cap 1 e 2 - pq estudar midia

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Queria que o estudo da mídia se destacasse destas páginas como uma tarefa humanista, mas também huma- na. Devia ser humanista em sua preocupação com o indi- víduo e com o grupo. Era para ser humana no sentido de estabelecer uma lógica distinta, sensível a especificidades históricas e sociais e que recusasse as tiranias do determi- nismo tecnológico e social. Ele tentaria navegar na fron- teira entre as ciências sociais e as ciências humanas. Acima de tudo, o livro foi talvez concebido como um manifesto. Eu queria definir um espaço. Engajar-me com os que estão fora de meu próprio discurso, em algum lugar na academia ou no mundo além dela. Era a hora, pensava, de levar a mídia a sério. O estudo da mídia precisa ser crítico, relevante. Deve criar e manter certa distância entre si e seu objeto. Pre- cisa mostrar que é pensante. Espero que as páginas se- guintes satisfaçam, pelo menos em algum grau, a esses exigentes requisitos. Mas, se o projeto tiver êxito, mesmo parcial, em cumprir seus objetivos, então, como qualquer outra coisa, será porque inúmeras pessoas, colegas e alunos, contri- buíram de maneira direta e indireta para ele. Deixem-me citá-los, com gratidão: Caroline Bassett, Alan Cawson, Stan Cohen, Andy Darley, Daniel Dayan, Simon Frith, Anthony Giddens, Leslie Haddon, Julia Hall, Matthew Hills, Kate Lacey, Sonia Livingstone, Robin Mansell, Andy Medhurst, Mandy Merck, Harvey Molotch, Maggie Scammell, Ingrid Schenk, Ellen Seiter, Richard Sennett, Bruce Williams, Janice Winship e Nancy Wood. Nenhum deles, é claro, 'tem responsabilidade pelos erros e infelici- dades que podem ter restado. 1Dl Por que estudar a mídia? Talk show vespertino de Jerry Springer, 22 de de- zembro de 1998. Reprisado pela enésima vez no canal via satélite UK Living, Ele fala com homens que trabalham como mulheres. Duas fileiras de travestis e transexuais discutem suas vídas, suas relações e seu trabalho. São atormentados pela audiência televisiva. Ouvem perguntas sobre ter filhos. Um casal troca alianças: "Afinal, nunca fizemos isso antes e é uma transmissão em rede nacional". Jerry conclui com uma homilia sobre a normalidade ea ;j falta de seriedade desse tipo de comportamento, fazendo sua audiência lembrar-se de Milton Berle e de Some like - it hot (Quanto mais quente melhor), de performances de uma época mais inocente, em que se vestir com roupas do sexo oposto não era visto como algum tipo de perversão. Um momento de televisão. Explorador mas também cxplorável. Momento facilmente esquecido, uma partícula ubatômica, uma cabeça de alfinete no espaço midiático, mas agora mencionado, notado, sentido, fixado, nem que seja apenas aqui nesta página. Um momento de televisão que foi local (todos os personagens trabalhavam nurr. r staurante temático de Los Angelesl, nacional [origi- A textura da experiência ~

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Page 1: Cap 1 e 2 - Pq Estudar Midia

Queria que o estudo da mídia se destacasse destaspáginas como uma tarefa humanista, mas também huma-na. Devia ser humanista em sua preocupação com o indi-víduo e com o grupo. Era para ser humana no sentido deestabelecer uma lógica distinta, sensível a especificidadeshistóricas e sociais e que recusasse as tiranias do determi-nismo tecnológico e social. Ele tentaria navegar na fron-teira entre as ciências sociais e as ciências humanas.

Acima de tudo, o livro foi talvez concebido comoum manifesto. Eu queria definir um espaço. Engajar-mecom os que estão fora de meu próprio discurso, em algumlugar na academia ou no mundo além dela. Era a hora,pensava, de levar a mídia a sério.

O estudo da mídia precisa ser crítico, relevante. Devecriar e manter certa distância entre si e seu objeto. Pre-cisa mostrar que é pensante. Espero que as páginas se-guintes satisfaçam, pelo menos em algum grau, a essesexigentes requisitos.

Mas, se o projeto tiver êxito, mesmo parcial, emcumprir seus objetivos, então, como qualquer outra coisa,será porque inúmeras pessoas, colegas e alunos, contri-buíram de maneira direta e indireta para ele. Deixem-mecitá-los, com gratidão: Caroline Bassett, Alan Cawson,Stan Cohen, Andy Darley, Daniel Dayan, Simon Frith,Anthony Giddens, Leslie Haddon, Julia Hall, Matthew Hills,Kate Lacey, Sonia Livingstone, Robin Mansell, AndyMedhurst, Mandy Merck, Harvey Molotch, MaggieScammell, Ingrid Schenk, Ellen Seiter, Richard Sennett,Bruce Williams, Janice Winship e Nancy Wood. Nenhumdeles, é claro, 'tem responsabilidade pelos erros e infelici-dades que podem ter restado.

1Dl Por que estudar a mídia?

Talk show vespertino de Jerry Springer, 22 de de-zembro de 1998. Reprisado pela enésima vez no canal viasatélite UK Living, Ele fala com homens que trabalhamcomo mulheres. Duas fileiras de travestis e transexuaisdiscutem suas vídas, suas relações e seu trabalho. Sãoatormentados pela audiência televisiva. Ouvem perguntassobre ter filhos. Um casal troca alianças: "Afinal, nuncafizemos isso antes e é uma transmissão em rede nacional".Jerry conclui com uma homilia sobre a normalidade e a ;jfalta de seriedade desse tipo de comportamento, fazendosua audiência lembrar-se de Milton Berle e de Some like -it hot (Quanto mais quente melhor), de performances deuma época mais inocente, em que se vestir com roupas dosexo oposto não era visto como algum tipo de perversão.

Um momento de televisão. Explorador mas tambémcxplorável. Momento facilmente esquecido, uma partículaubatômica, uma cabeça de alfinete no espaço midiático,

mas agora mencionado, notado, sentido, fixado, nem queseja apenas aqui nesta página. Um momento de televisãoque foi local (todos os personagens trabalhavam nurr.r staurante temático de Los Angelesl, nacional [origi-

A textura da experiência ~

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e)j nalmente transmitido nos Estados Unidos) e global (che-~ gou até aqui). Um momento de televisão arranhando aJ superfície da sensibilidade suburbana, tocando as mar-.) gens, a base.o 1 No entanto, um momento de televisão que servirá

.(f t::. perfeit~~ente. ~le representa o o~dinário e o cóntínuo. Emc sua unicidade, e absolutamente típico - um elemento na

~ constante mastigação da cultura cotidiana pela mídia; seusC) significados dependem de saber se realmente o notamos, se

ele nos toca, choca, repugna ou atrai, enquanto entramos,atravessamos e saímos do ambiente midiático cada vezmais insistente e intenso. Ele se oferece ao espectador depassagem e aos anunciantes que solicitam sua atenção,-r talvez com desespero cada vez maior. E também se oferece

-r a mim como o ponto de partida de uma tentativa de res-~ ponder à pergunta: por que estudar a mídia? E o faz con-'".0 trariando as expectativas, é claro, mas também de modoI~ muito natural, pois levanta inúmeras questões que não7 podem ser ignoradas, questões que emergem do simples1 reconhecimento de que nossa mídia é onipresente, diária,

uma ~imensão essencial de nossa experiência contemporâ-f r-r nea. E impossível escapar à presença, à representação da~ mídia. Passamos a depender da mídia, tanto impressa como'1 eletrônica, para fins de entretenimento e informação, de I

conforto e segurança, para ver algum sentido nas continui-dades da experiência e também, de quando em quando,para as intensidades da experiência. O funeral de Diana,Princesa de Gales, é um exemplo caracteristico.

Posso notar as horas que o cidadão global passa emfrente da televisão, ao lado do rádio, folheando jornais e,

1'l I Por que estudar a midia?

1,111:\vez mais, surfando na Internet. Posso notar também1111110.ssas figuras variam globalmente de Norte a Sul edl'llll'o dos países, de acordo com os recursos materiais e.lmhólicos. Posso notar quantidades: vendas globais de~(//fl/)are, variações na freqüência de salas de cinema e no11lIl4uelde fitas de vídeo, propriedade pessoal de compu-I ulorcs de mesa. Posso refletir sobre padrões de mudança /\', talvez de maneira bastante precipitada, sobre arriscadasjll'oj ções de futuras tendências de consumo. Mas ao fazerIlido isso, ou algumas dessas coisas, estou apenas pati-uando na superfície da cultura da mídia, superfície mui-Ins vezes suficiente para os que se preocupam em vender,ruas claramente insuficiente para quem se interessa peloqu a mídia faz, como também pelo que fazemos com ela.Il é insuficiente se queremos compreender a intensidadel' a insistência de nossas vidas com nossa mídia. Por essemotivo, temos de transformar quantidade em qualidade.

Quero mostrar que é por ser tão fundamental paranossa vida cotidiana que devemos estudar a mídia. Estudá-ti LIII como dimensão social e cultural, mas também política 'L/c econômica, do mundo moderno. Estudar sua onipresençac sua complexidade, Estudá-Ia como algo que contribuipara nossa variável capacidade de compreender o mundo,de produzir e partilhar seus significados. Quero mostrarque deveríamos estudar a mídia, nos termos de IsaiahBerlin, como parte da "textura geral da experiência,!, !hexpressão que toca a natureza estabelecida da vida n !:2mundo, aqueles aspectos da experiência que tratamos com ~corriqueiros e que devem subsistir para vivermos e no ~comunicarmos uns com os outros. Há muito, os sociólo

A textura da experiência ~

o CP ~ 'l \ ••••~ \te:> -c.) Si. ••.•\ t-

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gos se preocupam com a natureza e a qualidade dessadimensão da vida social, em sua possibilidade e em suacontinuidade. Os historiadores também, ao menos na vi-são de Berlin, não podem deixar de depender dela, poisseu trabalho - como todos das ciências humanas

'/ -.; depende, por sua vez, da capacidade que· eles têm de'R'í'k. refletir sobre o outro e de compreendê-Io.~ A mídia agora é parte da textura geral da experiên-

.:~ cia. Se incluíssemos a linguagem como uma mídia, issonão mudaria e teríamos de tomar as continuidades dafala, da escrita, da representação impressa e audiovisualcomo indicadores do tipo de respostas que procuro paraminha pergunta, pois sem atenção às formas e aos con-teúdos, às possibilidades da comunicação, tanto dentrodo tido-por-certo de nossas vidas cotidianas como con-tra ele, não conseguiremos compreender essas vidas.Ponto.

A caracterização de Berlin é, claro, principalmentemetodológica. O "por quê?" necessariamente implica o"como". A história deve ser um empreendimento huma-nista, não científico em sua busca por leis, generalizaçõesou fechamento teórico, mas uma atividade baseada noreconhecimento da diferença e da especificidade e numapercepção de que os afazeres dos homens (como a ima-ginação liberal é tragicamente baseada em gênero \ se-xuall) requerem uma espécie de compreensão e explica-ção algo afastadas dos preceitos kantianos e cartesianosde racionalidade e razão puras. Minha reivindicação parao estudo da mídia seguirá esse caminho, e também oca-sionalmente retomarei a seus métodos.

MI Por que estudar a midia?

lIerlin também fala do tipo apropriado de explicaçãoII luclonado à análise moral e estética:

na medidaem que ela pressupõeconceberos sereshumanosuão apenas comoorganismosno espaçocujo comportamen-10 apresenta regularidadesque podem ser descritas e encer-radas em fórmulas que poupam trabalho, mas como seresativos,que perseguemfins, moldamsua vida e a dos outros, ~ ~entem, refletem,imaginam, criam, em constante interação t-

e intercomunicaçãocom outros seres humanos; em suma, ~envolvidosem todas as formas de experiênciaque compre- fo' fendemos porque as compartilhamose não as vemos pura v-mente como observadoresexternos. (Berlin, 1997, p. 48)

Sua confiança numa noção de nossa humanidade /.compartílhada é tocante e está, talvez, em desacordo com I:1 sabedoria contemporânea que recebemos; mas sem elaestamos perdidos e o estudo da mídia se torna uma im-possibilidade. Isso também vai inspirar minha análise.Mais tarde voltarei a esse tópico.

Há outras metáforas nas tentativas de compreendero papel da mídia na cultura contemporânea. Já pensamosnela como condutos, que oferecem rotas mais ou menosimperturbadas da mensagem à mente; podemos pensarnela como linguagens, que fornecem textos e representa-ções para interpretação; ou podemos abordá-Ia comoambientes, que nos abraçam na intensidade de uma cul-tura midiática, saciando, contendo e desafiando sucessi-vamente. Marshall McLuhan vê a mídia como extensõesdo homem, como próteses, que aumentam o poder e ainfluência, mas que talvez (e é provável que ele tenha

A textura da experiência l1s

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A{cÁ)<-.. <:.9-e- + l,h SC-",l ~ )~r\----------------------~--------------------

(\pensado assim) tanto nos incapacitam como nos capaci-tam, enquanto nós, objetos e sujeitos da mídia, nos en-redamos mais e mais no profilaticamente social.

De fato, podemos pensar na mídia como profila-ticamente social na medida em que ela se tornou sucedâ-neo das incertezas usuais da interação cotidiana, gerandoinfinita e insidiosamente os como se da vida cotidiana ecriando cada vez mais defesas contra as intrusões doindesejável e do íngovemável, Grande parte de nossapreocupação pública com os efeitos da mídia concentra-se nesse aspecto do que vemos e tememos, especialmente,na nova mídia: que ela substituirá a sociabilidade ordiná-ria e que estamos criando, sobretudo por meio de nossosfilhos homens, e muito especialmente por meio da classeoperária masculina e dos meninos negros (que continuama ser o locus da maior parte de nosso pânico moral), umaraça de viciados na telinha. Apesar de sua ambivalência,Marshall McLuhan (1964) não vai tão longe. Pelo contrá-rio. Mas sua visão da cultura cíborgue precede a de DonnaHaraway (1985) em cerca de vinte anos.

Essas metáforas são úteis. Sem elas estamos conde-nados a uma visão obscura da mídia, como através de umvidro. Mas, a exemplo de todas as metáforas, a luz que -:lançam é parcial e efêmera; precisamos ir além dela. Meupropósito é justamente esse. Para responder à minhapergunta teremos de investigar as maneiras como a mídiaparticipa de nossa vida social e cultural contemporânea.Precisaremos examinar a mídia como um processo, comouma coisa em curso e uma coisa feita, e uma coisa emcurso e feita em todos os níveis, onde quer que as pessoas

Por que estudar a mídía?

('A{ .IJ.o-: Cs>--o )?f ~c-e »~ 'C.I"'-- CJ\I ') cJ

'11I'KIl'/~uem no espaço real ou virtual, onde se comu-111, 'li', onde procuram persuadir, informar, entreter, edu-, 111, onde procuram, de múltiplas maneiras e com grausdi '1l'('SSO variáveis, se conectar umas com as outras.

hlllcnder a mídia corno um processo -- e reconhecer I'1"1' I) processo é fundamental e eternamen~e social-:.é (Çr<'\11 ~\ ir na mídia como historicamente específica. A mídia '(I LI mudando, já mudou, radicalmente. O século XX viu L" 1,'1.Ione, o cinema, o rádio, a televisão se tornarem -,,111\'tosde consumo de massa, mas também instrumentos ~ fI cn iais para a vida cotidiana. Enfrentamos agora o -O rI.II,la ma de mais uma intensificação da cultura midiática t r1H'lo crescimento global da Internet e pela promessa (al- 1;\~fl,II\lS diriam ameaça) de um mundo interativo em que 1rIlido e todos podem ser acessados, instantaneamente.

Entender a mídia como processo também implica\I m reconhecimento de que ele é fundamentalmente po-Ifi ico ou talvez, mais estritamente, politicamente econô-ini o. Os significados oferecidos e pr~duzido.s ?elas V~rias)comunkações que inundam nossa VIda cotidiana Salramde instituições cada vez mais globais em seu alcance e emsuas sensibilidades e insensibilidades. Pouco oprimidasp 10 peso histórico de dois séculos de avanço do capita-Ii mo e desconsiderando cada vez mais o poder tradicio-nal dos Estados nacionais, elas estabeleceram uma plata-forma, é forçoso admitir, para a comunicação de massa.'Esta ainda é, apesar de sua diversidade e de sua flexibi-Iidade progressivas, a forma dominante dessa comunica-ção. Ela constrange e invade culturas locais, mesmo quenão as subjugue.

A textura da experiência 117

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Os movimentos nas instituições dominantes da mí-dia global são de escala tectônica: erosão cultural graduale, de repente, deslocamentos sísmicos quando multinacío-nais emergem do mar, feito novas cordilheiras, enquantooutras afundam e, como a Atlântida, são apenas mitica-mente lembradas como, outrora, talvez relativamente bene-volentes. O poder dessas instituições, o poder de controlaras dimensões produtivas e distributivas da mídia contem-porânea e a debilitação correlativa e progressiva de go-vernos nacionais em controlar o fluxo de palavras, ima-gens e dados dentro de suas fronteiras nacionais sãoprofundamente significantes e indiscutíveis. É um traçofundamental da cultura da mídia contemporânea.

Grande parte do debate atual baseia-se numa noçãoda velocidade dessas diversas mudanças e desenvolvi-mentos, mas confunde a velocidade da mudança tecnoló-gíca ou, realmente, da mudança da mercadoria com avelocidade da mudança social e cultural. Há uma tensãoconstante entre o tecnológíco, o industrial e o social,tensão que deve ser levada em conta se queremos reco-nhecer a mídia como, de fato, um processo de mediação.\\IPois há poucas linhas diretas de causa e efeito no estudo

\\ da mídia. As instituições não produzem significados. Elasos oferecem. As instituições não apresentam uma mudán-

Iça uniforme. Elas têm ciclos de vida diversos e históriasdiferentes.

Mas então nos confrontamos com outra questão,depois com outra e mais outra. O que medeia a mídia? Ecomo? E com quais conseqüências? Como entender a mídiacomo conteúdo e forma, visivelmente caleidoscópíca, in-

1Bl Por que estudar a midia?

visivelmente ideológica? Como avaliar os modos pelosquais se travam as batalhas pela mídia e dentro dela:batalhas pela posse e pelo controle tanto de instituiçõescomo de significados; por acesso e participação; por re-presentação; batalhas que impregnam e afetam nosso sensouns dos outros, nosso senso de nós mesmos?

Estudamos a mídia porque queremos respostas aessas questões, respostas que sabemos que não podemser conclusivas e que, de fato, não devem sê-lo, Por ~mais atraente que seja e muitas vezes superficialmente ~convincente, não se pode obter uma única teoria da ~mídia. De fato, seria um tremendo erro tentar encontrar f

uma. Um erro político, intelectual e moral. Mas ao mesmo) 1-rtempo nossa preocupação com a mídia é sempre igual- fmente uma preocupação pela mídia. Queremos aplicar oque passamos a compreender, envolver-nos com os que =s-

poderiam estar em posição de responder, queremos en- 1.orajar a reflexibilidade e a responsabilidade. O estudo -sda mídia dever ser uma ciência relevante e também {humanista. ~

Minhas respostas, portanto, à minha própria pergun- fIH vão se basear numa noção dessas complexidades, aom smo tempo substantivas, metodológicas e, no maisamplo sentido, morais. Estou lidando, afinal, com sereshumanos e suas comunicações, com linguagem e fala,com o dizer e o dito, com reconhecimento e mal-reconhe-cimento e com a mídia vista como intervenções téCllicas1<Ç(' políticas nos processos de compreensão. '

Daí o ponto de partida. A experiência. A minha e asua. E sua ordinariedade.

A textura da experiência 119

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A pesquisa na mídia muitas vezes preferiu O signi-ficante, o evento, a crise, como fundamento de sua inves-tigação. Já olhamos as perturbadoras imagens de violên-cia e de exploração sexual e tentamos avaliar seus efei-tos. Focamos os eventos-chave da mídia, como a Guerrado Golfo, ou os desastres, tanto os naturais como oscausados pelo homem, a fim de explicar o papel da mídiano controle da realidade ou no exercício do poder. Tam-

~ bém focamos os grandes cerimonais públicos de nossa erapara explorar seu papel na criação da comunidade nacio-nal. Isso tudo é relevante, pois sabemos, desde Freud, oquanto a investigação do patológico, ou mesmo do exa-gerado, revela sobre o normal. Mas uma atenção contínuaao excepcional provoca interpretações errôneas inevítá-

~ /veiS. Pois a mídia é, se nada mais, cotidiana, uma presen--{ ça constante em nossa vida diária, enquanto ligamos e.!{ desligamos, indo de um espaço, de uma conexão midiá-rf tica, para outro. Do rádio para o jornal, para o telefone.J Da televisão para o aparelho de som, para a Internet. Em

público e privadamente, sozinhos e com os outros.

\

É no mundo mundano que a mídia opera de maneira..P mais significativa. Ela filtra e molda realidades cotidianas,0/ ~ por meio de .s~~s repres:nt~ções singulares e múltiplas,

J 6 f~~ecendo cntenos, :-eferenoas para a condução da vida -,diária, para a produçao e a manutenção do senso comum.E é aqui, no que passa por senso comum, que devemosfundamentar o estudo da mídia. Para poder pensar que avida que levamos é uma realização contínua, que requernossa participação ativa, embora muitas vezes em circuns-tâncias que nos permitem pouca ou nenhuma escolha e

wl Por que estudar a mídia?

nas quais o melhor a fazer é simplesmente "arranjar-se". Amídia nos deu palavras para dizer, as idéias para exprimir,não como uma força desencarnada operando contra nósenquanto nos ocupamos com nossos afazeres diários, masomo parte de uma realidade de que participamos, que

dividimos e que sustentamos diariamente por meio de nossafala diária, de nossas interações diárias.

O senso comum, obviamente nem singular nem in-conteste, é por onde devemos começar. O senso comum, 'tanto expressão como precondição da experiência. O sen-o comum, compartilhado ou ao menos compartilhável e

medida, muitas vezes invisível, de quase todas as coisas. ~A mídia depende do senso comum. EI~ o reproduz, rec?r-j\l ..-\re a ele, mas também o explora e distorce. Com efeito] ~ua falta de singularidade fornece o material para as )

controvérsias e os assombros diários, quando somos for-çados - em grande medida pela mídia e, cada vez mais,talvez apenas pela mídia - a ver, a encarar os sensosomuns e as culturas comuns dos outros. O medo da

diferença. O horror da classe média às páginas da im-prensa marrom e dos tablóides. A rejeição precipitada e,orno se pode argumentar, filistina do estético ou do

intelectual. Os preconceitos de nações e gêneros. Os va-lores, atitudes, gostos, as culturas de classes, as etnicidadesetc., reflexões e constituições da experiência e, como tais,terrenos-chave para a definição de identidades, para nos-a capacidade de nos situar no mundo moderno. Além

disso, é pelo senso comum que nos tornamos aptos, se éque de fato nos tornamos, a partilhar nossas vidas unscom os outros e distingui-Ias umas das outras.

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A textura da experiência [21

Page 7: Cap 1 e 2 - Pq Estudar Midia

Essa capacidade para a reflexão - de fato, sua fun-damental importância - tem sido notada com freqüência

~ suficiente por aqueles que procuram definir as caracterís-cç ticas da modernidade e da pós-modernidade, mas suas4 próprias reflexões tendem a ver a virada reflexiva mais

ou menos exclusivamente nos textos de especialistas dafilosofia ou da ciência social. Quero reivindicá-Ia tambémpara o senso comum e, de tempos em tempos, até mesmo,ou talvez especialmente, para a mídia. A mídia é essenciala esse projeto reflexivo não só nas narrativas socialmenteconscientes da novela, no taZk shaw vespertino ou noprograma de rádio com participação do ouvinte, mastambém nos programas de notícias e atualidades, e napublicidade; como que através das lentes múltiplas dostextos escritos, dos audiotextos e dos textos audiovisuais,o mundo é apresentado e representado: repetida e inter-minavelmente.

Que outras qualidades poderíamos atribuir à expe-riência no mundo contemporâneo e ao papel da mídianela?

Perdoem-me se recorro a metáforas espaciais paratentar começar uma resposta, mas me parece que o espa-ço fornece a estrutura mais satisfatória para abordar aquestão. O tempo também, é claro; mas o tempo -, e isso "-agora é um lugar-comum na teoria pós-moderna - jánão é o que era. Não mais uma série de pontos, não maisclaramente demarcado por distinções de passado, presen-te e futuro, não mais singular, compartilhado, resistente.Podemos dizer tudo isso, sabendo contudo que o dispen-sar dessa maneira não é totalmente certo, ou é no mínimo

nl Por que estudar a midia?

prematuro; sabendo que a vida é vivida no tempo e finita;sabendo também que a seqüência é ainda fundamental,que o tempo não é reversível (exceto, claro, na tela) e quehistórias ainda podem ser contadas. Sabemos que leva-mos nossas vidas através de dias, semanas e anos; vidasmarcadas pelas reiterações de trabalho e lazer, pelas re-petições do calendário e pelas Zangues durées da históriamal notada e talvez progressivamente esquecível. Nontanto, a mídia tem de responder por muita coisa, espe-

cialmente a última geração da mídia computadorizada,pois enquanto a radiodifusão foi sempre baseada no tem-po, mesmo que o conteúdo dos programas não o fosse, ojogo de computador é infinito e a Internet, imediata. ComoLewis Carrol poderia ter indagado: pode o tempo sobre-viver a semelhante surra?

Então é do espaço que devemos tratar, pelo menospor enquanto. E espaço em múltiplas dimensões, admitin-~do talvez que o espaço é, ele mesmo, como sugere Ma-nuel Castells (1996), nada mais que tempo simultâneo.Deixem-me ·propor (e esta não é uma idéia original) quepensemos em nós mesmos em nossa vida cotidiana e emnossa vida com a mídia como viajantes, movendo-nos deum lugar para o outro, de um ambiente midiático paraoutro, estando às vezes em mais de um lugar ao mesmotempo, como podemos imaginar estar quando assistimosà televisão ou surfamos na World Wide Web, por exem-plo. Que tipos de distinções podemos fazer aqui? Quetipos de movimentos se tornam possíveis?

Nós nos movemos entre espaços privados e públicos.Entre espaços locais e globais. Passamos de lugares sagra-

A textura da experiência 123

Page 8: Cap 1 e 2 - Pq Estudar Midia

,---------------------------------------------Jdos a seculares; de reais a ficcionais e virtuais, e více--/. 1versa. Pas~amos do .que é seguro para o que é ameaçador1t e do que e compartIlhado para o que é solitário. Estamos..>-' -+ em casa ou fora. Atravessamos soleiras e vislumbramos ho-1- ~rizontes. Todos nós fazemos essas coisas constantementeJ e ,e~ absolutamente nenhuma delas estamos sem nossa

-{ ~ mídia, como objetos físicos ou simbólicos, como guias ou1. pegad~s, como e~~eriências. ou a~d('s-mémoir('s.

Ligar a televisão ou abnr um Jornal na privacidade denossa sala é envolver-se num ato de transcendência espa-cial: um local físico identificável -- o lar -- defronta eabarca o globo. Mas tal ação, ler ou ver, possui outrosreferentes espaciais. Ela nos liga aos outros, a nossos vi-zinhos, conhecidos e desconhecidos, que estão simultanea-mente fazendo a mesma coisa. A tela bruxuleante, a pá-gina vibrante nos unem momentaneamente -- mas comenorme sígnífícâncía pelo menos no século XX -- numacomunidade nacional. No entanto, compartilhar um espaçonão é necessariamente possuí-lo: ocupá-lo não nos dánecessariamente direitos. Nossas experiências dos espaçosmidiáticos são particulares e amiúde fugidias. Raramentedeixamos um rastro, mal-e-mal urna sombra, quando nosenvolvemos com essas pessoas, os outros, que vemos, dosquais ouvimos falar ou a respeito de quem lemos.

Nossa jornada diária implica movimento pelos dife-rentes espaços midiáticos e para dentro e fora do espaço damídia. A mídia nos oferece estruturas para o dia, pontos dereferência, pontos de parada, pontos para o olhar de relan-ce e para a contemplação, pontos de engqjamento e opor-tunidades de desengajamento. Os infinitos fluxos da repre-I

24 I Por que estudar a mídia?

I ril;I(,;~O da mídia são interrompidos por nossa participa-• li 11 .les. Fragmentados pela atenção e pela desatenção.

NII,>SíI entrada no espaço midiático é, ao mesmo tempo,11111:1 transição do cotidiano para o liminar e uma apropria-

li do liminar pelo cotidiano. A mídia é do cotidiano e ao11\1''11110 tempo uma alternativa a ele.

O que estou dizendo difere um pouco do que Manuel(.t'il Ils (1996, pp. 376ss.) identifica como o "espaço delluxos" Para Castells, o espaço de fluxos sinaliza as redes <91'11'1 rônicas, mas também as físicas, que fornecem a dinâ-mlca grade de comunicação ao longo da qual a informa-

I o, os bens e as pessoas se movem incessantemente emnos a era da informação emergente. A nova sociedade érnnstruída em seu movimento, em seu eterno fluxo. Orspaço fica instável, deslocado das vidas que são levadast'm espaços reais, embora em alguns sentidos ainda delas.Meu ponto de partida, ao reconhecer essa abstração, pre- ~I"l'r contudo fundamentar um senso de fluxo do que '"

~Castells chama "a era da informação" nos traslados den- v11"0 e através da experiência, pois é aí que eles ocorrem: -<corno sentidos, conhecidos e, às vezes, temidos. Nós tam- ,h m nos movemos em espaços midiáticos, tanto na rea- ("lidade como na imaginação, tanto material como simbo- {Ii amente. Estudar a mídia é estudar esses movimentos no i:,, paço e no tempo e suas inter-relações e talvez .também, ~:.omo conseqüência, descobrir-se pouco convencido pelos ~profetas de uma nova era e por sua uniformidade e seusbenefícios.

Se estudar a mídia é estudá-Ia em sua contribuiçãopara a textura geral da experiência, então algumas coisas

A textura da experiência l2s

Page 9: Cap 1 e 2 - Pq Estudar Midia

se seguem. A primeira é a necessidade de reconhecer a_ ~\ realidade da experiência: que as experiências são reais- até mesmo as experiências midiáticas. Isso, em cert;

medida, pÕ,e-nos em desacordo com grande parte do pen-same~to pos-moderno que diz que o mundo que habita-mo.s e um mundo sedutora e exclusivamente de imagense slmul~cros. Nessa visão, o mundo é um mundo em queas realIdades, empíricas são progressivamente negadas,tanto para nos como por nós, no senso comum e nat~ori~.. Nessa visão, vivemos nossas vidas em espaçosslmbohcos e auto-referenciais que nos oferecem nada maisque ge~eralidades do sucedâneo e do hiper-real, que nospropo:clOnam apenas a reprodução e nunca o original e,ao faze-l o, negam-nos nossa subjetividade e, de fato, nossacapacidade de agir significativamente. Nessa visão, somosdes~fiados com nosso fracasso coletivo a distinguir arealIdade da fantasia e a responder pelo empobrecimento,embora forçado, de nossas capacidades imaginativas. Nessavisão, a mídia se torna a medida de todas as coisas.

Mas sabemos que ela não o é. Sabemos, talvez aomenos em r~l~ção .a nós mesmos, que podemos distinguir,e de fato dIstmgUlmos, fantasia de realidade, que pode-mos preservar, e de fato preservamos, alguma distânciacrítica entre nós e a mídia, que nossas vulnerabilidades àin.fluênci~ ,ou.à força de persuasão da mídiasão desiguaise l~preVlsIve~s, que há diferenças entre ver, compreender,aceitar, acreditar e agir por influência ou converter idéiasem ato; sabemos que examinamos o que vemos ou ouvi-mos com base no que conhecemos e acreditamos, que dequalquer modo ignoramos ou esquecemos muita coisa, e

26 I Por que estudar a mídía?

que nossas respostas à mídia, tanto em particular c~rr:om geral, variam por indivíduo e segundo. os grupos S?ClaIS,

de acordo com sexo, idade, classe, etnia, naclOnahd.ade, r.assim como ao longo do tempo. Sabemos de tudo ~s~o. 1:Isso é senso comum. E se nós, que estudamos a mIdIa,~. ) rtivéssemos contudo de contestar esse sens.o comurr: (e o ~fazemos devída e continuamente), ele nao podena ser Ieliminado sem que caíssemos na mesma ar~~dilha que·1identificamos para os outros: não levar a seno a expe- (>'riência e não testar nossas próprias teorias à luz da e.x- c}-periência, isto é, não as testar empíricamente ..Nossas teonas ~ '"também jamais escaparão ao auto-r~ferenClal: Elas :am- ribém se tornarão infinitamente, reflexivamente irreflexívas. g-

Abordar a experiência da mídia, assim como suacontribuição para a experiência, e insisti,r .que i,:'so é ""empreendimento tão empírico como teonc~ s~o COIsasmais fáceis de dizer do que fazer, pois, em primeiro lu~~r,nossa pergunta exige de nós inves~igar o papel da mídiana formação da experiência e, vice-versa, o papel daexperiência na formação da mídia. Em segundo, porquexige de nós entrar mais fundo ~o. exame do que cons-

litui a experiência e sua composlçao. .• . , e.Vamos admitir, portanto, que a expenenCl~ e, de f~to'l

formada. Atos e eventos, palavras e imagens, lillpresso.es, \ealegrias e dores, até mesmo confusões, só .se tornam. SIg-nificativas na medida em que podem se mter-relaclO~ardentro de alguma estrutura, tanto individual como social:uma estrutura que, embora tautologica~ente, lhes c.onfe~eysignificado. A experiênci,a é uma questao tanto de .ld~n~l-dade como de diferença. E tão única quanto compartilhável.

A textura da experiência ~

L::I \' ~.-v\--401...l:..~\''-'G.. •...~ oÀ/ \-e~.

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É física e psicológica, Isso tudo é claro e, de fato, banal eóbvio, Mas como a experiência é formada e como a mídia

~ desempenha um papel em sua formação?-7, A experiência é moldada, ordenada e interrompida.

E moldada por atividades e experiências prévias. É orde-nada de acordo com normas e classificações que resistemà prova do tempo e do social. É interrompida pelo ines-perado, pelo não preparado, pelo incidente, pela catástro-fe, por sua própria vulnerabilidade, por sua inevitável etrágica falta de coerência. Expressamos a experiência emações e agimos sobre ela. Nesse sentido, ela é física,baseada no corpo e seus sentidos. De fato, é. o carátercomum da experiência corporal em diferentes culturasque os antropólogos, em particular, afirmaram ser aprecondição de nossa habilidade de compreensão mútua."A imaginação deriva do corpo como também da mente",diz Kirsten Hastrup (1995, p, 83), apesar de isso ser ra-ramente notado. O corpo na vida, sua encarnação, é abase material para a experiência. Ele nos dá um lugar. Éo lugar, não cartesiano, da ação e, também, das habilida-des e competências sem as quais ficamos inválidos. Issotem implicações importantes para a maneira como abor-damos a mídia e para a maneira como a mídia se intro-duz na experiência corporal, porque ela o faz, continua-mente, tecnologicamente, A noção de techne de MartinHeídegger captura o sentido de tecnología como habilida-de. Nossa capacidade de nos envolver com a mídia éprecondicionada por nossa capacidade de manejar amáquina. Mas, como já salientei, podemos pensar na mídiacomo extensões do corpo, como próteses; daí falta pouco

~I Por que estudar a mídia?

para perder de vista as fronteiras entre o humano e otécnico, entre o corpo e a máquina. Pense digitalmente.Ainda falaremos mais sobre mídia e corpos.

E os corpos vão além do físico. A experiência não ser sume nem ao senso comum, nem à performance corpo-ral. Tampouco se encerra na simples reflexão sobre suarapacidade de ordenar e ser ordenada. Pois, borbulhandosob a superfície da experiência, perturbando a tranqüilida-de e fraturando a subjetividade, está o inconsciente. Ne-nhuma análise da mídia pode ignorá-lo, tampouco as teo-rias que o abordam. Passemos então à psicanálise.

Sim, mas a psicanálise é um grande problema.A psicanálise é um grande problema de várias ma-

11 iras. Ela oferece, talvez bastante à força, uma maneirad abordar o perturbador e o não-racional. Ela nos força11 encarar a fantasia, o misterioso, o desejo, a perversão,n obsessão: os chamados problemas do cotidiano, queIanto são representados como reprimidos em textosmidíáticos de um tipo ou de outro e esgarçam o delicadoIt' 'ido do que normalmente se considera racional e nor-mal na sociedade moderna. A psicanálise é como umalinguagem. É como cinema. E vice-versa. A passagem dateoria e da prática clínicas à critica cultural é carregadadl ofuscamento e da fusão bastante fácil do particular edo geral, como também é repleta de arbitrariedade (mas-varada como teoria) de interpretação e análise. No entan-ln, como o próprio inconsciente, a psicanálise não iráembora. Ela oferece uma via para pensar sobre os senti-mentes: os medos e desesperos, as alegrias e confusõesque arranham o cotidiano e deixam nele uma cicatriz.

A textura da experiência 129

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A psicanálise é também um grande problema namedida em que perturba a fácil racionalidade de grandeparte da teoria da mídia contemporânea, de orientaçãocognitiva e propósito behaviorista. Ela questiona a redu-ção sociológica, embora na maioria das vezes deixe dereconhecer o social. Ela é, ou certamente deveria ser, umaabordagem para reforçar um senso das complexidades damídia e da cultura sem as cancelar. Se formos estudar amídia, teremos de encarar o papel do inconsciente naconstituição, como também no questionamento, da expe-riência. Do mesmo modo, se formos responder à perguntasobre por que estudar a mídia, parte de nossa respostaserá porque o inconsciente oferece uma via, se não umavia privilegiada, para dentro dos territórios ocultos damente e do significado.

A experiência, tanto a mediada como a da mídia,surge na interface do corpo e da psique. Ela, claro, seexprime no social e nos discursos, na fala e nas históriasda vida cotidiana, em que o social está sendo constante-mente reproduzido. Para citar Hastrup mais uma vez: "Nãoapenas a experiência está sempre ancorada numa coletivi-dade, mas a verdadeira ação humana é também inconce-bível fora da conversação contínua de uma comunidade,de onde surgem as distinções e avaliações de fundo neces-sárias para fazer escolhas de ações" (1995, p. 84).

I

Nossas histórias, nossas conversas estão presentestanto nas narrativas formais da mídia, na reportagemfactual e na representação ficcional como em nossos contosdo dia-a-dia: a fofoca, os boatos e interações casuais emque encontramos maneiras de nos fixar no espaço e no

30l Por que estudar a midia?

u-mpo, e sobretudo de nos fixar em nossas inter-relações,\'onectando e separando, compartilhando e negando, in-dividual e coletivamente, na amizade e na inimizade, napnz e na guerra. Já se opinou (Silverstone, 1981) quer ªuuuo a estrutura como o conteúdo das narrativas da mídia V'

" elas narrativas de ?OSSOS discursos cotidi~nos são ínter- à-dependentes, que, Juntos, eles nos permitem moldar e, ~rvaliar a experiência. O público e o privado se entrel a- ~\':tm, narrativamente. Deve ser este o caso. Na novela e C110talk show, os significados privados são propagados t'publicamente e os públicos são oferecidos para consumo ~privado. As vidas privadas de figuras públicas tornam-se v-II matéria da novela diária; os atores que representam v{personagens de novela tornam-se figuras públicas solici- ~(ndas a construir uma vida privada para consumo públi- rro. Caras! Contigo! 1-

O que se passa aqui? No cerne dos discursos sociais i-:que se incrustam em torno da experiência e a encarnam, tt' para os quais nossa mídia se tornou indispensável, estão11mprocessoe uma prática de classificação: a realizaçãode distinçõe,s e juízos. A classificação, portanto, não énpenas uma questão intelectual, nem mesmo apenas prá- e-:

1 i a, mas é, nos termos de Berlin, uma questão estética e1"1 ica. Nossas vidas são administráveis na medida em queexiste um mínimo de ordem, suficiente para fornecer o1 ipo de seguridades que nos permitem atravessar o dia. c.'>No entanto, essa ordem que somos capazes de obter nãol' neutra nem em suas condições nem em suas conseqüên-elas, pois nossa ordem exerce forte efeito sobre a ordemdos outros e dependerá da ordem, ou até mesmo da de-

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A textura da experiência l3J

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sordem, dos outros. Aqui também nos confrontamos comuma estética e uma ética - uma política essencialmente- da vida cotidiana, para as quais a mídia nos fornece,em importante grau, tanto os instrumentos como os pro-blemas: os conceitos, categorias e tecnologias para cons-truir e defender distâncias; para construir e manter cone-xões. Esses instrumentos estão talvez em mais evidênciae são portanto mais controversos quando uma nação estáou se sente em guerra. Mas não deixemos essa visibilida-de momentânea nos ofuscar o trabalho diário em quenós, individual e coletivamente, e nossa mídia estamosconstante e intensamente envolvidos, minuto a minuto,hora a hora.

Por conseguinte, na medida em que a mídia é, comoargumentei, essencial a esse processo de fazer distinções

j, e juízos; na medida em que ela, precisamente, medeia a

~ dialétic~Aen~re a cla~sifica~ão ~ue forma a experiência ea expenencia que da colondo a classificação, precisamosinvestigar as conseqüências de tal mediação. Temos deestudar a mídia.

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32l Por que estudar a midia?

2Mediação -:; \\:"'-SC~~\:"" ~

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Comecei a dizer que devemos pensar na mídia como r fum processo, um processo de mediação. Para tanto, é' ,necessário perceber que a mídia se estende para além do ~r

ponto de contato ~ntre os textos midiáticos e seus leitoresou espectadores. E necessário considerar que ela envolve ios produtores e consumidores de mídia numa atividade til X Imais ou menos contínua de engajamento e desengajamento fr (1)\

.om significados que têm sua fonte ou seu foco nos r: ~t xtos mediados, mas que dilatam a experiência e são ';t) ,

avaliados à sua luz numa infinidade de maneiras. ~ ~A mediação implica o movimento de significado de «

IIm texto para outro, de um discurso para outro, de um (\evento para ~tro. Implica a constante transformação de é:-significados, em grande e pequena escala, importante 9 - ~11 simportante, à medida que textos da mídia e texto , 6-sobre a mídia circulam em forma escrita, oral e audiovi /.sual, e à medida que nós, individual e coletivamente é/direta e indiretamente, colaboramos para sua produção .

. ~ãcui '.g~~~ medi~o, é maisdo que u fluxo em dOISestágios ~ do programa trans-mitido vi íderes de opinião para as pessoas na rua -,

133Mediação

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como Katz e Lazarsfeld (1955) defenderam em seu estudoseminal, embora ela apresente estágios e realmente flua. Os-1 " signi~~ados me~iado~ circulam em textos primários e se-

? ~ c~~danos, atra~es de mtertextualidades infindáveis, na pa-~ i. ródia e no pastiche, no constante replay e nos interminá-• veis discursos, na tela e fora dela, em que nós, como

.9 produtores e consumidores, agimos e interagimos, urgen-~j te~~nte procurando compreender o mundo, o mundo da- '5 mídia, o mundo mediado, o mundo da mediação. MascJjambém, e ao mesmo tempo, usamos os significados da{ mídia para evit~r o mundo, para nos distanciar dele, dos

~ desafios talvez .Impostos pela .responsabilidade e pelo cui-dado, para fugir do reconhecImento da diferença.

Essa inclusividade na mídia, nossa forçada partici-pação com ela, é duplamente problemática. É difícil des-vendar, encontrar uma origem, construir uma explicaçãodo poder da mídia, por exemplo. É difícil, provavelmenteimpossível, para nós, analistas, sair da cultura da mídiada cultura de nossa mídia. Com efeito, nossos própriostextos, como analistas, são parte do processo de media-ção. Aqui, somos como lingüistas tentando analisar suaprópria língua. De dentro, mas também de fora.

"Um lingüista não sai do tecido móvel da línguaverdadeira - sua própria língua, as línguas que ele co-.nhece - mais do que sai um homem do alcance de sua

Isombra"(Steiner, 1975, p. 111).A meu ver, isso tambémse aplica à mídia. Daí a dificuldade. É uma dificuldadeepistemológica, relacionada às maneilas como alegamosnossas compreensões da mediação. E é ética, pois exigeque elaboremos juízos sobre o exercício do poder no

341 Por que estudar a mídía?

processo de mediação. Estudar a mídia é um risco, emambos os casos. Isso implica, inevitável e necessariamen-I , um processo de desfamiliarização. Questionar o dado-por-certo. Mergulhar abaixo da superfície do significado.Recusar o óbvio, o literal, o singular. Em nosso trabalho,muitas vezes e com razão, o simples se torna complexo,o óbvio opaco. Luzes brilhantes fazem desaparecer assombras. Está tudo nos cantos.

A mediação é como a tradução segundo a visão deeorge Steiner. Nunca é completa, sempre transformativa,

, nunca, talvez, inteiramente satisfatória. E sempre con-Iestada. É um ato de amor. Steiner descreve a traduçãoem termos de movimento hermenêutico, um processoquádruplo de confiança, agressão, apropriação e restitui-ção. Confiança porque, ao desencadear o processo de tra-dução, identificamos valor no texto de que estam os tra-(ando, valor que queremos compreender, alegar e comu-nicar para os outros, para os nossos. Nesse at,o inici~l ~efconfiança declaramos nossa crença de que ha um sigm-li ado a ser apreendido no texto que estamos abordando](' de que esse significado sobreviverá a nossa tradução·lPodemos, é claro, estar errados. Agressão porque todos osatos de compreensão são "inerentemente apropriadores e,portanto, violentos" (Steiner, 1975, p. 297). Na tradução,entramos num texto ~ alegamos ter a posse de seu sig-11 ificado (Steiner é incorrigivelmente sexista em suas metá-foras), mas a violência que fazemos aos significados alheios,111(' mo nas mais suaves tentativas de compreender, élia tante familiar: nossos próprios discursos são salpica-dos de alegações de que a representação .da mídia é ten-

Mediação í35

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denciosa, ideológica e, amiúde, simplesmente falsa. Apro-priação significa levar os significados para casa: a perso-nificação, a consumação, a domesticação (esses termossão todos de Steiner) mais ou menos bem-sucedidas, maisou menos completas do significado. Esse é um processoque, no entanto, permanece incompleto e insatisfatóriosem o quarto e último movimento: a restituição. Restitui-ção sinaliza uma reavaliação: a reciprocidade no âmbitoda qual o tradutor devolve significado e, talvez, faça-lheacréscimos neste processo. A glória primitiva do originalpode ter desaparecido, mas o que vemos em seu lugar éalgo novo, certamente; algo melhor, possivelmente; algodiferente, obviamente. Nenhuma tradução, como diz Jor-ge Luis Borges em Piem' Menard, pode ser perfeita, nemmesmo em sua perfeição. Nenhuma tradução. E nenhumamediação.

Não obstante as suscetibilidades de Steiner e da tra-dução, ele se refere a ela como um processo diádico, ummovimento de um texto para outro e, principalmente,um movimento através do tempo. Ele implica a transiçãoentre textos passados e presentes. É um movimento queinclui tanto significado como valor. A tradução é umaatividade ao mesmo tempo estética e ética.

A mediação parece ser mais e menos do que a tra-dução, tal como analisada por Steiner. Mais porque amediação rompe os limites do textual e oferece descriçõesda realidade, assim como da textualidade. É tanto verticalcomo horizontal, dependente dos constantes deslocamen-tos de significados através do espaço tridimensional e atémesmo quadridimensional. Os significados mediados mo-

36l Por que estudar a mídia?

I 111 ~l- ntre textos certamente, e através do tempo. MasI 1llIl)I'ome movem através do espaço, e de espaços. ElesI IIIOVm do público para o privado, do institucional

I' 11 01 o individual, do globalizador para o local e o pes-u.tl, c více-versa. Eles são fixos, por assim dizer, nos

Ii los fluidos nas conversas. São visíveis em quadrosti •. nvlso e sites da Internet e enterrados nas mentes e nasIi iuhranças. Mas a mediação é menos que a traduçãojlllIVHVelmenteporque às vezes não tem nada de amoro-" O mediador não está necessariamente ligado a seu

Ii 10,nem a seu objeto, por amor, embora possa estar emI ,I os particulares. A fidelidade à imagem ou ao evento11. li é de modo algum tão forte quanto é, ou foi um dia,II palavra.

Uma tradução é reconhecida e respeitada como umIllIh.al~o_de autoria. A mediaç~o envolv~ o trabalho !t flnslituições, grupos e tecnologías. Ela nao começa ne itrunina com um texto singular. Suas pretensões de fecha r ~nu-nto, o produto das ideologias e narrativas de notícias, c 6

IPor exemplo, são comprometi~a.s, no pont~ da _transmi~- 1 r• o, pela certeza de que a proxima comumcaçao, o pro- -r'I IImo boletim, a próxima história, o comentário ou a ~

Interrogação por vir levarão as coisas e os significados h.ullante e para outro lugar. A visão que .Steiner tem da 4).~Irndução não ultrapassa o texto, a despeito do reconhe- ti rI'lmento do próprio lugar dele, Steiner, na linguagem. Em feuntrapartida, a mediação é infinita, produto do desenre- ~rlamento textual nas palavras, nos atos e nas experiênciasda vida cotidiana, tanto quanto pelas continuidades damídia de massa e da mídia segmentada.

Mediação 1-----:37

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Desse modo, a mediação é menos do que a traduçãoprecisamente na medida em que é o produto do trabalhoinstitucional e técnico com palavras e imagens, e o pro-duto também de um engajamento com os significadosinformes de eventos ou fantasias. Os significados que, defato, surgem, ou que são alegados, tanto provisória comodefinitivamente (de ambos os modos, é claro, e de uma sóvez, em quase todo ato de comunicação), surgem sem aintensidade da atenção específica e precisa à linguagemou sem a necessidade de recriar, em algum grau, um textooriginal. Nesse sentido, a mediação é menos determinada,mais aberta, mais singular, mais compartilhada e maisvulnerável, talvez, a abusos.

No entanto, a discussão continua pertinente, sobre-tudo porque o que se tem aqui não é a distinção entrediferentes tipos de tradução: literalismo, paráfrase e livreimitação, que o próprio Steiner acha estéreis e arbitrárias.É pertinente porque temos aqui o reconhecimento de quea importância da tradução reside no investimento, tantoético como estético, que se faz nela e nas reivindicaçõesque são feitas para ela e por ela. A tradução é um pro-cesso em que os significados são produzidos, significadosque cruzam fronteiras, tanto espaciais como temporais.Investigar esse processo é investigar as instabilidades e 01

fluxo de significados e suas transformações, mas tambéma política de sua fixação. Tal investigação fornece o modelopara algumas coisas que pretendo dizer agora sobre amediação.

Consideremos o exemplo de um jovem pesquisadorde televisão trabalhando num documentário sobre a vida

~I Por que estudar a mídia?

)

• 111lusütuíções totais. Uma série que investigará as ma-li' 'dS pelas quais tais instituições, nesse caso um mostei-'li, ~o .ializam novos membros em um novo modo de

Idol, um novo regime, uma nova ordem. Uma idéia íní-I 1,11 (' a bem-sucedida persuasão do produtor executivo de1101viabilidade resultaram num almoço com o abade num

,,' 1:lurante no Soho. Ele deixaria uma equipe de produ-, () entrar no mosteiro para seguir um grupo de noviços

, 111sua preparação para se integrar à nova comunidade?( uuccdería ao meio televisivo os direitos de representa-

I o? O abade consideraria isso. Um programa anterior em11111ra parte na rede tinha sido visto como um fracasso,IIIi1Sesta era uma idéia interessante, e parecia haver entretiS dois homens uma concordância suficiente para 51 su-~',l'stão de que o pesquisador visitasse o mosteiro paradiscuti-Ia mais.

Poucas semanas depois, o pesquisador está numasala com toda a comunidade de monges. Ele apresentasiIa idéia do programa e é interrogado. Talvez por inocên-ria, mais provavelmente por orgulho profissional, eled .lineia o que espera alcançar no programa, argumentan-do que será fiel ao modo de vida deles e tentará não serdcturpador nem sensacionalista. Ele viverá algum tempona comunidade. O filme se baseará numa pesquisa meti-.ulosa e rigorosa. As vozes dos próprios monges serãoouvidas. Podem confiar em que o pesquisador passará averdade (sim, ele disse isso]. Ele é convincente. Chega-sea um acordo. O pesquisador se une aos monges por duasemanas e segue sua rotina. Fala com eles, come com eles

e freqüenta seus cultos. Passa a respeitá-los intensamente,

Mediação 139

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mas não compreende sua fé. Ele escolhe dois noviços ediscute o que estará envolvido com eles. O plano é fazero filme durante o período de um ano para monitorar oprogresso do noviciado.

O pesquisador retoma a Londres e passa as informa-ções para o diretor e o produtor. A filmagem começa e,no devido tempo, termina. Uma infinidade de imagens,palavras e sons para ser editadas num texto coerente. Opesquisador, apesar de ter feito grande parte das entrevis-tas filmadas, agora já não está muito envolvido no pro-cesso de produção e assiste de braços cruzados, enquantoo mundo que ele observou, o mundo que, embora imper-feita e incompletamente, passou a compreender é recons-truído quadro a quadro. Cada vez mais impotente, eleassiste à produção institucional do significado: a constru-ção de uma narrativa; a criação de um texto que atendeàs expectativas do programa, um texto que se encaixa nohorário reservado, que solicitará uma audiência e alegaráum significado. Ele vê uma nova realidade surgindo sobrea antiga, reconhecível, justa, pelo menos para ele, mascada vez mais distante do que, segundo acredita, os pró-prios monges conheceriam e compreenderiam.

\

Essa é uma tradução feita de boa-fé. Contudo, nomomento em que os significados emergentes cruzam asoleira entre o mundo das vidas mediadas e o da mídiaviva, no momento em que as agendas mudam e em quea televisão, neste caso, impõe suas próprias formas detrabalho, uma nova realidade, mediada, ergue-se do mar,rompendo a superfície de um conjunto de experiências eoferecendo, afirmando, outras.

wl Por que estudar a mídía?)

O programa é transmitido e, de fato, reprisado. Al-gum tempo depois, o pesquisador se encontra socialmenterorn um membro da comunidade. O que ele achou, o queel s acharam? Timidamente, e um pouco dolorosamente,li resposta era bastante clara. Decepção. Pesar. Outro fra-casso. Uma oportunidade perdida. Pode ter sido umdocumentário, que entretanto não documentou, não refle-Iiu ou representou com precisão a vida ou a instituiçãod leso O pesquisador não ficou inteiramente surpreso, nemchocado. Mas o reconhecimento do fracasso o derrubou.1\ falha foi dele? Era inevitável? Seria possível outroresultado?

Nesse meio tempo, milhões de pessoas terão visto oprograma; muitas terão gostado; e muitas terão incorpo-rado algo de seu significado em suas próprias compreen-sões do mundo. A análise da tradução feita por Steinernão inclui o leitor ou a leitura. Minha análise da media-~'~o deve incluí-los, pois sem privilegiá-los, a todos nósque nos engajamos contínua e infinitamente com os sig-11 ificados .midiáticos, sem uma preocupação com a eficá-cia desse· engajamento, corremos o risco de uma má in-I .rpretação. Todos participamos do processo de mediaçãoOu não, conforme o caso.

Essa história do envolvimento de um documentáriotclevísívo com um mundo privado é, talvez, bastante fami- ~llar e cada vez mais compreendida tanto pelas pessoas 1abordadas para participar como sujeitos na mediação como &pios espectadores e leitores que passaram a entender al- ~Muns dos limites nas alegações de autenticidade por parteda mídia. Mas em seu cerne, como Steiner reconhece, re-

Mediação 141

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-----------------------~~"'c.

d f ar no) ~';jfiJ[dia: a necessidade e oc E

devemos estudar. a.m d~s através dos limiares da re-movimento dos slgmfi~~ . D estabelecer os lugares e

- da expenencla. e .presentaçao e nder a relação entre sig-di 'b' De compree

fontes de ~st~r 10. . ado entre textos e tecnologias. Enificados publ1co e prrv , _ Além disso, devemosde identificar os pontos de pressao. ortagem factual, com

-o apenas com a rep .nos preocupar na . ão A mídia é entretem- f /

a mídia como .fonte d~ mf~:;~ricados são produzidos e Umento. E aqui, tamb~m, de anhar a atenção, de cum- ritransformados: tent~tlV:s d ~os' prazeres oferecidos ou 01primento e frustraça\, e ~s ec~ recursos para conversa, IVnegados. Mas ela tam .em o _er 'ncorporação à medidareconhecimento, identlficaçl~o e 1 nossas imagens e nos-

1· ou não ava íamos, 1que ava íamos, l/ s que vemos na te a.ração com aque a

sas vidas em cornpa d se processo de mediação,Precisamos compreen er es. nificados onde e com

compreender como surg~m os síg capazes' de identificar.., ias PreClsamos ser , ,

que consequenc . parece falhar em que e )t em que o processo 'os momen os . d propósito. Precisamosdistorcido pela tecn~l?gl~ s~~ V:lnerabilidade ao exerci-compreender sua POhtlC~: . do trabalho de instituiçõescio do poder; sua depen e~Cl~ poder de persuadir e deie de indivíduos; e seu propnoreclamar atenção e resposta. L

,M.,.: cA;. o-..

"çe-\-.c c e,\~~\:~,u ~Jo- c."'~~rJ-.. ""':J-

Mediação \ 43

side a questão da confiança. E confiança em diversos pontosdo processo. Os sujeitos do filme devem confiar naquelesque se apresentam como mediadores. Os espectadores de-vem confiar nos mediadores profissionais. E os mediadoresprofissionais devem confiar em suas próprias habilidades ecapacidades de fornecer um texto honesto.

Embora possamos ser perdoados por considerar se-melhante confiança tão passível de traição, cinicamenteou não ela é uma precondição da mediação, uma pre-condição necessária em todos os esforços da mídia porrepresentação, e especialmente por representação factual.Claro, esse tópico da confiança não molda todas as for-mas de mediação, embora também seja uma precondição,como afirmou Jürgen Habermas (1970), para qualquercomunicação eficaz. Uma questão que sempre reapareceráneste livro é saber o que está ocorrendo com a confiançano cerne do processo da mediação e com a percepção decomo é importante encontrar meios de preservá-Ia ouprotegê-Ia.

Todos nós somos mediadores, e os significados quecriamos são, eles próprios, nômades. Além de poderosos.Fronteiras são transpostas, e, tão logo programas são trans-mitidos, uieb-sites construídos ou e-maus enviados, elascontinuarão a ser transpostas até que as palavras e ima-gens que foram geradas ou simuladas desapareçam da visãoou da memória. Toda transposição é também uma transfor-mação. E toda transformação é, ela mesma, uma reivindi-cação de significado, de sua relevância e de seu valor.

Nossa preocupação com a mediação como um pro-cesso é, portanto, essencial à questão de saber por que

42l Por que estudar a midia?