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97 Capítulo 4 Metodologia Este estudo segue uma metodologia qualitativa, no quadro do paradigma de investigação interpretativo. O estudo, cuja calendarização se encontra no anexo 3, estrutura-se em três estudos de caso elaborados no contexto de um trabalho colaborativo de reflexão sobre a prática, envolvendo professoras dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico. O presente capítulo organiza-se em duas grandes secções: a primeira descreve as opções metodológicas que informam todo o trabalho e a segunda o modo como este foi concebido e realizado. 4.1. Opções metodológicas O paradigma interpretativo Aspectos gerais. A adopção de um paradigma de investigação não é neutra. Por um lado, é bem conhecido que paradigma e problema se condicionam mutuamente (Strauss & Corbin, 1990) e que o sucesso de um projecto de investigação supõe, antes de mais, uma harmonização coerente entre ambos. Por outro lado, às escolhas subjacentes a essa adopção não é estranha a própria mundividência da investigadora, isto é, o seu modo de olhar o mundo, incluindo a sua experiência e prática profissional (Dezin & Lincoln, 1994). Mundividência que,

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97

Capítulo 4

Metodologia

Este estudo segue uma metodologia qualitativa, no quadro do paradigma de investigação

interpretativo. O estudo, cuja calendarização se encontra no anexo 3, estrutura-se em três

estudos de caso elaborados no contexto de um trabalho colaborativo de reflexão sobre a prática,

envolvendo professoras dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico. O presente capítulo organiza-se em

duas grandes secções: a primeira descreve as opções metodológicas que informam todo o

trabalho e a segunda o modo como este foi concebido e realizado.

4.1. Opções metodológicas

O paradigma interpretativo

Aspectos gerais. A adopção de um paradigma de investigação não é neutra. Por um

lado, é bem conhecido que paradigma e problema se condicionam mutuamente (Strauss &

Corbin, 1990) e que o sucesso de um projecto de investigação supõe, antes de mais, uma

harmonização coerente entre ambos. Por outro lado, às escolhas subjacentes a essa adopção

não é estranha a própria mundividência da investigadora, isto é, o seu modo de olhar o mundo,

incluindo a sua experiência e prática profissional (Dezin & Lincoln, 1994). Mundividência que,

Comunicação na sala de aula de Matemática: Um projecto colaborativo

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por sua vez, acaba sempre por ser influenciada pelo modo como a investigadora se assume

enquanto tal, isto é, pelo paradigma que adopta (Guba & Lincoln, 1994). Assim, a escolha do

paradigma interpretativo teve a ver não apenas com a temática do estudo, mas também com o

tipo de questões que nele pretendia abordar, de natureza aberta, globalizante e compreensiva, e

com a convicção da relevância deste paradigma para o tipo de investigação em Educação que

penso que vale a pena empreender.

O paradigma interpretativo valoriza a explicação e compreensão holística das situações,

o carácter complexo e essencialmente humano da actividade de interpretação do real e o papel

privilegiado que nessa actividade toma o plano da intersubjectividade resultante do encontro e

interacção de múltiplos actores sociais entre os quais se inclui a investigadora. O paradigma

introduz uma dimensão que se distancia dos cânones positivistas clássicos. De facto, não visa o

estabelecimento de relações causa-efeito, não se orienta para a verificação de leis gerais, nem

para a previsão de comportamentos, mas, antes, para o desenvolvimento do conhecimento de

situações inseridas em contexto, conhecimento que assume um carácter plural, feito a muitas

vozes e inevitavelmente fragmentário. Como nota Erickson (1989), o objectivo da investigação

neste paradigma situa-se no “significado humano da vida social e na sua clarificação” (p. 196).

Por isso, contesta a possibilidade da investigadora assumir um ponto de observação externo,

pretensamente neutro. Contesta, igualmente, a supremacia das medidas quantitativas na análise

e a validade universal do método hipotético-dedutivo, usualmente associado às ciências exactas

para a compreensão de fenómenos onde se entrecruza a complexidade das interacções

humanas e dos contextos de vida. Daí que este paradigma transporte algumas das perspectivas

geralmente associadas à pós-modernidade (Lyotard, 1979): a recusa de uma verdade única,

exclusiva, externa, objectiva, cuja fonte definitiva fosse a racionalidade positiva; a

indissociabilidade entre o real, o seu contexto e as mediações através das quais um e outro são

percebidos; o processo sempre aberto de construção e desconstrução das significações.

Do ponto de vista deste trabalho é relevante sublinhar que o paradigma interpretativo se

inscreve na corrente mais ampla da investigação qualitativa (Bogdan & Biklen, 1999). Note-se

que a usual distinção qualitativo/quantitativo tem mais a ver com as opções metodológicas de

fundo acima referidas do que, exclusivamente, com os instrumentos de análise utilizados.

Bogdan e Biklen (1999) enumeram um conjunto de características da investigação qualitativa

que vale a pena reter: (i) o seu carácter descritivo; (ii) a valorização do ambiente natural dos

fenómenos; (iii) a atitude indutiva (parte-se de dados e não de premissas); (iv) a importância

Capítulo 4 – Metodologia

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dada ao processo de investigação (por contraposição à valorização exclusiva dos resultados); e

(v) a importância primordial do significado. Psathas sublinha que o ponto fundamental é o

enfoque naquilo que os sujeitos envolvidos “experimentam, o modo como interpretam as suas

experiências e o modo como eles próprios estruturam o mundo social em que vivem” (1973,

citado em Bogdan & Biklen, 1999, p. 51).

É consensual reconhecer as profundas implicações que o paradigma interpretativo e, de

uma forma mais geral, a abordagem qualitativa, tem tido na investigação em Educação. Woods

(1999) classifica-o como uma verdadeira revolução. Esta revolução passa essencialmente pelos

estudos centrados no professor e nas suas concepções, práticas e desenvolvimento profissional.

A tese de Henrique Guimarães (2003) traça uma breve resenha histórica para explicar como, ao

ultrapassar-se a abordagem comportamentalista, o professor deixa de ser encarado como um

ser reactivo, determinado essencialmente por factores exógenos, para emergir, neste novo

paradigma, na complexidade das suas acções e interacções com outros e com os seus próprios

processos de interpretação das situações e construção de significações. No entanto, diversos

outros trabalhos testemunham o impacto e a fecundidade deste tipo de abordagem na

investigação em Educação Matemática em Portugal. A lista é longa e, inclui, se nos restringirmos

à investigação focada no professor, teses de doutoramento como por exemplo, Santos (2000),

Saraiva (2001), Canavarro (2003), Guimarães (2003), Boavida (2005), Menezes (2005) ou

Guimarães (2005). Em todas se reconhece a importância da proximidade às situações vividas no

quotidiano dos professores e às formas como estas são por eles vividas, interpretadas e

tornadas explícitas.

Ludke e André (1986) sublinham a natureza descritiva dos dados que a investigação

qualitativa permite recolher e a sua capacidade de “focar a realidade de forma complexa e

contextualizada” (p. 18). A análise de narrativas e os estudos de casos são, por certo, os dois

tipos de abordagem mais comuns, dentro do paradigma interpretativo, para alcançar estes

objectivos. A pesquisa narrativa procede pela composição e interligação, num determinado (e

muitas vezes longo) horizonte temporal, de acontecimentos, acções, processos e contextos,

construindo desse modo uma história na qual o sujeito emerge e se (re-)interpreta (Huberman,

Thompson & Weiland, 1997; Polkinghorne, 1995). O ponto de partida é o próprio facto de todos

os quotidianos estarem povoados de narrativas que contamos e re-contamos, por vezes para nós

próprios, num processo onde as significações essenciais da vida se produzem. Escreveu Barthes

(1979): “inumeráveis são as narrativas do mundo”. A tese de Guimarães (2005) é exemplo de

Comunicação na sala de aula de Matemática: Um projecto colaborativo

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uma análise narrativa-biográfica que, através da construção de uma história de vida, estuda o

desenvolvimento profissional de uma professora de Matemática.

O estudo de caso é um tipo de abordagem de investigação que procede por um registo e

análise intensivo e holístico de uma dada situação ou fenómeno empírico (Merriam, 1988, Yin,

1989, Stake, 1994). De acordo com a classificação proposta em Stake (1994) um estudo de

caso pode ser intrínseco (quando o seu foco é a situação particular que se pretende estudar),

instrumental (quando o caso é usado como meio de compreensão de uma problemática mais

vasta) ou agregado (quando procede por agregação de vários casos instrumentais). Comum a

todos é o carácter empírico do estudo, a prevalência da perspectiva interpretativa (o “como” e o

“porquê” referidos em Yin (1989) como as questões de interesse), o elevado nível de

aprofundamento e detalhe, o contacto directo e geralmente prolongado no tempo com as

situações e pessoas em causa e a perspectiva dinâmica que não se fecha sequer às evoluções

imprevisíveis das situações. O estudo de caso, preocupa-se com procura daquilo que nessa

situação particular surge como único e fundamental contribuindo, assim, para uma melhor

compreensão dos fenómenos ou situações em análise (Ponte, 2006).

O paradigma interpretativo, seja qual for a abordagem concreta em que se realiza, tem

implicações concretas no modo como se entende o papel da investigadora e como se avalia a

credibilidade dos resultados. Considere-se brevemente cada um destes pontos.

O papel da investigadora. Como acima se referiu, a investigação interpretativa concede

um lugar amplo à intersubjectividade. Isso significa que o desenho de uma nítida linha de

fronteira entre aquele que estuda e aquilo que se estuda está longe de ter a centralidade que

tem, por exemplo, nas ciências exactas. Pelo contrário, a investigadora situa-se no interior do

processo onde a investigação decorre. Mais até, o lugar do estudo é o da intersubjectividade que

se estabelece entre ela e as outras pessoas envolvidas. Os próprios papéis sociais acabam por

ser confrontados e (re-)determinados pela dinâmica das interacções. No limite, não deixa de ser

válido o aforismo de Barthes (1979): “o verdadeiro lugar da originalidade não está no outro, nem

em mim, mas na relação que conseguirmos estabelecer” (p. 51).

Esta perspectiva do papel da investigadora e da sua relação com as outras pessoas

envolvidas no estudo, levanta questões de alguma complexidade ao nível não só da credibilidade

do estudo, que abordarei de seguida, mas também da pragmática do processo de investigação.

McCracken (1988) alerta para o facto de uma excessiva intimidade entre investigadora e

participantes ser criadora de significações e poder conduzir à viciação das observações

Capítulo 4 – Metodologia

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(comprometendo, por exemplo, a espontaneidade dos discursos) ou mesmo a um enviesamento

dos caminhos. No entanto, independentemente da intimidade entre investigadora e

participantes, os próprios sentimentos e preconceitos da investigadora podem originar

enviesamentos (Bogdan & Biklen, 1999). A proximidade leva a que a investigadora experimente

alguns dos sentimentos dos participantes e construa desse modo uma certa empatia com eles.

Mas importa ter consciência que “passar a fazer parte de um grupo significa partilhar as

reacções dos seus membros” (Bogdan & Biklen, 1999, p. 133).

Guimarães (2003) retoma uma metáfora muito usada em investigação qualitativa – o

investigador como instrumento – para enfatizar a importância das características pessoais e da

experiência do investigador (Evertson & Green, 1986; Gans, 1982). Como sublinha Ponte

(2006), a perspicácia do investigador na observação e a pertinência na análise são

características fundamentais para o sucesso da investigação. Por outro lado, se a investigadora

(sua personalidade, expectativas e experiência) é participante do estudo, esta presença deve ser

explicitada e discutida por todos e equacionada instrumentalmente em função dos objectivos

propostos e das questões de investigação. Segundo Bogdan e Biklen (1999), a investigadora

pode aproveitar os seus sentimentos no sentido de clarificar e compreender as perspectivas dos

outros. Pode fazê-lo, por exemplo, exprimindo os seus sentimentos no sentido de perceber se os

participantes também sentem ou já sentiram o mesmo, perante uma manifestação da

investigadora podem-se sentir levados a manifestar-se também e assim constituir mais uma

oportunidade de reflexão.

Uma área que merece uma atenção muito particular em investigação qualitativa e na

qual a investigadora tem um papel determinante é a que se relaciona com os aspectos de

natureza ética envolvidos. Insere-se aqui a necessidade de obter um consentimento informado

dos participantes. Como escreve Santos (2000) “as regras do jogo devem ser claras e, em

última análise, negociadas” (p. 190). Além disso, é preciso considerar eventuais implicações

para os participantes ou para terceiros do acesso público ao estudo e a existência de um

benefício partilhado entre investigadora e participantes. Qualquer dos termos do acordo

estabelecido deve ser respeitado pelo investigador em qualquer fase do processo de

investigação. Por exemplo, a investigadora em caso algum deve colocar um gravador sem que

seja do consentimento de todos os intervenientes. Um ponto fundamental tem a ver com a

negociação da esfera de privacidade a resguardar. A utilização de pseudónimos ajuda a proteger

a identidade do sujeito (Bogdan & Biklen, 1999; Merriam, 1988), mas revela-se por vezes

Comunicação na sala de aula de Matemática: Um projecto colaborativo

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insuficiente. Santos (2000), por exemplo, alerta para o facto de o anonimato, obtido através do

recurso a pseudónimos, não ser efectivo se, de uma forma não controlada pelo próprio, o

participante se sentir exposto mais do que aquilo que é “reconhecido pelo próprio como

característico de si e não pertencente ao seu foro íntimo” (p. 191). Igualmente relevante do

ponto de vista ético é a auto-inibição da investigadora na emissão de juízos de valor sobre o

objecto de estudo (Fontana & Frey, 1994), assumindo posturas mais avaliativas que

interpretativas. A consciência destes riscos por parte da investigadora e a explicitação entre

todos dos objectivos do estudo são condições essenciais para os evitar. Um outro aspecto ético

relevante numa investigação tem a ver com fidelidade aos dados obtidos. A investigadora tem

necessariamente que se cingir ao que recolheu com toda a autenticidade, mesmo que os

resultados possam parecer contrários aquilo que desejava (Bogdan & Biklen, 1999). Todos os

aspectos éticos a considerar no processo e no produto da investigação são regidos por um

profundo respeito, respectivamente, pelos participantes e pela comunidade.

Credibilidade. Pela sua própria natureza, a fonte de legitimação científica de

investigações conduzidas neste paradigma é necessariamente distinta da adoptada nas ciências

exactas ou mesmo nas abordagens de carácter mais circunscrito e quantitativo em ciências

humanas. Não se trata aqui de verificar hipóteses ou a aplicabilidade de pressupostos teóricos

previamente estabelecidos. Não se trata sequer de buscar resultados imediatamente

generalizáveis através de procedimentos canónicos – por exemplo, por intervenção na

representatividade das amostras).

O paradigma interpretativo é, essencialmente, indutivo, no sentido lato (não estritamente

técnico) da palavra: parte-se da realidade empírica que se procura compreender e não de

premissas a verificar (Goetz & LeCompte, 1984). A credibilidade dos seus resultados baseia-se

assim (i) na validade conceptual que supõe a caracterização dos conceitos-chave e dos critérios

de classificação de dados (Ponte, 2006); (ii) na construção progressiva de um património de

conhecimentos que aos poucos vai permitindo a emergência de explicações de carácter menos

particular; (iii) na postura da investigadora, que clarifica no início as suas motivações e

concepções de modo a tornar explícito o seu impacto no estudo (Denzin, 1989); (iv) no

envolvimento dos participantes no próprio processo interpretativo (Goetz & LeCompte, 1984),

factor este associado à validade interna que Ponte (2006) refere como essencial para validar o

estudo, em que as conclusões reflectem a realidade reconhecida pelos participantes e não

apenas pela investigadora (Ponte, 2006); e (v) na validade externa, ou seja, na comparabilidade

Capítulo 4 – Metodologia

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com outros estudos (Erikson, 1989; Ludke e André, 1986) o que, ainda segundo Goetz e

LeCompte (1984) supõe a definição clara dos objectivos, limites e métodos de cada um.

Investigação em contexto colaborativo

Uma segunda opção metodológica deste estudo foi a adopção de uma abordagem que

envolvesse investigadora e participantes num projecto comum que permitisse olhar a prática e

interpretá-la de forma interactiva e continuada. A forma encontrada foi a de realizar um trabalho

colaborativo que proporcionasse a reflexão e a acção sobre a prática no quadro geral do estudo

da comunicação na sala de aula. Neste trabalho, os seus objectivos, estrutura e dinâmica foram

discutidas e definidas em conjunto. A dinâmica da investigação que originou a presente

dissertação, desenvolveu-se ao longo desse processo.

Se se quiser situar esta opção num quadro mais amplo, será pertinente referir a noção

de investigação participativa (Gaventa, 1988; Gayfer, 1992) que propõe um envolvimento

efectivo das pessoas sobre as quais a investigação incide na própria produção de conhecimento.

Esta linha recolhe intuições facilmente reconduzidas a autores como Paulo Freire e à

investigação em Educação de Adultos nas décadas de 60 e 70 (Vieira, 2004). Freire (1975)

estabelece um paralelo entre a educação pelo diálogo e a investigação considerando que esta

tem que ser “igualmente dialógica” (p. 125). Aponta mesmo para uma metodologia quando se

pretende “investigar o pensar dos homens referido à realidade, investigar seu actuar sobre a

realidade” (p. 141): “A metodologia que defendemos exige, por isto mesmo, que, no fluxo da

investigação, se façam ambos sujeitos da mesma – os investigadores e os homens do povo que,

aparentemente, seriam seu objecto” (p. 141).

Re-situando-nos, porém, no contexto específico desta dissertação, importa sublinhar que

a colaboração entre professores e investigadores, tem sido cada vez mais valorizada como

processo transformador em Educação (NCTM, 1994; Tinto, Shelly & Zarach, 1994). Ponte

(1995) refere, por exemplo, a necessidade de formas de cooperação entre professores e

investigadores em torno de projectos de desenvolvimento curricular em que os professores

assumam protagonismo, desempenhando um papel activo na investigação. De facto, estes não

podem ser vistos como meros executores. Têm a sua própria vivência profissional, com as

dificuldades, alegrias e constrangimentos, e é essa realidade que importa conhecer e

compreender (Ponte, 1992; Schön, 1987). Ponte (2002) refere ainda que a investigação sobre a

Comunicação na sala de aula de Matemática: Um projecto colaborativo

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própria prática pode ser vista como um meio privilegiado de desenvolvimento profissional para

os professores envolvidos.

Uma compreensão mais alargada e profunda dos assuntos efectivamente relevantes na

investigação em Educação pode ser, assim, obtida, através da colaboração (Ponte & Boavida,

2004; Ponte & Santos, 1998). A articulação entre professores e investigadores “empenhados no

propósito comum de aprofundar o conhecimento sobre a natureza do processo de ensino-

aprendizagem desta disciplina, tendo em vista o sucesso de todos os alunos, poderá ser um

contexto particularmente favorável para o aprofundamento do conhecimento neste domínio”

(Ponte & Santos, 1998, p. 30). Uma preocupação semelhante está presente em Bednarz,

Desgagné, Couture, Lebuis e Poirier (1999).

A importância que neste trabalho assume a problemática da colaboração vai muito além

do que seria expectável de uma mera opção metodológica. Tal justifica que esta dissertação lhe

tenha dedicado um capítulo autónomo. A secção seguinte descreve o modo como este estudo foi

concebido, isto é, o modo como se pretenderam concretizar as opções metodológicas aqui

enunciadas.

4.2. Concepção e desenvolvimento do estudo

Concepção do projecto

A investigação estrutura-se em três estudos de caso elaborados no contexto de um

trabalho colaborativo de reflexão sobre a prática, envolvendo professoras dos 2.º e 3.º ciclos do

ensino básico. Trata-se, assim, de uma investigação empírica que investiga cada professora

dentro de um contexto real. Na classificação de Stake (1994), trata-se de um estudo agregado,

dado corresponder ao estudo de vários casos instrumentais. Apesar de cada caso gerar

evidências próprias, todos acabam por ser referentes a uma mesma “história”: a do projecto que

reuniu três professoras e uma investigadora.

A investigação é conduzida pelas questões originalmente colocadas (as questões de

investigação), mas estas são ajustadas e repostas através do desenrolar do projecto de trabalho

Capítulo 4 – Metodologia

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colaborativo (Evertson & Green, 1986). Assinale-se ainda que os factores de contexto não estão

totalmente controlados nem são deliberadamente excluídos do estudo.

Em cada um dos estudos de caso procurei fazer, logo de início, um levantamento das

concepções e preocupações da professora em torno da comunicação na sala de aula. Tentei

igualmente perceber quais as suas expectativas em relação ao projecto (na fase inicial), bem

como o balanço feito desse envolvimento (na fase final). Ao longo de todo o processo, uma

atenção particular foi dada à sua participação no projecto e à sua reflexão sobre o desempenho

profissional na sala de aula. Deste modo recolhi elementos que ajudassem a perceber de que

forma o envolvimento num projecto de colaboração, onde professores assumem o papel de

investigadores que se debruçam sobre problemas da sua própria prática, pode influenciar essa

mesma prática. Pretendi também contribuir para uma melhor compreensão das concepções,

dificuldades e práticas dos professores relativas à comunicação matemática na sala de aula e à

reflexão que sobre elas produzem.

Para o desenvolvimento do projecto colaborativo, que se detalha numa próxima

subsecção, procurei criar uma relação de trabalho conjunto contando com um envolvimento

idêntico das professoras e da investigadora. Num trabalho colaborativo entre professores e

investigadores é muito importante o diálogo (Clark e tal., 1996). No entanto, o diálogo por si só

não é suficiente; supõe-se ainda o respeito mútuo, a partilha de objectivos, a consideração dos

diversos valores dos participantes e uma boa parcela de trabalho comum (John-Steiner, Weber &

Minnis, 1998). Segundo estes autores, numa verdadeira colaboração, os diferentes elementos

partilham diferentes “leituras” de situações e experiências. Tal diversidade vai criar a estrutura

original de trabalho, que reflecte a mistura das contribuições dos vários participantes. Estas

contribuições podem basear-se no conhecimento, nas dificuldades ou dúvidas. Como refere

Olson (1997) “é a pessoa que deve ser valorizada, e não o seu conhecimento ou estatuto” (p.

21). Segundo a mesma autora, é importante que cada participante aprenda sobre si próprio, os

outros e os assuntos de trabalho, mas não é necessário nem possível que todos aprendam o

mesmo. Todos estes aspectos se podem enquadrar num só, referido por Drake e Basaraba

(1997), a saber, a necessidade de cuidar do espaço de colaboração. Nesse cuidar, pode-se

incluir a confiança, o compromisso, a honestidade e o respeito. Um tal ambiente inspira

segurança e conforto para quem nele se envolve.

Assim, e de acordo com tudo o que foi referido, com o projecto de investigação realizado

com as professoras, procurei criar uma oportunidade de discussão, experiência e partilha num

Comunicação na sala de aula de Matemática: Um projecto colaborativo

106

ambiente estimulante e cuidado, tendo como propósito comum aprofundar o conhecimento, no

sentido de contribuir para o desenvolvimento profissional de cada uma.

Participantes e projecto

A escolha. Um trabalho que privilegia a colaboração tem condições mais favoráveis para

se desenvolver a partir de um pequeno grupo de intervenientes. Assim, propus-me trabalhar com

duas ou três professoras de Matemática. A escolha das participantes não foi um processo linear,

tendo a constituição do grupo sofrido alterações ao longo do processo, conforme se detalha no

próximo capítulo.

Considerando que o projecto colaborativo proposto correspondia a um trabalho exigente,

um dos critérios de selecção requeria que as professoras envolvidas tivessem vivências comuns

e facilidade para se encontrarem. Assim, o facto de trabalharem na mesma escola parecia, à

partida, um elemento facilitador do processo. Deste modo, as participantes que constituíram o

objecto de análise deste estudo, foram as três professoras, Carla1, Eva e Maria que se

encontram a leccionar na mesma escola. Duas professoras do 3.º ciclo, Carla e Eva, ambas com

45 anos e cerca de 23 anos de serviço. A outra, Maria, é professora do 2.º ciclo, tem 52 anos de

idade e 31 de serviço.

Em toda a fase de recolha de dados, o papel da investigadora foi de observadora

participante, uma vez que fazia parte do grupo de trabalho e que foi este o objecto de análise do

presente estudo. Importa destacar que cada um dos participantes tinha conhecimento, desde a

sua inserção no grupo, dos objectivos do estudo bem como do envolvimento da investigadora de

forma interactiva. Também era do conhecimento dos participantes que os produtos resultantes

do trabalho seriam dados a conhecer e discutidos podendo necessitar de reformulações

posteriores.

Projecto. Como atrás referi, este projecto centra-se na problemática da comunicação

matemática na sala de aula. Na sua génese, porém, está o interesse manifestado por todas as

participantes em desenvolver um trabalho colaborativo.

Em traços gerais estava previsto que o grupo fosse construindo uma reflexão sobre as

aulas, mas sempre com um olhar especificamente voltado para os aspectos que interferem com

1 Este, como todos os outros nomes de professores, alunos ou familiares que são referidos neste estudo, correspondem a pseudónimos.

Capítulo 4 – Metodologia

107

a comunicação na sala de aula. Procurar-se-iam identificar os factores que facilitam ou

bloqueiam essa comunicação, em particular no que se relaciona com o tipo de tarefas

propostas, os materiais utilizados e os modos de organização dos alunos. Todo o projecto

pretendia centrar-se no estudo do papel do professor e para isso considerava à partida relevante

a identificação do tipo de dificuldades encontradas pelo professor.

As actividades que se planearam realizar incluíam:

Discussão de tópicos considerados relevantes pelos elementos do grupo;

Discussão de artigos;

Planificação de aulas e de tarefas;

Reflexão sobre as práticas;

Preparação de divulgação do trabalho.

Pretendia ainda que a responsabilização pelas reuniões fosse repartida pelos vários

elementos do grupo. Em particular, que fosse elaborada uma calendarização em grupo e que a

preparação, coordenação e a elaboração de uma síntese de cada reunião contasse com um

responsável.

Previa, também, a organização de um arquivo com todo o material que fosse

considerado relevante para o grupo, por exemplo, artigos, transcrições de aulas e documentos

oficiais. Incluiria aqui igualmente materiais já utilizados ou possíveis de utilizar no futuro, em sala

de aula, de modo a constituir um instrumento a que se poderia recorrer sempre que necessário.

Três fases pareciam necessárias para a elaboração do projecto. Uma primeira de

planificação conjunta, uma segunda fase de desenvolvimento do projecto propriamente dito e,

por fim, uma fase de síntese e divulgação dos resultados.

Este projecto colaborativo para o qual desafiei as três professoras, apesar de ter sido

elaborado a partir de uma ideia por mim lançada, tinha um pressuposto inicial que consistia em

ser considerado genuinamente um trabalho em comum. Consequentemente, tudo tinha que

partir de um consentimento de todas. Não na qualidade de investigadora mas na qualidade de

elemento do grupo, colocava a minhas propostas à consideração do grupo.

O desenvolvimento do projecto, constituiu o pano de fundo para o desenvolvimento

deste estudo. A articulação entre o projecto colaborativo e o projecto de investigação que dele se

alimenta esteve, desde o início, muito clara.

Comunicação na sala de aula de Matemática: Um projecto colaborativo

108

As secções que se seguem detalham os processos de recolha e análise de dados.

Chama-se a atenção do leitor para o facto de que a descrição detalhada do percurso do projecto

e sua vivência no grupo ser feita no capítulo 5.

Recolha dos dados

Processo. Antes de iniciar o processo de recolha de dados, e depois das professoras

Carla e Eva terem aceite nele participar, contactei o conselho executivo da escola no sentido de

lhe solicitar autorização para o desenvolvimento do projecto. Depois de uma explicação breve do

estudo e os seus objectivos, o presidente do conselho executivo manifestou-se inteiramente

disponível desde que as professoras estivessem de acordo. Revelou-se satisfeito com a proposta

de organizarmos um documento a apresentar no conselho pedagógico e chamou à atenção de

que os alunos e respectivos encarregados de educação deveriam estar informados sobre a razão

da presença da investigadora na sala de aula e das respectivas gravações. Importa referir que a

escola disponibilizou uma sala para o desenvolvimento do trabalho do grupo.

O processo de recolha de dados teve início em Fevereiro de 2004 a partir de conversas

informais com Carla e Eva. As técnicas utilizadas foram a observação e as entrevistas. A

proximidade construída ao longo do tempo entre a investigadora e as participantes foi potenciada

por essas técnicas. A proximidade tornou-se um factor relevante para a leitura e percepção da

realidade do ponto de vista das participantes.

A observação é uma técnica de recolha de dados usual em estudos interpretativos.

Tanto Bogdan e Biklen (1999) como Merriam (1988) elegem a observação participante como o

melhor processo de recolha de dados em estudos de caso. Diversos autores distinguem entre

dois extremos: quando o observador é totalmente participante (membro integrante do grupo

observado) e quando é um espectador. Merriam (1988) sublinha, no entanto, que estes

extremos raramente existem em estudos de caso. Entre eles distingue dois tipos de observação

participante, de acordo com o grau de envolvimento do observador com os observados: o

participante como observador e o observador como participante. Se ocorre em contexto natural,

a observação toma contornos naturalistas (Adler & Adler, 1994).

No caso deste estudo, a investigadora recorreu a uma observação participante, dado que

o processo de observação está mergulhado na interacção da investigadora com os participantes

e estes estão conscientes dos objectivos do estudo (Ludke & André, 1986). Essa observação

Capítulo 4 – Metodologia

109

realizou-se em diferentes contextos, nomeadamente, aulas, reuniões e encontros informais.

Note-se que há diferenças entre a observação em contexto-aulas e a observação em contexto-

reuniões/encontros informais. Em relação ao contexto aulas, a investigadora aproxima-se mais,

segundo a classificação de Merriam (1988), do observador como participante dado que a sua

participação é secundária para a recolha de dados. Em relação aos outros contextos, o papel do

observador tende para o de participante como observador tendo em conta que as actividades de

observação são de certa forma subordinadas ao seu próprio papel como participante. Neste tipo

de abordagem o sistema de recolha de observações é descritivo, geralmente feito a partir de

notas de campo e gravações áudio, instrumentos utilizados com frequência pela investigadora

durante todo o processo de recolha de dados.

A entrevista é uma técnica de recolha de dados comum a muitos estudos qualitativos,

em particular quando se pretende conhecer e compreender a actividade e pensamento humano

(Fontana & Frey, 1994; Goetz & LeCompte, 1984). Corresponde a uma técnica alternativa à

observação e torna-se particularmente útil para um estudo individualizado de elementos de um

mesmo grupo (Bogdan & Biklen, 1999). Em particular, fornece informações relevantes para a

construção do historial de cada professora e permite conhecer as suas expectativas

relativamente aos alunos, profissão ou ao próprio projecto (Goetz & LeCompte, 1984). A

entrevista permite aceder, por exemplo, a episódios da vida profissional que cada uma considera

mais significativos, experiências que a marcaram positivamente ou negativamente, frustrações e

dificuldades. Quando são solicitadas opiniões, durante uma entrevista, tanto as posições

individuais como as partilhadas tornam-se mais evidentes.

Neste estudo foi utilizada a entrevista semi-estruturada que permite que se crie um

ambiente natural, que se aproxima de uma conversa. Este tipo de entrevista fornece uma grande

ajuda para obter dados de forma paralela e comparável entre vários sujeitos (Bogdan & Biklen,

1999). Nesse sentido, foi previamente elaborado um guião com as questões que se pretendiam

colocar às professoras. No entanto, foi tida em conta a importância da investigadora não se

encontrar presa ao guião, podendo alterar a sua ordem, omitir questões que já estivessem

contempladas ou perdido relevância ou ainda acrescentar outras questões que surgissem ao

longo da conversa. Tal como sublinham Bogdan e Biklen (1999), quando a entrevista é muito

controlada pelo entrevistador, se “o sujeito não consegue contar a sua história pelas suas

palavras, a entrevista ultrapassa o âmbito qualitativo” (p. 135). Na terminologia de Powney e

Watts (1987), as entrevistas de um estudo podem ser orientadas para a informação ou

Comunicação na sala de aula de Matemática: Um projecto colaborativo

110

orientadas para a resposta. Adoptando essa terminologia, apesar de no guião estar um conjunto

de questões que a investigadora gostaria de ver contempladas, o objectivo primordial não era

conduzir, mas sim deixar fluir uma conversa no sentido de obter informação o mais alargada

possível dentro das temáticas definidas.

Durante o processo de recolha de dados, como os objectivos são conhecidos à partida

pelas participantes, estas podem ter um papel fundamental, estando sempre informadas sobre o

processo, e podem ler e criticar todos os produtos realizados. De seguida, refiro de forma mais

detalhada cada um dos contextos que serviram de suporte à recolha de dados que foram

utilizados neste estudo.

Contextos

1. Encontros informais. São uma forma de estabelecer um contacto mais próximo entre

a investigadora e as professoras, em que não são fixadas quaisquer regras, facilitando assim o

trabalho em colaboração. Estes encontros ajudaram a investigadora a identificar áreas de

interesse profissionais de forma a poder estabelecer propostas de trabalho. Após cada um

destes encontros e por vezes durante, a investigadora registou em notas de campo a maior

quantidade de informação possível. No entanto, a escrita dos casos recorre com pouca

frequência a notas de campo. Perante uma transcrição de uma afirmação gravada e uma nota

de campo a investigadora optou pela primeira, dada a sua maior fiabilidade.

2. Entrevistas semi-estruturadas. Cada professora foi sujeita a duas entrevistas, uma no

início do projecto e a outra no final. A primeira entrevista procurou recolher informação

relativamente às suas concepções e preocupações no que diz respeito à temática do projecto

colaborativo bem como as expectativas que nele colocavam. A segunda entrevista constituiu uma

recolha de dados sobre o que para o professor foi importante ou penoso na participação no

projecto. Esta entrevista também constituiu uma fonte de informação sobre a visão que cada

professora tem de si própria tanto no que se refere ao seu papel no desenvolvimento da

comunicação na sala de aula bem como no que diz respeito ao seu envolvimento e contribuição

para o desenvolvimento do projecto. Foi também dada uma particular atenção a aspectos que

cada uma sentia que tinha ou não alterado no modo de ver e actuar na sua prática bem como

as dificuldades sentidas nessa mesma concretização.

As entrevistas foram individuais, duraram entre hora e meia e duas horas e seguiram

um guião previamente estabelecido (ver Anexos 1 e 2). Foram sujeitas a gravação áudio e,

Capítulo 4 – Metodologia

111

simultaneamente, a investigadora tomou breves anotações. O guião, tal como foi referido acima,

serviu de orientação à investigadora, nunca correspondendo a uma camisa de forças a ser

obedecido rigorosamente. No início de cada entrevista foi lembrada a presença do gravador bem

como garantida a confidencialidade. As dimensões reduzidas do gravador (10x6x1,5 cm) e a sua

colocação na mesa, sem estar muito próximo das professoras, facilitou a naturalidade da

entrevista, pois tornava-se um elemento possivelmente esquecido, ou pelo menos, não

intimidador. As notas de campo da investigadora, foram na sua maioria tomadas no final da

entrevista. Pequenas anotações simbólicas foram colocadas no próprio guião durante a

entrevista. No final a investigadora procurou registar nas notas de campo: momentos cujas

expressões da professora foram mais sugestivas, a forma como estava sentada, a forma como

olhava para a investigadora, o estado de espírito com que respondia a determinadas questões, a

indecisão que colocava numa ou outra resposta, etc. Estas notas tomaram assim contornos

interpretativos e apreciativos, revelando-se úteis para a análise da entrevista.

A investigadora procurou que fosse criado um ambiente de à-vontade para que os

entrevistados falassem livremente dos seus pontos de vista. Para isso, tomou várias medidas,

entre as quais realizar a entrevista no local à escolha de cada entrevistada assegurando, no

entanto, um espaço onde a probabilidade de se ser interrompido fosse reduzida. Um dos locais

escolhido para a primeira entrevista por Eva e Carla foi a Universidade (por sugestão de Eva,

argumentando que na escola estava demasiado barulho e havia poucos espaços disponíveis),

pelo que a investigadora escolheu uma sala de aula e uma mesa de trabalho de alunos, espaço

este familiar a ambas (entrevistada e entrevistadora), de experiências anteriores. Importa

salientar que estas duas entrevistas decorreram em Fevereiro, na época de exames da

Universidade pelo que foi fácil arranjar uma sala disponível. A investigadora marcou como local

de encontro, antes dessas duas entrevistas, na escola e juntas se deslocaram para a

Universidade. Os restantes locais escolhidos foram respectivamente: a casa de Eva para a

segunda entrevista e a escola para a segunda entrevista de Carla e as duas de Maria.

A investigadora antecedeu cada entrevista de uma pequena conversa informal

procurando assim não provocar uma situação desconfortável, quer para a entrevistada quer para

a entrevistadora. A investigadora procurou, durante todo o tempo da entrevista, adoptar uma

postura atenta, continuar no registo da conversa anterior, olhar o mais possível para a

entrevistada e conciliar isso com uma atitude descontraída.

Comunicação na sala de aula de Matemática: Um projecto colaborativo

112

Ainda com o objectivo de cuidar do ambiente da entrevista, a investigadora procurou

seleccionar o tipo de questões mais adequadas. Por um lado, evitou perguntas que conduzissem

a respostas do tipo sim/não e, quando por vezes isso ocorria, formulava imediatamente outra

pergunta que a completasse. Por outro lado, colocou questões de pormenor no sentido de

completar determinado relato, clarificar determinadas histórias e compreender melhor as

opiniões do professor. Este tipo de questões mais cirúrgicas revela atenção e interesse naquilo

que o entrevistado está a dizer e exige do entrevistador uma capacidade de escuta apurada.

Previa-se no final da transcrição de cada entrevista, esta ser sujeita à leitura da

entrevistada. Pretendia-se que esta fizesse uma revisão do que disse, eventualmente corrigisse e

acrescentasse algum aspecto se o entendesse. Este processo foi seguido na primeira entrevista

de Carla e Eva. No entanto, dada a grande extensão que cada entrevista alcançou, tornou-se um

processo moroso, desgastante para as professoras e pouco proveitoso. Por esta razão, não se

repetiu na segunda entrevista destas duas professoras nem nas entrevistas de Maria.

3. Reuniões de trabalho conjunto. Essas reuniões foram momentos essenciais da

investigação, tendo lugar quinzenalmente ao longo de ano lectivo e meio, respeitando as

interrupções escolares. Constituíram o espaço principal de trabalho conjunto dentro da

investigação. Os conteúdos foram muito diversificados, incluindo, por exemplo, discussão de

textos/tópicos relacionados com a temática, criação de instrumentos de trabalho para a sala de

aula, planificação de aulas, discussão das experiências já realizadas, reflexão e análise de aulas.

Nas reuniões, para além das notas de campo, utilizaram-se gravações áudio. As notas de campo

referentes às reuniões constituíram uma mais valia para suporte do processo de transcrições.

Complementavam, por exemplo, a análise das transcrições sobretudo com elementos que o

gravador não conseguia captar, tais como, desenhos, esquemas e notações matemáticas.

4. Observações de aulas. Para o conteúdo da investigação proposta – a comunicação

estabelecida na sala de aula de Matemática – o contexto assume grande importância (Pereira,

1991). Nesse sentido, a observação e discussão das aulas constituíram um elemento de recolha

de dados essencial. Logo no início a investigadora solicitou a cada professora a autorização para

a observação de aulas e cada uma das três aceitou sem qualquer tipo de objecção ou restrição.

As turmas e as aulas sujeitas a observação foram seleccionadas pela professora envolvida. Por

vezes, outro elemento do grupo avançava uma sugestão, mas a decisão final era sempre da

professora. Essa aprovação correspondia essencialmente a uma aceitação da pertinência da

Capítulo 4 – Metodologia

113

aula para o desenvolvimento do trabalho conjunto. Assim, essas aulas foram seleccionadas, em

última instância, tendo em conta as necessidades sentidas pela respectiva professora.

As aulas, tal como estava acordado, foram sempre objecto de discussão nas reuniões de

trabalho conjunto, depois de seleccionados os episódios e transcritos. As aulas observadas

foram sujeitas a gravação áudio de forma integral e a investigadora escreveu notas de campo

que complementaram as gravações. Logo após cada aula a investigadora e a professora

envolvida comentavam a aula e anotavam alguns aspectos que consideravam mais relevantes

para a discussão ou que traduzissem alguma dificuldade encontrada pela professora, saindo daí

uma orientação para a selecção dos episódios a transcrever. A investigadora ouvia toda a

gravação e transcrevia todos os episódios que se enquadrassem nos aspectos elencados.

Tal como foi referido acima, a investigadora recorreu a uma observação participante, o

que pode ser percebido na postura adoptada tanto nas reuniões como nas aulas. Nas reuniões,

a investigadora participava, assumindo-se desde o início como mais um elemento do grupo. O

facto das professoras saberem exactamente aquilo que se pretendia observar durante as aulas e

os aspectos que seriam objecto de discussão no grupo, torna claro que a observação foi

assumidamente participante.

As notas de campo percorreram todo o estudo. De forma sistemática, a investigadora

tomava notas durante e após as reuniões, aulas e entrevistas. Tomava também notas após os

encontros informais onde se incluíram alguns telefonemas. As notas, serviram, por vezes, de um

precioso complemento à análise de dados.

A investigadora procurou proceder às transcrições tão depressa quanto possível para

minimizar o perigo do esquecimento. Para a transcrição das duas primeiras entrevistas a da

primeira reunião recorreu a ajuda exterior o que atrasou ligeiramente o processo. No caso da

reunião, a transcrição tornou-se mais complicada dado o cruzamento de vozes e a

simultaneidade da fala. Para a transcrição era útil o conhecimento das vozes respectivas bem

como a percepção e conhecimento dos assuntos em causa. Por esta razão a investigadora optou

por fazer as restantes transcrição sem ajuda. O tempo gasto a fazer as transcrições revelou-se,

por vezes, excessivo, mas foi-se reduzindo com a experiência. Com a evolução da investigação, e

a concomitante análise de dados, a investigadora tornou-se mais selectiva naquilo que

transcreveu. Foi deixando cair aspectos laterais com mais firmeza e a própria velocidade de

escrita melhorou muito: de mais de 24 h por cada hora de gravação no início, acabou por

demorar cerca de 8 horas por cada hora de gravação.

Comunicação na sala de aula de Matemática: Um projecto colaborativo

114

Como síntese da dinâmica de recolha de dados que esteve por detrás deste estudo,

apresenta-se de seguida uma tabela (4.1.) onde se representam, de uma forma mais

sistemática, os processos de recolha de dados e os instrumentos utilizados. Apresenta-se ainda

na mesma tabela a codificação dos dados obtidos de cada um dos contextos referidos. A recolha

de dados cingiu-se quase na totalidade aos períodos apresentados na tabela indicada.

Importa acrescentar que o facto do grupo continuar a reunir, após o termo formal do

projecto permitiu clarificar um ou outro aspecto aquando da escrita desta dissertação. Por outro

lado, no entanto, não permitiu criar um distanciamento dos sujeitos que se tornaria porventura

útil no momento da escrita.

Tabela 4.1. Períodos de recolha de dados correspondente a cada professora e codificação do material obtido

Carla Eva Maria De Fev. 2004 a Set. 2005

De Fev. 2004 a Set. 2005

De Março 2005 a Set. de 2005 Encontros informais

NC: Notas de campo (presentes também nos restantes contextos). Fev. 2004 (EC1) Set. 2005 (EC2)

Fev. 2004 (EE1) Junho 2005 (EE2)

Março 2005 (EM1) Julho 2005 (EM2) Entrevistas semi-

estruturadas TEXn: Transcrição da entrevista n da professora X.

De Março de 2004 a Setembro de 2005

De Março de 2004 a Setembro de 2005

De Março de 2005 a Setembro de 2005 Reuniões de trabalho

conjunto TRn: Transcrição da reunião n (de 1 a 25).

De Junho de 2004 a Junho de 2005

De Junho de 2004 a Junho de 2005

De Abril de 2005 a Junho de 2005.

Observação de aulas Episódios de aulas que estão identificadas as aulas sem codificação. TAXn: Transcrição da aula n da professora X.

Análise de dados

O objectivo da análise de dados é interpretar todo o material recolhido, dar-lhe sentido

para poder ser comunicado aos outros de forma organizada e clara. A recolha e a análise de

dados podem andar a par numa investigação qualitativa. A análise, tal como aponta Merriam

(1988) tem o seu início logo na primeira entrevista ou primeira observação. Desta primeira

análise podem mesmo resultar novas propostas para a subsequente recolha de dados ou até

elementos que conduzam à reformulação das questões de investigação.

Neste estudo, a análise de dados foi feita ao longo de todo o processo de investigação.

Fui acompanhando a recolha de dados e esse processo interactivo levou a que se

Capítulo 4 – Metodologia

115

influenciassem mutuamente. Para tal, adoptei um modelo de análise interactivo, como é

sugerido por Huberman e Miles (1994). Procurei, assim, que a recolha e a análise fossem feitas

em sintonia, podendo mesmo uma ser reformulada em função da outra. Todo o material foi

organizado e categorizado, procurando-se estabelecer de seguida relações entre as diferentes

categorias. No processo de análise de dados é possível distinguir várias fases (ver tabela 4.2.).

A primeira fase, que medeia entre Março e Setembro de 2004, correspondeu à leitura e

classificação de todo o material transcrito. Importa sublinhar que até Julho de 2004 tinham

decorrido apenas 7 reuniões do projecto conjunto, uma entrevista a Eva e outra a Carla, e uma

aula gravada de cada uma destas professoras sem a presença da investigadora. Esta primeira

análise correspondeu a uma leitura integral das transcrições das entrevistas e das reuniões

procedendo-se à marcação de frases, palavras, afirmações, de acordo com as categorias

definidas a partir dos objectivos do estudo. Procedeu-se então à marcação, com o auxílio de

cores distintas, das seguintes categorias: a pessoa (como profissional, experiências anteriores,

interesses pessoais, hábitos); concepções sobre comunicação; práticas de comunicação e

reflexão sobre as práticas (intervenções dos participantes, formulação de perguntas, negociação

de significados).

Tabela 4.2. Desdobramento das categorias ao longo das fases de recolha de dados

Fase 1 Fase 2/Fase 3 Gosta do ensino Envolvimento profissional Papel do professor

A pessoa (profissional, experiências anteriores,

interesses pessoais, hábitos) Modo de fala nas aulas Ambiente na sala de aula Trabalho de grupo Intervenções dos alunos Diferentes abordagens matemáticas Material

Concepções sobre comunicação

Tarefas Práticas de comunicação

Tipo de questões Tipo de interacções Negociação de significados

Práticas de comunicação e reflexão sobre as práticas

(intervenções dos participantes, formulação de perguntas, negociação de

significados)

Reflexão sobre as práticas

Normas sociomatemáticas Experiências anteriores Personalidade Influências Trabalho de projecto

Comunicação na sala de aula de Matemática: Um projecto colaborativo

116

Esta primeira fase de análise começou com os dados relativos a Carla. Percorreu os

pontos anteriores e serviu de suporte à escrita de uma primeira versão do “caso Carla” que

constituiu material para discussão no Seminário Luso-Brasileiro de Investigação sobre Saberes

Docentes e Formação de Professores de Matemática, que decorreu em Lisboa a 22 de Setembro

de 2004. Esta primeira análise do “caso Carla” e posterior discussão influenciou a análise dos

restantes casos, em particular no que concerne às categorias aí definidas.

A segunda fase de análise, de Setembro de 2004 a Setembro de 2005, tomou contornos

mais estreitos. Importa salientar que esta fase ainda decorreu em simultâneo com a recolha de

dados. Para além de uma recolha dividida pelas três categorias descritas definidas na primeira

fase, subdividiu-se cada uma destas em categorias mais finas e criou-se mais uma categoria:

influências. Importa também destacar que as categorias anteriormente designadas: práticas e

reflexão sobre as práticas de comunicação foi desdobrada em: práticas de comunicação e

reflexão sobre as práticas. Relativamente à categoria da professora como pessoa, foram

destacadas as seguintes subcategorias: o gosto pelo ensino, o envolvimento profissional, o papel

que atribui ao professor e o modo como fala das suas aulas. Relativamente à categoria das

concepções sobre comunicação, foram destacadas as subcategorias: o ambiente na sala de

aula, o trabalho de grupo, as intervenções dos alunos, as diferentes abordagens matemáticas, o

material manipulável, as tarefas. Quanto à categoria de reflexão sobre a prática, destacaram-se

as subcategorias de reflexão sobre: o tipo de questões formuladas, o tipo de interacção

estabelecida, a negociação de significados, as normas sociomatemáticas. Dentro da nova

categoria, influências, consideram-se as seguintes subcategorias: experiências anteriores,

personalidade, trabalho colaborativo.

Esta análise percorreu os vários casos. O “caso Carla” sofreu nova elaboração e foi

apresentado no Congresso Ibero-Americano de Educação Matemática (CIBEM) em Julho de

2005 (Martinho & Ponte, 2005a). De seguida, o “caso Maria” foi o primeiro a ser trabalhado de

forma completa, em termos de recolha de dados, tendo sido apresentado em Setembro de 2005

no Seminário de Investigação em Educação Matemática (XVI SIEM) em Évora (Martinho e Ponte,

2005b).

Por último, a terceira fase de análise procurou ser de clarificação dos contornos. Importa

referir que esta foi a única fase posterior a toda a recolha de dados. Passou por uma leitura

integral de todo o material compilado – transcrições de reuniões, aulas, notas de campo,

materiais escritos utilizados nas aulas, etc. Foi então estabelecido um confronto com a versão já

Capítulo 4 – Metodologia

117

escrita dos casos. Mais uma vez a escrita e organização dos casos sofreu uma nova

reestruturação com o objectivo de tornar mais explícito o tipo de influências que o projecto

colaborativo teve para cada uma das professoras.

Assim, a categoria das influência foi retirada aos casos e reorganizada constituindo um

capítulo autónomo, o capítulo 9, onde se faz uma análise cruzada dos papeis e influências de

cada uma das professoras e do grupo no seu conjunto. Centrou-se esta no papel do projecto

procurando, antes de mais, contextualizá-lo. Assim, procedeu-se a uma análise dos

antecedentes, considerando-se, por um lado, os aspectos de natureza pessoais e, por outro, a

experiência profissional e relação com a Matemática. Seguidamente estudaram-se os aspectos

relacionados com o projecto, considerando quer a contribuição que cada professora trouxe para

o grupo quer as mais valias que nele encontraram.

Comunicação na sala de aula de Matemática: Um projecto colaborativo

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