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CapaEnrique Coimbra

PreparaçãoEnrique Coimbra

RevisãoEnrique Coimbra

Primeira edição.Rio de Janeiro, fevereiro de 2014.

Todos os direitos reservados a Enrique Coimbrawww.facebook.com/enriquesemhwww.enriquecoimbra.tk

Os Hereges de Santa Cruz, Volume 1www.facebook.com/osheregesdesantacruzwww.osheregesdesantacruz.tk

E N R I Q U E C O I M B R A

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Agradecimentos

Preciso agradecer por ter como fadas madrinhas as amazonas da famíliaMacedo, Noely e Marly, minha mãe e a mãe dela (que é minha mãe duasvezes), por compreenderem o sonho de um moleque que abandonou afaculdade e emprego para viver de miojo e escrever livros num país ondeisso parece tão impossível. Sou feliz por receber amor e confiança dessesdois exemplos magníficos de seres humanos — os melhores que já vi.Amo vocês, velhotas. Agradeço ao Salvador Marques Jr. por ter adorado aideia do livro assim que comecei a soltar informações, me fazendoacreditar em mim nas horas de dúvida. Obrigado, Savior Marks! Atençãoespecial para o Paulo Bessoni, que me entregou uma revisão completa,auxiliando na tarefa masoquista que é ler e reler seu próprio livro por diase dias seguidos. Especialmente se tiver de cortar duzentas páginas, comoeu fiz. Obrigado, moleque! Claro que não vou deixar de lado os incríveisleitores do meu site, o Discípulos de Peter Pan, que seguraram minhacabeça enquanto eu vomitava ansiedade sobre o livro e deixava de postarvídeos no Vlog Sem H e escrever na Terra do Nunca. Obrigado, eternosjovens! Por último (mas nunca, nunca menos importante), a todos osmeus amigos e desconhecidos que curtiram e compartilharam a páginado livro no Facebook. Sou um cara de sorte e sem dinheiro que nasceu nazona sul do Rio, mudou para a zona oeste, se apaixonou pela periferia epela poesia das calçadas. Por isso, tenho que agradecer a essa sociedademaluca, às vezes cruel, mas com tanta gente incrível dando sopa: meto acolher e trago todo mundo para minha vida.

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Sobre Os Hereges de Santa Cruz

O que me fez concretizar esse projeto de 2010 foi minha vontade de leralgo que não encontrava nas livrarias. Por ser fã das bruxas nos moldesdos anos noventa, de fotografias esotéricas do Tumblr e das imagenssinistras encontradas na deep web, queria um livro, série ou filme quemisturasse tudo isso, saindo da fantasia purpurinada ou de bruxinhasdescoladas do ensino médio. Queria puxar a estética de filmes como VHSe A Bruxa de Blair, identificar jovens adultos que não têm o celular doano ou dois reais para lanchar, que roubam cigarros para manterem ovício e não possuem esperança alguma de futuro. Sem falar que morariamna periferia, onde usar preto e ouvir rock é pedir para ser zoado comoalienígena. Seriam tratados com rancor até pela família, dividindo osonho de darem certo na vida sem precisarem trabalhar, através da magia.Com esse poder, se vingariam de todos que caçoaram deles. Então nãoespere amor aqui. Não espere varinhas mágicas ou vocabulário educado.Eles não são “especiais”, não são “Os Escolhidos”. Os hereges não queremagradar ninguém além deles mesmos, pois já aprenderam que só seencaixarão no mundo quando tiverem domínio sobre a vontade dosoutros. Por isso, eles odeiam você. Eles me odeiam. Se acostumaram aesperar o pior das pessoas, mas estão dispostos a morrer por sinais de quevale a pena continuar vivo. Usarão tabuleiros ouija, aceitarão caronas demotoqueiros sadísticos e vão mastigar sua comodidade, seus bons modos.Quando der meia-noite, olhe pela janela. Consegue ouvir as risadas dedeboche? São eles levantando o dedo médio para você. Para todos nós.

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I

Ninguém conseguiria expressar tédio melhor que ele. Olhá-lo com ocigarro pendurado entre os lábios frouxos era apavorante, como encarar umavíbora prestes a cuspir ácido venenoso na sua cara, para derreter tua pele empedaços de gosma flamejante estourando bolhas de pus. Os olhos chateados,firmes e vazios, sempre olhavam para além do que todos podiam ver, paraalém das possibilidades, numa esperança desesperançosa buscando qualquermotivo para continuar respirando.

— Écio — chamou a senhora redonda, baixinha e de cabelos falsamenteloiros colados ao crânio por excesso de gel barato, que provavelmente adeixava chapada por causa do cheiro forte. Fazia isso para tapar a careca dosmais de sessenta anos desperdiçando existência —, podemos conversar?

“Não, vaca”, pensou ele, sem mexer nada além dos olhos que se virarampara o vestido laranja de botijão de gás e, magneticamente, para o dedãoborrado de esmalte preto escapando pela beirada da sandália como umabarata morta. “Quero que você se foda” completou, estapeando do aventalamarelo, cor que destruía a harmonia da camisa e calça pretas, as cinzas docigarro roubado. Tudo preto. Sempre.

— Você podia sorrir mais, pro bem do seu bolso — começou ela, pedindopara que a acompanhasse à mesa de plástico do quiosque do qual eraproprietária. Ele apenas agia como o garçom que não conseguia mentir: a vidaera uma bosta. Não ia se desculpar se alguém discordasse. — Sabe quanto dãode gorjeta pra Pâmela? Mais do que você consegue, filho.

— Não me importo com gorjeta — soltou ele, expirando a fumaçaindiscretamente perto do rosto enrugado dela. — Não gosta do meutrabalho? — perguntou sem querer saber. Nem ela nem as duas garçonetes doquiosque feio na praia poluída gostavam do trabalho dele. Ou dele. Se nãofosse a pele pálida, mesmo que vermelha pelos dias exposta ao reflexoultravioleta do Sol, e a boquinha rosada de um descendente europeu,ninguém sequer lhe dirigiria a palavra. Mas ele era isso, um rostinho brancoque não condizia com o brinco de cruz sacudindo no lóbulo esquerdo ou ascamisas escuras. Era o mastro do preconceito encubado num paíssupostamente livre disso.

— Nã... — pigarreou. Écio quase se surpreendeu por ela não terconseguido mentir de primeira, já que não era flor que se cheirasse. Todomundo sabia o que ela cheirava com a filha gorda no banheiro do quiosque. E

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não, não eram flores. — É pro seu bem. Um dinheirinho a mais, por algunssorrisos, faria diferença na sua caixinha. Gosto do seu trabalho, filho. Querote manter aqui por anos.

A verdade era que ninguém aceitaria quinze horas de trabalho, de segundaa segunda, para ganhar cinquenta reais e aguentar o cheiro daquele canto quesó vendia peixe porque a fritura exalava um odor mais forte que o de bundavindo da baía. Por isso não o demitiu, porque não acharia outro imbecil paraservir pratos, limpar banheiro e aguentar a voz de quem tinha Parkinson nagarganta. Mas isso Écio guardou para si. Precisava engolir sapos para manter opouco de dinheiro que recebia, na tentativa de melhorar uma rotinahumilhante, para não dar satisfações sobre o hobby que cultivava às escuras.

De outras formas, sentia que também podia humilhá-la, mesmo que emsegredo.

— Dia ruim? — o moleque de cabelos ondulados e azuis-turquesaperguntou, depois de oferecer o cigarro aceso para a menina morena acendero dela também.

— Vida ruim. Mas trouxe isso — Écio sacudiu uma garrafinha cheia deágua, se aproximando dos amigos depois da conversa chata com a barata velhae de enrolar mesas e cadeiras com correntes.

— Que bom que te dão água — ironizou a garota, tragandoprofundamente.

— É vodca — Écio olhou para trás, agora que trancavam o quiosque, paraver se tinha alguém olhando para eles. Sempre tinha alguém olhando para eles,os três roqueirinhos de preto sentados no banco de cimento da orlaornamentada. — Põe na bolsa, Guido — disse, jogando a garrafa no colo dogaroto de cabelos azuis. — Vou pegar minha diária e a gente vai pra casa.

— Mas vodca? A gente não vai fazer o ritual hoje? — a não-mais-adolescente escovou as pontas quebradas pela química do descolorante etintura vermelha dos cabelos longos e caramelados, maltratados pela falta devaidade aceitável de uma “rebelde sem causa”.

— A gente leva amanhã, Thaísa. Ninguém pede vodca aqui, só preciseiesvaziar essa garrafinha, despejar álcool dentro, e completar a vodca doquiosque com água. Ninguém vai saber, é meu presente pra mim — e Éciocantou vitória para buscar o salário que nunca valia a pena pelas horas de cão,de pé, tendo de se movimentar entre as mesas, aguentar restos de comidanojenta em pratos sujos, e lutar contra o Sol que rebatia do piso de pedrasvermelhas contra seus olhos pretos e sensíveis.

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Assim como ele, Guido e Thaísa sabiam que havia algo além da rotinamonstruosa. Tinha de haver. Era por isso que carregavam um plano nascostas. Sentiam que estavam destinados a algo grande, que, um dia, a chefebarata velha, suas terríveis famílias ou os babacas do colégio, os encarariampor medo. Não mais por estranhamento ou por terem repetido o terceiro anotrês vezes, pois não apareciam na aula à tarde por causa da ressaca. Não maiscomo aberrações num circo, como acontecia agora que entravam na van.Mesmo cercados por abortos vivos de roupas puídas, sorrisos banguelos ecarientos, ou ficando surdos pelo choro do bebê da mãe de 14 anos no bancoda frente, não pareciam se encaixar na paisagem. Eram alvo de curiosidade eódio gratuitos. Diferentes e, surpreendentemente, comuns.

Depois dos dez minutos saindo da Praia da Brisa para o Coqueiral deSanta Cruz, Écio quis dizer para o motorista ficar com a porra do troco,porque era um pesadelo se sentir desconfortável naquele bestiário onde os trêseram a atração principal, mas não podia se dar o luxo de dispensar dinheiro.

— Espero que a feira valha a pena — Thaísa quebrou o silêncio depois dealguns passos no asfalto esburacado. Não tinham coragem para falar, mas seenvergonhavam de situações assim. Não havia nada mais errado com eles doque com as pessoas que riam naquele purgatório esquecido. Às vezes, quandoninguém estava olhando, Écio assistia Everwood nas reprises do SBT edesejava ter uma vida normal. Ser normal. Depois voltava a sentir raiva: eramais fácil conviver com ela do que com a tristeza. Abria seu grimório, ofichário de capa preta e pentagrama traçado em alto-relevo com cola dourada3D, e repetia em voz alta aquilo que queria se tornar: invencível.

— Não espere muito. É uma feira de “religiões alternativas” em SantaCruz. Só devem aparecer macumbeiros pra implicar com os cristãos daparóquia — Guido gastava o quarto cigarro na boca, fruto do maço queroubara junto de Écio na padaria mais cedo. Um vício cada vez mais caro desustentar, então nada de julgamentos. Os dedos tremiam pela raiva e medo denão poderem fazer nada enquanto os dementes da van os agrediam com osolhos e cochichos.

— Vi no fórum que um cara vendeu livros antigos quando a feira passouna Tijuca, mas tudo caro. Pode ter algo que sirva pra gente, por issoprecisamos investir pesado. Podemos achar o que procuramos.

— E o que estamos procurando? — Thaísa sugou o cigarro de Guido atémurchar e o esfregou no barro sob a ponta da bota.

Écio esticou o braço e abriu o torto portão de madeira por cima, sem se

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ligar de ter pisado no cocô de um dos gatos que praticavam surubasbarulhentas no teto de lona do barraquinho à frente, propriedade do casal queespancava a filha e o cachorrinho. Os bêbados e viciados em cocaína eramindiferentes, dificilmente lúcidos, preferindo dormir em terrenos baldios eusar calças como penico.

— Uma solução — escancarou para a fachada mínima de uma varandapintada de roxo por cima do cimento bruto. Quando bateu o portão,percebeu que o cocô quente estava agarrado à sola da bota de combate: —Merda — resmungou baixo, desamarrando os cadarços para encostar ocalçado ao lado da porta de alumínio verde.

Guido e Thaísa não tinham pudor para entrarem na casa de Écio como semorassem lá. A mãe era doméstica de tempo integral na mansão de uma ricafamília no Recreio. Nunca aparecia por abusar de ótimas desculpas para semanter distante do filho satanista e do homem com quem casou porconvenção. Marcílio, pedreiro, paciente e fiel, nunca foi de trair, mas gostavade se perder nos bares. Nem era violento ou descontrolado. Era dos bêbadosque chegavam e dormiam. Sem ela, nem fazia questão de voltar para casa,dando toneladas de privacidade para os três de preto, desde que nãoentrassem no quarto que um dia testemunhara um amor fingido.

Écio não tinha do que reclamar. Até tinha, mas ficou enjoativo fazê-lo. Amãe nunca deixou faltar comida ou dinheiro, mesmo que a presença nãoexistisse, mesmo que sentisse vergonha assumida do filho que não criou,mesmo que estivesse dando excessivamente para o patrão casado no armáriode vassouras do casarão de três andares. O pai era neutro, sem atrapalhar ousomar.

— Faz os miojos, Guido. Eu e Thaísa vamos arrumar as coisas —funcionava do mesmo jeito toda vez.

Entrar no quarto de Écio era pular de um quadro em branco para umsnuff movie. Enquanto as paredes da sala se amarelavam pela velhice, as deleeram cinza escuro, sem nenhum espaço vazio. Apanhadores de sonhos acimada cama; pôsteres de Nirvana, Salem, Ramones, Witching Hour, The BlackAngels e outras bandas que ninguém ouviu falar por toda a parede docomputador; uma infinidade de pentagramas desenhados ao redor da janelade aço que abria para dentro; e a parede da porta dedicada aos livros de magiae ocultismo sobre prateleiras que ele mesmo pintara. De preto. Se a cama nãoestivesse poeticamente bagunçada pelos lençóis escuros, poderia servir comopedestal para sacrificar virgens naquele antro das trevas, o que iniciaria uma

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inquisição no bairro caso algum dos vizinhos hipocritamente crentes visse.Mas seu espaço sagrado era secreto. Nem mesmo o pai ousava desrespeitar aprivacidade daquele paraíso obscuro. Apenas seus dois únicos companheirosentendiam, conheciam e tinham o direito de amar aquele cubículo tantoquanto ele.

— Thaísa, trouxe as velas que usamos da outra vez?— Só as pretas. Não sei onde guardei as brancas.Ela entregou as velas de sete dias. Écio formava um círculo com brancas e

pretas intercaladas, que tomavam o espaço restante do quarto pequeno paratrês pessoas. Ele era o único a manter um grimório. Guido e Thaísa aindachamavam esse diário onde experiências, sonhos, rituais e resultados eramanotados, de “livro das sombras”. O título provinha da cultura Wicca, da qualvieram, e que Écio abominava por achar fantasiosa demais. Isso confirmavacomo seus parceiros eram inexperientes por preguiça, pois tinham acesso aosmesmos livros, sites e fóruns ocultistas que ele. Vez ou outra, sentia raiva porlevá-los nas costas, ter de escolher os objetos, local, objetivo, e ser o líder.

Queria que os companheiros fossem mais companheiros, não alunos.

Guido espremeu com o garfo os três miojos cozidos e deixou a águadourada escorrer da panela. Bufou como se tivesse feito oitenta flexões. Quasedois meses repetindo aquele ritual pelo menos uma vez na semana, semresultado algum. Naquela noite, cansado de não fazer nada o dia todo, queriasentar com os amigos para assistir filme e comer miojo sem pressa, mas tinhareceio de sugerir a Écio.

Óbvio que Guido tinha problemas dos quais queria se livrar, não viviauma utopia. Na verdade, se o Inferno existia, todos os anos de sua vidafizeram parte do “Curso Preparatório Intensivo Extremista de Que Você VaiContinuar Se Fodendo Depois Que Morrer, Tá?”. Só que, acima disso, queriaaproveitar essas pequenas fugas para focar em outras coisas, aproveitar uns aosoutros como não vinham fazendo desde que Écio colocou na cabeça de quetinha a solução para o problema do trio: encontrar um jeito definitivo de fazersuas práticas darem mais certo.

Porque davam certo. Como quando Guido foi com Écio comprar ocaldeirão e, na hora, o preço foi quatro reais e vinte centavos mais caro do queÉcio vira na semana anterior. Ele estava só com sessenta reais e o dinheiro da

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passagem separado no bolso da calça, mas decidiu olhar na carteira para nãopassar vergonha na frente da vendedora, pois já era suficiente a maneira comque as pessoas crucificavam aqueles bichos-papões de preto num dia de verão— um deles esquelético e de cabelo azul. Feito mágica, da inexistência dentroda carteira sem utilidade, duas notas de dois e duas moedas de dez saltaramna mão de Écio, que levou o caldeirão para casa em êxtase.

Foi uma das confirmações que precisava para acreditar que magia era avontade mais potente do ser humano, canalizada através de ritos para gerarefeitos necessários. Vontade com “v” maiúsculo. Daí, o objetivo que omoleque com brinco de cruz definiu foi achar uma forma de potencializar opoder que eles já tinham a ponto de não precisarem de rituais ou objetos, deserem capazes de dobrar a realidade com a força de suas intenções, comoAleister Crowley ou Franz Bardon.

Mesmo com o que presenciou na companhia dos amigos, até com afamília desfuncional num passado sobrenaturalmente perturbador, seucérebro não se permitia acreditar com certeza. Guido sabia que era naturalnegar o que não conseguia explicar, etiquetar como improvável. Porém, eraincapaz de controlar esses pensamentos. Se não fosse pela fé que tinha emÉcio, teria largado a magia. E depois voltado. E largado de novo. Tudo emcrises de “acredito sem acreditar”.

Comeram sentados na única mobília da sala, a mesa retangular de mognocom tampo de vidro e quatro cadeiras, dada pelos patrões da mãe. O quartoestava magicamente limpo, enquanto o incenso de cravo terminava de gerar oclima ideal para que suas intenções se manifestassem sem interferências. Écionão era fã de comer antes de praticar, preferindo deixar para repôr energiasdepois, mas a ansiedade embaralhava seus métodos. Sentia que, dessa vez,teriam significados claros.

— Decidi usar meu sangue — antes que Guido e Thaísa pudessemformular retóricas para saber o porquê, Écio se adiantou: — Tô estudando ouso de sangue e sêmen nas práticas ritualísticas e li que ambos sãopotencializadores por gerarem e manterem vida. A quantidade de energianecessária pra isso é alta, então sêmen, orgasmo e sangue são maneiras efetivasde aumentar poder. É por isso que rituais de sacrifício, além do contextocultural de oferenda, eram tão poderosos. Existem histórias de que Crowleyficou e deixou pessoas loucas pelas energias caóticas que gerou durante transasritualísticas com gente de todo tipo. Por isso pensei em usar meu sangue prafortalecer nossos resultados — e garfou o miojo como se tivesse explicado

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como a água evaporava às nuvens e fazia chover.— Não têm consequências? Li num dos livros que me emprestou que

queimar partes do corpo pode fazer mal — Thaísa ficou interessada, mas eramacabro. Dali para matar crianças não seria um pulo?

— Naquele caso, era um garoto queimando o próprio cabelo num ritualde exorcismo da casa, querendo criar vínculos astrais com o local. Foi burrode ignorar que a chama da vela estava queimando para desconstruir energia.Ao colocar um pedaço dele no fogo, ele se atacou.

— A gente pede poder no ritual, certo? Se usarmos seu sangue, o podernão vai todo pra você?

— A gente pede pra encontrar poder, Guido — por isso era ruimquestionar Écio: ele tinha resposta para tudo. — Podem usar o sangue devocês, não tô proibindo.

— Não — Thaísa limpou a boca com a mão —, confio em você.— Guido? — A mesma coisa. Não tô pronto. Écio não deixou de concordar mentalmente que os dois estavam longe de

prontos. Mas eram seus amigos, seus iguais. O que conseguisse, daria a eles debandeja. Entraram nessa juntos e, caso conseguissem um resultado incrível,compartilhariam e aproveitariam juntos também.

Rainy Mood, o site que imitava o som de tempestade para fingir que ocalor da primavera não os atormentava, trovejava das caixinhas. As velas acesasos cercavam quando Guido apagou a luz e se ajoelhou de frente para osamigos, formando a terceira ponta do triângulo. Da última vez, tentaramproduzir esse ritual num gigantesco terreno abandonado do bairro, mas foiterrível. Além dos mosquitos, carregar um monte de tralha era chato.

Écio sentia que essa seria a última vez que precisariam disso tudo, o testefinal para recuperar o que era deles. O primeiro passo consistia em criar ocírculo de proteção e expansão que bloquearia energias nocivas e expandiria aVontade para além do plano físico. Para isso, se levantaram, fecharam osolhos, respiraram profundamente e deixaram que Écio começasse:

— Salve as Torres de Vigia do norte! Rei Ghob dos elementais da terra!Com o poder da concretização, nossos desejos se realizam no plano em quehabitamos! Contamos com a presença e proteção de vocês!

— Que assim seja! — disseram em uníssono.— Salve as Torres de Vigia do leste — Thaísa tomou a frente: — Rei

Paralda dos elementais do ar! Que o poder do intelecto nos permita filtrar

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pensamentos e transformá-los em fumaça, para que sejam levados ao topo eretornem à terra do jeito que pedimos!

— Que assim seja! — pediram mais uma vez.— Salve as Torres de Vigia do sul! Rei Djinn das salamandras! Que nossa

Vontade se intensifique como o fogo eterno da magia, que clareie oscaminhos e transmute os obstáculos ao nosso favor!

— Que assim seja! — completaram, depois de Guido terminar.— Salve as Torres de Vigia do oeste, Rainha Necksa das ondinas! Que o

poder da água e intuição nos ajude a ouvir o que nossas Vontades têm a dizer!Peço sua presença no ritual de hoje!

— Que assim seja! — disseram pela última vez, quando Écio deixou defalar para começar de novo:

— Com o convite aberto, o círculo oblitera os limites do mundo físicopara que nossas vozes sejam ouvidas pelos espíritos que caminham entre asdimensões! Enquanto vocês são os quatro elementos da matéria, nós somos oquinto, o espírito! Juntos, elevaremos nossos desejos e os faremos reais!

E o momento de silêncio veio depois, diferente para cada um, comum aostrês. Para Guido, a excitação arrepiava como se ele estivesse trancado numsuéter de lã, quente e seguro. As pernas de Thaísa sempre tremiam quando ocírculo era aberto, mas nessa noite balançavam exageradamente. De olhosfechados, era como se Écio pudesse ver quatro colossos enormes os cercandosem oprimi-los, a mesma sensação de estar no Centro da Cidade, rodeado porprédios: podia sentir o frio na barriga que os obeliscos de concreto induziam,como se pudessem cair por cima dele.

Para os três, a escuridão das pálpebras lacradas era mais clara na leve brisaentrando de forma suspeita pela janela, nas gotas virtuais do Rainy Moodcaindo contra o piso de algum lugar, e na impagável sensação de não estaremsozinhos.

— Sentiram isso? — Guido e Thaísa concordaram, abrindo os olhos. —Foi diferente das outras vezes, estamos mais perceptivos — Écio sentou nochão.

— Ou não sabíamos como chamá-los antes — Guido disse, seguindo osamigos ao piso frio, apertando os olhos para examinar ao redor. — É como setivesse uma neblina, as velas parecem embaçadas.

— São eles, estão nos ouvindo. Como alguém pode viver sem isso? —esfregou as palmas no rosto violentamente, suspirando alto. — Vamos focar,não tô me aguentando de ansiedade.

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Thaísa sorriu sem querer. Assistir Écio confiante a fazia confiantetambém. Estavam captando a energia ao redor, não estavam loucos. Pelomenos é o que repetia para si, pois sem uma visão clara, sem que um espíritoaparecesse em sua frente, sempre teria o pé atrás.

— Prontos? — Écio perguntou rapidamente. Segurou a faca ritual que,segundo vários livros, não deveria ser usada para arrancar sangue, mas Éciotinha estudado e estava confiante no que fazia. Não era um molequinhoparodiando Harry Potter numa versão gore. Era um adulto de vinte anos, semformação acadêmica porque preferia beber vodca na pracinha a aprender adiferença de sais para ácidos. Porque preferia ler sobre entidades imateriais aouvir uma velha estrábica tagarelar idiotices pouco importantes sobre ogoverno de Getúlio Vargas.

E a matemática financeira que fosse pra puta que pariu também.— Vai realmente — mas Écio abriu um fio de sangue nas costas da mão

esquerda antes que Thaísa terminasse a pergunta, deixando as gotas de anemiacaírem na taça que Guido enchera de vinho vagabundo.

— Isso é nojento — o magrelo reclamou com uma careta ossuda.— Tu já meteu a boca em lugares piores — Guido levantou o dedo médio

para Écio. — Vamos.Acenderam incensos de lavanda e passearam as mãos na fumaça, trocando

energia, emanando desejos, afirmando Vontades. Uniram as mãos, fecharamos olhos, e deixaram que Écio fizesse o de sempre:

— Filhos da noite, gladiadores do dia, domamos o Leão como a Virgem àbeira do rio! O Poder é propriedade de nossa existência! Os Antigos ouvemnosso uivo do passado, presente e futuro! Do que fomos para o quemerecemos ser! Nos traga e nos leve ao Poder! — levantou a taça. — Esse émeu sangue! Essa é minha essência! Que assim eu encontre o Poder e ele, aome ver, me encontre de volta!

E o primeiro gole foi dele.O vinho continuava com gosto de vinho quando Thaísa pegou a taça

depois de Guido e tomou o restinho que sobrara. Estranho tomar sanguenuma taça vagabunda num ritual de magia, mas Écio estava certo, já fizerampior. Por esse “pior” a vida era um pesadelo. O pai a chamava de puta, poisassim ouvia na rua os meninos falarem. Sua mãe era sutil, “vadia” estava debom tamanho. Se o sangue de Écio fosse mudar algo, seria com adesintoxicação mental. Não para o câncer que adquiriu com o passar dos anosna sociedade que a renegava por ser diferente. O famoso caso de levar fama

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sem comer.No caso dela, sem ser comida.Depois que agradeceram cada elemental no sentido anti-horário,

dispersando o círculo de expansão para dormirem, Guido sentiu sua féenfraquecer novamente. Não houve luzes piscando, chamas das velasganhando vida ou manifestações de um grande espírito que apertaria suasmãos para dizer que o trato estava feito. Não sentiu nada ao beber da taça,nem o gosto de ferrugem do machucado de Écio. Dormiu duvidando sevaleria a pena ir na feira, descansando menos de cinco horas. Mas só de olharpara Écio, com tanta empolgação nos olhos de gato preto, prometeu seesforçar para mais essa chance.

A solução era a carapuça que serviria para os três, de qualquer jeito.

II

Mesmo com a insistência dos celulares despertando às treze, catorze edepois às quinze horas, não conseguiram levantar. Écio, da cama, nem selembrava de ter ouvido os alertas, enquanto Guido e Thaísa, no tapete pretocom cheiro de cachorro molhado, reestabelecido à posição pré-ritual,preferiram não reagir. Agora, quase quatro da tarde, se arrumavam às pressas,trocando as roupas pretas por mais pretas para pegarem a primeira van quesurgisse na direção de Santa Cruz.

No Largo do Bodegão, a feira de religiões alternativas não parecia mais doque um monte de sebos enfileirados na ampla praça de pedra, sem nenhumavista de movimentação. Talvez por terem chegado a trinta minutos do fim,talvez por nada em Santa Cruz ser alternativo, estava como sempre:fatalmente entediante.

— Preciso de cigarro — Guido puxou do maço o terceiro desde queacordara, oferecendo o cilindro com a ponta em brasa para Thaísa acender odela.

— Não vai querer? — perguntou para Écio, ao passo em que atravessavama rua. Ele fez que não, sem tirar os olhos das claustrofóbicas tendas.

Não conseguia pensar em outra forma de arranjar soluções senão noslivros, mas estivera em todas as livrarias que conhecia, das bibliotecas doCentro às comunitárias de Sepetiba, sem sucesso. Apesar de todo dinheirogasto com obras que compunham o ótimo bibliocanto na parede do quarto,nunca achou o que nem ele sabia que procurava. Acreditava que ao bater o

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olho, reconheceria a tal resposta. Um pouco dessa sensação veio quando parou de frente para o estreito

corredor, com estandes à esquerda e direita. O cheiro de incensos e mofo dalona era um pedaço do paraíso. No primeiro par de vendinhas, cristais, filtrosdos sonhos, velas coloridas, candelabros e instrumentos mágicos penduradosem exagero para nenhum comprador, numa poluição visual com semblantede filme sobre psicopatas. Ambas eram guardadas por senhoras com excessode maquiagem borrada, que derretia por dentro das rugas. Nenhuma delassorria, já que o Sol no fim da tarde não conhecia a palavra “perdão”,incidindo sobre as coberturas de plástico, transformando o que deveria serproteção numa estufa de mormaço.

— Nosso objetivo é caçar livros antigos. Não sei qual é a barraca quevende raridades, então vamos nos separar. Eu pego aqui e vocês as do meio efim do corredor — guiou Écio, imediatamente.

Era a última barraquinha da feira, oposta a onde Écio caçava respostas,com antigas edições da revista “Wicca” entre lombadas amarelas de EliphasLevi. Guido não sabia para onde olhar, o que perguntar, e a tentação de enfiarum daqueles exemplares na bolsa e correr, gritava em seu ouvido, já que ovendedor não estava perto. “Animal Totem”, “Conjurando Salamandras”,“Enochiano: O Alfabeto dos Anjos” e “O livro de capa preta de São Cipriano”eram alguns dos títulos interessantes. Virou para a banca de trás e perguntou:

— Sabe onde tá o dono daqui?O senhor de barba grisalha, comprida, e de olhos vermelhos como um

Gandalf cachaceiro, deu de ombros. Também vendia livros, não seriasimpático com quem comprava na concorrência.

— Me desculpe — Guido quase pulou para trás quando o senhor dabanca vazia se desculpou, surgindo de lugar nenhum com as mãos cruzadasna barriga, a voz calma. — Procura alguma coisa?

Guido achou que o arrepio tinha vindo com o susto, mas seus pelos nãobaixaram. O senhor era pálido, tendo o bigode longo como a única coisaescura no rosto, emoldurado por restinhos de cabelos brancos e finos ao redordo topo careca.

— Quero os livros mais antigos que tiver — engrossou a voz para nãodemonstrar o desconforto com a presença repentina do velho. Não sabia de

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