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Paulo Victorino CAPÍTULO NOVE SER OU NÃO SER O GOVERNO JÂNIO QUADROS "Creio, senhor presidente, no regime democrático. Creio no povo, humilde e laborioso. Creio na tradição de nossa liberdade. E porque creio na democracia, porque creio no povo, porque creio na liberdade, creio também no futuro da pátria, que só pode ser a soma do que somos, a colheita do que plantamos, a morada tranquila que construímos para nós e para a posteridade. Se a Divina Providência, na sua misericórdia, houver por bem me dar alento e saúde, aqui estarei certamente, no final deste mandato, para transmitir, em cerimônia idêntica, ao sucessor que o povo me der, os símbolos da autoridade. Transitórios somos nós, os seus governantes. Transitórias e efêmeras, as nossas pobres divergências. Mas eternos hão de ser, na comunhão da pátria, o povo e a liberdade." (Discurso de posse de Jânio, em 1961) Uma ilustrativa piada circulou durante anos, situada no contexto da campanha eleitoral de 1960, com versões variadas, tendo como protagonista, algumas vezes, o candidato a vice-Presidente, Milton Campos, em outras, o próprio candidato a Presidente, Jânio Quadros. Por ser mais saborosa, ficamos com a última versão. A campanha se desenvolvia com sucesso pelo Brasil afora. Em face do pouco tempo disponível e das distâncias a serem percorridas, Jânio e comitiva,

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Page 1: CAPÍTULO NOVE SER OU NÃO SER O GOVERNO JÂNIO … · governo JK o meio circulante passou de 57 para 296 bilhões de cruzeiros, uma ... atividade política e, em assim fazendo, perde

Paulo Victorino

CAPÍTULO NOVE

SER OU NÃO SER

O GOVERNO JÂNIO QUADROS

"Creio, senhor presidente, no regime democrático. Creio no

povo, humilde e laborioso. Creio na tradição de nossa liberdade. E

porque creio na democracia, porque creio no povo, porque creio na

liberdade, creio também no futuro da pátria, que só pode ser a

soma do que somos, a colheita do que plantamos, a morada

tranquila que construímos para nós e para a posteridade.

“Se a Divina Providência, na sua misericórdia, houver por bem

me dar alento e saúde, aqui estarei certamente, no final deste

mandato, para transmitir, em cerimônia idêntica, ao sucessor que

o povo me der, os símbolos da autoridade. Transitórios somos nós,

os seus governantes. Transitórias e efêmeras, as nossas pobres

divergências. Mas eternos hão de ser, na comunhão da pátria, o

povo e a liberdade." (Discurso de posse de Jânio, em 1961)

Uma ilustrativa piada circulou durante anos, situada no contexto da

campanha eleitoral de 1960, com versões variadas, tendo como protagonista,

algumas vezes, o candidato a vice-Presidente, Milton Campos, em outras, o

próprio candidato a Presidente, Jânio Quadros. Por ser mais saborosa, ficamos

com a última versão.

A campanha se desenvolvia com sucesso pelo Brasil afora. Em face do pouco

tempo disponível e das distâncias a serem percorridas, Jânio e comitiva,

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Incluindo sua esposa Eloá e sua filha Dirce Maria, mais Milton Campos e outros

proeminentes líderes dos partidos que lhes davam sustentação, utilizavam um

avião Douglas DC-3, que já devia ter sido aposentado por tempo de serviço, mas

que insistia em manter-se no trabalho.

Numa dessas viagens, a meio caminho do destino, um dos motores entra em

pane. Consultada a torre de controle, o comandante é aconselhado a manter o

voo por mais algum tempo, para queimar combustível, antes de tentar uma

aterrissagem forçada. O clima no avião já era preocupante quando o segundo

motor começou a engasgar, aumentando a tensão dos passageiros.

Jânio, cujo pavor pelas viagens aéreas era bem conhecido, estava lívido e

apertava fortemente a mão da esposa. Foi quando uma comissária, prestativa,

se aproximou e lhe perguntou:

"Presidente, o senhor está sentindo falta de ar?" E a resposta veio pronta:

"Não, minha senhora, o que eu estou sentindo é falta de terra!"

Este suposto acontecimento serve de pretexto para nos introduzir naquilo

que, talvez, tenha sido o epicentro dos problemas que levaram o governo Jânio

Quadros à derrocada. Sonhou alto, planejou com consistência, mas faltou-lhe

terra aos pés para atingir seus objetivos.

Como bom estadista que era – ninguém lhe nega as qualidades – procurou

concretizar seus planos de governo firmado no forte apoio popular que tivera,

representado por quase 60 por cento dos votos válidos depositados nas urnas

a seu favor, naquela que poderia ser considerada a segunda revolução branca.

(A primeira foi sua eleição à Prefeitura paulistana, em 1953, desmontando a forte

máquina eleitoral que lhe fazia oposição).

Por melhores e mais bem-intencionados que sejam os propósitos, por mais

reais que sejam as possibilidades de sua execução, numa democracia, nenhum

presidente da República consegue governar sem uma razoável base política no

Congresso Nacional. E Jânio contava com uma base de apoio inferior a 30% da

Câmara, número insuficiente para aprovar qualquer projeto.

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Em um regime presidencialista, o Presidente dispõe de uma soma enorme

de poderes, mas lhe falta um, essencial, disponível no parlamentarismo: ele não

tem o poder de dissolver o Congresso e convocar novas eleições.

Ao tomar posse, Jânio Quadros encontrou um Congresso eleito em 1958,

que não representava a nova realidade política, mas cujo mandato só se

venceria dali a dois anos.

Nesse longo período, era mister recompor suas bases parlamentares,

cozinhando os projetos a fogo brando até que novas eleições parlamentares lhe

dessem maioria efetiva, com a qual pudesse realizar seus propósitos.

Seriam, pois, dois anos inteiros cuidando de problemas menores ou de

consenso, sobrando os três últimos anos para atacar questões mais graves e

polêmicas, já com a Câmara Federal totalmente renovada e com o Senado

parcialmente modificado.

Jânio, confiava no apoio avassalador do povo; não quis esperar, intrigou-

se com a oposição e, pior ainda, conseguiu se indispor até com alguns de seus

próprios correligionários, acrescentando novos adversários ao governo, como se

ainda estivesse precisando de mais inimigos.

O Presidente esteve no poder por exatos 206 dias. Nunca se conseguiu

precisar as causas de sua renúncia. É um quebra-cabeças no qual sempre ficam

faltando peças. Qualquer explicação que se dê é insatisfatória. Mas a falta de

base parlamentar – ele mesmo o reconheceu trinta anos depois – foi um motivo

forte para obstar-lhe os passos, impedindo-o de governar.

Confetes e serpentinas

Dia de mudança é dia de festa. O resto fica para o dia seguinte, ou para a

semana seguinte, quando os novos moradores da casa já estão habituados com

a localização dos cômodos e com a disposição dos móveis.

Jânio Quadros tinha assimilado bem essa tradição, pelo menos é o que

parecia. Ao receber a faixa presidencial das mãos de Juscelino Kubitschek, fez

um discurso que era uma mistura de Adocil com Sucaril.

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Jânio e JK na transmissão da faixa presidencial,

tendo à esquerda o vice-Presidente João Goulart

Primeiro, elogiou JK:

"O governo de v. exa., que ora se finda, terá marcada na História a

sua passagem, principalmente porque, através de sua meta

política, logrou consolidar, em termos definitivos, no país, os

princípios do regime democrático."

Depois, fez uma profissão de fé:

"Creio, senhor presidente, no regime democrático. Creio no povo,

humilde e laborioso. Creio na tradição de nossa liberdade. E porque

creio na democracia, porque creio no povo, porque creio na

liberdade, creio também no futuro da pátria, que só pode ser a

soma do que somos, a colheita do que plantamos, a morada

tranquila que construímos para nós e para a posteridade."

E terminou, no mesmo tom ameno:

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"Se a Divina Providência, na sua misericórdia, houver por bem me

dar alento e saúde, aqui estarei certamente, no final deste

mandato, para transmitir, em cerimônia idêntica, ao sucessor que

o povo me der, os símbolos da autoridade. Transitórios somos nós,

os seus governantes. Transitórias e efêmeras, as nossas pobres

divergências. Mas eternos hão de ser, na comunhão da pátria, o

povo e a liberdade."

Metralhadora giratória

Não era este o discurso que o novo presidente tinha preparado para a posse.

O outro, o verdadeiro, só não foi lido naquele instante porque Juscelino lhe

mandara o recado de que qualquer ataque seria respondido no ato, e diante da

multidão que assistia a cerimônia na praça dos Três Poderes.

À noite, quando o ex-presidente já se encontrava no avião com destino a

Paris, Jânio ocupa uma cadeia de rádio (a televisão na época só tinha

transmissão local). Aí vem a verdadeira mensagem de transmissão de cargo,

aquela que os amigos o aconselharam a não pronunciar na passagem da faixa.

Após um preâmbulo de pura retórica, o novo presidente passa à análise do

governo anterior.

Fala da emissão desenfreada de moeda, informando que, durante o

governo JK o meio circulante passou de 57 para 296 bilhões de cruzeiros, uma

alta inflacionária de 420 por cento.

Menciona nossa dívida externa, que aumentou 60 por cento, atingindo a

cifra de 3,802 bilhões de dólares, dos quais mais da metade teria de ser

resgatada pelo atual governo.

O BNDS (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), entre

empréstimos e avais concedidos a governos e estatais, devia ao exterior cerca

de 33,6 bilhões de cruzeiros o que, com o dólar a 200 cruzeiros no câmbio livre,

correspondia a 168 milhões de dólares.

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O déficit orçamentário na posse de JK era de 29 bilhões de cruzeiros; na

transmissão do cargo havia subido para 193 bilhões de cruzeiros (965 milhões

de dólares). E Jânio segue em seus ataques:

"Em novembro último, não dispúnhamos de 47 milhões e 700

mil dólares para cobrir os ajustes com o Fundo Monetário

Internacional. Faltaram, igualmente, recursos para quitar duas

obrigações do Eximbank (...) Tomou-se apenas a providência de

descarregar as faturas vencidas sobre a administração que ora se

instala. Devo pagar, entre 1961 e 1965, 1 bilhão, 853 milhões e 650

mil dólares de prestações, o que significa, fazendo a conversão do

dólar à taxa do câmbio livre, na base de 200 cruzeiros o dólar, 370

bilhões e 730 milhões de cruzeiros."

O pior é que esses números não eram fabricados. Esta era a outra face do

nacional-desenvolvimentismo do governo Kubitschek, a contra-partida dos 50

anos em 5. Grande parte da conta ficava em aberto e era transferida aos

governos seguintes.

Essa foi a primeira bomba. Horas depois de terminado o discurso, durante a

recepção, criava-se um incidente diplomático, envolvendo Brasil e Portugal.

Um certo capitão Galvão

No capítulo anterior, comentando o cenário internacional por ocasião da

posse de Jânio, fizemos referência à ditadura de Antônio de Oliveira Salazar

em Portugal, firme ainda, mas contestada por alguns grupos descontentes,

inclusive nos meios castrenses.

Na passagem de ano, alguns militares, sob o comando de um certo capitão

Galvão, se rebelaram e iniciaram um movimento sedicioso para derrubar o

primeiro-Ministro português. Não obtendo sucesso, sequestraram um navio e

puseram-se a navegar por águas internacionais, aparentemente sem rumo

definido e sem qualquer plano para retomar a ofensiva.

Assim, Portugal contava com o tempo a seu favor. Mais dia, menos dia, os

revolucionários se convenceriam da inutilidade de seus esforços e se

entregariam, sendo, então presos e julgados pelo ato de rebeldia.

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Não foi bem assim que aconteceu. No decorrer de janeiro de 1961, o navio

seguiu em direção ao Brasil, permanecendo em águas internacionais, mas

próximo dos limites das águas brasileiras, na época fixados em 12 milhas

marítimas (cerca de 18 quilômetros).

Na noite da posse, durante a recepção, o novo Presidente recebe uma

mensagem transmitida do navio, em que os revoltosos pedem asilo político

ao Brasil.

No seu estilo característico, Jânio anuncia publicamente a concessão do asilo

solicitado e a notícia é transmitida, em edição extraordinária, pelas estações de

rádio brasileiras, enquanto que as agências telegráficas se encarregam de enviá-

la ao mundo e, é claro, a Portugal, o outro envolvido no assunto.

Como se não bastasse, o capitão Galvão, ao pôr os pés em terra, fez uma

declaração política aos repórteres que o esperavam, afirmando que o governo

Salazar se achava fraco e que, em poucas semanas a ditadura seria varrida de

Portugal.

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A concessão de asilo sem negociação prévia com um país amigo constitui

uma falta de cortesia. E as normas internacionais sobre asilo político deixam

claro que o asilado não deve fazer pronunciamentos nem prosseguir em sua

atividade política e, em assim fazendo, perde o direito que lhe foi concedido.

Foi a primeira dor de cabeça ao chanceler, Afonso Arinos. Graças à sua

habilidade, e firmado no longo relacionamento de amizade entre Brasil e

Portugal, o incidente diplomático foi encerrado sem maiores consequências. Mas

esses atos de personalismo e, por vezes, de destempero, próprios da

personalidade de Jânio, ainda causariam muita instabilidade em seu governo.

O Ministério

Na formação de seu ministério, Jânio Quadros procurou contemplar os

partidos que o apoiaram, mas não teve dúvidas em buscar nomes em outros

setores de liderança. Alguns já haviam colaborado com ele no governo do Estado

de São Paulo. Um outro, Clemente Mariano, tinha sua filha casada com o

filho de Carlos Lacerda. Alguns tinham entre si divergências irreconciliáveis. O

resultado final foi um verdadeiro balaio de gatos, como se vê a seguir:

Relações Exteriores, Afonso Arinos de Melo Franco (UDN);

Justiça, Oscar Pedroso Horta, advogado criminalista; Fazenda,

Clemente Mariani Ribeiro Bittencourt (UDN); Saúde, Edward

Catete Pinheiro; Agricultura, Romero Cabral da Costa, usineiro;

Educação e Cultura, Brígido Fernandes Tinoco; Trabalho e

Previdência Social, Francisco Carlos de Castro Neves, advogado

trabalhista; Viação e Obras Públicas, Clóvis Pestana (PSD); Minas

e Energia, João Agripino Vasconcelos Maia (UDN); Indústria e

Comércio, Artur da Silveira Bernardes Filho (PR); Guerra, Marechal

Odilio Denys; Marinha, almirante Sílvio Heck; Aeronáutica,

Brigadeiro Grum Moss; Chefe da Casa Civil, Francisco de Paula

Quintanilha Ribeiro; Chefe da Casa Militar, general Pedro Geraldo

de Almeida; Secretário Particular, José Aparecido de Oliveira.

Nem bem a lista foi divulgada e logo começaram os comentários

desfavoráveis, mesmo pelos setores que apoiavam o governo. Mas as críticas

mais contundentes, como era de se esperar, vieram da oposição.

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O deputado Wilson Vargas (era gaúcho, trabalhista, mas sem parentesco

com Getúlio Vargas) subiu à tribuna da Câmara para fazer a análise dos nomes,

descartando-os um a um. De Clemente Mariani, insinuou que seu nome foi

imposto por Carlos Lacerda. O Ministro da Agricultura era um usineiro do

Nordeste, e assim por diante.

O maior bombardeio foi sobre a composição dos ministérios militares e, diga-

se a verdade, essas críticas tinham bem razão de ser. De um lado, nomeou-se

ministro da Guerra o marechal Odílio Denys que, juntamente com Lott, garantiu

a posse de Juscelino, depondo o presidente Carlos Luz; de outro lado, nomeou

ministro da Marinha o almirante Silvio Heck, justamente o comandante do

cruzador Tamandaré, que dava abrigo ao presidente deposto. Como conciliar

duas figuras tão antagônicas em um mesmo ministério, ambas representando as

Forças Armadas?

Para piorar, o ministro da Aeronáutica era o brigadeiro Grüm Moss que o

deputado descreve como um dos agitadores, um dos baderneiros de

Jacareacanga e de Aragarças.

Para quem não se lembra, essas foram as duas revoltas dos escoteiros,

promovidas na Aeronáutica objetivando a deposição de JK. A primeira deu-se

em 1956, duas semanas após iniciado o governo de Juscelino; e a outra, em

1959, tendo como pretexto a segunda renúncia de Jânio à sua candidatura.

Nessas condições, colocar Silvio Heck e Grüm Moss junto com Odilio Denys

era quase um ato de provocação.

Outro deputado, Ari Pitombo, também faz suas críticas, analisando os

nomes com natural irritação:

“(...) dois participantes do Ministério do sr. Jânio Quadros

pertencem à Esso e, ainda mais, o sr. Romero Cabral da Costa, em

declaração ao jornal Última Hora do dia 31 de janeiro, declarou:

‘Não sou político, intelectual, nem técnico.’ Que diabo, então, o sr.

Romero Cabral da Costa vem fazer no Ministério do sr. Jânio

Quadros?”

Um fato é visível na composição do Ministério: falta povo. A pasta do

Trabalho, que mais deveria representar as massas, passa a ser ocupada por

Castro Neves, dono de um escritório de advocacia que prestava serviços ao

setor patronal.

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A nomeação de um usineiro para a Agricultura deixa claro que não se

pretende iniciar uma reforma agrária, nem ao menos uma reforma agrícola,

reformulando os setores produtivos para assentar, com dignidade, o homem do

campo.

O novo governo nasce com defeitos congênitos que lhe impedem o

desenvolvimento e que, não tratados a tempo, o levarão a morte prematura.

Um banho de marketing

Após uma campanha eleitoral que trazia como tema principal a renovação de

costumes, o Presidente recém empossado sentiu-se na necessidade de mostrar

a que veio e, já no segundo dia de governo, instaurou cinco comissões para fazer

sindicância no IBGE, na COFAP (órgão controlador de preços) e em três outras

instituições. Nas semanas que se seguiram, foram criadas outras 28 comissões

de sindicância, uma autentica banda de música, que tocou forte, mas sem

nenhuma afinação.

Em atos seguintes, mandou recolher revistas para adultos, proibiu corridas

de cavalos em dias úteis, o funcionamento de rinhas para brigas de galos, proibiu

também o uso de maiôs cavados em concursos, os espetáculos de hipnotismo,

o uso de lança-perfumes no Carnaval, a propaganda em salas de cinema,

regulamentou a participação de menores em programas de rádio e televisão,

extinguiu funções de adidos militares em representações diplomáticas, etc.

Todas essas medidas, embora aplaudidas pelo povo, tinham apenas função

publicitária, criando imagem de moralização de costumes no país e na

administração pública. Elas impressionavam bem, mas escamoteavam a

verdadeira realidade brasileira, que era a inflação galopante, a péssima

distribuição de renda, o estado de semi-escravidão em que viviam as populações

rurais e outros problemas até então intocados.

Mas essa perfumaria toda também gerou desgastes ao governo, como no

caso da regulamentação do horário do funcionalismo, que passou a ser

integral de oito horas, com obrigatoriedade de marcação de ponto, medida

recebida com entusiasmo pelos trabalhadores de empresas privadas que, em

toda vida, tiveram de cumprir jornada integral.

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Acontece que o aumento de horas de trabalho, por si só, não significa

aumento de produtividade, pelo contrário, com repartições atulhadas de

funcionários sem ter o que fazer, a produção acaba até diminuindo. Uma reforma

administrativa, lenta e maturada, passando pelo Congresso, traria melhores

resultados, mas o efeito de propaganda não seria tão grande.

Muitos dos funcionários de meio período completavam seu salário com

um segundo emprego. Vários deles trabalhavam nas redações de jornais, pela

manhã ou à noite, as quais se viram desfalcadas repentinamente de sua mão-

de-obra. Mesmo sem uma segunda atividade, a maioria não tinha como se

adaptar de chofre à nova realidade. Ao almoço, bares e restaurantes ficavam

repletos de novos fregueses e, para diminuir o movimento, aumentavam o preço

das refeições.

Não tardou que o governo tivesse de atenuar a medida, abrindo uma exceção

para estudantes, para funcionários com dificuldades de alimentação e de

transporte e para mães com filhos menores de 16 anos.

Foi um balde de água fria no trabalhador comum, ao início, tão

entusiasmado. Mantida a comparação, o operariado não tinha nenhuma dessas

regalias: comia de marmita, estudava sabe Deus como e as mães trabalhadoras

deixavam suas crianças com parentes, vizinhos ou largadas ao próprio destino.

Não havia passado ainda essa decepção com Jânio e este já baixava o

decreto nº 51.166, que revogava as medidas anteriores, voltando o

funcionalismo ao horário normal de meio período, igual ao praticado nos

governos anteriores. O eleitorado não poupou críticas a essa precipitada,

extemporânea e inútil cruzada contra os funcionários públicos.

Enfrentando a realidade

Não dava para seguir o governo apenas com medidas de fachada, destinadas

a propaganda. Era preciso agir. Agir rápido e com habilidade, para restaurar a

situação financeira do país, sem o que ficava descartada qualquer possibilidade

de desenvolvimento.

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Contatos feitos com o exterior, com a finalidade de rolar a dívida e conseguir

empréstimos novos, resultaram em fracasso. Adolfo Berler, embaixador dos

Estados Unidos no Brasil acenou com um crédito de emergência que mais

agravava do que auxiliava a resolver os problemas. Não foi aceito. O Brasil

precisava com urgência de pelo menos um bilhão de dólares e isso os países

ricos não estavam dispostos a fornecer, a menos que fossem tomadas medidas

de contenção interna.

Em 13 de março de 1961 ocorreu a primeira reforma cambial com o que o

cruzeiro foi desvalorizado em mais de 100 por cento, unificando-se as taxas de

câmbio com a extinção do dólar subsidiado para produtos essenciais, além de

outras medidas, necessárias, mas impopulares. O governo finalmente caiu na

realidade e a população também. Não há almoço de graça e o preço começava

a ser pago, como sempre, começando pelos mais humildes.

Com a extinção dos subsídios, dobrou o preço do pão, subiu a tarifa dos

transportes coletivos e, num efeito dominó, o custo de vida em geral foi

aumentado, sem a devida contrapartida nos salários. O papel de jornal também

tinha sua importação subsidiada e seu preço dobrou, aumentando a fúria dos

donos de jornais, formadores da opinião pública.

Exultaram, sim, os exportadores, pois com o dólar valorizado, sua

mercadoria passou a ter mais competitividade no mercado externo e melhor

retorno em lucros, quando os dólares eram convertidos em cruzeiros. Lucraram,

também, os bancos internacionais, que faziam empréstimos em dólares e

viram seus créditos aumentarem com uma simples penada. Perderam, é claro,

as empresas que, incentivadas pelo governo anterior, fizeram vultosos

empréstimos em dólares e, do dia para a noite, passaram a dever o dobro.

Uma onda de descontentamento varreu o país e Jânio Quadros começou a

descarregar sua fúria sobre o ministro da Fazenda, Clemente Mariani que,

como sabemos, tinha relações de parentesco com o jornalista e dono de jornal

Carlos Lacerda. Aliás, era o próprio genro do ministro, o jovem Sérgio Lacerda

que estava dirigindo a Tribuna da Imprensa e lhe regulava o tom dos ataques.

Essa mudança na direção do jornal se deu porque Carlos Lacerda, eleito

governador no novo Estado da Guanabara, teve de se afastar do jornal..

Começava-se a formar a teia na qual Jânio ia se embaraçando, cada vez mais.

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Clemente Mariani, ministro da Fazenda de Jânio era sogro de

Sérgio Lacerda, diretor da Tribuna da Imprensa

O encaminhamento da crise

Se as medidas tomadas a partir de março prejudicaram a popularidade do

novo Presidente, pelo menos serviram para atenuar a oposição que os meios

financeiros internacionais vinham fazendo ao Brasil. Afinal, a maior parte dos

empréstimos requeridos visava a dívida já contraída, que precisava ser rolada,

para não colocar o país em estado pré-falimentar. Com as medidas de

saneamento que o governo começara a tomar, surgia, finalmente, uma luz no

fim do túnel.

Uma equipe de técnicos foi posta a campo para manter contatos com os

países do primeiro mundo, donos do dinheiro. Lá se foram Walter Moreira

Sales, Roberto Campos, Miguel Osório e João Dantas, visitando Estados

Unidos, Alemanha, França, Itália, Inglaterra, Holanda, Suíça e Suécia. Todos

esses países se beneficiaram com os 50 anos em 5 de Juscelino Kubitschek e

se achavam no dever de ajudar o Brasil, se não por razões de ordem moral, pelo

menos para preservar os investimentos feitos no país.

A soma dos empréstimos obtidos, superior ao bilhão de dólares pretendidos

inicialmente, atenuou a crise iminente, mas muito pouco resultou em dinheiro

novo. O Fundo Monetário Internacional, assim como banqueiros europeus e até

o Japão acenaram com créditos stand-by (à disposição para retirada quando

necessário) em torno de 200 milhões de dólares.

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Afinal, respirava-se um pouco de ar fresco, o suficiente para permitir ao

governo atacar outros problemas que iam se acumulando e exigiam solução.

Entre eles, o descontentamento nos meios políticos pela falta de verbas, o que

paralisava a administração pública em vários Estados.

O governo itinerante

Jânio Quadros tinha uma aversão profunda pela classe política e,

embora em desvantagem no Congresso, sobretudo na Câmara Federal, nada

fez para melhorar sua base de apoio. Ao contrário, ao invés de negociar com

parlamentares, trazendo-os para o seu redil, como fazia JK, preferiu tratar de

assuntos administrativos diretamente com os governadores de Estado, criando

um governo itinerante, à semelhança do que já tivera quando prefeito da capital

paulista e, depois, como governador do Estado de São Paulo.

A primeira reunião se deu em Florianópolis, reunindo os governadores de

Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná, respectivamente Celso Ramos,

Leonel Brizola e Nei Braga. De importante, resultaram verbas para acelerar a

construção das BR-14, BR-35 e BR-87, bem como a construção de novas

estradas vicinais para o escoamento da safra do café. Foram nomeadas

comissões para a criação do Instituto Nacional do Pinho, do Conselho de

Desenvolvimento Regional, do Banco Regional de Desenvolvimento e de uma

empresa mista para geração de energia elétrica.

Veio nova reunião, desta vez em Campo Grande, com os governadores

Fernando Correia da Costa, de Mato Grosso; Mauro Borges, de Goiás; Abelardo

de Alvarenga Mafra, de Rondônia e José Altino Machado, do Acre. Discursando,

Jânio disse que precisamos dirigir a pátria de costas para o mar. No interior estão

nossas esperanças; no interior reside nosso futuro. Esperanças de bem-estar,

de abundância, de tranquilidade social. Cuidou-se da criação de escolas e da

realização de obras que possibilitem o desenvolvimento integrado da região.

Dentro da mesma linha, e sempre com resultados positivos no que tange à

administração, foi realizada uma terceira reunião na região Sudeste, com os

governadores Carlos Lacerda (Guanabara), Celso Peçanha (Estado do Rio) e

Carvalho Pinto (São Paulo); depois, a quarta e última reunião, no Nordeste com

Pedro Gondim, da Paraíba, e Cid Sampaio, de Pernambuco.

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Esta última, como se vê, estava longe de representar a região do Nordeste e

mostra um esvaziamento desse tipo de governo. Os parlamentares, afastados

da mediação política em seus Estados, absolutamente necessária para aumento

de prestigio e consequente reeleição, passaram a bombardear o governo

itinerante, que começou a perder conteúdo e apoio.

Independente dos interesses pessoais de deputados e senadores, por vezes

compreensíveis, por outras censuráveis, renasce, cristalina, a afirmativa de que

em uma democracia, não é possível governar sem contar com o apoio das

forças políticas; o isolamento do Congresso, traz, pois, como contrapartida, o

isolamento do presidente da República. São poderes harmônicos e

dependentes, que não conseguem sobreviver um sem o outro.

Cuba, o princípio do fim

Jânio tinha internamente uma política de direita e, no plano externo, uma

política de esquerda. O destaque que o governo brasileiro dava a Cuba em

suas relações internacionais passou a desagradar bastante os países ocidentais,

em especial os Estados Unidos. Criou também uma área de atrito com a direita

brasileira que lhe dava apoio, sobretudo com a União Democrática Nacional,

que não via com bons olhos a aproximação com o governo de Fidel Castro.

Exilados cubanos em Miami passaram a organizar uma contraofensiva para

retomar Cuba e, nesse propósito, contavam com apoio mal disfarçado do próprio

governo dos Estados Unidos. Se o governo, oficialmente, não podia interferir no

processo, em verdade, até a primeira dama, Jackeline Kennedy vinha

auxiliando na obtenção de recursos para possibilitar a ação contra-

revolucionária.

Deu-se, então, o ataque a Cuba, em 16 de abril de 1961, numa fracassada

invasão à baía dos Porcos, com a conivência de setores econômicos e militares

norte-americanos, que pressionavam o presidente John F. Kennedy.

Melhor situadas que o inimigo, e também melhor preparadas, as forças

cubanas enfrentaram firmemente os invasores e rapidamente controlaram a

situação militar, restando apenas o rescaldo político e diplomático, envolvendo

sobretudo o posicionamento das nações latino-americanas.

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Dos países sul-americanos, apenas o governo brasileiro e o governo

argentino, cujo presidente era Arturo Frondizi, deram irrestrito apoio a Cuba,

baseados no princípio de soberania das Nações.

É natural que, em tais circunstâncias, Fidel Castro enviasse aos dois países

um seu mensageiro, Che Guevara, ministro da Economia, de nacionalidade

argentina mas radicado em Cuba. Guevara havia participado desde há muito das

ações guerrilheiras que resultaram na deposição do sargento Fulgêncio Batista

e era um dos homens de confiança de Fidel.

Não era uma missão específica. Guevara iria primeiro a Punta del Este, no

Uruguai, participar de uma reunião extraordinária do Conselho Interamericano

Econômico e Social. De lá seguiu para a Argentina, encontrando-se com o

presidente Arturo Frondizi e gerando uma forte crise política naquele país.

Em 19 de agosto, Che Guevara é recebido por Jânio Quadros em Brasília,

o qual aproveita a ocasião para atender um pedido do núncio apostólico,

monsenhor Lombardi, para interferir na libertação de 20 padres espanhóis,

presos em Cuba. Havia, também, assuntos outros a discutir, como o caso da

Mercedes Benz, que entabulara negócios com Cuba para a exportação de

veículos àquele país.

As negociações deram bom resultado em ambos os casos. No aspecto

econômico, os entendimentos se ampliaram, aventando-se a possibilidade de

realizar operação triangular, envolvendo Bulgária, Iugoslávia, Polônia e

Rússia, para exportação de veículos, máquinas, ferramentas e material elétrico

dos quais Cuba tanto estava precisando. O envolvimento de outros países era

necessário, já que Cuba não dispunha de reservas para fazer o pagamento de

importações diretamente ao Brasil.

No caso dos padres, Guevara concorda com a libertação, avisando,

entretanto que, dentro das regras cubanas, eles seriam em seguida expulsos

para a Espanha, seu país de origem. Jânio manifesta sua opinião de que a

expulsão é um assunto interno de Cuba, que só a ela cabe resolver. O Brasil

defende a libertação e com esse ato considera o pedido satisfeito.

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Por fim, dentro de um ato de rotina com autoridades importantes que nos

visitavam, Che Guevara foi condecorado com a Ordem Nacional do Cruzeiro

do Sul. Essa condecoração podia ser feita por iniciativa do presidente da

República, sem consulta a outros poderes, agraciando pessoas que tivessem

prestado serviços relevantes ao país e este passava a ser o caso de Guevara.

Para a banda de música da UDN, foi a conta para iniciar o barulho contra o

presidente da República e suas tendências esquerdizantes, que estavam,

segundo eles, levando o país aos braços do comunismo.

Em resposta, no fim do mesmo dia, no Rio de Janeiro, o governador Carlos

Lacerda condecorava o líder anticastrista Manuel Antonio de Verona, que se

encontrava no Brasil em busca de apoio para a Frente Revolucionária

Democrática Cubana criada pelos dissidentes cubanos na Flórida (USA).

No Rio de Janeiro, em Brasília, e em outros pontos do Brasil, a temperatura

política sobe rapidamente. É o começo do fim para o governo de Jânio Quadros.

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Lacerda volta a atacar

Dando uma no cravo e outra na ferradura, Lacerda vai a Brasília, em 18 de

agosto de 1961, e consegue ser recebido pelo Presidente no Palácio da

Alvorada. Seu pedido era de caráter particular. Precisava de um empréstimo do

Banco do Brasil para saldar dívidas que comprometiam a Tribuna da Imprensa,

neste momento dirigida por Sérgio Lacerda que, como se sabe, era o próprio

genro do ministro da Fazenda, Clemente Mariano. Salvar o filho de uma falência

era também preservar o nome do ministro, seu parente.

Não conseguiu o que desejava e, mais tarde, voltando ao Alvorada, onde

esperava pernoitar, encontrou suas malas na portaria. Tudo foi fruto de um mal-

entendido. Entendendo que Lacerda se hospedaria num hotel, Oscar Pedroso

Horta, mandou que as malas fossem colocadas à disposição, evitando que, altas

horas da noite, Lacerda fosse confundido com um estranho e impedido de

reentrar no palácio. O incidente não foi assimilado e, para piorar, no dia seguinte,

ocorre o episódio da condecoração a Guevara.

Em 22 de agosto, entre aplausos e vaias, Lacerda participa de um debate

com 1.200 estudantes em programa de auditório da TV Excelsior de São Paulo,

fazendo críticas ao governo federal, principalmente com relação à sua política

externa.

Mas um incidente mais grave ocorreu no dia 24. Em 1955, já o narramos,

para impedir o progresso da candidatura JK, Carlos Lacerda publicou uma falsa

carta, conhecida como Carta Brandi, em que denunciava um conluio entre o

candidato a vice, João Goulart e autoridades argentinas para iniciar no Brasil

uma revolução sindicalista. Somente após as eleições é que veio a saber-se que

tal carta era apócrifa.

Agora, Lacerda ataca novamente. No dia 24 de agosto, em cadeia de rádio e

televisão no Rio de Janeiro, o governador da Guanabara denuncia outro complô,

desta vez em Brasília, envolvendo o presidente Jânio Quadros e seu ministro da

Justiça, Oscar Pedroso Horta, para realizar uma reforma institucional, como o

fizera Getúlio Vargas em 1937, com a implantação do Estado Novo. Disse mais

que ele, Carlos Lacerda, fora convidado por Pedroso Horta para participar da

ação.

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Esta última afirmativa, por si só, desmonta toda a armação. Com as relações

em crise, convidar Carlos Lacerda, o demolidor, para participar de um golpe

palaciano já não é apenas um sinal de audácia, torna-se um sinal de burrice, de

ignorância extrema.

Lacerda, o “demolidor”

Fica apenas a palavra do Governador carioca. Nenhuma prova é exibida,

nenhum indício é apresentado, nenhum testemunho é invocado para dar

veracidade à denúncia. Mas em ambiente turbulento, a opinião pública escolhe

a versão que melhor se adapte ao seu pensamento. Uma parte acredita em

Jânio, a outra em Lacerda. E, com a crise, aumenta a efervescência política,

criando um clima de quase ingovernabilidade.

A Renúncia

Tudo isso aconteceu, altas horas da noite de 24. Horas depois, na manhã de

25 de agosto, Jânio reinicia suas atividades, sem intenção de responder ao

governador da Guanabara. Participa normalmente das comemorações do

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Dia do Soldado. Assiste uma exibição de paraquedistas, presencia o desfile

militar, faz a tradicional revista de tropas, entrega medalhas da Ordem de Mérito

Militar. Todo o protocolo foi rigidamente cumprido, em ambiente de pretensa

calma, como se os acontecimentos do dia anterior tivessem caído no vazio. O

governo prossegue em sua rotina.

O Correio Braziliense circula com matéria em destaque, relacionando os

nomes indicados pelo Presidente para participar da delegação que participará

da 16ª Assembleia da Organização das Nações Unidas. Até um resumo da

pauta de reivindicações brasileiras estava sendo divulgado. O governo,

aparentemente seguia sua rota.

Mas não era bem assim. Pela madrugada do dia 25, ao tomar conhecimento

do pronunciamento de Carlos Lacerda, o presidente telefonou ao chefe da Casa

Civil, Quintanilha Ribeiro e ao chefe da Casa Militar, general Pedro Geraldo;

falou com seu secretário particular, José Aparecido. A todos eles, deixou

consignada sua determinação de renunciar, manifestando a opinião de que

estava em curso uma ação para demolir a autoridade presidencial. A

conspiração está em marcha, mas vergar, eu não vergo, teria dito o

Presidente.

Terminadas as solenidades comemorativas do Dia do Soldado, Jânio reúne

o Ministério e anuncia sua renúncia, que mantém, a despeito dos apelos e das

considerações, especialmente as que fez o ministro da guerra, marechal

Odílio Dennys, reafirmando a fidelidade do Exército à autoridade constituída do

presidente da República. Quintanilha, então, mais como seu amigo que como

auxiliar, aconselhou-o a viajar, para evitar as repercussões do ato frente ao

Congresso.

Desde as 9 horas da manhã do dia 25, a Câmara Federal se achava reunida,

transformada em CGI-Comissão Geral de Inquérito. Fazia-se um tribunal à

margem da lei, tal como acontecera com a República do Galeão, criada pela

Aeronáutica em agosto de 1954 para investigar e julgar o então presidente

Getúlio Vargas. Antônio Houaiss escreve:

"Às primeiras horas do dia 25, por iniciativa de vários políticos,

dentre os quais sobressaiam o governador Carlos Lacerda e o

deputado Armando Falcão, reunia-se a Câmara, convertida, por

iniciativa dos deputados José Maria Alkmin e Paulo Lauro, em

Comissão Geral de Inquérito, figura desconhecida no Direito

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Constitucional do país, e convoca para depor, em plenário, e na

mesma data, o ministro Oscar Pedroso Horta [Justiça]. Fazia-o ao

arrepio da lei, isto é, sem que àquele titular fosse dada ciência

prévia das questões que seriam propostas ou marcasse ele o dia

do próprio comparecimento."

Acrescentemos que, se quisessem esclarecer toda verdade, deveriam

convocar primeiro Carlos Lacerda, autor de uma denúncia sem provas. Que

dissesse ele onde obteve as informações que divulgou, em que circunstâncias

se dera o pretenso encontro com o ministro da Justiça e que elementos mais

poderia fornecer aos parlamentares para dar credibilidade a tão grave acusação,

atingindo a autoridade do presidente da República.

Todavia, a esta altura, nenhuma convocação mais era necessária. Lá pelas

três horas da tarde, surge um novo tumulto, centralizado em um grupo de

deputados, acantonado no plenário. A cigarra toca, chamando a atenção dos

parlamentares. Então, o deputado Dirceu Cardoso, do PSD, pede licença e vai

à tribuna para anunciar que tem em mãos um importante documento, assinado

pelo presidente da República. E faz a leitura.

A carta-renúncia

Pasmado, o plenário da Câmara ouve o teor da carta-renúncia e da exposição

de motivos, lidas ambas por Dirceu Cardoso. A primeira é lacônica:

"Nesta data, e por este instrumento, deixando com o

ministro da Justiça as razões do meu ato, renuncio ao

mandato de Presidente da República.

"Brasília, 25 de agosto de 1961. a) Jânio Quadros,"

A exposição de motivos é mais longa e lembra muito a carta-testamento de

Getúlio Vargas:

"Fui vencido pela reação e, assim, deixo o Governo. Nestes sete

meses cumpri o meu dever. Tenho-o cumprido dia e noite,

trabalhando, infatigavelmente, sem prevenções, nem rancores.

Mas baldaram-me meus esforços para conduzir esta nação pelo

caminho de sua verdadeira libertação política e econômica, o único

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que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social a que tem

direito o seu generoso Povo.

"Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando nesse sonho,

a corrupção, a mentira e a covardia, que subordinam os interesses

gerais aos apetites e às ambições de grupos ou indivíduos,

inclusive do exterior.

"Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se

contra mim e me intrigam ou me infamam, até com a desculpa da

colaboração. Se permanecesse não manteria a confiança e a

tranquilidade, ora quebradas, e indispensáveis ao exercício de

minha autoridade. Creio mesmo que não manteria a própria paz

pública.

"Encerro, assim, com o pensamento voltado para a nossa gente,

para os estudantes e para os operários, para a grande família do

País, esta página de minha vida e da vida nacional. A mim, não

falta a coragem da renúncia.

"Saio com um agradecimento e um apelo. O agradecimento é

aos companheiros que, comigo, lutaram e me sustentaram, dentro

e fora do Governo e, de forma especial, às Forças Armadas, cuja

conduta exemplar, em todos os instantes, proclamo, nesta

oportunidade.

"O apelo, é no sentido da ordem, do congraçamento, do respeito

e da estima de cada um dos meus patrícios para todos, de todos

para com um. Somente, assim, seremos dignos deste país e do

mundo. Somente, assim, seremos dignos da nossa herança e da

nossa predestinação cristã.

"Retorno, agora, a meu trabalho de advogado e professor.

Trabalhemos, todos. Há muitas formas de servir nossa Pátria.

"Brasília, 25-8-61 a) Jânio Quadros

A reação do Congresso

A esta altura, Jânio Quadros já viajara para São Paulo, pousando o avião na

Base Aérea de Cumbica, onde ele é recebido pelo governador Carvalho Pinto,

que lhe dá abrigo até que o ambiente clareie o suficiente para conhecer a posição

da Câmara em torno do assunto.

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A reação dos deputados talvez não tenha sido aquela que ele esperava. No

princípio, até houve quem quisesse primeiro ouvir o Presidente para saber das

razões reais e, se possível, até demovê-lo de seu propósito.

Todavia, a opinião majoritária era a de que uma renúncia é unilateral, cabe

cumpri-la, não discuti-la. O vice-Presidente da República, João Goulart, se

achava em viagem oficial à China e o terceiro, na ordem de sucessão era o

presidente da Câmara, deputado Ranieri Mazzili. O deputado Osmar Cunha foi

curto e grosso:

"Que assuma Ranieri Mazilli, imediatamente, o Governo, de

acordo com a Constituição da República, para que se mantenha a

legalidade neste país, para que se mantenha a ordem e para que

não venha o golpe contra esta nação. Vamos levar ao palácio

Ranieri Mazzilli para que assuma, na forma da Constituição da

República, o Governo do Brasil."

O deputado Almino Afonso faz um libelo contra Jânio Quadros:

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"(...) Ainda ontem – diria mal – ainda na madrugada de hoje,

reunidos os deputados na Câmara, para tomar conhecimento das

graves acusações que eram feitas pelo governador da Guanabara,

tínhamos a informação do sr. ministro da Guerra, o marechal Odilio

Denys, de que a vida nacional corria tranquila, de que todo o país

repousava em ordem, na disciplina, no acatamento à lei (...)

"Então eu me indago, sr. Presidente: que estranha dualidade é

esta? Que forças tão poderosas são estas que derrubam um

presidente da República, quando as Forças Armadas, por inteiro,

na declaração do próprio presidente da República, no seu

documento de renúncia, estariam unânimes, firmes na manutenção

da ordem, na defesa do regime democrático?" (...)

"O sr. Jânio Quadros entendeu que não tem possibilidades de

comandar. Renunciou. A renúncia está aceita."

Sem nada decidir, a reunião foi encerrada, convocando-se outra para as

21h30.

Alguma coisa estava fora dos eixos, pois o Congresso é formado por Câmara

e Senado e este último ainda não havia se manifestado. Por volta das três horas

da tarde, o presidente do Senado, senador Auro Soares de Moura Andrade

(por consequência também presidente do Congresso) recebeu o ministro da

Justiça, Oscar Pedroso Horta e, na presença de várias testemunhas, tomou

conhecimento da renúncia do presidente da República e recebeu duplicata das

cartas enviadas à Câmara.

Imediatamente, tomou providências para convocar o Congresso (Câmara e

Senado juntos) em reunião extraordinária, o que aconteceu logo em seguida ao

encerramento da reunião da Câmara. A sessão durou apenas dez minutos,

formalizando a aceitação da renúncia e determinando que Ranieri Mazzilli

assumiria interinamente, até o retorno do vice-Presidente, João Goulart.

Tropas do Exército ocuparam as ruas, preservando sobretudo a Esplanada

dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes, tomando a precaução de deixar livre

a entrada do Congresso, para não caracterizar um sítio aos parlamentares.

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O restante do país foi também colocado em prontidão. E assim terminou,

laconicamente, o governo Jânio Quadros, projetado para cinco anos e encerrado

antes que se completassem sete meses de mandato.

As causas da renúncia

É provável que ninguém saberá jamais por que Jânio Quadros renunciou. Se

alguém o sabia, por certo era ele próprio e levou seu segredo para o túmulo. Mas

há uma dica, contida na obra História do Povo Brasileiro, de Jânio Quadros e

Afonso Arinos. O capítulo relativo à renúncia foi escrito especialmente por

Antônio Houaiss, mas sua inclusão no livro se deu com a concordância ou, pelo

menos com o conhecimento de seu principal autor, o próprio Jânio Quadros.

Escreve Houaiss:

"Seu raciocínio foi o seguinte: primeiro, operar-se-ia a renúncia;

segundo, abrir-se-ia o vazio sucessório – visto que a João Goulart,

distante na China, não permitiriam as forças militares a posse, e

destarte, ficaria o país acéfalo; terceiro, ou bem se passaria a uma

fórmula, em consequência da qual ele mesmo emergisse como

primeiro mandatário, mas já dentro de um novo regime institucional,

ou bem, sem ele, as Forças Armadas se encarregariam de montar

esse novo regime, cabendo, em consequência, depois, a outro

cidadão – escolhido por qualquer via – presidir o país sob o novo

esquema viável e operativo: como, em tudo, o que importava era a

reforma institucional, não o indivíduo ou indivíduos que a

promovessem, sacrificando-se ele, ou não se sacrificando, o

essencial iria ser atingido.

"O plano, porém, falhou exatamente na vacilação dos chefes

militares.

"(...) Jânio Quadros acreditou que os destinos nacionais, num

dado momento, dependiam de sua coragem de sacrificar sua

carreira pessoal.

"Faltou-lhe, porque disso não proviera, o sistema de forças

políticas que o amparassem nessa direção. Faltou-lhe, porque não

quis trair a própria imagem, a vontade de querer continuar a ser

presidente, ao preço da acomodação.

"Para ele, dirá sempre, a política não é a arte do possível, se o

possível é condicionado pelo caduco; é, sim, a arte do possível,

dentro das necessidades globais – algumas das quais estavam

clamando por urgentes decisões, que o sistema de forças vigente

rejeitava."

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Epílogo

Com o episódio da renúncia, Jânio Quadros apagou-se politicamente. Em

1962, candidatou-se a governador do Estado de São Paulo, perdendo as

eleições para seu arqui-rival, Ademar de Barros.

O golpe de Estado de 1964 cassou-lhe os direitos políticos, confinando-o no

interior do país. Mais tarde, fundou uma editora, publicando coleções de livros,

entre eles, a História do Povo Brasileiro, em quatro volumes, já citado acima.

Somente em 1985 volta à vida pública, elegendo-se uma vez mais prefeito de

São Paulo, para um mandato excepcional de apenas três anos. Era o eleitorado

paulistano que, pela segunda vez reconquistava a cidadania cassada. E nas

duas vezes a reconquista da cidadania se fez com a eleição de Jânio Quadros e

com a derrota de adversários com sobrenomes idênticos. Em 1953 o concorrente

era Francisco Antônio Cardoso; em 1985, Fernando Henrique Cardoso.

Para não desmerecer sua biografia, recheada de renúncias, também desta

vez Jânio abandonou a Prefeitura dez dias antes de completar o mandato,

viajando para Londres. E os últimos dias de governo foram administrados por

seu Secretário de Negócios Jurídicos, Cláudio Lembo.

Se um guerreiro deve morrer na luta, Jânio não teve o fim que merecia. Vítima

de três derrames cerebrais, permaneceu inerme numa cadeira de rodas, guiado

por sua filha, Dirce Maria, que lhe conduzia os passos e lhe interpretava os

balbucios, colocando em sua boca coisas que por certo ele nunca pretendeu

falar.

Dona Eloá faleceu em 22 de novembro de 1990, quando seu marido já não

tinha condições de entender o que se passava à sua volta; Jânio Quadros,

descansou em 16 de fevereiro de 1992, aos 75 anos de idade, deixando atrás

de si o rastro de uma disputa familiar pela herança do casal.

Quanto à herança política, entregue aos brasileiros sem que estes a

pedissem ou desejassem, esta resultou em 21 anos de governos militares

discricionários, que só se encerraram em 1985. A renúncia de Jânio custou muito

à Nação brasileira, que até hoje luta para recuperar o tempo perdido.