capítulo 03 - paleontologia do devoniano dos campos gerais

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Introdução Introduzir um capítulo sobre Paleon- tologia pode se tornar uma tarefa inútil se logo de início o paleontólogo não tentar acertar “o relógio do tempo geológico”, com o qual está habituado a trabalhar e o “relógio do tempo histórico”, a que o leitor comum é normalmen- te afeito. É preciso, antes de tudo, compreen- der que cada fenômeno natural ocorre em sua própria escala de espaço e tempo e que muitos deles fogem ao domínio da imaginação da maioria das pessoas. Isto acontece porque é muito usual tomar-se como base para a escala espacial a “altura” humana e como base para a escala temporal, a “duração” da vida humana. No entanto os fenômenos geológicos cumula- tivos, bem como as mudanças ocorridas em linhagens ao longo da evolução biológica, tornar-se-ão invisíveis se for usado o “metro” da vida humana para reconhecê-los. Esta problemática tem sido trabalhada por diversos autores que tratam da história geológica de nosso planeta (e.g. Stephen Jay Gould 1993) e foi muito bem apresentada por Guimarães (2001) ao discutir a parte mais antiga da história geológica dos Campos Gerais. O autor demonstrou a mesma preocu- pação aqui expressa ao abordarem-se períodos de tempo tão remotos, pois em parte seu trabalho se refere a épocas coevas ao tema do presente texto: “É imprescindível a todos aqueles inte- ressados na leitura das mensagens gravadas nas rochas, nos fósseis e na paisagem, estarem familiarizados com os termos do calendário geológico. Ao invés de dias, semanas, meses, anos, ou ainda décadas, séculos, milênios usam-se épocas, períodos, eras e éons.” (Gui- marães 2001 p.431). A contagem dos anos, nesses casos, deve ser feita utilizando-se cifras de pelo menos seis zeros no final. Ou seja, especifica- mente neste relato, será utilizada a expressão “milhões de anos” para referir o período em que a região dos Campos Gerais (hoje apre- sentando altitudes razoavelmente elevadas) encontrava-se submersa por um mar primiti- vo. Sugere-se ainda que o leitor não afeito diretamente ao tema consulte uma tabela com a escala do tempo geológico. Uma vez salientada a questão da escala temporal, deve-se ainda estar atento à questão espacial, pois normalmente quanto mais se retorna no tempo geológico, mais se distancia da realidade espacial atual. O leitor verá adiante que a região que hoje engloba os Campos Gerais do Paraná foi, durante o Devoniano, parte de uma bacia marinha que estava localizada mais próxima do Pólo Sul do que no presente. Estudos de ordem paleogeo- gráfica apontam que os continentes encontra- vam-se em posições muito diferentes das atuais, estando a América do Sul ainda unida ao continente africano e a outras massas de terra, como porções da Antártica e da Austrália dos dias de hoje, dentre outras (Figura 3.3.1). CAPÍTULO 3 PALEONTOLOGIA DO DEVONIANO DOS CAMPOS GERAIS Elvio Pinto Bosetti “É significativo que todas as datas se tornem mais difíceis de determinar quanto mais se recue para o passado” C.W. Ceram 1971 - Deuses, Túmulos e Sábios

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Retirado do Livro: Patrimônio Natural dos Campos Gerais de Melo, Guimarães e Moro -2007

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Page 1: Capítulo 03 - Paleontologia do DEvoniano dos Campos Gerais

IntroduçãoIntroduzir um capítulo sobre Paleon-

tologia pode se tornar uma tarefa inútil se logode início o paleontólogo não tentar acertar “orelógio do tempo geológico”, com o qual estáhabituado a trabalhar e o “relógio do tempohistórico”, a que o leitor comum é normalmen-te afeito. É preciso, antes de tudo, compreen-der que cada fenômeno natural ocorre em suaprópria escala de espaço e tempo e que muitosdeles fogem ao domínio da imaginação damaioria das pessoas. Isto acontece porque émuito usual tomar-se como base para a escalaespacial a “altura” humana e como base para aescala temporal, a “duração” da vida humana.No entanto os fenômenos geológicos cumula-tivos, bem como as mudanças ocorridas emlinhagens ao longo da evolução biológica,tornar-se-ão invisíveis se for usado o “metro”da vida humana para reconhecê-los.

Esta problemática tem sido trabalhadapor diversos autores que tratam da históriageológica de nosso planeta (e.g. Stephen JayGould 1993) e foi muito bem apresentada porGuimarães (2001) ao discutir a parte maisantiga da história geológica dos CamposGerais. O autor demonstrou a mesma preocu-pação aqui expressa ao abordarem-se períodosde tempo tão remotos, pois em parte seutrabalho se refere a épocas coevas ao tema dopresente texto:

“É imprescindível a todos aqueles inte-ressados na leitura das mensagens gravadas

nas rochas, nos fósseis e na paisagem, estaremfamiliarizados com os termos do calendáriogeológico. Ao invés de dias, semanas, meses,anos, ou ainda décadas, séculos, milêniosusam-se épocas, períodos, eras e éons.” (Gui-marães 2001 p.431).

A contagem dos anos, nesses casos,deve ser feita utilizando-se cifras de pelomenos seis zeros no final. Ou seja, especifica-mente neste relato, será utilizada a expressão“milhões de anos” para referir o período emque a região dos Campos Gerais (hoje apre-sentando altitudes razoavelmente elevadas)encontrava-se submersa por um mar primiti-vo. Sugere-se ainda que o leitor não afeitodiretamente ao tema consulte uma tabela coma escala do tempo geológico.

Uma vez salientada a questão da escalatemporal, deve-se ainda estar atento à questãoespacial, pois normalmente quanto mais seretorna no tempo geológico, mais se distanciada realidade espacial atual. O leitor veráadiante que a região que hoje engloba osCampos Gerais do Paraná foi, durante oDevoniano, parte de uma bacia marinha queestava localizada mais próxima do Pólo Sul doque no presente. Estudos de ordem paleogeo-gráfica apontam que os continentes encontra-vam-se em posições muito diferentes dasatuais, estando a América do Sul ainda unidaao continente africano e a outras massas deterra, como porções daAntártica e daAustráliados dias de hoje, dentre outras (Figura 3.3.1).

CAPÍTULO 3PALEONTOLOGIA

DO DEVONIANODOS CAMPOS GERAIS

Elvio Pinto Bosetti

“É significativo que todas as datas se tornemmais difíceis de determinar quanto mais se recue para o passado”

C.W. Ceram 1971 - Deuses, Túmulos e Sábios

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Este supercont inen te , denominadoGondwana, por várias vezes foi invadido pelooceano durante sua longa existência (no caso,o antigo Oceano Panthalassa, cujo remanes-cente forma o atual Oceano Pacífico). Mascomo se sabe? Que ferramentas a ciênciapossui para reconstituir um passado tão distan-te? Quais as relações que eventos do passadogeológico poderiam ter com os tempos moder-nos?

A maioria das perguntas aqui formula-das e tantas outras ainda possíveis deverão serrespondidas no decurso desta exposição. Afim de não fatigar o leitor com a repetição, serámencionado desde já só aquilo que for demolde a projetar luz sobre as dificuldades e osmétodos da Paleontologia.

A Paleontologia, como toda ciênciahistórica, avança por meio da reconstrução deum conjunto de fatos contingenciais, expli-cando em retrospecto o que não seria possívelprever de antemão. Se os indícios contidos noregistro geológico forem consistentes, asinterpretações coligidas podem ser tão rigoro-sas e seguras quanto qualquer resultado obtidono domínio da ciência experimental. Portanto,ao se arriscar a reconstituição dos antigosambientes da atual região dos Campos Gerais(e aqui se refere a um passado longínquo,envolvendo cifras temporais elevadas), não seestá muito distanciado da realidade e dos fatosque determinaram a história deposicional daBacia Sedimentar do Paraná no PeríodoDevoniano. Este período iniciou a aproxima-damente 400 milhões de anos atrás e é repre-sentado atualmente, em superfície, por aflora-mentos de rocha contendo fósseis em boaparte da região enfocada.

À medida que as ciências modernasevoluem, dá-se conta do quanto realmenteainda se desconhece dos aspectos particularesde nossa história natural. Apesar de se contarcom mais de um século de intensa produçãocientífica gerada por pesquisas sobre aPaleontologia do Devoniano dos CamposGerais, são notórias as surpresas reveladas acada novo achado, ou ainda, na reavaliação

dos conceitos pioneiros.

O Devoniano é o quarto período da EraPaleozóica e teve seu início há mais ou menos400 milhões de anos, terminando há aproxi-madamente 360 milhões de anos, quandocomeçou o período subseqüente, chamado deCarbonífero. O Sistema Devoniano foiestabelecido por Adam Sedgwick (um doseminentes professores de Charles RobertDarwin, Figura 3.1) e R. I. Murchison em1839, para designar pacotes sedimentareslocalizados no Condado de Devon (sudoesteda Inglaterra). Estes sedimentitos de origemmarinha possuem uma paleofauna de coraisque o paleontólogo William Lonsdaleconsiderou evolutivamente intermediáriaentre as faunas dos sistemas Siluriano(subjacente) e Carbonífero (sobreposto).Embora o devoniano marinho tenha sidodefinido em Devon, o local não se mostrouapropriado para fins de correlação à longadistância em decorrência de ambigüidades eda conservação precária de seus fósseis. Emrazão disso, os andares europeus clássicosforam estabelecidos no continente, maisprecisamente no maciço Renano, que incluiparte da região de Ardenas (Norte da França eSudeste da Bélgica), além de regiões limítro-fes àAlemanha.

Após esta fase das pesquisas, váriosandares foram identificados e atribuídos aoSistema Devoniano europeu e americano.Num contexto atual, as rochas devonianas sãoreconhecidas em todos os continentes. Asprimeiras notícias, generalizadas e resumidas,sobre a geologia e a paleontologia do Estadodo Paraná foram dadas por H. Neumann, em1860; H. P. Verecker, em 1862; José eFrancisco Keller, em 1866; e Luther Wagoner,em 1878. No Estado do Paraná, referências aoSistema Devoniano aparecem desde o final doséculo XIX. Em 1875 foi organizada aPrimeira Comissão Geológica do Império doBrasil, cujo planejamento preliminar enfocou

O Devoniano do Estado do Paraná –evolução do conhecimento

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o estudo da Geologia, Paleontologia e dasminas do Império. A direção da comissão foientregue ao geólogo canadense CharlesFrederick Hartt, que chegou ao Brasil pelaquinta vez em 1874, agora para uma estadaprogramada para cinco anos no país (ele haviaparticipado de quatro expedições anteriores,inclusive a Expedição Thayer, chefiada peloentão reputado naturalista Louis Agassiz). Oobjetivo era implantar e dirigir, a convite doImperador D. Pedro II, a Comissão Geológicado Império do Brasil. Para desenvolvimentodo projeto designou alguns assistentes imedi-atos, tais como os geólogos Orville A. Derby,Richard Rathbun e John Casper Branner. Esteprocedimento viria a desencadear o desenvol-vimento dos estudos da geologia brasileira emtodos os seus aspectos, bem como consagraros nomes destes autores pioneiros.

Dentre os membros da comissão desta-cou-se Orville A. Derby, norte-americanonaturalizado brasileiro, considerado o pai dageologia do Brasil. Tanto seu trabalho comosua vida particular o tornariam um vultomemorável. Derby deixou um importantelegado que é evidenciado e reconhecido nãosó pelos importantes estudos geológicos epaleontológicos que ele aqui realizou desdesua juventude (cerca de 173 trabalhos), mastambém pela valiosa contribuição que prestouna organização e construção de importantesentidades técnico-científicas brasileiras. Foipessoa singular, profundo estudioso, hábiladministrador e celibatário confesso.Descontente com as diretrizes da política cien-tífica de seu tempo, encerrou sua vida deforma trágica, cometendo suicídio em 27 denovembro de 1915, no Rio de Janeiro.

Richard Rathbun, geólogo formado naCornell University (EUA), em 1871 tornou-seo responsável pela coordenação de trabalhoscientíficos da referida comissão. Foi secretá-rio assistente do Instituto Smithsoniano em1897 e curador do Museu NacionalAmericano em 1899. John Casper Branner erauma autoridade reconhecida na geologia depaíses sul-americanos, especialmente do

Brasil. Durante sua última década de vidaencabeçou várias expedições pelo país.

Além destes, os exploradores EliasPacheco Jordão, Luther Wagoner, Franciscode Freitas e Marc Ferrez fizeram parte destacomissão, os últimos atuando diretamente nostrabalhos de campo (cf. Lange 1954).

No ano de 1876, Charles F. Hartt, entãoempenhado no reconhecimento da bacia car-bonífera do Estado de Santa Catarina encarre-gou o auxiliar Luther Wagoner de percorrerparte do Estado do Paraná. Durante estaexcursão, Wagoner investigou o Município deGuarapuava, localidades com ocorrências decarvão, exposições de rochas calcárias nosegundo planalto (Grupo Passa Dois) e aGruta de Açungui. No Município de PontaGrossa encontrou alguns fragmentos fósseisque foram identificados posteriormente porOrville A. Derby e Richard Rathbun comosendo de provável idade devoniana.

Outra excursão foi realizada no Estadodo Paraná no ano de 1877. Desta vez o próprioOrville Derby visitou as localidades fossilífe-ras do Município de Ponta Grossa, descober-tas no ano anterior por Luther Wagoner. Orelatório desta excursão noticiou a presençade uma espécie de ofiuróide, moluscos bival-ves, os braquiópodes

e, muito semelhantes aos já identifica-

dos no Devoniano do Estado do Amazonas.E s t e s f ó s s e i s , e m c o n j u n t o c o m

e grande número de pelecípo-des, os últimos provenientes da faixa calcáriado Município de Ivaí, foram os primeirosregistros fósseis genéricos para o Estado doParaná.

Infelizmente, antes que o trabalho fosseconcluído, Hartt contraiu febre amarela efaleceu em 1878. Sua morte, segundo osrelatos da época, ocorreu de forma rápida etrágica (aproximadamente 48 horas). Aos 38anos de idade, abandonado pela família quenão havia suportado as condições precárias doRio de Janeiro do século XIX e que haviaretornado para os Estados Unidos, Hartt

Lingula, Discina,Spirifer, Rhynconella, StreptorhyncusVitulina

Lepidodendron

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deixara um vasto e importante legado para ainstitucionalização das geociências no Brasil.

No ano de 1878, Orville A. Derbypublicou o trabalho que seria o primeiro atratar com alguma extensão da geologia doDevoniano do Estado do Paraná. Bergamaschi(1999 p.40) refere-se ao mesmo como “Aprimeira notícia de caráter científico sobre aexistência de rochas devonianas no sul doBrasil”. Nesta época Derby reuniu umagrande coleção de fósseis devonianos eenviou ao paleontólogo norte-americano JohnMason Clarke do New York State Museum(Albany). Clarke foi estudante profundo eintérprete agudo do significado daPaleontologia de invertebrados; autor dediversas e importantes memórias, especial-mente das faunas devonianas; administradorcapaz e precursor dos estudos paleontológicosdo Devoniano brasileiro. Esta coleçãoretornou posteriormente ao Brasil e é a refe-rência paleobiológica mais completa doperíodo. Encontra-se depositada na Divisãode Paleontologia do Departamento Nacionalde Produção Mineral (DNPM) na cidade doRio de Janeiro.

A região de afloramentos de rochasdevonianas do Estado do Paraná é distinguidapor ser um dos “laboratórios naturais” maisinvestigados da Paleontologia brasileira.Desde os primeiros registros no ano de 1876,os arenitos e folhelhos desta idade geológicaocorrentes na região fisiográfica dos CamposGerais, em conjunto com seu singular e ricoconteúdo fossilífero, têm sido alvo de umgrande número de trabalhos que somadosrepresentam mais de um século de investiga-ção científica. Por esse motivo serão citadosaqui apenas trabalhos considerados comofundamentais para o entendimento daevolução do conhecimento sobre aPaleontologia do Devoniano dos CamposGerais.

White (1908), publicou o relatório finalda “Comissão de Estudo das Minas de Carvãode Pedra do Brasil” onde aparece uma nota deJohn M. Clarke, listando uma série de fósseis

provenientes do Estado do Paraná. O estudodestes fósseis levou Clarke a caracterizar ascamadas de onde eram provenientes como do“Devoniano Inferior” (atualmente são regis-trados ainda andares do Devoniano Médio eSuperior). No mesmo relatório White ressal-tou que “imediatamente abaixo das camadascarboníferas no Estado do Paraná, e discor-dante com estas, encontram-se uma série derochas com fósseis devonianos bem caracteri-zados. Estas camadas afloram perto de PontaGrossa, no mesmo estado, bem como emmuitas outras localidades ao longo das cabe-ceiras do Rio Tibagy”.

As denominações que viriam a ser con-sagradas pelo uso por grande parte dos autoressubseqüentes a esta época foram introduzidaspor Euzébio de Oliveira (1912), que propôs aseguinte subdivisão litoestratigráfica a partirda base: “grés de Furnas”, “schisto de PontaGrossa” e “grés de Tibagy”. Maack (1947)acrescentou uma quarta unidade devoniananesta subdivisão, Folhelhos São Domingos,presentes no topo da seção.

John Mason Clarke (1913), publicou amonografia que se tornaria o guia das descri-ções paleontológicas do Devoniano da Baciado Paraná (Figura 3.2). Este trabalho pioneironão só refere à posição sistemática dos fósseisdevonianos como apresenta ainda considera-ções sobre Paleobiogeografia, Paleogeografiae Paleoecologia. Paralelamente ao trabalho deClarke e também em 1913, Roman Kozlowskipublicou obra tratando da mesma temática.Mais uma vez o desconhecimento mútuo depesquisas sobre o mesmo assunto (muitocomum nesta fase de trabalhos pioneiros)interferiria na evolução do conhecimentocientífico. O trabalho de Kozlowski ficararelegado ao esquecimento, pelo menos para aBacia do Paraná. A prioridade dos termosacabou sendo conferida a Clarke, devido àpublicação de seu trabalho anterior ao deKozlowski (março e novembro de 1913, res-pectivamente).

Após esta época de grande produçãocientífica, os trabalhos sobre os fósseis devo-

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nianos do Paraná começaram a escassear nabibliografia especializada. Muitos autoresabordaram a geologia do estado e quandofizeram referência aos fósseis, mencionaramas espécies previamente descritas por Clarke(1913). A formalização das unidades devonia-nas paranaenses aconteceu com SetembrinoPetri em 1948, onde foram propostas as deno-minações Formação Furnas e Formação PontaGrossa para designar a base e o topo daseqüência, respectivamente. O autor ocupou-se ainda da distribuição da fauna nas camadasdevonianas de Ponta Grossa, Tibagi,Jaguariaíva, Piraí do Sul e Ventania (região deLambedor), todas do Estado do Paraná. Outroautor que merece destaque nesta fase das pes-quisas foi Du Toit (1952), que sumarizou aestratigrafia devoniana do Paraná, enfatizan-do suas correlações com os depósitos do Cabo(África do Sul), corroborando a hipótese deque os continentes encontravam-se unidosnesse período.

No ano de 1954 foram publicadosvários trabalhos tratando da geologia e pale-ontologia devonianas da Bacia do Paraná.Entre eles destacam-se os de Caster, Almeidae Sommer, além dos de Bigarella, em que oautor apresentou um esboço geológico e pale-ogeográfico para o estado homônimo e final-mente Lange, onde um detalhado histórico daspesquisas foi apresentado.

Frederico Waldemar Lange merece umtratamento especial nesta abordagem históri-ca por ter iniciado sua carreira como autodida-ta e ter atingido grande expressão científica aolongo de seu trabalho. Nascido na cidade dePonta Grossa no ano de 1911, começou suasatividades paleontológicas como amador,devido a sua formação original como conta-dor, administrador e economista. Atuou noMuseu Paranaense como assistente e, posteri-ormente, como paleontólogo, onde publicouum grande número de trabalhos tratando dapaleontologia e da geologia do Estado doParaná. Acabou por exercer atividades junto àPETROBRAS como geólogo de superfície esubsuperfície. Atuou como micropaleontólo-

go (área pela qual se especializou) e contribu-iu sobremaneira para o conhecimento doDevoniano da Bacia do Paraná. Frederico W.Lange e Setembrino Petri (1967) viriam aconsagrar a nomenclatura litoestratigráfica doDevoniano paranaense, onde propuseramuma divisão tripartite para os sedimentitos daFormação Ponta Grossa, constituídas a partirda base pelos membros Jaguariaíva, Tibagi eSão Domingos. A partir daí a nomenclaturaestratigráfica do Devoniano da Bacia doParaná tornou-se marcada por intensa discus-são.

Bergamaschi (1999), observou que nasantigas referências da pesquisa sobre oDevoniano da Bacia do Paraná, ou seja,aquelas anteriores à década de 1960, oenfoque principal das análises fora essencial-mente descritivo. A partir desta décadasurgiram trabalhos que procuraram abordar osaspectos genéticos das rochas devonianas.

O mesmo pode-se dizer dos trabalhosque abordaram a paleontologia do período. Apartir da monografia de Clarke (1913) atémeados da década de 1950, foram muito rarosos estudos que se preocuparam com aspectospaleoecológicos, a grande maioria prenden-do-se ao estudo sistemático dos fósseis emrevisão às publicações precedentes. Forapreciso pouco menos de meio século emrelação ao trabalho de Clarke (1913) para queBoucot e Gill (1956), iniciassem o que sepoderia denominar uma “época moderna daspesquisas”, ao estabelecerem uma diferencia-ção genérica de um fóssil abundante e hojereconhecidamente característico da faunadevoniana aus t ra l : o braqu iópode

. Esta épocaculminou com a introdução de um conceitoquantitativo do problema do provincialismofaunístico dos mares devonianos doHemisfério Sul. O termo “ProvínciaMalvinocáfrica”, que definiria parte da faunadevoniana austral, passou a ser constante nabibliografia.Aceito por alguns autores e muitodiscutido por outros, o termo define um isola-mento geográfico para esta fauna marinha e é

Australocoelia tourtelloti

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embasado em caracteres morfológicos e gené-ticos (e.g. Melo 1985).

A partir da década de 80, novos estudosforam desenvolvidos à luz dos novos conceitosda Estratigrafia (sensu Miall 1990 e 1997) eapoiados em dados mais reveladores, princi-palmente de subsuperfície. Dentre eles desta-cam-se Assine (1996 e 2001) e Bergamaschi(1999). Referentes à Paleontologia váriosautores voltaram sua atenção para os fósseisdevonianos: Boucot e Caster (1984), Morsch(1984a), Barcellos Popp (1985), Melo (1985),Quadros (1987), Bosetti (1989, 1989a, 1989b),Ciguel (1989), Kotzian (1995) e Machado(1999). Este período foi marcado por trabalhosque, com raras exceções, apenas desenvolve-ram conceitos em taxonomia e sistemática.

Representantes de uma fase maisrecente das pesquisas destacam-se os traba-lhos de Ghilardi e Simões (2000a), Leme et al.(2000), Rodrigues et al. (2000), Simões et al.(2000), Rodrigues (2002), Bosetti (2004),Ghilardi (2004), Bosetti et. al. (2005), Simõeset. al. (2006) e Zabini (2007). Estes estudosbuscaram uma reavaliação dos conceitossobre o devoniano paranaense sob a perspecti-va de um novo paradigma de talhe genético epaleoecológico, incorporando o arcabouçoconceitual da Estratigrafia de Seqüências, queserá referida adiante.

Em resumo, pode-se dizer que no finaldo século XIX e início do século XX umaintensa fase de trabalhos descritivos e classifi-catórios refletiu as tendências da HistóriaNatural naquela época de trabalhos pioneiros.Posteriormente, entre as décadas de 1940 e1980, uma segunda fase de estudos. Nesteciclo se buscou por respostas e questionamen-tos de caráter interpretativo, onde foram abor-dados temas e proposições de modelos envol-vendo a autoctonia ou aloctonia dos fósseis,seu aparente endemismo e suas relações comoutras bacias sedimentares contemporâneas.Nesta época os estudos também sofreramavanços na área de Sedimentologia eEstratigrafia e a Paleogeografia do períodocomeçou então a ser desvendada.

No atual estágio do conhecimentosobre o Devoniano sul-brasileiro, observa-seuma tendência à reavaliação dos conceitosanteriormente concernidos, bem como a rein-vestigação dos jazigos fossilíferos sob a pers-pectiva da Tafonomia (sub-sistema daPaleontologia que se ocupa das fases que umorganismo passa entre sua morte e seu soterra-mento final) e da Estratigrafia de Seqüências.Esta nova abordagem possui talhe de interpre-tação genética e constitui-se numa fase pro-missora para a análise paleoambientalmediante aplicação de técnicas avançadas deinterpretação paleontológica.

AEstratigrafia é a área da Geologia quese ocupa do estudo das camadas (estratos) quecompõem a crosta terrestre. Segue fundamen-talmente dois princípios básicos: Princípio daSuperposição de Camadas e Princípio doAtualismo. O primeiro rege que as camadasencontradas mais abaixo na crosta terrestresão mais antigas que as camadas sobrepostas,enquanto o segundo que fenômenos nopresente também devem ter acontecido nopassado.

Unidades estratigráficas são utilizadaspara se classificar os corpos rochosos segundodiversos critérios. A litoestratigrafia se ocupada classificação conforme sua constituiçãolitológica, enquanto a bioestratigrafia e a cro-noestratigrafia utilizam, respectivamente, oscritérios de distribuição dos fósseis nascamadas e o tempo ocorrido para a deposiçãodas mesmas.

As unidades litoestratigráficas doDevoniano da Bacia do Paraná foram formali-zadas por Setembrino Petri no ano de 1948.Neste trabalho, o autor discutiu a grandevariabilidade de designações até entãopropostas na nomenclatura estratigráfica doDevoniano do Paraná. Adotou a designação“Série Paraná”, rejeitando o termo “SérieCampos Gerais”, empregado por Derby(1878). Apresentou ainda a seguinte sucessãoestratigráfica:

Estratigrafia

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Numa abordagem mais atualizada doconhecimento e seguindo os novos conceitosda Estratigrafia de Seqüências, apoiados emdados principalmente de subsuperfície,Assine (1996, 2001) e Bergamaschi (1999 e2001) subdividiram as camadas devonianasem seqüências deposicionais que marcam asvariações do nível eustático do mar à época dadeposição dos sedimentos.

Os fósseis devonianos dos CamposGerais estão contidos essencialmente nascamadas da Formação Ponta Grossa. AFormação Furnas (mais antiga e com idadeatingindo do fim do Período Siluriano aoDevoniano) não apresentou até o momentomacro-fósseis animais, a não ser pistas erastros de invertebrados.

A Paleogeografia pode ser definidacomo o estudo e descrição da geografia físicado passado geológico, tal como a reconstruçãohistórica de uma área específica da superfícieda Terra em um momento particular nopassado geológico. Estudos paleogeográficostêm sido desenvolvidos na tentativa de sereconstituir a configuração da Terra nodecorrer de sua história.

Aorigem e a distribuição da fauna devo-niana dos Campos Gerais foi, com certeza,fortemente controlada pela peculiar paleogeo-grafia do período. Interpretações paleogeográ-ficas para esta idade, no Hemisfério Sul, foramsugeridas desde o final do séc. XIX. Frech(1897), seguindo modelo do paradigma fixistaentão em voga (ou seja, que não levavam emconta que os continentes mudam de posição),indicou uma porção de terra de idade devonia-na no local que considerava como sendo ooceano “Atlântico Austral”. Esta porçãoemersa (denominada “Ilha Atlântico Austral”)forneceria sedimentos aos epicontinentes devo-nianos das atuais Ilhas Falkland (Malvinas) eda América do Sul oriental. Este trabalho con-siderou ainda que o continente sul-americanoestaria totalmente submerso durante oDevoniano, a não ser por uma estreita faixa deterras emersas situada na extensão das atuaisGuianas até a Bolívia setentrional. Apesar deser um trabalho antigo e seguindo conceitos jáabandonados pela geologia, a interpretaçãodas áreas fontes de sedimento para o mar devo-niano sul-americano coincide com a deestudos atuais.

Segundo Melo (1985), a Paleogeografiadevoniana inferida da distribuição mundial de

Paleogeografia

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Alguns anos depois Lange e Petri (1967), ao revisarem a estratigrafia devoniana doParaná definiram a seguinte seqüência estratigráfica, utilizada até os dias de hoje:

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indicadores climáticos de natureza lítica (car-bonatos, evaporitos, fosforita, bauxita, carvão)situaria a região de deposição dos sedimentosmarinhos aqui estudados justamente na porçãosubpolar a polar do supercontinenteGondwana (Antártica e parte meridional daAmérica do Sul, além da África do Sul), que seencontrava então inundada por um mar epicon-tinental, bastante frio, de sedimentação emi-nentemente clástica (Heckel e Wyitzke 1979).

De modo concordante, a maioria dasreconstruções paleogeográficas do Devonianoexistentes na literatura situam a área ocupadapela paleofauna em estudo, em paleolatitudes

superiores a 45 Sul, sendo que as regiões cor-respondentes à Bacia do Paraná, África do Sule Antártica estariam em latitudes superiores a

60 S, com o Pólo Sul ocupando uma posiçãovariável em algum ponto do sul do continenteafricano (sensu: Talent et al. 1972; Cooper1977; Eldredge e Ormiston 1979; Boucot eGray 1979; Heckel e Witzke 1979; Scotese etal. 1979; Zonenshayn e Gorodnitsky 1977;Scotese e Mckerrow 1990; e Young 1990) (verFigura 3.3-1).

A reconstituição da antiga cidadebíblica da Babilônia, localizada na região daMesopotâmia, efetuada pelo arqueólogoalemão Robert Koldewey no ano de 1899 é umexemplo clássico do que se pretende expressarnesta parte do texto.

Koldewey escavou a colina de entulhosonde se supunha que estivessem localizadas asruínas da Babilônia (atual Iraque) por mais de20 anos. Mas qual Babilônia ele encontraria?Aprimitiva do famoso rei legislador Hamurabi?A Babilônia dos cruéis monarcas assírios? Ouainda do grande Nabucodonosor? Tambémnão foi descartada a Babilônia conquistadapelos persas até a época do rei Dario e que caiufinalmente no domínio macedônico deAlexandre Magno. Estes acontecimentostodos ocorreram no curto espaço de tempo de2.850 a 486 anos antes da era cristã. O leitordeve imaginar que a situação de Koldewey era

realmente delicada. Ele sabia que todas essasfases pela qual o sítio passou, poderiam estarliteralmente “misturadas” naquela imensacolina onde começou a escavar. Na verdade oarqueólogo morreu antes de se decifraremtodos os mistérios da fascinante Babilônia,empreitada que vem sendo desenvolvida até osdias de hoje. Como sempre acontece nasciências históricas, reconstituir épocas passa-das, em qualquer escala, não é tarefa fácil. Esseprocedimento envolve a coleta, a interpretaçãoe a junção de “peças” separadas, como em umcomplicado quebra-cabeças. Foi assim naArqueologia Clássica, que buscava a interpre-tação do mundo na aurora da civilização e éassim na Paleontologia, que remonta a épocasextremamente distantes e que conta com umcomplicador adicional: nenhuma obra de arte enenhuma inscrição estão presentes paraauxiliar o pesquisador.

É buscando ler no antigo “livro dasrochas” que o Paleontólogo procura as basesde suas reconstituições hipotéticas. Estruturassedimentares, texturas litológicas, evidênciasde eventos episódicos e restos orgânicos são asindicações de que dispõe. No entanto aspáginas do livro das rochas não se fazem pre-sentes num só lugar tais como as diversas “Ba-bilônias” de Koldewey. Estão misturadas,adulteradas, mascaradas e espalhadas pordiversos locais, alguns muito distantes uns dosoutros. E o que é pior, muitas páginas ainda nãoforam encontradas e talvez nunca venham aser, pois o registro sedimentar normalmente ébastante incompleto.

A leitura do “livro das rochas” envolveuma gama enorme de ferramentas de estudosdas quais os geólogos e paleontólogos fazemuso quase que constantemente. Sabe-se que o“livro” não está completo, muitas páginasestão faltando e as que se dispõe estão espalha-das por todo o planeta. Por isso, uma das ferra-mentas mais utilizadas é da chamada correla-ção de camadas. Camadas depositadas emambientes e regiões semelhantes podem conterindícios de vida pretérita também semelhante.Muitos continentes que atualmente encon-

o

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Paleoambientes

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tram-se muito afastados geograficamente, nopassado geológico já estiveram unidos.Aplicando-se todas as ferramentas de interpre-tação disponíveis pode-se tentar visualizar ascondições paleoambientais de qualquer épocapassada com relativa precisão.

No presente caso, basta o leitor visuali-zar o mapa da Figura 3.3-1 para entender comoos continentes estavam distribuídos de formadiferente da época de hoje. A atual região dosCampos Gerais encontrava-se situada emelevadas latitudes e portanto o clima deve tersido bem mais frio do que no presente. Os sedi-mentos existentes, referidos à idade devonia-na e que ocorrem por toda a região, indicamindubitavelmente que foram depositados emregime de ambiente marinho. Isso se dá pelaabundante paleofauna preservada nestes sítios,com a destacada presença de trilobites e bra-quiópodes, ambos animais marinhos, sendo ossegundos habitantes deste ambiente até os diasde hoje.

Devido a estas evidências dois fatorespaleoambientais já podem ser inferidos:

1. A região dos Campos Gerais foi, durante oDevoniano, fundo de mar.

2. Este mar caracterizou-se por apresentartemperaturas baixas. Ou seja, era um marmuito frio.

Outros indícios podem ainda corroborara hipótese acima. Sabe-se hoje que, quantomais elevadas forem as temperaturas mari-nhas, maior será a quantidade de bicarbonatode cálcio em solução na água. Este bicarbonatoé utilizado por muitos organismos marinhosque o transformam em carbonato de cálcio,que será o componente das carapaças ouconchas protetoras de seus corpos moles.Moluscos e braquiópodes utilizam-se destemeio em grande parte de seus representantes.Deste fato pode-se concluir que quanto maior adisponibilidade de bicarbonato de cálcio maiorpoderá ser a espessura das conchas e carapa-ças. Nos mares equatoriais, de águas muitoaquecidas, são comuns as conchas apresentan-do grande volume de material carbonático,

com ornamentações protuberantes e engrossa-das. Já nos mares mais frios, as conchas apre-sentam-se muito finas e quase sem ornamenta-ção.

Seguindo-se esta linha, ao seremobservadas as conchas dos fósseis da regiãoenfocada (ou pelo menos as impressões eespaços deixados por elas), nota-se que sãobastante finas e que as ornamentações sãomuito modestas. Isso pode auxiliar na interpre-tação deste antigo meio, ou seja, não haviagrande quantidade de bicarbonato de cálciodisponível para os invertebrados da fauna mal-vinocáfrica.

Outro fator paleoambiental interes-sante é tentar-se inferir quais as profundidadesque este antigo mar apresentou. O problema dabatimetria do mar devoniano sul-brasileiro jáfoi motivo de discussão científica. O fato é queeste mar localizou-se “sobre” o continente deGondwana, isso ocorreu por meio de diversastransgressões marinhas, pontuadas por regres-sões de menor intensidade durante todo oPeríodo Devoniano. Estas águas invadiramregiões rebaixadas do continente, pertencentesà Bacia Sedimentar do Paraná. A Bacia doParaná é uma bacia intra-cratônica, que estálocalizada no meio continental e portanto ofundo desse mar não foi o fundo típico dosmares e oceanos abertos. Estes fatos podemparecer complicados ao leitor numa primeirainstância, mas são necessários para a compre-ensão dos paleoambientes. Mares epi-continentais, normalmente, não deveriam sermuito profundos e por esse fator a bibliografiaespecializada normalmente refere o mar devo-niano da Bacia do Paraná como um mar raso,que não deveria ultrapassar a cifra de 50metros de profundidade.

Os estudos mais recentes têm discuti-do essa concepção de mar raso, pois atualmen-te os sedimentitos da Formação Ponta Grossasão considerados como “tempestitos distais” eos folhelhos negros (um tipo específico derocha sedimentar) aí ocorrentes estariamabaixo do nível de base de ondas de tempesta-de, onde se depositariam sedimentos de costa-afora ( ). Disso tudo se infere que o maroffshore

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devoniano da região dos Campos Geraispoderia ter atingido profundidades bem superi-ores a 50 metros e portanto foi um mar epicon-tinental profundo nos vários momentos detransgressão marinha e mais raso quando dasregressões (respectivamente episódios desubida e de descida do nível do mar). Esteseventos estão registrados nas rochas quecompõem os afloramentos da região.

Quanto à fauna do Período Devonianoem escala mundial, pode-se dizer que foi muitoabundante e diversificada em todos os conti-nentes. Os invertebrados são aqueles descen-dentes da fauna que caracterizou a “explosãocambriana” há pelo menos 530 milhões deanos atrás. Já os vertebrados foram fortementerepresentados neste período pelo grupo dospeixes, que nunca teriam sido tão abundantes ediversificados como nesta época da história doplaneta. Alguns livros chegam a definir oPeríodo Devoniano como o “império dospeixes”. Primitivas plantas terrestres já sãocomuns ao final deste intervalo e com elasanfíbios e invertebrados terrestres (já presentesno período anterior – Siluriano) atingem seupleno desenvolvimento. No entanto, não seencontra toda essa paleobiodiversidade noregistro devoniano dos Campos Gerais.Quanto a aparente ausência (ou achadosdúbios) de fauna e flora terrestres ou semi-aquáticas na região pode-se presumir que jus-tamente pelo registro local ser indicativo deáguas mais profundas, estas formas não teriamsido aqui desenvolvidas. Por outro lado, aaparente ausência de peixes nos estratros pros-pectados nos últimos 127 anos de pesquisa éum fato realmente intrigante.

Talvez condições ambientais adversasà colonização destas águas pelos peixes, taiscomo temperatura da água, ausência oucarência de luz possam justificar o fato. Ouainda, quem sabe, os processos de fossilizaçãoatuantes não tenham permitido o registro dessegrupo nas camadas. Essa segunda hipóteseparece pouco provável, pois estruturas inverte-bradas muito delicadas ficaram registradas nospacotes sedimentares e não há um motivo justi-

ficável para isso não ter acontecido tambémcom as estruturas dos vertebrados. Por outrolado, peixes são animais vágeis, ou seja,possuem grande potencial de mobilidade e seatualmente os pacotes sedimentares daFormação Ponta Grossa são interpretadoscomo produto de tempestades, estes compo-nentes da fauna teriam se afastado dos locaisde soterramento rápido. Enfim, a ciência pale-ontológica é assim mesmo, grandes enigmassempre perturbarão os pesquisadores e apenasnovos achados poderão elucidar essas ques-tões.

A fauna de invertebrados encontradanos Campos Gerais, bem como em outrasregiões do Brasil (região Centro-Oeste) e nasporções meridionais da América do Sul eÁfrica e porção norte da Antártica, apresentamcaracterísticas únicas. São diferenciadas taxo-nomicamente das demais faunas devonianasmarinhas do globo e apresentam um indubitá-vel padrão de endemismo.

O endemismo é um fenômeno biogeo-geráfico no qual uma espécie ocorre exclusiva-mente em determinada região geográfica. Nosdias atuais ocorre em regiões onde as condi-ções do meio ambiente são também exclusi-vas, incluindo fatores de isolamento reproduti-vo entre as populações residentes com respeitoàs populações externas a esse meio.

O notório endemismo da fauna devoni-ana dos Campos Gerais foi percebido peloscientistas há muitas décadas e originou umadesignação característica para os fósseisadiante apresentados. Este grupo de inverte-brados marinhos foi caracterizado como per-tencente a uma província faunística, aProvíncia Malvinocáfrica.

A derivação do termo malvinocáfrico( ) surgiu da reunião dosnomes de duas regiões de ocorrência da fauna“austral” de Clarke (1913): as Ilhas Malvinas ea província do Cabo (África do Sul).

O vocábulo “Malvinocáfrico” foi intro-duzido por Richter (1941), objetivando princi-

A fauna malvinocáfrica

malvinocaffrische

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palmente substituir o inadequado adjetivo“austral”, anteriormente utilizado por Clarke(1913).

Este termo foi criado para definir ecaracterizar a fauna de invertebrados marinhosocorrentes nas formações devonianas de boaparte do hemisfério sul. Sua abrangência foirestritiva no início, sendo aplicável apenas aalguns elementos da fauna, mas a tendênciaatual é incluir nesta designação todos os ele-mentos faunísticos presentes. O termo “aus-tral”, empregado por John Clarke em 1913para definir os invertebrados marinhos devoni-anos daAmérica do Sul, tornara-se inadequadopelo fato de que o uso do mesmo indicaria quetoda fauna devoniana do Hemisfério Sul teriacaráter paleobiogeográfico exclusivamente“austral”. Isso não poderia ser verdade, umavez que características morfológicas de fósseiseuro-asiáticos (boreais) em faunas da NovaZelândia e Austrália já eram conhecidas. Ouseja, o vocábulo malvinocáfrico identifica osinvertebrados fósseis do sul da América do Sule África do Sul como pertencentes a umconjunto faunístico único dentre as demaisfaunas de outros locais do globo durante oPeríodo Devoniano.

A Bacia do Paraná foi a sede, no Brasil,da fauna da Província Malvinocáfrica, tambémdenominada de Domínio Malvinocáfrico (Mal-vinokaphric Realm). Esta província floresceuessencialmente no hemisfério sul (América doSul,Antártica e África do Sul).

Em oposição às entidades zoogeográfi-cas contemporâneas que dominavam os maresrasos do Hemisfério Norte e da Oceania, deáguas mais aquecidas, a referida provínciacaracterizou-se por apresentar uma baixadiversidade faunística, em que relativamentepoucos taxa seriam bem representados pornumerosos indivíduos com ampla dispersãoregional. Esta fauna peculiar habitou regiõesde águas provavelmente frias, que entãoocupavam porções do atual território brasilei-ro, sul do Peru, Bolívia, Paraguai, Uruguai,Argentina e Ilhas Malvinas (Falklands),Antártica e África do Sul.

A Província Malvinocáfrica caracteri-zou-se sobretudo pela singularidade e baixadiversidade das faunas de braquiópodes e trilo-bites que no Devoniano dominaram certasregiões do hemisfério sul. Na moderna regiãodos Campos Gerais são representantes destafauna alguns gêneros de trilobites, braquiópo-des, cnidários, equinodermos, vermes polique-tos, moluscos pelecípodes, moluscos gastrópo-des, moluscos cefalópodes dentre outrosgrupos taxonômicos. Todos aparentementeadaptados a condições de águas frias e escurascom aporte de sedimentos terrígenos emgrande escala.

Tentou-se aqui resumir o conhecimentosobre os fósseis devonianos dos CamposGerais e seu provável ambiente de vida. Estatarefa envolveu a inclusão de conceitos demuitas áreas do conhecimento. Sabe-se que osestudos do Devoniano sul-brasileiro vêm seacumulando já de longa data, mas entende-setambém que sua conclusão ainda está muitolonge de acontecer. A cada novo achado fóssil,a cada nova descoberta de afloramentos, novashipóteses têm sido construídas, discutidas etestadas.

Talvez a Paleontologia nunca consigafornecer todas as respostas necessárias, maspode-se ter certeza de que boa parte desta fas-cinante história – ocorrida em um tempo tãodistante, mas que deixou suas marcas nasrochas onde hoje são construídas as fundaçõesda sociedade moderna – já se encontra parci-almente desvendada.

Atualmente os estudos paleontológicose estratigráficos do Devoniano sul-brasileirosão desenvolvidos, principalmente, pelasseguintes instituições: Universidade Federaldo Rio Grande do Sul, Universidade Federalde Santa Maria, Universidade Federal do Riode Janeiro, Universidade de São Paulo,Universidade Estadual do Rio de Janeiro,Universidade Estadual Paulista Julio deMesquita Filho (UNESP) e UniversidadeEstadual de Ponta Grossa.

Considerações Finais

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Orville Derby (1851-1915), John Casper Banner (1850-1922) e Richard Rathbun (1852-1918) foram os principais integrantes daComissão Geológica do Império.

John Mason Clarke (1857-1925), autorda obra “Fósseis Devonianos doParaná -1913”

Euzébio de Oliveira (1882-1939)autor pioneiro da sub-divisão litoes-tratigráfica do Devoniano do Paraná Frederico Waldemar Lange (1911-

1988), paleontólogo paranaense degrande notoriedade nos estudosdevonianos do Estado do Paraná

Figura 3.1

O Sistema Devoniano foi estabelecido por Adam Sedgwick (1785-1873), professor de Charles Robert Darwin (1809 - 1882), e RoderickImpey Murchison(1792 - 1871) no ano de 1839, para designar pacotessedimentares localizados no Condado de Devon (sudoeste daInglaterra).

No Brasil, o Devoniano foi inicialmente re-ferenciado por Charles Hartt, responsávelpela Comissão Geológica do Império.

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Figura 3.2: Fósseis devonianos do Paraná: 1.Braquiópodes : a. b. c. e.Notiochonetes; f. g. 2. Moluscos: a. b. ; c. ed. e. f. e g. h 3. Artrópodes Trilobita: a. Calmoniideos;b. Homalonitídeos.4.Equinodermas: a.Asteróides; b. Ofiuróides

Australocoelia; Schuchertella; Australospirifer;d. Derbyina;Orbiculoidea; Lingula. Cardiomorpha; Pleurodapis Orthoceras Kionoceras;

Diaphorostoma; Plectonotus; Nuculites; Solemya.

1a 1b1c 1d

1e 1f

1g

2a

2b2c

2d2e

3a3b

2f 2g

2h

4a 4b

Fonte: Clarke, 1913

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Figura 3.3: 1. Mapa paleogeográfico do Devoniano (modif. de Assine (1996). 2. Afloramento da Formação Ponta Grossa.3. - Formação Ponta Grossa. 4. Trabalho de campo - coleta. 5 e 6. Concentrações fossilíferas. 7. Pistas fósseis -8. Trilobite calmoniideo 9. Estrutura sedimentar HCS ( ), indicativa de tempestade.

Conularia Zoophycos.. hummocky cross stratification

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* Nestes títulos poderão ser encontradas as referências dos demais trabalhos citados.

offshore–

Bibliografia Sugerida*

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