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Paulo Victorino
CAPÍTULO NOVE
SER OU NÃO SER
O GOVERNO JÂNIO QUADROS
"Creio, senhor presidente, no regime democrático. Creio no
povo, humilde e laborioso. Creio na tradição de nossa liberdade. E
porque creio na democracia, porque creio no povo, porque creio na
liberdade, creio também no futuro da pátria, que só pode ser a
soma do que somos, a colheita do que plantamos, a morada
tranquila que construímos para nós e para a posteridade.
“Se a Divina Providência, na sua misericórdia, houver por bem
me dar alento e saúde, aqui estarei certamente, no final deste
mandato, para transmitir, em cerimônia idêntica, ao sucessor que
o povo me der, os símbolos da autoridade. Transitórios somos nós,
os seus governantes. Transitórias e efêmeras, as nossas pobres
divergências. Mas eternos hão de ser, na comunhão da pátria, o
povo e a liberdade." (Discurso de posse de Jânio, em 1961)
Uma ilustrativa piada circulou durante anos, situada no contexto da
campanha eleitoral de 1960, com versões variadas, tendo como protagonista,
algumas vezes, o candidato a vice-Presidente, Milton Campos, em outras, o
próprio candidato a Presidente, Jânio Quadros. Por ser mais saborosa, ficamos
com a última versão.
A campanha se desenvolvia com sucesso pelo Brasil afora. Em face do pouco
tempo disponível e das distâncias a serem percorridas, Jânio e comitiva,
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Incluindo sua esposa Eloá e sua filha Dirce Maria, mais Milton Campos e outros
proeminentes líderes dos partidos que lhes davam sustentação, utilizavam um
avião Douglas DC-3, que já devia ter sido aposentado por tempo de serviço, mas
que insistia em manter-se no trabalho.
Numa dessas viagens, a meio caminho do destino, um dos motores entra em
pane. Consultada a torre de controle, o comandante é aconselhado a manter o
voo por mais algum tempo, para queimar combustível, antes de tentar uma
aterrissagem forçada. O clima no avião já era preocupante quando o segundo
motor começou a engasgar, aumentando a tensão dos passageiros.
Jânio, cujo pavor pelas viagens aéreas era bem conhecido, estava lívido e
apertava fortemente a mão da esposa. Foi quando uma comissária, prestativa,
se aproximou e lhe perguntou:
"Presidente, o senhor está sentindo falta de ar?" E a resposta veio pronta:
"Não, minha senhora, o que eu estou sentindo é falta de terra!"
Este suposto acontecimento serve de pretexto para nos introduzir naquilo
que, talvez, tenha sido o epicentro dos problemas que levaram o governo Jânio
Quadros à derrocada. Sonhou alto, planejou com consistência, mas faltou-lhe
terra aos pés para atingir seus objetivos.
Como bom estadista que era – ninguém lhe nega as qualidades – procurou
concretizar seus planos de governo firmado no forte apoio popular que tivera,
representado por quase 60 por cento dos votos válidos depositados nas urnas
a seu favor, naquela que poderia ser considerada a segunda revolução branca.
(A primeira foi sua eleição à Prefeitura paulistana, em 1953, desmontando a forte
máquina eleitoral que lhe fazia oposição).
Por melhores e mais bem-intencionados que sejam os propósitos, por mais
reais que sejam as possibilidades de sua execução, numa democracia, nenhum
presidente da República consegue governar sem uma razoável base política no
Congresso Nacional. E Jânio contava com uma base de apoio inferior a 30% da
Câmara, número insuficiente para aprovar qualquer projeto.
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Em um regime presidencialista, o Presidente dispõe de uma soma enorme
de poderes, mas lhe falta um, essencial, disponível no parlamentarismo: ele não
tem o poder de dissolver o Congresso e convocar novas eleições.
Ao tomar posse, Jânio Quadros encontrou um Congresso eleito em 1958,
que não representava a nova realidade política, mas cujo mandato só se
venceria dali a dois anos.
Nesse longo período, era mister recompor suas bases parlamentares,
cozinhando os projetos a fogo brando até que novas eleições parlamentares lhe
dessem maioria efetiva, com a qual pudesse realizar seus propósitos.
Seriam, pois, dois anos inteiros cuidando de problemas menores ou de
consenso, sobrando os três últimos anos para atacar questões mais graves e
polêmicas, já com a Câmara Federal totalmente renovada e com o Senado
parcialmente modificado.
Jânio, confiava no apoio avassalador do povo; não quis esperar, intrigou-
se com a oposição e, pior ainda, conseguiu se indispor até com alguns de seus
próprios correligionários, acrescentando novos adversários ao governo, como se
ainda estivesse precisando de mais inimigos.
O Presidente esteve no poder por exatos 206 dias. Nunca se conseguiu
precisar as causas de sua renúncia. É um quebra-cabeças no qual sempre ficam
faltando peças. Qualquer explicação que se dê é insatisfatória. Mas a falta de
base parlamentar – ele mesmo o reconheceu trinta anos depois – foi um motivo
forte para obstar-lhe os passos, impedindo-o de governar.
Confetes e serpentinas
Dia de mudança é dia de festa. O resto fica para o dia seguinte, ou para a
semana seguinte, quando os novos moradores da casa já estão habituados com
a localização dos cômodos e com a disposição dos móveis.
Jânio Quadros tinha assimilado bem essa tradição, pelo menos é o que
parecia. Ao receber a faixa presidencial das mãos de Juscelino Kubitschek, fez
um discurso que era uma mistura de Adocil com Sucaril.
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Jânio e JK na transmissão da faixa presidencial,
tendo à esquerda o vice-Presidente João Goulart
Primeiro, elogiou JK:
"O governo de v. exa., que ora se finda, terá marcada na História a
sua passagem, principalmente porque, através de sua meta
política, logrou consolidar, em termos definitivos, no país, os
princípios do regime democrático."
Depois, fez uma profissão de fé:
"Creio, senhor presidente, no regime democrático. Creio no povo,
humilde e laborioso. Creio na tradição de nossa liberdade. E porque
creio na democracia, porque creio no povo, porque creio na
liberdade, creio também no futuro da pátria, que só pode ser a
soma do que somos, a colheita do que plantamos, a morada
tranquila que construímos para nós e para a posteridade."
E terminou, no mesmo tom ameno:
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"Se a Divina Providência, na sua misericórdia, houver por bem me
dar alento e saúde, aqui estarei certamente, no final deste
mandato, para transmitir, em cerimônia idêntica, ao sucessor que
o povo me der, os símbolos da autoridade. Transitórios somos nós,
os seus governantes. Transitórias e efêmeras, as nossas pobres
divergências. Mas eternos hão de ser, na comunhão da pátria, o
povo e a liberdade."
Metralhadora giratória
Não era este o discurso que o novo presidente tinha preparado para a posse.
O outro, o verdadeiro, só não foi lido naquele instante porque Juscelino lhe
mandara o recado de que qualquer ataque seria respondido no ato, e diante da
multidão que assistia a cerimônia na praça dos Três Poderes.
À noite, quando o ex-presidente já se encontrava no avião com destino a
Paris, Jânio ocupa uma cadeia de rádio (a televisão na época só tinha
transmissão local). Aí vem a verdadeira mensagem de transmissão de cargo,
aquela que os amigos o aconselharam a não pronunciar na passagem da faixa.
Após um preâmbulo de pura retórica, o novo presidente passa à análise do
governo anterior.
Fala da emissão desenfreada de moeda, informando que, durante o
governo JK o meio circulante passou de 57 para 296 bilhões de cruzeiros, uma
alta inflacionária de 420 por cento.
Menciona nossa dívida externa, que aumentou 60 por cento, atingindo a
cifra de 3,802 bilhões de dólares, dos quais mais da metade teria de ser
resgatada pelo atual governo.
O BNDS (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), entre
empréstimos e avais concedidos a governos e estatais, devia ao exterior cerca
de 33,6 bilhões de cruzeiros o que, com o dólar a 200 cruzeiros no câmbio livre,
correspondia a 168 milhões de dólares.
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O déficit orçamentário na posse de JK era de 29 bilhões de cruzeiros; na
transmissão do cargo havia subido para 193 bilhões de cruzeiros (965 milhões
de dólares). E Jânio segue em seus ataques:
"Em novembro último, não dispúnhamos de 47 milhões e 700
mil dólares para cobrir os ajustes com o Fundo Monetário
Internacional. Faltaram, igualmente, recursos para quitar duas
obrigações do Eximbank (...) Tomou-se apenas a providência de
descarregar as faturas vencidas sobre a administração que ora se
instala. Devo pagar, entre 1961 e 1965, 1 bilhão, 853 milhões e 650
mil dólares de prestações, o que significa, fazendo a conversão do
dólar à taxa do câmbio livre, na base de 200 cruzeiros o dólar, 370
bilhões e 730 milhões de cruzeiros."
O pior é que esses números não eram fabricados. Esta era a outra face do
nacional-desenvolvimentismo do governo Kubitschek, a contra-partida dos 50
anos em 5. Grande parte da conta ficava em aberto e era transferida aos
governos seguintes.
Essa foi a primeira bomba. Horas depois de terminado o discurso, durante a
recepção, criava-se um incidente diplomático, envolvendo Brasil e Portugal.
Um certo capitão Galvão
No capítulo anterior, comentando o cenário internacional por ocasião da
posse de Jânio, fizemos referência à ditadura de Antônio de Oliveira Salazar
em Portugal, firme ainda, mas contestada por alguns grupos descontentes,
inclusive nos meios castrenses.
Na passagem de ano, alguns militares, sob o comando de um certo capitão
Galvão, se rebelaram e iniciaram um movimento sedicioso para derrubar o
primeiro-Ministro português. Não obtendo sucesso, sequestraram um navio e
puseram-se a navegar por águas internacionais, aparentemente sem rumo
definido e sem qualquer plano para retomar a ofensiva.
Assim, Portugal contava com o tempo a seu favor. Mais dia, menos dia, os
revolucionários se convenceriam da inutilidade de seus esforços e se
entregariam, sendo, então presos e julgados pelo ato de rebeldia.
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Não foi bem assim que aconteceu. No decorrer de janeiro de 1961, o navio
seguiu em direção ao Brasil, permanecendo em águas internacionais, mas
próximo dos limites das águas brasileiras, na época fixados em 12 milhas
marítimas (cerca de 18 quilômetros).
Na noite da posse, durante a recepção, o novo Presidente recebe uma
mensagem transmitida do navio, em que os revoltosos pedem asilo político
ao Brasil.
No seu estilo característico, Jânio anuncia publicamente a concessão do asilo
solicitado e a notícia é transmitida, em edição extraordinária, pelas estações de
rádio brasileiras, enquanto que as agências telegráficas se encarregam de enviá-
la ao mundo e, é claro, a Portugal, o outro envolvido no assunto.
Como se não bastasse, o capitão Galvão, ao pôr os pés em terra, fez uma
declaração política aos repórteres que o esperavam, afirmando que o governo
Salazar se achava fraco e que, em poucas semanas a ditadura seria varrida de
Portugal.
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A concessão de asilo sem negociação prévia com um país amigo constitui
uma falta de cortesia. E as normas internacionais sobre asilo político deixam
claro que o asilado não deve fazer pronunciamentos nem prosseguir em sua
atividade política e, em assim fazendo, perde o direito que lhe foi concedido.
Foi a primeira dor de cabeça ao chanceler, Afonso Arinos. Graças à sua
habilidade, e firmado no longo relacionamento de amizade entre Brasil e
Portugal, o incidente diplomático foi encerrado sem maiores consequências. Mas
esses atos de personalismo e, por vezes, de destempero, próprios da
personalidade de Jânio, ainda causariam muita instabilidade em seu governo.
O Ministério
Na formação de seu ministério, Jânio Quadros procurou contemplar os
partidos que o apoiaram, mas não teve dúvidas em buscar nomes em outros
setores de liderança. Alguns já haviam colaborado com ele no governo do Estado
de São Paulo. Um outro, Clemente Mariano, tinha sua filha casada com o
filho de Carlos Lacerda. Alguns tinham entre si divergências irreconciliáveis. O
resultado final foi um verdadeiro balaio de gatos, como se vê a seguir:
Relações Exteriores, Afonso Arinos de Melo Franco (UDN);
Justiça, Oscar Pedroso Horta, advogado criminalista; Fazenda,
Clemente Mariani Ribeiro Bittencourt (UDN); Saúde, Edward
Catete Pinheiro; Agricultura, Romero Cabral da Costa, usineiro;
Educação e Cultura, Brígido Fernandes Tinoco; Trabalho e
Previdência Social, Francisco Carlos de Castro Neves, advogado
trabalhista; Viação e Obras Públicas, Clóvis Pestana (PSD); Minas
e Energia, João Agripino Vasconcelos Maia (UDN); Indústria e
Comércio, Artur da Silveira Bernardes Filho (PR); Guerra, Marechal
Odilio Denys; Marinha, almirante Sílvio Heck; Aeronáutica,
Brigadeiro Grum Moss; Chefe da Casa Civil, Francisco de Paula
Quintanilha Ribeiro; Chefe da Casa Militar, general Pedro Geraldo
de Almeida; Secretário Particular, José Aparecido de Oliveira.
Nem bem a lista foi divulgada e logo começaram os comentários
desfavoráveis, mesmo pelos setores que apoiavam o governo. Mas as críticas
mais contundentes, como era de se esperar, vieram da oposição.
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O deputado Wilson Vargas (era gaúcho, trabalhista, mas sem parentesco
com Getúlio Vargas) subiu à tribuna da Câmara para fazer a análise dos nomes,
descartando-os um a um. De Clemente Mariani, insinuou que seu nome foi
imposto por Carlos Lacerda. O Ministro da Agricultura era um usineiro do
Nordeste, e assim por diante.
O maior bombardeio foi sobre a composição dos ministérios militares e, diga-
se a verdade, essas críticas tinham bem razão de ser. De um lado, nomeou-se
ministro da Guerra o marechal Odílio Denys que, juntamente com Lott, garantiu
a posse de Juscelino, depondo o presidente Carlos Luz; de outro lado, nomeou
ministro da Marinha o almirante Silvio Heck, justamente o comandante do
cruzador Tamandaré, que dava abrigo ao presidente deposto. Como conciliar
duas figuras tão antagônicas em um mesmo ministério, ambas representando as
Forças Armadas?
Para piorar, o ministro da Aeronáutica era o brigadeiro Grüm Moss que o
deputado descreve como um dos agitadores, um dos baderneiros de
Jacareacanga e de Aragarças.
Para quem não se lembra, essas foram as duas revoltas dos escoteiros,
promovidas na Aeronáutica objetivando a deposição de JK. A primeira deu-se
em 1956, duas semanas após iniciado o governo de Juscelino; e a outra, em
1959, tendo como pretexto a segunda renúncia de Jânio à sua candidatura.
Nessas condições, colocar Silvio Heck e Grüm Moss junto com Odilio Denys
era quase um ato de provocação.
Outro deputado, Ari Pitombo, também faz suas críticas, analisando os
nomes com natural irritação:
“(...) dois participantes do Ministério do sr. Jânio Quadros
pertencem à Esso e, ainda mais, o sr. Romero Cabral da Costa, em
declaração ao jornal Última Hora do dia 31 de janeiro, declarou:
‘Não sou político, intelectual, nem técnico.’ Que diabo, então, o sr.
Romero Cabral da Costa vem fazer no Ministério do sr. Jânio
Quadros?”
Um fato é visível na composição do Ministério: falta povo. A pasta do
Trabalho, que mais deveria representar as massas, passa a ser ocupada por
Castro Neves, dono de um escritório de advocacia que prestava serviços ao
setor patronal.
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A nomeação de um usineiro para a Agricultura deixa claro que não se
pretende iniciar uma reforma agrária, nem ao menos uma reforma agrícola,
reformulando os setores produtivos para assentar, com dignidade, o homem do
campo.
O novo governo nasce com defeitos congênitos que lhe impedem o
desenvolvimento e que, não tratados a tempo, o levarão a morte prematura.
Um banho de marketing
Após uma campanha eleitoral que trazia como tema principal a renovação de
costumes, o Presidente recém empossado sentiu-se na necessidade de mostrar
a que veio e, já no segundo dia de governo, instaurou cinco comissões para fazer
sindicância no IBGE, na COFAP (órgão controlador de preços) e em três outras
instituições. Nas semanas que se seguiram, foram criadas outras 28 comissões
de sindicância, uma autentica banda de música, que tocou forte, mas sem
nenhuma afinação.
Em atos seguintes, mandou recolher revistas para adultos, proibiu corridas
de cavalos em dias úteis, o funcionamento de rinhas para brigas de galos, proibiu
também o uso de maiôs cavados em concursos, os espetáculos de hipnotismo,
o uso de lança-perfumes no Carnaval, a propaganda em salas de cinema,
regulamentou a participação de menores em programas de rádio e televisão,
extinguiu funções de adidos militares em representações diplomáticas, etc.
Todas essas medidas, embora aplaudidas pelo povo, tinham apenas função
publicitária, criando imagem de moralização de costumes no país e na
administração pública. Elas impressionavam bem, mas escamoteavam a
verdadeira realidade brasileira, que era a inflação galopante, a péssima
distribuição de renda, o estado de semi-escravidão em que viviam as populações
rurais e outros problemas até então intocados.
Mas essa perfumaria toda também gerou desgastes ao governo, como no
caso da regulamentação do horário do funcionalismo, que passou a ser
integral de oito horas, com obrigatoriedade de marcação de ponto, medida
recebida com entusiasmo pelos trabalhadores de empresas privadas que, em
toda vida, tiveram de cumprir jornada integral.
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Acontece que o aumento de horas de trabalho, por si só, não significa
aumento de produtividade, pelo contrário, com repartições atulhadas de
funcionários sem ter o que fazer, a produção acaba até diminuindo. Uma reforma
administrativa, lenta e maturada, passando pelo Congresso, traria melhores
resultados, mas o efeito de propaganda não seria tão grande.
Muitos dos funcionários de meio período completavam seu salário com
um segundo emprego. Vários deles trabalhavam nas redações de jornais, pela
manhã ou à noite, as quais se viram desfalcadas repentinamente de sua mão-
de-obra. Mesmo sem uma segunda atividade, a maioria não tinha como se
adaptar de chofre à nova realidade. Ao almoço, bares e restaurantes ficavam
repletos de novos fregueses e, para diminuir o movimento, aumentavam o preço
das refeições.
Não tardou que o governo tivesse de atenuar a medida, abrindo uma exceção
para estudantes, para funcionários com dificuldades de alimentação e de
transporte e para mães com filhos menores de 16 anos.
Foi um balde de água fria no trabalhador comum, ao início, tão
entusiasmado. Mantida a comparação, o operariado não tinha nenhuma dessas
regalias: comia de marmita, estudava sabe Deus como e as mães trabalhadoras
deixavam suas crianças com parentes, vizinhos ou largadas ao próprio destino.
Não havia passado ainda essa decepção com Jânio e este já baixava o
decreto nº 51.166, que revogava as medidas anteriores, voltando o
funcionalismo ao horário normal de meio período, igual ao praticado nos
governos anteriores. O eleitorado não poupou críticas a essa precipitada,
extemporânea e inútil cruzada contra os funcionários públicos.
Enfrentando a realidade
Não dava para seguir o governo apenas com medidas de fachada, destinadas
a propaganda. Era preciso agir. Agir rápido e com habilidade, para restaurar a
situação financeira do país, sem o que ficava descartada qualquer possibilidade
de desenvolvimento.
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Contatos feitos com o exterior, com a finalidade de rolar a dívida e conseguir
empréstimos novos, resultaram em fracasso. Adolfo Berler, embaixador dos
Estados Unidos no Brasil acenou com um crédito de emergência que mais
agravava do que auxiliava a resolver os problemas. Não foi aceito. O Brasil
precisava com urgência de pelo menos um bilhão de dólares e isso os países
ricos não estavam dispostos a fornecer, a menos que fossem tomadas medidas
de contenção interna.
Em 13 de março de 1961 ocorreu a primeira reforma cambial com o que o
cruzeiro foi desvalorizado em mais de 100 por cento, unificando-se as taxas de
câmbio com a extinção do dólar subsidiado para produtos essenciais, além de
outras medidas, necessárias, mas impopulares. O governo finalmente caiu na
realidade e a população também. Não há almoço de graça e o preço começava
a ser pago, como sempre, começando pelos mais humildes.
Com a extinção dos subsídios, dobrou o preço do pão, subiu a tarifa dos
transportes coletivos e, num efeito dominó, o custo de vida em geral foi
aumentado, sem a devida contrapartida nos salários. O papel de jornal também
tinha sua importação subsidiada e seu preço dobrou, aumentando a fúria dos
donos de jornais, formadores da opinião pública.
Exultaram, sim, os exportadores, pois com o dólar valorizado, sua
mercadoria passou a ter mais competitividade no mercado externo e melhor
retorno em lucros, quando os dólares eram convertidos em cruzeiros. Lucraram,
também, os bancos internacionais, que faziam empréstimos em dólares e
viram seus créditos aumentarem com uma simples penada. Perderam, é claro,
as empresas que, incentivadas pelo governo anterior, fizeram vultosos
empréstimos em dólares e, do dia para a noite, passaram a dever o dobro.
Uma onda de descontentamento varreu o país e Jânio Quadros começou a
descarregar sua fúria sobre o ministro da Fazenda, Clemente Mariani que,
como sabemos, tinha relações de parentesco com o jornalista e dono de jornal
Carlos Lacerda. Aliás, era o próprio genro do ministro, o jovem Sérgio Lacerda
que estava dirigindo a Tribuna da Imprensa e lhe regulava o tom dos ataques.
Essa mudança na direção do jornal se deu porque Carlos Lacerda, eleito
governador no novo Estado da Guanabara, teve de se afastar do jornal..
Começava-se a formar a teia na qual Jânio ia se embaraçando, cada vez mais.
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Clemente Mariani, ministro da Fazenda de Jânio era sogro de
Sérgio Lacerda, diretor da Tribuna da Imprensa
O encaminhamento da crise
Se as medidas tomadas a partir de março prejudicaram a popularidade do
novo Presidente, pelo menos serviram para atenuar a oposição que os meios
financeiros internacionais vinham fazendo ao Brasil. Afinal, a maior parte dos
empréstimos requeridos visava a dívida já contraída, que precisava ser rolada,
para não colocar o país em estado pré-falimentar. Com as medidas de
saneamento que o governo começara a tomar, surgia, finalmente, uma luz no
fim do túnel.
Uma equipe de técnicos foi posta a campo para manter contatos com os
países do primeiro mundo, donos do dinheiro. Lá se foram Walter Moreira
Sales, Roberto Campos, Miguel Osório e João Dantas, visitando Estados
Unidos, Alemanha, França, Itália, Inglaterra, Holanda, Suíça e Suécia. Todos
esses países se beneficiaram com os 50 anos em 5 de Juscelino Kubitschek e
se achavam no dever de ajudar o Brasil, se não por razões de ordem moral, pelo
menos para preservar os investimentos feitos no país.
A soma dos empréstimos obtidos, superior ao bilhão de dólares pretendidos
inicialmente, atenuou a crise iminente, mas muito pouco resultou em dinheiro
novo. O Fundo Monetário Internacional, assim como banqueiros europeus e até
o Japão acenaram com créditos stand-by (à disposição para retirada quando
necessário) em torno de 200 milhões de dólares.
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Afinal, respirava-se um pouco de ar fresco, o suficiente para permitir ao
governo atacar outros problemas que iam se acumulando e exigiam solução.
Entre eles, o descontentamento nos meios políticos pela falta de verbas, o que
paralisava a administração pública em vários Estados.
O governo itinerante
Jânio Quadros tinha uma aversão profunda pela classe política e,
embora em desvantagem no Congresso, sobretudo na Câmara Federal, nada
fez para melhorar sua base de apoio. Ao contrário, ao invés de negociar com
parlamentares, trazendo-os para o seu redil, como fazia JK, preferiu tratar de
assuntos administrativos diretamente com os governadores de Estado, criando
um governo itinerante, à semelhança do que já tivera quando prefeito da capital
paulista e, depois, como governador do Estado de São Paulo.
A primeira reunião se deu em Florianópolis, reunindo os governadores de
Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná, respectivamente Celso Ramos,
Leonel Brizola e Nei Braga. De importante, resultaram verbas para acelerar a
construção das BR-14, BR-35 e BR-87, bem como a construção de novas
estradas vicinais para o escoamento da safra do café. Foram nomeadas
comissões para a criação do Instituto Nacional do Pinho, do Conselho de
Desenvolvimento Regional, do Banco Regional de Desenvolvimento e de uma
empresa mista para geração de energia elétrica.
Veio nova reunião, desta vez em Campo Grande, com os governadores
Fernando Correia da Costa, de Mato Grosso; Mauro Borges, de Goiás; Abelardo
de Alvarenga Mafra, de Rondônia e José Altino Machado, do Acre. Discursando,
Jânio disse que precisamos dirigir a pátria de costas para o mar. No interior estão
nossas esperanças; no interior reside nosso futuro. Esperanças de bem-estar,
de abundância, de tranquilidade social. Cuidou-se da criação de escolas e da
realização de obras que possibilitem o desenvolvimento integrado da região.
Dentro da mesma linha, e sempre com resultados positivos no que tange à
administração, foi realizada uma terceira reunião na região Sudeste, com os
governadores Carlos Lacerda (Guanabara), Celso Peçanha (Estado do Rio) e
Carvalho Pinto (São Paulo); depois, a quarta e última reunião, no Nordeste com
Pedro Gondim, da Paraíba, e Cid Sampaio, de Pernambuco.
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Esta última, como se vê, estava longe de representar a região do Nordeste e
mostra um esvaziamento desse tipo de governo. Os parlamentares, afastados
da mediação política em seus Estados, absolutamente necessária para aumento
de prestigio e consequente reeleição, passaram a bombardear o governo
itinerante, que começou a perder conteúdo e apoio.
Independente dos interesses pessoais de deputados e senadores, por vezes
compreensíveis, por outras censuráveis, renasce, cristalina, a afirmativa de que
em uma democracia, não é possível governar sem contar com o apoio das
forças políticas; o isolamento do Congresso, traz, pois, como contrapartida, o
isolamento do presidente da República. São poderes harmônicos e
dependentes, que não conseguem sobreviver um sem o outro.
Cuba, o princípio do fim
Jânio tinha internamente uma política de direita e, no plano externo, uma
política de esquerda. O destaque que o governo brasileiro dava a Cuba em
suas relações internacionais passou a desagradar bastante os países ocidentais,
em especial os Estados Unidos. Criou também uma área de atrito com a direita
brasileira que lhe dava apoio, sobretudo com a União Democrática Nacional,
que não via com bons olhos a aproximação com o governo de Fidel Castro.
Exilados cubanos em Miami passaram a organizar uma contraofensiva para
retomar Cuba e, nesse propósito, contavam com apoio mal disfarçado do próprio
governo dos Estados Unidos. Se o governo, oficialmente, não podia interferir no
processo, em verdade, até a primeira dama, Jackeline Kennedy vinha
auxiliando na obtenção de recursos para possibilitar a ação contra-
revolucionária.
Deu-se, então, o ataque a Cuba, em 16 de abril de 1961, numa fracassada
invasão à baía dos Porcos, com a conivência de setores econômicos e militares
norte-americanos, que pressionavam o presidente John F. Kennedy.
Melhor situadas que o inimigo, e também melhor preparadas, as forças
cubanas enfrentaram firmemente os invasores e rapidamente controlaram a
situação militar, restando apenas o rescaldo político e diplomático, envolvendo
sobretudo o posicionamento das nações latino-americanas.
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Dos países sul-americanos, apenas o governo brasileiro e o governo
argentino, cujo presidente era Arturo Frondizi, deram irrestrito apoio a Cuba,
baseados no princípio de soberania das Nações.
É natural que, em tais circunstâncias, Fidel Castro enviasse aos dois países
um seu mensageiro, Che Guevara, ministro da Economia, de nacionalidade
argentina mas radicado em Cuba. Guevara havia participado desde há muito das
ações guerrilheiras que resultaram na deposição do sargento Fulgêncio Batista
e era um dos homens de confiança de Fidel.
Não era uma missão específica. Guevara iria primeiro a Punta del Este, no
Uruguai, participar de uma reunião extraordinária do Conselho Interamericano
Econômico e Social. De lá seguiu para a Argentina, encontrando-se com o
presidente Arturo Frondizi e gerando uma forte crise política naquele país.
Em 19 de agosto, Che Guevara é recebido por Jânio Quadros em Brasília,
o qual aproveita a ocasião para atender um pedido do núncio apostólico,
monsenhor Lombardi, para interferir na libertação de 20 padres espanhóis,
presos em Cuba. Havia, também, assuntos outros a discutir, como o caso da
Mercedes Benz, que entabulara negócios com Cuba para a exportação de
veículos àquele país.
As negociações deram bom resultado em ambos os casos. No aspecto
econômico, os entendimentos se ampliaram, aventando-se a possibilidade de
realizar operação triangular, envolvendo Bulgária, Iugoslávia, Polônia e
Rússia, para exportação de veículos, máquinas, ferramentas e material elétrico
dos quais Cuba tanto estava precisando. O envolvimento de outros países era
necessário, já que Cuba não dispunha de reservas para fazer o pagamento de
importações diretamente ao Brasil.
No caso dos padres, Guevara concorda com a libertação, avisando,
entretanto que, dentro das regras cubanas, eles seriam em seguida expulsos
para a Espanha, seu país de origem. Jânio manifesta sua opinião de que a
expulsão é um assunto interno de Cuba, que só a ela cabe resolver. O Brasil
defende a libertação e com esse ato considera o pedido satisfeito.
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Por fim, dentro de um ato de rotina com autoridades importantes que nos
visitavam, Che Guevara foi condecorado com a Ordem Nacional do Cruzeiro
do Sul. Essa condecoração podia ser feita por iniciativa do presidente da
República, sem consulta a outros poderes, agraciando pessoas que tivessem
prestado serviços relevantes ao país e este passava a ser o caso de Guevara.
Para a banda de música da UDN, foi a conta para iniciar o barulho contra o
presidente da República e suas tendências esquerdizantes, que estavam,
segundo eles, levando o país aos braços do comunismo.
Em resposta, no fim do mesmo dia, no Rio de Janeiro, o governador Carlos
Lacerda condecorava o líder anticastrista Manuel Antonio de Verona, que se
encontrava no Brasil em busca de apoio para a Frente Revolucionária
Democrática Cubana criada pelos dissidentes cubanos na Flórida (USA).
No Rio de Janeiro, em Brasília, e em outros pontos do Brasil, a temperatura
política sobe rapidamente. É o começo do fim para o governo de Jânio Quadros.
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Lacerda volta a atacar
Dando uma no cravo e outra na ferradura, Lacerda vai a Brasília, em 18 de
agosto de 1961, e consegue ser recebido pelo Presidente no Palácio da
Alvorada. Seu pedido era de caráter particular. Precisava de um empréstimo do
Banco do Brasil para saldar dívidas que comprometiam a Tribuna da Imprensa,
neste momento dirigida por Sérgio Lacerda que, como se sabe, era o próprio
genro do ministro da Fazenda, Clemente Mariano. Salvar o filho de uma falência
era também preservar o nome do ministro, seu parente.
Não conseguiu o que desejava e, mais tarde, voltando ao Alvorada, onde
esperava pernoitar, encontrou suas malas na portaria. Tudo foi fruto de um mal-
entendido. Entendendo que Lacerda se hospedaria num hotel, Oscar Pedroso
Horta, mandou que as malas fossem colocadas à disposição, evitando que, altas
horas da noite, Lacerda fosse confundido com um estranho e impedido de
reentrar no palácio. O incidente não foi assimilado e, para piorar, no dia seguinte,
ocorre o episódio da condecoração a Guevara.
Em 22 de agosto, entre aplausos e vaias, Lacerda participa de um debate
com 1.200 estudantes em programa de auditório da TV Excelsior de São Paulo,
fazendo críticas ao governo federal, principalmente com relação à sua política
externa.
Mas um incidente mais grave ocorreu no dia 24. Em 1955, já o narramos,
para impedir o progresso da candidatura JK, Carlos Lacerda publicou uma falsa
carta, conhecida como Carta Brandi, em que denunciava um conluio entre o
candidato a vice, João Goulart e autoridades argentinas para iniciar no Brasil
uma revolução sindicalista. Somente após as eleições é que veio a saber-se que
tal carta era apócrifa.
Agora, Lacerda ataca novamente. No dia 24 de agosto, em cadeia de rádio e
televisão no Rio de Janeiro, o governador da Guanabara denuncia outro complô,
desta vez em Brasília, envolvendo o presidente Jânio Quadros e seu ministro da
Justiça, Oscar Pedroso Horta, para realizar uma reforma institucional, como o
fizera Getúlio Vargas em 1937, com a implantação do Estado Novo. Disse mais
que ele, Carlos Lacerda, fora convidado por Pedroso Horta para participar da
ação.
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Esta última afirmativa, por si só, desmonta toda a armação. Com as relações
em crise, convidar Carlos Lacerda, o demolidor, para participar de um golpe
palaciano já não é apenas um sinal de audácia, torna-se um sinal de burrice, de
ignorância extrema.
Lacerda, o “demolidor”
Fica apenas a palavra do Governador carioca. Nenhuma prova é exibida,
nenhum indício é apresentado, nenhum testemunho é invocado para dar
veracidade à denúncia. Mas em ambiente turbulento, a opinião pública escolhe
a versão que melhor se adapte ao seu pensamento. Uma parte acredita em
Jânio, a outra em Lacerda. E, com a crise, aumenta a efervescência política,
criando um clima de quase ingovernabilidade.
A Renúncia
Tudo isso aconteceu, altas horas da noite de 24. Horas depois, na manhã de
25 de agosto, Jânio reinicia suas atividades, sem intenção de responder ao
governador da Guanabara. Participa normalmente das comemorações do
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Dia do Soldado. Assiste uma exibição de paraquedistas, presencia o desfile
militar, faz a tradicional revista de tropas, entrega medalhas da Ordem de Mérito
Militar. Todo o protocolo foi rigidamente cumprido, em ambiente de pretensa
calma, como se os acontecimentos do dia anterior tivessem caído no vazio. O
governo prossegue em sua rotina.
O Correio Braziliense circula com matéria em destaque, relacionando os
nomes indicados pelo Presidente para participar da delegação que participará
da 16ª Assembleia da Organização das Nações Unidas. Até um resumo da
pauta de reivindicações brasileiras estava sendo divulgado. O governo,
aparentemente seguia sua rota.
Mas não era bem assim. Pela madrugada do dia 25, ao tomar conhecimento
do pronunciamento de Carlos Lacerda, o presidente telefonou ao chefe da Casa
Civil, Quintanilha Ribeiro e ao chefe da Casa Militar, general Pedro Geraldo;
falou com seu secretário particular, José Aparecido. A todos eles, deixou
consignada sua determinação de renunciar, manifestando a opinião de que
estava em curso uma ação para demolir a autoridade presidencial. A
conspiração está em marcha, mas vergar, eu não vergo, teria dito o
Presidente.
Terminadas as solenidades comemorativas do Dia do Soldado, Jânio reúne
o Ministério e anuncia sua renúncia, que mantém, a despeito dos apelos e das
considerações, especialmente as que fez o ministro da guerra, marechal
Odílio Dennys, reafirmando a fidelidade do Exército à autoridade constituída do
presidente da República. Quintanilha, então, mais como seu amigo que como
auxiliar, aconselhou-o a viajar, para evitar as repercussões do ato frente ao
Congresso.
Desde as 9 horas da manhã do dia 25, a Câmara Federal se achava reunida,
transformada em CGI-Comissão Geral de Inquérito. Fazia-se um tribunal à
margem da lei, tal como acontecera com a República do Galeão, criada pela
Aeronáutica em agosto de 1954 para investigar e julgar o então presidente
Getúlio Vargas. Antônio Houaiss escreve:
"Às primeiras horas do dia 25, por iniciativa de vários políticos,
dentre os quais sobressaiam o governador Carlos Lacerda e o
deputado Armando Falcão, reunia-se a Câmara, convertida, por
iniciativa dos deputados José Maria Alkmin e Paulo Lauro, em
Comissão Geral de Inquérito, figura desconhecida no Direito
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Constitucional do país, e convoca para depor, em plenário, e na
mesma data, o ministro Oscar Pedroso Horta [Justiça]. Fazia-o ao
arrepio da lei, isto é, sem que àquele titular fosse dada ciência
prévia das questões que seriam propostas ou marcasse ele o dia
do próprio comparecimento."
Acrescentemos que, se quisessem esclarecer toda verdade, deveriam
convocar primeiro Carlos Lacerda, autor de uma denúncia sem provas. Que
dissesse ele onde obteve as informações que divulgou, em que circunstâncias
se dera o pretenso encontro com o ministro da Justiça e que elementos mais
poderia fornecer aos parlamentares para dar credibilidade a tão grave acusação,
atingindo a autoridade do presidente da República.
Todavia, a esta altura, nenhuma convocação mais era necessária. Lá pelas
três horas da tarde, surge um novo tumulto, centralizado em um grupo de
deputados, acantonado no plenário. A cigarra toca, chamando a atenção dos
parlamentares. Então, o deputado Dirceu Cardoso, do PSD, pede licença e vai
à tribuna para anunciar que tem em mãos um importante documento, assinado
pelo presidente da República. E faz a leitura.
A carta-renúncia
Pasmado, o plenário da Câmara ouve o teor da carta-renúncia e da exposição
de motivos, lidas ambas por Dirceu Cardoso. A primeira é lacônica:
"Nesta data, e por este instrumento, deixando com o
ministro da Justiça as razões do meu ato, renuncio ao
mandato de Presidente da República.
"Brasília, 25 de agosto de 1961. a) Jânio Quadros,"
A exposição de motivos é mais longa e lembra muito a carta-testamento de
Getúlio Vargas:
"Fui vencido pela reação e, assim, deixo o Governo. Nestes sete
meses cumpri o meu dever. Tenho-o cumprido dia e noite,
trabalhando, infatigavelmente, sem prevenções, nem rancores.
Mas baldaram-me meus esforços para conduzir esta nação pelo
caminho de sua verdadeira libertação política e econômica, o único
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que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social a que tem
direito o seu generoso Povo.
"Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando nesse sonho,
a corrupção, a mentira e a covardia, que subordinam os interesses
gerais aos apetites e às ambições de grupos ou indivíduos,
inclusive do exterior.
"Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se
contra mim e me intrigam ou me infamam, até com a desculpa da
colaboração. Se permanecesse não manteria a confiança e a
tranquilidade, ora quebradas, e indispensáveis ao exercício de
minha autoridade. Creio mesmo que não manteria a própria paz
pública.
"Encerro, assim, com o pensamento voltado para a nossa gente,
para os estudantes e para os operários, para a grande família do
País, esta página de minha vida e da vida nacional. A mim, não
falta a coragem da renúncia.
"Saio com um agradecimento e um apelo. O agradecimento é
aos companheiros que, comigo, lutaram e me sustentaram, dentro
e fora do Governo e, de forma especial, às Forças Armadas, cuja
conduta exemplar, em todos os instantes, proclamo, nesta
oportunidade.
"O apelo, é no sentido da ordem, do congraçamento, do respeito
e da estima de cada um dos meus patrícios para todos, de todos
para com um. Somente, assim, seremos dignos deste país e do
mundo. Somente, assim, seremos dignos da nossa herança e da
nossa predestinação cristã.
"Retorno, agora, a meu trabalho de advogado e professor.
Trabalhemos, todos. Há muitas formas de servir nossa Pátria.
"Brasília, 25-8-61 a) Jânio Quadros
A reação do Congresso
A esta altura, Jânio Quadros já viajara para São Paulo, pousando o avião na
Base Aérea de Cumbica, onde ele é recebido pelo governador Carvalho Pinto,
que lhe dá abrigo até que o ambiente clareie o suficiente para conhecer a posição
da Câmara em torno do assunto.
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A reação dos deputados talvez não tenha sido aquela que ele esperava. No
princípio, até houve quem quisesse primeiro ouvir o Presidente para saber das
razões reais e, se possível, até demovê-lo de seu propósito.
Todavia, a opinião majoritária era a de que uma renúncia é unilateral, cabe
cumpri-la, não discuti-la. O vice-Presidente da República, João Goulart, se
achava em viagem oficial à China e o terceiro, na ordem de sucessão era o
presidente da Câmara, deputado Ranieri Mazzili. O deputado Osmar Cunha foi
curto e grosso:
"Que assuma Ranieri Mazilli, imediatamente, o Governo, de
acordo com a Constituição da República, para que se mantenha a
legalidade neste país, para que se mantenha a ordem e para que
não venha o golpe contra esta nação. Vamos levar ao palácio
Ranieri Mazzilli para que assuma, na forma da Constituição da
República, o Governo do Brasil."
O deputado Almino Afonso faz um libelo contra Jânio Quadros:
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"(...) Ainda ontem – diria mal – ainda na madrugada de hoje,
reunidos os deputados na Câmara, para tomar conhecimento das
graves acusações que eram feitas pelo governador da Guanabara,
tínhamos a informação do sr. ministro da Guerra, o marechal Odilio
Denys, de que a vida nacional corria tranquila, de que todo o país
repousava em ordem, na disciplina, no acatamento à lei (...)
"Então eu me indago, sr. Presidente: que estranha dualidade é
esta? Que forças tão poderosas são estas que derrubam um
presidente da República, quando as Forças Armadas, por inteiro,
na declaração do próprio presidente da República, no seu
documento de renúncia, estariam unânimes, firmes na manutenção
da ordem, na defesa do regime democrático?" (...)
"O sr. Jânio Quadros entendeu que não tem possibilidades de
comandar. Renunciou. A renúncia está aceita."
Sem nada decidir, a reunião foi encerrada, convocando-se outra para as
21h30.
Alguma coisa estava fora dos eixos, pois o Congresso é formado por Câmara
e Senado e este último ainda não havia se manifestado. Por volta das três horas
da tarde, o presidente do Senado, senador Auro Soares de Moura Andrade
(por consequência também presidente do Congresso) recebeu o ministro da
Justiça, Oscar Pedroso Horta e, na presença de várias testemunhas, tomou
conhecimento da renúncia do presidente da República e recebeu duplicata das
cartas enviadas à Câmara.
Imediatamente, tomou providências para convocar o Congresso (Câmara e
Senado juntos) em reunião extraordinária, o que aconteceu logo em seguida ao
encerramento da reunião da Câmara. A sessão durou apenas dez minutos,
formalizando a aceitação da renúncia e determinando que Ranieri Mazzilli
assumiria interinamente, até o retorno do vice-Presidente, João Goulart.
Tropas do Exército ocuparam as ruas, preservando sobretudo a Esplanada
dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes, tomando a precaução de deixar livre
a entrada do Congresso, para não caracterizar um sítio aos parlamentares.
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O restante do país foi também colocado em prontidão. E assim terminou,
laconicamente, o governo Jânio Quadros, projetado para cinco anos e encerrado
antes que se completassem sete meses de mandato.
As causas da renúncia
É provável que ninguém saberá jamais por que Jânio Quadros renunciou. Se
alguém o sabia, por certo era ele próprio e levou seu segredo para o túmulo. Mas
há uma dica, contida na obra História do Povo Brasileiro, de Jânio Quadros e
Afonso Arinos. O capítulo relativo à renúncia foi escrito especialmente por
Antônio Houaiss, mas sua inclusão no livro se deu com a concordância ou, pelo
menos com o conhecimento de seu principal autor, o próprio Jânio Quadros.
Escreve Houaiss:
"Seu raciocínio foi o seguinte: primeiro, operar-se-ia a renúncia;
segundo, abrir-se-ia o vazio sucessório – visto que a João Goulart,
distante na China, não permitiriam as forças militares a posse, e
destarte, ficaria o país acéfalo; terceiro, ou bem se passaria a uma
fórmula, em consequência da qual ele mesmo emergisse como
primeiro mandatário, mas já dentro de um novo regime institucional,
ou bem, sem ele, as Forças Armadas se encarregariam de montar
esse novo regime, cabendo, em consequência, depois, a outro
cidadão – escolhido por qualquer via – presidir o país sob o novo
esquema viável e operativo: como, em tudo, o que importava era a
reforma institucional, não o indivíduo ou indivíduos que a
promovessem, sacrificando-se ele, ou não se sacrificando, o
essencial iria ser atingido.
"O plano, porém, falhou exatamente na vacilação dos chefes
militares.
"(...) Jânio Quadros acreditou que os destinos nacionais, num
dado momento, dependiam de sua coragem de sacrificar sua
carreira pessoal.
"Faltou-lhe, porque disso não proviera, o sistema de forças
políticas que o amparassem nessa direção. Faltou-lhe, porque não
quis trair a própria imagem, a vontade de querer continuar a ser
presidente, ao preço da acomodação.
"Para ele, dirá sempre, a política não é a arte do possível, se o
possível é condicionado pelo caduco; é, sim, a arte do possível,
dentro das necessidades globais – algumas das quais estavam
clamando por urgentes decisões, que o sistema de forças vigente
rejeitava."
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Epílogo
Com o episódio da renúncia, Jânio Quadros apagou-se politicamente. Em
1962, candidatou-se a governador do Estado de São Paulo, perdendo as
eleições para seu arqui-rival, Ademar de Barros.
O golpe de Estado de 1964 cassou-lhe os direitos políticos, confinando-o no
interior do país. Mais tarde, fundou uma editora, publicando coleções de livros,
entre eles, a História do Povo Brasileiro, em quatro volumes, já citado acima.
Somente em 1985 volta à vida pública, elegendo-se uma vez mais prefeito de
São Paulo, para um mandato excepcional de apenas três anos. Era o eleitorado
paulistano que, pela segunda vez reconquistava a cidadania cassada. E nas
duas vezes a reconquista da cidadania se fez com a eleição de Jânio Quadros e
com a derrota de adversários com sobrenomes idênticos. Em 1953 o concorrente
era Francisco Antônio Cardoso; em 1985, Fernando Henrique Cardoso.
Para não desmerecer sua biografia, recheada de renúncias, também desta
vez Jânio abandonou a Prefeitura dez dias antes de completar o mandato,
viajando para Londres. E os últimos dias de governo foram administrados por
seu Secretário de Negócios Jurídicos, Cláudio Lembo.
Se um guerreiro deve morrer na luta, Jânio não teve o fim que merecia. Vítima
de três derrames cerebrais, permaneceu inerme numa cadeira de rodas, guiado
por sua filha, Dirce Maria, que lhe conduzia os passos e lhe interpretava os
balbucios, colocando em sua boca coisas que por certo ele nunca pretendeu
falar.
Dona Eloá faleceu em 22 de novembro de 1990, quando seu marido já não
tinha condições de entender o que se passava à sua volta; Jânio Quadros,
descansou em 16 de fevereiro de 1992, aos 75 anos de idade, deixando atrás
de si o rastro de uma disputa familiar pela herança do casal.
Quanto à herança política, entregue aos brasileiros sem que estes a
pedissem ou desejassem, esta resultou em 21 anos de governos militares
discricionários, que só se encerraram em 1985. A renúncia de Jânio custou muito
à Nação brasileira, que até hoje luta para recuperar o tempo perdido.