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ISSN 2176-1396 A POSSIBILIDADE DE UMA APRENDIZAGEM MAIS SIGNIFICATIVA POR MEIO DA INTERNACIONALIZACÃO DO CURRÍCULO NA PERSPECTIVA INTERCULTURAL Fernanda Souza 1 - UNIDAVI Alessandra de Fátima Giacomet Mello 2 - UNIVALI Isaura Maria Longo 3 - UNIVALI Eixo Cultura, Currículo e Saberes Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo Questões sobre a internacionalização dos currículos dos cursos de graduação de Instituições de Ensino Superior (IES) brasileiras emergem há tempo nos processos de atualização de projetos pedagógicos de curso. Neste sentido, compreende-se a importância da inserção de componentes curriculares em língua estrangeira nas matrizes dos cursos, bem como o envio de alunos e professores para a mobilidade internacional. Entretanto, considera-se que a internacionalização do currículo poderia alcançar um nível mais profundo no processo de ensino e de aprendizagem de alunos e professores com o uso de uma perspectiva intercultural. Neste contexto, em 2016, desenvolveu-se uma atividade de integração entre educação multicultural e ensino com o objetivo de vivenciar a integração da perspectiva intercultural na primeira versão do processo de internacionalização de uma disciplina de um curso de graduação. Para tanto, selecionou-se a disciplina Recursos Tecnológicos na Educação, presente no currículo do curso de Licenciatura em Educação Física de um centro universitário localizado na região do Alto Vale do Itajaí, no estado de Santa Catarina. Como apoio metodológico utilizou-se os cinco estágios para o processo de internacionalização do currículo sugeridos por Betty Leask: revisar e refletir; imaginar; revisar e planejar; agir; e avaliar. Devido restrição de laudas optou-se por não apresentar a fase de avaliação. Como aporte teórico utilizou-se: Ausubel (1980), Candau (2012), Leask (2009, 2015), Luna (2016) e Santos (2002). O novo desenho da disciplina reelaborada na perspectiva intercultural , viabilizou a ancoragem de conceitos importantes da mesma nos conhecimentos e nas vivências prévias dos alunos, o que concedeu à disciplina um nível de discussão mais profundo e significativo. Nesse processo, situações multiculturais emergiram no desenrolar da 1 Mestre em Educação pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Professora do Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí (UNIDAVI). Doutoranda no programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). E-mail: [email protected]. 2 Mestre em Educação pelo UNICS Palmas-PR. Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação (UNIVALI). E-mail: [email protected]. 3 Mestre em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação (UNIVALI). Professora nos cursos de comunicação da UNIVALI. Participa do Grupo de Pesquisa na linha de pesquisa Políticas Públicas em Educação Básica e Superior. E-mail: [email protected].

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Page 1: A POSSIBILIDADE DE UMA APRENDIZAGEM MAIS SIGNIFICATIVA … · Palavras-chave: Internacionalização do Currículo. Perspectiva Intercultural. Ancoragem. Conhecimentos Prévios. Aprendizagem

ISSN 2176-1396

A POSSIBILIDADE DE UMA APRENDIZAGEM MAIS

SIGNIFICATIVA POR MEIO DA INTERNACIONALIZACÃO DO

CURRÍCULO NA PERSPECTIVA INTERCULTURAL

Fernanda Souza1 - UNIDAVI

Alessandra de Fátima Giacomet Mello2 - UNIVALI

Isaura Maria Longo3 - UNIVALI

Eixo – Cultura, Currículo e Saberes

Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

Questões sobre a internacionalização dos currículos dos cursos de graduação de Instituições

de Ensino Superior (IES) brasileiras emergem há tempo nos processos de atualização de

projetos pedagógicos de curso. Neste sentido, compreende-se a importância da inserção de

componentes curriculares em língua estrangeira nas matrizes dos cursos, bem como o envio

de alunos e professores para a mobilidade internacional. Entretanto, considera-se que a

internacionalização do currículo poderia alcançar um nível mais profundo no processo de

ensino e de aprendizagem de alunos e professores com o uso de uma perspectiva intercultural.

Neste contexto, em 2016, desenvolveu-se uma atividade de integração entre educação

multicultural e ensino com o objetivo de vivenciar a integração da perspectiva intercultural na

primeira versão do processo de internacionalização de uma disciplina de um curso de

graduação. Para tanto, selecionou-se a disciplina Recursos Tecnológicos na Educação,

presente no currículo do curso de Licenciatura em Educação Física de um centro universitário

localizado na região do Alto Vale do Itajaí, no estado de Santa Catarina. Como apoio

metodológico utilizou-se os cinco estágios para o processo de internacionalização do

currículo sugeridos por Betty Leask: revisar e refletir; imaginar; revisar e planejar; agir; e

avaliar. Devido restrição de laudas optou-se por não apresentar a fase de avaliação. Como

aporte teórico utilizou-se: Ausubel (1980), Candau (2012), Leask (2009, 2015), Luna (2016) e

Santos (2002). O novo desenho da disciplina – reelaborada na perspectiva intercultural –,

viabilizou a ancoragem de conceitos importantes da mesma nos conhecimentos e nas

vivências prévias dos alunos, o que concedeu à disciplina um nível de discussão mais

profundo e significativo. Nesse processo, situações multiculturais emergiram no desenrolar da

1 Mestre em Educação pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Professora do Centro Universitário

para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí (UNIDAVI). Doutoranda no programa de Pós-Graduação em

Educação da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). E-mail: [email protected]. 2

Mestre em Educação pelo UNICS – Palmas-PR. Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação

(UNIVALI). E-mail: [email protected]. 3

Mestre em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora da Universidade do

Vale do Itajaí (UNIVALI). Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação (UNIVALI). Professora

nos cursos de comunicação da UNIVALI. Participa do Grupo de Pesquisa na linha de pesquisa Políticas Públicas

em Educação Básica e Superior. E-mail: [email protected].

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disciplina o que foi essencial para viabilizar a perspectiva intercultural, pois se compreendeu

que é por meio da possibilidade de infusão das questões multiculturais que nasce a prática da

mediação intercultural docente.

Palavras-chave: Internacionalização do Currículo. Perspectiva Intercultural. Ancoragem.

Conhecimentos Prévios. Aprendizagem Significativa.

Introdução

No ano de 2005, uma Instituição de Ensino Superior (IES), localizada na região do

Alto Vale do Itajaí, Santa Catarina (SC), constituiu um setor responsável pelas relações

internacionais da entidade. Desde então, a IES vem desenvolvendo atividades diversas

(Figura 1) visando apoiar o processo de internacionalização do currículo dos seus cursos de

graduação.

Figura 1 – Marcos Históricos do Processo de IoC da IES

Fonte: Elaborado a partir de informações da coordenação de Relações Internacionais da IES

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Ainda, no ano de 2016, a IES estreitou laços com o professor e pesquisador José

Marcelo Freitas de Luna4 e inseriu, em suas discussões, a possibilidade de internacionalização

do currículo (IoC) na perspectiva intercultural, pois o pesquisador discorreu sobre a

importância da “aproximação entre duas grandes e crescentes áreas de investigação e de

formação, a internacionalização do currículo e a educação intercultural.” (LUNA, 2016, p.

37).

Compreendeu-se, com fundamento em Leask (2009, p. 209, tradução nossa), a

internacionalização do currículo, em um primeiro momento, como “a incorporação de uma

dimensão internacional e intercultural no conteúdo do currículo, bem como nos processos de

ensino e aprendizagem e serviços de apoio de um curso. Entretanto, posteriormente, no ano de

2015, adotou-se o conceito – refinado pela autora – de que a internacionalização do currículo

é a incorporação de “dimensões internacionais, interculturais e/ou globais no conteúdo do

currículo, bem como nos objetivos de aprendizagem, nas atividades de avaliação, métodos de

ensino, e serviços de apoio de um curso” (LEASK, 2015, p. 9, tradução nossa).

Diante desse contexto, realizou-se, no ano de 2016, uma atividade de integração entre

educação multicultural e ensino ora apresentada, com o objetivo geral de vivenciar a

integração da perspectiva intercultural na primeira versão do processo de internacionalização

de uma disciplina de um curso de graduação. Para tanto, selecionou-se a disciplina Recursos

Tecnológicos na Educação, presente no currículo do curso de Licenciatura em Educação

Física de um centro universitário localizado na região do Alto Vale do Itajaí, no estado de

Santa Catarina (SC).

Vislumbrando uma possibilidade

Durante o desenrolar da disciplina Internacionalização do Currículo na Perspectiva

Intercultural, cursada no segundo semestre de 2016, no Doutorado em Educação, da

Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), se fez tentativas de tecer discussões com o Pró-

reitor de Ensino (PROEN) do Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do

4 Doutor em Linguística pela Universidade de São Paulo (1999), com estágio sanduíche na Universidade de

Cambridge (Inglaterra); professor e pesquisador vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação da

Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), com publicações na área de Internacionalização do Currículo na

Perspectiva Intercultural; investigador do Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais da

Universidade Aberta de Portugal.

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Itajaí (UNIDAVI)5 sobre a possibilidade de a instituição qualificar o processo de

internacionalização curricular para além da inserção de disciplinas em língua estrangeira nos

cursos de graduação, ou seja, na perspectiva intercultural. O pró-reitor, munido de

objetividade, questionou: “como esse novo tipo de internacionalização se faz na prática?”.

Na tentativa de responder a tal questionamento, procurou-se defender a ideia da

necessidade da elaboração de um projeto de formação pedagógica que atingisse, em um

primeiro momento, todos os gestores envolvidos com a área de ensino da IES, ou seja, reitor,

vice-reitor, pró-reitor de ensino, coordenador de relações internacionais, assessores

pedagógicos da pró-reitoria de ensino e coordenadores de curso de graduação, que fariam o

exercício de vislumbrar a possibilidade de internacionalizar suas próprias disciplinas, a partir

da avaliação e discussão de seus próprios planos de ensino, acompanhados pelo professor

Luna como formador.

Entretanto, o questionamento do pró-reitor de ensino persistiu no sentido de, primeiro,

compreender como isso poderia ser viabilizado na prática antes de dispender recursos

financeiros para um projeto de formação. Assim, na tentativa de contribuir com tal

compreensão, se fez o “autodesafio” de iniciar o processo de internacionalização na

perspectiva intercultural de uma das disciplinas que se ministrava e que seria executada da

metade do segundo semestre de 2016 até o final do mesmo ano: Recursos Tecnológicos na

Educação.

Para viabilizar a reelaboração da disciplina Recursos Tecnológicos na Educação, se

fez uso dos cinco estágios para o processo de internacionalização do currículo (Figura 2)

sugerido por Leask (2015).

Conforme Figura 2, Leask (2015, p.42) apresenta como os cinco estágios necessários

para a internacionalização do currículo: revisar e refletir; imaginar; revisar e planejar; agir; e

avaliar. Para execução desses estágios, a mesma autora apresenta ainda um instrumento

chamado Questionário de Internacionalização do Currículo (QIC).

5 UNIVALI e UNIDAVI, por serem coirmãs na Associação Catarinense das Fundações Educacionais (ACAFE),

mantém parceria na concessão de bolsas e descontos em mensalidades de seus programas de mestrado e

doutorado, o que acaba por aproximar ainda mais as IES em torno da possibilidade de viabilizar projetos comuns

e troca de experiências.

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A disciplina Recursos Tecnológicos na Educação no contexto do curso de Educação

Física da UNIDAVI e o processo inicial de internacionalização do currículo

O curso de Educação Física foi criado na UNIDAVI por meio do Parecer CONSUNI

Nº 02, de 22 de abril de 2005, para ingressantes a partir do segundo semestre de 2005, com 50

vagas semestrais autorizadas. O primeiro Projeto Pedagógico de Curso (PPC) foi criado no

ano de 2006, e desde então, foi alterado/atualizado quatro vezes (2008, 2010, 2012, 2017).

Quanto à disciplina Recursos Tecnológicos na Educação, encontra-se nas matrizes

curriculares de todas as licenciaturas da UNIDAVI, geralmente constituída por 36 horas/aula

(o que corresponde a 30 horas/relógio).

Após o primeiro plano de ensino, a disciplina mudou de nome duas vezes: Recursos

Tecnológicos e de Comunicação e, posteriormente, Recursos Tecnológicos na Educação,

mantendo a organização geral descrita no primeiro plano de ensino.

Por questão de restrição de laudas, nesse relato não será apresenta a fase de avaliação,

desta maneira apresenta-se a seguir quatro das cinco fases tomadas como procedimento

metodológico.

Fase de revisão e reflexão

A primeira fase do processo – Revisão e Reflexão – diz respeito a uma espécie de

diagnóstico do grau de internacionalização do currículo. Nessa fase, a reflexão pode ser

Figura 2 – O processo de Internacionalização do Currículo

Fonte: Leask (2015, p. 42).

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desenvolvida por meio da pergunta: “No curso/unidade em que você é responsável, até que

ponto a forma de organizar o processo de ensino e aprendizagem ajuda a todos os alunos a

desenvolver conhecimentos e habilidade internacionais e interculturais? (LEASK, 2015, p. 44,

tradução nossa).

Convém frisar que Leask (2015) recomenda a participação do corpo docente e do

coordenador de curso nessa fase. Porém, como a atividade abrange, de maneira experimental,

a IoC apenas em uma das disciplinas do currículo do curso, optou-se por perpassar por todas

as cinco fases propostas pela autora – como exercício de compreender o processo como um

todo –, antes de compartilhar a experiência com os demais docentes e coordenação.

A partir da compreensão de que o processo de internacionalização do currículo de uma

disciplina/componente curricular ou de um curso de graduação perpassa pelos objetivos de

aprendizagem, estratégias de ensino, recursos instrucionais e avaliações, procurou-se iniciar

pela análise do projeto de criação do curso de Educação Física, de todos os PPCs

elaborados/reelaborados e de todos os planos de ensino, da disciplina selecionada, ao longo

dos anos entre 2006 e 2017.

Constatou-se, por meio da análise dos referidos documentos, que nenhum deles fazia

menção a questões que envolvessem a internacionalização do currículo, a perspectiva

intercultural e a possibilidades de convergência entre esses dois elementos. Tal constatação

levou a Santos (2002), na tentativa de encontrar aporte teórico para refletir sobre os efeitos da

homogeneização e dos paradigmas dominantes sobre a diversidade de saberes, a partir da

ideia de sociologia das ausências e sociologia das emergências. Imersa nessa perspectiva de

Santos (2002), retomou-se Leask (2015) pelo fato de a autora discorrer sobre a necessidade de

serem provocadas possibilidades de pensar e fazer de maneira diferente, questionando os

paradigmas dominantes. Essa retomada conduziu aos dois próximos estágios: “imaginação” e

“revisão e planejamento”.

Fase de “imaginação” e de “revisão e planejamento”

A segunda fase do processo – Imaginação – refere-se a uma espécie de pano de

fundo para as fases de “ação” e “avaliação”. De acordo com Leask (2015, p. 47, tradução

nossa), essa fase pode ser desenvolvida por meio da pergunta: “Que outras formas de pensar

e fazer são possíveis?”

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A mesma autora ainda explicita que, durante o exercício de pensar em outras formas

de fazer, é essencial tirar o foco da mera inserção de disciplinas e/ou conteúdos e direcionar

os esforços para a integração das dimensões internacionais e interculturais que permeiam o

conteúdo, os objetivos de aprendizagem, as estratégias de ensino e o processo de avaliação,

por meio do currículo formal, informal e oculto (LEASK, 2015). Para esse esforço, teve-se

como apoio as atividades de refletir6 sobre os fundamentos culturais dos paradigmas

dominantes na disciplina; analisar as origens e a natureza do paradigma dentro do qual o

currículo encontra-se desenvolvido; identificar os paradigmas emergentes na disciplina e

refletir sobre as possibilidades que eles oferecem; imaginar o mundo no futuro, incluindo o

que e como os alunos precisarão aprender para viver e trabalhar de maneira efetiva e ética

neste mundo do futuro (LEASK, 2015).

Para o planejamento das aulas da disciplina, a partir do que se imaginou na segunda

fase, surgiu a terceira fase do processo: Revisão e Planejamento. Essa fase refere-se a uma

espécie de decisão no sentido de definir: a) o que se quer; b) o que é possível (formação e

atuação docente/profissional, tempo disponível para elaboração e execução, carga horária e

organização da matriz e unidades curriculares); e c) o que é permitido (normativas do curso e

da IES).

A pergunta que auxilia esta fase é: “Dadas as possibilidades de internacionalização do

currículo, quais são as mudanças que nós queremos fazer ao programa?” (LEASK, 2015, p.

48, tradução nossa).

Reorganizou-se a dinâmica da disciplina em cinco momentos principais, sendo que,

em cada um dos cinco momentos, se procedeu à redefinição de novas referências

bibliográficas e estratégias de ensino com base nas atividades já descritas na fase de

imaginação e na seguinte fundamentação:

o quadro conceitual da IoC consegue absorver e revelar a complexidade do processo

de internacionalização por suas camadas de contextos: o global, o nacional e

regional, o local, o institucional. Sobre essa base, os professores podem contemplar,

6 Como a discussão com os demais docentes do curso ainda não ocorreu, nesta etapa, por enquanto, fez-se

apenas o exercício de refletir sobre os referidos fundamentos. Entretanto, convém trazer já à baila Luna (2016, p.

48), pois o autor frisa que a etapa da imaginação deveria dar-se “por uma negociação e um diálogo idealmente

coletivos e contínuos. Reunidos, professores questionam o quê (sic) e como apenderam, o quê (sic) e como estão

a ensinar e como podem fazê-lo de forma diferente. Esse questionamento pode levar o grupo, direta e

animadamente, a uma ação docente valorizadora da diversidade cultural, tanto aquelas que marcam a eles

próprios e a seus estudantes, como as referências bibliográficas para a concepção e a execução dos seus planos

de ensino”.

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nos seus currículos e planos de ensino, os paradigmas marginalizados, devendo, para

isso, adotar perspectivas de escolas, autores, culturas e línguas as mais diversas [...]

Pontualmente, trata-se de (se) perguntar e responder sobre o lugar de determinada

escola de pensamento e de determinado autor no currículo do curso; trata-se de (se)

perguntar e responder qual a relação entre essas escolhas por escolas e autores e o(s)

país(es) ou a(s) cultura(s) que representam. Outros docentes, por sua vez,

demonstram satisfação em ver discutida institucionalmente a possibilidade de exibir

ou (a)creditar em alternativas a escolas e autores canônicos. (LUNA, 2016, p. 43-

47).

Dividiu-se o primeiro momento em duas etapas: a) apresentação da disciplina e o

recorte das memórias da formação que se teve (no caso, como professor(a)) com foco na

integração de tecnologias no cotidiano particular, acadêmico e profissional; b) A história de

duas “Fernandas” (o uso de tecnologias digitais presentes em duas culturas diferentes). Como

referência, utilizaram-se Lemos (2008) e Postman (1994).

Quanto ao segundo momento, dividiu-se em três etapas: a) recorte do memorial de

formação com foco nos principais momentos de integração de tecnologias ao cotidiano

particular, acadêmico e profissional dos alunos. Como referências teve-se: Prensky (2001),

Veen e Vrakking (2009); b) questionário online sobre o uso específico de tecnologias digitais,

tendo como referência Schlemmer (2010); c) seguir perfil em rede social de pesquisadores

importantes da área. A sugestão recaiu sobre pesquisadores de diferentes formações que

nasceram e residem em diferentes estados, como Santa Catarina, Rio grande do Sul, Paraná,

São Paulo, Bahia e Pernambuco.

Esse momento se mostrou essencial para a ancoragem nos conhecimentos prévios dos

alunos e consequente possibilidade de aprendizagem significativa. Para Ausubel, Novak e

Hanesian (1980), a aprendizagem significativa é um fenômeno por meio do qual o aluno

relaciona, de forma “arbitrária e substancial”, os conhecimentos que já possui com uma nova

informação. Convém esclarecer que “uma relação não arbitrária e substantiva significa que as

idéias (sic) são relacionadas a algum aspecto relevante existente na estrutura cognitiva do

aluno, como, por exemplo, uma imagem, um símbolo, um conceito ou uma proposição”, ou

seja, “a essência do processo de aprendizagem significativa é que as idéias (sic) expressas

simbolicamente são relacionadas às informações previamente adquiridas pelo aluno através de

uma relação não arbitrária e substantiva (não literal)” (AUSUBEL; NOVAK; HANESIAN,

1980, p. 34, grifo dos autores).

Os dois primeiros momentos descritos tiveram como inspiração a seguinte afirmação

de Luna (2016, p. 37):

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a internacionalização, pelo currículo, trata de garantir a infusão das perspectivas

multiculturais contidas e buscadas em/por todos em uma sala de aula ampliada, onde

se podem articular diferentes conhecimentos, práticas e culturas. Dito de outra

forma, a IoC desenvolve-se por atividades intelectuais que questionam a

monocultura do saber, pela curiosidade em torno dos paradigmas ausentes, bem

como pela identificação dos paradigmas emergentes e de suas possibilidades como

subsídios ao currículo.

O terceiro momento, por sua vez, constituiu-se de três etapas: a) leitura de imagem

que remete às tendências pedagógicas e à integração de tecnologias ao currículo (Figura 3); b)

análise de vídeo sobre a entrevista histórica entre Paulo Freire e Seymour Papert (FREIRE,

PAPERT, 1995), a leitura de texto de Papert (1994) e discussões sobre o pensamento

computacional. Também se utilizou um artigo de Wing (2006).

O quarto momento tratou do aprofundamento do conceito de tecnologia discutido por

Pinto (2005), lincando a questão dos “Inforricos e Infopobres” apresentada por Coll e

Monereu (2010, p. 24), a sociedade em rede, de Castells (1999) e de Foucault (2015, 2016).

Encerrou-se o processo com o quinto momento, quando se realizou um estudo de

caso que fez a conexão entre os quatro momentos já citados e a integração de tecnologias ao

currículo. Como referências, teve-se: Almeida (2004, 2009), Valente e Almeida (2011),

Sancho (2006), Tori (2010), Silva (2006) e Valente (1999, 2010). Nesse momento, também se

aprofundou a discussão sobre a informática educacional como disciplina regular versus como

estratégia de articulação entre as demais áreas do conhecimento na escola.

Fonte: Capa do Livro de Quino (TEJÓN, 2008).

Figura 3 – Educação Bancária

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Para cada momento foram escolhidas novas referências e, mesmo concordando com

Santos (2002, p. 239), quando afirma que “a compreensão do mundo excede em muito a

compreensão ocidental do mundo”, sentiu-se receio de que ainda se havia ficado um tanto

preso aos cânones ocidentais da área. Isso porque, apesar de se conhecer alguns autores

orientais, por exemplo, não se sentiu segurança com o nível de aprofundamento que se

possuía sobre tais autores. O exercício que se faz a partir dessa reflexão é o de policiar-se na

tentativa de não reforçar a monocultura do saber denunciada por Santos (2002).

Fase de ação

A quarta fase do processo – Ação – diz respeito à execução/implementação do que

foi planejado. A pergunta para esta fase é: “Como saberemos se alcançamos os objetivos de

internacionalização do currículo?” (LEASK, 2015, p. 50, tradução nossa).

Os alunos do curso de Educação Física estavam na última fase do curso de licenciatura

- o que subentende uma caminhada de, pelo menos, dois anos e meio vivenciada diariamente

no ambiente acadêmico -, quando cursaram a disciplina Recursos Tecnológicos na Educação

reformulada na perspectiva intercultural. Entretanto, algumas questões culturais emergiram

apenas após a experiência com a disciplina internacionalizada.

Como principais exemplos da emergência de questões multiculturais, citam-se duas

que se consideram importantes situações. A primeira remete a uma aluna paranaense que

viveu mais de 10 anos no Paraguai com a família e que praticamente não teve contato algum

com tecnologias digitais, pois vivia em uma cidade do interior, muito afastada do conhecido

comércio de eletrônicos vivenciado no país. Tal situação auxiliou na quebra de um grande

paradigma instalado, pois surpreendeu muito os alunos que relataram que não conseguiam

imaginar um Paraguai sem eletrônicos. Para Candau (2012, p. 51) “a perspectiva intercultural

quer promover uma educação para o reconhecimento do ‘outro’, para o diálogo entre os

diferentes grupos sociais e culturais. Uma educação para a negociação cultural”. Para Luna

(2016, p. 51):

ao ver descrito o ‘outro’ como o estudante estrangeiro, mas também como aquele

que tem a mesma nacionalidade da maioria da turma, podemos considerar toda

instituição escolar como multicultural, plena de diversidade linguístico-cultural. A

IoC como a educação intercultural defendem que o multiculturalismo deve ser visto

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como uma mais valia para a escola e que as estratégias de ensino e aprendizagem,

bem como a avaliação devem evidenciar a importância da interação e do

intercâmbio de saberes e de práticas entre os estudantes.

A segunda situação desencadeou-se a partir do relato de um aluno que atua como

Agente de Segurança Socioeducativo7. Além de compartilhar com o grupo questões de uso de

tecnologias digitais, esse apresentou estratégias de contenção de grandes massas em

manifestações violentas. Fez-se uso de tais estratégias para discutir tecnologias de poder em

uma abordagem disciplinar que tanto pode ser relacionada com o cotidiano escolar quanto

ampliar o conceito de tecnologia para além da ideia de mero recurso digital.

Considerações Finais

No ano de 2016, a UNIDAVI inseriu em suas discussões a possibilidade de

internacionalização do currículo na perspectiva intercultural, o que culminou com a primeira

versão da reelaboração da disciplina Recursos Tecnológicos na Educação. No desenrolar

deste processo, situações multiculturais emergiram. Compreende-se que tais situações

emergiram porque o novo desenho da disciplina – reelaborada na perspectiva intercultural –,

viabilizou a ancoragem de conceitos científicos nos conhecimentos e nas vivências prévias

dos alunos, o que concedeu à disciplina um nível de discussão mais profundo e significativo.

Essa emergência multicultural foi essencial para viabilizar a perspectiva intercultural, pois se

compreendeu que é por meio da possibilidade da infusão das questões multiculturais que

nasce a prática da mediação intercultural docente.

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AUSUBEL, David Paul; NOVAK, Joseph Donald; HANESIAN, Helen. Psicologia

educacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980.

7 Executar atividades relacionadas com a gestão do Sistema Socioeducativo. Desenvolver ações relacionadas ao

atendimento de adolescentes do sistema estadual de medidas socioeducativas, sendo corresponsável pela

ressocialização, atuando diretamente na segurança de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas

de internação, bem como na segurança das unidades de internação [...] (SJC/SC, 2016, p. 3).

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