características da antropologia bíblica

13
Características da antropologia bíblica Apesar do interesse evidente pelo homem, a Bíblia não enuncia um tratado antropológico sistemático. Contudo, nela estão presentes as grandes linhas gerais de uma visão clara do homem enquanto criatura aberta a Deus, aos outros e ao mundo. Escrita ao longo de vários séculos, a Sagrada Escritura, nos seus variados livros, apresenta uma antropologia e uma conceção da natureza humana trespassada por muitas e distintas influências culturais. Porém, prevalece uma perspetiva unitária do homem, tendo em conta a sua tridimensionalidade, enquanto corpo, alma e espírito. Já no Livro da Sabedoria, influenciado pela cultura helenística, encontramos a dicotomia platónica entre alma e corpo, que busca assumir a doutrina da imortalidade da alma, para assim afirmar a transcendência do homem. Em síntese, podemos afirmar que na Bíblia deparamos com uma antropologia pré-científica, religiosa e soteriológica. A característica pré-científica da antropologia bíblica tem como fundamento o facto de não apresentar uma sistematização da conceção do homem, nem uma definição filosófica. A sua preocupação é uma visão coerente do homem no seu relacionamento com Deus, com os outros e com o mundo. É nesta perspetiva, também, que vislumbramos um carácter religioso na antropologia bíblica. Não lhe interessa analisar o homem em si mesmo e nos seus elementos constitutivos, nem definir a sua essência, como ocorre na conceção grega, que vê o homem como um microcosmo que une o mundo material ao espiritual, assumindo o homem uma atitude contemplativa. O homem bíblico vê-se como fruto da palavra, da vontade e do projeto divino e portador de uma missão, não se limitando a assumir uma postura passiva, mas, pelo contrário, colaborando com o seu criador no projeto histórico, escutando e respondendo a Deus quando interpelado. Há, ainda, uma marca, distintivamente, soteriológica na antropologia bíblica. A história tem um rumo e um significado: a salvação. O caminho traçado por Deus, para o cumprimento do seu plano salvífico, pela sua graça, conduz o homem à salvação vencendo o pecado. O ato da criação é, já por si, a esperança da salvação, o fundamento de todos os imperativos e promessas em que expressa o dom e a graça do seu amor: o Deus que cria é o Deus que liberta. Mensagem em Génesis 1-3 Ao examinar Gn.1-3, de modo a entender a mensagem, é forçoso ter presente que se trata de um género literário mítico, rompendo, todavia, com alguns aspetos da mitologia. Não sendo uma narrativa historiográfica, a sua função é simbólica. Procura interpretar a realidade de maneira religiosa, estabelecendo a relação entre Deus, o homem e o mundo. Assim, a primeira novidade, que encontramos em Gn.1, é a mensagem de um Deus único, Senhor grandioso e omnipotente: é o Senhor do Universo, que cria homem e mulher à sua imagem e que lhes confere poder sobre a criação. Trata-se da tradição sacerdotal (vocabulário mais preciso e profundamente religioso) e a sua descrição da origem do homem é o grande alicerce da antropologia teológica. O homem aparece já como unidade de varão e mulher, com a sua estrutura social e sexuada e como obra-prima da criação e representante do Criador ao dominar todas as coisas. A abertura e a comunhão com Deus, a realização da imagem de Deus na capacidade relacional do homem, a igualdade do homem e da mulher, a relação com o mundo e a liberdade/responsabilidade na colaboração com Deus, são o esteio do homem, segundo a visão bíblica, que encontramos nesta parte da narrativa da criação.

Upload: nelson-cadete

Post on 31-Dec-2015

12 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

Page 1: Características da antropologia bíblica

Características da antropologia bíblica Apesar do interesse evidente pelo homem, a Bíblia não enuncia um tratado antropológico sistemático.

Contudo, nela estão presentes as grandes linhas gerais de uma visão clara do homem enquanto criatura aberta a Deus, aos outros e ao mundo. Escrita ao longo de vários séculos, a Sagrada Escritura, nos seus variados livros, apresenta uma antropologia e uma conceção da natureza humana trespassada por muitas e distintas influências culturais. Porém, prevalece uma perspetiva unitária do homem, tendo em conta a sua tridimensionalidade, enquanto corpo, alma e espírito. Já no Livro da Sabedoria, influenciado pela cultura helenística, encontramos a dicotomia platónica entre alma e corpo, que busca assumir a doutrina da imortalidade da alma, para assim afirmar a transcendência do homem. Em síntese, podemos afirmar que na Bíblia deparamos com uma antropologia pré-científica, religiosa e soteriológica.

A característica pré-científica da antropologia bíblica tem como fundamento o facto de não apresentar uma sistematização da conceção do homem, nem uma definição filosófica. A sua preocupação é uma visão coerente do homem no seu relacionamento com Deus, com os outros e com o mundo.

É nesta perspetiva, também, que vislumbramos um carácter religioso na antropologia bíblica. Não lhe interessa analisar o homem em si mesmo e nos seus elementos constitutivos, nem definir a sua essência, como ocorre na conceção grega, que vê o homem como um microcosmo que une o mundo material ao espiritual, assumindo o homem uma atitude contemplativa. O homem bíblico vê-se como fruto da palavra, da vontade e do projeto divino e portador de uma missão, não se limitando a assumir uma postura passiva, mas, pelo contrário, colaborando com o seu criador no projeto histórico, escutando e respondendo a Deus quando interpelado.

Há, ainda, uma marca, distintivamente, soteriológica na antropologia bíblica. A história tem um rumo e um significado: a salvação. O caminho traçado por Deus, para o cumprimento do seu plano salvífico, pela sua graça, conduz o homem à salvação vencendo o pecado. O ato da criação é, já por si, a esperança da salvação, o fundamento de todos os imperativos e promessas em que expressa o dom e a graça do seu amor: o Deus que cria é o Deus que liberta.

Mensagem em Génesis 1-3Ao examinar Gn.1-3, de modo a entender a mensagem, é forçoso ter presente que se trata de um género

literário mítico, rompendo, todavia, com alguns aspetos da mitologia. Não sendo uma narrativa historiográfica, a sua função é simbólica. Procura interpretar a realidade de maneira religiosa, estabelecendo a relação entre Deus, o homem e o mundo.

Assim, a primeira novidade, que encontramos em Gn.1, é a mensagem de um Deus único, Senhor grandioso e omnipotente: é o Senhor do Universo, que cria homem e mulher à sua imagem e que lhes confere poder sobre a criação. Trata-se da tradição sacerdotal (vocabulário mais preciso e profundamente religioso) e a sua descrição da origem do homem é o grande alicerce da antropologia teológica. O homem aparece já como unidade de varão e mulher, com a sua estrutura social e sexuada e como obra-prima da criação e representante do Criador ao dominar todas as coisas. A abertura e a comunhão com Deus, a realização da imagem de Deus na capacidade relacional do homem, a igualdade do homem e da mulher, a relação com o mundo e a liberdade/responsabilidade na colaboração com Deus, são o esteio do homem, segundo a visão bíblica, que encontramos nesta parte da narrativa da criação.

Já em Gn.2-3, a tradição javista (linguagem mais concreta e cheia de imagens) apresenta-nos um Deus muito mais paternal, um Deus vivo, que é representado antropomorficamente, com características muito humanas (oleiro, jardineiro, cirurgião). Centrada no homem modelado por Deus em barro – analogia ao mundo material e à mortalidade – e animado pelo sopro divino, numa referência à transcendência, a tradição javista dá ênfase à admirável situação originária da humanidade, saída das mãos do criador – a verdade do homem, a sua essência ideal – em oposição à imperfeição da sua condição histórica, após o pecado. Adão, a quem Deus oferece o paraíso, representa a criação do homem ideal no relacionamento com Deus, com os outros (Eva), e com o mundo que o rodeia.

Em síntese, a mensagem de Gn.1-3 apresenta-nos Deus como sendo, sempre e exclusivamente, o autor de tudo o que existe. O tema da criação não se refere apenas ao resultado do ato criador (a luz, o mundo, as plantas, os animais, o homem), mas também e, sobretudo, ao projeto de vida que Deus oferece e quer construir com a humanidade. Neste projeto, Deus é a resposta à razão da existência: enquanto criaturas, viemos de Deus, com ele e para ele caminhamos. Toda a dinâmica da criação fundamenta-se na relação: todo o universo deve a sua existência a um Outro. A criação bíblica afirma esta ligação originária das criaturas ao Criador. Entendida neste sentido religioso (re-ligare), ela expressa que tudo quanto existe, existe por amor. Só o amor que chama à existência nos pode dar a certeza de que a vida tem um sentido.

É no Novo Testamento que se dá a realização plena deste amor. O projeto salvífico do Criador cumpre-se com a Encarnação e a Redenção de Jesus Cristo. É Deus Criador que se revela como o Pai de Jesus Cristo. Ele vem até nós, através da descendência de Eva. A salvação está antecipada em Gn.3,15, indicando que a “semente” da mulher,

Page 2: Características da antropologia bíblica

que ferirá a cabeça da serpente, é Jesus. O Cristo, preexistente, surge envolvido na criação: “Tudo começou a existir por meio dele e sem ele nada foi criado” (Jo.1,3). Jesus de Nazaré é o culminar da doutrina da criação. Como Filho de Deus, assume a imagem do homem, como um novo Adão, que vem libertar do pecado toda a humanidade.

Aspetos da antropologia de PauloA antropologia Paulina apresenta duas características fundamentais: um cunho, marcadamente, cristológico

e soteriológico. Para S. Paulo, Cristo é o verdadeiro Adão escatológico, a imagem perfeita de Deus, que vem substituir o velho Adão, caído no pecado. Ele é o princípio e o fim do plano criador e salvífico de Deus. O homem, criado em Cristo e por Cristo, é interpelado a configurar-se à sua imagem, no cumprimento da promessa de salvação.

Das profecias de Isaías, Jeremias e Ezequiel, Paulo recolhe a ideia da nova criação. Segundo ele, Jesus é o artífice desta nova criação, dando origem a uma nova humanidade, com uma dimensão escatológica. Essencial para Paulo é a ideia do homem espiritual que, dominado pelo poder do Espírito de Cristo, se manifesta pelo amor, em oposição ao homem carnal reservado no seu egoísmo. Este ser espiritual dotado de liberdade, entendida como graça divina e dom do Espírito, é chamado a realizar a sua dignidade de homem, à imagem de Deus, em comunhão com Cristo, visto, não apenas como revelação de Deus, mas como realização das expectativas humanas.

Na sua antropologia soteriológica, Paulo estabelece um duplo paralelismo entre Adão e Cristo. Por um lado, apresenta Cristo, na sua ligação à humanidade, como o cumprimento do homem figurado em Adão, mas, por outro, confronta o exemplo de Adão, pecador e desobediente, com o modelo realizado em Cristo, o qual cumpre a vontade e o projeto do Pai. À imagem do Adão, que escravizou a humanidade inteira, Paulo contrapõe com a graça do Espírito de Cristo: “onde abunda o pecado, superabunda a graça”. Daí a necessidade absoluta e universal de Cristo, para a libertação do pecado. O homem é justificado pelo amor infinito de Deus, manifestado na obra redentora de seu Filho e o projeto eterno de salvação, oferecido a todos os homens em Cristo, como dom incondicionado de Deus, manifesta-se na vitória da intervenção de Cristo, que supera a natureza corrompida do homem adâmico.

O Homem na Bíblia: realidade unitária pluridimensional com relações constitutivas, expressas através das categorias de corpo, alma e espírito

Na antropologia bíblica, a perspetiva dominante apresenta o homem como uma unidade constituída por corpo, alma e espírito, em oposição à conceção dualista grega de corpo e alma.

O corpo, ou a carne, representam, na Bíblia, a fragilidade e a caducidade do homem, marcado pela morte e pela finitude, mas também a sua relação com os outros e com o mundo, a qual, confrontada com a relação segura com Deus, manifesta, precisamente, a precariedade e o risco da condição humana. Enquanto corpo, o homem é, estruturalmente, um ser do mundo e interdependente com os outros.

Quanto à alma, a Bíblia apresenta-a como o centro vital da pessoa na sua individualidade. Trata-se da sua identidade interior e subjetiva, que se abre à relação com o mundo que o rodeia e transcende. Após a morte o homem deixa de ser uma realidade viva. No livro da Sabedoria, sob influência da cultura helenística e do dualismo antropológico, a conceção de alma é entendida em contraposição ao corpo. Passa a ter uma existência autónoma, mesmo separada da matéria, o que conduz à doutrina da imortalidade da alma. Também S. Paulo retoma esta conceção, mas numa ótica moral e ética e não antropológica, expressando a realidade mais íntima do homem de onde provém as boas ou más decisões.

O Espírito é apresentado na Bíblia, como o sopro divino que imprime a imagem de Deus no ser humano. Alude ao homem inteiro e, através dele, manifesta-se a presença de Deus no homem e a sua relação de dependência com o Criador, de tal modo que a relação com Deus constitui o fundamento da vida. Não se trata de algo acrescentado à pessoa, mas algo estruturalmente primário. S. Paulo dá ao termo um significado claramente soteriológico, contrapondo o espírito e a carne, respetivamente dominados, pela graça e pelo pecado. Como já afirmei, trata-se de um dualismo ético. Para S. Paulo, o homem é uma unidade pluridimensional: corpo, espírito e alma.

Visão bíblica (teocêntrica) e grega (cosmocêntrica) do mundo e do homemA antropologia teocêntrica assenta na conceção do homem como imagem de Deus. Apoiada na Bíblia, a

cultura hebraica sustenta o fundamento do homem na Sabedoria divina, que cria, pela Palavra, o homem, e no seu carácter relacional com Deus e com os outros. Já a visão grega, do homem e do mundo, tem um cariz cosmocêntrico, ordenado e racional, no qual o homem não é mais do que um microcosmo, inserido no macrocosmo que é o mundo.

Ambas as visões se interessam pelo homem, mas acentuam aspetos diferentes. O hebreu sente-se distinto do mundo, dominando a criação e tornando-se responsável por ela perante o Criador. A criação é vista como um todo ordenado, cujo princípio é transcendente e se identifica com a vontade criadora e salvífica de Deus. Neste enquadramento, o homem é concebido como um ser de relações e não de substância. O homem não é um indivíduo fechado, mas um núcleo de relações, que é interpelado e que responde livremente. Desta relação tripartida do

Page 3: Características da antropologia bíblica

homem, com Deus, com os outros e com o mundo, surge o conceito de pessoa. Na conceção cosmocêntrica do homem grego, a ordem do mundo é imanente e possui um significado ontológico, cognoscitivo e ético, mas cujo princípio não é transcendente. O Logos universal reflete-se no homem enquanto parte da natureza, mas não lhe deixa espaço para a subjetividade, reduzindo a inteligência e a liberdade humanas a meros pormenores de uma substância impessoal: o homem define-se como indivíduo, mas não como pessoa.

Desenvolvida num enredo entre a cultura semita, cuja antropologia acentua a unidade pluridimensional do homem, e a influência grega que estabelece uma conceção dualista do homem, a antropologia patrística caracteriza-se pelo empenho dispendido para conciliar e inculturar a visão cristã do homem num ambiente de cariz helenístico. Parte do confronto entre estas duas perspetivas do mundo e do homem, expressando a primeira tentativa de inculturação da fé.

Antes de se chegar a um diálogo frutífero entre as duas culturas, houve um longo trajeto desde a rejeição rígida, passando pela contaminação, até à confrontação bíblica e este esforço, de transportar a conceção bíblica e cristã do homem para o seio da cultura grega, visto que a revelação se destina a todos os homens de todas as culturas, trouxe consigo vários problemas a começar pelo choque entre a imortalidade da alma e a ressurreição dos corpos. Também a conceção da salvação através do conhecimento superior (imanentismo), dos gnósticos, colidiu com a doutrina da Criação e da Encarnação do Verbo. O próprio Concílio de Niceia que, ao definir a divindade de Cristo, dissocia a Criação da Redenção, com consequências fatais para a antropologia cristocêntrica. Todavia, houve também contribuições muito positivas, embora com alguns fracassos e muitos riscos, como Justino e a sua doutrina do Logos Spermatikos, ou como os intentos da escola de Alexandria que, na busca do diálogo e da assimilação, expuseram, por exemplo, a doutrina do Logos divino encarnado.

Polémica entre S. Agostinho e PelágioA polémica entre Agostinho e Pelágio tem a sua origem em duas visões opostas, na resposta a uma mesma

questão: o que pode fazer o homem pecador diante de Deus, pela sua salvação? O que é posto em causa é a relação entre a liberdade da pessoa (o seu esforço pessoal) e o poder salvífico de Deus, mediante a graça. No fundo, são duas conceções opostas de liberdade: a bíblica, marcada por gestos divinos e na qual o homem só encontra a plenitude do seu ser em Deus, e a grega, que se traduz na capacidade do homem dispor de si com autonomia.

Em Pelágio, o esforço humano é sobrevalorizado, fruto de uma tendência antropológica estoica, excessivamente otimista no que respeita à natureza humana. Ele exalta a liberdade humana, reconhecendo-lhe a capacidade para evitar o pecado, ou seja, admite a possibilidade do homem fazer o bem e evitar o mal pelo simples domínio de si próprio.

Já Agostinho contrapõe que o homem por si só não consegue atingir a salvação. Segundo ele, a doutrina de Pelágio encerra alguns perigos, ao reduzir a intervenção de Cristo a um elemento pedagógico, como um mero professor e modelo ético, e ao considerar Adão como, apenas, um mau exemplo, que o homem pode, ou não, seguir usando a sua liberdade. Com efeito, para Agostinho, o homem não possui esta capacidade de evitar o pecado, por si só. A sua condição de pecador advém-lhe do pecado original de Adão, do qual só pode ser resgatado em Cristo. O mal é uma força presente no homem e opõe-se à ação de Deus; trata-se do homem carnal em contraposição ao homem espiritual, referido nas cartas de Paulo, que expressa a liberdade enquanto fruto da graça e não apenas como livre arbítrio. Em Agostinho liberdade e graça são inseparáveis. É a dinâmica da graça que liberta o homem.

O equilíbrio entre a liberdade humana e a cooperação da humanidade na obra e no desígnio salvífico de Deus foi sempre uma questão presente na história do pensamento humano. Se a posição de Pelágio, centrada no ser humano, favorecia práticas ascéticas, que por vezes perdiam o seu sentido evangélico, por outro lado, a posição de Agostinho originava uma postura pessimista da condição humana, dominada pela sombra do pecado e, apesar de, consequentemente, afirmar a absoluta necessidade de Cristo para a libertação do pecado, subordina a ação de Deus e a Encarnação à lógica do pecado, em vez de fundamento da Criação.

Apesar da valorização, por vezes excessiva, do pecado na sua doutrina, Agostinho afirmou o carácter central e salvífico de Cristo, conduzindo a reflexão cristã para o aspeto transformador da ação de Deus em Cristo.

Antropologia de S. TomásEm S. Tomás assiste-se a uma viragem do pensamento platónico-agostiniano. Adotando um novo filtro

cultural, o aristotélico, recupera a dimensão humana da fé e a consequente importância do agir humano na história. Com as categorias aristotélicas de substância, acidente, causalidade, matéria e forma, procura dar uma compreensão mais profunda do mistério cristão. Mantendo o esquema teocêntrico da tradição bíblica, passa de uma interpretação histórica da salvação a uma leitura metafísica, em que o quadro de referência é a revelação que distingue o Criador das criaturas, reconhecendo o lugar eminente do homem no universo.

Page 4: Características da antropologia bíblica

Ao aplicar a doutrina hilemórfica (todo o ente finito é composto de matéria e forma), não contradiz a doutrina da Criação, mas valoriza a existência do real, realçando o ato de existir e sublinhando a contingência das coisas, como factos dependentes da livre decisão de Deus Criador.

Esta valorização da existência vai influir na antropologia tomista, ao conceber o homem como uma substância distinta das outras criaturas, pela sua abertura, consciente e livre, ao mundo e a Deus. Ao afirmar a unidade corpo/alma do homem, considerando a alma como forma subsistente do corpo, que, apesar de imanente ao corpo, o transcende (daí a possibilidade de sobrevivência da alma ao separar-se do corpo), S. Tomás afasta a ideia de um corpo unido acidentalmente à alma, ou de um corpo prisão da alma. Exalta, assim, o corpo enquanto exteriorização do ser concreto e princípio de individuação e referência no mundo.

Para S. Tomás a alma é uma substancia pensante, cuja transcendência se expressa na sua racionalidade. Esta substância pensante converte-se em substância espiritual da tradição cristã, ao identificar-se, não só, com a abertura ao imanente, através do conhecimento, mas também, à infinitude de Deus. Assim, se desobstrui o caminho à doutrina da graça, na sua relação com a natureza humana. Natureza e graça deixam de ser realidades antitéticas.

A própria natureza do homem, que é, em si, completa, remete para a transcendência, a qual se inscreve na inteligência e na vontade do homem. Deste modo, o homem manifesta em si o desejo natural de ver a Deus, o que não significa capacidade para o alcançar o desejado: gozo que só pode ser dom de Deus, a graça.

A graça, em S. Tomás, é uma qualidade que dá uma nova forma à natureza humana, aperfeiçoando-a e tornando-a semelhante a Deus. É a dimensão finita da presença de Deus na alma. Trata-se de uma modificação ontológica que expressa a dinâmica da relação de Deus com o homem.

Visão teónoma e a autónoma do ser humano na época modernaNa História Universal, o advento da Idade Moderna costuma corresponder à renovação cultural, social,

económica e, também, antropológica, a que se chama Renascimento, surgida na Europa entre os séculos XIV e XV. Os homens da Idade Média consideravam os aspetos e factos da vida e da história de acordo com os ideais religiosos. Para eles, a vida terrena, o homem e os acontecimentos históricos eram explicados pela vontade de Deus.

Com o Renascimento e, fundamentalmente, com o impulso humanista, a Europa começa a modificar seu modo de pensar, voltando as suas atenções para uma vida concreta e terrena, onde o homem passa a ter importância como o grande protagonista do mundo e da história. O mundo aparece como cenário das ações humanas, e não como expressão da vontade divina.

É na radicalização da centralidade do homem, no contexto dos seus horizontes específicos, dando preeminência à razão humana, que substitui Deus como centro da vida, que se perfila o dilema da teonomia (que vê Deus como norma do homem) versus a autonomia (o homem, laico, basta-se a si próprio). A dependência de Deus, na Idade Moderna, é vista como uma violação da autonomia da realidade humana, entendida, cada vez menos, como criatura e, cada vez mais, como natureza. Perante este processo de laicização e secularização do homem, a primeira reação foi a defesa e a recusa decidida de toda a pretensão moderna de autonomia.

Contra esta nova visão do homem, levanta-se Lutero defendendo uma descontinuidade entre a ordem da natureza e a da graça, tanto ao nível do ser (as duas ordens não se sobrepõem), como do conhecer (os sentidos e a razão permitem entender a ordem do mundo, mas só a fé nos introduz na dimensão profunda da salvação) e do querer (na esfera mundana, domina o livre arbítrio, mas na ordem sobrenatural, ao homem cabe, apenas, confiar e confiar-se a Deus). Para Lutero, a salvação não se atinge por mérito do homem: é obra exclusiva de Deus ( Solus Deus); é dom gratuito de Deus aos que se lhe entregam inteiramente pela fé (Sola fides), através da mediação de Jesus Cristo (Solus Christus), por iniciativa de Deus que se aproxima e dá a conhecer ao homem pela revelação (Sola Scriptura). A graça é, segundo Lutero, uma forma de comunicação divina que não tem o poder de transformar a natureza humana porque é algo extrínseco ao homem, cuja justificação não o diviniza.

A Igreja, perante esta posição de Lutero, vem afirmar a necessidade das obras para justificar a salvação de Cristo, assim como da mediação, não só de Cristo, mas também da Igreja, dos sacramentos, dos santos e da Virgem Maria. A resposta é dada no Concilio de Trento, com o decreto sobre a justificação em 1547, que declara a justificação como obra da graça, mas só possível com a participação ativa do homem. A justificação é algo que afeta interiormente e ontologicamente o homem, mas com a sua colaboração ativa, fazendo por merecer a salvação de Deus através das suas obras e virtudes, da sua conversão, pela observância dos mandamentos, numa relação permanente entre a liberdade e o livre arbítrio do ser humano e a graça.

O concílio, apesar de tudo, não veio resolver esta questão, continuando a assistir-se a vozes polémicas, não só da parte dos protestantes, mas também dentro da própria Igreja, sobre o que pode realmente o homem fazer para conseguir a salvação e o que será mais importante, a graça ou a liberdade. Madurou, assim, até ao Concílio Vaticano II, uma eclesiologia integral, bastante fechada, como reação à autonomia moderna e às posições extremadas de algumas teonomias.

Page 5: Características da antropologia bíblica

Com o Concílio Vaticano II, assiste-se a uma certa pacificação sobre este assunto, concedendo que a teonomia, dependência de Deus e a autonomia, laicismo do homem, não são campos contraditórios. Ao reconhecer na autonomia do homem e das realidades temporais, algumas raízes cristãs, a Igreja procura fazer uma síntese entre ambas. Teólogos, como Rahner e Metz, acentuam o carácter complementar e recíproco da teonomia e da autonomia, afirmando que a teonomia leva à perfeição da autonomia e que, quanto mais o homem se une a Deus, maior também será a sua liberdade.

Hoje em dia, a antropologia teológica vê o homem como um ser em relação com os outros, com o mundo e com ele próprio, numa perspetiva cristocêntrica, recuperando a relação bíblica entre a criação e salvação. Cristo como o autor da criação e, ao mesmo tempo, instaurador da Nova Aliança, transcende a salvação na abertura ao amor de Deus e dos irmãos. Parte da perspetiva personalista que defende que a relação existente, entre a graça e a liberdade humana, é o encontro entre Deus e o homem.

Cosmovisão de Teilhard de Chardin: cristocentrismoOs dogmas saídos do Concílio de Niceia foram indispensáveis para salvaguardar a fé cristã, porém, tiveram

uma repercussão negativa. O temor de que a afirmação do papel criador terminasse num negação ou limitação da divindade de Cristo, levou a prescindir desta verdade. Dizer que Cristo era o mediador da criação, parecia, naquele contexto, um eco da tese ariana do Verbo gerado com respeito à criação e, portanto, entendido como criatura. Com o tempo, este facto tornou-se perigoso, ao chocar com o cristocentrismo e com a relação entre criação e salvação. A realidade passou a pensar-se de modo autónoma, à margem de toda a referência a Cristo. Daí que a crise cristológica se tenha repercutido na crise antropológica. Toda a cosmovisão até ao século XX terá um cariz estático com reflexos nas conceções de criação, providência, escatologia, etc.

É com a teoria da evolução de Darwin, associada a um antropocentrismo positivo, que toda a cosmovisão cristã é posta em causa e será preciso esperar pelo século XX, para que surja uma corrente evolucionista, capaz de harmonizar a relação entre a criação e a evolução, entre a ciência e a fé.

É Teilhard de Chardin que desenvolve esta corrente, trazendo uma nova interpretação evolutiva da criação através de uma cosmovisão, que une as realidades da criação e da evolução, capaz de comprovar a orientação do mundo e do homem para Cristo e recuperando o cristocentrismo existente antes de Niceia, não apenas em relação à redenção mas também à criação.

A visão de Teilhard de Chardin é teológica e cristológica, na medida em que é direcionada para Deus e para Cristo. Profundamente influenciado pelas ideias de São Paulo sobre a atuação de Cristo no universo (Rm.8,19-23), a sua cosmovisão evolutiva apresenta-nos Cristo como ponto Ómega, para o qual converge toda a criação. Para ele, o futuro que promete a esperança cristã abarca a criação inteira. Esta dimensão cósmica da escatologia permitiu repensar o homem e o cosmos na ótica da recapitulação de todas as coisas em Cristo, um pouco à maneira de S. Ireneu, mas sob um prisma evolutivo. Recuperando alguns aspetos da teologia patrística, apresenta a Encarnação como parte do plano de Deus para elevar o homem a uma participação na própria vida divina.

É neste contexto – “tudo o que sobe, converge” – que Chardin desenvolve a lei da complexificação/consciência, na qual estabelece que o processo evolutivo avança para níveis cada vez mais complexos das estruturas (face exterior da evolução), desde as etapas da filogénese, até à biogénese e à antropogénese – à qual corresponde o crescimento da consciência (face interna da evolução) – às quais ele acrescenta a etapa da cristogénese. Teillard projeta para o futuro esta evolução, vaticinando primeiramente a formação de uma noosfera em que os seres humanos estariam cada vez mais centrados, isto é, cada vez mais concordantes nas suas inteligências e vontades e extrapola isto, ainda mais, para o futuro, atingindo a evolução o ponto Ómega, que é Jesus Cristo ressuscitado, sendo que o ponto Ómega terá sido o ponto de atracão de toda a evolução. Tudo tende para o ponto Ómega: há uma polarização lógica da criação até Cristo, ou seja, há uma progressão do universo que aspira à plenitude em Cristo.

Neste caminho, a humanidade está destinada a entrar numa fase de convergência, na qual se realizará, completamente, pela comunhão e entenderá a abundância histórica do amor e a fecundidade histórica da tendência escatológica. Cristo, pela sua entrega total ao Pai e aos irmãos, é o modelo desta nova humanidade e a cristogénese é precisamente a génese desta nova humanidade cristiforme.

Num esforço de diálogo entre a esperança cristã e as esperanças modernas, através do evolucionismo cristocêntrico, a maior contribuição de Telhar de Chardin foi a visão integradora de ciência empírica e fé cristã. Para ele, a natureza e as suas leis retratam a presença e a ação de Deus. Ele não tem só confiança na compatibilidade entre a ciência e a fé cristã, mas vê que uma contribui para a outra. A ordem extraordinária do mundo natural reflete a sabedoria e a bondade de Deus. A sua maneira de encarar o universo, como criação de Deus, em total concórdia com a ciência, permite uma visão bem mais digna e mais adequada, porque integra a ciência e a fé numa união mutuamente benéfica. O universo revela-se como obra-prima de Deus.

Page 6: Características da antropologia bíblica

Assim, Chardin consegue unir criação e salvação, natureza e graça, fé e razão, Igreja e mundo, e mostra o significado cristão do compromisso pela construção de um mundo (pelo trabalho, a ciência, a técnica, a arte) conforme o plano divino. O núcleo do seu humanismo cristológico marcou de modo definitivo a Igreja do pós-Concílio Vaticano II, visto que a evolução das espécies passou a ser admitida tranquilamente dentro dos umbrais da Igreja e, mais importante, a Igreja passou a ter uma atitude de confiança – e não de desconfiança e de hostilidade – em relação à ciência, inspirando uma atitude de otimismo em relação ao que é material e em relação ao mundo em que vivemos e superando a visão pessimista e hamartiocêntrica, da condição humana.

Estruturas do ser humano: teologal, pessoal, social e cósmicaA Sagrada Escritura e os Padres da Igreja, apontando Cristo como resposta, efetiva, às expectativas humanas,

focam o homem na sua diversidade de estruturas: em si mesmo (estrutura pessoal), na sua relação com Deus (estrutura teologal), com os outros (estrutura social) e com o mundo (estrutura cósmica).

Desde sempre, o homem sentiu a urgência de se compreender a si próprio, questionando o mundo que o rodeia, os seus desejos e ideais, o sentido da vida, da dor e da morte. O ser humano é dotado de dons naturais (a inteligência, a liberdade e a sensibilidade), de dons sobrenaturais (a graça e a visão beatífica) e preternaturais (a ausência da morte, da dor e da concupiscência). Consequência do pecado, o homem terá perdido os dons sobrenaturais e preternaturais, após a desobediência de Adão, mas Deus, na sua plenitude e infinita bondade, promete restituir em Cristo, os dons sobrenaturais (e não os preternaturais). Os dons preternaturais, que em essência descrevem as aspirações perenes da humanidade, surgem, então, como expressão profética dos frutos que a graça produz na história, quando esta se transforma segundo o projeto divino.

Na revelação bíblica, a relação com Deus é a dimensão fundamental do ser humano, do qual dependem as outras estruturas (pessoal, social e cósmica). A dignidade do homem, e a superioridade em relação às outras criaturas, tem como base a abertura estrutural do homem à relação de comunhão com Deus. Como afirmam Rahner e Lubac – o homem é fruto de um desígnio divino unitário, em que a criação é a condição necessária para a salvação.

A dimensão pessoal do homem, imagem de Deus, supõe a estrutura da liberdade, enquanto espaço de encontro com o outro. No sentido bíblico, a liberdade, como responsabilidade, é o terreno do encontro com Deus, onde o homem pode aceitar o dom da graça, ou pode recusá-lo, caindo no pecado. A visão bíblico-cristã da história é fruto de duas liberdades, a de Deus e do seu projeto de salvação e aquela inerente ao homem, que o leva a colaborar, ou não, na realização desse projeto. A graça libertadora de Cristo é a autenticidade do homem.

O ser humano criado à imagem de Deus é um ser aberto à comunhão com ele e com os outros homens. Esta dimensão social do homem realiza-se através da comunhão, desde a mais elementar e primária célula familiar, de marido e mulher até aos grupos e povos mais amplos e mesmo o género humano no seu conjunto, que culmina no amor. A doutrina de Cristo é a combinação da liberdade individual com a solidariedade e a sociedade.

O homem está, ainda, estruturalmente aberto ao mundo, devido à sua presença corporal nele. Trata-se da sua dimensão cosmológica que, ao longo da história, nem sempre foi bem aceite pela antropologia, devido à influência do dualismo platónico e da sua interpretação espiritualista. Perante a visão platónica e o naturalismo moderno, a Revelação conduz à união da ordem da natureza, reflexo da sabedoria divina, com a ciência, que permite compreender o mundo e com a técnica que permite dominá-lo. O homem, criado, em Cristo, e predestinado à salvação e plenitude por vontade gratuita de Deus, encontra no carácter central de Cristo o fundamento das suas expectativas mais profundas.

Núcleo dogmático do pecado original definido no Concílio de TrentoA humanidade perfeita, saída das mãos de Deus, assim não permaneceu. Adão desobedeceu e foi castigado

com a expulsão do paraíso, enfrentando um destino de miséria, de sofrimento e de morte. As consequências da sua desobediência afetaram toda a humanidade, em toda a história. Porém, esta culpa é apagada pelo batismo em Cristo, ainda que algumas consequências não deixem de se sentir (sofrimento, morte, concupiscência). Em síntese, este é o ensinamento dos catecismos pós-tridentinos sobre o pecado original.

A noção de pecado original e originante acompanhou, desde sempre, a história da humanidade. Original, porque foi a culpa anterior (com características próprias de todo o pecado), resultado do primeiro pecado pessoal de Adão, que provocou a rutura com Deus; e originante, porque deu origem à situação de pecado que afeta a humanidade, que continua a ser pecadora, apesar da redenção de Cristo, em virtude dos pecados pessoais.

O pecado supõe um fundo metafísico: a autoafirmação do homem que quer realizar-se, sem Deus. Sem a referência divina, o homem rompe, de raiz, com o seu equilíbrio interior, as relações com os seus semelhantes e com o mundo. Sendo o homem imagem de Deus, a recusa de Deus repercute-se em todo o sistema de relações humanas e conduz o homem à degradação e ao fracasso, a todos os níveis – pessoal, social e cósmico – com reflexos em todos os aspetos da sua vida: teológicos, éticos, antropológicos, sociais e cósmicos.

Page 7: Características da antropologia bíblica

A doutrina católica, sobre o pecado original, foi alvo de reflexão em vários concílios, tendo sido finalmente determinada no Concílio de Trento.

Em primeiro lugar, ensinou que Adão transgrediu a vontade divina e perdeu a santidade e a justiça original, merecendo a morte e a deterioração da alma e do corpo. A referência à liberdade corrompida foi abordada tenuemente, já que poderia ser interpretada a favor da posição luterana.

Depois, afirmou a transmissão do pecado original, por geração e não por simples imitação, com todas as suas consequências, a toda a sua descendência, insistindo existência do pecado, em cada um, como algo próprio – e não como uma atribuição extrínseca, posição defendida pelos luteranos – reiterando, assim, a necessidade absoluta de Cristo para a salvação.

Seguidamente declarou a necessidade do batismo para todos, inclusive para as crianças de pais cristãos. Estas definições do pecado original, expressas nos primeiros quatro cânones, excluindo a questão da

imputação extrínseca do pecado, no terceiro cânon, não surgiram, diretamente, como oposição e resposta à doutrina reformadora de Lutero e Calvino, mas pretenderam antes responder a uma certa inclinação neopelagiana que emergia no ambiente humanista da época e procuraram dar uma visão completa do problema do pecado original.

Já o cânon número cinco opôs-se abertamente às doutrinas luteranas ao afirmar o cunho verdadeiramente purificador do batismo, que elimina realmente o pecado, não se limitando a disfarçar, pela misericórdia divina, a índole pecadora do homem. A culpa é-lhe perdoada deveras e não só imputada, contudo, a concupiscência persiste no batizado, não como pecado, mas como ocasião de luta pelo bem.

Finalmente, houve uma alusão à exclusão da Virgem Maria, em relação ao que se afirmou sobre os homens. É de salientar que, nos textos sobre o pecado original, saídos do Concílio de Trento, não houve qualquer

referência à sua natureza, nem às suas consequências (só uma alusão à morte e à concupiscência). A visão de fundo do decreto sobre o pecado original é de influência Paulina, que subordinava a doutrina do pecado original à redenção universal de Cristo, mas uma interpretação desfocada, ao longo dos séculos, inverteu a perspetiva cristocêntrica, tornando-a hamartiocêntrica e dominada pelo pecado.

A dimensão social do homemO ser humano realiza-se como pessoa pela relação de diálogo e comunhão com os outros e com o mundo, à

semelhança da Santíssima Trindade. São Tomás, sintetizando a posição dos Padres da Igreja, afirma que, em Deus, ser pessoa é ser relação

subsistente, ou seja, viver o próprio ser em si, no ser para, com e no outro; viver o dom recíproco, na mútua inabitação, definida pelos Padres gregos como perikorésis. Na relação de comunhão existente entre os homens, na sua partilha, superando o egoísmo, encontramos um paralelismo com as relações presentes no mistério trinitário: a comunhão entre as pessoas da Trindade, que compartilham tudo exceto as qualidades pessoais.

O homem, criado à imagem de Deus Trino, à luz do mistério de Cristo, encontra a sua realização pela dinâmica do amor, superando o egoísmo e o individualismo. Na perspetiva do amor cristão, subsistência e relação não divergem; pelo contrário, a relação converte-se numa marca que caracteriza a verdadeira subsistência.

A Sagrada Escritura inicia-se com uma referência à primeira relação de comunhão, existente entre o homem e a mulher. Criados por Deus para se complementarem nas suas diferenças, formam a família, onde ambos se realizam, e que inclui desde a sexualidade até à condição social do ser humano. Este núcleo basilar da sociedade tem um papel fundamental na formação da conduta social ao exprimir as diferentes manifestações do amor: conjugal, paternal, maternal, filial, fraternal e social, até alcançar um plano mais vasto de socialização que inclui povos e nações, culturas, crenças e sistemas políticos.

Pela perspetiva bíblica, trinitária e cristológica concluímos que, quanto maior for a capacidade do homem para a comunhão com os outros, em liberdade, mais se realiza. Na sua entrega aos outros, segue o exemplo de vida de Jesus Cristo, modelo de dádiva total aos homens, por vontade do Pai. Para o cristão, o amor é, pois, o elemento que alicerça e constrói a nova humanidade, em réplica ao egoísmo desintegrador do homem e da sociedade. A Igreja deve ser o modelo desta comunidade.

Na cultura moderna, a dimensão dialogal, do amor e da comunhão, vai perdendo o lugar que está a ser ocupado pelo aumento do individualismo, valorizando-se a autoconsciência, o livre arbítrio e os direitos pessoais. Apesar desta tendência moderna, não podemos esquecer que uma característica invariável do ser humano é a sua vocação ao diálogo, à relação e à comunhão. O homem é, e continua a ser, pessoa, porque na sua natureza está presente o interagir com os outros, numa verdadeira abertura à comunhão.

O personalismo do século XX recupera a visão bíblica da liberdade, possibilitando ao homem tomar decisões, tendo em linha de conta o dom da abertura ao transcendente e, por outro lado, recusando fechar-se em si próprio, mas buscando uma autonomia verdadeira perante Deus, não num sentido negativo de dependência, mas numa afirmação de responsabilidade diante de Deus, dos irmãos e do mundo.

Page 8: Características da antropologia bíblica

Anjos e demónios: significado para a antropologia cristãA teologia cristã tradicional admite como realidade inquestionável, até à época moderna, a existência de

espíritos subordinados a Deus: os anjos e demónios, com as suas intervenções positivas ou negativas para o homem.O distanciamento cultural deste mundo começou já durante o Renascimento, ao atribuir o fenómeno das

bruxas aos astros e não à influência demoníaca. Todavia, é com o Iluminismo que se passa de uma visão demonológica do mundo para uma ótica mecanicista. A partir daqui, toda a referência espíritos é banida das ciências naturais. São diversas as posturas assumidas. Freud afirma que são o resultado de perturbações psíquicas em virtude de maus desejos e estímulos instintivos recalcados. Já Bultmann exprime a opinião protestante, defendendo que o mundo dos anjos e demónios pertence à visão bíblica do mundo, hoje completamente ultrapassada. Para Tillich, não passam de concretizações poético-simbólicas das ideias ou das potências do ser, que não devem ser entendidas no seu sentido literal.

No seio do catolicismo, assistimos a uma controvérsia que tem início em 1969, com H.Haag. Este afirma que as referências a seres intermediários, no Antigo Testamento, não são mais do que restos insignificantes das crenças do mundo circundante e que, no Novo Testamento, os anjos e demónios desempenham um papel subordinado e que não advêm dos ensinamentos de Jesus. Haag refere também as consequências negativas da crença no diabo, ao longo dos séculos. Esta posição provocou uma nota oficiosa do Observatório Romano defendendo a doutrina tradicional católica. Ainda hoje, o debate, sobre anjos e demónios, continua aberto, no âmbito da teologia católica.

Porém, na análise desta questão, é forçoso notar que a Bíblia fala destas realidades, sempre, de modo acidental e num contexto de verdades mais amplas e decisivas. Mesmo as intervenções magisteriais são escassas e limitam-se ao estritamente necessário (existência e influência nos homens). Já a teologia, ao longo dos séculos descuidou, frequentemente, a subordinação da angelologia e da demonologia à cristologia. Daí a necessidade de uma releitura, nos dias de hoje, dos textos bíblicos e tradicionais, sob uma ótica histórico-salvífica. De facto, anjos e demónios estão dirigidos para a história da salvação, centrada em Cristo; e esta história transpõe o âmbito humano e abarca toda a realidade criada, mesmo aquela que é difícil de reconhecer pelo homem.

A figura dos anjos foi alvo de várias interpretações ao longo dos tempos pelo exegetas, que afirmavam ser intermediários que acentuavam a transcendência divina, assumindo grande relevância no apocalipse. No Novo Testamento, foram sempre apresentados com uma função cristológica, tendo sido, a sua teologia e culto, muito difundidos na Igreja. O que realmente importa é o reconhecimento da sua implicação no projeto salvífico, centrado em Cristo, e da sua função de ajuda ao homem, dependentes sempre de Cristo.

Os demónios, muito referenciados pelos cultos ligados ao espiritismo, não obstante a cultura científica atual, são considerados anjos caídos e levantam uma grande dificuldade de fundamentação à teologia, quer do ponto de vista bíblico, quer do magistério. Por isso, se difundiu a tendência de considerar o diabo como um mito, símbolo do mal que se apodera do homem a partir do exterior. Contra esta atitude generalizada, têm tomado posição alguns papas recentes, reiterando a doutrina tradicional cristã da existência e natureza pessoal dos demónios. No plano antropológico a crença no demónio entrelaça-se com a exigência de explicar a presença do mal no mundo.

ConclusãoDepois de estudado o manual, ficaram-me três ideias fundamentais da antropologia teológica.Em primeiro lugar, a condição de criatura do homem, criado por Deus, à sua imagem, por amor e, por isso,

elevado à condição de pessoa. Este é o fio condutor de toda a antropologia teológica porque não só expressa a relação dialogal de comunhão com Deus, vista como fundamento da dignidade humana, mas também a relação fraterna entre os homens e a relação de domínio e conservação da natureza.

Em segundo lugar, a condição pecadora do ser humano, caído após o pecado de Adão, mas abrangido pelo projeto salvífico de Deus. Neste âmbito, o grande relevo dado ao longo da história da salvação ao binómio liberdade e graça, revela a grande importância do homem enquanto colaborador, ou não, no plano divino. A história não tem sentido sem liberdade e esta, enquanto responsabilidade, é ponto de encontro com Deus (graça) ou recusa desse encontro (pecado).

Em terceiro lugar, a redenção em Cristo, revelador do Pai e modelo do homem. Por viver na plenitude humana a relação filial divina, Jesus desvela e realiza o sentido do homem, criado à imagem de Deus, e chamado por ele a uma relação filial gratuita. Jesus é o arquétipo da criação, o novo Adão e a expressão plena do amor de Deus. Ele aparece simultaneamente como sacramento de Deus e como manifestação do homem. Por isso, ao ser dom de si, ele fundamenta a pessoa, como ser em relação, a qual é a chave para a leitura do mistério de Deus, de Cristo e do homem.