os orfãos de jânio - millôr fernandes

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  • 8/4/2019 Os orfos de Jnio - Millr Fernandes

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    ORFOS DE JNIO pgina 1

    Millr Online

    www.millor.com.br

    OS RFOS DE JNIO

    De Millr Fernandes

    Importante para a interpretao

    Minha ltima pea, ..., um discurso sobre a falncia das ideologias.

    Mais obviamente, coisa que foi notada pela maioria absoluta dos espectadores,

    um trabalho sobre a inutilidade das teorias. Todas as palavras, aes e

    referncias, inclusive a mitos (deuses gregos), emprestam-lhe o claro e

    angustiante clima, sempre presente em tudo que tenho feito inclusive nas

    artes plsticas a partir de determinado momento de minha vida: o sentidometafsico da existncia, a teoria ocasional da vida e, conseqentemente, da

    Histria. No h leis.

    Claro, isso foi transformado, pela eterna minoria reacionria mafiosa e,

    sobretudo, simplria, da pobre imprensa brasileira, numa pea de costumes!,

    numa relao de casais!!, numa, Deus do cu!, comdia de bulevar!!!

    Sancta Simplicitas!

    Por isso deixo assinalado aqui, para evitar, pelo menos, equvocos

    iniciais, que, nesta pea (apesar de seu contedo intensamente poltico ser

    capaz de fazer algumas peas ditas polticas parecerem teatro infantil), o

    contedo poltico no o mais importante. Esta , basicamente, uma pea

    sobre a angstia humana.

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    M. F.

    PERSONAGENS

    Barman Negro. Um smbolo quase silencioso. O Autor?

    Conceio Branca. Uma funcionria pblica que amava Jnio.

    Beto Negro. Um cantor que esteve l em cima. (Apesar de suas

    afirmativas, no deve ficar definido se homossexual, ou no. Atitudesagressivas, vagos maneirismos.)

    Nelita Branca. Uma moa que se emancipou. Ainda usa alguns colares

    e anis, restos do tempo em que foi A Rainha dos Berloques.

    Carlos Branco. Jornalista, isto , prisioneiro de uma profissoexcessivamente vulnervel.

    Gilda Branca. Uma diletante que jamais entendeu bem o enredo.

    Apenas uma, da turma.

    A Concetta de Napole e Maria Viola Fernandes, de um outro mundo.

    We must not then add but rather lead and ballast to the understanding,

    to wings, prevent its jumping or flying.

    Bacon. Novum Organum, I, 104.

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    Este pensamento vai no original no por pedantismo, mas para dificultar

    ainda mais sua compreenso. Aprendi isso observando o comportamento de

    inmeras lideranas.

    M. F.

    OS RFOS DE JNIO

    ATO I

    Cenrio

    (Bar, meio fechado. No um bar ostensivamente de luxo, um bar

    fingidamente sem luxo. Tipo Vilarino, na Av. Presidente Wilson, 68. Na frente,

    uma loja, que pode ou no ser vista, onde se vendem bebidas, queijos,

    conservas e coisas do gnero. Na parte do bar propriamente dito, onde sedesenrola a ao, as mesas so simples, com tampos grossos, de mrmore

    branco. Em volta, caixotes, sacos etc.)

    A representao deve ser feita em arena.

    Ateno, Direo e Atores:

    Os personagens fazem referncias indiscriminadas a posies polticas,

    sociais e artsticas. Gozam, criticam e atacam, segundo vrios pontos de vista.

    Portanto, nesta pea, mais do que em qualquer outra, extremamente perigoso

    alterar ou omitir palavras e frases, sem uma viso total do conjunto.

    (Blecaute. Durante 30 segundos. Ouve-se, forte, o som de fita de

    gravador, voltando. Luz sobe em resistncia. Em cena, o Barman que, durante

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    a representao, vai servindo os fregueses, de acordo com os pedidos, os

    gestos, ou por ver que esto de copo vazio. Conceio j est em casa.

    Magra, ossuda, meia-idade, usa a roupa colonialista, baseada na que os

    ingleses usavam na ndia, e que Jnio pretendia adotar nas reparties

    pblicas brasileiras. Em Conceio, isso uma forma de ecmntica fsica. Ela

    est de p, hesitando onde sentar, por isso v-se bem a roupa. Senta. Olha

    para cima. O som da fita pra. O Barman serve e, enquanto isso, fala. Num

    certo ponto, fala pro alto, com naturalidade, como se ali houvesse uma cabine

    de um tcnico de tev. Mas no deve dar nenhuma nfase especial a isso.)

    BARMAN

    O sculo XIX s acabou em 1918, no fim da Primeira Guerra Mundial.

    (Com tdio.) Isso j foi muito dito. O sculo XX acabou vinte anos antes... pra

    ser exato (Olha o relgio.), hoje, agora. (Sorriso.) a primeira vez que isso

    est sendo dito. Premire Mundial. (Pausa.) A verdade que todas as

    propostas para o sculo XXI j foram feitas. No h mais absolutamentenenhuma proposta a fazer. (Agora fala pro alto.) Os personagens, a no ser

    nos dois ou trs breves momentos em que eu indiquei, no dialogam. Esto

    falando pra si prprios, ou dando entrevistas, esto no confessionrio, num

    julgamento, lecionando, num psicanalista, num interrogatrio. Ou apenas

    pensando, curtindo. Ruminando. (Pausa. Agora, no tom inicial.) O homem

    um animal que se justifica. (Vai pra trs do bar, fechando a garrafa.)

    CONCEIO

    Agosto fogo. Pela primeira vez eu fui pro Ministrio com aquela roupa

    que o presidente tinha recomendado e ele prprio usava! Uma idia muito

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    socialista, mas coisa descontrada, tropical, nada daquele uniforme chins que

    uma pobreza. O presidente tinha pegado a idia na ndia, no, no Egito ele

    era tarado pelo Nasser: eu era tarada por ele. Tudo que ele fazia eu estava de

    acordo fiquei de acordoat quando, l no Palcio Alvorada, ele mandou o Z

    Aparecido botar a mala do governador Carlos Lacerda no meio da rua e eu

    era fanzssima do Lacerda! Tinha colegas que achavam ridculo. Presidente

    no deve se meter em certas coisas. Eu acho que presidente tem que se meter

    em tudo. Ele o pai de todos ns. Jnio era. Eu assisti ele na televiso, com o

    Estado de S. Paulo na mo isso, no tempo em que os Mesquitas mandavam

    no pas: o Estado falou, t falado. Mas Jnio no via cara: mandou brasa nos

    Mesquitas, explicando pra gente que aquele monto de papel cheio deanncios era tudo subsidiado! Tudo pago pela gente. Uma pouca vergonha.

    Olha: pra ser presidente da Repblica tem que ser macho. por isso que eu

    sou contra mulher em poltica. (Bebe. Beto entra. Preto. Alto. Veste roupa

    envenenada, na linha do cabeleireiro Silvinho. Olha em torno, agressivo,

    absoluto ar de desdm. Subitamente, se atira no cho, beija o cho, como o

    papa. Os outros no tomam conhecimento. Conceio acaba de beber, fala,enquanto Beto vai ao balco. O Barman lhe d um copo maluco deve ser

    uma exigncia habitual dele com uma bebida de uma cor impossvel. Ele

    fica bebendo, de cabea baixa.) Jnio era macho. Levantava s 5 da manh e

    lia todos os jornais no era recorte no; com ele no tinha esse negcio de

    sinopse! Lia tudinho enquanto tomava caf. E tacava bilhetinho pra todo

    mundo: ministro, general, embaixador, pra Deus e o diabo na terra do sol.

    Agora, tudo no devido respeito. E com portugus perfeito, chamando todo

    mundo de V. Excelncia. V. Excelncia, senhor contnuo da 3 Auditoria,

    vem sendo reiteradamente relapso em suas obrigaes funcionais, o que, em

    breve, torn-lo-... (Pausa.) Voc j imaginou o prefeito de Muribeca dos

    Curibocas recebendo um bilhetinho de censura do presidente? Se borrava

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    todo. Eu sei do que tou falando; minha maior emoo foi no dia em que meu

    chefe me disse: Dona Conceio, o presidente mandou um bilhetinho pra

    senhora. Achei que era trote. Todos sabiam que eu adorava ele. Mas, quando

    vi o timbre do papel, meu corao saltou pela boca. Comecei a suar e a tremer.

    (Da bolsa, com a mo tremendo, ela tira um bilhete velhssimo,

    exageradamente velho, todo amassado, um papel que j foi lido e relido mil

    vezes. Abre. L.) Senhorita Maria da Conceio Crisstomo, sua eficincia e

    probidade... (Continua lendo, sem som, desiste, acaba guardando o bilhete,

    com mo trmula.) As duas maiores emoes da minha vida essa e aoutra,

    naquele dia calorento de agosto de 1961, quando seu Pel, o preto enorme,

    chefe da limpeza, entrou na minha sala, quase branco, e gritou pra todomundo: O presidente se matou!

    BETO

    (Se levanta, o copo na mo, bebe tudo. Pega o copo como um microfone,

    afasta fios invisveis, canta, no mximo da voz, prolongando bem aspalavras.)

    Morreeeeeu

    Malvadeza Duro

    Malandro.

    Mas muito considerado.

    O que que faz a porra de um toureiro que engordou? O que que faz

    um Pitangui com a porra de um delirium tremens? (Olha o copo, longamente.

    Quebra o copo no cho, com violncia.) O que que faz a porra de um cantor

    sem microfone? What am I doing here? Me diz, que que estou fazendo aqui?

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    (Patada no cho.) No, aqui neste bar no. Nesta rua. Nesta rua, uma porra.

    Nesta cidade. Na porra deste mundo? Que que estou fazendo aqui, na porra

    desta galxia, se a nica pessoa que me interessa, j me interessou e vai me

    interessar no me interessa? Bicha fogo. No que eu seja. Fogo, eu digo.

    (Carlos entra como quem vem do banheiro, abotoando a braguilha. J meio

    grisalho. Senta. Fuma e bebe o tempo todo.)

    CONCEIO

    Algum tinha misturado a renncia de Jnio com o suicdio de Getlio e

    seu Pel gritava que Jnio tinha estourado os miolos. Mas, no arquivo, o rdiotava dando tudo. Eu no entendia por que ele estava preso em Cumbica; no

    tinha renunciado? Era crime? Todo mundo fazia declaraes cvicas, estavam

    procurando o vice-presidente na China o que que o vice estava fazendo na

    China, Deus do cu, na hora em que o presidente mais necessitava dele? O

    negcio que a essa altura j tinha mais de mil urubus voando em cima da

    carnia do poder tinha os milicos, tinha o cunhado do Jango, tinha asmultinacionais e, como sempre, tinha o Tancredo Neves. A Laura, uma

    miudinha muito dadeira da recepo, entrou saracoteando na sala, comendo

    um sanduche de mortadela (Dizer mortandela.) e resumiu tudo:

    Vamsimbora, pessoal, que a moleza j voltou todo mundo pra praia.

    BETO

    Sempre fui udigrudi. Tudo normal. No Brasil, tirando os empresrios

    paulistas, tudo udigrudi. Mas eu me safei bem. Engrenei com uns bacanas a

    da (Hesita na palavra.) inteligntzia (Pronuncia inteliguntzia.), aprendi

    muito de oitiva. (Aponta pro ouvido.) Ouvido absoluto. Sei mais de mil

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    parolas. Mas o que eu queria mesmo era ser astro da Globo. Disco de ouro.

    Cantor de esquerda. Os pasccios da classe mdia todos botando dinheiro na

    minha bilheteria e eu protestando. Os pasccios da (Mesma hesitao

    anterior.) inteligntzia me fazendo apenas pequenas restries. Acontece que,

    quando pintei no mercado, a praa j tava com excesso de cantor de esquerda.

    Tive que cavar meu espao onde desse, e, quando vi, estava abrindo o bico

    numa boate bem, e a crtica me rotulou de croonerde direita. Algum tinha

    que ser. Bom, j l vo cem anos, muita merda passou por baixo da ponte.

    Mas, , ainda agora, se voc quiser me ouvir de tera a sbado, s pagar o

    preo de um churrasco rodzio que o rouxinol aqui recebe dez por cento do

    cuvr. Eu canto noBabaca.

    NELITA

    (Entra. Mulher um tanto gasta. Deve ter sido bonita. Breves, quase

    imperceptveis tiques nervosos. Senta.) Pronto, aqui estou eu de novo. Daqui a

    pouco estou comemorando bodas de prata de promessa de nunca mais pisaraqui. mesmo? Eu sou uma alcolatra? Alcolatra bebe pra esquecer, p! Eu

    bebo pra lembrar. Pra mim s tem vida pra trs. O Dr. Pelegrino, meu

    psicanalista, chama isso de ecmnsia. Este bar devia se chamar Ecmnsia. Isso

    aqui era uma imundcie de artistas e contestadores. Todos achando que o que

    tramavam aqui repercutia no Araguaia. O pior que, s vezes, repercutia. O

    Rio ainda era a capital intelectual, aqueles babados. Por que que ningum

    fala? O bar no o mesmo? Perdi o charme? Ou foi a revolta que perdeu?

    (Bebe.) isso a: quem est revoltado j num t cum nada. A palavra de

    ordem agora a ordem unida.

    CARLOS

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    (D uma baforada, amassa o cigarro no cinzeiro. Bebe uma boa golada

    de usque.) Eu no fumo nem bebo. (Pausa.) E nunca minto. Todos me

    consideram o paladino da verdade. Eu sou o ladino da verdade. Nunca, em

    toda a minha vida de dono de jornal, eu passei um cheque com fundos. Meu

    jornal j foi fechado e arrebentado pela direita, pela esquerda, por um ministro

    mais corrupto do que o combinado, e, naturalmente, por credores, cansados de

    colaborar com a minha indmita resistncia cvica. Em 61 eu tinha trinta anos.

    Vinte anos depois, estou com 60. Trinta por cento de correo monetria pelas

    paradas que topei. Claro que fui a favor da posse do Jango. Ele que no foi.

    Se o Brizola no empurrasse, ele ficava se tostando l na Costa do Sol, numaboa. E tinha mudado a histria, pra melhor. Do poder, o que ele gostava

    mesmo era das coristas do teatro rebolado. Um liberal! Mas como liberalismo

    tem hora, mandou me prender, no dia em que publiquei uma frase dele: Os

    dias do poder so bons mas as noites do poder so gloriosas. (Aponta pra si

    prprio.) Treze prises em quinze anos e 127 vezes arrastado pra prestar

    declaraes. Hay gobierno? Soy contra. No hay gobierno? Soy contratambin. Imprensa oposio: o resto armazm de secos e molhados. Mas

    em armas eu no peguei, no. No sei nem onde que fica o gatilho de um

    revlver. Meu negcio acabar com as foras armadas: por que que vou

    apoiar outra fora armada? Mas, na hora do pega pra capar, garotos, eu no dei

    no p, no. To lembrados? Eu sou um daqueles que no foram embora. Bom,

    no estou criticando os que se mandaram. Medo medo quem tem orifcio

    anal sabe disso. (Noutro tom.) E quem tem prstata, depois dos cinqenta,

    vive no banheiro. (Vai saindo pro banheiro.) Mas teve gente que se mandou

    muito cedo. (Volta-se.) Minha maior paixo criticar meu prprio lado.

    BETO

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    Babaca. Voc da classe mrdia no t acreditando que tem um bar com

    esse nome, t? Deve ter a at gente da burocrcia cochichando que no

    davam alvar prum nome desses. T bem!: com mil pratas lubrificando a

    burocrcia o bar podia at se chamarXoxota. Agora, tambm no a no

    meio da granfinagem, claro. Fica na estrada Dutra, Km 42. Chegando ali,

    voc toma uma estradinha de terra, direita, logo depois v uma placa:

    Coisinha, a dois quilmetros. Coisinha, no delicado? O espanhol do

    Babaca tem suasfinesses.

    CONCEIO

    Foi o primeiro porre que tomei na minha vida e eu j tava com vinte e

    sete anos. O pessoal do arquivo descolou um usque nacional e eu fui a

    primeira a encarar o gargalo. Tem uma coisa ningum vai ficar pensando

    que eu sempre falei assim, cheia de gria. Eu colocava todos os pronomes, e

    palavro me dava nojo. Tinha gente que at encarnava em mim porque umadas coisas que eu mais admirava no presidente era a forma mesocltica. Ele

    no perdia uma. Fui professora seis anos, portugus eu sei. s vezes eu ficava

    ouvindo ele falar (Corrige, irnica.) ouvindo-o falare pensava: nessa prclise

    ele vai entrar bem, mas nunca! Acertava todas na mosca. Outro sensacional

    era o Lacerda. Comeava uma frase, abria um parnteses, esculhambava todo

    mundo e, quando fechava, a concordncia batia certinho. L com cr. Como

    que agora a gente pode respeitar uns politicides que, quando falam uma frase

    com mais de dez palavras, o sujeito no se d mais com o predicado? No

    conseguem organizar uma frase e querem organizar o pas? O mundo? Qual ?

    (Bebe.) So uns ineloqentes.

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    NELITA

    Eu sou de boa famlia. De Cuiab. Tem gente a que pensa que s Rio e

    So Paulo tm gr-fino. Nunca viram gr-fino de Cuiab. Nem a famlia real

    da Baviera se compara. S depois eu aprendi que isso uma bosta, que a gente

    nunca mais se livra disso: formao pequeno-burguesa. Voc nem imagina

    como me doeu a primeira vez em que me cuspiram em cima essa expresso.

    Eu nem sabia bem o que era; me doeu como uma ofensa mortal. Depois fui

    forra: usei em cima de todo mundo! (Pausa.) Eu, desde menina, no

    agentava Cuiab. Vivia de olho no Rio e em So Paulo. Lia tudo quanto era

    jornal, sobretudo notcia social e as fofocas sobre intelectuais prafrentex,grandes artistas de vanguarda. E fingia que lia os livros srios, mas esses,

    francamente, eu no tinha saco. Acho que ningum tem. Mas eu era crente.

    Sou dessas pessoas que acreditam. Em qu? Em tudo. Eu estava l em Cuiab,

    mas no vivia l vivia num filme. Aqueles intelectuais cariocas que

    passavam o dia bebendo e queimando fumo no Castelinho depois eu

    descobri que os intelectuais que puxavam fumo no Castelinho eram ospaulistas imitando o que os cariocas no faziam pra mim aqueles intelectuais

    eram os mesmos que estavam na luta armada contra a ditadura. Eu era menina,

    pra mim no tinha incoerncia d uns tiros no mato, corta, est bebendo no

    Degrau. preso pela Polcia, corta, est jogando frescobol na Montenegro.

    Pra mim era tudo em 16 milmetros. E tinha uns caras poderosos poderosos?

    divinos-maravilhosos, que controlavam esse cinema-novo existencial e

    montavam a realidade brasileira na moviola de minha cabea de gr-fina

    cuiabana o Glauber, o Fernando Henrique, o Paulo Francis, o Vandr, o Z

    Celso, o Srgio Dourado. Nessa poca, o Srgio Dourado estava entrando

    violentamente na especulao imobiliria e eu jurava que era um puta

    intelectual de esquerda defendendo corajosamente a ecologia carioca. Foi por

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    isso que um dia, ainda meio menina, tinha 16 anos!, contra tudo e contra

    todos, minha me chorando e meu pai gritando, eu arrumei a mala e desci.

    (Carlos volta.)

    BETO

    (Como quem sonha.) Foi a que os compositores comearam a cantar.

    CONCEIO

    Meu chefe, um velho de mais de quarenta anos, falou que tinham sido oscomunistas, pra botar Jango no poder. Um despachante da alfndega, um

    antipatico, alis, votou contra: evidente que foi o complexo industrial-

    militar a servio do imperialismo ianque procurando conservar os latifndios

    improdutivos da oligarquia paulista.Ns sabemos. Eu tambm sabia quem

    era ns. O encarregado de Relaes Pblicas lembrou que Jnio Quadros j

    tinha renunciado uma vez, no meio da campanha: Est pensando que vaivoltar de novo nos braos do povo, mas o povo j encheu. Mas quem me deu

    raiva mesmo foi o calhorda do crioulo da limpeza, um tremendo cachaceiro,

    que rosnou: No foi nada disso no, puta que pariu! Assim mesmo; esse

    palavro. Porque, nessas ocasies, a primeira coisa que desaparece o respeito

    e a hierarquia. A gente v que tudo no passa de um verniz. O crioulo, com a

    voz j enrolada, disse: No tem foras ocultas nenhuma! Eu conheo muito

    bem essas foras. E, com todo mundo boquiaberto, ele arrematou: Bebeu

    mal!

    GILDA

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    (Entra. Bem vestida. Uma capa. Bolsa. Roupa de muito boa qualidade.

    Aos poucos, no decorrer da ao, vai tirando peas de roupa, at que, em sua

    ltima fala, est apenas de colant.Na medida do possvel, imita Leila Diniz.)

    Eu no tenho nada a dizer. Mas digo sempre. Ininterruptamente. Meu nome

    Gilda. Meu pai me botou esse nome em homenagem quela mera atriz do

    cinema, hi, tem tanto tempo! (Faz sinal pra orquestra. Entra msica forte. Luz

    muda. Foco apenas sobre ela. Ela canta, imitando Rita Hayworth.)

    Amado mio

    Love me forever

    And let foreverBegin tonight. (Pra de cantar com a msica.)

    Pois : t aqui h trinta e cinco anos, na merda deste mundo, e s sei isso

    que uma merda. At agora, no entendi picas de mirandolina do que se

    passa em volta de mim. E d, s com curso primrio? O que me salvou me

    salvou ou me perdeu, depende do cristal com que se mira que eu semprefui de enturmao. L em Bag era com o time do Guarani local e jogador

    era grosso paca! Ningum nem podia imaginar que vinte anos depois ia

    aparecer um doutor! Jogando! Doutor Scrates. Pel estava apenas

    comeando!: ainda nem era branco. Mas eu levava uma incontestvel

    vantagem sobre as outras moas da cidade eu dava. E no fazia mistrio. Era

    uma pioneira. Era popular. Agora, com toda essa precocidade, minha vida s

    comeou mesmo quando eu j estava no Rio e conheci Leila Diniz. E

    terminou poucos anos depois, quando ela explodiu naquele avio, l na

    Zennbia, na Monrvia, na Rodsia, sei l, um desses pases ai do Fidel

    Castro. Eu vi Tem Banana na Banda vinte e sete vezes; vi no sei quantas

    vezes aquele filme lindo que o marido dela fez com ela, tinha pilhas de

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    retratos dela. Nem ela tinha tanta coisa sobre ela. Um dia eu li numa coluna

    que ela estava mudando daquele apartamentinhoJ-vi-tudo perto da praia ,

    ela estava conversando com o Millr, de uma janela pra outra, dizendo que ia

    mudar e isso saiu no jornal porque a colunista do Globo ouviu, numa outra

    janela Ipanema era assim, uma grande famlia! Ipanema era um sonho!

    Quando eu soube que ela ia mudar, fiz minhas contas depressa e telefonei pra

    ela perguntando se no podia me recomendar ao dono do apartamento. Foi

    assim que eu enturmei com ela. Ela marcou encontro comigo, j no

    apartamento novo, eu subi correndo os trs lances da escada, era um edifcio

    antigo, no Jardim de Al, sem elevador, e, quando ela abriu a porta, de mai

    biquni, to simples, um pano na cabea, to humana, toda empoeirada daarrumao, to natural, meu Deus, to gente, e me sorriu, simptica, com

    aquela cara gorduchinha to linda, voc, olha, ningum vai acreditar eu

    desmaiei.

    BETO

    Meu nome Beto Maria: no vem com essa no, claro que lembra. Beto

    Maria Joo Aquidab. Ah, meus sais aromticos! Sempre tive esse nome!

    Quer dizer, mudei uma vez, mas tambm ningum ia conseguir fazer carreira

    com meu nome de batismo: Esternio Valvular de Outubro. Beto Maria

    Betinho. Participei daqueles festivais de msica popular, todo mundo

    ainda vivo sabe disso. Voc no sabe? Ento est morto! Participei de todos.

    Comecei por baixo, no primeiro, e fui subindo nos outros porque topava tudo

    consegui chegar a ser o cantor mais vaiado pela platia encarregada de

    radicalizar. No sabia? P, voc no sabe nada. A gente dividia os

    concorrentes, como aqueles campeonatos de catch da televiso tinha o

    bonzinho, tinha o contestador sistemtico e o contestador ocasional, e tinha o

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    pssimo carter, aquele que no catch chuta a cara do adversrio cado e enfia o

    dedo no olho. Esse a era eu. Que foi, xar, desbundou? Pensava que aquilo l

    era pra valer? Oh, meu trato! Foi o prprio Marx quem disse tudo tutu. L

    nos isteites, os agentes da Joan Baez e do Bob Dylan tinham que se virar pra

    manter aquelas imagens. Custava uma nota. E o Bob Hope? Gastava mais de

    um milho de dlares por ms pra ser esculhambado pela esquerda. Com isso

    ganhava vrios milhes, com o patrocnio da direita. Copiamos tudo dos

    americanos, cara! O que bom pros Estados Unidos bom pro Brasil. Isso

    aqui no um pas, nego. E uma pardia. (Pausa.) Macacobrs.

    CARLOS

    Nestes dez anos, sabe quantos artigos meus foram censurados? Todos.

    Mas eu sentava e escrevia, todos os dias. Teve um dia em que o jornal saiu

    com uma folha s, ou melhor, uma pgina. Mas saiu. Voc alguma vez j leu

    ele, o meu jornal? do Estado do Rio. Nunca foi grande coisa, no. Mas

    chegou a ter trinta redatores. Quando a guerra acabou, acabou o tal do AI-5, stinha oito redatores. Durante esse tempo todo, a redao tinha mais polcia do

    que jornalista. Sem falar que um dia eu descobri que trs redatores eram da

    polcia.

    NELITA

    isso ento: pra no perderem de vez a filhinha mimada mas rebelde,

    meus queridos papais pequenos-burgueses tinham me deixado ir sozinha para

    So Paulo. E, de repente, eu tava l, na big metrpole, estudando na USP

    CUSP, com todos aqueles professores superbacanas. A primeira pessoa

    famosa que eu conheci sabe como , dessas pessoas famosas que so, na

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    verdade, superfamosas exatamente porque o povo no sabe que elas so

    famosas, s a gente foi o Fernando Henrique. Que bonito! Eu mostrava at a

    obturao do dente siso quando, na aula, ele olhava para mim. Diziam que ele

    transava com umas alunas. P, eu, com aquela pinta, transava todas. (Bebe.)

    Quando eu entrei na faculdade, So Paulo j estava fervendo. E os estudantes

    todos, quisessem ou no quisessem, estavam naquela panela de presso. Fui

    morar num apartamentinho ali em Pinheiros, junto com duas colegas um

    pouco mais velhas, do interior do estado. Naturalmente, a cabecinha feita a

    est esperando eu confessar que pouco tempo depois descobri que uma era

    sapato e a outra terrorista. (Pausa, sorri. Simptica. Cmplice. Logo, com

    raiva.) Pois no eram! Nem uma coisa nem outra. Tem que ser?! Agora, asduas eram ativas, estavam em todas. E, como eu no tinha ligaes, ia a todos

    os lugares com elas, ia a tudo que era biboca incrementada e, quando percebi,

    eu, que vivia a dolce vida cuiabana, eu, que tinha descido pra ampliar meu

    gozo existencial, viver a vida deslumbrante da juventude alienada da minha

    gerao, quando vi, tinham me virado pelo avesso. E estava nas passeatas

    (Bebe.), de mos dadas, formando uma corrente pra frente, me esgoelando,eufrica, uma voz na multido de milhares: O povo unido jamais ser

    vencido. Eu no entendia o que se pretendia com aquilo, mas, no fundo do

    meu corao, eu sabia que era alguma coisa contra meus pais, l em Cuiab.

    CONCEIO

    Acho que o Brasil no tem sorte. Quando o Jnio tomou posse, pareceu

    at que a coisa ia engrenar. Depois daquela roubalheira toda do JK bem, no

    vou dizer que ele roubou pessoalmente, a gente sempre tem que dizer que o

    presidente uma vtima, est mal cercado; pas em que o presidente rouba

    pessoalmente republiqueta. Depois do Juscelino, ter entrado o Jnio, forte,

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    decidido, com seis milhes de votos!, eu achei uma coisa sensacional! O Jnio

    era honestrrimo. E impunha esse carisma. Foi com ele, alis, que essa palavra

    ficou popular. Nos Ministrios, ningum levava mais nem um clip pra casa.

    Antes sumia at aparelho de ar-condicionado. E, de repente, tum!, tudo

    acabado. Um azar! Eu, se fosse presidente embora seja contra mulher... eu j

    disse? Ah! Bom, se eu fosse, a primeira coisa que fazia era nomear um

    ministro da umbanda pra fechar o corpo do pas. Todo despacho presidencial

    realmente importante seria feito sexta-feira, numa encruzilhada, acompanhado

    de um despacho do ministro tranca-ruas. A Igreja Catlica tem muita

    urucubaca! (Se benze, inclusive beijando os dedos.) Deus me perdoe!

    GILDA

    (Deixa a bebida, pega outro copo, enche a mo com plulas, engole, bebe

    gua.) Eu queria ser uma grande mulher, a partir do meu corpo. Superior. A

    Leila era superior assim. Transava com quem bem entendia e quando resolveu

    botar a barriga grvida, enorme, na cara da macacada, no sol de Ipanema,botou mesmo. Eu achei horrvel. Depois achei lindo. E logo todas as gatas

    paridas do pas inteiro foram atrs dela. Ela era a estrela, o resto era figurao.

    Eu, se ela dissesse, sai de bunda de fora, eu saa. Mas ela nunca disse isso.

    Essa moda no foi ela que lanou. Quem foi a revolucionria da bunda de fora

    eu no conheo, j no do meu tempo.

    CONCEIO

    Depois que todo mundo foi embora, eu fiquei ali, na repartio, sozinha,

    meio no escuro; j era bem tarde, pensando. Depois, apaguei as luzes, uma a

    uma, e desci pra rua Mxico, completamente vazia eram quase dez horas da

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    noite. Eu fui andando, bem devagar, me segurando porque o usque tinha

    subido bastante. Em cada esquina, no escuro, eu via a silhueta de dois

    soldados do Exrcito, armados com rifles. Perto do Obelisco, tinha dois

    tanques.

    GILDA

    No Natal de 70, eu j estava enturmada com o melhor: estive at no

    Festival de Curta-Metragem de Berlim, com tudo pago, e ganhei o prmio de

    melhor penetra penetrada uma gozao da turma! s porque dei pro cnsul

    da Alemanha. A gente ia a tudo que era lugar quente, exposies, filmes,shows de cantores, peas de teatro tudo estria, claro, quando no era estria

    no tinha graa. Pra mim, cultura badalo. Me lembro de uma noite em que

    eu e duas bichas minhas amigas nos vestimos todos, isto , todas, bem

    envenenadas e chegamos numa vernissage do Hlio Oiticica, dentro de um

    camburo. Voc j viu algum chegar numa festa num camburo? Sair, todo

    mundo j viu, que vantagem! , mas essas coisas no duram, no. Quando euvoltei de So Paulo, dia 2 de junho de 1972, passei l em casa da Leila e foi a

    que me deram um soco na cara. Foi um soco na cara! Tinha dois rapazes

    barbudos na salinha eu no conhecia, acho que eram primos e um deles me

    disse, sem aviso: Voc ainda no sabe? Ela morreu. O avio dela explodiu l

    na ndia, em Nova Delhi. E eu disse uma coisa bem idiota, assim: Explodiu

    como? Eu nem sabia que ela estava viajando! Como se o fato deu no saber

    impedisse o avio dela de explodir, ou de cair, ou de bater, ou que diabo seja,

    ou tenha sido, na merda deste mundo de merda, que no deixa ningum,

    ningum, ningum, nem mesmo ela, que era a mais linda, a mais esplndida

    de todas ser feliz!

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    BETO

    Bem, esse ano no adianta no posso aceitar mais nada: j estou todo

    programado. bem verdade que s faltam dois meses pra fechar o ano, mas,

    com a crise do petrleo, tem colega a que no est conseguindo cantar nem no

    banheiro. Eu no quando terminar minha temporada noBabaca vou me

    apresentar dois dias num cassino clandestino, numa palafita, na Favela das

    Mars, depois, fao uma curta temporada na varanda do Alcazar, pegando

    chepa dos turistas eu canto em vrias lnguas, todas elas mais ou menos em

    portugus e depois j estou apalavrado pra irritar os fregueses de outra

    churrascaria de rodzio, em Niteri, e fazer com que eles comam menos.Tenho que ganhar a vida. S sei j me negaram tudo, mas isso ningum

    nega, ou nega, negam tudo! , s sei cantar. Enquanto isso vou marretando a

    bicharia velha que vai ali na estradinha de Caxias pra dar o que seu, o que,

    dizia minha av, no desdouro. Pois o que esse espanhol comunista, dono

    dessa birosca nojenta em que eu canto, explora mesmo, no a comida fudida

    nem o show escroto a prostituio masculina. Uma manada de nordestinosfamintos, uns mulatinhos sestrosos, vaselinados, o mais velho deve andar a

    pelos 17. Todos subnutridos e analfabetos. Mas parece que a subnutrio e o

    analfabetismo no afetam a teso de ningum porque, com cach entre 200 e

    500 pratas, os paus-de-arara esto sempre a postos (Gesto de teso.), prontos

    pra traar os velhos gr-finos pelanquentos que j no encontram mais macho

    na zona sul nem pagando. Bom, pra a, tambm no assim to imoral! Os

    rapazes doBabaca tambm tm seus princpios. Por exemplo: no topam beijo

    na boca. (Pausa.) De vez em quando, eu pego umas rebarbas. De um lado e de

    outro. No sentido exato eu me viro.

    GILDA

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    sem idade pra correr mais noventa minutos num jogo sem regras, comeamos

    a levar canelada de todos os lados. Pois o time da Igreja, que nunca foi muito

    catlico, no nos dava apoio. Os milicos nos odiavam. Os intelectuais foram

    todos pra tev pra evitar que os inimigos pegassem aqueles altos salrios. Os

    empresrios acendiam uma vela a Deus e outra ao milagre. As multinacionais

    deitavam e rolavam. E os jovens nos olhavam com absoluta e compreensvel

    desconfiana. Pois, de repente, no meio disso tudo, passou a ser um crime

    horrendo ter mais de trinta anos, mesmo que fosse menos de quarenta. Os

    culpados disso foram aqueles msicos cabeludos l de Liverpool, que, por

    sinal, nem eram to cabeludos assim. Mas, tudo legal! (Pausa.) Bem, meninos

    e meninas do jri, podem estar certos de que no me ofenderei se vocs,enojados diante da minha degradao fsica e moral, deixarem a sala sem

    ouvir minha defesa. S quero declarar que minha decadncia no foi

    vocacional, nem planejada. Em criana, quando me perguntavam o que

    pretendia ser quando crescesse, eu jamais respondi: Um homem de meia-

    idade. Jamais. Simplesmente, aconteceu. Um erro de toda a minha gerao.

    Que, estou certo, a de vocs saber evitar. E espero que conte a meu favor ofato deu no ter me entregado facilmente. Discuti muito com meus cmplices

    de gerao. Todas as noites, antes de dormir, eu dizia pra minha mulher:

    Amlia, querida, no adianta racionalizar. Chegarmos aonde chegamos uma

    ofensa irreparvel aos novos tempos. Eles tm razo, Amlia: ns somos

    podres, podres, podres. E Amlia me respondia:

    BETO (No papel de Amlia.)

    verdade, Carlos, eles tm razo. S que eu sou muito mais podre do

    que voc. Fui eu que impus a eles os falsos valores de uma sociedade

    condenada caf da manh, banho, sinteco e mais duas refeies por dia.

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    Com isso, empurrei-os para a alienao, o uso de drogas, inevitvel rebelio

    contra o sistema, canibalismo e, sobretudo, cries dentrias s explicveis pelo

    excesso de afeio com que foram tratados.

    CARLOS MARIDO

    A tua capacidade de sacrifcio maternal monstruosa, Amlia, mas eu

    sou o maior monstro. Como pai, no tive capacidade de orient-los para uma

    corrupo compatvel com o mundo corrupto que lhes entregamos.

    BETO AMLIA

    No, fui eu que lhes dei amor demais, tornando-os fracos, incapazes de

    resistir s condies ecolgicas adversas e s matrias cancergenas da

    sociedade de confumo.

    BARMAN

    (Bem discreto.) Consumo.

    BETO AMLIA

    (Pra ele. Discreta.) Consumo?

    NELITA

    Mame esteve s uma vez comigo, aqui no Rio. Foi me visitar no meu

    apartamentinho, na Morada da Luz, ali perto do Caneco. A maluca resolveu

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    me fazer uma surpresa, vejam s! A surpreendida foi ela. Quando entrou a

    porta vivia escancarada eram duas da tarde. O Alfredo percussionista ainda

    estava dormindo na sala, o sol na cara, nu como veio ao mundo, os bages de

    fora, o seu sono inocente absolutamente imperturbvel diante do esporro que o

    Laurinho fazia num sax alto, enquanto o Manfredo tocava outra msica

    completamente diferente numa aporrinhola. A velha pensou que tinha errado

    de endereo! Pensou que tinha errado de mundo, to distante aquilo estava do

    mundo da filhinha dela. Mas no tinha errado no, ela viu logo, no fundo do

    pequeno corredor, porque o banheiro no tinha porta e, sentada no vaso, da

    maneira mais natural, liberta de tudo que a velha tinha ensinado, na sua santa e

    bem-intencionada represso, l estava Nelita, a filhinha dela, cagando para aburguesia. Dona Gisela Saturnino Marinho, minha me, hesitou, parou e

    declarou, numa ltima tentativa crtica: Minha filha, como voc est

    mudada!

    BETO

    J est chovendo sem parar h dois anos e meio. (Olha o relgio, sacode

    no ouvido.) Exatamente: 972 dias. chuva paca. Nunca aconteceu antes, por

    isso tinha gente que achava impossvel. Tem gente que s acredita na

    gravidade quando um objeto bem pesado cai na cabea delas. A, pegam o

    objeto, vem que no to pesado assim e acreditam: P, s pode ser a tal da

    gravidade. Tem gente que s vai acreditar na bomba nuclear quando ela cair

    na cabea deles. Quer dizer nem vo ter tempo de acreditar. Quando o sol

    no nasceu foi a mesma coisa. Eu sempre disse: o fato do sol ter nascido todo

    dia h milhares de anos no obriga ele a nascer amanh, u. Alis, eu nem sei

    se o sol nasce h milhares de anos. Eu no vivi milhares de anos isso o que

    me ensinaram. Mas tambm me ensinaram que no Brasil no existe

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    preconceito racial. O que eu sei, porque experimentei na minha pele morena,

    que o sol nasce todo dia h 37 anos e que o Brasil um pas com um nojento

    preconceito racial. No me interessa se de origem biolgica, econmica,

    astronmica ou alcolica, p! O que interessa que, se voc preto, 99 por

    cento, das pessoas brancas te olham com a absoluta certeza de que voc

    quando no caga na entrada caga na sada. Embora eu tenha que reconhecer

    que h um pequeno nmero de brancos, uma minoriazinha de artistas e

    intelectuais, democratas de verdade, que nos tratam de igual pra igual o que

    lhes d um extraordinrio sentimento de solidariedade humana e lhes permite

    ir contar anedotas racistas no primeiro botequim.

    CONCEIO

    No dia seguinte, passei na Igreja de Santa Luzia e rezei por ele, pelo

    presidente, e rezei pelo Brasil. Agora eu j sabia de tudo; que ele estava

    mesmo preso em Cumbica, que tinham trado ele, lendo logo a renncia,

    quando o certo era esperar a opinio do povo, e saiu aquela inveno dasforas ocultas, quando ele nunca, nunca falou isso. Ele falou em foras

    terrveis que no tinham nada de ocultas. Era gente assim mesmo, como esse

    Auro Mazzili e esse Rainiere de Moura Andrade que logo repartiram o poder

    com os militares. Eu estava com medo. Todo mundo estava. Na repartio, a

    baguna voltou logo ao que era antes. Nesse ms, desapareceram trs

    mquinas de escrever.

    GILDA

    Quando estava em Bag e me sentia na fossa tinha um objetivo vir pro

    Rio. Mas o que que faz uma pessoa na fossa aqui no Rio? Volta pra Bag?

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    Por que que vocs todos no voltam, pombas? Vai dizer que so todos

    cariocas? T bem! Carioca mesmo, : s dei pra dois cariocas, em toda a

    minha vida. A no ser que voc esteja contando tambm com o Maurcio

    Palhares, mas esse carioca honorrio. E, nesse tempo todo, tive que me virar

    sozinha. E me virei muito mal, confesso. Tambm, fui cair numa roda que no

    dava pra ficar nem pra sair. Eu vibrava com tudo que era vanguarda no teatro,

    no cinema, na pintura, tudo que era revolucionrio, rasgado, malfeito, ilegvel,

    contra, emborcado, sem moldura, sem tela. O maior filme que eu j vi na

    minha vida era um filme completamente infilmado. O diretor, ele mesmo tinha

    riscado as imagens na fita com um prego. A gente tinha que ver as imagens,

    quadro por quadro, na mo dele, contra a luz, porque ele no tinha projetor. Ea luz era de vela porque ele, naquele ms, no tinha pago a conta da Light.

    Mas eu, firme, sempre de boca aberta, todo mundo me adorando, pudera: eu

    sozinha era a maior platia do universo. Quanto menos eu entendia mais

    vibrava era uma deslumbradona! E tem mais uma coisa: eu tinha muito

    carinho dentro de mim: quando algum estava a perigo eu dava. Bom, s

    vezes dava tambm profissionalmente pruns caras que apareciam no bar eeram meio aspones, sabe, assessores de porra nenhuma, porque eles

    descolavam uma nota de alguma mordomia estatal e me pagavam bem. Nessas

    horas eu no tinha a menor dvida: dividia tudo com a turma (Diz tiurma),

    quer dizer, muita gente podia at pensar que eu estava me prostituindo, que

    eles estavam me explorando, mas no era nada assim to primrio, to sem

    ideologia. Era tudo em nome da arte e da redeno pela arte e pra mim era

    at muito mais que isso. Era ser permitida no Santurio. Porque, no fundo, eu

    sabia que no tinha nenhum direito de entrada a no ser o meu corpo. Que

    que h, Z, no vale? Sem essa. No mundo de baixo ou de cima, meu filho, na

    granfinagi ou no udigrudi cada um entra com o que tem. Era muito fcil dizer

    que eles dependiam de mim at pruma droguinha, mas quando eu quis sair eu

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    percebi que a dependente era eu. E a cai numa fossa federal. Nunca mais eu ia

    me livrar daquela vida. Nunca mais eu podia viver a vida correta e decente que

    tinha aprendido, viver bem casada, cuidando dos meus filhos e traindo meu

    marido direitinho, como minha me tinha me ensinado. (Ateno: ela diz isso

    sem ironia.)

    BETO

    Eu vim de baixo. Voc j tinha percebido? Percebeu pela cor ou pelo

    sotaque ingls aqui do papai? No, no vai, diz! Eu agento o tranco,

    boneco. Eu conheo todas as falsificaes. Eu sou todas as falsificaes. Tbem, nem todas. Voc fica com seus 90 por cento. Eu j fiz de tudo; diz a

    uma coisa que eu no fiz. Fui cavador de poo, limpador de fossa e vendedor

    de lata dgua. Isso, at os seis anos de idade, quando sa de Panelas de

    Miranda, onde nasci. Panelas fica no interior de Pernambuco, mais ou menos

    uns 400 quilmetros depois de onde o vento faz a curva. Gregrio Bezerra,

    esse lder comunista, tambm de l. C v; Panelas de Miranda uma rvoreque d pitanga e melancia. Mas tambm fui entregador de caixo de defunto,

    em Feira de Santana, bab de cachorro, em Ipanema, e baitolo de certos

    messis entendidos, voc manja o enrustido de meia-idade com pimenta no

    rabo? No maaaaaaaanja! Eu sei! Pois ; se a grana pinta qual a moral? No

    showbis tambm fiz de tudo. Muito trabalho coletivo, naquele esquema: todo

    mundo trabalha a leite de pato e, como no pode sair o nome de todo mundo, o

    diretor-produtor se sacrifica e empresta o nome pra identificar o grupo. Uma

    vez, trabalhamos num espetculo coletivo desses durante nove anos. Quando o

    espetculo ficou pronto durava 38 horas. A, vimos que no dava, discutimos e

    reduzimos tudo pra quarenta e cinco minutos. Era sobre a construo da

    pirmide de Queofres, pra ser representado num areal de Parnaba. (Gesto.)

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    Clima! A censura cortou 20 minutos.

    NELITA

    ramos jovens, altrustas, dispostos a tudo, tnhamos sangue. E pressa.

    Tnhamos recebido a sagrada misso de modificar tudo de uma vez,

    imediatamente no tempo de nossa mocidade. S no sabamos que o prazo

    era to curto. Alis, individualmente, no sabamos de nada. amos.

    Apanhados isoladamente nem sabamos como nos defender dos ataques

    brutais dos mais velhos, cheios de argumentos definitivos. No tnhamos

    munio ideolgica. Por isso, sempre que acontecia algum fato novo,corramos, em pnico, pro grupo, pro partido, pra patota e perguntvamos ao

    guru de planto: O que que ns estamos pensando? E a ficvamos

    tranqilos. Porque, em qualquer bar, em qualquer aula, em qualquer redao,

    podamos defender aquela idia, pois logo aparecia algum pra nos apoiar. E

    esse apoio era a senha pra reconhecermos os que estavam na mesma estrada.

    Vocs j observaram uma formiga? J tentaram compreender como que aformiga, to idiota, sozinha, faz milagres em grupo? porque a formiga no

    um animal. (Pausa.) uma clula. Quando se aproximam umas das outras as

    formigas comeam a trocar mensagens e a agir com um nico objetivo.

    Funcionam exatamente como as clulas do crebro humano s que no tm

    carapaa. E a viram uma fora determinada, tenaz, indestrutvel. Por que

    que voc pensa que os medocres dos japoneses andam sempre juntos? Por

    que que voc acha que no existe japons individual?

    CARLOS

    Chega um momento em que no tem mais sada. A vida cada vez mais

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    Histrio! Palhao! Mulherengo! Falar que botava caspas de mentira na

    roupa, que a maior virtude dele era conseguir comer aqueles sanduches nos

    comcios, depois de uma bruta refeio. (Carlos sai pro banheiro.) Mas eu sei

    que ele foi o homem mais sincero do mundo e provou, depois! Quem combate

    ele que me diga: com o talento dele, com aquela autoridade!, ex-presidente!

    no podia estar dirigindo um banco, estar prestando servio a uma

    multinacional? Todo mundo no est l, na folha? O Golbery no est? Ele

    no. Choveu proposta. Nunca topou. Nem quis a guerra civil. Foi pra casa e

    foi fazer um dicionrio (Bate no livro, levanta-o.) que uma coisa muito,

    muito til e exige muita capacidade. Sacrificou a vista dia e noite no trabalho.

    (Joga o livro na mesa.) E quando os engraadinhos vm me gozar dizendo queisso muito pouco pra quem teve seis milhes de votos eu respondo logo: E

    os comunistas, que ridicularizavam ele, tiveram quantos votos? Fizeram

    quantos dicionrios? (Pausa.) Eu queria ver o dicionrio do Jango.

    GILDA

    De vez em quando pintava um trabalho na tev, num segundo plano de

    anncio de cigarro, ou num coro de refrigerante. Minha maior oportunidade

    foi mostrar meia cara durante dois segundos, por trs de uma garrafa de Coca-

    Cola, cantando Isso que . Mas Isso que bastava pras sub-revistas de

    show me fazerem perguntas sobre tudo e sobre todos. E a futura grande

    estrela, mostrando o mximo de intimidades que a censura ento deixava

    bico de seio no podia , respondia com segurana inacreditvel sobre

    virgindade, socialismo, religio, amor livre e sobretudo o papel da mulher na

    sociedade moderna. Deus do cu, como eu era culta! Como eu era inocente!

    S comecei a desconfiar que estava tudo doente quando a Leila foi julgada

    naquele programa Quem Tem Medo da Verdade?, a maior mentira do

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    mundo. Foi insultada de vagabunda pra baixo e saiu em prantos do estdio.

    Mas tambm a gente nunca sabe o resultado das coisas os produtores

    acabaram quebrando a cara, perderam o programa, foram chamados de

    exploradores e canalhas e a imagem dela, meio menina, meio mulher,

    totalmente livre e totalmente pura, consolidou-se para sempre. Uma coisa eu

    aprendi: a vida... bem... a vida... independe.

    BETO

    Tinha um padre a, um frei a, famoso, com o meu nome: Beto. Mas eu

    no tenho nada a ver com ele. Nem conheo. Nem me interessa conhecer.Tambm no tenho raiva de quem conhece. No tenho mais raiva de ningum.

    J tive. Quando fui preso. Fui o nico que foi preso do outro lado, se que me

    entendem. Fui preso por ingratido bode expiatrio , pois estava justamente

    dando uma ajudazinha legal aos que estavam prendendo os que deviam ser

    presos. Mas tenho a impresso de que bobeei na virada da onda em poltica

    precisa ser bom surfista. Tem uns a que eu manjo que esto sempre na cristada onda (Faz movimento de surfista.) e nunca arriscaram uma costela. Porque

    neste pas, camar, pintou perigo, o pessoal t todo l em cima do muro. O

    Brasil um muro s. Oito mil quilmetros. Maior que a muralha da China.

    Por exemplo: quando o Brizola caiu apareceu algum grupo de onze pra

    defender ele? Ele dizia que tinha 5 mil! No apareceu nem um pra remdio. Se

    o Brizola tivesse vencido, sabe quantos grupos de onze iam aparecer? D um

    palpite! Setecentos e vinte e sete mil, duzentos e setenta e dois. Como que eu

    sei? E s pegar a populao do pas em 64 e dividir por onze. (Carlos volta,

    fechando a braguilha.)

    CARLOS

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    Profisso? Advogado. Vocao mesmo? Jornalista. O que que isso quer

    dizer? (D de ombros.) Meu primeiro jornal, no colgio, era impresso num

    rolo de papel higinico pra mostrar a verdadeira finalidade da imprensa, e fui

    indo, at que arranjei uns cobres do governo na outra ditadura! e fiz este

    vibrante vespertino. Eu acho que um jornal socialista. Os inimigos dizem

    que um caa-nqueis: democracia isso. Tive grandes mestres.

    Chateaubriand, que obrigou o governo Bernardes a entregar Itabira aos

    americanos e ganhou tanto dinheiro que abriu uma cadeia de jornais. E o

    embaixador Gilberto Amado, que sempre me dizia: Menino, bajula um

    poltico! Voc tem que se corromper bem cedo pra ficar independente e podercombater a corrupo o resto da vida.(Pausa.)

    O Maurcio precisava fazer aquilo comigo s porque no dei os vinte mil

    atrasados? Estava me pedindo h mais de um ms, tinha direito, necessitava,

    tinha que pagar... (Pensa, no lembra.) Sei l o qu, era muito grave, j

    esqueci. Mas onde que eu ia arranjar mais vinte mil naquela semana? Minha

    filha j tinha me levado exatamente isso pruns vestidos, pruma festa, prumaida a Nova York, uma coisa qualquer bem leviana. (Pensa, desiste de

    lembrar.) Minha memria... Ele devia ter tido pacincia. Afinal, o que mais

    importante: dinheiro pra angstia ou pra alegria?

    NELITA

    E, de repente, foi um redemoinho. As coisas todas comearam a girar em

    torno do que ns fazamos. Eu no meio, a mil rotaes por hora, tonta, mas

    feliz. Ns, algum de ns, de uma forma ou de outra, com nome ou sem nome,

    direta ou indiretamente, estava na ao, 24 horas por dia. Podia ningum

    saber, mas era como se todo mundo soubesse, pois ns sabamos. Cada notcia

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    de jornal, na msica, no teatro, no cinema, na poltica, na represso, tinha

    alguma coisa nossa, que gente como ns estava fazendo ou provocando. No

    parvamos nunca. Porque no estvamos sozinhos. No ramos brasileiros.

    ramos universais. ramos a juventude do mundo, a primeira juventude da

    histria que jamais envelheceria. J tnhamos conquistado o direito a nossas

    prprias roupas, a nossos prprios usos, a nossa prpria msica e a nossas

    prprias palavras que, em verdade, eram os palavres que eles tinham

    escondido durante tanto tempo. Arrancamos paraleleppedos das ruas,

    atacamos a polcia e gritamos: proibido proibir, como em Paris. E samos

    em mil fotos coloridas, como na Frana. Seguimos Mao, Marx e Marcuse,

    como eles faziam em Washington, embora as nossas tradues no fossemboas. E estvamos dispostos a morrer, estvamos mesmo, como os tchecos,

    repetindoZa Svobodu Dubceka Cernika, coisa que absolutamente no

    tnhamos a menor noo do que significava. Mas era uma coisa infinitamente

    misteriosa, esotrica e, portanto, indestrutvel. Estvamos vivendo um ato de

    infinita pureza sem individualismo, ilgico porque sensorial, subjetivo e

    animal. Mas a eles acabaram com a alegria da rapaziada, na Frana,arrancaram as flores da primavera de Praga, fecharam pra sempre a

    Tchecoslovquia e... e mataram Robert Kennedy. Mataram tambm Luther

    King e, aqui, mataram um outro presidente, Costa e Silva, jogaram mais um

    vice-presidente civil, o Pedro Aleixo, na lata do lixo e desceram a noite da

    Inquisio no pas com uma lei breve, grossa e rasteira. (Irnica.) A lei mais

    curta do mundo. (Bem lentamente, conta nos dedos.) A I Cinco. (Longa

    pausa.) No, mil novecentos e sessenta e oito no foi uma boa safra.

    FIM DO PRIMEIRO ATO

    RFOS DE JNIO

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    ATO II

    BETO

    Tem gente que pensa que eu vivo chorando os tempos dos ternos

    brancos, dos carres e das mulheres louras. P, eu tinha uma loura s pra me

    vestir. Ficava em p, de pernas abertas, no meio do camarim, as duas

    brancaranas vinham , eram duas! , me desabotoavam todo eu s

    levantava um brao aqui, uma perna ali, e assim mesmo de muito m vontade

    e elas me vestiam: egretes, plumetes e leno de pirata na cabea. Um barato.De vez em quando, eu botava uma pra me fazer o servio ali mesmo. S pra

    humilhar. Eu no sabia que era pra humilhar, mas hoje eu sei. Mas no o

    tempo que eu tenho mais saudade. Meu tempo melhor foi dos 16 aos 17 anos,

    trabalhava em Turiau, subrbio da Linha Auxiliar. Miservel e feliz! Fudido

    e feliz! Me chamavam de Tio e eu ria. Sabe em que que eu trabalhava? (Ri

    muito.) Eu trabalhava numa chamin de alumnio de uma fbrica de queijosem bisnaga. Se voc me perguntar por que que a chamin tinha que ser

    coberta com placas de alumnio, eu no sei. Acho que era pra ficar chique. O

    que eu sei e todo mundo sabe que no vero, no Rio, faz 40 sombra. Isso

    quer dizer que o piauiense pendurado l na chamin, com aquele sol na cara,

    ficava lembrando do Piau como se fosse a Noruega. Pois estava trabalhando

    pelo menos a 50 graus. Ora, todo arrebite tem um contra-arrebite. Contra-

    arrebite esse que o papai aqui segurava dentro da chamin! Vamos botar a

    uns 70 graus de temperatura e ningum t exagerando. Pois olha, respeitvel

    pblico, enquanto o noruegus, do lado de fora, mandava brasa no rebitador,

    eu, l dentro, com as costas apoiadas no muro da chamin, os ps fincados nas

    reentrncias dos tijolos, os cotovelos doendo de agentar o tranco, os sovacos

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    rasgando por causa das cordas que me prendiam l em cima, o suor correndo

    em bica pelo corpo pois a, nesse calor, barulho, sujeira, misria e perigo de

    vida , sabem o que que eu fazia? Eu cantava!

    CONCEIO

    Quarenta e trs anos. Prum presidente, era muito moo! Nasceu no

    mesmo ano do John Kennedy. E tinha at as mesmas letras no nome: era s a

    gente escrever Quadros com K ou Kennedy com Q. Eu achava ele

    tremendamente sexy. E no s eu que, que no sou nada. Mas a Laiz

    Strongossi, uma das gr-finas que trabalhavam na repartio ela sai muitonas colunas , um dia ela entrou no elevador comigo eu no gosto de

    mulher, mas ela estava esplendorosa e, como sabia que eu era vidrada no

    presidente, foi logo me dizendo, assim, na cara, que era capaz de dar pra ele a

    qualquer momento. Era s ele convocar. E olha que ela casada com um

    diretor da IBM! Mas nos Estados Unidos tambm era a mesma coisa todas

    viviam loucas pra dar pro Kennedy. Pois era esse homem que atraa dessaforma a Mulher Brasileira que eles diziam que era um populista sem talento e

    s gostava de cachaa e bang-bang. Ele, que era respeitado at pelo Fundo

    Monetrio Internacional!

    CARLOS

    Com razo ou sem razo, muitos acreditavam em mim. No gosto disso.

    Mas eu tinha ficado e resistido. Resistir o meu fraco. Porm, algum bem

    podia ter dito a eles que no deviam me escrever do Chile, assim, diretamente.

    Minha correspondncia era toda violada, os envelopes chegavam todos sujos,

    remendados, a represso nem se dava mais ao incmodo de disfarar. E eles

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    l, no bem-bom do exlio, se dando leviandade de nos arriscar a todos.

    Quando se mancaram j estava todo mundo fichado e refichado, as ligaes

    mais remotas e improvveis descobertas e comprometidas. Eu conhecia vrios

    deles agiam na ardorosa irresponsabilidade de sua inexperincia ,

    certssimos de que o mundo comeava neles, no tinha um passado. E eu

    sabendo que s tinha isso um passado de sangue e dio, um mundo de feras

    e carrascos envolvido em palavras crists, comunais, generosas, poticas,

    naturalmente inteis porque visceralmente insinceras. Um passado canalha,

    mas com 10 mil anos de documentao. Uma coisa irrefutavelmente concreta.

    Ao contrrio do futuro, uma merda de sonho. Eu sei porque aprendi, li tudo e

    vivi tudo, enfiei o dedo no cu da verdade e no fechei os olhos diante de nada.Se voc honesto e persistente e lcido e no quer ver cor-de-rosa, depois de

    cem anos de estudo e duzentos de vida, voc conclui que a histria nada, que

    o homem vive numa premonio, numa terra de ningum, num tempo de

    ningum, entre um passado que j era e um futuro que no chega nunca. Tudo

    um acaso. Quase sempre sinistro. E os que pretendem ser guias do futuro,

    apstolos, profetas, lderes, professores, so loucos, desvairados, magos defeira, curandeiros, que apontam multido o glorioso caminho do porvir um

    minuto antes de morrerem com o crnio fraturado porque escorregaram em

    coc de cachorro. O futuro um buraco cego. (Cansado.) O passado no tem

    qualquer padro. (Pausa.) S h um espao e um tempo: o aqui e o agora. S

    h uma verdade; o lan vital. (Longa pausa.) Que foi? Fundiu? T suspeitando

    de mim porque no prego utopias? Te manca, Irineu: e enfia no rabo esse

    olhar de censura. (Pausa.) Na minha idade eu no tenho mais tempo de no

    ser revolucionrio.

    NELITA

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    Agora eles j estavam com medo, gastavam rios de dinheiro na televiso,

    fazendo promoo deles mesmos, do governo: Eu te amo, meu Brasil, eu te

    amo. Ningum segura este pas. Brasil, ame-o ou deixe-o. Todo aquele

    lixo. Ns aproveitvamos a situao, claro, pegvamos bicos na propaganda

    oficial, tomvamos a gaita do inimigo: uma expropriao. Enquanto isso, a

    gente vivia, transava, mudava mutvamos. Nunca mais foi tolindo. Me

    sentia plena e uma vez, incrvel!, eu vi que era mesmo uma criatura do outro

    mundo, uma vez. Meu pai esteve aqui no Rio, se hospedou naquele hotel de

    luxo, ali da praia, me telefonou e eu disse pra ele: Olha pai, tenho muito

    prazer em ver voc eu antes at que no gostava do jeito autoritrio dele,

    mas agora estava numa de amor universal, por tudo, at animais, plantas eobjetos, e eu disse: Tenho muito prazer, pai, mas neste hall desse hotel careta

    eu no entro no. Ento, marcamos um encontro na esquina, mas eu estava

    to mudada que ele no me reconheceu. (Pausa.) Na verdade, eu estava to

    mudada que no reconheci ele.

    CARLOS

    Eu vi logo onde estava, quando entrei na sala baixa, mal-iluminada, de

    paredes de cimento. Com um n de ao gelado me apertando as tripas, fui

    reconhecendo os aparelhos que nunca tinha visto em pessoa: pau-de-arara,

    roldana, cadeira do drago, galeto-ao-primo-canto... Me colocaram de p,

    completamente nu, no meio da sala. Um policial, com cara de estudante,

    cabelo de pajem, se aproximou de mim, me passou sensualmente a mo na

    bunda. E eu, contendo a humilhao, pensei: Manual de Dan Mitrione,

    primeira aula de tortura na polcia de Belo Horizonte. Nmero um: Quando o

    prisioneiro tiver boa posio social, comear humilhando-o sexualmente.

    Deve-se usar o mais jovem elemento da represso. (Ampliado, o som de

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    mquina de escrever. Carlos levanta lentamente a cabea com ar grave na

    direo do som. Quando a cabea dele pra, o som pra.)

    GILDA

    Minha vocao era ser... intensa. Eu tinha assim, desde menina, uma

    coisa quente dentro de mim. Dizem que as pessoas que tm isso morrem cedo.

    A Leila tinha isso. Eu tambm tinha, mas, voc j deve ter notado: no morri

    cedo. Mas continuo intensa. Tenho um amigo surfista que diz que eu sou

    melhor do que todas as outras namoradas dele, cocotinhas. Diz logo a palavra,

    p, vulgar, n mesmo? Quer dizer, eu sou vulgar: as outras sorevolucionrias. Olha, revolucionrio no quem diz no, quem faz! Fui das

    primeiras que teve coragem de ser me solteira. Antes de Leila! Por que que

    voc pensa que eu vim embora? Voc nem sabe a barra que era. Agora

    mole! Mesmo aqui no Rio, em 61, as moas, quando iam na praia de mai de

    duas peas, o pessoal no dava colher no chamavam mesmo de puta. Pe

    isso em Bag. J pensou ser me solteira em Bag?! E eu no quis nada dopai, nada mesmo. O pai at que era comerciante, e estava disposto a assumir,

    mas eu no topei. E vim mimbora. Deixei meu filho por uns tempos com uma

    irm casada, depois deixei outros tempos com uma tia que j estava com os

    dois filhos crescidos, depois minha me acabou tomando conta dele e se

    passaram muitos anos. Mame sempre manda fotografias. Ele j est quase

    um homem. Mas eu nunca quis nada do pai. Nada mesmo. Nunca aceitei um

    tosto de ningum. A no ser quando a coisa profissional, claro. Porque ou

    no amor e a gente d tudo que tem, ou no no amor e a gente toma o

    mximo que pode.

    CONCEIO

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    Ele foi o primeiro e o ltimo presidente a ter escrpulos. Depois dele,

    nunca mais ouvi essa palavra. Nem tica. Nem probidade. Comearam a entrar

    outras na moda: cdigo de vantagens, grupo de trabalho, assessorias e tudo

    culminou com o Grson posando pra esse anncio indecente ensinando a

    juventude a levar vantagem em tudo. Tinha razo aquele escritor de So

    Paulo, me esqueo o nome ele dizia que a Constituio brasileira s devia

    ter um artigo. Assim: Artigo primeiro e nico: Todo brasileiro fica obrigado

    a ter carter.

    CARLOS

    O major, Major Elizrio Jaguar Triorato, me perguntou: Seu nome?

    Seu nome! Besteira. Eu era um jornalista muito conhecido. Mas respondi:

    Carlos Queiroz Garrastazu. Ele me fixou, surpreso: O nome do

    presidente? O nome do presidente, respondi. E a eu me lembrei de um

    companheiro nosso que teve um filho quando a esquerda pensava estar nopoder e batizou-o de Ernesto, em homenagem a Che Guevara. Mas depois de

    oito anos de ditadura, ele jurava que tinha sido uma homenagem ao Geisel. O

    coronel folheou os papis e disse: No tem aqui Garrastazu. Eu respondi:

    No tem a porque eu uso s Carlos Queiroz. Deixei de usar esse nome de

    vergonha. Estou usando aqui, agora, como desafio. Ele se surpreendeu com a

    minha audcia, seu olhar acusou o golpe. E eu pensei que aquelas bem podiam

    ter sido minhas ltimas palavras. Como no? Quando se entrava ali era

    comum no sair mais. Foi por isso que eu disse, muito grave, bem solene (Ao

    dizer esta frase, Carlos vai descendo do banco do bar, alto.): Serenamente,

    dou o primeiro passo (Ao dizer passo, ele tropea. Se ajeita, vai caminhando

    pra sada.) no caminho da eternidade e saio da vida para entrar (Pausa.) no

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    mictrio.

    NELITA

    Cada um fazia o que podia, na luta contra o sistema. Ns comeamos a

    batalha da merda, dentro da guerra da ecologia. Ecologia era uma palavra

    mgica! Sozinha ia salvar o mundo! Isso nos obrigava a odiar aqueles hotis

    sinistros, com mil quartos, que estavam comeando a brotar em toda parte.

    Seis de ns nos empregamos no Copacabana Hilton, em vrios cargos,

    ascensorista, recepo e, principalmente, telefone. Levamos quase um ano.

    Mas conseguimos. No dia 16 de agosto de 1970, atravs de bilhetinhos falsosda gerncia, telefonemas diretos e avisos de porta em porta, alegando um

    conserto urgente, conseguimos convencer mais de trezentos hspedes a no

    usar a descarga do banheiro, durante a noite, e a fazer o especial favor de

    testar o conserto puxando a descarga exatamente s 7 da manh. Deu mais

    certo do que espervamos. O estouro do coc, l em baixo, no reservatrio da

    garagem, est fedendo at hoje. assim que se desmoraliza a burguesia.

    CONCEIO

    Jnio tinha tudo pra ser e, se tivessem deixado ele voltar com mais fora,

    ele tinha sido o nosso De Gaulle. Ningum mais se lembra que, naquele jeito

    excntrico, ele escondia que era o mais esquerda de todos, o mais

    revolucionrio: foi o primeiro que visitou Castro. Jango nunca foi a Cuba.

    Teve medo. Depois, Jnio condecorou Che Guevara e recebeu Gagrin, o

    astronauta comunista, que at teve um filho com uma moa de Belo

    Horizonte. Mas s o que sabem dizer, esses jornalistas despeitados, Jnio, o

    ambguo, legislador de briga de galo, moralista que proibiu o biquni e o

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    lana-perfume. E no reconhecem que isso era uma coisa muito humana:

    quando era criana foi um lana-perfume que destruiu pra sempre a vista dele.

    BETO

    Foi a que os compositores comearam a cantar. Pra mim, quando eles

    cantam, qualquer um deles, eu me lembro de uma vaca mugindo um acalanto.

    Mas foi minha grande chance. Porque eu sou um cantor. Um senhor cantor. Eu

    canto e seus males o Brasil espanta. Quem me descobriu, cantando l na

    chamin de alumnio, foi o Miroel Fontainebleau. Bom, no foi torolide

    quanto voc est pensando. Eu tava numa sombrinha, junto de um galinheiro,no fundo do quintal da tal fbrica, tinha limpado a marmita do almoo. T l

    puxando a minha guimba, quando o tal do Miroel desceu de um carango

    enorme, veio caminhando pelo barro seco, todo na malemolncia, super bem-

    vestido, tomando todo o cuidado pra no sujar os sapatos. Joguei logo a

    guimba fora a gente manjava que ele era da polcia. Companho de Le Cocq e

    de Perptuo. Coisa que ele no escondia. Tinha orgulho. Ele se aproximou,forte de dar medo, e eu nem me mexi no banco de madeira onde estava

    sentado. O banco mal dava pra minha bunda, mas ele botou o sapato de duas

    cores em cima, prendendo a minha cala, machucando a minha coxa. Tu

    canta bem, hein, Tio?, ele disse. Eu fiz assim com os ombros. Ele pegou

    minha guimba no cho. Boa grinfa, hein, moleque? Eudisse, quase

    chorando: Seno eu no agento a dureza. Ele me olhou no fundo do olho,

    com um olhar muito doce, de pai, e, sem o menor aviso, sem qualquer

    movimento que fosse perceptvel por qualquer sismgrafo, me deu uma

    porrada nos cornos que a Terra, que at a vinha calmamente girando no seu

    dia-a-dia em torno do sol, deu uma parada pra pensar e o sol aproveitou pra

    passar seis vezes zunindo pela minha frente, isso, claro, uma falsa impresso

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    devida ao fato de que meu pescoo, equacionado originalmente prum

    movimento mximo de 180 graus, tinha sido centrifugado pela fora

    centrpeta da porrada, o que o obrigou a um giro mltiplo sobre si mesmo,

    num total de quatro mil seiscentos e noventa graus, e isso, numa reao em

    cadeia, quando o dito pescoo voltou afinal a seu ponto de partida, 25 minutos

    depois, provocou uma rearrumao apressada e catica de todos os msculos e

    rgos da cabea, sendo que o preto do olho se voltou pra dentro, me dando

    pela primeira vez a oportunidade de constatar minha alma branca, os miolos,

    comprimidos e descomprimidos pela fora da inrcia e da procura, pensaram

    coisas at ento jamais pensadas, da bochecha em fogo saiu uma fumaa azul

    celeste e, no interior da boca, a lngua enlouquecida apanhou com avidez doisdentes brancos que nadavam alegremente num litro de sangue e os cuspiu pro

    ar da tarde clara. (Pausa.) Olha, eu sei, sou bem barra-pesada, j vi muita

    gente levar porrada em minha vida, mas nunca, nem antes nem depois, vi

    ningum levar porrada igual quela. Disso eu me orgulho. (Pausa.) Foi assim

    que eu fui descoberto. (Pausa.) Cada um tem o Carlos Machado que merece.

    (Carlos volta do banheiro.)

    CARLOS

    Eu e Plutarco! Sabemos tudo sobre a misria da condio humana. Mas

    eu j vivi mais. Mais dois mil anos. Por isso, ali, incomunicvel h mais de 48

    horas eu pensava no suicdio. No no meu, no, no dos outros. No sou um

    suicida potencial. Embora quase todos os que se matam tambm no sejam

    potenciais se matam e pronto. Eu sei tudo sobre suicdio a Escandinvia

    vem em primeiro lugar nas estatsticas, Benelux e Holanda em segundo, as

    reparties da polcia poltica brasileira em terceiro. (Pausa.) Algum abriu a

    porta da cela, na semi-escurido reconheci a silhueta do Major Triorato. Ficou

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    parado, olhando alguns minutos, fechou a porta sem dizer nada, ouvi seus

    passos descendo a escada de pedra. Trepei no banquinho e espiei pelo

    respiradouro da porta. L em baixo, no ptio, em penumbra, o major

    conversava com outro oficial, apontando a noite. Vi os dois, de repente,

    exatamente como um desenho do Pasquim, uma pgina inteira mostrando um

    cu negro, imenso, todo pontilhado de estrelas, e em baixo, no p da pgina,

    dois generais cheios de dragonas e medalhas, um dizendo pro outro (Srio.):

    noite, contemplando essas maravilhas do universo, a obra incomparvel do

    Todo-Poderoso, bilhes e bilhes de astros brilhando numa distncia de

    bilhes e bilhes de anos-luz, que podemos perceber a incomensurvel

    grandeza do universo e a humildade, a pequenez, a insignificncia dos civis.(Pausa.) Eram trs horas da manh. (Olha em volta.) Que horas so agora?

    NELITA

    Mesmo ns, que no pertencamos a nenhum movimento organizado,

    ouvamos falar em Capara, em Araguaia, que Lamarca tinha posto a polciapra correr, que Marighella estava sem sepultura mortos, havia muitos

    mortos! E informaes desencontradas, confusas, mas que estimulavam a

    revolta, e, curiosamente, nos empurravam pra aproveitar a vida aqui e agora

    ela bem podia acabar logo. E acabava. A todo momento um passa pro outro

    lado. A arma conduz ao assalto. O descompromisso j uma rebeldia. A

    droga, quando falta o dinheiro, traz a tentao de traficar uns papelotes. Foi

    nessa que Mariozinho embarcou. Ele no vinha de uma famlia certinha, como

    eu, que, bem ou mal, sei l, d uma base; ele vinha de uma famlia

    completamente desbundada. Mas Mariozinho era um barato! Quando o

    Norman Mailer, l na matriz, reuniu 100 mil pessoas, todas se concentrando

    na fora da mente pra tentar levitar o Pentgono, o Mariozinho comeou logo

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    a juntar gente no Luna Bar, pra tentar levitar o Po-de-Acar. Um encanto de

    pessoa! Eu adorava o Mariozinho. E, quando pegaram ele, misturaram o

    negcio do p com subverso e quiseram arrancar dele coisas que eu sabia que

    ele no sabia e ele se suicidou na priso, eu quase morri tambm e abortei de

    quatro meses. Vinte dias depois, eu estava com uma Walter PPK, s cinco da

    manh, treinando tiro, num clube de Tiro-ao-Pombo, l no fundo de

    Jacarepagu. (Vai ao banheiro.)

    GILDA

    Depois de Leila eu me apaixonei por Joyce. Quando eu digo meapaixonei, melhor deixar claro que era uma coisa pura, ideal, nada dessa

    sujeira lsbica que vocs todas transam hoje, esse nojo. Que diabo, amor no

    s pau no rabo, no. Joyce, 17 anos, mais louca, mais alienada do que eu.

    Vivia pro dia-a-dia, feliz como um bicho. Eu tambm era assim, mas agora

    tinha uma sombra, j. . Foi depois que Joyce desapareceu, misteriosamente

    ningum soube seu fim. Foi por causa dela. Agora, entre uma cheirada e outra,entre uma puxada e outra, de festa em festa, de Bzios em Bzios, a sombra

    passava perto de mim sabe?, assim como quem vive num apartamento

    luxuoso, mas sente que h pessoas sendo assassinadas no corredor, atiradas no

    poo do elevador tudo isso sem som. Coisa de pesadelo. Lentamente,

    odiando, relutante, eu estava comeando a aprender que viver di. (Faz

    movimento de quem se olha no espelho.) O pior que eu acho que estou

    ficando careca.

    CONCEIO

    Com ele tinha desaparecido o esprito pblico. Os ministrios j estavam

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    de novo cheios daquelas funcionariazinhas que recebem s pra rebolar as

    partes pra l e pra c, o dia inteiro. Na minha repartio tinha seis gr-finas

    que s vinham mesmo assinar o ponto. Vinham de carro, com chofer. Um

    jornalista publicou um artigo com o nome de 38 delas na verba secreta do

    novo ministro do Planejamento. Foi mexer em casa de marimbondo. Elas

    divulgaram uma lista denunciando 47 jornalistas na verba secreta do novo

    ministro da Agricultura, inclusive o que tinha assinado o artigo. ... tinham

    inventado a mordomia. Enquanto isso, ele, o homem mais srio que este pas

    j teve, agora at diziam que tinha recebido um milho de dlares pra

    renunciar. , como sempre acontece no Brasil, acabaram descobrindo que era

    homossexual. Que tinha tido um caso com o Otto Lara Rezende. E possveluma coisa dessas, diz? Existe no mundo coisa maisfitiqucia?

    BARMAN

    (Corrige. Bem leve, baixo, delicado.) Fictcia.

    CONCEIO

    Fictcia?

    GILDA

    Eu me engajei num grupo de Ahinsa, uma religio hindu que prega a no-

    violncia. A gente ia bem cedinho ali pra areia do Leblon e ficava l

    (Atitude.), todo mundo parado, no violentando ningum. Mas o pessoal que

    passava nem percebia. Sabe o que acontece? A no-violncia no-acontece.

    Ningum repara que voc um no-violento. (Nelita volta do banheiro.) A

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    violncia tem muito mais enredo. Nunca esqueci minha me, terrvel,

    recitando aquelas coisas da Bblia: Eu no vim trazer paz Terra; no, eu

    vim trazer a espada, pois eu vim pr o filho em desacordo com seu pai, e a

    filha em desacordo com sua me, e a nora em desacordo com seu sogro. Eu

    nunca entendi bem quem veio trazer essa espada. Um general? Mas tinha

    medo. Sempre fui no-violenta por natureza. No conseguia brigar com

    ningum. Todos me achavam uma mulher a fim do que aparecesse,

    companheira pra qualquer hora. (Pausa.) O que eu era mesmo era automtica

    e descartvel.

    NELITA

    A guerrilha urbana, um, dois, trs, muitos Vietnams, estavam comendo

    solta. E alguns deles j estavam assustados, admitindo a hiptese de perder.

    Quem me contou foi o Cludio, que caiu comigo em Ibina. Cludio passou

    por todo o elenco da tortura: hidrulica, banho chins, cadeira do drago,

    afogamento em alto-mar, at por aquele aparelho que nem se usa mais,medieval, aquela mquina de esticar que eles chamam mquina de tirar

    complexo, porque o cara entra com um metro e sessenta, e sai com um e

    setenta e cinco. Pois um dia um torturador baixinho e troncudo, um talo-

    paulista muito aplicado, que fazia sempre o sinal-da-cruz antes de comear a

    torturar, foi falar com o Cludio, na cela, puxou uma conversa bem manera:

    (Ateno Direo: fundamental o sotaque do Brs, nesta fala.) Claudi,

    eu t achano que lis vo ti solt pur essis dia, neg. Agora, eu e meus

    cumpanhro, nis quiria qui tu intendesse qui nis num temo nada pessoal

    contra di voc. U qui nis fazmo, neg, fazmo, porque, c sabe, nis somo

    tnico. (Tcnico.) Mas num tem nada di pessoal. E tem mais uma coisa qui

    cunsider, neg si ocs, um dia, ganh a parada, tamm von pricis da gente.

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    Num tem essa di guverno bonzinho, nom, neg. Vocs von pricis da gente

    tamm, von mesmu. Nis temo nu ru (know-how), pra! (Porra.) E, nis

    tamo a mesmo pra colabor. Nis somo tnico.

    BARMAN

    Tcnico.

    BETO

    (Trs segundos depois.) Tcnico.

    CARLOS

    (Trs segundos depois.) Tcnico.

    CONCEIO

    (Sete segundos depois.) Tcnico.

    GILDA

    (Em cima, forte, diferente, desprezo, carinho ou surpresa.) Tcnico.

    NELITA

    Mas logo veio a virada fulminante. A Operao Bandeirante recebeu a

    verba americana e o cheque da ULTRAGS. Olha, no tem guerrilha urbana,

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    no tem aparelho que resista a 10 mil homens bem armados, batendo de porta

    em porta, noite e dia, com ordem de atirar para matar. Foi a que, de tranco em

    tranco, de degrau em degrau, descemos at o ltimo crculo do inferno e

    fomos recebidos hospitaleiramente por Belzebu Fleury.

    BETO

    O pedao de minha vida que interessa mesmo no durou mais de uma

    hora e quarenta. , foi como um musical da Metro. Mas no deu pra acabar

    comHappy End. No voltei estaca zero. No voltei pra chamin de

    alumnio. Mas voltei pra estaca dois. E tive que agentar muita piaba (Fazsinal de pau.) pra no acabar como cavalo, baleado na boca, no Estado do

    Rio, como o Tenente Gregrio, que morreu na priso disputando uma bicha, e

    Cu-de-me que levou dez facadas do Cabo Lus. Agora, voc, que

    formado, me explica: numa dessas por que que eu no ia aceitar a carteirinha

    que me dava passe livre em todos os mundungs do DOPS? T bem eu sou

    dedo-duro. E eles, quando me acusam, so o qu dedo-mole? Tudo filhinhode mame, com estudo pago, nunca viram na vida um dia de fome tm pique

    pra correr na hora da barra pesar, jornal pra escrever sacanagem e desfazer a

    carreira da gente sem falar de armas importadas pra brincar de mocinho e

    bandido. Eu no tava brincando no eu j nasci bandido. Perseguido por

    todos os mocinhos do mundo e tendo que beijar p de polcia e lamber chul

    de tarado. E eu nunca hesitei: puxei carro pro Miroel, fiz ponto em esquina de

    ministrio vigiando a sada de bacana enquanto ele transava na Avenida

    Atlntica com a patroa do dito e ganhei a sua divina proteo. Cantei no

    Telhado de Zinco, na Boca-do-Mato, peguei tarimba no Cine-Teatro Gabriela,

    fui croonerum dia sim um dia no no Beco do Sossego e estourei no Cassino

    de Lata de Honrio Gurgel. Quando Miroel achou que eu tava pronto, me

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    levou ao grande apresentador de televiso Abelardo Cavalcanti. Em seis

    meses, eu estava disputando o primeiro festival, um ano depois fazia a galera

    de quatro mil paulistas bambolear na minha ginga, no Anhembipuera.

    (Pausa.) Bom, me diz a uma razo s, uma!, pra eu no pagar a proteo.

    Eles, do lado de l, no pagam? T bem, perdi. Fui preso. Mas no tra. A

    minha traio, isso sim, era passar pro outro lado. Embora, hoje, eu ache que

    marquei bobeira no passando. Um protestinho daqui, outro protestinho dali,

    uma musiquinha censurada aqui, uma censurinha bem divulgada ali, eu tinha

    faturado muito, mas muito, muito mais.

    CONCEIO

    Nem desconfio de quem me dedurou. A intimao no diz essas coisas.

    Pedi ao Dr. Fbio, um velho advogado muito digno que ia sempre tratar de

    papis no Ministrio, pra ele me acompanhar ao DOPS. Quando chegou o dia,

    vesti meu melhor tailleure ficamos esperando mais de duas horas em p,

    numa salinha daquele edifcio onde antigamente era o Instituto Mdico Legale ainda cheira a morto. Os barcos passam l longe, por trs da torre do

    Restaurante Albamar. muito bonito. (Pausa.) Fui interrogada por dois

    agentes do DOPS, um muito humano, muito compreensivo, outro feroz e

    ameaador. Trs horas de humilhao, eles devassando minha vida, falando de

    maneira srdida de algumas relaes que eu nunca pensei que fossem

    srdidas. E da em diante nunca mais pude pensar que fossem limpas. (Pausa.)

    O advogado me cobrou seis mil cruzeiros, que eu paguei em trs vezes.

    CARLOS

    Sa como entrei. Nem sequer me arrancaram um testculo. Queriam

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    apenas me amedrontar. Mas eu mostrei a eles que isso comigo extremamente

    fcil. Embora eu finja bem. Fao a melhor imitao de heri que existe na

    praa. E olha que tem muito boa imitao. Sou como Robert Taylor, que, em

    Um Ianque na Corte do Rei Artur, ganhava uma corrida de barco com um

    brao s, mas, na hora da ona beber gua, na hora da comisso McCarthy, s

    no entregou a me porque era rfo. Pois bem, sabe o que que fiz quando

    voltei pro jornal? Escrevi um editorial de pgina inteira propondo uma grande

    moratria nacional! A gente apagava tudo, ningum cobrava mais nada de

    ningum e se recomeava tudo, como se Cabral estivesse chegando naquele

    momento. A escrevamos uma nova Constituio, limpinha, zerinho, e, por

    medida de segurana, guardvamos ela no cofre da General Motors. Hei,pessoal, que tal essa idia? Que tal uma moratria? Ou, j que imitamos tudo,

    por que no imitamos o Jim Jones da Guiana? Vocs no acham uma boa, um

    suicdio nacional? Vocs topam uma rodadinha de cicuta do Oiapoque ao

    Chu? Decidam enquanto eu vou dar uma mijada. (Sai desabotoando a

    braguilha.)

    NELITA

    Chega o instante em que s existe uma esperana a da mortalidade.

    Quando te tornam impotente e os dias passam e voc percebe que o que no

    indigno Vamos, lambe esse cho a, sua puta!, ridculo (Imita algum

    ridicularizando slogans estudantis.) O povo unido jamais ser vencido!, a

    mente se esfacela. E, enquanto te tostam, te perscrutam, te cegam, te retinem,

    te rotundam, te espicaam, te contundem, te ensurdecem, voc constata que

    no tem mais um pingo de nobreza no ltimo msculo dolorido, que os nicos

    nobres foram os que morreram antes de se conspurcar, e os que odeiam a

    iniquidade foram sofrer a iniquidade de olhar de longe. E voc morre mil

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    vezes at a tortura surpreendente da gota que cai interminavelmente no teu

    olho e voc a recebe, de minuto em minuto, com um grito de dor indescritvel.

    E a bate no fundo do seu sofrimento um fundo falso, voc descobre,

    horrorizada , tem sempre outro e outro. (Pausa.) Me puseram numa cela,

    cinza, suja, normal. Com um catre, um relgio sinistro com os ponteiros

    parados, uma janela alta. E pessoas se revezando, sem falar. Higiene,

    alimentos, curativos, sonos em sobressalto, pouco a pouco mais calmos, o

    corpo se compondo e logo eu fiquei boa e numa certa paz. Tudo tinha

    acabado. (Longa pausa. Agora, ato seu berro, Nelita fala, sem melodrama,

    concentrada.) Mas no tinha acabado. Uma noite, acordei, na escurido quase

    total, vi dois homens enormes, caram sobre mim. O medo, de novo, me torceuas entranhas. Um deles me agarrou com fora, mas sem violncia, me

    suspendeu do cho, os braos para cima, enquanto o outro me arrancava a

    blusa e a cala e me penetrava. Eu estava cansada, estava fraca. Me colocaram

    na cama, um ainda me segurando os braos, o outro em cima de mim, senti

    que estava nu mas seu corpo no se encostava no meu, s o sexo dentro de

    mim. E comeou a se mover bem devagar, numa tentativa que meu crebro,agora mais alerta, percebeu com surpresa e alarme ele me tentava a uma

    colaborao inconcebvel: mas, pouco a pouco, minhas glndulas infames

    comearam a ceder, e, entre o dio e o espanto de mim mesma, senti nascer,

    no sei em que cavernas de indignidade, uma luxria aviltante. Tentei me

    conter, resistir, no pude, e, enojada da vida eu gozei... (Berra.) Eu tinha

    apenas vinte anos, porra! (Pausa.) Logo depois, vomitei. (Longa pausa.) Eu

    era, e sempre fui, nunca deixei de ser, uma lamentvel pequeno-burguesa.

    CARLOS

    Todo brasileiro absolutamente maduro e consciente, quando est sentado

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    GILDA

    (A essa altura s de colant.) Noutro dia, eu abri um jornal e tinha um

    retrato dela, de 71, desfilando na Banda de Ipanema e dei comigo mesma,

    sambando, logo atrs, de biquni e baiana, e pensei: Meu Deus, eu j sou

    nostalgia! (Mexe em cartes, nabolsa. Carlos volta do banheiro.) Minhas

    mos no foram registradas na calada do Pizzaiolo, no fui musa de Ipanema,

    nem mesmo do Baixo Leblon, no fui nome de gripe nem letra de msica

    consegui apenas duas Dicas do Pasquim , nunca atrapalhei o trfego com 3

    mil pessoas me seguindo cantando Eu quero Mocot. (Pausa.) E nunca tiveum homem s pra mim. (Pausa.) Agora tarde. Eu devia ter aceitado o

    convite pra raptar o embaixador se no me matassem, eu tambm tinha

    viajado o mundo todo. Como no fui convidada? a minha palavra contra a

    tua, cara! Mas, olha aqui, que que voc quer? Que eu mostre o convite

    impresso?Rpondez, sil vous plait? Vai, vai, tira de dentro que eu tou com

    muito sono. (Toma uma mo cheia de plulas.) Acho que agora eu vou dormirpra sempre. Ou volto pra Bag.

    BETO

    S vou dar um conselho, , meu!: Voc pode ser batedor de carteira, mau

    pai, chupador, tudo! Mas no briga com imprensa. No, meu trato. Se voc

    tem boa cobertura, d um lambe-lambe na rapaziada, chama tudo de irmo e

    divide o que interessa. (Gesto.) Voc nunca na vida vai deixar de ser o Frank

    Sinatra. Agora, basta voc esquecer de bajular a mfia de Gutemberg,

    hiiiiiiiiii, a essa coisa justa, inatacvel e serena, que so as gazetas, e as rdios

    e as tevs, ou te esquecem ou te estraalham. A Gutemberg foguinho, meu

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    patrcio. No pensa que eu bati na cadeia pelos meus defeitos, no, e, honra

    me seja feita, ningum tem mais defeitos do que eu. Se fossem fsicos, eu

    estava na ABBR, no Pestalozzi e no Benjamin Constant, ao mesmo tempo.

    Mas eu dancei foi quando no agentei mais e comecei a dar um chega-pra-l

    na alegre rapaziada. (Fala alto.) Memorizou o conselho, garoto bonito

    comeando a em Conceio-do-Mato-Dentro? no briga com comunicao

    que tu te estrepa. Deixa eles botarem tua bunda na revista, tendo ao lado a

    cenoura menor de idade que voc introduziu... (Pausa.) na vida, mas no chia.

    o preo da glria. (Pausa. Bem triste.) Vocs no vo acreditar, meninos e

    meninas, que esto aqui em nosso maravilhoso estdio pra disputar o nono

    festival de msica popular de Araguari mas eu juro que a ltima coisa queeu gostaria de fazer neste momento era desencantar vocs. (Com raiva.) Mas a

    realidade a realidade, p. Que que h? No vou me def