarquicamenteao ministro, mas que permanecia sob a superintendncia do rgo federal

    de informaes, o SNI (Servio Nacional de Informaes). Aps quatro anosde espera, pude consultar essa documentao.47

    Fiz isso baseado na legislao que havia na ocasio, especialmentea Lei 8.159, de 8 de janeiro de 1991, que assegurava o direito de acessopleno aos documentos pblicos. Essa era a lei que regulamentava o direito

    43 A Comisso de Anistia promete divulgar esses documentos (cerca de 60.000 processos) no Memorial da Anistiaque se encontra em construo em Belo Horizonte.

    44 ntegra do voto da ministra Crmen Lcia no julgamento da Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamentaln 153. 29 de abril de 2010. Supremo Tribunal Federal.

    45 Ver, por exemplo, AQUINO, Maria Aparecida de, MATTOS, Marco Aurlio Vannucchi e SWENSSON JR, Walter

    Cruz. (orgs.). No corao das trevas: o DEOPS/SP visto por dentro. So Paulo: Arquivo do Estado/Imprensa Ocial,2001; PIMENTA, Joo Paulo Garrido. Os arquivos do DEOPS-SP: nota preliminar. Revista de Histria, So Paulo,v.132, p.149-154, 1995; LEITO, Alfredo. Fundo Deops: organizao e manuteno. In: SILVA, Zlia Lopes da.

    Arquivos, patrimnio e memria: trajetrias e perspectivas. So Paulo: Unesp, 1999; KOSSOY, B., SOBRINHO, F.Couto e CARNEIRO, M. L. T. (orgs.) PROIN: projeto integrado. Arquivo Pblico do Estado e Universidade de SoPaulo. So Paulo: Humanitas; FAPESP, 1996.

    46 RIO DE JANEIRO, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro. Os Arquivos das polcias polticas: reexos denossa histria contempornea. Rio de Janeiro: Faperj, 1994; RIO DE JANEIRO, Arquivo Pblico do Estado do Riode Janeiro. Dops: a lgica da desconana. Rio de Janeiro: O Arquivo, 1996; RIO DE JANEIRO, Arquivo Pblicodo Estado do Rio de Janeiro. Catlogo de folhetos apreendidos pelas polcias polticas. Rio de Janeiro: O Arquivo,2001; RIO DE JANEIRO, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro. Catlogo de livros apreendidos pelas polcias

    polticas. Rio de Janeiro: O Arquivo, 2001; DAVIS, Darin. The arquivos das polcias polticas of the State of Riode Janeiro. Latin American Research Review, v.31, n.1, p.99-104, 1996; FURTADO, Eliana e RAMALHO, Lcia. Apoltica de acesso do Aperj ao acervo Dops.Arquivo & Histria, n.3, 1997; RIO DE JANEIRO. Arquivo Pblico doEstado do Rio de Janeiro. Inventrio preliminar do Fundo Departamento de Ordem Poltica e Social do Estado da

    Guanabara. Rio de Janeiro, 2001.47 Para maiores detalhes sobre esse episdio consultar FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrneos da ditaduramilitar: espionagem e polcia poltica. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.25-27.

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    de acesso s informaes previsto pelo artigo 5o da Constituio brasileirade 1988.

    No incio de 1997, foi aprovado um decreto que regulamentava essa lei.48O decreto possua dispositivos que permitiam, anal, o acesso documen-tao, pois dizia que os arquivos podiam autorizar o acesso a documentospblicos de natureza sigilosa a pessoas devidamente credenciadas, me-diante apresentao, por escrito, dos objetivos da pesquisa. Entretanto,o decreto tambm impedia, por cem anos, a revelao dos documentoscuja divulgao irrestrita comprometesse a intimidade, a vida privada, ahonra e a imagem das pessoas, bem como daqueles que tivessem sidoparte de processos que tramitaram em segredo de justia.

    Tanto quanto a Lei 8.159 tinha um carter democrtico, o Decreto 2.134resultou do trabalho de arquivistas e outros prossionais interessados emcriar regras justas. O Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ) teve papel

    fundamental nesse processo, devendo-se a ele o Decreto 2.134. Como visvel, essas duas legislaes davam ao Brasil, na segunda metade dosanos 1990, um razovel suporte legal para o acesso documentaosigilosa da ditadura militar. Algumas comisses de acesso j haviam sidoinstaladas e comeavam a funcionar em vrios rgos da administraopblica do pas.

    No apagar das luzes do segundo governo de Fernando Henrique Car-doso, o Conselho Nacional de Arquivos foi pego de surpresa: em dezembrode 2002, o presidente assinou o Decreto 4.553, que passaria a vigorar 45

    dias aps sua publicao, j no governo de Lula. O novo decreto no foidiscutido com o CONARQ, ao contrrio do anterior, ento revogado. Asnovas regras eram mais rigorosas, especialmente as que estabeleciam osprazos de classicao (perodo durante o qual o documento ca inaces-svel). Os documentos reservados tinham prazo de cinco anos e passarampara dez; os condenciais subiram de dez para vinte anos; os secretos, devinte para trinta anos, e os ultrassecretos (prazo inicial de cinquenta anos)podiam permanecer sigilosos para sempre. Alm disso, as regras paradesclassicao tornaram-se confusas. As comisses de acesso foram

    eliminadas, o Executivo passou a ser o nico poder competente para aatribuio de sigilo e o nmero de autoridades com tal poder aumentou.Muito questionado quanto sua constitucionalidade, o decreto ultrapassavaa Lei 8.159 ao estabelecer o prazo de cinquenta anos para os documentosultrassecretos (j que o perodo mximo de classicao estabelecido pelalei era de trinta anos).

    Inicialmente, o governo do presidente Lus Incio Lula da Silva aceitoua revogao do Decreto 2.134, em aparente arranjo com seu antecessor,o que motivou suspeitas diversas. Em outubro de 2003, entretanto, surgi-

    48 BRASIL. Decreto 2.134, de 24 de fevereiro de 1997. Regulamenta o art. 23 da Lei n 8.159, de 8 de janeiro de 1991,que dispe sobre a categoria dos documentos pblicos sigilosos e o acesso a eles, e d outras providncias.

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    ram notcias na imprensa informando que o governo concordaria com arevogao do Decreto 4.553, o que se efetivou atravs de legislao analpublicada em dezembro de 2004, quando foi criada a Comisso de Averi-guao e Anlise de Informaes Sigilosas, uma instncia interministerial.Essa iniciativa foi transformada pelo Congresso Nacional na Lei 11.111, emmaio de 2005.

    Nesse meio tempo, alguns episdios comearam a chamar a aten-o do pblico para o problema. Em 17 de outubro de 2004, o CorreioBraziliense divulgou duas fotos que seriam do jornalista Vladimir Herzog,morto em 1975 nas dependncias do II Exrcito, em So Paulo. As fotosmostravam um homem nu, apoiando a cabea com as mos em atitudeque denotava sofrimento ou cansao. Soube-se, depois, que no se tratavade Herzog, mas, possivelmente, do padre canadense Leopoldo dAstous,proco durante 31 anos na Igreja de So Jos Operrio, em Braslia, que

    foi investigado pelo SNI entre 1972 e 1974 por envolvimento com grupos deesquerda. Em 12 de dezembro seguinte, o programa Fantstico, da RedeGlobo, noticiou a queima clandestina de documentos sigilosos na BaseArea de Salvador, na Bahia.

    As denncias da imprensa foram importantes para que alguns acervossignicativos fossem transferidos para o Arquivo Nacional. Em novembro de2005, um decreto do presidente Lula, tambm assinado pela ento chefeda Casa Civil, Dilma Rousseff, determinou o recolhimento de trs fundosdocumentais valiosos: do SNI, do Conselho de Segurana Nacional e da

    Comisso Geral de Informaes.49 Outros fundos importantes tambm jforam recolhidos ao Arquivo Nacional, destacando-se os da Diviso de In-teligncia do Departamento de Polcia Federal, o do Centro de Informaesdo Exterior do Ministrio das Relaes Exteriores, da Comisso Geral deInqurito Policial-Militar e vrios outros.50

    Isso torna o Brasil detentor de um dos maiores acervos pblicos dedocumentos outrora sigilosos produzidos por uma ditadura militar. Entre-tanto, essa signicativa operao de recolhimento de documentos quemuito deveu ao governo Lula e ao de Dilma Rousseff, deve-se reco-

    nhecer esbarra na questo da privacidade. Sob essa alegao, o ArquivoNacional (e alguns arquivos estaduais) restringem o acesso a documentosque faam meno a nomes prprios. Para alguns dirigentes de arquivos,haveria o risco de aes na justia (contra os prprios arquivos) caso algumse sentisse invadido em sua privacidade por conta da divulgao dessesdocumentos. Trata-se de um equvoco muito grande que gerou inmerosproblemas.

    49 Decreto no. 5.584, de 18 de novembro de 2005.50 Veja relao completa em: .

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    Em 2009, o governo federal havia criado o projeto Memrias Re-veladas, no Arquivo Nacional, justamente com o propsito de divulgarinformaes sobre a histria poltica recente do Brasil. Sua Comisso deAltos Estudos, da qual eu era vice-presidente, tendo em vista o menciona-do problema da privacidade, promoveu, em maio de 2010, o SeminrioArquivos da Ditadura e Democracia: a Questo do Acesso que aprovouuma recomendao aos arquivos estaduais para que adotassem o proce-dimento de So Paulo e do Paran, arquivos que franqueiam o acesso aosdocumentos dos DOPS daqueles estados. Em agosto, o CONARQ aprovouuma minuta de decreto nesse sentido. A proposta, entretanto no fruticou.

    Durante a campanha eleitoral de 2010, o Arquivo Nacional proibiu oacesso aos fundos da ditadura militar sob a alegao de que jornalistasestavam fazendo mau uso dos documentos buscando informaes sobreos candidatos Dilma Rousseff e Jos Serra. Isso me fez abandonar o Me-

    mrias Reveladas causando grande celeuma na imprensa.51Tambm estava em curso, naquele momento, uma demanda do jornal

    Folha de S. Pauloque pretendia ter acesso ao processo que levou DilmaRousseff priso durante a ditadura militar. O aspecto interessante a serressaltado que, quando nalmente foi liberada a consulta ao processo,em novembro de 2010, o insuspeito Superior Tribunal Militar rejeitou o ar-gumento de que todo e qualquer relato de tortura deveria ser mantido sobsigilo para se preservar a intimidade dos envolvidos.

    Enm, retomo esses episdios aqui apenas com o propsito de subli-

    nhar as imbricaes que h entre a Histria do Tempo Presente sobretudoa que se debrua sobre eventos traumticos e a poltica de nossa poca.Como procurei mencionar no incio deste artigo, questes epistemolgicase ticas confrontam-se.

    Houve, assim, um longo percurso at a recente aprovao da Lei deAcesso s Informaes Pblicas em 2011.52 Felizmente, em um de seusdispositivos, a nova lei estabelece que a restrio de acesso informaorelativa vida privada, honra e imagem de pessoa no poder ser invocada(...) em aes voltadas para a recuperao de fatos histricos de maior

    relevncia.53

    A regulamentao de lei estar disponvel em 2012. Maiscedo ou mais tarde, o acesso aos acervos da ditadura ser franqueado.Muitos desses fundos documentais foram expurgados, mas, ainda

    assim, a pesquisa detalhada desses papis poder trazer importantesrevelaes. A produo historiogrca sobre o perodo j foi bastante im-pactada por eles, mesmo que tenhamos conseguido consultar to poucos

    51 Ver, por exemplo, OTAVIO, Chico. Professor se demite em protesto contra sigilo. O Globo, Rio de Janeiro, 3 nov.2010, p.10; RTZSCH, Rodrigo. Historiador protesta contra censura do Arquivo Nacional. Folha de So Paulo, SP,4 nov. 2010, p.5; BOGHOSSIAN, Bruno. Historiador renuncia por falta de acesso ao Arquivo Nacional. O Estado

    de S. Paulo, So Paulo, 4 nov. 2010, p.14.52 A Lei de Acesso s Informaes Pblicas foi sancionada em 18 de novembro de 2011.53 BRASIL. Lei n 12.527, de 18 de novembro de 2011. Pargrafo 4o do art. 31.

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    documentos. H um nmero razovel de trabalhos em andamento queutilizam esses acervos e que mudaro o enfoque que prevaleceu at re-centemente, em grande medida determinado pela documentao at hpouco disponvel memrias e depoimentos sobretudo.54

    Por isso, creio que a Comisso da Verdade deveria centrar seus esforosno mapeamento desses arquivos. No se trata da revivescncia do fetichehistoricista em relao ao documento, mas do fato de que a abertura dosarquivos pode permitir a superao de alguns equvocos, como o mito deque a ditadura brasileira no foi violenta. Milhares de pessoas foram pre-judicadas alm daquelas que foram obviamente atingidas pela tortura,pela violncia explcita. Crianas foram separadas de seus pais. Jovensforam impedidos de estudar. Prossionais qualicados tiveram suas carrei-ras destrudas. Esposas, maridos, lhos, pais e avs foram massacradospsicologicamente pela crueldade do desaparecimento.

    Muitos descreem da eccia da Comisso da Verdade.55 Tambm noguardo iluses. H um aspecto, no entanto, que convm registrar (contan-do, mais uma vez, com a benevolncia do leitor para o excesso de relatospessoais): trabalhando, h tantos anos, com os documentos sigilosos daditadura militar, sei o quanto eles so impactantes. Se a Comisso da Ver-dade direcionar seus esforos para a pesquisa da documentao aindadesconhecida (e a lei que a criou assegura isso), os resultados poderoser signicativos, alterando a lgica da impunidade.

    A ao da OAB junto ao STF foi descrita por um ativista dos direitos

    humanos como um raio em cu azul no sentido de que surgiu repentina-mente e sem uma mobilizao prvia da sociedade. Houve, antes disso,a expectativa de que os parentes de vtimas de tortura abarrotassem ajustia com pedidos de averiguao a m de forar o debate, mas issono aconteceu.

    Os documentos da ditadura no so um testemunho da verdade, masa memria do arbtrio. Mas se ns entendermos verdade em seu sentidorelativo, como um esforo contnuo de esclarecimento e explicao dosfenmenos, ento podemos armar que a verdade que os documentos

    da ditadura registram mobilizadora. A Comisso Nacional da Verdadeno tem poderes de punio por causa da Lei da Anistia de 1979, mas sea sociedade brasileira quiser alterar essa lei ou impor qualquer tipo de puni-o, o Congresso Nacional pode faz-lo. um cenrio bastante improvvel,pois demandaria uma presso muito grande, uma demanda social. Nomnimo, poderemos ter um conhecimento menos estereotipado do perodo.Comisses da verdade como o nome indica sempre correm o risco de

    54 Para uma avaliao da historiograa sobre o regime militar ver FICO, Carlos.Alm do golpe: verses e controvrsias

    sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004.55 Para exemplo de uma abordagem da grande imprensa com claro enfoque negativo, mas com informaes muitoprecisas consulte DIEGUEZ, Consuelo. Conciliao, de novo. Piau, n.64, p.26-36, jan. 2011.

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    apenas constituir uma narrativa ocial, mas a abertura dos arquivos podefuncionar como uma espcie de sublimao ou catarse que talvez sejacapaz de superar o sentimento de frustrao e a sensao de impunidade.