capoeira perspectiva intercultural

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CAPOEIRA

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  • A capoeira na perspectiva intercultural: questes para a atuao e formao de

    educadores(as)

    Mrcio Penna Corte Real1

    1 . I, d volta ao mundo, camar

    Gostaria inicialmente de agradecer ao convite para estar aqui esta tarde falando

    sobre capoeira. O convite muito especial para mim. Talvez, mais do que ter coisas a

    falar, eu tenha muito a apreender sobre capoeira, principalmente com os Mestres,

    Professores, demais capoeiras e com o pblico presente. Tenho a pretenso de levantar

    algumas questes sobre a capoeira, com as quais possamos dialogar, tentando contribuir

    com nosso papoeira.

    Agradeo, ento, ao Prof. Kblera e a UNIFEBE pelo convite. Tambm gostaria

    de aproveitar a oportunidade para de pblico citar meus companheiros e companheiras

    da Cooperativa Catarinense de Capoeira com quem tenho aprendido muito,

    especialmente: os Mestres Kadu, Pop, Falco e Calunga; e os Professores Bode, Kblera,

    Salmir e Jymmiwall, seus grupos e alunos.

    Pensei em fazer uma fala que tivesse como preocupao de fundo a atuao e

    talvez a prpria formao dos educadores de capoeira devo esse termo ao Mestre

    Kadu, que sempre insiste na importncia do seu uso no sentido de chamar ateno para

    a responsabilidade daqueles(as) que ensinam capoeira.

    No sentido de problematizar a questo, falarei sobre a idia de que a capoeira

    pode ser entendida como uma prtica cultural no sentido mais dinmico possvel do

    termo. A partir da, tentarei argumentar que a intercultura uma forma de explicar o

    potencial educativo da capoeira, relatando algumas experincias que, penso eu, podem

    enriquecer nosso dilogo. Concluirei fazendo o resumo de algumas questes sobre a

    atuao/formao dos educadores de capoeira.

    2. Eu quero pedir licena para o senhor dono da roda: a capoeira como prtica

    cultural

    1 Licenciado em Educao Artstica habilitao em Msica; e Mestre em Educao pela UFSM. Acadmico do Curso de Doutorado em Educao PPGE/CED/UFSC, linha Ensino e Formao de Educadores; Bolsista do CNPq. Professor Adjunto do Departamento de Artes da UCS.

  • 2

    Se nos perguntssemos como podemos definir a capoeira a possibilidade de

    respostas seria bastante variada e ampla. Alguns entre ns diriam: capoeira uma luta;

    outros diriam capoeira um esporte; outros, ainda, poderiam dizer capoeira lazer,

    festa, vadiao, brincadeira, uma atividade educativa de carter informal.

    Talvez, aqueles e aquelas mais inconformados, como eu, com as classificaes

    simplistas e reducionistas rejeitariam todos esses termos e diriam que a capoeira tudo

    isso.

    Poderamos, ento, pensar uma forma de expressar ou compreender toda a

    vivacidade da capoeira. nesse sentido que penso que compreender a capoeira como

    sendo uma prtica cultural representa um ganho ou mesmo um salto qualitativo para

    alm das vises essencialistas, que, por vezes, apelam para um mito de origem

    reivindicando a pureza ou a tradio de um certo antigamente da capoeira.

    Com isso quero chamar ateno para o entendimento de que as prticas culturais,

    como a capoeira, no esto paradas no tempo e, por isso mesmo, a transformao

    constante algo inevitvel. Certamente, as necessidades e os problemas dos(as)

    capoeiras de outrora no os mesmos de hoje. A cada dia se joga uma capoeira diferente.

    A capoeira de hoje diferente da ontem e da de amanh esse exemplo de constante

    transformao demonstra suficientemente bem que a cultura est em permanente

    mudana.

    Assim, prticas culturais so aquelas atividades que movem um grupo ou

    comunidade numa determinada direo, previamente definida sob um ponto de vista

    esttico, ideolgico, etc. (COELHO, 1999, p.314).

    O que importa dizer que seja qual for a forma de entendermos a capoeira, seja

    como luta, esporte, dana ou de outra maneira aqui no pensada, um ponto fundamental

    pode estar na relao dessas idias com a prtica da capoeira.

    O que quero questionar o seguinte: quais conseqncias uma capoeira

    compreendida como esporte, como luta pode ter para seu ensino? Ou quais

    conseqncias a capoeira entendida como cultura, como vadiao pode ter para o seu

    ensino e para sua prtica? Ou melhor, quais dessas opes queremos?

    3. Rodas em que todos e todas jogam: a dimenso intercultural da capoeira

  • 3

    A busca por essa defesa da idia da capoeira enquanto prtica cultural tem a ver

    com um pensamento que procura chamar ateno para a necessidade de dialogarmos

    com as diferenas. Nesse sentido, at poderamos falar da existncia no de uma

    capoeira, mas de capoeiras: capoeiras danas; capoeiras lutas; capoeiras esportes;

    capoeiras culturas; capoeiras angolas, regionais, contemporneas e assim por diante.

    no sentido do dilogo com a diferena e do reconhecimento da diversidade

    presente na capoeira que talvez seja oportuna a noo de interculturalidade.

    A educao Intercultural uma forma de educao que: requer que se trate nas

    instituies educativas os grupos populares no como cidados de segunda categoria,

    mas que se reconhea seu papel ativo na elaborao, escolha e atuao das estratgias

    educativas (FLEURI, 2000, p.4, grifos meus). A mesma visa a promover processos

    integradores que conciliem os direitos de igualdade dos cidados e os direitos de

    diferenas das culturas (FLEURI, 1998, p.13-4). Ser que uma roda de capoeira no

    um bom exemplo de processo integrador, no qual todos so iguais no direito

    participao, como no direito diferena de ter seu jeito prprio de vadiar?

    Ultimamente tenho participado e visto algumas experincias no contexto da

    capoeira que mostram a possibilidade da construo de projetos coletivos baseados na

    participao solidria prxima a essa viso da educao intercultural. Essas experincias

    tm sido caraterizadas por alguns pontos como: troca de saberes entre

    universidade/capoeira; a importncia do coletivo e da colaborao para alcanar

    objetivos comuns; e o destaque do papel fundamental da msica e sua dimenso

    educativa na capoeira. Tentarei comentar essas idias relatando brevemente algumas

    experincias.

    Quando morava no Rio Grande do Sul, comecei a praticar capoeira, no espao

    da Universidade Federal de Santa Maria, em aulas ministradas gratuitamente por dois

    acadmicos do curso de Educao Fsica, conhecidos na capoeira como Preto e Batata.

    Nesse grupo, estava constantemente envolvido em apresentaes de capoeira em

    escolas, campanhas de arrecadao de agasalhos, de esclarecimento sobre aids e outras

    doenas e em momentos de luta, como nas semanas de conscincia negra.

    Esse trnsito na capoeira, me levou a questionar, cada vez mais: qual o potencial

    de sistematizao de prticas educativas com e na capoeira?

    Depois, quando fiz Educao Artstica habilitao em msica nessa

    universidade, tive a oportunidade de integrar um grupo de educadores em msica. Nesse

    grupo, alm de realizarmos cursos de curta durao para professores(as) da rede escolar

  • 4

    estadual de Santa Maria, tematizando a dimenso educativa da capoeira, fizemos uma

    srie de apresentaes musicais com a participao de dois capoeiras amigos meus, o

    Panthera e o Alfinete, na poca, instrutores de capoeira que participavam de nossas

    apresentaes tocando berimbau. Assim, a partir dessa relao entre acadmicos e

    capoeiras, se deu uma importante troca de saberes entre universidade/capoeira.

    Com isso, queria colocar a questo sobre qual poderia ser a contribuio da

    relao da universidade especialmente de pesquisadores concreta e politicamente

    envolvidos com a capoeira? Ou mais, qual a contribuio de momentos como este que

    estamos vivendo hoje aqui? Qual a importncia da capoeira estar dentro do espao

    acadmico?

    Ainda durante essa fase, foi dado um forte destaque ao carter de protesto e

    contestao social presente nas msicas da capoeira; observando a idia de que as

    msicas so sempre improvisadas e, em geral, falam do negro na senzala, do negro

    livre, da religio, da comunidade, seus hbitos, seus feitos, etc. algumas vezes so

    cantos de louvor, tristeza, revolta, desafio (CAPOEIRA: A ARTE MARCIAL DO

    BRASIL, 1983, p.8, grifos nossos).

    vlido notar o potencial de mobilidade, de crtica e contestao social presente

    na capoeira, especialmente nas temticas de suas msicas. Tais msicas organizam uma

    srie de prticas educativas informais na capoeira ao ditarem normas da dinmica do

    jogo; e ao assumirem a narrativa das lutas da cultura popular, especialmente negra.

    Dessa fase, ao menos dois questionamentos mais evidentes ficaram em aberto,

    que gostaria de compartilhar: diante do fato da capoeira, hoje, ser reivindicada como um

    patrimnio da cultura brasileira (MUKUNA, c.a., 1980), podemos dizer que essa prtica

    cultural ainda potencializa uma dimenso crtica de protesto e contestao social?

    Mais do que isso gostaria de problematizar: qual ou qual tem sido o papel da

    msica na atuao dos educadores de capoeira? A msica um saber que est ao

    alcance de todos e todas na capoeira? As temticas tratadas nas msicas tm favorecido

    ideais comunitrios?

    Outra experincia vivida recentemente foi quando ministrei uma disciplina em

    um curso de especializao na Faculdade da Serra Gacha para licenciados em

    Educao Fsica. Em um determinado momento, coloquei para os estudantes, como

    desafio, a seguinte questo: possvel em um grupo misto como o nosso formarmos

    uma roda de capoeira?

  • 5

    Depois de discutirmos e deles terem dito que seria necessrio que todos se

    envolvessem, realizamos, aps o estudo de alguns movimentos, aquilo que para ns foi

    uma roda de capoeira. Chegamos concluso de que o fundamental a colaborao. Ou

    seja, sem a participao de cada um o coletivo, no caso a roda de capoeira, no

    acontece. Sei que isso no novidade para a maioria de vocs. Mas oportuno saber

    que no contexto da capoeira as pessoas podem ser valorizadas por aquilo que cada um ,

    seja batendo palmas, cantando no coro ou jogando na roda. Ou seja, existe a

    possibilidade de lutarmos por objetivos comuns, como por exemplo, realizarmos uma

    roda de capoeira.

    Assim, a organizao de uma roda de capoeira, quando feita de forma

    comunitria, condizente com os problemas vividos e as identidades locais, vislumbra a

    idia de sujeito coletivo, proposta por SADER (1988). Ou seja, preciso recuperar a

    idia de sujeito coletivo, como uma coletividade na qual se elabora uma identidade e se

    organizam prticas em que seus membros pretendem defender seus interesses e

    expressar suas vontades, constituindo-se nessas lutas (SADER, 1988, p.11).

    Entendo que a capoeira desenvolve vises de mundo, que tm a ver com a

    malcia, com a ginga, mas tambm com a humildade do capoeira; que lhe permite uma

    forma de enfrentamento dos problemas vividos.

    nesse sentido que gostaria de falar aqui da Cooperativa Catarinense de

    Capoeira, como uma experincia de construo coletiva e de luta por objetivos comuns.

    A cooperativa Catarinense de Capoeira pretende desenvolver projetos culturais,

    educativos e estudos entre os(as) capoeiras. Poder ser dito que isso j feito pelos

    grupos de capoeira e esse justamente o ponto. A Cooperativa de Capoeira pretende

    unir os(as) capoeiras, que independente disso podem e devem continuar o trabalho nos

    seus grupos. Porm, na Cooperativa estaro unidos em torno da capoeira e da idia de

    que todos(as) tm sua parcela de contribuio na luta pela valorizao da capoeira nas

    suas diferentes dimenses e perspectivas. Este trabalho de hoje, alis, o exemplo de

    uma ao cooperativa.

    Um outro questionamento seria sobre a atuao daqueles que so responsveis

    por aquilo que considero um conjunto de prticas educativas informais; ou seja, aqueles

    que chamamos de professores e professoras ou para lembrar educadores de capoeira.

    Como esses educadores desenvolvem informalmente seus processos de formao?

    Como desenvolvem estratgias de organizao educativa, por exemplo, mediadas pela

  • 6

    msica? Qual so as suas vises e opinies sobre as atuais discusses sobre a

    regulamentao dos profissionais de capoeira?

    4. Adeus, adeus: questes sobre a atuao e formao dos(as) educadores(as) de

    capoeira

    Para concluir gostaria apenas de fazer um balano das idias e questes

    levantadas. Penso que seja vlida a viso da capoeira como sendo dinmica, inserida no

    processo histrico e em constante transformao. Portanto, como uma prtica cultural,

    que engloba os aspectos de arte, luta, dana, esporte, educao, resistncia entre outros.

    Lembrar tambm da possibilidade de compreender a capoeira na perspectiva

    intercultural da educao, significa reconhecer a riqueza dessa prtica cultural em suas

    mltiplas formas. Por isso mesmo, a perspectiva intercultural chama ateno para

    necessidade de reconhecimento das diferentes formas de manifestao da capoeira.

    Necessidade tambm de reconhecer a individualidade de cada pessoa e sua

    contribuio, seja para realizao de uma roda de capoeira, seja na luta por seu

    reconhecimento. Mas sobretudo, a idia de intercultura chama ateno para necessidade

    de lidarmos com todos os tipos de conflitos presentes numa prtica cultural como a

    capoeira que mostram que a capoeira , de fato, uma luta, assim como a cultura um

    campo de lutas sociais.

    Termino, ento, com as questes:

    - Quais conseqncias de compreender a capoeira como prtica cultural em

    transformao que engloba esporte, luta, arte, resistncia, educao entre

    outros aspectos? Quais opes dessas queremos?

    - At que ponto a roda ou a capoeira como um todo um exemplo de

    educao intercultural? Ou seja, a capoeira pode ser um espao de

    participao de pessoas diferentes unidas por objetivos comuns?

    - Qual pode ser a contribuio da relao da universidade com a capoeira?

    Acadmicos e capoeiras podem ter algo a aprender juntos?

    - Qual tem sido o papel da msica na atuao e formao dos educadores de

    capoeira?

  • 7

    Se alguma de todas essas palavras que disse conseguiu mexer um pouco com os

    pensamentos de vocs, assim como o capoeira se mexe quando o berimbau chora, terei

    cumprido o meu propsito em estar nesta roda.

    Segue o jogo.

    Obrigado e ax para todos e todas,

    M.P CORTE REAL

    Brusque, 03 de abril de 2004.

    Ttulo: A capoeira na perspectiva intercultural: questes para a atuao e formao de

    educadores(as)

    Mrcio Penna Corte Real

    Ementa:

    O entendimento da capoeira enquanto prtica cultural. A dimenso intercultural

    da capoeira. Questes sobre a atuao e formao dos(as) educadores(as) de capoeira.

    Resumo:

    Busca-se a compreenso da capoeira enquanto uma prtica cultural dinmica e

    transformadora. Explicita-se a dimenso educativa da capoeira na perspectiva

    intercultural; e relatam-se experincias no contexto universitrio e da Cooperativa

    Catarinense de Capoeira como subsdios para reflexo de questes sobre a atuao e

    formao de educadores(as) de capoeira.

    Metodologia:

  • 8

    Exposio dialogada visando definio dos conceitos de prtica cultural,

    educao intercultural e problematizao de questes sobre a atuao e formao de

    educadores(as) de capoeira.

    Referncias bibliogrficas:

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  • 9

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