carlos bastide horbach - forma de estado - federalismo e repartição de competências

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  • Forma de Estado: Federalismo e repartio de competnciasState Formation: Federalism and Division of Competences

    Carlos Bastide Horbach

  • SumrioDossier FeDeralismoForma De estaDo: FeDeralismo e repartio De competncias ...................................... 2Carlos Bastide Horbach

    imuniDaDe recproca e FeDeralismo: Da construo norte-americana atual posio Do stF .............................................................................................................................14Fernando Santos Arenhart

    Justia Fiscal, paz tributria e obrigaes republicanas: uma breve anlise Da Dinmica JurispruDencial tributria Do supremo tribunal FeDeral ...........................................34Lus Carlos Martins Alves Jr

    FeDeralismo, estaDo FeDeralista e a revalorizao Do municpio: um novo caminho para o sculo XXi? .........................................................................................................52Antonio Celso Batista Minhoto

    eFeitos poltico-JurDicos Da no institucionalizaDa paraDiplomacia no brasil .........66Gustavo de Souza Abreu

    the management oF public natural resource Wealth ..............................................80Paul Rose

    a (in)competncia Do conama para eDio De normas sobre licenciamento ambien-tal: anlise De sua JuriDiciDaDe .................................................................................... 118Andr Fagundes Lemos

    artigos sobre outros temasteora De la presin tributaria en base a la igualDaD intergeneracional: una perspec-tiva Financiera y tributaria Del caso argentino .......................................................... 135Luciano Carlos Rezzoagli e Bruno Ariel Rezzoagli

    crDito tributrio: garantias, privilgios e preFerncias .......................................... 148Lus Carlos Martins Alves Jnior

    tributrio - o parecer pgFn/crJ 492/2011 e os eFeitos Da coisa JulgaDa inconstitu-cional em Face Da segurana JurDica no estaDo Democrtico De Direito* .............. 174Antnio Frota Neves

  • a segurana JurDica aDministrativa na JurispruDncia Do supremo tribunal FeDeral: uma anlise acerca Dos FunDamentos normativos e Dos argumentos JurDicos nos Jul-gamentos Dos manDaDos De segurana 24.781 e 25.116 .................................................. 195Ana Paula Sampaio Silva Pereira

    avaliao legislativa no brasil: apontamentos para uma nova agenDa De pesquisa so-bre o moDo De proDuo Das leis ...................................................................................229Natasha Schmitt Caccia Salinas

    polticas pblicas, Deveres FunDamentais e concretizao De Direitos ..................... 251Julio Pinheiro Faro

    polticas pblicas De guerra s Drogas: o estaDo De eXceo e a transio Do inimigo schmittiano ao homo sacer De agamben ...................................................................... 271Joo Victor Nascimento Martins

    neW institutions For the protection oF privacy anD personal Dignity in internet communication inFormation broker, private cyber courts anD netWork oF con-tracts .............................................................................................................................282Karl-Heinz Ladeur

    responsabiliDaDe civil Decorrente De erro mDico ....................................................298Edilson Enedino das Chagas e Hctor Valverde Santana

    a atual gerao De energia eltrica segunDo a lgica De mercaDo e sua ainDa carac-terizao como servio pblico .................................................................................... 313Humberto Cunha dos Santos

    empresas, responsabiliDaDe social e polticas De inFormao obrigatria no brasil ..... ........................................................................................................................................333Leandro Martins Zanitelli

    o outro e sua iDentiDaDe: polticas pblicas De remoo e o caso Dos agricultores Do parque estaDual Da peDra branca/rJ .........................................................................350Andreza A. Franco Cmara

    a legitimao Do aborto luz Dos pressupostos Do estaDo Democrtico De Direito ...... ........................................................................................................................................364Terezinha Ins Teles Pires

    Juspositivismo, DiscricionarieDaDe e controle JuDicial De polticas pblicas no Direito brasileiro .......................................................................................................................392Guilherme Valle Brum

    a governana transnacional ambiental na rio + 20 ...................................................406Paulo Mrcio Cruz e Zenildo Bodnar

  • o que uma boa tese De DoutoraDo em Direito? uma anlise a partir Da prpria per-cepo Dos programas ....................................................................................................424Nitish Monebhurrun e Marcelo D. Varella

    normas eDitoriais .........................................................................................................442Envio dos trabalhos: ................................................................................................................................................... 444

  • doi: 10.5102/rbpp.v3i2.2391 Forma de Estado: Federalismo e repartio de competncias1

    State Formation: Federalism and Division of Competences*

    Carlos Bastide Horbach**

    Resumo

    O presente trabalho analisa a estrutura federativa do Estado, em especial a repartio de competncias numa federao. O texto tambm apresenta os

    principais traos da repartio de competncias nos Estados federais ameri-cano, alemo e brasileiro.

    Palavras-chave: Direito constitucional federalismo repartio de com-petncias.

    AbstRAct

    This paper analyzes the federalist structure of the State, specially the division of powers within the federation. It also presents the main aspects of division of powers in American, German and Brazilian federal States.

    Keywords: Constitutional law federalism division of powers.

    1. IntRoduo

    A expresso forma de Estado compreendida tradicionalmente no di-reito constitucional moderno e em especial no direito constitucional brasi-leiro, por fora de seu emprego na Constituio de 1988 como relacionada com a diviso territorial do poder estatal.

    Assim, quando se questiona a forma de determinado Estado, o que se tem em perspectiva o modo como exercido o seu poder soberano no es-

    1 O presente artigo reproduz, com adequaes pontuais, a prova escrita que o autor re-alizou, em 1 de fevereiro de 2013, quando do concurso de ingresso na carreira docente da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo USP (Departamento de Direito do Estado, rea de Direito Constitucional). O concurso compreende trs fases: (1) prova escrita; (2) prova didtica; e (3) julgamento de memorial com prova pblica de arguio. A prova escrita observa as normas que constam do art. 139 do Regimento Geral da USP: (1) a banca examinadora organiza lista de dez pontos, com base no programa do concurso e dela d conhecimento aos candidatos vinte e quatro horas antes do sorteio do ponto; (2) sorteado o ponto, inicia-se o prazo improrrogvel de cinco horas de durao da prova; (3) durante ses-senta minutos, aps o sorteio, permitida a consulta a livros, peridicos e outros documentos bibliogrficos. Portanto, neste contexto de tempo e de pesquisa que o presente trabalho deve ser compreendido, mormente no que tem de sinttico, objetivo e silente. O autor agra-dece as importantes contribuies do Professor Doutor Jos Levi Mello do Amaral Junior.

    * Recebido em 21/05/2013 Aprovado em 30/05/2013

    ** Doutor em Direito do Estado pela USP, Mestre em Direito do Estado e Teoria do Di-reito pela UFRGS, Professor Doutor de Di-reito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo USP, Professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Di-reito do Centro Universitrio de Braslia Uni-CEUB e Advogado. Email: [email protected]

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    pao geogrfico que lhe prprio, com concentrao ou com descentralizao, que se pode dar em diversas

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    Nesse quadro, os livros de direito constitucional so quase uniformes na apresentao das tipologias de forma de Estado, respondendo com modelos tericos pr-definidos pergunta sobre como se reparte o

    poder em um territrio. Tal diviso pode gerar Estados regionais, autonmicos, federais ou confederados; bem como a ausncia de diviso a concentrao, portanto caracterizaria o Estado unitrio.2

    As confederaes so, hoje, uma referncia histrica nos livros de direito constitucional, ainda que alguns autores insistam em mencionar o exemplo suo h muito convolado em federao e outros vislumbrem

    em movimentos de integrao regional o fenmeno redivivo da confederao.3

    Por outro lado, ainda que se possa indicar muitos Estados como unitrios, a moderna gesto pblica impe algum tipo de descentralizao sempre, de modo que o unitarismo puro tambm acaba sendo um modelo ideal. Exemplo disso a Frana, indicada por muitos manuais como exemplo de Estado unitrio,4 mas que apresenta importantes divises territoriais, como os departamentos e as comunas, em cuja diviso de atribuies alguns autores j enxergam traos do princpio da subsidiariedade, conceito naturalmente

    associado ao federalismo alemo.5

    J os Estados regionais como a Itlia , os autonmicos como a Espanha - e os federais como o Brasil so modelos tericos que se aproximam mais realidade das relaes de poder, havendo em relao

    a eles vrios estudos no direito constitucional contemporneo, despertando, cada um deles, inmeros ques-tionamentos de elevado interesse.

    O objeto do presente estudo, porm, mais limitado: a federao. E mais, o federalismo analisado sob um ngulo especfico, qual seja, o ngulo da repartio de competncias, especialmente na Constituio

    brasileira de 1988.

    Para o desenvolvimento desse objeto, a anlise aqui empreendida levar em considerao uma advertn-cia de Konrad Hesse, no seu clebre estudo Estado federal unitrio, de 1962: A falta de uma perspectiva

    sobre o problema da formao do federalismo cria o risco de se obstinar em imaginaes ilusrias, com todas as consequncias que sempre tem o ilusionismo nas perguntas capitais da vida do Estado.6

    Desse modo, para se evitar o ilusionismo de que fala Hesse, ser feito um exame que busca explicitar

    as caractersticas marcantes dos dois modelos federais que sabidamente influenciaram na construo do

    federalismo brasileiro: o modelo norte-americano inspirador do sistema federal desde os albores da Re-pblica e o modelo alemo, especialmente importante na formao das vontades polticas da Assembleia Nacional Constituinte de 87/88.

    Por outro lado, as palavras de Hesse em trecho distinto de seu artigo projetam outro problema a ser enfrentado no presente trabalho. Segundo o clebre autor alemo, o direito constitucional moderno e no muito mudou nos 50 anos subsequentes produo de seu texto caracterizado pela ausncia de refle-xes tericas sobre o federalismo.7

    2 Nesse sentido, entre outros autores, FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves. Curso de direito constitucional. 36. ed. So Paulo: Saraiva, 2010. p. 75 et seq.; e SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. So Paulo: Malheiros, 1999. p. 102 et seq.3 MIRANDA, Jorge. Manual da direito constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 1996. p. 268. Tomo III4 SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. So Paulo: Malheiros, 1999. p. 103.5 BAUDIN-CULLIRE, Frdric. Principe de subsidiarit et administration locale, Paris: L.G.D.J., 1995.6 HESSE, Konrad. Estado federal unitario. Escritos de derecho constitucional, Madrid: Centro de Estudios Polticos y Constitucion-ales, 2011. p. 189.7 HESSE, Konrad. Estado federal unitario. Escritos de derecho constitucional, Madrid: Centro de Estudios Polticos y Constitucionales, 2011. p. 189.

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    Tal constatao faz com que seja imprescindvel para o estudo em andamento o recurso jurisprudncia, o que ser feito por meio da citao de acrdos da Suprema Corte americana, do Tribunal Constitucional Federal alemo e do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Ademais, h de se recorrer, igualmente, exegese

    dos textos constitucionais.

    Por fim, uma ltima advertncia de Hesse: uma teoria do Estado federal deve fazer compreensvel o

    conjunto.8 Ou seja, ainda que aqui o foco seja a repartio de competncias, o exame pressupe viso de sistema, o que impe a anlise, mesmo que breve, de temas genricos relacionados com o federalismo dos ordenamentos sob enfoque.

    A seguir, portanto, ser apresentado um breve conjunto de antecedentes histricos do moderno federa-lismo (item 2), ao qual sero encadeadas anlises do modelo norte-americano (item 3), do modelo alemo (item 4) e do modelo brasileiro (item 5); para que se possa, ao final, apresentar algumas concluses sintticas.

    2. Antecedentes hIstRIcos do modelo fedeRAl

    O recurso abordagem histrica no direito corre, no raro, o risco de simplificaes e deturpaes,

    decorrentes do que se convencionou denominar de anlise evolucionista. Esse tipo de anlise acaba por levar, equivocadamente, compreenso de que a existncia passada de um simples elemento integrante e

    caracterstico de um instituto moderno prova de que esse instituto tem razes remotas, ainda que no se tenha como estabelecer uma real conexo histrica entre os fenmenos.9

    Em tal equvoco parecem incorrer, por exemplo, autores que indicam as ligas formadas pelas cidades--Estado gregas, na Antiguidade Clssica, como antecedentes do federalismo, pois havia ali pura e simples-mente a reunio para defesa de interesses comuns.10

    Igualmente pouco esclarecedora, nessa perspectiva, a indicao do feudalismo como antecedente do federalismo. Isso por que a simples fragmentao do poder poltico e o atrelamento das funes polticas titularidade de direitos patrimoniais que so as duas caractersticas essenciais do feudalismo no levam, inexoravelmente, ao modelo federal. Se assim fosse, os Estados europeus seriam, em gnero, federaes; o

    que definitivamente no ocorre.

    Antecedente histrico especfico na experincia medieval pode ser identificado no feudalismo germni-co, cuja vinculao ao Sacro Imprio impediu as unificaes nacionais dos sculos XV e XVI, gerando uma

    peculiar situao que somente foi equacionada com o modelo federal pela obra de Bismarck, na segunda metade do sculo XIX.

    Essa especial experincia feudal germnica deu oportunidade, at mesmo, para a primeira teori-zao do federalismo, responsvel pela formulao do prprio termo. Nesse sentido, importante a contribuio de Johannes Althusius, que tambm formulou a primeira relao entre o federalismo e o princpio da subsidiariedade, to caro para o moderno federalismo alemo e para o direito comunitrio europeu.11

    Igualmente fruto de uma experincia histrica particular o principal antecedente do moderno federa-lismo, qual seja, a Confederao norte-americana.

    8 HESSE, Konrad. Estado federal unitario. Escritos de derecho constitucional, Madrid: Centro de Estudios Polticos y Constitucion-ales, 2011. p. 190.9 OLIVEIRA, Luciano. No fale do Cdigo de Hamurabi!: a pesquisa scio-jurdica na ps-graduao em direito. Anurio dos Cursos de Ps-Graduao em Direito UFPE, Recife, v. 13, p. 299-330, 2003.10 BARACHO, Jos Alfredo de Oliveira. Teoria geral do federalismo. Belo Horizonte: FUMARC/UCMG, 1982. p. 11 et seq.11 GIERKE, Otto von. Giovanni Althusius e lo sviluppo storico delle teorie politiche giusnaturalistiche. Torino: Einaudi, 1974.

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    Aps a independncia, as antigas colnias britnicas na Amrica do Norte formaram treze Estado sobe-ranos, com constituies prprias que se apresentam como inovadores documentos para o direito constitu-cional, em especial em matria de direitos fundamentais.12

    Esses Estados, porm, por meio dos Artigos da Confederao um verdadeiro tratado luz do direito internacional uma unio relativa, que buscava dar harmonia a suas relaes institucionais e preservar suas soberanias individuais.

    Tal modelo histrico, que vigorou aproximadamente por dez anos, acabou por fracassar ante falhas

    institucionais que so assim sintetizadas por Fernanda Dias Menezes de Almeida: a) o fato de a Unio le-gislar para os Estados e no para seus cidados, sem que houvesse sano para o descumprimento de suas normas; b) a ausncia de um tribunal superior comum; c) a inexistncia de uma poltica comum de defesa; d) a necessidade de atingimento da unanimidade para as deliberaes; e e) a manuteno de um comrcio exterior descentralizado.13

    A tentativa de superar essas falhas, promovendo uma mais perfeita unio, foi cristalizada na Constitui-o da Filadlfia, de 1787, consagradora do moderno modelo federal, que ser a seguir analisado.

    3. modelo fedeRAl noRte-AmeRIcAno

    O modelo federal dos Estados Unidos, plasmado na normatividade da Constituio de 1787, pode ser re-sumido a cinco aspectos principais, que so arrolados por Bernard Schwartz nos seguintes termos: a) unio de unidades autnomas no mais soberanas para fins comuns, mantendo suas peculiaridades, o que se reflete

    no lema norte-americano e pluribus unum; b) diviso de poderes legislativos, sendo expressamente enumerados os do ente novo a Unio e deixando-se o residual para os Estados, ainda que desde logo se tenha estabeleci-do uma interpretao flexvel dessa regra com a teoria dos poderes implcitos, desenvolvida por John Marshall,

    em 1819, no caso McCulloch v. Maryland; c) atuao direta, inclusive sobre o cidado, de cada ncleo de poder no mbito de suas competncias; d) aparelhamento de cada ncleo de poder com instituies polticas prprias, com Executivo, Legislativo e Judicirio; e e) supremacia do poder central na sua esfera de atuao, como logo no incio do sculo XIX decidiu a Suprema Corte no caso Gibbons v. Ogden, sobre transporte fluvial interestadual.14

    Esse arranjo institucional pressupe, para dar garantias aos Estados federados e aos cidados, regras cla-ras, que somente se estabilizam por meio de constituies documentais. Destarte, Karl Loewenstein afirma

    de modo categrico que o federalismo somente possvel por meio de constituies escritas15; constituies escritas essas que apresentem normas sobre separao de competncias.

    O texto da Constituio de 1787 e sua vivncia nas primeiras dcadas do sculo XIX levaram Alexis de

    Tocqueville a afirmar que os deveres e os direitos do governo federal eram simples e bastante fceis de de-finir, por que a Unio fora constituda com a finalidade de responder a algumas grandes necessidades gerais.

    Os deveres e direitos dos governos dos Estados eram, pelo contrrio, mltiplos e complicados, por que seu governo penetrava em todos os detalhes da vida social.16

    Esse quadro descrito por Tocqueville, baseado no texto constitucional, foi lentamente sendo alterado

    pelo law in action para usar a expresso clebre de Roscoe Pound , o qual evidencia uma dinmica cen-tralizadora, a partir at mesmo dos j mencionados casos McCulloch v. Maryland e Gibbons v. Ogden.

    12 DIPPEL, Horst. Histria do constitucionalismo moderno. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2007. p. 4 et seq..13 ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competncias na Constituio de 1988. 4. ed. So Paulo: Atlas, 2007. p. 8-9.14 SCHWARTZ, Bernard. O federalismo norte americano atual: uma viso contempornea. Trad. Elcio Cerqueira. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1984, p. 10.15 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la constitucion. 2. ed. Barcelona: Ariel, 1970. p. 191.16 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na Amrica. 4. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998. p. 93.

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    Tal tenso entre centralizao e descentralizao colocou a Suprema Corte, como tribunal da federao, na posio de principal rbitro da repartio de competncias; um verdadeiro guarda de fronteiras do sistema federal, para se utilizar a imagem de que lanou mo Campos Salles, ao descrever a conformao do modelo brasileiro de Justia federal.

    O primeiro grande movimento de centralizao se verifica nos Estados Unidos nos anos anteriores

    Guerra Civil, o que leva a uma reao dos juristas do Sul, a qual tem como exemplo mais significativo a teo-ria da nulificao, desenvolvida por Calhoun. Segunda tal concepo, os Estados teriam o poder de anular,

    por meio de seus prprios Poderes Legislativos, as leis da Unio s quais se opusessem, deixando, portanto,

    de aplic-las em seus territrios.17 Esse entendimento, que por razes bvias no foi acatado, est nova e pitorescamente em discusso nos Estados Unidos, uma vez que a legislatura do Estado do Texas iniciou

    recentemente a discusso de uma emenda Constituio local que, se aprovada, reconhecer ao Legislativo estadual o poder de nulificao sobre leis federais.

    O segundo movimento de centralizao se verifica com o aumento da atuao federal, demandada pela

    crise que se seguiu quebra da Bolsa de Nova York, em outubro de 1929. O New Deal proposto por Frank-lin D. Roosevelt, a partir de 1933, exigia a expanso das competncias da Unio, em especial no campo da

    regulao econmica.

    Esse aumento de atribuies decorreria, principalmente, de uma interpretao mais flexvel, por parte

    da Suprema Corte, da competncia da Unio para legislar sobre comrcio interestadual, a chamada commerce clause da Constituio de 1787.

    De incio, a Suprema Corte manteve-se atrelada a sua jurisprudncia descentralizadora, levando decla-rao de inconstitucionalidade de vrias leis federais veiculadoras de programas econmicos e sociais do New Deal.

    Houve, porm, uma mudana de orientao decorrente do grande arranjo poltico que se seguiu rejeio, pelo Senado americano, da proposta presidencial de remodelao da Suprema Corte, com o acrscimo de um novo juiz para cada magistrado integrante do tribunal que contasse com mais de setenta anos, no que ficou conhecido como

    o Court Packing Bill.18

    Aps 1937, portanto, iniciou-se um ciclo de centralizao por meio da jurisprudncia da Suprema Corte sobre a clusula de comrcio, que chegou at mesmo a considerar constitucional, por exemplo, que uma lei

    que proibia a plantao de trigo para consumo prprio, pois tal prtica poderia, ainda que remotamente, afetar o comrcio interestadual do produto.19

    Tal exerccio foi reforado pela Corte Warren, a partir da dcada de 50 do sculo passado, e mantido pela

    Corte Burger nos anos 1970 e no incio dos anos 80. Com a investidura de William Rehnquist na funo de Chief Justice iniciou-se um deliberado movimento de regresso aos poderes estaduais; que somente tem surtido efeito aps as indicaes do Presidente George W. Bush para o tribunal, j no perodo, portanto, da Corte Roberts.20

    A disputa sobre a commerce clause, alis, estava presente no mais tormentoso caso julgado pela Suprema Corte no ano de 2012, relacionado com o Affordable Care Act, que normatiza os planos de assistncia sade

    17 A teoria de John C. Calhoun sintetizada no texto South Carolina Exposition and Protest, produzido em 1828, durante a chamada Crise da Nulificao, que envolveu a disputa entre o governo da Unio e o do Estado da Carolina do Sul em torno de tarifas impostas pelo parlamento federal.18 Para uma interessante anlise do episdio, ver: CARO, Robert. Master of the Senate. New York: Vintage Books, 2002. p. 54 et seq.19 Sobre esse caso, Wickard v. Filburn, julgado pela Suprema Corte em 1942, ver: REHNQUIST, William H. The Supreme Court, Kindle edition. New York: Vintage Books, 2001. position 2405 et seq.20 Para um exame jornalstico, as juridicamente preciso, desse movimento nos perodos de Rehnquist e Roberts como Chief Justice, ver os interessantes livros de TOOBIN, Jeffrey. The Nine. Inside the secret world of the Supreme Court, New York: Anchor Books, 2007. e The Oath. The Obama White House and the Supreme Court, New York: Doubleday, 2012.

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    nos Estados Unidos. Novamente se discutia se o mandado legal para que os indivduos comprassem segu-ros de sade poderia, ou no, ser imposto pela Unio com base na competncia para regular o comrcio interestadual.

    A Corte, num lance de engenharia jurdico-poltica do Chief Justice Roberts, concluiu que a commerce clause no autorizava tal mandado o que um significativo avano para as correntes descentralizadoras , mas o

    manteve com base no poder federal para instituir tributos; o que, mesmo sendo uma concepo questionvel, livrou o tribunal de uma crise institucional, que seria somente comparvel aos episdios anteriores a 1937.

    A experincia norte-americana, portanto, por mais claro que seja o texto sobre repartio de competn-cias na Constituio de 1787, demonstra a necessidade de implantao de regras mais elaboradas de coorde-nao de atribuies entre os nveis federados, para que no se tenha uma variao constante no tratamento da matria.

    Essa evoluo se tem na experincia alem, com a passagem do federalismo dual para um federalismo de coo-perao.

    4. modelo fedeRAl Alemo

    O federalismo alemo tem causas materiais e artificiais, como bem anota Dieter Grimm.21 As causas materiais j foram indicadas no item 2, relacionadas com o Sacro Imprio Romano-Germnico e com a unificao promovida por Otto von Bismarck sob a gide da dinastia dos Hohenzollern.

    Essa unificao fez com que os antigos setenta e dois Estados autnomos que compunham a Alemanha

    preservassem muitos de seus poderes, sendo o Reich uma estrutura voltada para as relaes internacionais e para a defesa coletiva, tendo o Kaiser, inclusive, o sugestivo ttulo de Supremo Senhor da Guerra.

    Essas causas histrico-materiais, todavia, desapareceram com o nacional-socialismo e sua forte tendncia centralizadora; tendo sido j amplamente relativizadas pela Constituio de Weimar, de 11 de agosto de 1919.

    Konrad Hesse destaca que os Estados alemes da moderna federao no so, geogrfica e culturalmen-te, os que promoveram a Unificao de Bismarck. Por isso, explicaes histricas de formulaes federativas

    modernas so muitas vezes imprestveis, como as desenvolvidas por Carl Schmitt e R. Smend, ainda sob a vigncia do texto de Weimar.22

    Com o fim do nazismo, a ocupao dos aliados e, posteriormente, com o Tratado de Unificao, que

    incorporou Repblica Federal os Estados da antiga Alemanha Oriental, novas foras completamente estranhas tradio do federalismo alemo forjaram a forma de Estado, de modo que as causas artificiais

    suplantam, hoje, as causas materiais na regulao normativa da repartio de competncias no direito cons-titucional alemo.23

    A Lei Fundamental de Bonn, de 23 de maio de 1949, traz uma repartio de competncias que apresenta carter funcional, ou seja, reserva Unio (Bund) preponderantemente a funo legislativa, deixando para os Estados (Lnder) a execuo, isto , a funo administrativa.

    E essas competncias administrativas ou materiais so controladas pela Unio, de modo que, quando um Land aplica equivocadamente a lei, h a possibilidade no verificada nos mais de cinquenta anos de vi-

    21 GRIMM, Dieter. El federalismo alemn: desarrollo histrico y problemas actuales. El federalismo en Europa, Barcelona: Hacer Editorial, 1993. p. 45.22 HESSE, Konrad. Estado federal unitario. Escritos de derecho constitucional. Madrid: Centro de Estudios Polticos y Constitu-cionales, 2011. p. 193.23 GRIMM, Dieter. El federalismo alemn: desarrollo histrico y problemas actuales. El federalismo en Europa. Barcelona: Hacer Editorial, 1993. p. 48 et seq.

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    gncia da Lei Fundamental de se promover uma espcie de interveno federal (Bundeszwang), com prvio consentimento do Conselho Federal (Bundesrat), a casa que, no Legislativo alemo, representa os Lnder.24

    Essa realidade de diviso funcional de competncias e de controle da execuo estadual pela Unio faz

    com que Dieter Grimm e Konrad Hesse afirmem que a Alemanha constitui um Estado federal unitrio.25

    Tal centralizao ou tal unitarismo da federao alem mitigada, contudo, pelas competncias concor-rentes, caracterizadoras de um federalismo de cooperao26 e inspiradora do constitucionalismo brasileiro.

    A existncia de uma competncia concorrente permite, assim, a superao, ainda que circunscrita a deter-minadas matrias, da repartio funcional antes mencionada, habilitando o Estado (Land) a editar leis e ter, desse modo, um ordenamento jurdico prprio, distinto do da Unio; o que caracterstico do federalismo.

    Por conta dessas competncias concorrentes, os autores alemes, nos primeiros anos de vigncia da Lei Fundamental, defenderam a assimilao, pelo texto constitucional, da teoria dos trs nveis ou dos trs

    elementos desenvolvida por Hans Kelsen. Segundo esse entendimento, o Estado federal seria caracterizado

    por trs nveis de ordenamento jurdico: o ordenamento do Estado total federal, o ordenamento do ente poltico superior (Bund) e os ordenamentos dos nveis locais, os Estados membros.

    Essa teoria, porm, foi rechaada, em 1961, pelo Tribunal Constitucional Federal, ao julgar o caso Neu-gliederung, afirmando que o texto da Lei Fundamental no fazia distino entre a Repblica Federal da Ale-manha o Estado total e a federao. Esse julgado, registre-se desde logo, no implica a impossibilidade de aplicao da teoria de Kelsen federao brasileira, uma vez que a Constituio de 1988 afirma que a Re-pblica Federativa do Brasil formada por quatro espcies de pessoas jurdicas de direito pblico: a Unio, o Distrito Federal, os Estados e os Municpios. Assim, a teoria das leis nacionais e das leis federais, desen-volvida por Geraldo Ataliba com base em Kelsen, compatvel com a ordem constitucional brasileira.27

    Voltando experincia alem, o art. 72 da Lei Fundamental estabelece trs tipos de competncias con-correntes: a) a competncia concorrente bsica; b) a competncia concorrente necessria; e c) a competncia concorrente de divergncia.

    Os dois primeiros tipos se assemelham em muito ao modelo brasileiro, que ser a seguir analisado, En-tretanto, a grande novidade do constitucionalismo alemo a competncia de divergncia, introduzida na Lei Fundamental pela Reforma Constitucional de 2006.28

    Segundo o art. 72, III, da Lei Fundamental os Estados podem legislar de forma contrria Unio em de-terminadas matrias, o que coloca em evidncia importantes princpios, caros ao direito constitucional ale-mo, como o da subsidiariedade, o da prevalncia do direito federal e o da confiana federativa (Bundestreu).

    As matrias arroladas no item III do art. 72 da Lei Fundamental so a caa, a proteo ambiental e pai-sagstica, a organizao do territrio, recursos hdricos, admisso nas universidades e ttulos universitrios.

    Esse aspecto, ainda no completamente experimentado, representa uma significativa evoluo no cons-titucionalismo federal alemo, reforando sua higidez e comprovando as palavras de Hartmut Bauer, para quem o federalismo na Alemanha um campo em construo permanente.29

    24 VOGEL, J. J. El rgimen federal de la Ley Fundamental. In: BENDA et al. Manual de derecho constitucional. trad. Antonio Lpez Pina. Madrid: Marcial Pons, 1996. p. 665.25 GRIMM, Dieter. El federalismo alemn: desarrollo histrico y problemas actuales. El federalismo en Europa. Barcelona: Hacer Editorial, 1993. p. 49; HESSE, Konrad. Estado federal unitario. Escritos de derecho constitucional. Madrid: Centro de Estudios Polti-cos y Constitucionales, 2011. p. 198.26 GRIMM, Dieter. El federalismo alemn: desarrollo histrico y problemas actuales. El federalismo en Europa. Barcelona: Hacer Editorial, 1993. p. 65.27 ATALIBA, Geraldo. Regime constitucional e leis nacionais e federais. Revista de Direito Pblico, ano XIII, v. 53-54, p. 58-76, jan./jun. 1980.28 Para um exame da Reforma e, em especial, da competncia concorrente de divergncia, ver: HORBACH, Beatriz Bastide. A com-petncia legislativa concorrente de divergncia no Direito alemo. Revista de Informao Legislativa, ano 49, n. 193, p. 171-182, jan./mar. 2012.29 BAUER, Hartmut. Kommentierung von Art. 20 GG (Bundesstaat). In: DREIER, Horst (Org.). Grundgesetzkommentar. Frank-

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    5. modelo fedeRAl bRAsIleIRo

    Victor Nunes Leal aponta que a vocao federativa do Brasil, iniciada com as capitanias hereditrias, passa pela autonomia no Imprio colonial portugus, pelo Ato Adicional de 1834 Constituio de 1824 e chega Repblica Velha.30

    O Ato Adicional de 1834, alis, o diploma responsvel pela primeira diviso territorial de competncias legislativas no Brasil, uma vez que criou as Assembleias Legislativas provinciais, com poder para editar normas sobre assuntos de interesse local, marcando a primeira manifestao dessa enigmtica expresso no direito

    constitucional brasileiro.

    Essa diviso, como no poderia deixar de ser, gerava conflitos entre a lei local e a lei nacional, os quais

    eram resolvidos por um interessante sistema de controle de constitucionalidade exercido pela Assemblia

    Geral do Imprio, com auxlio do Conselho de Estado.31

    Com a Repblica, essas tendncias federalistas foram institucionalizadas, tendo o Decreto n. 1, de 15 de novembro de 1889, transformado como que num golpe de mo constitucional as antigas Provncias em Estados federados. A partir de ento, tem-se um histrico da federao no Brasil que marcado fortemente pela centralizao, em menores ou maiores graus, como nos casos da Constituio de 1937 e da Emenda Constitucional n. 1 de 1969, textos que praticamente extinguiram a dinmica federal

    no Estado brasileiro.

    O que se deve buscar agora, porm, um conceito constitucionalmente adequado de federao e de repartio de competncias, o que s se consegue por meio da exegese do texto constitucional vigente.

    Essa a postura do Supremo Tribunal Federal, como se pode depreender do decidido na ADI 2.024, rel. Min. Seplveda Pertence, DJ de 22.06.2007, cujo acrdo foi assim ementado na parte aqui interessante:

    1. A forma federativa de Estado - elevado a princpio intangvel por todas as Constituies da Rep-blica - no pode ser conceituada a partir de um modelo ideal e apriorstico de Federao, mas, sim, daquele que o constituinte originrio concretamente adotou e, como o adotou, erigiu em limite material imposto s futuras emendas Constituio; de resto as limitaes materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, 4, da Lei Fundamental enumera, no significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na

    Constituio originria, mas apenas a proteo do ncleo essencial dos princpios e institutos cuja preserva-o nelas se protege.

    Da Constituio de 1988 se pode retirar dois grandes grupos de repartio de competncias entre Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios. O primeiro diz com o poder de auto-organizao dos Estados, o chamado poder constituinte decorrente, na expresso cunhada por Manoel Gonalves Ferreira Filho.32 O segundo, o campo da diviso ordinria de competncias materiais e legislativas.

    O primeiro, o poder constituinte decorrente, est baseado no art. 25 da Constituio Federal e no art. 11 de seu ADCT. Tais dispositivos afirmam que os Estados podem editar suas prprias constituies, respeita-dos os princpios da Constituio Federal.

    Aqui se tem o primeiro grande movimento centralizador protagonizado pelo STF, consubstanciado na doutrina das normas de observncia obrigatria. Essas so normas editadas pelo poder constituinte federal cujo contedo implica limitao autonomia estadual. Assim, quanto maior for o nmero de normas de

    furt am Main: Mohr Siebeck, 2006. p. 9.30 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. O municpio e o regime representativo no Brasil. 4. ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2012. especialmente o Captulo II.31 Sobre as funes do Conselho de Estado no Segundo Reinado, em especial no que toca ao controle de constitucionalidade, ver: LOPES, Jos Reinaldo de Lima. O Orculo de Delfos. O Conselho de Estado no Brasil-Imprio, So Paulo: Saraiva, 2010.32 FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves. O poder constituinte. 5. ed. So Paulo: Saraiva, 2007. p. 146 et seq.

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    observncia obrigatria, menor a autonomia estadual.33 As normas de observncia obrigatria acabam por definir, afinal, quo autnomos so os Estados membros.

    Inicialmente, a jurisprudncia do Supremo foi mais aberta nessa questo, como se pode verificar na

    questo especfica da reproduo das normas federais de processo legislativo pelos Estados. Ao apreciar a

    ADI 56 MC, rel. Min. Clio Borja, DJ de 04.08.1989, o Tribunal indeferiu a medida liminar pleiteada pelo Governador do Estado da Paraba exatamente por no encontrar na Constituio o dispositivo que torna

    obrigatria para os Estados a observncia das normas dos seus artigos 61, II, a e b e 63, I.

    E ainda conclua o Ministro Clio Borja: Tal omisso decorre da inexistncia, na lei fundamental em

    vigor, das numerosas regras de simetria compulsria entre as ordens jurdicas da Unio e dos Estados que repontavam na Carta de 1967, na redao de sua Emenda n 01/69.

    Porm, logo em seguida, o STF assentou que as normas de processo legislativo previstas na Constituio Federal aplicam-se a todos os entes federados, num movimento jurisprudencial que se manifesta, por exem-plo, no julgamento da ADI 89, rel. Min. Ilmar Galvo, DJ de 20.08.1993. Isso por que as normas de proces-so legislativo so corolrios da separao de poderes, em entendimento que vigora at o presente momento.

    Ademais, a jurisprudncia do STF tem flertado, nos quase vinte e cinco anos de vigncia da Constituio

    de 1988, com o chamado princpio da simetria, segundo o qual os Estados deveriam seguir o modelo ins-titucional federal. Exemplo dessa tendncia se tem nos julgamentos da ADI 858, rel. Min. Ricardo Lewan-dowski, sobre processo legislativo; da ADI 3.647, rel. Min. Joaquim Barbosa, sobre as regras de afastamento do Governador do Estado do Maranho; ou ainda da ADI 2.122, rel. Min. Ellen Gracie, sobre o processo de reclamao junto ao Tribunal de Justia do Estado do Cear. Todos esses julgados indicam limitaes claras das competncias constituintes estaduais.

    No campo das divises ordinrias, h de se diferenciar as competncias materiais ou administrativas das competncias legislativas; ambas, na lgica da Constituio de 88, podem ser privativas sem se entrar aqui em discusses terminolgicas ou concorrentes.

    As competncias materiais privativas da Unio so amplamente expostas no art. 21 da Constituio, marcando

    o grande espectro de atuao do governo federal. As competncias materiais dos Estados so resumidas ao art. 25, 2, da Constituio, relativo explorao do gs canalizado. A competncia privativa material dos Municpios est

    prevista no art. 30, compreendendo o tradicional interesse local e outras matrias, como o transporte coletivo urbano. O Distrito Federal, por sua vez, acumula, por fora do art. 32, 2, do texto constitucional as competncias

    dos Estados e dos Municpios.

    No campo legislativo, as competncias arroladas so as da Unio no art. 22 e as dos Municpios e do Distrito Federal parcialmente, portanto no art. 30 da Constituio, deixando-se a competncia legislativa

    dos Estados para o critrio residual, na forma do 1 do art. 25 do texto constitucional federal.

    O tema mais importante nessa matria, porm, como destaca Fernanda Dias Menezes de Almeida34 o da competncia concorrente, que se pode dar tanto no campo material art. 23 da Constituio quanto no campo, na forma do art. 24 da Carta da Repblica.

    Nos dois casos surge o problema da definio de limites de atuao de cada ente federado. No caso do

    art. 23 do texto constitucional, h a possibilidade de regulamentao desse exerccio comum de poderes por

    meio de lei complementar, como previsto no pargrafo nico do art. 23 e recentemente efetuado em relao s competncias ambientais por meio da Lei Complementar n. 140/2011.

    33 LEONCY, Lo Ferreira. Controle de constitucionalidade estadual. As normas de observncia obrigatria e a defesa abstrata da Con-stituio do Estado-membro. So Paulo: Saraiva, 2007. p. 11-12.34 ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competncias na Constituio de 1988. 4. ed. So Paulo: Atlas, 2007. p. 112 et seq.

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    No caso da competncia legislativa concorrente, a chave para a soluo dos problemas resultantes de sua aplicao o conceito de norma geral, constante do art. 24, 1, da Constituio de 1988.

    Mais uma vez aqui a questo se pe de forma simples: quanto mais abrangente esse conceito de norma geral, menor a autonomia estadual. E novamente a jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal pelo me-nos desde o julgamento da ADI 927, rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 11.11.1994 redutora dessa autono-mia estadual, concluindo, em gnero, que norma geral o que a Unio edita como tal. No mesmo sentido possvel ainda citar o decidido na ADI 2.903, rel. Min. Celso de Mello, DJ 9.09.2008; e na ADI 3.059 MC, rel. Min. Carlos Britto, DJ de 20.08.2004.

    Esse entendimento reduz sobremaneira a capacidade normativa dos Estados e denota uma vocao cen-tralizadora da jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal, que criou nas palavras do Ministro Seplveda Pertence, em diversos julgados sobre a matria um Estado unitrio de fato.

    6. consIdeRAes fInAIs

    Em linhas gerais, o modelo brasileiro devedor das experincias norte-americana e alem, mas como

    igualmente ocorre em tais sistemas necessita de aprimoramentos, que passam menos pela reforma do texto constitucional e mais por uma viragem interpretativa do Supremo Tribunal Federal, que se tem mos-trado nos ltimos vinte e cinco anos igualmente nas palavras de Seplveda Pertence nostlgico da Carta decada e de seus dispositivos centralizadores.

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    CapaSumrioForma de Estado: Federalismo e repartio de competnciasCarlos Bastide Horbach**1. Introduo2. Antecedentes histricos do modelo federal3. Modelo federal norte-americano4. Modelo federal alemo5. Modelo federal brasileiro6. Consideraes finaisReferencias