capitulo iii liberdade

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    CAPITULO IIIA LIBERDADEMais uma vez, evidente que no concebvel nenhuma relao decausalidade entre o sujeito e seu corpo,

    seumundo ou sua sociedade. Sob pena deperder o fundamento de todas as minhascertezas, no posso pr em dvida aquiloque minha presena a mim mesmo meensina. Ora, no mo-mento em que me dirijo a mim mesmopara me descrever, entrevejo um fluxo 1annimo, um projeto global em que ain-da no existem "estados de conscincia"nem, com mais ra-

    zo ainda, qualificaes de qualquer tipo.No sou para mimmesmo nem "ciumento", nem "curioso",nem "corcunda"nem "funcionrio". Freqentemente nosespantamos de queo enfermo ou o doente possam suportar-se. E que para si mesmos eles no soenfermos ou moribundos. At omomento do coma, o moribundo habitado por uma conscincia, ele

    tudo aquilo que v, ele tem este meiode escape. A conscincia nunca podeobjetivar-se em conscincia-de-doente ouconscincia-de-enfermo e, mesmo se ovelho se queixa de sua velhice ou oenfermo de sua enfermidade, eles spodem faz-lo quando se comparam aosoutros ou quando se vem pelosolhos dos outros, quer dizer, quando tmde si mesmos uma582 FENOMENOLOGIADA PERCEPO viso estatstica e objetiva,

    e essas queixas nunca so inteiramente deboa-f: regressando ao interior de suaconscincia, cada um se sente alm de suasqualificaes e no mesmo instante seresigna a elas. Elas so o preo quepagamos, sem nem mesmo pensar nisso,para ser no mundo, uma formali-dade sem problemas. Da provm o fatode que podemos falar mal de nosso rosto eque todavia no desejaramos troc-lo por um outro. Ao que parece,

    nenhuma particularidade

    pode ser ligada insupervel generalidadeda conscincia, nenhum limite pode serimposto a esse poder desmedido de eva-so. Para que algo pudesse determinar-me do exterior (nos dois sentidos da

    palavra determinar), seria preciso que eufosse uma coisa. Minha liberdade e minhauniversalidade no poderiam admitireclipse. inconcebvel que eu seja livreem algumas de minhas aes edeterminado em outras: o que se-ria esta liberdade ociosa que deixa osdeterminismos funcionarem? Se se supeque ela se abole quando no age, de on-de ela renasceria? Se, por umacircunstncia improvvel, eu

    tivesse podido fazer-me coisa, como emseguida eu tornaria afazer-me conscincia? Se, por uma nicavez, sou livre por-que no fao parte das coisas, e precisoque eu o seja semcessar. Se uma nica vez minhas aesdeixam de ser minhas, elas nunca voltaroa s-lo; se perco meu poder sobre omundo, no o recuperarei. Tambm inconcebvel que minha

    liberdade possa ser atenuada; no sepoderia ser um pouco livre, e, como sediz freqentemente, se motivos meinclinamem uma direo, de duas coisas uma: oueles tm a fora de me fazer agir, e entono existe liberdade, ou eles no a tm,e ento ela inteira, to grande naspiores torturas quanto na paz da minhacasa. Deveramos ento renunciar noape-

    nas idia de causalidade, mas ainda de motivao 2. O pretenso motivo nopesa em minha deciso, ao contrrio minha deciso que lhe empresta sua fora.Tudo o que "sou" graas natureza ou histria corcunda, belo ou judeuO SER-PARA-SI E O SER-NO-MUNDO 583 nunca o sou inteiramente para mimmesmo, como o explicvamos h pouco.E sem dvida eu o sou para outrem,mas permaneo livre de pr outrem

    como uma conscinciacujas vises me alcanam at em meuser, ou ao contrrio

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    como um simples objeto. verdadeainda que esta prpriaalternativa um constrangimento: se soufeio, tenho a esco-lha de ser reprovado ou de reprovar os

    outros, deixam-melivre entre o masoquismo e o sadismo, eno livre para igno-rar os outros. Mas essa alternativa, que um dado da condi-o humana, no o para mim enquantopura conscincia:ainda sou eu quem faz outrem ser paramim e quem nos fazum e outro sermos como homens. Alis,mesmo se o ser hu-

    mano me fosse imposto, apenas a maneirade ser sendo dei-xada minha escolha, a se consideraresta prpria escolhae sem distino do pequeno nmero depossveis, ela aindaseria uma escolha livre. Se se diz que meutemperamento meinclina mais para o sadismo ou antespara o masoquismo,trata-se ainda de uma maneira de falar,

    pois meu tempera-mento s existe para o conhecimentosecundrio de mim mes-mo que tenho pelos olhos de outrem, econtanto que eu o re-conhea, o valorize e, neste sentido, oescolha. O que enga-na sobre isso o fato de quefreqentemente procuramos aliberdade na deliberao voluntria queexamina alternada-

    mente os motivos e parece render-se aomais forte ou ao maisconvincente. Na realidade, a deliberaodecorre da deciso, minha deciso secreta que faz os motivosaparecerem e nemmesmo se conceberia o que pode ser afora de um motivosem uma deciso que ele confirma oucontraria. Quando re-nunciei a um projeto, repentinamente os

    motivos que eu acre-ditava ter para mant-lo tornam a cair semfora. Para resti-

    tuir-lhes uma fora, preciso que eu faa oesforo de reabriro tempo e de me recolocar no momentoem que a deciso ain-da no estava tomada. Mesmo

    enquanto delibero, j porum esforo que consigo suspender otempo, manter aberta584FENOMENOLOGIA DA PERCEPOuma situao que sinto fechada por umadeciso que est alie qual resisto. por isso que tofreqentemente, aps terrenunciado a um projeto, experimentouma libertao: "Afi-nal, eu no me prendia tanto a ele", s

    havia debate quanto forma, a deliberao era uma pardia,eu j tinha decididocontra. Freqentemente cita-se aimpotncia da vontade co-mo um argumento contra a liberdade. Ecom efeito, se possovoluntariamente adotar uma conduta e meimprovisar guer-reiro ou sedutor, no depende de mim serguerreiro ou sedu-

    tor com facilidade e "naturalidade", querdizer, s-lo verda-deiramente. Mas tambm no se deveprocurar a liberdadeno ato voluntrio que , segundo seuprprio sentido, um atofracassado. S recorremos ao atovoluntrio para ir contranossa verdadeira deciso, e como que como propsito de pro-var nossa impotncia. Se

    verdadeiramente tivssemos assu-mido a conduta do guerreiro ou dosedutor, seramos guer-reiro ou sedutor. Mesmo aquilo que sechama de obstculos liberdade so na realidade desdobradospor ela. Um roche-do intransponvel, um rochedo grande oupequeno, verticalou oblquo, isso s tem sentido paraalgum que se proponha

    a transp-lo, para um sujeito cujosprojetos recortem essas

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    determinaes na massa uniforme doem si e faam surgirum mundo orientado, um sentido dascoisas. Portanto, final-mente no h nada que possa limitar a

    liberdade, seno aquiloque ela mesma determinou como limitepor suas iniciativas,e o sujeito s tem o exterior que ele se d.Como ele que,surgindo, faz aparecer sentido e valor nascoisas, e como ne-nhuma coisa pode atingi-lo seno fazendo-se, por ele, senti-do e valor, no existe ao das coisas sobreo sujeito, s exis-

    te uma significao (no sentido ativo), umaSinngebung cen-trfuga. A escolha parece ser entre umaconcepo cientifi-cista da causalidade, incompatvel com aconscincia que te-mos de ns mesmos, e a afirmao de umaliberdade absolutasem exterior. Impossvel marcar um pontopara alm do qualO SER-PARA-SI E O SER-NO-MUNDO 585

    as coisas deixariam de ser kp^jiLV. Ouesto todas em nos-so poder, ou nenhuma.Todavia, esta primeira reflexo sobre aliberdade teriacomo resultado torn-la impossvel. Comefeito, se a liberda-de igual em todas as nossas aes e atem nossas paixes,se ela no tem medida comum com nossaconduta, se o es-

    cravo testemunha tanta liberdade vivendono temor quantorompendo suas correntes, no se podedizer que exista ne-nhuma ao livre, a liberdade est aqumde todas as aes,em caso algum se poder declarar: "aquiaparece a liberda-de", j que a ao livre, para ser revelvel,precisaria destacar-se sobre um fundo de vida que no fosse

    ou que o fosse me-nos. Ela est em todas as partes, se sequiser, mas tambm

    em parte alguma. Em nome daliberdade, recusa-se a idiade uma aquisio, mas agora a liberdadeque se torna umaaquisio primordial e como que nosso

    estado de natureza.J que no precisamos faz-la, ela addiva que nos foi da-da de no termos nenhuma ddiva, essanatureza da cons-cincia que consiste em no ter natureza,em caso algum elapode exprimir-se no exterior nem figurarem nossa vida. Aidia da ao desaparece portanto: dens ao mundo nada

    pode passar, j que no somos nada dedeterminvel e j queo no-ser que nos constitui no se poderiainsinuar no plenodo mundo. S existem intenesimediatamente seguidas deefeitos, estamos muito prximos daidia kantiana de umainteno que eqivale ao ato, qualScheler j opunha queo enfermo que quisesse salvar um afogado

    e o bom nadadorque efetivamente o salva no tm amesma experincia daautonomia. A prpria idia de escolhadesaparece, pois esco-lher escolher algo em que a liberdadev, pelo menos porum momento, um emblema de si mesma.S h escolha livrese a liberdade se compromete em suadeciso e pe a situa-

    o que ela escolhe como situao deliberdade. Uma liber-dade que no precisa realizar-se porqueest adquirida no586 FENOMENOLOGIADA PERCEPOpoderia engajar-se assim: ela sabe muitobem que o instanteseguinte a encontrar, de qualquermaneira, igualmente li-vre, igualmente pouco fixada. A prprianoo de liberdade

    exige que nossa deciso se entranhe noporvir, que algo te-

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    nha sido feito por ela, que o instanteseguinte se beneficie doprecedente e, sem ser necessitado, sejapelo menos solicitadopor este. Se a liberdade liberdade de

    fazer, preciso queaquilo que ela faz no seja desfeito emseguida por uma li-berdade nova. Portanto, preciso quecada instante no sejaum mundo fechado, preciso que uminstante possa envol-ver os seguintes, preciso que, uma veztomada a decisoe iniciada a ao, eu disponha de um saberadquirido, eu me

    beneficie de meu lan, eu esteja inclinadoa continuar, pre-ciso que exista uma propenso doesprito. Era Descartesquem dizia que a conservao exige umpoder to grandequanto a criao, e isso supe uma noorealista do instan-te. verdade que o instante no umafico dos filsofos.Ele o ponto em que um projeto se

    acaba e um outrocomea3aquele em que meu olhar se translada

    de um fimem direo a um outro, ele o Augen-Blick. Mas justamenteesta ruptura no tempo s pode aparecer sepelo menos cadaum dos dois pedaos forma um bloco. Aconscincia, diz-se,

    no est despedaada em uma poeira deinstantes, mas pe-lo menos perseguida pelo espectro doinstante que continua-mente ela precisa exorcizar por um atode liberdade. Vere-mos daqui a pouco que, com efeito,sempre temos o poderde interromper, mas em todo caso elesupe um poder de co-mear, no haveria arrancamento se a

    liberdade no se tives-se investido em parte alguma e no sepreparasse para fixar-

    se alhures. Se no h ciclos de conduta,situaes abertas quepedem um certo acabamento e quepossam servir de fundo,seja a uma deciso que as confirme, seja a

    uma deciso queas transforme, a liberdade nunca temlugar. A escolha do ca-rter inteligvel no est excluda apenasporque no existeO SER-PARA-SI E OSER-NO-MUNDO 587tempo antes do tempo, mas ainda porquea escolha supe umengajamento prvio e porque a idia deuma escolha primei-ra contraditria. Se a liberdade deve ter

    campo, se ela devepoder pronunciar-se como liberdade, preciso que algo a se-pare de seus fins, preciso portanto queela tenha um campo,quer dizer, que para ela existampossveis privilegiados ourealidades que tendem a perseverar no ser.Como observa oprprio J.-P. Sartre, o sonho exclui aliberdade porque, no

    imaginrio, mal visamos uma significaoe j acreditamospossuir sua realizao intuitiva e, enfim,porque ali no hobstculos e nada afazer^. certo que aliberdade no se con-funde com as decises abstratas davontade s voltas com mo-tivos ou paixes, o esquema clssico dadeliberao s se aplicaa uma liberdade de m-f que

    secretamente alimenta moti-vos antagnicos sem querer assumi-los, efabrica ela mesmaas pretensas provas de sua impotncia.Percebemos, abaixodesses debates ruidosos e desses esforosvos para nos "cons-truir", as decises tcitas pelas quaisarticulamos em tornode ns o campo dos possveis, e verdade que nada feito

    enquanto conservamos estas fixaes,tudo fcil a partir do

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    momento em que levantamos estasncoras. por isso quenossa liberdade no deve ser procuradanas discusses insin-ceras em que se afrontam um estilo de

    vida que no quere-mos pr em questo e circunstnciasque nos sugerem umoutro estilo de vida: a escolha verdadeira a escolha de nos-so carter inteiro e de nossa maneira deser no mundo. Masou esta escolha total nunca se pronuncia,ela o surgimentosilencioso de nosso ser no mundo, e entono se v em que

    sentido ela poderia ser dita nossa, essaliberdade desliza so-bre si mesma e o equivalente de umdestino - ou entoa escolha que fazemos de ns mesmos verdadeiramente umaescolha, uma converso de nossaexistncia, mas ento elasupe uma aquisio prvia que ela seaplica a modificar efunda uma nova tradio, de forma que

    precisaremos per-588 FENOMENOLOGIADA PERCEPOguntar-nos se o arrancamento perptuopelo qual no incions definimos a liberdade no simplesmente o aspecto ne-gativo de nosso engajamento universal emum mundo, se nos-sa indiferena em relao a cada coisadeterminada no ex-prime simplesmente nosso investimento

    em todas, se a liber-dade inteiramente pronta da qualpartimos no se reduz aum poder de iniciativa que no poderiatransformar-se emfazer sem retomar alguma proposio domundo, e se enfima liberdade concreta e efetiva no estnessa troca. verdadeque nada tem sentido e valor seno paramim e por mim, mas

    esta proposio permanece indeterminadae ainda se confunde

    com a idia kantiana de uma conscinciaque "s encontranas coisas aquilo que ali ela colocou" e coma refutao idea-lista do realismo, enquanto no

    precisamos como entende-mos o sentido e o eu. Definindo-noscomo poder universalde Sinn-Gebung, retornamos ao mtodo do"aquilo sem o qu"e anlise reflexiva do tipo clssico, queprocura as condi-es de possibilidade sem ocupar-se dascondies de .reali-dade. Portanto, precisamos retomar aanlise da Sinn-Gebung

    e mostrar como ela pode ser ao mesmotempo centrfuga ecentrpeta, j que est estabelecido queno existe liberdadesem campo.Digo que este rochedo intransponvel, e certo que es-te atributo, assim como aquele degrande e de pequeno, dereto e de oblquo e assim como todos osatributos em geral,

    s pode advir-lhe de um projeto detransp-lo e de uma pre-sena humana. Portanto, a liberdadeque faz aparecer osobstculos liberdade, de forma queno podemos op-losa ela como limites. Todavia, em primeirolugar claro que,dado um mesmo projeto, este rochedo-aqui aparecer comoum obstculo, esse outro, mais praticvel,

    como um auxiliar.Portanto, minha liberdade no faz comque por aqui haja umobstculo e alhures uma passagem, elafaz apenas com queexistam obstculos e passagens em geral,ela no desenha aO SER-PARA-SI E O SER-NO-MUNDO 589figura particular deste mundo, ela s pesuas estruturas ge-rais. Isso vem a dar no mesmo, responder-

    se-; se minha li-berdade condiciona a estrutura do"existe", a do "aqui",

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    a do "ali", ela est presente em todas aspartes em que essasestruturas se realizam, ns no podemosdistinguir a quali-dade de "obstculo" e o prprio

    obstculo, reportar uma liberdade e o outro ao mundo em si que,sem ela, s seriauma massa amorfa e inominvel. Portanto,no fora de mimque posso encontrar um limite minhaliberdade. Mas euno o encontraria em mim? Com efeito, preciso distinguirentre minhas intenes expressas, porexemplo o projeto que

    formo hoje de transpor estas montanhas,e intenes geraisque valorizam virtualmente minhacircunvizinhana. Quereu tenha ou no decidido escal-las, estasmontanhas me pa-recem grandes porque ultrapassam opoder de meu corpo,e mesmo se acabo de ler Micromegas noposso fazer com quepara mim elas sejam pequenas. Abaixo de

    mim enquanto su-jeito pensante, que posso ao meu bel-prazer situar-me em Si-rius ou na superfcie da terra, existeportanto como que umeu natural que no abandona sua situaoterrestre e que semcessar esboa valorizaes absolutas. Mais:meus projetos deser pensante visivelmente so construdossobre estas; se de-

    cido ver as coisas do ponto de vista deSirius, ainda mi-nha experincia terrestre que recorropara faz-lo: digo porexemplo que os Alpes so um montculo.Enquanto tenho mos,ps, um corpo, um mundo, em torno demim produzo inten-es que no so decisrias e queafetam minha circunvizi-nhana com caracteres que no escolho.

    Essas intenes sogerais em um duplo sentido, emprimeiro lugar no sentido

    em que elas constituem um sistema emque todos os objetospossveis esto de um s golpe encerrados:se a montanha meparece grande e reta, a rvore me parece

    pequena e oblqua,a seguir no sentido em que elas no meso prprias, elas vmde mais longe do que eu e no ficosurpreso de reencontra-590FENOMENOLOGIA DA PERCEPOIas em todos os sujeitos psicofisicos cujaorganizao seme-lhante minha. isso que faz com que,como a Gestalttheorieo mostrou, para mim existam formas

    privilegiadas, que tam-bm o so para todos os outroshomens, e que podem darlugar a uma cincia psicolgica e a leisrigorosas. O conjuntodos pontos: sempre percebido como "seis pares depontos dois milme-tros distanciados", tal figura semprepercebida como umcubo, tal outra como um mosaico plano

    5. Tudo se passa co-mo se, aqum de nosso juzo e denossa liberdade, algumafetasse tal sentido a tal constelao dada. verdade que asestruturas perceptivas no se impemsempre: algumas soambguas. Mas elas nos revelam melhorainda a presena emns de uma valorizao espontnea: pois

    elas so figuras flu-tuantes que propem alternadamentediferentes significaes.Ora, uma pura conscincia pode tudo,salvo ignorar ela mes-ma suas intenes, e uma liberdadeabsoluta no pode esco-lher-se hesitante, j que isso significadeixar-se solicitar porvrios lados, e j que por hiptese ospossveis devendo li-

    berdade tudo aquilo que tm de fora,o peso que ela d a

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    um deles por isso mesmo subtradoaos outros. Podemosdesagregar uma forma olhando-a emsentido contrrio, masporque a liberdade utiliza o olhar e suas

    valorizaes espon-tneas. Sem elas, no teramos ummundo, quer dizer, umconjunto de coisas que emergem doinforme propondo-se aonosso corpo como "para tocar", "parapegar", "para trans-por", nunca teramos conscincia de nosajustarmos s coi-sas e de alcan-las ali onde elas esto,para alm de ns, te-

    ramos apenas conscincia de pensarrigorosamente os obje-tos imanentes de nossas intenes, noseramos no mundo,ns mesmos implicados no espetculo epor assim dizer mis-turados s coisas, teramos apenas arepresentao de um uni-O SER-PARA-SI EO SER-NO-MUNDO 591verso. Portanto, verdade que noexistem obstculos em si,

    mas o eu que os qualifica como tais no um sujeito acsmi-co, ele se precede a si mesmo junto scoisas para dar-lhesfigura de coisas. Existe um sentidoautctone do mundo, quese constitui no comrcio de nossaexistncia encarnada comele, e que forma o solo de todaSinngebung decisria.Isso no verdadeiro apenas de uma

    funo impessoale em suma abstrata como a "percepoexterior". H algode anlogo em todas as valorizaes.Observou-se com pro-fundidade que a dor e a fadiga nuncapodem ser considera-das como causas que "agem" sobre minhaliberdade, e que,se sinto dor ou fadiga em um momentodado, elas no vm

    do exterior, elas sempre tm um sentido,elas exprimem mi-

    nha atitude em relao ao mundo. A dorme faz ceder e dizeraquilo que eu deveria calar, a fadiga mefaz interromper mi-nha viagem, ns todos conhecemos este

    momento em que de-cidimos no mais suportar a dor ou afadiga e em que, ins-tantaneamente, elas se tornam comefeito insuportveis. Afadiga no detm meu companheiroporque ele gosta de seucorpo suado, do calor do caminho e do sole, enfim, porqueele gosta de sentir-se no meio das coisas,de concentrar-lhes

    a irradiao, de fazer-se olhar para estaluz, tato para estasuperfcie. Minha fadiga me detmporque no gosto dela,porque escolhi de outra maneira o meumodo de ser no mun-do, e porque, por exemplo, no procuroestar na natureza,mas antes fazer-me reconhecer pelosoutros. Sou livre em re-lao fadiga na exata medida em que o

    sou em relao aomeu ser no mundo, livre para prosseguirmeu caminho soba condio de transform-lo6. Mas justamente aqui precisa-mos reconhecer outra vez uma espciede sedimentao denossa vida: uma atitude em relao aomundo, quando elafoi freqentemente confirmada, para

    ns privilegiada. Sediante dela a liberdade no experimentanenhum motivo, meuser no mundo habitual a cada momentoto frgil, os com-592 FENOMENOLOGIADA PERCEPOplexos que durante anos alimentei comminha complacnciapermanecem sempre to andinos, ogesto da liberdade po-de sem qualquer esforo faz-los voar em

    pedaos em um ins-tante. Todavia, aps ter construdo nossavida sobre um com-

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    plexo de inferioridade continuamenteretomado durante vin-te anos, pouco provvel que mudemos.V-se muito bem oque um racionalismo sumrio poderia

    dizer contra esta no-o bastarda: no existem graus nopossvel, ou o ato livreno o mais, ou ele o ainda, e ento aliberdade inteira.Provvel, em suma, no quer dizer nada.Esta noo perten-ce ao pensamento estatstico, que no um pensamento, jque ele no concerne a nenhuma coisaparticular existente

    em ato, a nenhum momento do tempo, anenhum aconteci-mento concreto. "E pouco provvel quePaulo renuncie a es-crever maus livros", isso no quer dizernada, j que, a cadamomento, Paulo pode tomar a deciso deno mais escrev-los. O provvel est em todas as partes eem parte alguma,ele uma fico realizada, ele s tem

    existncia psicolgica,no um ingrediente do mundo. Todavians j o encontra-mos h pouco no mundo percebido, amontanha grande oupequena enquanto, como coisa percebida,ela se situa no cam-po de minhas aes virtuais e em relao aum nvel que no apenas o de minha vida individual,mas o de "todo ho-

    mem". A generalidade e a probabilidadeno so fices, masfenmenos, e portanto devemosencontrar um fundamentofenomenolgico para o pensamentoestatstico. Ele pertencenecessariamente a um ser que est fixado,situado e investi-do no mundo. "E pouco provvel" que eudestrua agora mes-mo um complexo de inferioridade no qual

    me comprazi du-rante vinte anos. Isso quer dizer que eume envolvi na infe-

    rioridade, que a elegi como domiclio,que este passado, seno uma fatalidade, pelo menos temum peso especfico,que no uma soma de acontecimentos ali

    adiante, bem lon-ge de mim, mas a atmosfera de meupresente. A alternativaO SER-PARA-SI E OSER-NO-MUNDO 593racionalista: ou o ato livre possvel, ouno o , ou o acon-tecimento vem de mim, ou impostopelo exterior, no seaplica s nossas relaes com o mundo ecom nosso passado.Nossa liberdade no destri nossa

    situao, mas se engrenaa ela: nossa situao, enquanto vivemos, aberta, o que im-plica ao mesmo tempo que ela reclamamodos de resoluoprivilegiados e que por si mesma ela impotente para causaralgum.Chegaramos ao mesmo resultadoconsiderando nossasrelaes com a histria. Se me apreendo

    em minha absolutaconcreo e tal como a reflexo me da mim mesmo, souum fluxo annimo e pr-humano queainda no se qualifi-cou, por exemplo, como "operrio" oucomo "burgus". Sea seguir eu me penso como um homementre os homens, umburgus entre os burgueses, isso s podeser, ao que parece,

    Ouma viso secundaria sobre mim mesmo,em meu centro eu _nunca sou operrio ou burgus, sou umaconscincia que se -ivaloriza livremente como conscinciaburguesa ou como cons- *cincia proletria. E, com efeito, minhaposio objetiva nocircuito da produo nunca basta paraprovocar a tomada de

    conscincia de classe. Houve exploradosmuito antes de que

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    houvesse revolucionrios. No sempreem perodo de criseeconmica que o movimento operrioprogride. A revolta no ento o produto das condies objetivas,

    inversamente adeciso que o operrio toma de querera revoluo que fazdele um proletrio. A valorizao dopresente se faz pelo li-vre projeto do porvir, donde se poderiaconcluir que por simesma a histria no tem sentido, ela temaquele sentido quens lhe damos por nossa vontade.Todavia, aqui novamente

    tornamos a cair no mtodo do "aquilo semo qu": ao pen-samento objetivo, que inclui o sujeito narede do determinis-mo, opomos a reflexo idealista que faz odeterminismo re-pousar na atividade constituinte do sujeito.Ora, j vimos queo pensamento objetivo e a anlise reflexivaso dois aspectos594 FENOMENOLOGIADA PERCEPO

    do mesmo erro, duas maneiras de ignoraros fenmenos. Opensamento objetivo deduz a conscinciade classe da condi-o objetiva do proletariado. A reflexoidealista reduz a con-dio proletria conscincia que delatoma o proletrio. Oprimeiro extrai a conscincia de classe daclasse definida porcaracteres objetivos, a segunda, ao

    contrrio, reduz o "seroperrio" conscincia de ser operrio.Nos dois casos se es-t na abstrao, porque se permanece naalternativa entre oem si e o para si. Se retomamos a questocom a preocupa-o de descobrir, no as causas datomada de conscincia,pois no h causa que possa agir doexterior sobre uma cons-

    cincia

    no suas condies depossibilidade, pois precisa-

    mos das condies que a tornemefetiva , mas a prpriaconscincia de classe, se praticamosenfim um mtodo ver-dadeiramente existencial, o que

    encontramos? No tenhoconscincia de ser operrio ou burgusporque, de fato, ven-do meu trabalho ou porque de fato sousolidrio ao aparelhocapitalista, e tambm no me tornooperrio ou burgus nodia em que me decido a ver a histria naperspectiva da lutade classes: mas em primeiro lugar "euexisto operrio" ou

    "existo burgus", e este modo decomunicao com o mun-do e com a sociedade que motiva aomesmo tempo meus pro-

    jetos revolucionrios ou conservadores emeus juzos explci-tos: "sou um operrio" ou "sou umburgus", sem que sepossam deduzir os primeiros dos segundos,nem os segundosdos primeiros. No a economia ou a

    sociedade considera-das como sistema de foras impessoais queme qualificam co-mo proletrio, a sociedade ou aeconomia tais como eu astrago em mim, tais como eu as vivo etambm no umaoperao intelectual sem motivo, minhamaneira de ser nomundo neste quadro institucional. Tenhoum certo estilo de

    vida, estou merc do desemprego e daprosperidade, noposso dispor de minha vida, sou pagosemanalmente, no con-trolo nem as condies, nem osprodutos de meu trabalho,O SER-PARA-SI E O SER-NO-MUNDO 595e por conseguinte me sinto como umestrangeiro em minhausina, em minha nao, e em minhavida. Tenho o hbito

    de levar em conta um fatum que norespeito, mas que pre-

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    ciso preparar. Ou ento: trabalho comodiarista, no tenhoterra nem mesmo instrumentos detrabalho, vou de fazendaem fazenda alugar-me na poca das

    colheitas, sinto acima demim uma potncia sem nome que metorna nmade, mesmoquando eu gostaria de me fixar. Ou enfim:sou meeiro de umafazenda onde o proprietrio no instaloueletricidade, embo-ra a rede eltrica se encontre a menosde duzentos metros.Para mim e para minha famlia s disponhode um nico c-

    modo habitvel, embora fosse fcilarrumar outros quartosna casa. Meus companheiros de usina oude colheita ou osoutros meeiros fazem o mesmo trabalhoque eu em condiesanlogas, coexistimos na mesma situaoe nos sentimos se-melhantes, no por alguma comparao,como se em primeirolugar cada um vivesse em si, mas a partir

    de nossas tarefase de nossos gestos. Essas situaes nosupem nenhuma ava-liao expressa, e, se h uma avaliaotcita, ela o mpetode uma liberdade sem projeto contra osobstculos desconhe-cidos, em nenhum caso pode-se falar deuma escolha, nos trscasos basta que eu tenha nascido e que euexista para experi-

    mentar minha vida como difcil e oprimida,e eu no escolhifaz-lo. Mas as coisas podem ficar assim,sem que eu passe conscincia de classe, sem que eu mecompreenda como pro-letrio e sem que eu me tornerevolucionrio. Ento comose far a passagem? O operrio ficasabendo que, aps umagreve, outros operrios em um outro

    emprego obtiveram umaumento de salrios, e observa que aseguir os salrios so

    aumentados em sua prpria usina. Ofatum com o qual eleestava s voltas comea a se precisar. Odiarista que no viuoperrios com freqncia, que no se

    assemelha a eles e quenem mesmo gosta deles, v aumentar opreo dos objetos fa-bricados e o custo de vida, e constata queno se pode mais596 FENOMENOLOGIADA PERCEPOviver. Pode ser que neste momento eleincrimine os oper-rios das cidades, e ento a conscincia declasse no nascer.Se ela nasce, no porque o diarista tenha

    decidido tornar-se revolucionrio e em conformidadecom isso valorize suacondio efetiva, porque ele percebeuconcretamente o sin-cronismo entre sua vida e a vida dosoperrios e a comunida-de de seus destinos. O pequenoarrendatrio que no se con-funde com os diaristas e menos aindacom os operrios das

    cidades, separado deles por um mundo decostumes e de ju-zos de valor, sente-se todavia do mesmolado que os diaristasquando lhes paga um salrio insuficiente,sente-se at mes-mo solidrio com os operrios da cidadequando fica saben-do que o proprietrio da fazenda preside oconselho de admi-nistrao de vrias empresas industriais. O

    espao social co-mea a se polarizar, v-se surgir umaregio dos explorados.A cada impulso vindo de um pontoqualquer do horizontesocial, o reagrupamento se precisa paraalm das ideologiase das diferentes profisses. A classe serealiza, e dizemos queuma situao revolucionria quando aconexo que existe

    objetivamente entre as partes doproletariado (quer dizer, em

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    ltima anlise, a conexo que umobservador absoluto teriareconhecido entre elas) enfim vividana percepo de umobstculo comum existncia de todos.

    No de forma al-guma necessrio que em algum momentosurja uma represen-tao da revoluo. Por exemplo, duvidoso que, em 1917,os camponeses russos se tenhamproposto expressamente arevoluo e a transformao dapropriedade. A revoluo nas-ce no dia-a-dia do encadeamento dos finsprximos a fins me-

    nos prximos. No necessrio que cadaproletrio se pensecomo proletrio no sentido que um tericomarxista d pa-lavra. Basta que o diarista ou o meeiro sesintam em marchaem direo a uma certa encruzilhadapara onde o caminhodos operrios da cidade tambmconduz. Uns e outros de-sembocam na revoluo que talvez os

    teria assustado se elaO SER-PARA-SI E OSER-NO-MUNDO 597lhes tivesse sido descrita e representada.No mximo pode-sedizer que a revoluo est no termo deseus passos e em seusprojetos sob a forma de um " preciso queisto mude", quecada um experimenta concretamente emsuas dificuldadesprprias e a partir do fundo de seus

    prejuzos particulares.Nem ofatum nem o ato livre que o destriso representados,eles so vividos na ambigidade. Isso noquer dizer que osoperrios e os camponeses faam arevoluo sem o saber eque tenhamos aqui "foras elementares" ecegas habilmenteutilizadas por alguns dirigentesconscientes. Talvez seja as-

    sim que o chefe da polcia ver ahistria. Mas tal viso o

    deixa sem recurso diante de umaverdadeira situao revolu-cionria, em que as palavras de ordem dospretensos dirigen-tes, como por uma harmonia

    preestabelecida, so imediata-mente compreendidas e encontramcumplicidades em todasas partes, porque elas cristalizam aquiloque est latente navida de todos os produtores. Omovimento revolucionrio,como o trabalho do artista, uma intenoque cria ela mes-ma seus instrumentos e seus meios deexpresso. O projeto

    revolucionrio no o resultado de umjuzo deliberado, aposio explcita de um fim. Ele o para o propagandista,porque o propagandista foi formado pelointelectual, ou pa-ra o intelectual, porque ele pauta sua vidapor pensamentos.Mas ele s deixa de ser a decisoabstrata de um pensadore se torna uma realidade histrica se se

    elabora nas relaesinter-humanas e nas relaes do homemcom seu ofcio. Por-tanto, verdade que eu me reconheocomo operrio ou co-mo burgus no dia em que me situo emrelao a uma revo-luo possvel e que essa tomada deposio no resulta, poruma causalidade mecnica, de meu estadocivil operrio ou

    burgus ( por isso que todas as classestm seus traidores),mas ela tambm no uma valorizaogratuita, instant-nea e imotivada, ela se prepara por umprocesso molecular,amadurece na coexistncia antes deexplodir em palavras e598FENOMENOLOGIA DA PERCEPOde se referir a fins objetivos. Tem-serazo de observar que

    no a misria maior que forma osrevolucionrios mais cons-

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    cientes, mas esquece-se de perguntar porque um retorno deprosperidade freqentemente acarretauma radicalizao dasmassas. porque a descompresso da vida

    torna possvel umanova estrutura do espao social: oshorizontes no esto maislimitados s preocupaes mais imediatas,existe jogo, existelugar para um novo projeto vital. Portanto,o fato no provaque o operrio se faa operrio erevolucionrio ex nihilo, masao contrrio que ele o faz sobre um certosolo de coexistn-

    cia. O erro da concepo que discutimos, em suma, o des considerar projetos intelectuais, emlugar de levar em contao projeto existencial que a polarizao deuma vida em di-reo a uma meta determinada-indeterminada da qual ela notem nenhuma representao e que sreconhece no momentode atingi-la. Reduz-se a intencionalidade

    ao caso particulardos atos objetivantes, faz-se da condioproletria um obje-to de pensamento e no se tem trabalhoem mostrar, segun-do o mtodo constante do idealismo, que,como todo objetode pensamento, ela s subsiste diante epela conscincia quea constitui como objeto. O idealismo (comoo pensamento ob-

    jetivo) passa ao largo da intencionalidadeverdadeira que an-tes est em seu objeto do que o pe. Eleignora o interrogati-vo, o subjuntivo, a promessa, aexpectativa, a indetermina-o positiva desses modos deconscincia, ele s conhece aconscincia indicativa, no presente ou nofuturo, e por issoque no consegue dar conta da classe. Pois

    a classe no nemconstatada, nem decretada; assim comoojatum do aparelho

    capitalista, assim como a revoluo, antesde ser pensada ela vivida a ttulo de presena obcecante, depossibilidade, deenigma e de mito. Fazer da conscincia de

    classe o resultadode uma deciso e de uma escolha dizerque os problemasso resolvidos no dia em que secolocam, que toda questo

    j contm a resposta que ela aguarda,em suma retornarO SER-PARA-SI E OSER-NO-MUNDO 599 imanncia e renunciar a compreender ahistria. Na reali-dade, o projeto intelectual e a posio dos

    fins so o acaba-mento de um projeto existencial. Sou euque dou um sentidoe um porvir minha vida, mas isso noquer dizer que essesentido e esse porvir sejam concebidos,eles brotam de meupresente e de meu passado e, emparticular, de meu modode coexistncia presente e passado.Mesmo para o intelectual

    que se faz revolucionrio, a deciso nonasce ex nihilo, oraela se segue a uma longa solido: ointelectual procura umadoutrina que exija muito dele e o cure dasubjetividade; oraele se rende s clarezas que umainterpretao marxista dahistria pode trazer, agora que ele ps oconhecimento nocentro de sua vida, e mesmo isso s se

    compreende em fun-o de seu passado e de sua infncia.Mesmo a deciso defazer-se revolucionrio sem motivo e porum ato de pura li-berdade ainda exprimiria uma certamaneira de ser no mun-do natural e social, que tipicamenteaquela do intelectual.Ele s "encontra a classe operria" a partirde sua situao

    de intelectual (e por isso que atmesmo o fidesmo, para

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    ele, com toda razo permanece suspeito).Com mais razo,para o operrio a deciso elaborada navida. Desta vez, no mais graas a um mal-entendido que o

    horizonte de umavida particular e os fins revolucionrioscoincidem: a revolu-o para o operrio uma possibilidademais imediata e maisprxima do que para o intelectual, jque em sua vida eleest s voltas com o aparelho econmico.Eis por que estatis-ticamente existem mais operrios doque burgueses em um

    partido revolucionrio. Bem entendido, amotivao no su-prime a liberdade. Os partidos operriosmais estritos conta-ram com muitos intelectuais entre seuschefes, e provvelque um homem como Lenin tivesse seidentificado revolu-o e tivesse terminado por transcendera distino entre ointelectual e o operrio. Mas estas so

    as virtudes prpriasda ao e do engajamento; no ponto departida, no sou um600FENOMENOLOGIA DA PERCEPOindivduo para alm das classes, sousocialmente situado, eminha liberdade, se tem o poder de meengajar alhures, notem o poder de instantaneamente metornar aquilo que deci-do ser. Assim, ser burgus ou operrio no

    apenas ter cons-cincia de s-lo, valorizar-se comooperrio ou como bur-gus por um projeto implcito ouexistencial que se confundecom nossa maneira de pr em forma omundo e de coexistircom os outros. Minha deciso retomaum sentido espont-neo de minha vida, que ela pode confirmarou infirmar, mas

    no anular. O idealismo e opensamento objetivo deixam

    igualmente escapar a tomada deconscincia de classe, umporque deduz a existncia efetiva daconscincia, outro por-que infere a conscincia da existncia de

    fato, ambos porqueignoram a relao de motivao.Responder-se- talvez, do lado doidealismo, que paramim mesmo eu no sou um projetoparticular, mas uma pu-ra conscincia, e que os atributos deburgus ou de operrios me pertencem na medida em que merecoloco entre os ou-tros, que me vejo pelos olhos deles, do

    exterior, e como um"outro". Elas seriam categorias do ParaOutrem e no doPara Si. Mas, se houvesse dois tipos decategorias, como eupoderia ter a experincia de outrem, querdizer, de um alterego? Ela supe que na viso que tenho demim mesmo j es-teja esboada minha qualidade de"outro" possvel, e que

    na viso que tenho de outrem estejaimplicada sua qualidadedcego. Responder-se- novamente queoutrem me dado co-mo um fato e no como umapossibilidade de meu ser pr-prio. O que se quer dizer com isso? Que euno teria a expe-rincia de outros homens se eles noexistissem na superfcieda terra? A proposio evidente, mas no

    resolve nosso pro-blema, pois, como Kant j dizia, no sepode passar de "to-do conhecimento comea com aexperincia" a "todo conhe-cimento provm da experincia''. Se osoutros hrhens queexistem empiricamente devem ser paramim outros homens,O SER-PARA-SI E OSER-NO-MUNDO 601 preciso que eu tenha com o que

    reconhec-los, preciso por-tanto que as estruturas do Para Outremj sejam as dimen-

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    ses do Para Si. Alis, impossvel derivardo Para Outremtodas as especificaes das quais falamos.Outrem no ne-cessariamente, nunca totalmente objeto

    para mim. E na sim-patia, por exemplo, posso perceberoutrem como existncianua e liberdade tanto ou to poucoquanto a mim mesmo.Outrem-objeto no seno umamodalidade insincera de ou-trem, assim como a subjetividade absolutano seno umanoo abstrata de mim mesmo.Portanto, preciso que na

    reflexo mais radical eu j apreenda emtorno de minha indi-vidualidade absoluta como que um halode generalidade oucomo que uma atmosfera de"sociabilidade". Isso necess-rio se a seguir as expresses "um burgus"e "um homem"devem poder adquirir um sentido paramim. E preciso quede um s golpe eu me apreenda como

    excntrico a mim mes-mo e que minha existncia singular porassim dizer difundaem torno de si uma existncia na-qualidade. preciso queos Para Si eu para mim mesmo eoutrem para si mesmo-se destaquem sobre um fundo de ParaOutremeu paraoutrem e outrem para mim. preciso queminha vida tenha

    um sentido que eu no constitua, que arigor exista uma in-tersubjetividade, que cada um de nsseja simultaneamenteum annimo no sentido da individualidadeabsoluta e um an-nimo no sentido da generalidade absoluta.Nosso ser no mun-do o portador concreto desse duploanonimato.Sob essa condio, pode haver situaes,

    um sentido dahistria, uma verdade histrica, trsmaneiras de dizer a mes-

    ma coisa. Se efetivamente eu me fizesseoperrio ou burguspor uma iniciativa absoluta, e se em geralnada solicitasse aliberdade, a histria no comportaria

    nenhuma estrutura, nose veria nenhum acontecimento perfilar-se nela, tudo pode-ria sair de tudo. No existiria o ImprioBritnico como for-ma histrica relativamente estvel qualse pudesse dar um602 FENOMENOLOGIADA PERCEPOnome e reconhecer certas propriedadesprovveis. Na hist-ria do movimento social, no existiriam

    situaes revolucio-nrias ou perodos de refluxo. Umarevoluo social seria pos-svel em qualquer momento, do mesmomodo que se poderiasensatamente esperar de um dspotaque ele se convertesseao anarquismo. A histria nunca iria aparte alguma e, mes-mo considerando um curto perodo detempo, nunca se po-

    deria dizer que os acontecimentosconspiraram para um re-sultado. O homem de Estado sempreseria um aventureiro,quer dizer, ele confiscaria osacontecimentos em seu benef-cio, dando-lhes um sentido que eles notinham. Ora, se ver-dade que a histria impotente paraterminar algo sem cons-cincias que a retomem e que atravs disso

    a decidam, se porconseguinte ela nunca pode ser separadade ns, como umapotncia estranha que disporia de nspara seus fins, justa-mente porque ela sempre histria vividans no podemos recusar-lhe um sentido pelo menos fragmentrio.Algo se prepara quetalvez abortar, mas que, no momento,satisfaria s suges-

    tes do presente. Nada pode fazer comque, na Frana de

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    1799, um poder militar "acima das classes"no aparea naseqncia do refluxo revolucionrio e comque o papel do di-tador militar no seja aqui um "papel a

    se desempenhar". o projeto de Bonaparte, conhecido porns por sua realiza-o, que nos faz julgar assim. Mas, antesde Bonaparte, Du-mouriez, Custine e outros o tinhamformado, e preciso darconta dessa convergncia. Aquilo que sechama de sentidodos acontecimentos no uma idia queos produza nem o

    resultado fortuito de seu agrupamento. o projeto concretode um porvir que se elabora nacoexistncia social e no Seantes de qualquer deciso pessoal. Noponto de sua histriaem que a dinmica das classes tinhachegado em 1799, a Re-voluo no podendo ser nem continuada,nem anulada, fei-tas todas as reservas quanto liberdade

    dos indivduos, cadaum deles, por esta existncia funcional egeneralizada que fazO SER-PARA-SI E OSER-NO-MUNDO 603dele um sujeito histrico, tendia aconfiar no adquirido.Propor-lhes nesse momento, seja retomaros mtodos do go-verno revolucionrio, seja retornar aoestado social de 1789,teria sido um erro histrico, no que exista

    uma verdade dahistria independente de nossos projetose de nossas avalia-es sempre livres, mas porque existeuma significao m-dia e estatstica desses projetos. Issosignifica dizer que da-mos seu sentido histria, mas no semque ela o proponhaa ns. A Sinn-gebung no apenascentrfuga e por isso que

    o sujeito da histria no o indivduo. Htroca entre a exis-

    tncia generalizada e a existnciaindividual, cada uma rece-be e d. H um momento em que osentido que se esboavano Se, e que era apenas um possvel

    inconsistente ameaadopela contingncia da histria, retomadopor um indivduo.Pode acontecer que agora, tendo-seapoderado da histria,ele a conduza, pelo menos por um certotempo, para muitoalm daquilo que parecia ser seu sentido ea envolva em umanova dialtica, como quando Bonaparte setorna Cnsul Im-

    perador e conquistador. Ns noafirmamos que de um ladoa outro a histria s tenha um nicosentido, como no o afir-mamos de uma vida individual. Queremosdizer que em to-do caso a liberdade s o modificaretomando aquele que elaoferecia no momento considerado e poruma espcie de desli-zamento. Em relao a esta proposio do

    presente, pode-sedistinguir o aventureiro do homem deEstado, a imposturahistrica e a verdade de uma poca, e porconseguinte nossacolocao em perspectiva do passado, seela nunca alcanaa objetividade absoluta, nunca tem odireito de ser arbitrria.Reconhecemos portanto, em torno denossas iniciativas

    e desse projeto rigorosamente individualque ns somos, umazona de existncia generalizada e deprojetos j feitos, signi-ficaes que vagueiam entre ns e ascoisas e que nos qualifi-cam como homem, como burgus oucomo operrio. A ge-neralidade j intervm, nossa presena ans mesmos j me-604FENOMENOLOGIA DA PERCEPO

    diada por ela, deixamos de ser puraconscincia a partir do

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    momento em que a constelao natural ousocial deixa de serum isto informulado e se cristaliza em umasituao, a partirdo momento em que ela tem um sentido,

    quer dizer, em su-ma, a partir do momento em queexistimos. Toda coisa nosaparece atravs de um intermedirio queela colore com suaqualidade fundamental; este pedao demadeira no nemuma reunio de cores e de dados tteis,nem mesmo sua Ges-talt total, mas emana dele como queuma essncia lenhosa,

    esses "dados sensveis" modulam umcerto tema ou ilustramum certo estilo que a prpria madeira eque forma, em tor-no deste pedao que aqui est e dapercepo que dele tenho,um horizonte de sentido. O mundonatural, como o vimos,no seno o lugar de todos os temas ede todos os estilospossveis. Ele indissoluvelmente um

    indivduo sem igual eum sentido. Correlativamente, ageneralidade e a individua-lidade do sujeito, a subjetividadequalificada e a subjetivida-de pura, o anonimato do Se e oanonimato da conscinciano so duas concepes do sujeito entreas quais a filosofiateria de escolher, mas dois momentos deuma estrutura ni-

    ca que o sujeito concreto. Consideremospor exemplo o sen-tir. Eu me perco neste vermelho que estdiante de mim, semqualific-lo de maneira alguma, pareceque essa experinciame faz entrar em contato com um sujeitopr-humano. Quempercebe este vermelho? No ningumque se possa nomeare que se possa agrupar com outros sujeitos

    perceptivos. Poisentre esta experincia do vermelho que eutenho e aquela da

    qual os outros me falam nenhumaconfrontao direta seralgum dia possvel. Estou aqui em meuponto de vista pr-prio, e como toda experincia, enquanto

    ela impressionai,da mesma maneira estritamente minha,parece que um su-

    jeito nico e sem segundo as envolve atodas. Formo um pen-samento, por exemplo penso no Deus deSpinoza; este pen-samento tal como eu o vivo uma certapaisagem qual nin-O SER-PARA-SI E OSER-NO-MUNDO 605gum nunca ter acesso, mesmo se por

    outro lado consigoestabelecer uma discusso com um amigosobre a questo doDeus de Spinoza. Todavia, a prpriaindividualidade dessasexperincias no pura. Pois a espessuradeste vermelho, suaecceidade, o poder que ele tem de mepreencher e de me atin-gir provm do fato de que ele solicita eobtm de meu olhar

    uma certa vibrao, supem que eu sejafamiliar a um mun-do de cores do qual ele uma variaoparticular. Portanto,o vermelho concreto se destaca sobre umfundo de generali-dade e por isso que, mesmo sempassar ao ponto de vistade outrem, eu me apreendo napercepo como um sujeitoque percebe, e no como conscincia

    sem igual. Em tornode minha percepo do vermelho, sintotodas as regies demeu ser que ela no atinge, e esta regiodestinada s cores,a "viso", por onde ela me atinge. Damesma maneira, saparentemente meu pensamento do Deusde Spinoza umaexperincia rigorosamente nica: ela uma concreo de um

    certo mundo cultural, a filosofiaspinozista, ou de um certo

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    estilo filosfico, em funo do qual logoreconheo uma idia"spinozista". Portanto, no precisamosperguntar-nos porque o sujeito pensante ou a conscincia se

    apercebe como ho-mem ou como sujeito encarnado oucomo sujeito histrico,e no devemos tratar esta apercepocomo uma operao se-gunda que ele efetuaria a partir de suaexistncia absoluta:o fluxo absoluto se perfila sob seu prprioolhar como "umaconscincia'' ou como homem ou comosujeito encarnado por-

    que ele um campo de presena

    presena a si, presenaa outrem e ao mundo e porque estapresena o lana nomundo natural e cultural a partir do qualele se compreende.No devemos represent-lo comocontato absoluto consigo,como uma densidade absoluta semnenhuma fenda interna,mas ao contrrio como um ser que se

    prossegue no exterior.Se o sujeito fizesse de si mesmo e desuas maneiras de seruma escolha contnua e sempre singular,poderamos pergun-606 FENOMENOLOGIADA PERCEPOtar-nos por que sua experincia se liga a simesma e lhe ofe-rece objetos, fases histricas definidas,por que temos umanoo geral do tempo vlida atravs de

    todos os tempos, porque enfim a experincia de cada um se liga experincia dosoutros. Mas a prpria questo que preciso colocar em ques-to: pois o que dado no um fragmentode tempo e depoisum outro, um fluxo individual e depois umoutro, a reto-mada de cada subjetividade por si mesmae das subjetivida-

    des umas pelas outras na generalidadede uma natureza, a

    coeso de uma vida intersubjetiva e deum mundo. O pre-sente efetua a mediao do Para Si edo Para Outrem, daindividualidade e da generalidade. A

    verdadeira reflexo med a mim mesmo no comosubjetividade ociosa e inacess-vel, mas como idntica minha presenaao mundo e a ou-trem, tal como eu a realizo agora: soutudo aquilo que vejo,sou um campo intersubjetivo, no adespeito de meu corpoe de minha situao histrica, mas aocontrrio sendo esse

    corpo e essa situao e atravs delestodo o resto.O que se torna ento, deste ponto devista, a liberdadeda qual falvamos ao comear? No possomais fingir ser umnada e me escolher continuamente a partirde nada. Se pe-la subjetividade que o nada aparece nomundo, pode-se di-zer tambm que pelo mundo que o nada

    vem ao ser. Souuma recusa geral de ser o que quer queseja, acompanhada s ocultas por umaaceitao contnua de tal forma qualifica-da de ser. Pois mesmo esta recusa geralconta ainda entre as maneiras de ser efigura no mundo. verdade que a cadainstante posso interromper meus projetos.Mas o que este poder? E o poder decomear outra coisa, pois ns nuncapermanecemos em suspenso no nada.

    Estamos sempre no pleno, no ser, as-sim como um rosto, mesmo em repouso,mesmo morto, est sempre condenado aexprimir algo (h mortos espantados,calmos, discretos), e assim como o silncioainda uma modalidade do mundosonoro. Posso destruir todas as formas,OSER-PARA-SI E O SER-NO-MUNDO 607posso rir de tudo, no h caso em que euesteja inteiramente tomado: no queagora eu me retire em minha liberdade,

    que me envolvo alhures. Em lugar depensar em minha dor, olho minhas unhas,ou almoo, ou me ocupo de poltica. Lon-

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    ge de que minha liberdade seja sempresolitria, ela nunca est sem cmplice, eseu poder de arrancamento perptuo seapoia em meu envolvimento universal nomundo. Minha liberdade efetiva no est

    aqum de meu ser, mas diante demim, nas coisas. No se deve dizer que eume escolho continuamente, sob pretextode que continuamente eu poderia re-cusar aquilo que sou. No recusar no escolher. S poderamos identificarpermitir e fazer subtraindo ao implcitoqualquer valor fenomenal e a cadainstante desdobrando o mundo diantede ns em uma transparncia perfeita,quer dizer, destruindo a "mundanidade" do

    mundo. A conscincia se consideraresponsvel por tudo, ela assume tudo,mas propriamente ela no tem nada e fazsua vida no mundo. Enquanto no seintroduziu a noo de um tempo naturalou generalizado, somos conduzidos aconceber a liberdade como uma escolhacontinuamente renovada. Vimos que noh tempo natural, se se entende por issoum tempo das coisas sem subjetividade.Mas h pelo menos um tempo generali-

    zado, exatamente ele que a noocomum do tempo visa. Ele o recomeoperptuo da consecuo passado,presente, porvir. Ele como uma decepoe um revs repetidos. isso que seexprime dizendo que ele contnuo: opresente que ele nos traz nunca deveraspresente, j que quando aparece ele j passado, e s aparentemente o porvirtem o sentido de uma meta em direo qual caminhamos, j que logo ele

    chega ao presente e j que agora ns nosdirigimos a um outro porvir. Este tempo o de nossas funes corporais, que socclicas como ele, tambm o danatureza com a qual coexistimos. Ele snos oferece o esboo e a forma abstratade um envolvimento, j que ele corricontinuamente a si mes-608FENOMENOLOGIA DA PERCEPOmo e desfaz aquilo que acaba de fazer.Enquanto se coloca face a face, sem

    mediador, o Para Si e o Em si,enquanto no se apercebe, entre ns eo mundo, este esboo natural

    de uma subjetividade, este tempo pr-pessoal que repousa em si mesmo, sonecessrios atos para sustentar o

    jorramento do tempo, e tudo do mesmomodo escolha, o reflexo respiratrio assim

    como a deciso moral, a conservaoassim como a criao. Para ns, aconscincia s se atribui este poder deconstituio universal se ela omite oacontecimento que forma sua infra-estrutura e que seu nascimento. Umaconscincia para quem o mundo "bvio",que o encontra "j constitudo" e presenteat nela mesma, no escolhe absoluta-mente nem seu ser, nem sua maneira deser.

    O que ento a liberdade? Nascer aomesmo tempo nascer do mundo e nascerno mundo. O mundo est j constitudo,mas tambm no est nuncacompletamente constitudo. Sob oprimeiro aspecto, somos solicitados, sobo segundo somos abertos a uma infinidadede possveis. Mas esta anlise ainda abstrata, pois existimos sob os dois aspec-tos ao mesmo tempo. Portanto, nunca hdeterminismo e nun-

    ca h escolha absoluta, nunca sou coisae nunca sou conscincia nua. Emparticular, mesmo nossas iniciativas,mesmo as situaes que escolhemos, umavez assumidas, nos condu-zem como que por benevolncia. Ageneralidade do "papel" e da situao vemem auxlio da deciso e, nesta troca entrea situao e aquele que a assume, impossvel delimitar a "parte da situao"e a "parte da liberdade". Torturam um

    homem para faz-lo falar. Se ele serecusa a dar os nomes e os endereosque querem arrancar-lhe, no por umade- ciso solitria e sem apoios; ele aindase sente com seus camaradas e, engajadoainda na luta comum, est como queincapaz de falar; ou ento, h meses ouanos, ele afrontou esta provao empensamento e apostou toda a sua vida ne-la; ou enfim, ultrapassando-a, ele querprovar aquilo que sem-O SER-PARA-SI E O

    SER-NO-MUNDO 609 pre pensou e disseda liberdade. Esses motivos no anulam

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    a liberdade, mas pelo menos fazem comque ela no esteja sem escoras no ser.Finalmente, no uma conscincia nuaque resiste dor, mas o prisioneiro comseus camaradas ou com aqueles que ele

    ama e sob cujo olhar ele vive, ou enfima conscincia com sua solidoorgulhosamente desejada, querdizer, ainda um certo modo do Mit-Sein.E sem dvida o indivduo, em suapriso, quem revivifica a cada dia essesfantasmas, eles lhe restituem a fora queele lhes deu, mas, reciprocamente, se elese envolveu nesta ao, se ele ligou aestes camaradas ou aderiu a esta moral, porque a situao histrica, os camaradas,

    o mundo ao seu redor lhe parecemesperar dele aquela conduta. Assim,poderamos continuar sem fim a anlise.Escolhemos nosso mundo e o mundo nosescolhe. E certo em todo caso que nuncapodemos reservar em ns mesmos umreduto no qual o ser no penetra, semque no mesmo instante, pelo nico fato deque vivida, esta liberdade adquira figurade ser e se torne motivo e apoio. Con-cretamente considerada, a liberdade

    sempre um encontro do exterior e dointerior mesmo a liberdade pr-humana e pr-histrica pela qualcomeamos, e ela se degrada semnunca tornar-se nula medida que diminuia tolerncia dos dados corporais einstitucionais de nossa vida. Existe, comodiz Husserl, um "campo da liberdade" euma "liberdade condicionada" 7, no que ela seja absoluta nos limitesdeste campo e nula no exterior assim

    como o campo perceptivo, este no temlimites lineares , mas porque tenhopossibilidades prximas e possibilidadesremotas. Nossos envolvimentos sustentamnossa potncia e no h liberdade semalguma potncia. Nossa liberdade, diz-se,ou total ou nula. Este dilema o dilemado pensamento objetivo e da anlisereflexiva, sua cmplice. Se com efeito nsnos situamos no ser, necessariamente preciso que nossas aes provenham do

    ex-

    terior; se retornamos conscinciaconstituinte, preciso que610FENOMENOLOGIA DA PERCEPOelas provenham do interior. Mas

    justamente ns aprendemos a reconhecer

    a ordem dos fenmenos. Estamosmisturados ao mundo e aos outros em umaconfuso inextricvel. A idia de situaoexclui a liberdade absoluta na origem denossos envolvimentos. Alis, ela a excluiigualmente em seu termo.Nenhum envolvimento, e nem mesmo oenvolvimento no Estado hegeliano, podefazer-me ultrapassar todas as diferen-as e tornar-me livre para tudo. Estaprpria universalidade, unicamente pelo

    fato de que ela seria vivida, sedestacaria como uma particularidadesobre o fundo do mundo, a existncia aomesmo tempo generaliza e particularizatudo aquilo que visa e no poderia serintegral.A sntese do Em si e do Para si queliberdade hegeliana realiza tem todavia suaverdade. Em certo sentido, esta aprpria definio da existncia, a cadamomento ela se faz sob nosso olhos no

    fenmeno de presena, simplesmente elalogo deve ser recomeada e no suprimenossa finitude. As-sumindo um presente, retomo etransformo meu passado, mudo seusentido, libero-me dele, desembarao-medele. Mas s o fao envolvendo-mealhures. O tratamento psicanaltico nocura provocando uma tomada deconscincia do passado, mas em primeirolugar ligando o paciente ao seu mdico

    por novas relaes de existncia. No setrata de dar um assentimento cientfico interpretao psicanaltica e de des-cobrir um sentido nocional do passado,trata-se de re-viv-lo como significandoisto ou aquilo, e o doente s chega a issovendo seu passado na perspectiva de suacoexistncia com o mdico. O complexono dissolvido por uma liberdade seminstrumentos, mas antes deslocado poruma nova pulsao do tempo que tem

    seus apoios e seus motivos. Ocorre o mes-

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    mo em todas as tomadas de conscincia:elas s so efetivas se produzidas por umnovo envolvimento. Ora, este envolvi-mento, por sua vez, se faz no implcito,portanto ele s vlido para um ciclo de

    tempo. A escolha que fazemos de nossaOSER-PARA-SI E O SER-NO-MUNDO 611vida sempre tem lugar sobre a base deum certo dado. Minha liberdade podedesviar minha vida de sua direo espon-tnea, mas por uma srie dedeslizamentos, primeiramente esposando-a, e no por alguma criao absoluta.Todas as explicaes de minha condutapor meu passado, meu temperamento,meu ambiente so portanto verdadeiras,

    sob a condio de que os consideremosno como contribuies separveis, mascomo momentos de meu ser total doqual -me permitido explicar o sentido emdiferentes direes, sem que alguma vezse possa dizer se sou eu quem lhes d seusentido ou se o recebo deles. Sou umaestrutura psicolgica e histrica. Com aexistncia recebi uma maneira de existir,um esti- lo. Todos os meus pensamentos eminhas aes esto em relao com esta

    estrutura, e mesmo o pensamento de umfilsofo no seno uma maneira deexplicitar seu poder sobre o mundo,aquilo que ele . E todavia sou livre, no adespeito ou aqum dessas motivaes,mas por seu meio. Pois esta vidasignificante, esta certa significao danatureza e da histria que sou eu, nolimita meu acesso ao mundo, ao con-trrio ela meu meio de comunicar-mecom ele. sendo sem restries nem

    reservas aquilo que sou presentementeque tenho oportunidade de progredir, vivendo meu tempo que possocompreender os outros tempos, meentranhando no presente e no mundo,assumindo resolutamente aquilo quesou por acaso, querendo aquilo que quero,fazendo aquilo que fao que posso iralm. S posso deixar a liberdade escaparse procuro ultrapassar minha situaonatural e social recusando-me a em

    primeiro lugar assumi-la, em vez de,atravs dela, encontrar o mundo natural ehumano. Nada me determina do exterior,

    no que nada me solicite, mas aocontrrio porque de um s golpe estoufora de mim e aberto ao mun-do. Somos verdadeiros de um lado a outro,temos conosco, apenas pelo fato de que

    somos no mundo, e no somente esta-mos no mundo, como coisas, tudo aquiloque preciso para612 FENOMENOLOGIADA PERCEPO nos ultrapassar. Noprecisamos temer que nossas escolhasou nossas aes restrinjam nossaliberdade, j que apenas a escolha e aao nos liberam de nossas ncoras. Assimcomo a reflexo toma de emprstimo suapromessa de adequao absoluta percepo que faz aparecer uma coisa, e

    que desta maneira o idealismo utilizatacitamente a "opinio originria" que eledesejaria destruir enquanto opinio, damesma maneira a liberdade se embaraanas contradies do envolvimento e no seapercebe de que ela no seria liberdadesem as razes que lana no mundo. Eufaria esta promessa? Arriscaria minhavida por to pouco? Daria minhaliberdade para salvar a liberdade? Noh resposta terica para essas questes.

    Mas existem esta coisas que seapresentam, irrecusveis, existe essapessoa amada diante de ti, h esteshomensque existem como escravos em torno de ti,e tua liberdade no pode querer-se semsair de sua singularidade e sem querera liberdade. Quer se trate das coisas ou dassituaes histricas, a filosofia no temoutra funo seno a de tornar a nosensinar a v-las bem, e verdadeiro dizer

    que ela se realiza destruindo-se comofilosofia separada. Mas aqui que pre-ciso se calar, pois apenas o heri vive at ofim sua relao com os homens e com omundo, e no convm que um outro faleem seu nome. "Teu filho est preso noincndio, tu o salvars... Se h umobstculo, venderias teu brao por umauxlio. Tu habitas em teu prprio ato.Teu ato tu... Tu te transformas... Tuasignificao se mostra, ofuscante. Este

    teu dever, tua raiva, teu amor, tua fidelidade, tua inveno... O homem s um lao de relaes, apenas as re-

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