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INTRODUÇÃO Carlos de Almada Contreiras Capitão-de-Mar-e-Guerra O PORQUÊ DESTE LIVRO Conversando há anos na Casa da Cultura da Câmara Municipal de Famalicão com o seu responsável, o Dr. Artur Sá da Costa, apercebemo- -nos da existência do relatório não publicado de uma unidade que partici- para nas operações do dia 25 de Abril o 1.º Grupo de Companhias de Administração Militar onde o então alferes Sá da Costa estava integrado. De facto, por aquela altura, o único trabalho onde estavam publicados os relatórios das unidades militares que participaram no 25 de Abril era o livro de Diniz de Almeida, Origens e Evolução do Movimento dos Capitães1 e o relatório da referida unidade não constava. A partir de então, procurámos saber da existência de mais relatórios não publicados e obviar essa situação. Nesse processo tomámos cons- ciência que, no turbilhão político-militar que se seguiu ao dia 25 de Abril de 1974, várias unidades militares, e não poucas, nem sequer haviam escrito os seus relatórios, como era a boa prática das unidades militares em campanha. Foi desta forma que nos propusemos tentar reconstruir a memória das unidades do Exército que em 25 de Abril de 1974 cumpriram a missão atribuída e consignada na Ordem de Operações “VIRAGEM HISTÓRICA, como o major Otelo Saraiva de Carvalho a designou. A entrada em ação, a partir da manhã de 25 de Abril, de forças de Marinha, bem como da Força Aérea, não poderia ser esquecida, pelo que os relatos dos protago- nistas que as comandaram ou nelas participaram, de uma ou outra manei- ra, teriam de fazer parte, naturalmente e por direito próprio, da presente compilação. Este é, em resumo, o objetivo principal do presente trabalho, obede- cendo ao princípio fundamental de somente transcrever relatórios ou depoimentos escritos por quem lá esteve. 1 ALMEIDA, Diniz de, Origens e Evolução do Movimento dos Capitães, Edições Sociais, Lisboa, s/d.

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I N T R O D U Ç Ã O

Carlos de Almada Contreiras

Capitão-de-Mar-e-Guerra

O PORQUÊ DESTE LIVRO

Conversando há anos na Casa da Cultura da Câmara Municipal de

Famalicão com o seu responsável, o Dr. Artur Sá da Costa, apercebemo-

-nos da existência do relatório não publicado de uma unidade que partici-

para nas operações do dia 25 de Abril – o 1.º Grupo de Companhias de

Administração Militar – onde o então alferes Sá da Costa estava integrado.

De facto, por aquela altura, o único trabalho onde estavam publicados

os relatórios das unidades militares que participaram no 25 de Abril era o

livro de Diniz de Almeida, “Origens e Evolução do Movimento dos

Capitães”1 e o relatório da referida unidade não constava.

A partir de então, procurámos saber da existência de mais relatórios

não publicados e obviar essa situação. Nesse processo tomámos cons-

ciência que, no turbilhão político-militar que se seguiu ao dia 25 de Abril

de 1974, várias unidades militares, e não poucas, nem sequer haviam

escrito os seus relatórios, como era a boa prática das unidades militares

em campanha.

Foi desta forma que nos propusemos tentar reconstruir a memória das

unidades do Exército que em 25 de Abril de 1974 cumpriram a missão

atribuída e consignada na Ordem de Operações “VIRAGEM HISTÓRICA”,

como o major Otelo Saraiva de Carvalho a designou. A entrada em ação,

a partir da manhã de 25 de Abril, de forças de Marinha, bem como da

Força Aérea, não poderia ser esquecida, pelo que os relatos dos protago-

nistas que as comandaram ou nelas participaram, de uma ou outra manei-

ra, teriam de fazer parte, naturalmente e por direito próprio, da presente

compilação.

Este é, em resumo, o objetivo principal do presente trabalho, obede-

cendo ao princípio fundamental de somente transcrever relatórios ou

depoimentos escritos por “quem lá esteve”.

1 ALMEIDA, Diniz de, Origens e Evolução do Movimento dos Capitães, Edições

Sociais, Lisboa, s/d.

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Nesse sentido, recolhemos os relatórios que, entretanto, foram sendo

publicados ou que, havendo sido escritos imediatamente a seguir ao fim

das operações, não o foram, e solicitámos que o fizessem aos oficiais que

haviam comandado Unidades Militares em Abril de 74 ou participado nas

operações. Naturalmente que a lei da vida já nos foi separando de alguns

desses oficiais que heroicamente comandaram as suas unidades, pelo que

houve que endereçar o pedido a participantes nas respectivas operações,

embora sem serem os seus comandantes.

Entretanto, tomámos conhecimento de unidades que haviam participa-

do nas operações comandadas por oficiais milicianos e cujos relatórios, à

excepção de um, não foram escritos senão muito a posteriori ou a solici-

tação nossa, dentro dos critérios estabelecidos para este trabalho. A sua

publicação é, para além da necessária reposição da verdade histórica, uma

homenagem a todos os oficiais e sargentos milicianos que, voluntária e

conscientemente, aderiram ao Movimento das Forças Armadas, muitas

das vezes somente convidados à última da hora.

Numa singela homenagem aos milhares de “soldados desconhecidos”

que integraram as unidades militares que fizeram o 25 de Abril, também

se transcreve o único relato que se conseguiu obter, o de um então

1.º Cabo que participou em 25 de Abril na Operação “VIRAGEM HISTÓ-

RICA”, integrando uma Companhia de Caçadores.

Por fim, pareceu-nos indispensável a publicação de testemunhos

singulares de militares “que lá estiveram”, de forma a contribuir para um

melhor esclarecimento das ações militares, ajudando a quebrar a monoto-

nia que o simples relatório, na secura formal própria da metodologia mili-

tar, possa produzir.

Como se irá verificar, mesmo assim, não se conseguiu obter o relato

da totalidade das Unidades que, de uma ou outra forma, tomaram parte

nas operações. Esperemos que a reedição deste trabalho contribua para

esse desiderato.

Sempre que obtivemos material publicável, lamentando que em algum

caso o respectivo protagonista a tal não se dispusesse, pareceu-nos fazer

sentido dar voz aos militares que, no decorrer das operações não atuaram

militarmente às ordens do Movimento das Forças Armadas, ou porque em

sua consciência entenderam obedecer às ordens do Regime ou porque,

inesperadamente, foram apanhados no meio de complexa e inesperada

refrega. No fundo, a outra forma de ver os acontecimentos.

Tenha-se presente que o conteúdo de cada relatório ou depoimento

não foi analisado aquando da sua inclusão no presente trabalho. Mesmo

quando algum dado contrarie ou não coincida exatamente com outros

conhecidos seguiu-se o princípio de o reproduzir tal qual, sem emitir

qualquer juízo valorativo. Dentro deste princípio não se fez qualquer estu-

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do comparativo da informação obtida. Essa será uma tarefa que incum-

birá a quem se interessar por fazer a análise do presente trabalho.

Como critério de apresentação dos relatórios seguiu-se a ideia geral da

manobra militar: movimento das unidades, partindo das respectivas

Regiões Militares e convergindo para o objetivo principal: Lisboa – onde

o Estado Novo acabou por ser derrotado. Contudo, como se pode verifi-

car da análise dos movimentos de algumas unidades sedeadas a Norte, a

segunda cidade do País, o Porto, constituiu, igualmente e em si mesma,

um objetivo.

Para fundamentar a ideia da manobra que orientou a ação militar, trans-

creve-se o manuscrito2 do Plano Geral de Operações, da autoria do seu

comandante operacional, o então major Otelo Saraiva de Carvalho, bem

como o respectivo Anexo de Transmissões3, elaborado pelo então tenen-

te-coronel Amadeu Garcia dos Santos.

Como é conhecido, o documento orientador das operações foi o refe-

rido Anexo de Transmissões, sendo que a ordem de operações específica

para cada unidade foi transmitida individualmente e nas vésperas aos seus

executores pelo major Saraiva de Carvalho, tendo o Plano Geral, no seu

conjunto e na forma manuscrita original, somente sido divulgado poste-

riormente a 25 de Abril de 1974.

O Relatório respeitante ao Posto de Comando do MFA, da autoria do

coronel Otelo Saraiva de Carvalho, é um documento inédito, escrito com

o propósito de ser publicado neste trabalho e com a autoridade de quem

comandou as operações militares em 25 de Abril de 1974. O seu elevado

valor, em todos as vertentes, não pode deixar de ser aqui salientado.

Para melhor se compreender e facilitar um balanço das forças em pre-

sença anexa-se a relação das unidades militares existentes na Metrópole

em Abril de 19744. Como podemos constatar, das Forças do Exército

existentes no país (o número de unidades em formação para partir para o

Ultramar e aquarteladas nas respectivas unidades de mobilização foi um

fator importante a considerar no cômputo geral), uma trintena saíram a

favor do Movimento. As restantes mantiveram-se deliberadamente neu-

2 Original depositado no Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de

Coimbra (http://www. cd25a.uc.pt) e CARVALHO; Otelo, Alvorada de Abril,

Livraria Bertrand, Lisboa, 1977, pág. 553 e seguintes.

3 Ver ALMEIDA, Diniz, Origens e Evolução do Movimento dos Capitães, Edições

Sociais, pág. 460 e seguintes e Introdução ao Anexo de Transmissões (General

Garcia dos Santos), no Capítulo II do presente trabalho.

4 Ver Anexo III e Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, 1.º Volume,

Enquadramento Geral, 2.ª edição, EME, CECA, Lisboa, 1988 e Lista de Antiguida-

des dos Oficiais do Exército, referida a 1 de Janeiro de 1973, Ministério do

Exército, Lisboa, 1973.

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trais ou acabaram por não obedecer às ordens do governo, com a única

exceção do Regimento de Cavalaria 7 (RC7).

A Marinha, apesar de previamente haver garantido uma “neutralidade

ativa” através da sua Organização Democrática e de não constar no Plano

de Operações acabou por intervir, logo na manhã do dia 25 de Abril, com

um Destacamento de Fuzileiros Especiais visando ocupar a sede da

PIDE/DGS, força essa a que foi agregada uma Companhia de Fuzileiros

nessa mesma tarde e com idêntica missão, a qual terminou cumprindo,

ocupando o objectivo. Posteriormente, outra Companhia de Fuzileiros foi

destinada à ocupação do Forte de Caxias, objetivo igualmente consegui-

do. O incidente com a fragata Almirante Gago Coutinho foi prontamente

solucionado pela decidida intervenção dos oficiais do Movimento nela

embarcados, resultado direto do envolvimento da Organização Democrá-

tica da Marinha no Movimento dos Capitães em toda a fase anterior às

ações militares do dia 25 de Abril.

A Força Aérea, no dia 25 de Abril, atuou, conforme planeado, com um

pequeno grupo de oficiais, que constituíam o 10.º Grupo de Comandos,

ocupando o estratégico Rádio Clube Português, cujas antenas, no Porto

Alto-Ribatejo e Miramar – Porto, estavam defendidas por forças do

Exército; uma Companhia de Paraquedistas ocupou inicialmente o Forte

de Caxias; e o capitão Costa Martins, atuando isoladamente, assenhoreia-

-se da Torre de Controle do Aeroporto de Lisboa, após ter neutralizado o

Aeródromo-Base n.º 1 (AB1).

Quanto à GNR, somente uma pequena força se movimentou por Lis-

boa, sem qualquer consequência efetiva para o decorrer das operações.

Da PSP, aparte uma ou outra escaramuça contra a população, quer em

Lisboa, quer no Porto, nem sequer a sua Força de Choque, aquartelada em

Oeiras, mostrou qualquer determinação na defesa do Regime. Da Legião

– aliás um degradado conjunto de reformados, civis e militares, militando

por uma ideologia caduca, a troco de um mísero subsídio e secundado por

um bando de arruaceiros confinado praticamente a Lisboa – que Salazar,

tal como a havia criado, se havia encarregado, há muito, de neutralizar –

tampouco há motivo para falar, embora constasse como um objetivo a

neutralizar no Plano Geral de Operações. Da PIDE/DGS, para além dos

disparos efetuados desde a sua sede em Lisboa, na Rua António Maria

Cardoso, sobre a multidão congregada à sua frente na tarde de 25 de Abril,

causando quatro mortos, tampouco o regime obteve apoio visível. O

episódico corte de energia ao Rádio Clube Português ou a tentativa de

encontrar um morteiro para neutralizar as antenas desta estação foram

fogachos sem qualquer consequência e importância.

Isto na Capital, onde a ditadura imposta pelo Estado Novo acabou por

ser derrotada. No resto do país, a cidade do Porto incluída, a passividade

das forças do Regime em sua defesa foi total.

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De facto, não só a surpresa tática foi conseguida pelo Movimento, mas

também a superioridade das suas forças relativamente às do governo foi

quase absoluta! Dizemos que a surpresa tática foi conseguida, pois só

aceitamos ter havido surpresa estratégica para o Regime apenas no que se

refere ao desconhecimento do conteúdo minucioso das medidas preconi-

zadas no Programa do MFA, tendo em conta o número de comunicados

que aquém e além-mar eram produzidos quase diariamente, para além da

saída da Coluna do Regimento de Infantaria n.º 5, sediado nas Caldas da

Rainha, em 16 de Março, isto é, um mês e uma semana antes.

Será caso, ainda hoje, para meditar porque razão deixou o Estado Novo

chegar as coisas a tal ponto, ou melhor, porque não pôde ou não soube in-

verter uma situação que dia a dia se tornava absolutamente evidente

desde meados de 1973.

É importante ter em consideração que os oficiais, que desde 5 de

Março haviam sido eleitos para a direção superior do Movimento, se

mantiveram em funções, um como Chefe do Estado-Maior-General das

Forças Armadas (CEMGFA) e outro como Vice-CEMGFA, até 14 desse

mesmo mês e, ainda, as conversações que com os mesmos o Movimento

vinha mantendo a propósito do livro “Portugal e o Futuro” e não desco-

nhecidas do Regime.

Previamente ao desencadear da operação “VIRAGEM HISTÓRICA” o

Movimento das Forças Armadas definiu, nas condições de clandestinida-

de em que então se era forçado viver em Portugal, um pacto com a Na-

ção, na base de um programa político, no qual explicitou os seus objeti-

vos e essa foi a transcendente grandeza moral que orientou politicamente

o Movimento, como sua “carta de intenções”. Após o 25 de Abril o Pro-

grama5 foi transcrito como anexo à Lei Constitucional n.º 3/74, dela

passando a fazer “parte integrante”6. Pela clareza de intenções políticas e

pelo valor dos conceitos universais nele plasmados, ainda hoje, passado

quase meio século, o Programa continua a enformar e a orientar, através

da Constituição Política da República de 1976, a vida política de Portugal.

Deste modo, entendeu-se que o Programa, bem como o respectivo

Protocolo, deviam fazer parte deste trabalho, bem como a inclusão de

5 Ver TÍSCAR, María José Santiago, “O 25 de Abril e o Conselho de Estado

– A Questão das Actas”, Edições Colibri, Lisboa, Abril de 2012.

6 O texto transcrito no Anexo I é o que consta na Lei n.º 3/74 (e porque o Protocolo

fazia parte integrante do Programa ele é transcrito igualmente), resultante da fusão

do texto que o Movimento havia aprovado em 24 de Abril de 1974, com as

alterações introduzidas na noite de 25 para 26 de Abril, no Posto de Comando, em

reunião havida entre oficiais do Movimento ali presentes com os generais Costa

Gomes e António de Spínola. Ver neste trabalho o depoimento do General Franco

Charais sobre o assunto.

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depoimentos de oficiais que participaram na sua elaboração antes do dia

25 de Abril e na respetiva defesa, ainda no Posto de Comando, imediata-

mente após a vitória que o Movimento das Forças Armadas com a Opera-

ção “VIRAGEM HISTÓRICA” acabava de alcançar.

Ainda, no contexto desta introdução à publicação dos relatórios e de-

poimentos, pareceu-nos fazer sentido dar uma panorâmica de como o

Estado Novo vinha começando a encarar, a partir de 1969 e numa pers-

pectiva militar, as movimentações oposicionistas, a tal ponto de as classi-

ficar como “Inimigo Interno” nos Planos de Segurança Interna que então

começou a gizar.

Para ajudar à caracterização da situação político-militar que o país

vivia nas vésperas do 25 de Abril, faz-se uma breve análise dessa matéria,

a qual se ilustra com a anexação de alguns elementos de informação

acerca do referido “Inimigo Interno”. Embora estes elementos, em boa

parte, já estivessem na posse da Organização Democrática da Marinha

aquando da preparação da operação “VIRAGEM HISTÓRICA”, eles não

puderam ser tidos em conta.

De facto, o posicionamento da Organização da Marinha relativamente

à estratégia da intervenção militar acabou por dificultar a troca de infor-

mações, designadamente naquele domínio, no momento do planear a

operação, acabando aquela que poderia ter sido uma operação conjunta,

pelo menos entre forças Marinha-Exército, por se concretizar numa

operação conduzida exclusivamente pelo Exército, e em boa hora, tal

como a História veio a consagrar.

Dificuldade houve também em serem tidos em conta os elementos de

informação igualmente disponíveis na Marinha e previamente comunica-

dos ao comando operacional do MFA, sobre os movimentos da esquadra

NATO – a STANAVFORLANT – acerca do conhecimento preciso da data

da sua saída do Porto de Lisboa, precisamente na manhã do próprio dia 25

de Abril de 1974, pelo que se previa o perigo dessa força multinacional se

ver envolvida nas movimentações e posicionamento das forças do Movi-

mento, o que de facto se veio a verificar.

Para além de tratar as informações que a nível estritamente nacional o

Movimento dispunha anteriormente ao planeamento da operação “VIRA-

GEM HISTÓRICA” sobre as forças do Regime e as internacionais que

potencialmente se podiam opor ao desenrolar das operações, fazemos uma

breve abordagem aos planos estratégicos, então completamente desconhe-

cidos do Movimento e que, não fora o 25 de Abril, ao protagonizar a

descolonização das colónias, tal como e quando o fez, seguramente teriam

introduzido alterações muito diferentes no panorama político do sul de

África e, obviamente, no Portugal “uno e indivisível” de então. Referimo-

-nos, neste caso, aos planos ALCORA, de que adiante damos nota.

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Queremos deixar claro que este não é um livro escrito por Historiador.

Será, se conseguirmos lograr o objetivo e se o “método” o permitir, uma

recolha de relatórios das operações militares de 25 de Abril de 1974 que

logo a seguir foram produzidos pelos respectivos comandantes, bem

como de testemunhos diretos, prestados necessariamente a posteriori, por

militares que tiveram participação ativa nessas operações e, ainda, dos

testemunhos diretos de militares que participaram na redação do Progra-

ma do Movimento das Forças Armadas, aos quais se junta uma série de

documentação, no essencial de origem militar, para melhor enquadra-

mento do contexto do trabalho.

Estamos perfeitamente conscientes da relatividade, na procura da ver-

dade histórica, de relatórios escritos pelos próprios participantes nas ações,

quer no imediato pós-25 de Abril, ou, pior ainda, passados mais de quarenta

anos após os acontecimentos. Naturalmente que sempre cabe perguntar, se

não fossem eles a descrevê-los quem melhor o faria? Valha-nos, pois, o

serem escritos pelo punho dos seus Protagonistas! No essencial, o que se

pretende é que a memória das operações militares, descritas pelos seus

executantes, constitua um repositório para o estudo do que foi, nos seus

aspetos fundamentalmente militares, a Operação “VIRAGEM HISTÓRICA”.

Em qualquer caso, é sempre o testemunho de “quem lá esteve” e não de

alguém que “ouviu contar” ou nem isso, e se permitiu escrever.

Para além da recuperação dos relatórios das unidades militares ou

depoimentos dos militares que, em 25 de Abril de 1974, se empenharam

na concretização da histórica mudança de regime, entendeu-se fazer uma

apresentação, ainda que necessariamente breve, dos mais importantes

fatores estratégicos presentes no momento de desencadeamento da opera-

ção “VIRAGEM HISTÓRICA”, a par de outros elementos de informação,

alguns conhecidos no momento do planeamento das operações, conforme

já referido e outros só posteriormente.

Referimo-nos sobretudo ao Plano Geral de Segurança Interna, de 1969,

suportado legalmente na Lei n.º 2084, de 1956 – “Organização Geral da

Nação para o Tempo de Guerra”, tecendo alguns considerandos sobre a

sua não extensão aos três teatros de operações, como se a guerra lá exis-

tente não fosse guerra; o ainda bem guardado “Exercício Alcora”, o Plano

Estratégico estabelecido entre a República da África do Sul, a Rodésia e

Portugal, que somente em 2012 os coronéis Aniceto Afonso e Carlos

Matos Gomes trouxeram à luz do dia e, posteriormente, ampliado pelo

tenente-coronel Luís Barroso; a já referida presença de uma Força Naval

da NATO no Porto de Lisboa, no dia 25 de Abril de 1974, assim como o

Estado Psicológico das Forças Armadas, quer no Continente quer no

Ultramar, serão, igualmente fatores brevemente abordados. Naturalmente,

aquilo que a PIDE/DGS poderia conhecer, ou não, acerca do Movimento

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dos Capitães será igualmente tratado na medida que os dados conhecidos

o permitiram. Sobre os fatores referidos teceremos nesta Introdução algu-

mas considerações que nos pareceram necessárias para melhor caracterizar

a situação geral que se vivia no Portugal de 1974, ano em que se efetuou o

planeamento e execução da Operação “VIRAGEM HISTÓRICA”.

Finalmente, queremos deixar claro que o objetivo principal deste traba-

lho é, sobretudo, o de que os Militares de Abril, ao lê-lo, se possam rever,

com orgulho, nos serviços distintos prestados a Portugal, numa conjuntura

tão dramática como a que foi o de haver chamado a si a transcendente

responsabilidade de pôr ponto final no regime ditatorial do Estado Novo,

entregando de imediato, após o fim das operações, o poder a um governo

“formado exclusivamente por civis” e criando as condições para que um

Império velho de cinco séculos terminasse de acordo com o que estava

consignado no concerto das Nações, tarefa ciclópica para a qual o Regime

não tivera a necessária visão estratégica ou, tendo-a, não a soube aplicar em

tempo historicamente oportuno. Afinal, logo ao terminar a Segunda Grande

Guerra, “os ventos de mudança” tinham começado a fazer-se sentir por

esse mundo fora e Salazar sabia-o. O fardo herdado por Marcello Caetano

foi, reconhecemo-lo, enormemente pesado, não tendo este sabido, ou

podido, sair do atoleiro em que esteve envolvido.

Para além de haverem resolvido o problema ultramarino da maneira que

a História consagrou, os «capitães de Abril» proclamaram, manu militar,

para surpresa de nacionais e estrangeiros, uma democracia avançada,

mesmo na Europa dos anos setenta do século passado, tornando-se émulos

de outros movimentos militares que os seguiram pelo Mundo de então!

ORGANIZAÇÃO GERAL DA NAÇÃO PARA O TEMPO DE GUERRA:

A LEI 2084 de 1956

Nos rescaldos da Guerra Civil de Espanha e da 2.ª Grande Guerra e na

sequência da recente entrada de Portugal na NATO, foi promulgada a Lei

n.º 2051, de 15 de Janeiro de 1952, que assentou as bases da organização

da defesa nacional. Essa lei será entretanto substancialmente revista pela

Lei n.º 20847, de 16 de Agosto de 1956, que define a organização geral da

Nação para o tempo de guerra. Desta lei 2084 importa fazermos uma,

ainda que breve, análise, pois a referida Lei vai servir, mais que ao en-

quadramento legal da guerra em África dos anos 60/70, sobretudo ao

desenvolvimento dos planos de segurança interna da Metrópole, contra

aquele que vai ser classificado de “Inimigo Interno”.

7 Publicada no Diário do Governo, I Série, n.º 172, de 16 de Agosto de 1956.

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Assim, passemos à análise, ainda que breve, do conteúdo dessa im-

portante Lei 2084.

Logo no Título I – “Dos princípios fundamentais”, a sua Base I,

começa por definir que a “defesa nacional visa manter a liberdade e

independência da Nação, a integridade dos territórios portugueses e a

segurança das pessoas e dos bens que neles se encontrem”. A lei aplicar-

-se-ia a todo o território nacional, com uma estrutura orgânica una para

todo ele, podendo “as Forças Armadas de terra, mar e ar estacionadas em

qualquer ponto” “serem empregadas dentro ou fora das fronteiras”.

Ainda no mesmo Título, na Base V, é definido que a “disposições da

presente lei respeitantes ao estado de guerra ou que o pressuponham”

poderiam, por resolução do Conselho de Ministros, reunido sob a presi-

dência do Chefe do Estado, resolver sobre a entrada em execução das

referidas disposições em emergência que fizesse “temer agressão imi-

nente ou perturbação da paz”, podendo, ainda, “respeitar apenas a deter-

minadas parcelas do território nacional”.

Em seguida, o Título II define como órgãos superiores da defesa na-

cional o Presidente da República e o Governo. O Conselho de Ministros

define a política de defesa nacional, enquanto ao Presidente do Conselho

de Ministros competia a coordenação e a direção efetiva da ação do

Governo na defesa nacional, em tempo de paz ou de guerra; aos ministé-

rios civis competia a preparação e execução da mobilização civil nos

domínios psicológico, científico, económico e administrativo, bem como

reunir os recursos necessários à sustentação do esforço de defesa. Por seu

lado, ao departamento da Defesa Nacional, competia a preparação geral

da defesa militar e a inspeção superior e orientação da defesa civil. O

mesmo Título II define como órgãos de coordenação o Conselho Superior

de Defesa Nacional, constituído pelo Presidente do Conselho, pelos

Ministros da Presidência, da Defesa Nacional, do Interior, das Finanças,

dos Negócios Estrangeiros, pelo Chefe do Estado-Maior General das

Forças Armadas e pelo secretário adjunto da Defesa Nacional. Além

deste, era criado também o Conselho Superior Militar, composto pelo

Ministro da Defesa Nacional, que presidia na ausência do Presidente do

Conselho, pelos titulares dos departamentos do Exército, da Marinha e da

Aeronáutica, pelos chefes dos Estados-Maiores do Exército, da Armada e

da Forças Aérea e, ainda, o secretário adjunto da Defesa Nacional, secre-

tário sem voto.

Ainda, como órgãos de execução, o Título II preconiza que a Presi-

dência do Conselho organizará os serviços de estudo, informação e exe-

cução necessários e que o CEMGFA “é o secretário-geral da Defesa

Nacional, conselheiro técnico do Ministro da Defesa Nacional, superin-

tendendo na execução das suas decisões em relação aos três ramos das

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Forças Armadas e à organização da defesa civil”. Em todos os Ministé-

rios civis seria designado um secretário-geral ou um diretor-geral encar-

regado de “estudar os problemas relativos à adaptação dos serviços ao

tempo de guerra”. Os chefes dos Estados-Maiores do Exército, da Arma-

da e das Forças Aéreas (sic) são os “conselheiros técnicos dos titulares

dos respectivos departamentos”.

O Título III trata das “relações entre a direção política e o comando

militar em tempo de guerra” e definia as competências do Conselho Supe-

rior de Defesa Nacional em tempo de guerra, bem como as do Conselho

Superior Militar, tal como as do Presidente do Conselho ou, sob sua autori-

dade, a do Ministro da Defesa Nacional e, ainda, as do CEMGFA e CEM’s.

As zonas do território nacional em que se desenrolem operações militares

ficam sob a autoridade do comando das forças nelas empenhadas, de acor-

do com as leis e usos da guerra.

Ainda neste mesmo Título é definido competir “ao Governo orientar

tudo quanto respeitasse à segurança interna”, ao mesmo tempo que

determina a subordinação, em caso de guerra ou de emergência, de todas

as forças de segurança, militares e militarizadas, bem como os organis-

mos policiais, a um comando-geral de segurança interna, enquanto defi-

nia que o “Comando-Geral de Segurança Interna poderia ser instituído

em tempos de paz, para efeitos de organização e preparação”.

Saliente-se que é na Base XXI deste Título III, que vai ser referida de

forma a expressa a competência do governo na orientação de “tudo

quanto respeite à segurança interna”, apontando para criação de um

“Comando-Geral de Segurança Interna” que “poderá ser instituído em

tempo de paz...”, o que de facto veio a suceder em 1969, como se verá

adiante.

Por sua vez, o Título IV tratava da “mobilização das pessoas e dos

bens”, enquanto o Título V estatuía sobre a “organização política e das

garantias fundamentais nos casos de guerra ou emergência” e estabelecia

uma série de normas de incidência imediata nas garantias constitucionais

sobre os direitos e liberdades dos cidadãos, que – sendo já reduzidas em

ditadura – mesmo as existentes podiam ser suspensas “total ou parcial-

mente”.

Por força da sua Base XXXI, em caso de guerra ou emergência”, seria

“declarado o estado de sítio, nos termos prescritos na Constituição”,

“com suspensão total ou parcial das garantias”, implicando aquela “as

restrições aos direitos e liberdades individuais e sociais”, com tudo o que

daí advinha, por força da mesma lei: “Condicionamento de trânsito das

pessoas e da circulação de veículos”, faculdade de detenção dos indiví-

duos suspeitos ou perigosos, independentemente de mandado judicial ou

formação de culpa”, proibição de uso e porte armas de qualquer nature-

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za”, “supressão da inviolabilidade do domicílio”, “condicionamento de

todas as reuniões a licença expressa da autoridade militar”, “censura

prévia a todas as formas de correspondência”, “direito de requisição de

bens e serviços” e “submissão ao foro militar da instrução e do julga-

mento dos crimes contra a segurança do Estado, contra a ordem e tranqui-

lidade públicas e contra a economia nacional, bem como à legislação

sobre mobilização civil”.

Convém ter em atenção que este Título V alarga a abrangência da

própria lei ao explicitar que ela se aplica não só aos “casos de guerra”

mas aos “casos de emergência”, os quais nunca define. Contudo ao

analisar-se o bem estruturado articulado da lei e a sua abrangência,

quando define logo de entrada que a “defesa nacional visa a manter a

liberdade e independência da Nação, a integridade dos territórios e a

segurança das pessoas e dos bens que neles se encontrem”, interrogamo-

-nos por que razão ela não foi aplicada nos três Teatros de Operações no

Ultramar, à medida que a luta armada foi sendo desencadeada pelos

movimentos independentistas. Isto quando a própria lei estipula que as

suas disposições “respeitantes ao estado de guerra ou que o pressupo-

nham entram imediatamente em execução no caso de declaração de

guerra ou de agressão efetiva a qualquer ponto do território português por

forças armadas de potência estrangeira”.

Naturalmente que não foi o desconhecimento da Lei 2084 que deter-

minou a sua não evocação explícita na Guerra no Ultramar.

A razão terá residido no não querer o governo reconhecer, face ao

exterior e, muito concretamente, junto das Nações Unidas, de que se

tratava de uma situação de guerra aquela que se vivia nos Teatros de

Operações africanos, mas simplesmente de operações de polícia para

segurança das populações locais contra bandos de terroristas armados

vindos do exterior.

Assim, ao longo da sua vida, de 16 de Agosto de 1956 a 11 de Dezem-

bro de 1982, data em que a Lei n.º 29/82 a revoga, a Lei 2084 irá servir e

até 1975, quase exclusivamente, de suporte legal à aprovação dos “Encar-

gos Gerais da Nação”, destinados à “Forças Militares e Extraordinárias

no Ultramar”, evocando o n.º 3, Base XI ou para justificar o “pagamento

de encargos resultantes da execução do disposto na Base XVII, n.º 1”.

O próprio Estado-Maior do Exército, na sua obra oficial “Subsídios

para o Estudo da Doutrina Aplicada nas Campanhas de África”, editada

em Lisboa em 1990, pela “Comissão para o Estudo das Campanhas de

África (1961-1974)”, no capítulo referente aos “Aspectos Estratégicos

Gerais”, quando analisa a “Política e a Estratégia na luta pela unidade

nacional” e o respectivo “Enquadramento Legal”, limita-se a fazer um

esboço da estrutura da própria Lei 2084 e não produz qualquer afirmação

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sobre como ela foi aplicada ou invocada no importante período em análi-

se (1961-1974) e ao qual se suporia enquadrar.

Aparte alterações relativas à orgânica da Legião Portuguesa, à organi-

zação e atribuições do Secretariado Geral da Defesa Nacional, ao funcio-

namento dos gabinetes do comandantes-chefes das províncias ultramari-

nas, bem como à organização da Defesa Civil do Ultramar, esta Lei

somente virá a ser será invocada, na sua Base XXXI atrás referida, em

1975 para o Presidente da República, ouvido o Conselho da Revolução,

decretar o Estado de Sítio8 na área da Região Militar de Lisboa, no dia 25

de Novembro de 1975. Este seria levantado “às 5 horas do dia 2 de De-

zembro” daquele mesmo ano9.

Porém, sendo limitada a sua invocação durante as Campanhas de

África, a Lei 2084 vai servir de suporte jurídico à estruturação dos planos

para combater uma suposta 4.ª Frente, onde era necessário enfrentar o

“Inimigo Interno” operando, agora, na Metrópole.

Desde os finais dos anos cinquenta e no decorrer dos anos sessenta,

resultado da conjugação de diversos fatores, uma crescente agitação

social e consciência cívica começam a fazer-se sentir, em que o apareci-

mento do “fenómeno” Humberto Delgado, na sequência das “eleições”

para a Presidência da República, em 1958, e as eleições para deputados à

Assembleia Nacional, em Outubro de 1969, tinham dado mais força,

inclusivamente no Ultramar, entre as populações oriundas da metrópole.

A partir de 1961, o “ano horribilis de Salazar” como já foi classifica-

do, sucedem-se: o ataque ao quartel de Beja; o assalto ao paquete Santa

Maria; o início da luta armada em Angola; o “golpe” Botelho Moniz; o

desvio de um avião da TAP com lançamento de panfletos sobre algumas

cidades da Metrópole; a invasão do Estado Português da Índia.

Apesar do “Para Angola, rapidamente e em força”, em três anos a

guerra vai estender-se à Guiné e a Moçambique, guerra que vai ser o

pano de fundo dominante da sociedade portuguesa durante os restantes

treze anos em que o Estado Novo ainda sobreviverá. Nesse período têm

lugar ações de sabotagens violentas na Metrópole10, indícios de preparati-

vos para o desencadeamento de luta armada interna, o aparecimento de

8 Decreto n.º 670-A/75, de 25 de Novembro, publicado no Diário de Governo, I Série

– número 273, de 25 de Novembro de 1975. Ver Anexo XV.

9 Decreto n.º 674-B/75, de 2 de Dezembro, publicado no Diário de Governo, I Série –

número 278, de 2 de Dezembro de 1975.

10 Ver NARCISO, Raimundo, A.R.A. Acção Revolucionária Armada, Publicações

Dom Quixote, Lisboa, 2000; SERRA, Jaime, As Explosões que Abalaram o

Fascismo, Edições Avante, Lisboa, 1999 e SANTOS, José Hipólito, Felizmente

Houve a Luar, Âncora Editores, Lisboa, 2011.

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polos exteriores de resistência ao regime, designadamente a partir de

Argel, que servem de bases para propaganda radiofónica e de apoio à

criação de estruturas armadas visando desencadear acções no interior do

país, a par do apoio a organizações políticas internas, bem como o apare-

cimento de movimentos grevistas e estudantis que se vão generalizando,

em paralelo com agitações sociais com os mais variados pretextos, tudo

isto associado a uma crescente emigração clandestina, agitação estudantil

em crescendo e esgotamento da capacidade de recrutamento de novos

recrutas face às crescentes necessidades operacionais o que, nem a medi-

da de “miscenização” das tropas metropolitanas com tropas africanas,

colmata suficientemente.

A DIRECTIVA PARA A SEGURANÇA INTERNA

É precisamente no ano de 1969, em vésperas das “eleições” para a

Assembleia Nacional, quando ainda não se completara um ano sobre a

nomeação de Marcello Caetano para presidir ao Conselho de Ministros,

com Salazar moribundo e a “Primavera Marcelista” em alta, que o

Ministro da Defesa Nacional desencadeia o processo de implementação

de um Plano de Segurança Interna.

Tal Plano, começa a esboçar-se na sequência da Diretiva para a Segu-

rança Interna – Continente, N.º 1/69, de 21 de Agosto de 1969, assinada

pelo Ministro da Defesa Nacional, general Horácio Sá Viana Rebelo,

ativando o Comando Geral de Segurança Interna (CGSI).

Previamente, em 1 de Agosto de 1969, o Ministro da Defesa Nacional

apresentou ao Conselho Superior de Defesa Nacional um “Projeto de

Diretiva”11, iniciado pelo seguinte considerando:

“Embora a maior parte das atenções das Forças Armadas esteja con-

centrado nos territórios ultramarinos desde 1961, o facto é que é indis-

pensável manter constante vigilância na Metrópole, como retaguarda

de um dispositivo geral que cairia rapidamente, se no Portugal euro-

peu, se instalasse uma subversão violenta e triunfante. Importa, por

isso, estabelecer bases claras para a Segurança Interna,…”12.

Seguidamente, afirma-se que “a subversão no Território Metropolita-

no devia considerar-se com duas fases distintas. Uma primeira, a “pré-

-insurrecional” e uma segunda, a “insurrecional ou de subversão violenta”.

11 Ver Anexo IV – Sessão do CSDN sobre Segurança Interna, em 1 de Agosto

1969.

12 Ver Anexo IV – Sessão do CSDN sobre Segurança Interna, em 1 de Agosto de

1969.

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Depois de caracterizar cada uma daquelas fases, o “Projeto de Direti-va”13, refere o CSDN como órgão supremo, que, ao nível nacional, dirige, coordena e aciona os órgãos de comando e os meios destinados à contra--subversão, especificando as funções dos Ministros da Defesa Nacional e do Interior, bem como a designação do Comandante Geral da Segurança Interna, para o qual é nomeado o General Venâncio Augusto Deslandes, ao tempo Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas. Termina o Projeto definindo que, em caso de grave emergência, o CSDN e o CGSI, concentrar-se-ão em “local previamente escolhido e preparado, dispondo de instalações adequadas e comunicações rápidas e seguras.”

Na sequência da aprovação daquele “Projeto de Diretiva”, o Ministro da Defesa Nacional emitiu a “Diretiva Para a Segurança Interna – Conti-nente”14, com data de 21 de Agosto de 1969, na qual começa por afirmar que a sua finalidade é a definição do “âmbito da comparticipação das Forças Armadas na Segurança Interna do Território Metropolitano e os princípios que devem regular a sua intervenção naquele campo”.

Segue-se um capítulo sobre o “Conceito de Segurança Interna”, no qual trata da “impressão” sobre o “inimigo” e onde se tece uma ampla série de considerandos sobre os propósitos do referido “inimigo”, entran-do-se de seguida nas “intenções” do Ministro da Defesa Nacional, pros-seguindo na definição do “Âmbito da Comparticipação das Forças Arma-das na Segurança Interna”, bem como na “Organização do Comando Superior da Segurança Interna”, respectivos “Órgãos de Comando e Forças de Natureza Civil e Militarizada”, assim como os “Órgãos de Comandos e Forças Militares”. Depois de tratar da “Organização Nacio-nal da Defesa Civil do Território” termina com a definição da “Estrutura e Funcionamento” do CGSI.

Saliente-se que em qualquer dos documentos, “Projeto de Diretiva” e “Diretiva Para a Segurança Interna – Continente”, embora o espírito da Lei 2084 esteja sempre presente, ela jamais é invocada. Somente no Apêndice I ao Plano Provisório de Segurança Interna, de que falaremos a seguir, a Lei 2084 é invocada, na sua Base XXI, ao tratar das “Normas de Cooperação de Forças Militares e Forças Paramilitares”.

Como podemos ver, logo à partida, a “Diretiva Para a Segurança In-terna – Continente” entra logo na matéria e enuncia explicitamente o “Conceito” subjacente à organização em fase de instalação: “O Inimigo”, facto que nem a Lei 2084, de 1956, já referida, nem a sua antecedente, promulgada em 1952, ousaram.

13 Ver Anexo IV – Sessão do CSDN sobre Segurança Interna, em 1 de Agosto 1969.

14 Ver Anexo V – Directiva para a Segurança Interna – Continente, MDN, Lisboa,

Agosto de 1969.

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Em complemento, refira-se que também a Diretiva Nacional de Ação

Psicológica para 1973, emitida pelo Ministério da Defesa Nacional, e

referida na Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-

-1974)15, é clara, quando no seu Anexo n.º 2, sob o título “INIMIGO”

regista organizações que vão desde a “Liga Popular Monárquica (Mo-

nárquicos dissidentes)”, ao “Clero Progressista e Católicos Dissidentes”,

passando pelo PCP, CMLP, MRPP, CLAC, EDE, CNSPP, UEC, FEML,

URML, MPAC, FPLN, MAR, LUAR, ARA e mais algumas organizações

avulsas, além, naturalmente, do PAIGC, MPLA, UNITA, GRAE, FNLA,

FRELIMO, COREMO, MOLEMO e, pelo meio, um “Instituto de Moçam-

bique”[?]!...Tudo sob o mesmo título “Inimigo”, para que não subsistisse

dúvida alguma!....

E se dúvidas houvesse sobre o “Inimigo Interno”, em 10 de Setembro

de 1973, o Chefe do Estado-Maior do CGSI, coronel Hermínio Duarte

Ferreira, fazia distribuição, por ordem do General Comandante da Segu-

rança Interna, do “Estudo da Situação do Inimigo Interno”16, referido a 1 de

Junho, isto nas vésperas da realização do Ato Eleitoral respeitante às

“eleições” para deputados à Assembleia Nacional, marcadas para 28 de

Outubro.

O PLANO PROVISÓRIO DE SEGURANÇA INTERNA17

Para cumprimento da “Diretiva para a Segurança Interna”, inicia-se de

imediato o processo de instalação do Comando Geral de Segurança

Interna. Para o efeito é emitido um Plano Provisório de Segurança Inter-

na, no âmbito do qual se irão realizar anualmente exercícios de comando

e transmissões, a nível nacional18.

15 Ver Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 1.º Volume,

EME, Lisboa 1988, pág. 382 e 407.

16 Ver ofício do CGSI, n.º 466/CS, de 10SET73. ADN F3/10/20/4.

17 O processo original referente ao Plano de Segurança Interna não foi encontrado

nos Arquivos, pelo que nos baseamos numa cópia existente em AHM/FAC 10.01,

respeitante ao Exercício Continente, de 1972 e que segue a Directiva de Segurança

Interna de 1969.

18 Exercício de TRMS “TECA” em 1970; PC e TRMS “Estrela, 1971; PC e TRMS

“Continente” em 1972; TRMS “Plataforma” em 1973. Em Abril de 1974 estava

em preparação um novo exercício a nível nacional, a ter lugar por volta dos

primeiros dias de Maio. Nesse sentido haviam já sido dadas ordens pela DSEC-

-Marinha, para que os técnicos instalassem teleimpressoras no posto de

Comando Geral de Segurança Interna, que iria funcionar nas instalações da

Força Aérea em Monsanto (GDACI), e que era o local previsto para concen-

tração do CSDN e CGSI, em caso de emergência. A referida instalação, normal-

mente de rápida execução, foi sendo adiada em espera de melhores tempos, dada

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Naturalmente que, com toda a armação legal referida e com um CGSI

já estruturado, qualquer situação classificada de “emergência” permitiria,

de acordo com a Base XXXI da Lei 2084, que fosse “declarado o estado

de sítio”, para o que não houve tempo ou capacidade de decisão em 25 de

Abril de 1974. É óbvio que, quer a ativação do CGSI, quer o emprego

explícito do conceito de “inimigo interno” não sucediam por acaso: a

criação desta estrutura militar e paramilitar de luta “anti-subversiva” tinha

a ver com a apreciação que o governo fazia da situação política interna na

Metrópole em finais daquele ano de 1969.

O “INIMIGO INTERNO”

Para melhor nos situarmos façamos uma breve análise do Plano Provi-

sório de Segurança Interna19 transcrevendo algumas das suas partes mais

significativas.

Assim, o “Plano”, começa por analisar a “Situação Geral” onde afirma

que a “partir das eleições para deputados à Assembleia Nacional, em

Outubro de 1969, e em consequência das circunstâncias políticas que

levaram à criação de agrupamentos de oposição ao governo para fins

eleitorais, começaram a surgir com intensidade crescente sintomas de

uma ação psicológica extensa e profunda, tendente a, gradualmente,

provocar descontentamento nas massas e levá-las a um estado latente de

revolta e a manifestações de carácter subversivo e, finalmente, a uma

situação francamente revolucionária”.

E prossegue a análise: “Dissolvidos os agrupamentos políticos após o

ato eleitoral, a ação psicológica referida começou a ser conduzida por

elementos dotados de organização e meios de informação, elementos que

se poderão, fundamentalmente, diferenciar da seguinte forma: Partido

Comunista Português (PCP), Movimento de Oposição Democrática

(MOD); Liga de Unidade e Ação Revolucionária (LUAR).

Como vamos observar, o Plano de Segurança Interna visava, e tão-

-somente, o “Inimigo Interno” na Metrópole, que outro não era senão o

povo português, o qual se manifestava, pelos meios possíveis na ditadura

em que vivia, pedindo liberdade, privado de partidos políticos, que esta-

vam remetidos para a mais dura das clandestinidades, com uma censura

apertadíssima e em que a eclosão de ações violentas eram expressões

limitadíssimas, quer em número, quer em dimensão, e que a polícia

política, no essencial, combatia e conseguia controlar.

a coincidência com as operações militares planeadas pelo Movimento das Forças

Armadas.

19 Ver Anexo VI – Extractos do Plano Provisório de Segurança Interna. AHM/ FAC

10.01

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O P E R A Ç Ã O V I R A G E M H I S T Ó R I C A 37

Ainda relativamente ao “Inimigo Interno”, convém ter subjacente, e

em complemento dos considerandos que sobre esta ideia se tem vindo a

referir, o que pensava o Estado-Maior do CGSI, de que é bem ilustrativo o

Anexo B20 ao Plano Provisório de Segurança Interna, quando enuncia um

hipotético quadro de atuação do “Inimigo Interno”. O querer envolver as

Forças Armadas no combate ao “Inimigo Interno” traduzia uma deso-

rientação da cúpula militar, sobretudo a nível da Defesa Nacional, que

uma análise serena das ameaças então existentes não justificava.

O CGSI

Depois de uma análise pormenorizada das organizações clandestinas

atrás nomeadas, passa a analisar as “Nossas Forças”, indicando que as

“Forças de Segurança Interna, Militares e Paramilitares mantêm a com-

posição e dispositivo previstos nos respectivos planos de segurança

interna21.” Assim, do Exército, fariam parte das Forças de Segurança

Interna aquelas que fossem fixadas pelo CGSI, a Armada colocaria à

disposição do CGSI um Destacamento de Fuzileiros Especiais e uma

Companhia de Fuzileiros e a Força Aérea um Batalhão de Caçadores

Paraquedistas, a duas companhias.

Ao definir as “Normas de Cooperação de Forças Militares e Forças

Paramilitares” o Plano assentava no princípio de que a “Base XXI da Lei

2084 determina a subordinação, em caso de guerra ou emergência, de

todas as forças de segurança, militares e militarizadas, bem como os

organismos policiais, ao Comando Geral de Segurança Interna.” Estatuía,

também, que o “Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas era

nomeado pelo CSDN como Comandante Geral da SI.”

As Forças Armadas destinadas à Segurança Interna seriam sempre

comandadas pelo CEMGFA, na sua qualidade de Comandante Geral da

Segurança Interna (CGSI), passando a “sê-lo, também, das Forças Parami-

litares logo que o CSDN determine as funções operacionais ao CGSI”. Em

situação de emergência o “CGSI é responsável perante o Presidente do

Conselho e o Ministro da Defesa Nacional pela condição das operações

20 Ver Anexo VI – Extratos do Plano Provisório de Segurança Interna – Anexo B

– Situações Particulares.

21 Refira-se que não se tem conhecimento da existência de qualquer Plano de

Segurança Interna específico para a Marinha, apesar da nossa participação, por

parte do Centro de Comunicações da Armada, em vários dos exercícios a nível

nacional, realizados entre 1970/73. Tampouco no relativo ao Exército ou Força

Aérea foi encontrado nos Arquivos qualquer Plano específico relativo a estes

Ramos. Excetua-se o Plano Carril, no respeitante ao Exército, do ano 1969 e

relativo à segurança da rede ferroviária (ver ADN F3/10/ 21/11).

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de segurança interna a partir do momento em que tal fosse determinado,

passando então a comandar também todas as forças paramilitares que

estivessem afetas à Segurança Interna.”

Por sua vez, em cada ramo das Forças Armadas existia um Coman-

dante de Segurança Interna. Assim, existiam: o Comando do Exército de

Segurança Interna do Exército – CFESI; o Comando de Segurança Interna

da Armada – CSIA; e o Comando de Segurança Interna da Força Aérea –

CSIFA. De início, a chefia destes Comandos foi atribuída aos respectivos

CEM’s, tendo sido delegada, quase de imediato, nos respectivos Vice-

-CEM’s, por despachos dos responsáveis políticos de cada Ramo22.

Ficavam afetas à Segurança Interna, das Forças Armadas na Metró-

pole, de que o CEMGFA e CGSI era o Comandante, também as corpora-

ções militares – Guarda Nacional Republicana (GNR) e a Guarda Fiscal

(GF), forças entregues às Regiões Militares – bem como as militarizadas

– Polícia de Segurança Pública (PSP) e Legião Portuguesa (LP) – nas

condições que tivessem sido fixadas pelo CSDN. A doutrina previa, ainda,

que o CGSI se articularia em Forças de Reserva Geral (FRG), Forças de

Intervenção Regional, Forças de Segurança Local (FSL) e Forças de

Segurança Disponíveis (FSD)

A responsabilidade de funções operacionais dada ao CGSI podia ser-

-lhe atribuída antes de uma declaração de estado de sítio, por situação de

emergência, e no todo ou em parte do território metropolitano, segundo

uma escalada de intervenção das Forças Armadas, ficando as forças

paramilitares subordinadas ao CGSI e respectivas regiões militares,

consoante as áreas abrangidas por essa responsabilidade dada ao CGSI.

Convirá ainda reter que, por força do Dec. Lei n.º 37447, existia um

Conselho de Segurança Pública, sob a presidência do Ministro do Interior

e destinado a coordenar as actividades dos diferentes órgãos de Seguran-

ça Pública, o qual definia como autoridades de Segurança Pública, em

todo o território metropolitano, o Comandante Geral e o 2.º Comandante

da GNR, o Comandante Geral da PSP e o Diretor e o Inspetor Superior da

PIDE. Ainda, nas áreas da sua competência legal eram autoridades de

Segurança Pública os Governadores Civis, os Comandantes de Batalhão

da GNR e os Comandantes Distritais da PSP, os Subdiretores da PIDE e os

Presidentes das Câmaras Municipais, quando, nos termos do Código

Administrativo, exercessem funções policiais.

Vejamos com mais detalhe alguns dos aspetos deste Plano, para além

dos respeitantes à “Situação geral” e designadamente ao “Inimigo Inter-

no”, referidos.

22 Ver ADN F1/ 36/ 60.

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O P E R A Ç Ã O V I R A G E M H I S T Ó R I C A 39

O CONCEITO DE SEGURANÇA INTERNA

Dentro do “Conceito de Segurança Interna” o Plano previa as ações a

desenvolver para a manutenção da Segurança Interna, de acordo com as

seguintes fases:

1.ª Fase – totalmente a cargo das Forças Paramilitares e, portanto, da

responsabilidade superior do Ministro do Interior;

2.ª Fase – as Forças Armadas podiam apoiar as Forças Paramilitares a

pedido destas, ou do Ministério do Interior;

3.ª Fase – totalmente a cargo das Forças Armadas, então sob o comando

do CGSI, em determinada área ou áreas, em todo o território continental;

A defesa de pontos sensíveis era também considerada no Plano.

MISSÃO DAS FORÇAS ARMADAS

Quanto à “Missão das Forças Armadas” o plano determinava que a

elas competia, para além da defesa das suas instalações, “Intervir direta-

mente na manutenção e restabelecimento da ordem” e “Assumir a res-

ponsabilidade de execução das operações da Segurança Interna”. Segui-

damente especificava as competências de cada Ramo.

Às Forças Armadas competia, de forma sintética:

(1) Defender, em missão permanente, todos os aquartelamentos, bases,

navios, estabelecimentos.

(2) Intervir diretamente na manutenção e restabelecimento da ordem,

em apoio das autoridades civis.

(3) Assumir a responsabilidade de execução das operações de Segu-

rança Interna, quando decidido pelo CSDN em situações especial-

mente graves – independentemente de ter sido ou não declarado o

estado de sítio – localmente ou em todo o território nacional.

(4) Garantir, quando determinado pelo CSDN, o funcionamento dos

serviços essenciais à vida da Nação.

Neste capítulo, após a definição das missões genéricas das Forças

Armadas em matéria de Segurança Interna, o Plano específica, como é

natural, as missões de cada um dos Ramos.

Integradas nas “Normas de Cooperação de Forças Militares e Forças

Paramilitares” são definidos as competências das Forças Militares de

Segurança Interna, das Forças Paramilitares e Autoridades Civis. Tam-

bém o concernente à Requisição de Forças Militares, bem como a Apre-

ciação dessas requisições.

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Outro aspeto tratado é o que diz respeito à Atuação Conjunta de For-

ças Militares e Paramilitares. Entrando no campo do Processamento

Geral da Contra-Subversão o Plano de Segurança Interna estabelecia

como se processaria o seu combate.

Começava por prever uma “Situação Normal”, em que a manutenção

e restabelecimento da ordem e a prevenção e repressão de qualquer mani-

festação de elementos subversivos competiam, em princípio, às autorida-

des civis, conforme as disposições legais. Seguidamente, uma “Situação

Intermédia”, quando as forças paramilitares, em ações locais ou regionais,

não tivessem possibilidade de, por si próprias, restabelecerem a ordem e a

tranquilidade públicas. Finalmente, uma “Situação de Emergência” em

que o CGSI seria responsável perante o Presidente do Conselho e o Minis-

tro da Defesa Nacional pela condução das operações de segurança inter-

na, passando então a comandar também todas as Forças Paramilitares.

A recolha de Altas Entidades, em caso de emergência, seria efetuada

para local a designar, em princípio Monsanto, e pelas seguintes forças: a

Companhia de Polícia Militar (da FRG), que recolhia o Ministro da Defe-

sa Nacional, o CEMGFA e CGSI, o Secretário Adjunto da Defesa Nacio-

nal e o 2.º Comandante da SI; a GNR procederia à recolha do Presidente

do Conselho, do Ministro do Interior, do Ministro das Finanças, do

Ministro dos Negócios Estrangeiros e do Ministro do Ultramar23.

OS EXERCÍCIOS DE SEGURANÇA INTERNA

Com o enquadramento orgânico de que atrás se deu uma panorâmica,

passaram a ser realizados, a partir de finais dos anos sessenta e a nível

nacional, “Exercícios de Segurança Interna”, de acordo com as diretivas

emanadas da Defesa Nacional. Eram exercícios de estado-maior, que não

implicavam a movimentação de forças, limitando-se à injeção de inci-

dentes, através de mensagens, juntos dos comandos das diversas forças

em exercício, incidentes que obrigavam a comunicar as soluções adotadas

pelo comando ou comandos visados.

Pela experiência vivida pessoalmente, tratava-se de exercícios rotinei-

ros24 aos quais os militares neles participantes se aplicavam com muito

23 Curiosamente, os responsáveis de cada um dos Ramos não estavam integrados no

esquema de recolha de Alta Entidades, pelo que se pressupõe que seria da

responsabilidade do respectivo Ramo a sua segurança. Como é conhecido o

esquema de recolha de Altas Entidades, apesar de bem presente desde o início do

Plano de SI, não funcionou no dia 25 de Abril de 1974.

24 Em 1970 realizou-se o “Exercício Tejo” e em 31 de Julho desse mesmo ano o

Exercício de Transmissões “Teca”, em 1972 o “Exercício Estrela” e, em 1973, o

“Exercício Continente” e ainda, neste mesmo ano o “Exercício Plataforma”, este

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O P E R A Ç Ã O V I R A G E M H I S T Ó R I C A 41

pouca dedicação e que produziam por vezes, mesmo nos escalões mais

elevados, situações de desinteresse e de manifesta pouca credibilidade em

toda a arquitetura dos próprios exercícios, para não dizer do conceito que

presidia à segurança interna, em si mesma.

Contudo, é necessário perceber porque razão o Regime, ano após ano,

ia dando continuidade à realização desses exercícios de Segurança Interna.

Tal facto derivava da análise que da situação política interna o Regime, ou

forças do mesmo, faziam, a qual começava, ano após ano, a degradar-se,

isto a par da situação de guerra nos três teatros africanos, que se agravava.

De facto, a consciência de que a situação interna era complicada leva-

va a que na análise da situação que precedia o enunciado de cada exercí-

cio se falasse expressamente do “Inimigo Interno” (IN), como se pôde ler

acima. Também é de salientar que o referido IN não era consubstanciado

em entidades hipotéticas, como é normal em exercícios militares, mas

sim em organizações políticas bem conhecidas, não só pelo seu trabalho

propriamente político junto das diversas camadas da população mas, cada

vez mais, por ações armadas que, também elas, se vinham incrementando.

O “Inimigo Interno” deixava de estar personificado nos comunistas,

cujos dirigentes estavam em grande parte presos, e esse era um assunto da

PIDE/DGS, mas nas movimentações políticas internas, mais difusas, mas

socialmente mais alargadas e a estenderem-se de norte a sul, o que leva a

que o “Inimigo Interno” deixe de ser somente um assunto de polícia

(política), para passar a ser uma preocupação dos altos comandos das

Forças Armadas. No fundo teme-se um levantamento popular, necessa-

riamente com uma componente armada.

Assim, as Forças Armadas passam a ter uma preocupação mais, ou

melhor, uma nova missão: combater o “Inimigo Interno”. E esta é uma

alteração qualitativa significativa na missão das Forças Armadas.

Desde 1926, (talvez com a excepção do caso de Beja, em 1961) sempre

que as FFAA atuaram no interior do País foi por iniciativa de sectores seus,

nas suas lutas contra o governo saído da ditadura. A partir de 1969, com o

despacho do Ministro da Defesa Nacional ativando o CGSI, o inimigo

passava a ser próprio Povo português, abrindo-se, assim, uma 4.ª Frente.

É, assim, neste contexto de preparação para a abertura de uma 4.ª

frente – as 1.ª, 2.ª e 3.ª eram, obviamente, as de Angola, Guiné e Moçam-

bique – que, em meados de 1973, surge o Movimento dos Capitães.

Para melhor se entender este estado de coisas convém ter presente os

“incidentes” referidos na “Situação Particular”25 do exercício realizado em

de Comunicações/Transmissões. Em 1974 estava a ser planeado um novo exercí-

cio para se realizar por alturas do mês de Maio. Ver nota 18.

25 Ver Anexo VI – Plano Provisório de Segurança Interna.

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1970, “provocados” pelo “Inimigo Interno” (sic) e que, portanto, requeriam

a intervenção da Forças Armadas e Paramilitares visando debelar o clima

que setinha sido criado. É também com aquele fim que se junta a este

trabalho o Plano Provisório de Segurança Interna onde, no seu Anexo B,

existe matéria bastante para reflexão.

FORÇAS ENVOLVIDAS

Em complemento e para que se aprecie a dimensão da matéria e o

estado da psicose que então se vivia, veja-se o conjunto de forças cujo

envolvimento estava previsto no Plano, ainda que só no “papel”, em

exercícios de 1971. Esta é a composição geral das Forças atribuídas

anualmente ao CGSI. São permanentes as da Marinha e da Força Aérea,

variando as do Exército, não no seu número, mas na sua origem.

1. Do EXÉRCITO

RMNorte: 1 BCaç (a 2CCaç) /RI13 Chaves

RMLisboa: 1 BCaç (a 2 CCaç)/ EPI Mafra

1 ERec/RC7 Lisboa

1 CEng/RE1 Lisboa

1 CPM/RL2 Lisboa

RMCentro: 1BACL/RAP3 Figueira da Foz

RMTomar: 1 CCaç/RI2 Abrantes

RMEvora: 1 CCaç/RI4 Faro

2. Da ARMADA

1 DFE Alfeite

1 CFZ Alfeite

3. Da FORÇA AÉREA

1 BCaç PARAS (a 2 CCaç P), em Tancos.

4. FORÇAS PARAMILITARES DE SEGURANÇA INTERNA – FRG

Tal como previsto para as Forças Militares, estavam atribuídas ao CEMGFA/ CGSI, como FRG, a seguintes unidades da Forças Paramilitares:

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O P E R A Ç Ã O V I R A G E M H I S T Ó R I C A 43

(1) Da PSP

Companhia Móvel da PSP Oeiras (2) Da GNR

Regimento de Cavalaria Lisboa

Esq. Cav/Bat 4 Porto (3) Da LP

Terço de Cavalaria 5. COMANDO DAS REGIÕES MILITARES como FIR

GNR: 2 Comp. Inf. Lisboa

1 Comp. Inf. Porto

Pel. Rec. BAT3 Évora

Pel. Rec. BAT5 Coimbra

6. FORÇAS DA SEGURANÇA LOCAL – FSL

Elementos da PSP

Elementos da GNR: 2 Comp. Inf. Lisboa

1 Comp. Inf. Barreiro

1 Pel. Inf. Coimbra

1 Destac. Cav. Barreiro

APROXIMA-SE ABRIL

Curiosamente a PIDE/DGS nas vésperas do 1.º de Maio de 1973 infor-

mava a Presidência do Conselho e os ministérios do Interior, Exército e

Defesa Nacional de que a “campanha subversiva do “P.C.P.” para apro-

veitar o dia “1.º de Maio” como uma data revolucionária, surge este ano

muito débil, em relação a anos anteriores”. Considerava, ainda a

PIDE/DGS, que o próximo “1.º de Maio” [referia-se ao desse mesmo ano,

1973] será, sob o aspeto de agitação de massas, quase calmo”. Ao “estra-

nhar a tática do “P.C.P.”, neste aspeto” admitia que tal se pudesse dever a

dois fatores: 1.º “As últimas e importantes prisões efetuadas…”; 2.º. Estar

a planear “qualquer ação terrorista…”. Além destas considerações sobre a

atuação do PCP, referia, ainda, a possibilidade dos “Comités Marxistas-

-Leninistas” ou das “Brigadas Revolucionárias” poderem “também tentar

marcar a data com qualquer ação contra objetivos militares”26.

26 Ver Informação n.º 158/73 – 1.ª D.I. da DGS, de 24-4-973, ADN F1/7/37/60.

Desconfiado com tanta calmaria o Ministro Sá Viana Rebelo despachava pelo seu

punho, em 25.4.73: “Informar o C.G.S.I., para alertar os CEM dos 3 ramos quanto

a: 1) Perspectiva do 1.º de Maio aparentemente calmo, que encubra ações terroris-

tas planeadas; 2) Períodos de vigilância especial.”

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No mês de Setembro de 1973, numa altura em que o Movimento dos

Capitães na Metrópole já se começava a ligar de forma estruturada à

Marinha e à Força Aérea, os capitães do Exército realizavam reuniões em

Nampula (13 de Setembro) e em Luanda (21 de Setembro) e em que na

Guiné27, era constituída aquela que foi a primeira Comissão Militar

constituída a nível nacional, o CGSI divulga pelas altas autoridades um

“Estudo de Situação do Inimigo Interno referido a 1JUN73”, no qual são

compiladas “as estruturas e as formas de atuação conhecidas do IN (sic)

Interno”. No mesmo documento é advertido, à partida, que dado “o

carácter clandestino das organizações e atividades do Inimigo Interno, é

de admitir que o trabalho agora apresentado contenha deficiências de

informação e sistematização.”28

A propósito do “Acto Eleitoral de 28 de Outubro de 1973”, o CGSI

emitiu uma Directiva29 assinada pelo seu Comandante Geral, general

Francisco da Costa Gomes que, a propósito de concorrerem “às urnas

duas fações, a Acção Nacional Popular e a Oposição Democrática”,

determinava a entrada em “prevenção simples” das Unidades de Terra,

Mar e Ar das guarnições das cidades onde a Oposição Democrática

concorria. Determinava, ainda, entre outras medidas, designadamente ao

nível das Regiões Militares, que o CFESI colocaria em “condições de

pronta atuação efetivos, no mínimo, três batalhões de Caçadores.”

Aproximando-se o final do ano, as preocupações que o CGSI transmi-

tia às Forças Armadas relacionavam-se com as cerimónias relativas à

abertura da Assembleia Nacional, o que fazia admitir “possibilidades [do]

inimigo provocar ações de sabotagem nomeadamente colocação [de]

engenhos explosivos [em] instalações militares…”.30 Em meados de

Novembro, a preocupações prendiam-se com as “datas 22NOV aniversá-

rio [do] assalto [à] sede [do] PAIGC (1970) e 23NOV aniversário da

“Tomada [da] Bastilha (Coimbra)” e consequente “possibilidade [de]

ações subversivas.”31 E para que as vésperas de Natal desse ano não

fossem de todo em paz, dado que o “Secretário de Estado Americano

Dr. Kissinger” visitava Lisboa nos dias 21 e 22 de Dezembro, lembrava-

-se à Forças Armadas a “possibilidade [da] exploração [da] visita com

ações subversivas.”32

27 Ver GOLIAS, Jorge de Sales, A Descolonização da Guiné-Bissau, Colibri, Lisboa,

2016, pág.104. 28 Ver nota n.º 466/CS, P.

os 2.00.2 e 2.60.5, de 10 de Setembro de 1973, do

Comando-Geral de Segurança Interna. ADN F3/ 10/20/4. 29 Ver Diretiva 511/CS/3.20.1, de 13OUT73. ADN F1/ 7/37/60. 30 Mensagem Urgente, 559/CS, de 14NOV73. ADN F1/7/37/60. 31 Mensagem Urgente 572/CS, de 16NOV73. ADN F1/7/37/60. 32 Mensagem Urgente 607/CS, de 15DEZ73. ADN F1/7/37/60

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O P E R A Ç Ã O V I R A G E M H I S T Ó R I C A 45

Logo no início do novo ano de 1974, no dia 14 de Janeiro, o CGSI, em sessão presidida pelo seu Chefe do Estado-Maior, Brigadeiro Hermínio Duarte Ferreira, apresentava uma “Exposição de Informação a S. Exa. o Ministro do Interior”, que acabava de ser empossado no cargo.

Entretanto, já nesse mesmo dia 14 de Janeiro de 1974, o novo ministro da Defesa Nacional, prof. Joaquim da Silva Cunha, presidia no Comando Geral de Segurança Interna a uma exposição ao Ministro do Interior, que se encontrava acompanhado, de acordo com a nota manuscrita do pró- prio Ministro da Defesa Nacional, dos ministros dos pelouros militares, Comandante da 1.ª Região Aérea, Comandantes Gerais da GNR e da PSP e Diretor Geral de Segurança, exposição essa iniciada pelo Chefe do Estado-Maior do CGSI, brigadeiro Hermínio Duarte Ferreira, tendo intervindo também o chefe da 2.ª Repartição, tenente-coronel Calixto da Silva, o chefe da 3.ª Repartição, coronel Fernando Lopes e o adjunto, major Marques de Abreu e, finalmente, o chefe das comunicações-transmissões comandante Junqueiro Sarmento. A exposição incidiu sobre a origem e a criação do CGSI, sua organização e funcionamento, tendo sido explanado o Conceito de Segurança Interna.

Esta reunião, embora na sequência da recente nomeação de César Moreira Baptista para o Ministério do Interior, demonstra que os planos de segurança interna não estavam adormecidos, num momento em que – paralelamente – o Movimento dos Capitães entrava numa nova fase da sua curta existência: a elaboração de um programa político que viria a definir as grandes linhas após a tomada do poder, isto é, o seu futuro contrato aberto com o Povo Português.

Em 25 de Abril de 1974, apesar de tudo, algo funcionou no âmbito do Plano de Segurança Interna. Vejamos o que no respeitante ao CGSI diz o Subsecretário de Estado do Exército, coronel Viana de Lemos, ao depor num auto, levantado após o 25 de Abril, quando questionado sobre o conhecimento que eventualmente houvera tido de que o Ministro sancio-nara a intervenção de corporações militarizadas em atos de agressão direta às Forças Armadas: “De resto, na minha qualidade de Subsecretá-rio não me competia dar ou sancionar quaisquer ordens para o emprego dessas forças, tanto mais que me encontrava nessa noite junto dos Minis-tros da Defesa e do Interior, os quais estavam no Ministério do Exército para onde me dirigira por convocação do Ministro e onde chegara depois de desencadeado o procedimento prescrito no Plano de Defesa de Segu-rança Interna”. Depois, acrescenta, talvez não por acaso, no seu livro “Duas Crises”: “De notar que o Comandante de Segurança Interna tinha sido, até dois dias antes de 15 de Março o general Costa Gomes”33, naturalmente, na sua condição de CEMGFA.

33 Ver LEMOS, Coronel Viana, Duas Crises 1961 e 1974, 2.ª edição, Edições

Cosmos, Chamusca, 2009, Pág. 105

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Sobre a “Segurança Interna” atente-se, ainda, um pouco à guisa de

epitáfio, no que sobre ela escreveu, já depois do 25 de Abril, o seu res-

ponsável político nesse dia: “Funcionava, como já se disse, desde 1969,

no Departamento da Defesa Nacional, o Comando-Geral de Segurança

Interna, na dependência do Chefe do EMGFA e com um estado-maior

próprio, mas era totalmente ineficiente e desprovido de meios.”34

A PIDE/DGS EM VÉSPERAS DE REESTRUTURAÇÃO?

A PIDE/DGS, de acordo com a Diretiva de Segurança Interna, estava

incluída nas “Forças de Natureza Civil e Militarizada”, na dependência

do Ministro do Interior, sendo definida como competente para “difundir

ao CSDN, na qualidade de órgão superior de segurança interna, as notí-

cias e informações que interessem à segurança interna”, isto, para além

das “missões específicas que forem atribuídas.” Contudo, verifica-se que,

para além do referido naquela Diretiva e aparte os considerandos acerca

da constituição do Conselho de Segurança Pública onde os seus dirigen-

tes nacionais e distritais são referidos, esta entidade pouco conta nos

diversos planos de exercício consultados. Naturalmente que, sendo esta

polícia o grande elemento repressor do Estado Novo, sobretudo daquelas

organizações políticas que são consideradas explicitamente como consti-

tuindo o “Inimigo Interno”, tal parece um contrassenso.

Contudo, o facto do esquema de Segurança Interna ter sido desenvol-

vido por iniciativa das Forças Armadas, como aliás a lei obrigava, e tendo

em conta as questões relativas aos pretensos distanciamento e separação

de águas que atrás referimos, pode justificar-se o pouco relevo que o

Plano de Segurança Interna atribui à PIDE/DGS. Esta é uma história

longa, que aqui não pode ser desenvolvida, mas que a constituição dos

Serviços de Coordenação e Centralização de Informações (SCCI) em

1961, com o início da guerra, em Angola primeiro e, posteriormente, em

Moçambique e, só mais tarde na Guiné, em moldes algo diferentes,

podem em parte ajudar a compreender.

Naturalmente que a PIDE/DGS sempre esteve presente, e até ao último

dia, no cerne do regime, tendo o Movimento das Forças Armadas, por

imperativo político e em cumprimento do seu Programa, procedido à sua

extinção de imediato, excetuado o conhecido episódio da efémera criação

da Polícia de Informação Militar (PIM), no Ultramar.

Contudo, poucos dias antes do major Carlos Fabião, no Instituto de

Altos Estudos Militares, denunciar publicamente, durante uma aula do

curso que frequentava, as intenções do general Kaúlza de Arriaga de intervir

34 Ver CUNHA, J. Silva. op. cit., pág. 119. Naturalmente os meios existiam, mas

funcionaram em sentido contrário.

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O P E R A Ç Ã O V I R A G E M H I S T Ó R I C A 47

na política, ao arrepio das ideias que enformavam o Movimento dos

Capitães, o chefe do Gabinete do CEMGFA, coronel do CEM Arménio

Nuno Ramires de Oliveira, no dia 14 de Setembro, dirige ao seu superior

hierárquico uma Informação sobre a “Reorganização do Departamento da

Defesa Nacional”35 na qual, reportando uma palestra sobre contra-

-subversão proferida no Curso de Estado-Maior pelo Inspetor-adjunto da

PIDE/DGS Abílio Augusto Pires, afirma: “A uma pergunta de um oficial-

-aluno, o Sr. Inspetor-adjunto manifestou a opinião de que a eficiência da

PIDE/DGS, na parte da sua função de informação, era bastante reduzida

por não depender de um escalão suficientemente válido e que considerava

ser o Departamento da Defesa Nacional”. E continua, “perguntei-lhe como

ele conciliaria os aspetos informação e investigação que atualmente a

PIDE/DGS comporta. Respondeu que se a parte da informação passasse

para o escalão da Defesa Nacional, a parte da investigação poderia muito

bem passar a fazer parte da Polícia Judiciária com a respetiva adaptação

legal e orgânica, que lhe parecia fácil.”.

Afirmava, ainda, o coronel Ramires de Oliveira que, como estava em

estudo a reorganização do Departamento da Defesa Nacional e “é certo

que hoje os três tipos de informação que possam interessar aos mais altos

escalões (informação estratégica, para a acção psicológica e de carácter

interno) são deficientemente processados”, a “existência de um órgão de

informação junto ao CEMGFA não pode cobrir todas as tarefas, desapoia-

do como está de um órgão técnico de execução.” E terminava dizendo

que “talvez a ideia que foi expressa [pelo Inspetor-adjunto Abílio Pires]

pudesse ser uma base para a reestruturação de uma área de tão grande

importância.”

Sobre esta informação o general Costa Gomes despachava, no dia 17

de Dezembro, que achava julgar “de interesse a opinião do Sr. Inspetor--adjunto sobre a necessidade de reformar” o Serviço de Informações

“Concordando “com o sugerido” pelo coronel Ramires de Oliveira, isto é

a “inserção no estudo” da “reorganização do Departamento da Defesa

Nacional” da “opinião” do Inspetor Abílio Pires. O Ministro da Defesa,

depois de colocar o seu visto no documento no dia seguinte, 18 de De-

zembro, despachava “é evidente [que] numa nova orgânica falta um Serviço Nacional de Informações, mas não julgo que tal função possa ser desempenhada pela D.G.S. Em tempos estudou-se a criação de um servi-

ço daquele tipo sendo os estudos feitos pela D.N., M.N.E. e M.U 36. Con-

35 Ver Informação do Coronel Ramires de Oliveira, de 14 de Dezembro de 1973.

ADN F3/10/20/8. (Anexo XII).

36 D.N. – Defesa Nacional, M.N.E. – Ministério dos Negócios Estrangeiros; M.U.-

-Ministério do Ultramar.

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vém localizar os antecedentes que podem ser reanalisados pois tenho

ideia de que o esquema poderá ser aproveitado [?], com os elementos em referência.”37

Como podemos apreciar, enquanto – paralelamente – o Movimento

dos Capitães se ia definindo politicamente e a quatro meses de Abril, algo

estava a bulir a todos os níveis do Regime, ainda que sem qualquer coor-

denação que, como é sabido, nunca existiu, para além do conhecimento

que havia de parte a parte sobre o evoluir da situação geral. Mesmo a

própria PIDE/DGS aceitava uma mudança muito acentuada na sua missão,

perdendo, assim, aparentemente, o seu quase absoluto poder.

A nomeação pelo general Spínola, no dia 26 de Abril de 1974, do

Diretor Álvaro Pereira de Carvalho para dirigir a PIDE/DGS, ainda que o

Programa do Movimento das Forças Armadas, que horas antes ele havia

aceitado (reticentemente, como ilustrado no depoimento do tenente-

-coronel Charais) no Posto de Comando da Pontinha, extinguisse liminar

e imediatamente aquela organização na Metrópole, talvez não seja estra-

nha a todo este pensamento de mudança nas informações, que, quer a

nível da Defesa Nacional, quer da própria PIDE/DGS, se vinha debatendo.

Tenhamos presente o teor do despacho de 17 de Dezembro de 1973 do

General Costa Gomes, atrás referido, e a certeza que tinha um pensamen-

to próprio sobre tão importante matéria.

É óbvio que, quando o Inspetor-adjunto Abílio Pires faz a intervenção

num curso de Estado-Maior, não a faz por sua conta e risco. Teria neces-

sariamente de estar mandatado para a fazer. Estávamos a quatro meses do

25 de Abril. E a denúncia de Carlos Fabião nesses dias sobre as movi-

mentações Kaúlza de Arriaga, contara, senão com o apoio explícito de

Spínola e de Costa Gomes, pelo menos com o seu conhecimento prévio.38

No dia 27 de Abril de 1974, o destacamento da Escola Pática de

Transmissões encarregado de desmantelar a infraestrutura de comunica-

ções da delegação da PIDE/DGS no Porto recolheu a mensagem 156 da

“DIRSEG LISBOA”, a qual ordenava que “por ordem superior todo o

pessoal deve acatar prontamente ordens de todas as autoridades militares

e de segurança”39.

37 Ver Informação do Coronel Ramires de Oliveira, de 14 de Dezembro de 1973.

ADN F3/10/20/8. Anexo XII.

38 Ver GOMES, Carlos de Matos e AFONSO, Aniceto, Os Anos da Guerra

Colonial, 1973, Vol. 14, pág. 95, QuidNovi, Matosinhos, 2009

39 Ver Relatório do Regimento de Transmissões e Anexo XII – Documentação da

PIDE/DGS.

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O 16 de MARÇO40

Tendo como pano de fundo a intensa politização e consequente

movimentação do Movimento dos Capitães e tendo como causa imediata

a destituição a 14 de Março dos generais Costa Gomes e António de

Spínola dos cargos de CEMGFA e Vice-CEMGFA, respectivamente, a

onda de protestos dos oficiais das Forças Armadas cresceu ainda mais. É

assim que, de forma totalmente descoordenada e sem qualquer planeamen-

to realizado pela Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães,

agindo por um impulso totalmente emotivo, oficiais do Movimento

marcham do Regimento de Infantaria n.º 5 aquartelado nas Caldas da

Rainha, à frente de uma coluna armada com destino a Lisboa. Antes de

entrar em Lisboa a coluna apercebe-se que não fora acompanhada na

saída, como esperava, por outras unidades militares, retrocede para o seu

quartel, rendendo-se ao comando da Região Militar de Tomar, ao qual o

seu Regimento estava subordinado. Em consequência, umas dezenas de

oficiais sargentos e praças são detidos, sendo os oficiais somente liberta-

dos no dia 25 de Abril41.

A propósito deste acontecimento, vivido muito de perto por todos os

integrantes do já então Movimento dos Oficiais das Forças Armadas

(MOFA), este emitiu dois comunicado (mais dois!) denunciando a prisão

dos militares integrantes da coluna, contendo um deles a listagem dos

seus nomes.42

Não por acaso, o incidente viria a ser glosado no vespertino República

do dia 18, segunda-feira, aproveitando-se do resultado de um desafio de

futebol do dia 17 entre equipas do Porto e de Lisboa, em que começava a

crónica, debaixo do título “Quem travará os «Leões»?”, “Os muitos

nortenhos que no fim-de-semana avançaram até Lisboa, sonhando com a

vitória, acabaram por retirar, desiludidos com a derrota.” De facto era

através do “República”, concretamente do jornalista Álvaro Guerra, com

o apoio do seu subdiretor Vítor Direito e do jornalista José Jorge Letria

que, desde os tempos do Melo Antunes antes da sua partida para os

Açores, mantinha-mos os contactos do Movimento para a imprensa

nacional e estrangeira.

40 Ver GOMES, Carlos de Matos e AFONSO, Aniceto, Os Anos da Guerra Colonial,

1974-1975, Vol. 15, pág. 46 e 47, QuidNovi, Matosinhos, 2009 e TORNADA,

Joana de Matos, Nas Vésperas da Democracia em Portugal. O Golpe das Caldas

de 16 de Março de 1974, Almedina, Coimbra 2009.

41 Ver Anexo XIV, Lista de Oficiais Presos em 16 de Março de 1974, AHM/FAC 10.01

42 Ver Anexo XIV, Lista de Oficiais Presos em 16 de Março de 1974, AHM/FAC 10.01

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A experiência daquela saída em falso irá aproveitar do planeamento da

Operação “VIRAGEM HISTÓRICA”.

O ESTADO PSICOLÓGICO DAS FORÇAS ARMADAS EM 1974

Compulsando os comunicados emitidos pelo Movimento dos Capi-

tães, ao longo dos praticamente nove meses que dura a gestação do 25 de

Abril, entre meados de 1973 e Abril de 1974, verifica-se que foram deze-

nas os publicados, quer na Metrópole, quer nos territórios ultramarinos,

todos ou quase todos divulgados publicamente, quase imediatamente à

sua emissão, muitas vezes entregues em mão às próprias autoridades

militares e políticas, para além dos que a imprensa estrangeira ia difun-

dindo, por a censura do regime o não permitir a nível nacional. A todo este

imenso conjunto de informação é necessário juntar os contactos pessoais

que os oficiais do Movimento já se permitiam junto dos comandos e

entidades militares ao mais alto nível, informando ou denunciando a

situação que se vivia “quartéis adentro”.

Neste contexto, e a par daquela produção “panfletária”, o número de

“abaixo-assinados”, por vezes assinados por centenas de oficias, quer no

Exército, quer na Marinha, alguns produzidos nas colónias já em 1973 e

que, apesar de expressamente proibidos pelos regulamentos militares,

eram entregues em mão aos mais altos comandos e entidades dos respec-

tivos Ramos, não podiam deixar de ser uma expressão muito objetiva do

estado de ânimos que se desenvolvia dentro das Forças Armadas e que a

alta administração de modo nenhum podia ignorar.

Tais comunicados eram de ampla difusão, quer na Metrópole, quer no

Ultramar, não havendo uma especial preocupação em mantê-los no sigilo

dos próprios destinatários, sendo mesmo, em muito casos entregues

formalmente aos comandantes das suas unidades pelos seus signatários.

Isto, para além dos comunicados que eram distribuídos à imprensa es-

trangeira, naturalmente por esta estar a salvo da Censura, agora crismada

“Exame Prévio”.

Para além desta necessidade de manter informados os próprios milita-

res, vislumbra-se nos comunicados elementos de guerra psicológica,

dirigida contra o Regime e prognosticando algumas linhas que viriam a

enformar politicamente o Movimento. A existência de toda esta vasta

matéria impressa manifestava à saciedade a clara intenção do Movimento

estar a exigir uma mudança na situação política existente.

A análise dessa vasta documentação, permitiu-nos apresentar num

encontro com militares espanhóis pertencentes à Union Militar Demo-

cratica (UMD), realizado em Loulé, em 2012 e organizada pela Universi-

dade Afonso III, um breve estudo em que analisámos a “Evolução Políti-

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ca do Movimento dos Capitães”43, no qual distinguimos três fases: uma

inicial na qual se formou uma consciência política, uma segunda em que

o Movimento se estruturou criando um órgão de direção – a Comissão

Coordenadora – e elegeu Delegados nas Unidades Militares da Metrópole

e Correspondentes no Ultramar onde, quer na Guiné, quer em Angola e

em Moçambique, os “capitães” de forma autónoma se organizavam

também e, finalmente, uma fase de consolidação do Movimento, na qual

se dá a integração da Marinha e da Força Aérea e, por fim, se decide o

derrube do regime ditatorial estabelecido quase cinquenta anos antes, me-

diante uma operação militar, tendo subjacente um programa político, que

visava democratizar, descolonizar e desenvolver o país, com entrega ime-

diata do poder político a um governo civil.

QUE SURPRESA PARA O REGIME AS OPERAÇÕES DO 25 DE ABRIL?

“Pouco depois falou-me o Director Geral de Segu-

rança, Major Siva Pais, dizendo-me o mesmo. “Pode

dormir descansado, Sr. Ministro”, afirmou”44

J. Silva Cunha, Ministro da Defesa Nacional em 24 de Abril de 1974

“…A revolução que veio efectivamente de surpresa, e

conduzida dessa vez com toda a eficiência, em 25 de

Abril”.45

Marcello Caetano, Presidente do Conselho de Ministros

em 24 de Abril de 1974

A Operação “VIRAGEM HISTÓRICA” que o Movimento das Forças

Armadas desencadeou em Portugal, no dia 25 de Abril de 1974, teve a seu

favor a surpresa que qualquer operação militar pressupõe e deseja. À luz

do que atrás ficou dito sobre o aparelho da Segurança Interna então

existente não colhe a ideia de que pela frente estava um adversário ador-

mecido, ou pelo menos, qual avestruz, fazendo por não acreditar naquilo

que estava mais que denunciado e que ele conhecia bem por múltiplas

vias. De facto, o Movimento dos Capitães desde meados de 1973, exube-

43 Ver Anexo XVI – Evolução Política do Pensamento do Movimento dos Capitães,

Loulé, 2012.

44 Ver CUNHA, J. Silva, AINDA O “25 DE ABRIL”, Centro do Livro Brasileiro,

Lda., Lisboa, 1984, pág. 123.

45 Ver CAETANO, Marcello, Depoimento, Distribuidora Record, Rio de Janeiro. São

Paulo, 1975, pág. 204

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rantemente, dava-se a conhecer: através dos seus comunicados ampla-

mente difundidos nos meios militares, quer na Metrópole, quer por todo o

Ultramar, bem como na imprensa estrangeira; através de abaixo-

-assinados dirigidos às mais altas patentes, subscritos por centenas de

oficiais, coletivamente, à revelia da lei militar; em reuniões que organiza-

va de forma não tão sigilosa como se possa pensar e que, de imediato,

quase sempre davam origem a novos comunicados, era uma realidade

universalmente conhecida.

Que o regime conhecia bem a dimensão da crescente insatisfação nas

fileiras e que as coisas se complicavam à saciedade, é demonstrado pelo

então Subsecretário de Estado do Exército quando afirma: “Para mim,

tudo começou, na madrugada de 846 (sic) de Março quando fui alertado

pelo Ministro da Marinha e depois pelo Secretário de Estado da Aero-

náutica, que me disseram ter sido avisados de que se preparava um

movimento ou reunião de oficiais para evitar que os oficiais transferidos

seguissem os seus destinos.” E continua: “Reuniram-se, então, nessa

madrugada, pela primeira vez todos os Ministros das pastas militares no

Gabinete do Ministro do Exército, tomaram-se precauções para assegurar

os embarques, mas verificou-se que só o capitão Clemente compare-

ceu.”47

Perante o desenvolvimento do Movimento em que se podia começar a

vislumbrar ameaças ao Poder, embora com uma origem até então posta

de lado, não será por acaso que a mensagem IMEDIATO 091238Z,

n.º 97/CS48, de 09 de Março de 1974, portanto na sequência da reunião dos

ministros militares no Gabinete do Ministro do Exército, atrás referida e

que foi originada na sequência da reunião de capitães em casa do pai do

capitão Ferreira de Macedo, reunião esta despoletada pela ordem de

transferência dos capitães Vasco Lourenço, Carlos Clemente, Ribeiro da

Silva e David Martelo. Essa mensagem é remetida pelo CEMGFA e a

confirmar a determinação da situação de prevenção rigorosa na Região

Militar de Lisboa, AB1, BA6, GDACI e BA1, já tenha tido como destinatá-

rios de ação o COMFESI, o COMSIMAR E O COMSEGINTFAP e como

destinatários de informação os chefes dos estados-maiores do Ramos. Em

46 De facto a conversa com o Ministro da Marinha, na sua residência, no Estoril,

acontece por volta das duas horas da manhã do dia 9, na sequência da deliberação

votada na reunião a decorrer em Lisboa, iniciada na noite de 8 de Março, para

discutir sobre o que fazer, face às ordens de transferência compulsiva dos capitães

Vasco Lourenço, David Martelo, Ribeiro da Silva e Carlos Clemente, entretanto

“raptados” pelo capitão Pinto Soares.

47 Ver LEMOS, Coronel Viana de, Duas Crises 1961 e 1974, 2.ª edição, Edições

Cosmos, Chamusca, 2009, pág.77 e 78.

48 Ver mensagem do CEMGFA, n.º de origem 97/CS, de 09MAR74, Anexo XIII.

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face destes procedimentos pode deduzir-se que, finalmente, estes assun-

tos começavam a ser tratados, não à luz de questões disciplinares internas

aos Ramos, mas como problemas no âmbito da segurança interna, enqua-

drados ou enquadráveis na Directiva de Segurança Interna e, portanto,

num estado de emergência para que apontava a lei no 2084.

Entretanto, aqueles capitães apresentaram-se pela mão do “raptor”

capitão Pinto Soares e, pela mensagem CEMGFA n.º 99/CS, P 111205Z, de

11MAR74, era dada ordem para a passagem ao estado de “Alerta”49.

O problema é que, passados poucos dias, a 16 de Março, e consuma-

das entretanto as demissões do Chefe do Estado-Maior-General das

Forças Armadas, general Costa Gomes e do seu Vice-Chefe, general

António de Spínola e, ainda, do Secretário-Geral Adjunto da Defesa

Nacional, Almirante Tierno Bagulho, dá-se a movimentação da coluna

armada do Regimento de Infantaria n.º 5, sediado nas Caldas da Rainha

em direção à capital, a cujas portas chega, como atrás foi relatado, facto

que não deveria permitir a qualquer governante, por menos atento, dormir

descansado, como veio a aconselhar o Director Geral de Segurança ao

Ministro da Defesa Nacional, já noite adiantada de 24 de Abril de 1974.

Sobre estes difíceis momentos escreveu o então Subsecretário de

Estado do Exército, coronel Viana de Lemos, em comentário a propósito

do “16 de Março”: “tornou-se evidente, poucos dias depois da nomeação

do Chefe do Estado-Maior General, General Luz Cunha, que eu aliás

conhecia bem por termos estado juntos em Paris quando ele frequentava a

École Supérieure de Guerre e eu a École d’État-Major, que algo iria

acontecer como reacção às exonerações. Era o segredo da abelha, pois os

jornais estrangeiros falavam abertamente e entrevistavam oficiais portu-

gueses que apresentavam por siglas como por exemplo «Commandant R»

e outras.”50

Naturalmente que tal estado de coisas não era fruto de uma incúria

momentânea dos dirigentes do Estado Novo.

De onde surge então a surpresa da operação “VIRAGEM HISTÓRICA”?

Julgamos poder apontar três factores:

1 – A rapidez com que se operou a consciencialização política dos

capitães – em apenas nove meses passou-se de um estádio de revindica-

ções corporativas para o reconhecimento de que era necessário agir ao

nível da substituição do Poder instituído. Simultaneamente, o modo rela-

tivamente aberto que o Movimento adoptou impediu que chegasse a ser

49 Ver mensagem CEMGFA P111205Z, n.º 99/CS, de 11MAR74 em ADN

F1/7/37/60.

50 Ver LEMOS, Coronel Viana de, Duas Crises 1961 e 1974, 2.ª edição, Edições

Cosmos, Chamusca, 2009, pág. 87 e 88.

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classificado como uma organização suficientemente perigosa para o regi-

me – perigoso era o clandestino PCP.

2 – A rapidez da decisão de efectuar a operação de substituição do

Poder e a competência e o cuidado na sua preparação, só possíveis por se

tratar de oficiais com experiência efectiva de condução de uma guerra,

treinados em tomar decisões rápidas e a agir em consonância.

3 – O mais que provável desconhecimento por parte do aparelho da

Segurança Interna da existência do documento que veio a ser o Programa

do Movimento das Forças Armadas. Ora as disposições do Programa

foram inspiradas directamente pelas teses do 3.º Congresso da Oposição

Democrática, realizado em Aveiro em Abril de 1973, que divergiam das

intenções e das teses federalistas expressas pelo general Spínola no seu

livro «Portugal e o Futuro», publicado em 22 de Fevereiro de 1974. O

conhecimento do Programa em pormenor não terá suscitado a atenção ou

o interesse da maioria dos capitães; esse conhecimento terá ficado apenas

no seio de um número restrito de militares da cúpula do Movimento e o

próprio general Spínola, provavelmente, terá pensado que não passava de

mais um papel. Porém, é o conhecimento das pormenorizadas medidas

preconizadas no Programa que atrai o apoio generalizado e em crescendo

da população ao MFA logo a partir do próprio dia 25 e que imprime o

rumo revolucionário ao 25 de Abril.

Em relação ao último dos três factores mencionados acrescenta-se que

para o mais que provável desconhecimento do Programa do MFA por

parte da Segurança Interna, pode ter contribuído a convicção dos seus

responsáveis de que seriam tão-somente as teses do general Spínola

expressas naquele seu livro as que inspiravam as movimentações dos

capitães. Essas teses federalistas seriam até comungadas por alguns

sectores do Regime, nomeadamente os chegados às cúpulas militares. O

facto de a questão colonial ter sido sistematicamente não discutido nas

reuniões semiabertas do Movimento dos Capitães, até porque até à última

hora o problema continuava a ser tabu, também pode ter contribuído para

essa convicção. Em linguagem militar pode dizer-se então que, face à

iniciativa do Movimento de elaborar um Programa próprio, o livro «Por-

tugal e o Futuro» terá funcionado objectivamente como uma manobra de

diversão, independentemente da vontade de qualquer dos intervenientes.

Deste modo, o rumo e o momentum que a operação adquiriu divergiram

estrondosamente do que, no limite, seria expectável pelo próprio Regime

e que, em boa medida, seria também o que era desejado. Incluindo por

parte de alguns sectores intervenientes no próprio Movimento.

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FORÇAS ARMADAS: UM ESTADO ESPECÍFICO

O Movimento dos Capitães, nascido por questões estatutárias e corpo-

rativas em meados de 1973, vem crescendo e afirmando-se mais e mais

em cada dia que passa, adquirindo nos finais desse mesmo ano um cariz

claramente político e antirregime. Esta evolução é uma consequência

direta de uma guerra em três frentes, que há mais de uma dúzia de anos as

Forças Armadas vinham suportando, em condições internas e externas

cada vez mais adversas.

Perguntar-se-á por que razão o regime do Estado Novo, – que fora

sobrevivendo e consolidando-se ao longo de mais de quarenta anos, desde

as revoltas militares imediatamente posteriores ao 28 de Maio de 1926,

passando pela tensões provocadas pela guerra civil de Espanha, logo em

1936 marcada internamente pela “Revolta dos Marinheiros”, assim como

pela 2.ª Grande Guerra e o balouçar no interior do regime e particular-

mente nas Forças Armadas entre germanófilos e anglófilos, e ainda pelas

pseudo eleições para a presidência da República de 1948, de 1953 e,

principalmente, as de 1958, e as correspondentes encenações de eleições

de deputados à Assembleia Nacional, sem esquecer a Revolta Militar

conhecida como “da Mealhada”, ainda em 1946, o início da guerra em

Angola em 1961, seguido das movimentações da cúpula militar, encabe-

çada pelo Ministro da Defesa, general Botelho Moniz e a que não foi

estranho o recém-cessado Presidente da República, marechal Craveiro

Lopes, procurando uma saída política para o conflito que se vislumbrava

no horizonte, todo o mal-estar gerado nas Forças Armadas pelo processo

disciplinar em volta da queda do Estado Português da Índia, em finais

desse mesmo ano, seguido poucos dias depois pelo “golpe de Beja”,

liderado por oficias do Exército e depois pelo desvio do “Santa Maria” –

não havia criado e consolidado um sistema de autodefesa que prevenisse e

limitasse qualquer movimentação vinda do interior das Forças Armadas.

A resposta pode ser encontrada em dois planos: um, no plano da es-

trutura legal das Forças Armadas Portuguesas que separava o foro militar

do foro civil, o que se traduzia num exclusivo Código de Justiça Militar,

com os seus próprios Tribunais Militares; outro, de carácter, que designa-

remos por militar-corporativo, o qual ao longo dos tempos foi induzindo

à criação de um espírito de corpo próprio da condição militar, conduzindo

à plena e generalizada interiorização entre os seus elementos de que os

problemas militares se resolvem, por princípio, internamente à própria

estrutura.

Podem apontar-se alguns exemplos já no século XX: todo o complexo

período da 1.ª República, no qual os militares, de um ou de outro lado,

irão ter um papel politicamente determinante; a participação ativa das

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Forças Armadas na 1.ª Grande Guerra, nos teatros de Angola, Moçambi-

que e França, bem como no Atlântico; o 28 de Maio de 1926 e a subse-

quente Ditadura Militar, precursora do Estado Novo, que irão reforçar o

protagonismo da Forças Armadas como “Pilar da Nação”, ideia que

politicamente foi sempre apresentada ao país por aquele, pesem os dissa-

bores que as mesmas Forças Armadas foram protagonizando em todo o

período, com as várias revoltas ou mesmo tomadas de posição da supe-

restrutura militar, as quais são sobretudo acentuadas nos finais dos anos

trinta e incomodam sobremaneira o chefe do Governo.

Na mesma linha de entendimento, a 2.ª Grande Guerra, mau grado o

balouçar da orientação política do Governo entre um e outro bloco belige-

rante, a entrada na NATO e, por fim, a Guerra em África, acabam por

criar condições para a estruturação e envolvimento a fundo das Forças

Armadas na sua missão específica, menos virada para a política, e que

tinha caracterizado o primeiro e parte do segundo quartéis do século XX

conduzindo a que o Exército, na década de 30, se sentisse “debaixo de

fogo”51 e a que, pacificamente, “regressasse a quartéis” no plano político

interno.

A participação pródiga do oficialato em postos da administração

pública, quer metropolitana, quer ultramarina e mesmo na administração

do tecido empresarial, foi uma das formas encontradas para acalmar

algum recalcitrante e, sobretudo, para compensar serviços prestados, e foi

um dos instrumentos usado por Salazar para “meter os militares nos

quartéis”, dedicados ao seu múnus específico.

Não foi por acaso que a PVDE, depois PIDE e, a partir de 1969, DGS,

sempre se absteve oficialmente de tratar assuntos respeitantes aos milita-

res do Quadros Permanentes. Os casos em que oficiais, sargentos e

mesmo praças caíram debaixo da alçada directa da polícia política, so-

mente sucederam após a demissão desses militares dos respectivos qua-

dros, naturalmente por decisão e sob responsabilidade da cúpula militar.

Quando, a partir de 1961, com a guerra em África, se dá um aumento

crescente das necessidades de recrutamento e da consequente necessidade

de formação de oficiais e de sargentos do Quadros de Complemento, os

chamados milicianos, e porque, entretanto, a agitação estudantil, sobretu-

do dentro das universidades se incrementou enormemente, tendo como

um dos vetores principais a oposição à guerra colonial, a polícia política

começou a transmitir para os estados-maiores dos Ramos informações

sobre os novos recrutas. Contudo, na maioria dos casos conhecidos, os

próprios ramos, pela necessidade de pessoal que a guerra impunha, aca-

51 FARIA, Telmo, Debaixo de Fogo! Salazar e as Forças Armadas (1935-41),

Edições Cosmos, Instituto de Defesa Nacional, Lisboa 2000.

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bavam por fazer vista grossa a essas informações. São conhecidos despa-

chos do Ministro da Marinha, almirante Manuel Pereira Crespo, tomando

conhecimento das informações de suspeição política remetidas pela DGS,

acerca de cadetes recém-incorporados nos cursos da Reserva Naval,

portanto a frequentar o curso de oficial, em que aquele se limitava a indicar

que não lhes fossem atribuídos destinos de maior responsabilidade.

Mesmo quando, no âmbito do Pacto Ibérico, o delegado da 2.ª Repar-

tição do EME, em informação interna de 16 de Novembro de 1967 e na

sequência de encontro em Madrid com os Serviços de Informação do

exército espanhol, preconizava a adopção de métodos usados por aqueles

serviços para controlo ideológico, concretamente “a necessidade imperio-

sa de reforçar o sistema de contra-subversão no nosso Exército – não é

com base na 2.ª Rep/EME que se conseguirá combater a infiltração revo-

lucionária que, com ritmo crescente, se desenvolve entre os militares”52 –

o sistema de autoproteção interna dentro do Exército português, atrás

referido, foi alterado.

Entretanto, no início dos anos sessenta, cinco fatores vão-se conjugar

para alterar a acalmia que o período pós-guerra, com a entrada na NATO

em 1949 e nas Nações Unidas, ainda que somente em 1955, tinham permi-

tido: (I) no plano internacional o processo descolonizador, que tinha sido

iniciado com o fim da 2.ª Grande Guerra, e que naturalmente começa,

logo em 1955, a fazer-se sentir em Portugal em torno do Estado Português

da India e, a partir de 1961, em Angola e, sucessivamente, na Guiné e, em

Moçambique, que conduziu a um isolamento de Portugal, mesmo junto

dos países ocidentais seus aliados; (II) uma guerra colonial em três fren-

tes, com implicações internas e externas de toda a ordem, que obrigava ao

recrutamento de todo o contingente nacional masculino anual, imediata-

mente seguido da sua mobilização para os teatros de guerra, em comis-

sões de pelo menos dois anos, conforme a regra geral; (III) a emigração

descontrolada, atingindo uma dimensão demográfica apreciável e cha-

mando a atenção dos que ficam sobre a situação de penúria do país e a dos

que partem para uma nova visão do mundo; (IV) a contestação uni-

versitária, de cariz marcadamente político e antirregime; (V) finalmente, o

baixo nível socioeconómico nacional e a falta de liberdades democráticas,

que uma cada vez mais ampla camada da população percebia e sentia,

criaram o ambiente propício à necessidade de uma mudança profunda.

Que algumas cúpulas militares tinham consciência da situação interna

provocada pela guerra é ilustrada pela seguinte nota do então comodoro

Manuel Pereira Crespo, retirada dos tópicos do seu “Ciclo de Lições de

52 TÍSCAR, María José, O Pacto Ibérico, a Nato e a Guerra Colonial, Imprensa

Nacional-Casa da Moeda, Instituto de Defesa Nacional, Lisboa, 2014, pág. 250.

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Estratégia”, quando trata da Estratégia da Contra Subversão e a propósito

dos “meios a utilizar na manobra da contra subversão: “Não exagerar a

austeridade. Prosseguir com o desenvolvimento económico. Desgaste dos

militares dos Quadros Permanentes.”53

É neste contexto, já estudado e bem conhecido, que vai aparecer, em

meados de 1973 o “Movimento dos Capitães”, crismado pelo General

Spínola, nas vésperas do 25 de Abril, de “Movimento das Forças Arma-

das”, após ter conhecimento do projeto final do Programa, no qual o Movi-

mento dos Capitães se autointitulava “Movimento dos Oficiais das Forças

Armadas”(MOFA) e designava por “Diretório Militar” o conjunto dos sete

oficiais cúpula militar do Movimento, que veio a tomar a designação de

“Junta de Salvação Nacional”, alteração também devida a Spínola.

Consequência daquela maneira de estar, quer os processos levantados

aos oficiais do Movimento indiciados por atividades ilícitas, as quais iam

desde o serem portadores de panfletos, à pertença a uma rede clandestina,

com os nomes dos responsáveis e respectivos delegados na Região Mili-

tar de Coimbra, até mesmo ao conhecimento pelo regime da existência de

um determinado oficial superior que preconizava um golpe militar e para

a concretização do qual oferecia ao Movimento os serviços do seu bata-

lhão prestes a embarcar para o Ultramar, as punições eram de forma geral

concretizadas através do afastamento dos militares visados para unidades

mais ou menos distantes das suas unidades atuais, sem, em princípio,

haver maiores consequências disciplinares. Mesmo os militares detidos

no Forte da Trafaria, na consequência do 16 de Março54, estavam sujeitos

a um sistema de detenção que poderemos considerar o normal em qual-

quer caso de castigo disciplinar corrente, aliás nem sequer houve tempo

para formular qualquer tipo de acusação.

É bem ilustrativa do relacionamento interno dentro da estrutura mili-

tar, a missiva do General Comandante de uma Região Militar dirigida ao

Subsecretário de Estado do Exército: “Ainda em relação ao documento da

«rede do Movimento» é de salientar a carta que me dirigiu o General

Franco Pinheiro, pedindo-me a anulação das transferências dentro da

Região Militar de Coimbra, carta que vinha acompanhada de declarações

de fidelidade de alguns oficiais. Acedi, prontamente, e comuniquei a

anulação das transferências ao general Ajudante-General”.55

53 CRESPO, Comodoro Manuel Pereira, Ciclos de Lições de Estratégia, Instituto

Superior Naval de Guerra, Lisboa, 1968, pág. 83.

54 Ver Anexo XIV, Circular n.º 3/74 de 11ABR74, assinada por “A COMISSÃO”,

AHM/FAC 10.01.

55 LEMOS, Viana de, “Duas Crises”, Edições Gente Nova, Lisboa – 1977, pág. 84.

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O P E R A Ç Ã O V I R A G E M H I S T Ó R I C A 59

O SISTEMA IBÉRICO DE ALERTA FUNCIONOU

Embora sem remeter explicitamente para o Plano Segurança Interna,

refira-se a existência de três circuitos de comunicações ligando Portugal e

Espanha, destinados à troca de avisos entre os dois governos, em casos da

alteração da ordem interna em um deles. Estes circuitos haviam sido

criados em 1971, no marco das decisões tomadas nas Conferências do

Estados-Maiores Peninsulares, as quais deram corpo ao Tratado de Ami-

zade e Não-Agressão de 1939, conhecido como Pacto Ibérico56.

Os circuitos, operados pelas respectivas Marinhas, ligavam Ferrol ao

Porto (Estação Radionaval da Boa Nova); Cádis a Sagres (Estação Ra-

dionaval de Sagres), sendo estes operados em TSF/morse e um terceiro,

entre Lisboa e Madrid, ligando as autoridades militares dos três Ramos

das Forças Armadas dos dois países ibéricos, destinado à passagem de

tráfego exclusivamente militar ligando o Centro de Comunicações do

Estado-Maior da Armada Espanhola, em Madrid e o Centro de Comuni-

cações da Armada, em Lisboa, operado através de teleimpressoras, dis-

pondo de facilidades autocripto e usando como veículo de comunicação

os meios de transmissões da defesa aérea peninsular57.

Refira-se que na manhã de 25 de Abril de 1974 o circuito Cádis-Sagres

foi acionado do lado espanhol perguntando pela ocorrência de perturba-

ções em Portugal. A referida pergunta foi encaminhada desde Sagres à

Estação Radionaval de Algés que, por sua vez, a encaminhou para o

Centro de Comunicações da Armada, tendo desde esta sido mandado

responder não haver qualquer emergência, nem necessidade de apoio …

ALCORA – O PLANO ESTRTÉGICO QUE O MFA IGNORAVA

Na mesma altura em que a Defesa Nacional antecipava o aparecimento

de uma 4.ª frente de guerra (esta na Metrópole), começa partir desse

mesmo ano de 1969, a tomar forma o denominado “Exercício Alcora”58,

formalizado em Pretória, em Outubro de 1970. Uma nova perspectiva

estratégica para a guerra surge no horizonte, não somente pelas melhores

condições materiais para fazer a guerra em África, mas, sobretudo, pela

criação de um “Bastião Branco” que iria necessariamente desembocar em

56 Ver TÍSCAR, Maria José, O Pacto Ibérico, a NATO e a Guerra Colonial, Imprensa

Nacional-Casa da Moeda, Instituto de Defesa Nacional, Lisboa, 2014

57 Um sistema de comunicações por micro-ondas interligava os centros de alerta,

deteção e condução da interceção aérea de Lisboa a Madrid.

58 Ver AFONSO, Aniceto e GOMES, Carlos de Matos, ALCORA, O Acordo Secreto

do Colonialismo, Divina Comédia, Lisboa, 2013 e BARROSO, Luís, SALAZAR,

Caetano e o “Reduto Branco”, Fronteira do Caos, Porto, 2012.

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duas novas Rodésias (Angola e Moçambique). Na Guiné, a quase Ilha de

Bissau poderia vir a converter-se numa nova Dien Bien Phu, pouco custosa

em homens e material, suficientemente duradoura para permitir alimentar

os noticiários graças à resistência dos seus heróicos defensores, enquanto a

situação nas colónias importantes evoluía ao sabor dos novos tempos. Os

mísseis Crotale já adquiridos à França, via África do Sul e os prometidos

Red Eye pelos Estados Unidos, via Israel, no rescaldo do Yom Kipur, iriam

facilitar a eventual necessidade de defesa da Guiné contra eventuais

ataques aéreos, mais temidos que, de facto, possíveis, como os tempos se

haviam de encarregar de demonstrar (a invasão de Conacri, em 1970 –

«Operação Mar Verde», já havia mostrado algo).

Entretanto, e sem que o capitães o conhecessem, ou dele tivessem

consciência, o Plano Alcora ia criando as condições que necessariamente

iriam fazer desembocar, a curto prazo, Angola e Moçambique em novas

Rodésias, mas cujo destino de falência já estava marcado, como se veio a

demostrar, duas décadas depois. Este plano ALCORA poderia ter sido a

saída que, contrariamente ao que se dizia e ainda se diz, o Regime procu-

rava para o nó górdio em que a guerra colonial o metera. Era, como os

tempos (curtos) vieram a demonstrar uma saída sem futuro, mas em 1974,

não fora o 25 de Abril, poderiam estar criadas novas condições estratégi-

cas que não teriam permitido a solução que aquele criou.

O facto da cúpula do Movimento dos Capitães ter decidido, que era

aquele o momento de ir em frente, permitiu que Portugal avançasse no

sentido do progresso.

“Eram 15 horas e 43 minutos”.

Pela voz do Presidente da Assembleia Nacional, o Estado Novo, eram

15 horas e 43 minutos, da tarde do dia 25 de Abril de 1974, encerrava em

sede própria – e para sempre! – a sua então já demasiada longa vida. Para

trás ficavam dezenas de anos de obscurantismo, pobreza, repressão do

pensamento e das liberdades do povo português, envolvido numa guerra

colonial cuja saída e fim ele próprio não vislumbrava.

Em jeito de certidão notarial do enterro do Estado Novo, incluímos

neste trabalho a cópia das notas taquigráficas da última sessão da Assem-

bleia Nacional59, encerrada pelo seu Presidente, ao acabar de proclamar

aos 41 deputados presentes que, “Tal como noutra terra e noutras cir-

cunstâncias, muita gente espera de nós que cumpramos o nosso dever”.

Cheio de confiança e certezas, o ainda Presidente marcou nova sessão

para o dia seguinte.

59 Ver Anexo VII, AHM/FAC 10.01.

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“Está encerada a sessão”, proclamou!

“Eram 15 horas e 43 minutos.”!

Como a História demonstrou nunca mais a Assembleia Nacional rea-

briu.

A Missão do Movimento das Forças Armadas tinha sido cumprida,

com glória.

Algumas semanas depois, a Comissão Coordenadora do Programa,

convidada a abandonar o Palácio de Belém, para onde seguira desde a

Cova da Moura nas águas do Presidente da República, lá foi instalar a sua

mais que de campanha infraestrutura, nos locais da antiga Câmara Corpo-

rativa, não sem alguma hesitação do ainda Secretário Geral da já extinta

Assembleia Nacional, Dr. Paiva Brandão que, abstraído de tudo e esque-

cido de todos, ali se mantinha em “funções”, firme no cargo, embora a

partir daquele dia só o tempo necessário de o exonerar em definitivo.

NOVEMBRO DE 1975: A LEI 2084 É ACCIONADA

E, como nota final a esta introdução e porque a Lei 2084 serviu de

pano de fundo para a sua elaboração, não queremos deixar de referir que,

por ironias da História, dezanove meses volvidos após o 25 de Abril, em

plena Revolução dos Cravos, essa mesma Lei, que os ideais do 25 de

Abril plasmados no seu Programa, pareciam haver remetido para uma

oportuna revisão ou revogação que, “de jure”, somente viria a acontecer

anos mais tarde, foi retirada da gaveta no dia 25 de Novembro de 1975 e

posta em prática para legalizar a declaração do Estado de Sítio60 na área

da Região Militar de Lisboa, por um período de uma semana.

EPÍLOGO

Vemos, assim, que a Operação “VIRAGEM HISTÓRICA”, consegue, a

surpresa tática relativamente à data do seu desencadear mas, fundamen-

talmente no respeitante ao fator “Relação de Forças”, este é esmagadora-

mente favorável ao Movimento.

De facto, em 1974, o regime vigente tinha perdido todo o apoio, e

mesmo, permitimo-nos afirmar, perdido o norte!

60 O “estado de sítio na área da Região Militar de Lisboa, com suspensão das garan-

tias constitucionais, assumindo as autoridades militares a superintendência sobre

as autoridades civis e serviços de segurança nos termos da Base XXXI da lei

n.º 2084, de 16 de Agosto de 1956”, foi decretado pelo Decreto n.º 670-A/75, de

25 de Novembro, tendo, por força do Decreto n.º 674-B/75, de 2 de Dezembro, o

mesmo terminado às “5 horas do dia 2 de Dezembro de 1975”. Ver Anexo XV.

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É Marcello Caetano que afirma no seu “Depoimento” após analisar o

“16 de Março” que a “… A revolução veio de surpresa, e conduzida desta

vez com toda a eficiência em 25 de Abril”61; tal afirmação sobre a surpre-

sa corrobora o contexto que deixámos atrás expresso. Não há motivo para

pensar que o antigo Presidente do Conselho não estaria convicto de tal,

quando o escreveu.

É neste mesmo contexto de surpresa tática e estratégica (no sentido

que atrás lhe demos) que o então ministro da Defesa Nacional pode

afirmar: “Inesperadamente, na madrugada de 25, surgiu a nova tentativa

que, desta vez, teve êxito – sem quaisquer entraves. Não tive qualquer

indício ou informação de que uma tentativa pudesse ocorrer naquele dia

ou em data próxima. E tanto quanto sei o mesmo sucedeu com todos os

membros do governo.”62

À parte as ações do brigadeiro Junqueira dos Reis, o tenente-coronel

Ferrand d’Almeida e do major Pato Anselmo, tentando que os carros de

combate do Regimento de Cavalaria N.º 7 atuassem, ao dirigi-los, num

movimento em pinça, para o Terreiro do Paço, através das paralelas Rua do

Arsenal e Avenida Ribeira das Naus, o que não conseguiram por oposição

das próprias tripulações dos carros, ninguém mais terceu armas pelo regime.

A nível governamental, somente a ordem dada pelo ministro da Defesa

Nacional, já desde Lanceiros 2, na Calçada da Ajuda, manhã adiantada e

após abandonar acompanhado de outros ministros militares e do CEMGFA,

o Ministério do Exército, no Terreiro do Paço, devido ao cerco imposto

pelas forças da EPC, talvez seja a única ordem de oposição séria vinda de

toda a estrutura da Segurança Interna.

Em jeito de epílogo e dentro do critério que orientou este trabalho de

dar também voz aos vencidos, sempre que isso nos foi possível, transcre-

vemos o relato do então Ministro da Defesa Nacional sobre os aconteci-

mentos, ele que “estava lá”, mas que, por estar no outro lado da barreira,

nos parece muito importante. Expressamente escreveu Silva e Cunha:

“Chegado àquela Unidade [Lanceiros 2] telefonei para o Carmo e avisei o

Chefe do Governo do que se passava. Em seguida, liguei para o Estado-

-Maior da Armada e disse ao seu chefe, Almirante Ferreira de Almeida,

que ordenasse à fragata que cruzava em frente da Praça do Comércio que

fizesse alguns tiros de aviso sobre as forças revoltosas que ali se encon-

travam. Fiquei a aguardar. Pouco tempo depois telefonava-me o Doutor

Marcello Caetano que, mal-humorado, me disse que o Almirante Ferreira

de Almeida lhe falara pelo telefone, dando-lhe conhecimento da ordem

61 CAETANO, Marcello, op. cit. Pág. 204

62 CUNHA, J. Silva, op. cit. Pág. 121 e 122, onde transcreve afirmações de

CRESPO, M. Pereira, em op. cit. pág. 139 e 140.

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recebida e perguntando se a devia cumprir. Confirmei ter dado a ordem.

O Presidente do Conselho limitou-se a perguntar-me quem estava a

orientar as operações, não se pronunciou sobre a minha decisão e disse-

-me que queria que o Ministro do Interior fosse para o Carmo, onde

também se encontrava o Ministro dos Negócios Estrangeiros Dr. Rui

Patrício. O Dr. Moreira Baptista assim fez, acompanhado pelo Almirante

Tenreiro, utilizando uma viatura da Unidade. Depois da partida de ambos

pedi ao Ministro da Marinha que falasse ao Almirante Ferreira de Almei-

da para saber se a minha ordem tinha sido cumprida. A informação

recebida foi de que a fragata só tinha a bordo granadas de salva…”63.

Para além de se deduzir através deste depoimento alguma hesitação no

cumprimento da ordem do Ministro da Defesa, quer por parte do próprio

CEMA, quer mesmo, da oportunidade daquela que se vislumbra no silên-

cio do próprio Presidente do Conselho sobre matéria tão magna e acerca

da qual o Almirante procurara confortar-se junto dele, tentando segurar-

-se em relação ao que lhe havia ordenado Silva Cunha, tudo isto a par de

uma posição completamente passiva do Ministro da Marinha, o facto é

que a ordem haveria de ser neutralizada pelos oficiais de Marinha do

Movimento, a partir das comunicações originadas em terra, quer no

Centro de Comunicações da Armada, quer na Esquadrilha de Submari-

nos, mas especialmente pelos oficiais da guarnição da Gago Coutinho,

que se recusaram terminantemente a cumprir a ordem de fazer fogo.

Convém determo-nos em mais dois excertos das memórias do ministro

Silva Cunha.

Como se transcreveu atrás, o grupo de ministros dirigiu-se desde o

Ministério da Marinha, onde saiu através da Casa do Marinheiro da Arma-

da, de autocarro, para o Regimento de Lanceiros n.º 2, na Ajuda. Aí

chegados, o Ministro da Defesa ordenou que um helicóptero se deslocas-

se ao Carmo, para recolha do Presidente do Conselho, operação que não

foi possível executar por impossibilidade do helicóptero aterrar no Con-

vento, tendo regressado ao Regimento de Lanceiros 2, donde partira.

Passado algum tempo do grupo ali se encontrar refugiado, a conselho do

comandante da Unidade, e porque se verificava alguma agitação entre os

seus militares, o grupo de ministros saiu para o Comando da Região

Aérea, local de concentração previsto em casos de emergência, como

atrás se referiu. Fizeram-no em automóvel uns, e outros no helicóptero,

que se mantinha às suas ordens.

E prossegue o Ministro da Defesa o seu relato: “Entretanto, outros

acontecimentos se haviam desenrolado… O Doutor Marcello Caetano

continuava cercado no Carmo pelas forças revoltosas. Estas, por sua vez,

63 CUNHA, J. Silva, op. cit., pág. 126.

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estavam bloqueadas pelos tanques de Cavalaria 7 e pelas autometralhado-

ras da G.N.R.. Os elementos da Direcção-Geral de Segurança estavam

concentrados na Rua António Maria Cardoso. O comandante da coluna

revoltosa enviara um ultimato às forças que se encontravam no Quartel

do Carmo, para que se rendessem e, perante a falta de resposta, mandara

abrir fogo com pontarias altas sobre o quartel.

Quando cheguei a Monsanto telefonei para o Carmo a fim de avisar o

Presidente do Conselho de onde me encontrava a pedir instruções.

Transcrevo o que a esse respeito escrevi no meu anterior livro a que

nada tenho de alterar: “…depois de, com os Ministros militares e o Chefe

do Estado-Maior General das Forças Armadas, me ter instalado no

Comando da 1.ª região Aérea em Monsanto, entrei em contacto com o

Comando-Geral da Guarda Nacional Republicana, no Carmo, onde por

motivos que ignoro se encontrava o Chefe do Governo. Falei com o

Comandante-geral, General Adriano Pires, pedindo-lhe que me pusesse

em ligação com o Doutor Marcello Caetano, a fim de lhe dar conta da

situação e receber instruções. Disse-me que o Chefe do Governo já estava

em conversações com o General Spínola e que, por isso, nos devíamos

abster de qualquer ação. Pouco depois, este general telefonou para o

Comandante da Região Aérea, General Rui Tavares Monteiro, dizendo-

-lhes que o Ministro da Defesa, os Ministros Militares, bem como todos

os oficiais-generais que ali se encontravam deviam aguardar que uma

escolta os fossem buscar para serem levados sob prisão para o Quartel de

Engenharia 1, na Pontinha. Disse mais que eu me deveria preparar para

seguir, nessa mesma noite, para o Funchal64, juntamente com os Presiden-

tes da República e do Conselho, o Ministro de Exército, General Andrade

e Silva, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Dr. Rui Patrício, o Minis-

tro do Ultramar, Dr. Baltasar Rebelo de Sousa, e o Ministro do Interior,

Dr. César Moreira Baptista.

Cessava, pois, toda a possibilidade de resistência. O Doutor Marcello

Caetano, por sua exclusiva decisão, entregara o poder ao General Spínola.

Não fui consultado, não foi consultado, que eu saiba, nenhum dos

outros membros do governo. Não foi consultado o Chefe do Estado.”65

Das Forças paramilitares (GNR, PSP e GF) podemos concluir que, não

tendo definido prévia e oficialmente uma neutralidade, ativa ou passiva,

perante o Movimento, que conheciam, o facto é que à parte alguma

movimentação, mais para Governo ver, do que por convicção, não atua-

ram66.

64 Ver “Guia de Entrega dos Ex-Membros do Governo” – Anexo IX.

65 CUNHA, J. Silva, op. cit., pág. 127, 128 e 129.

66 Tem interesse transcrever o ofício DGS 913/74 D.S. Inf., de 22 de Abril de 1974,

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A LP, foi aquilo que já se conhecia, um bando de reformados, ineptos

e inúteis, de quem nem o próprio Regime queria saber.

Quanto à PIDE/DGS, a nível das cúpulas, algumas “compreensões”,

“camaradagens” e, mesmo “fidelidades”, para com os generais “revolto-

sos” e “chefiando” o Movimento, foram fatores suficientemente fortes

para provocar cisões no interior da corporação, no fundo muito à seme-

lhança da que se veio a verificar no interior das Forças Armadas, nos

níveis superiores, principalmente, aquando da derrota do Movimento em

16 de Março e imediatamente após a vitória deste, em 25 de Abril.

Assim, em 1974, o Plano de Segurança Interna, apesar de algumas boas

vontades e dos anos que já levava exercitando-se, comportou-se como um

tigre de papel, perante a surpresa tática e estratégica da operação “VIRA-

GEM HISTÓRICA”.

CONJECTURANDO

Finalmente, um pouco de exercício mental sobre o que poderia acon-

tecer em Portugal, caso a Operação “VIRAGEM HISTÓRICA” houvesse

falhado, e tendo em conta antecedentes que se constatou como resposta

ao 16 de Março e a situação de guerra no Ultramar. Podemos facilmente

imaginar um Portugal submetido a um estado de sítio, seguramente sem

Marcello Caetano, nem boa parte dos seus Ministros (o número de mi-

nistros exilados no dia seguinte à derrota seria muitíssimo maior do que

aquele que a JSN decretou) e governado por uma Junta Militar, com o

almirante Américo Tomaz, como figura decorativa, devidamente escuda-

da na armação legal que a lei 2084 lhe conferia. Fora assim, na Espanha

de Franco ao terminar a guerra civil, em Abril de 1939. E alguma gente,

saudosamente, assim pensava, em 1974, como logo no decorrer desse ano

de 1974 e, sobretudo por 1975 adiante, se veio a verificar.

Isto na Metrópole. Em África, com o poder político da Metrópole aba-

lado, Angola e Moçambique dariam largas aos seus desejos de “auto-

nomia branca”, sem que lhe faltassem apoios de vizinhos ou outros mais

afastados, e sem que fossem largadas de mão as colónias de Cabo Verde

(estratégico como ponto de trânsito da República da África do Sul) e de

da Delegação de Coimbra da D.G.S., para o Director Geral da D.G.S., Lisboa:

“Tenho a honra de levar ao conhecimento de V. Exa. que segundo notícia chegada

a esta delegação, a Guarda Nacional Republicana e a Polícia de Segurança Pública

estão a receber instrução de armas pesadas. A mesma “fonte”, também, afirma

que, principalmente, a GNR vai receber instrução de “comandos”, no C.I.O.E., em

Lamego. Entretanto, a propósito, já os oficiais do Q. P. do Exército comentam se o

Governo quererá preparar as Forças de segurança para fazer frente ao Exército. A

Bem da Nação, O Chefe da Delegação, Armindo Ferreira da Silva, Inspector-

-Adjunto”. AHM/FAC 02.04. Anexo XII.

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S. Tomé e Príncipe. Em síntese, pôr em prática o já estruturado PLANO

ALCORA, conducente à independência daqueles territórios coloniais e

ficando, assim, fechadas as muralhas geopolíticas do Bastião Branco.

Quanto à Guiné, as forças portuguesas iriam recolher à Ilha de Bissau,

onde ficariam cercadas debaixo de fogo, esperando a evacuação.

Um 25 de Abril um ano depois, teria que ser outro 25 de Abril, com

um panorama geoestratégico, no respeitante às colónias, provavelmente

completamente alterado, com as consequências que tal havia de ter no

panorama nacional português e internacional.