cândido rangel dinamarco - instituições de direito processual civil - volume i - livro i - os...

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INSTITUIÇOES DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL - Volume I - Livro I - Os Fundamentos e as Instituições Fundamentais Sumário LIVRO I - OS FUNDAMENTOS E AS INSTITUIÇÕES FUNDAMENTAIS 5 PREFÁCIO 7 LIVRO I 9 OS FUNDAMENTOS E AS INSTITUIÇÕES FUNDAMENTAIS 9 TÍTULO I - O DIREITO PROCESSUAL CIVIL 9 CAPÍTULO I -AS GRANDES PREMISSAS 9 1. SOLUÇÃO IMPERATIVA DE CONFLITOS 9 2. O DIREITO PROCESSUAL CIVIL 9 3. DIREITO FORMAL, SEM FORMALISMO. 9 4. DIREITO PROCESSUAL E DIREITO MATERIAL 10 5. DOIS PLANOS DISTINTOS (INFRA, N. 5I) 10 6. O DIREITO PROCESSUAL MATERIAL 10 7. INSTITUTOS PROCESSUAIS PARTICULARMENTE INFLUENCIADOS PELO DIREITO MATERIAL 11 8. DIREITO PÚBLICO 11 9. DENOMINAÇÃO 12 10. A CIÊNCIA PROCESSUAL CIVIL 12 11. A TEORIA GERAL DO PROCESSO 12 12. DIREITO PROCESSUAL CONSTITUCIONAL (INFRA, N. 74) 12 13. DIREITO PROCESSUAL CIVIL INTERNACIONAL 13 14. DIREITO PROCESSUAL CIVIL COMPARADO 13 15. O RAMO JURIDICO, A TÉCNICA, A CIÊNCIA E A ARTE 13 16. INSTRUMENTO ÉTICO E NÃO PURAMENTE TÉCNICO 14 CAPITULO II -A LEI PROCESSUAL CIVIL 14 17. A NORMA PROCESSUAL CIVIL E SEU OBJETO 14 18. NORMAS PROCESSUAIS E NORMAS PROCEDIMENTAIS 15 19. NORMAS SECUNDÁRIAS 15 20. NORMAS PROCESSUAIS CIVIS COGENTES OU DISPOSITIVAS 16 21. FONTES FORMAIS DA NORMA PROCESSUAL CIVIL 16 22. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL 16 23. TRATADOS INTERNACIONAIS 16 24. A LEI 17 25. LEIS FEDERAIS ORDINÁRIAS 17 26. LEIS COMPLEMENTARES FEDERAIS 18 27. CONSTITUIÇÕES E LEIS ESTADUAIS 18 28. REGIMENTOS INTERNOS DOS TRIBUNAIS 18 29. A JURISPRUDÊNCIA - USOS-E-COSTUMES JUDICIÁRIOS 19 30. CONHECIMENTO DA LEI PROCESSUAL 19 31. INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO DA LEI PROCESSUAL CIVIL 19 32. AS DIMENSÕES DA LEI PROCESSUAL CIVIL: NORMAS DE SUPERDIREITO 20 33. DIMENSÃO ESPACIAL DA LEI PROCESSUAL CIVIL. TERRITORIALIDADE 20 34. DIMENSÃO TEMPORAL DA LEI PROCESSUAL CIVIL. VIGÊNCIA E EFICÁCIA 21 1

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INSTITUIÇOES DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL - Volume I - Livro I - Os Fundamentos e as Instituições Fundamentais

Sumário

LIVRO I - OS FUNDAMENTOS E AS INSTITUIÇÕES FUNDAMENTAIS 5 PREFÁCIO 7 LIVRO I 9 OS FUNDAMENTOS E AS INSTITUIÇÕES FUNDAMENTAIS 9 TÍTULO I - O DIREITO PROCESSUAL CIVIL 9 CAPÍTULO I -AS GRANDES PREMISSAS 9 1. SOLUÇÃO IMPERATIVA DE CONFLITOS 92. O DIREITO PROCESSUAL CIVIL 93. DIREITO FORMAL, SEM FORMALISMO. 94. DIREITO PROCESSUAL E DIREITO MATERIAL 105. DOIS PLANOS DISTINTOS (INFRA, N. 5I) 106. O DIREITO PROCESSUAL MATERIAL 107. INSTITUTOS PROCESSUAIS PARTICULARMENTE INFLUENCIADOS PELO DIREITO MATERIAL 118. DIREITO PÚBLICO 119. DENOMINAÇÃO 1210. A CIÊNCIA PROCESSUAL CIVIL 1211. A TEORIA GERAL DO PROCESSO 1212. DIREITO PROCESSUAL CONSTITUCIONAL (INFRA, N. 74) 1213. DIREITO PROCESSUAL CIVIL INTERNACIONAL 1314. DIREITO PROCESSUAL CIVIL COMPARADO 1315. O RAMO JURIDICO, A TÉCNICA, A CIÊNCIA E A ARTE 1316. INSTRUMENTO ÉTICO E NÃO PURAMENTE TÉCNICO 14CAPITULO II -A LEI PROCESSUAL CIVIL 14 17. A NORMA PROCESSUAL CIVIL E SEU OBJETO 1418. NORMAS PROCESSUAIS E NORMAS PROCEDIMENTAIS 1519. NORMAS SECUNDÁRIAS 1520. NORMAS PROCESSUAIS CIVIS COGENTES OU DISPOSITIVAS 1621. FONTES FORMAIS DA NORMA PROCESSUAL CIVIL 1622. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL 1623. TRATADOS INTERNACIONAIS 1624. A LEI 1725. LEIS FEDERAIS ORDINÁRIAS 1726. LEIS COMPLEMENTARES FEDERAIS 1827. CONSTITUIÇÕES E LEIS ESTADUAIS 1828. REGIMENTOS INTERNOS DOS TRIBUNAIS 1829. A JURISPRUDÊNCIA - USOS-E-COSTUMES JUDICIÁRIOS 1930. CONHECIMENTO DA LEI PROCESSUAL 1931. INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO DA LEI PROCESSUAL CIVIL 1932. AS DIMENSÕES DA LEI PROCESSUAL CIVIL: NORMAS DE SUPERDIREITO 2033. DIMENSÃO ESPACIAL DA LEI PROCESSUAL CIVIL. TERRITORIALIDADE 2034. DIMENSÃO TEMPORAL DA LEI PROCESSUAL CIVIL. VIGÊNCIA E EFICÁCIA 2135. INÍCIO E FIM DA VIGÊNCIA DA LEI PROCESSUAL CIVIL 2136. EFICÁCIA DA LEI PROCESSUAL CIVIL NO TEMPO 2237. REGRAS DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL INTERTEMPORAL 2238. CONTA: PRESERVAÇÃO DA GARANTIA DE TUTELA JURISDICIONAL (REMISSÃO AO DIREITO PROCESSUAL MATERIAL) 22TÍTULO II - O ACESSO À JUSTIÇA E A TUTELA JURISDICIONAL 23 CAPÍTULO III - OS CONFLITOS E A ORDEM JURÍDICA JUSTA 23 39. TUTELA JURISDICIONAL A PESSOAS OU GRUPOS - AO AUTOR OU AO RÉU - CONTRA O PROCESSO CIVIL DO AUTOR 23

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40. PROCESSO CIVIL DE RESULTADOS 2441. SISTEMA DE PROMESSAS E LIMITAÇÕES 2442. A UNIVERSALIZAÇÃO DA TUTELA JURISDICIONAL E AS ONDAS RENOVATÓRIAS 2443. ACESSO À JUSTIÇA 2544. OS CONFLITOS (CRISES JURÍDICAS: INFRA, N. 58) 2545. MEIOS ALTERNATIVOS DE ACESSO À JUSTIÇA (JUSTIÇA PARAJURISDICIONAL) 2646. EQUIVALÊNCIA FUNCIONAL - O VALOR SOCIAL DA CONCILIAÇÃO, DA MEDIAÇÃO E DA ARBITRAGEM26CAPÍTULO IV - OS ESCOPOS DO PROCESSO CIVIL E A TÉCNICA PROCESSUAL 27 47. ABANDONO DA VISÃO PURAMENTE JURÍDICA DO PROCESSO CIVIL 2748. O FUNDAMENTAL ESCOPO SOCIAL. PACIFICAÇÃO 2749. OUTRO ESCOPO SOCIAL. EDUCAÇÃO 2850. ESCOPOS POLÍTICOS 2851. O ESCOPO JURÍDICO DO PROCESSO CIVIL - AS TEORIAS UNITÁRIA E DUALISTA DO ORDENAMENTO JURÍDICO (SUPRA, N. 5) 2852. ESCOPOS DO PROCESSO CIVIL E TÉCNICA PROCESSUAL 2953. OS PROCESSOS, PROVIMENTOS E PROCEDIMENTOS COMO TÉCNICAS 2954. EQUILÍBRIO ENTRE EXIGÊNCIAS CONTRAPOSTAS 3055. CERTEZA, PROBABILIDADE E RISCO EM DIREITO PROCESSUAL CIVIL 30CAPÍTULO V - ESPÉCIES DE TUTELAS JURISDICIONAIS E A REALIDADE DOS CONFLITOS 31 56. AS SITUAÇÕES DA VIDA, O DIREITO SUBSTANCIAL E AS TÉCNICAS PROCESSUAIS 3157. PROVIMENTOS JURISDICIONAIS 3158. AS CRISES JURÍDICAS E AS TUTELAS COGNITIVA E EXECUTIVA 3259. TUTELA PREVENTIVA, REPARATÓRIA OU SANCIONATÓRIA - TUTELA INIBITÓRIA - TUTELA ESPECÍFICA OU INESPECÍFICA (RESSARCITÓRIA) 3260. ENTRE A TUTELA INDIVIDUAL E A COLETIVA 3361. MEIOS PROCESSUAIS ADEQUADOS 3462. TUTELAS JURISDICIONAIS DE URGÊNCIA 3463. TUTELAS JURISDICIONAIS DIFERENCIADAS - COGNIÇÃO SUMÁRIA (INFRA, NN. 771, 774, 777 E 976)

3564. ESCOLHA DA TUTELA JURISDICIONAL ADEQUADA 3565. ESPÉCIES DE PROCESSOS 3566. DISPONIBILIDADE E INDISPONIBILIDADE NAS ESCOLHAS 36TÍTULO III - O PROCESSO CIVIL BRASILEIRO 36 CAPÍTULO VI - O MODELO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO 36 67. SISTEMA PROCESSUAL E MODELO PROCESSUAL 3668. O DIREITO PROCESSUAL CIVIL E O MITO DAS FAMÍLIAS DO DIREITO 3669. ELEMENTOS RELEVANTES PARA A IDENTIFICAÇÃO DO MODELO PROCESSUAL CIVIL 3770. O PENSAMENTO JURÍDICO PROCESSUAL BRASILEIRO 3771. ELEMENTOS PARA A IDENTIFICAÇÃO DO MODELO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO NO PLANO CONSTITUCIONAL E NO TÉCNICO-PROCESSUAL 3772. O MODELO CONSTITUCIONAL DO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO (SUPRA, N. 12 E INFRA, NN. 74 SS.)

3873. O MODELO INFRACONSTITUCIONAL DO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO (TÉCNICO-OPERACIONAL) 39CAPÍTULO VII -OS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS: PRINCÍPIOS E GARANTIAS DO PROCESSO CIVIL 39 74. PROCESSO E CONSTITUIÇÃO 4075. VALOR SISTEMÁTICO DOS PRINCÍPIOS - O PROCESSO COMO DIREITO PÚBLICO 4076. TUTELA CONSTITUCIONAL DO PROCESSO CIVIL -PRINCÍPIOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS 4177. PRINCÍPIOS GERAIS E REGRAS TÉCNICAS - OS PRINCÍPIOS FORMATIVOS DO PROCESSO 4178. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL (PRINCÍPIOS GERAIS) 4179. PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE DO CONTROLE JURISDICIONAL 4280. A IMPARCIALIDADE DO JUIZ E AS GARANTIAS DO JUIZ NATURAL 4281. O JUIZ NATURAL 43

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82. PRINCÍPIO DA IGUALDADE 4383. A GARANTIA CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE E OS PRIVILÉGIOS DO ESTADO NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO 4484. O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E SUA DUPLA DESTINAÇÃO 4585. CONTRADITÓRIO E PARTES 4586. O CONTRADITÓRIO NO PROCESSO EXECUTIVO 4587. CONTRADITÓRIO E TUTELA COLETIVA 4688. CONTRADITÓRIO E JUIZ 4689. PRINCÍPIO DA LIBERDADE DAS PARTES 4791. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE DOS ATOS PROCESSUAIS 4992. PRINCÍPIO DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO 5093. EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DE MOTIVAÇÃO DAS SENTENÇAS E DEMAIS DECISÕES JUDICIÁRIAS (INFRA, N. 1.223) 5194. A CONVERGÊNCIA DOS PRINCÍPIOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL. DEVIDO PROCESSO LEGAL 5195. O ACESSO À JUSTIÇA COMO PRINCÍPIO-SÍNTESE E OBJETIVO FINAL 5296. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA E EVOLUTIVA DOS PRINCÍPIOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL 5297. TUTELA JURISDICIONAL AOS PRINCÍPIOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL 52CAPÍTULO VIII - PASSADO E FUTURO DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO: TENDÊNCIAS 53 98. TRÊS FASES METODOLÓGICAS NA HISTÓRIA DO PROCESSO CIVIL 5399. OS GRANDES MESTRES DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL (PANORAMA INTERNACIONAL) 54100. A CIÊNCIA PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX E NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX 56101. LIEBMAN, A ESCOLA PROCESSUAL DE SÃO PAULO E O MODERNO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO 56102. SUCESSÃO HISTÓRICA DAS FONTES FORMAIS DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO 57103. DOIS CÓDIGOS SUBSTANCIALMENTE ANÁLOGOS 58104. O CONSTITUCIONALISMO E A ABERTURA PARA A PERSPECTIVA METAJURÍDICA DO PROCESSO CIVIL (A SÉTIMA FASE DA HISTÓRIA DO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO) 58105. INFLUÊNCIAS DO PROCESSO CIVIL DA COMMON LAW 59106. ALBORES DE UMA INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA 59107. TENDÊNCIAS MODERNAS DO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO: PROGNÓSTICOS E ASPIRAÇÕES 601- UNIVERSALIZAÇÃO DA JURISDIÇÃO. 60II - SÚMULAS VINCULANTES. 61III - ACELERAÇÃO DO PROCESSO. 61IV - AÇÕES EXECUTIVAS LATO SENSU. 61V - EFETIVIDADE DA TUTELA JURISDICIONAL. 61TÍTULO IV - OS INSTITUTOS FUNDAMENTAIS 61 CAPÍTULO IX- INSTITUTOS FUNDAMENTAIS DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL 61 108. DOS FUNDAMENTOS AOS INSTITUTOS FUNDAMENTAIS 61109. JURISDIÇÃO (INFRA, NN. 117-132) 62110. PROCESSO (INFRA, NN. 386-392) 62111. O OBJETO DO PROCESSO E A LIDE 62112. AÇÃO E DEFESA (INFRA, NN. 539-559) 62113. DEMANDA (INFRA, NN. 430-458) 63114. A JURISDIÇÃO COMO INSTITUTO CENTRAL DO SISTEMA 63115. OS MEIOS (PROVAS E BENS) (INFRA, NN. 721-724) 63116. COISA JULGADA (INFRA, NN. 952-970) 63LIVRO II - A FUNÇÃO DO ESTADO NO PROCESSO: JURISDIÇÃO 64 TÍTULO V - JURISDIÇÃO E PODER 64CAPÍTULO X - A JURISDIÇÃO CIVIL 64117. CONCEITO - A JURISDIÇÃO NO QUADRO DO PODER ESTATAL 64118. INEVITABILIDADE 64

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119. DEFINITIVIDADE (IMUNIDADE) 65120. ATIVIDADE SECUNDÁRIA OU PRIMÁRIA 65121. DIMENSÕES DA JURISDIÇÃO 65122. ESPÉCIES DE JURISDIÇÃO 66123. JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA 66124. JURISDIÇÃO CIVIL OU PENAL 67125. JURISDIÇÃO COMUM OU ESPECIAL 67126. JURISDIÇÃO INFERIOR OU SUPERIOR 67127. JURISDIÇÃO DE DIREITO OU DE EQÜIDADE 67128. UNIDADE DA JURISDIÇÃO E PLURALIDADE DOS ÓRGÃOS QUE A EXERCEM: COMPETÊNCIA 68129. O ESTADO JUIZ E OS JUÍZES NO EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO 68130. IMPESSOALIDADE, IMPARCIALIDADE E INDELEGABILIDADE 68131. PODERES E DEVERES DO JUIZ 69132. LIMITAÇÕES À JURISDIÇÃO E AO SEU EXERCÍCIO – TERRITORIALIDADE 69CAPÍTULO XI - A JURISDIÇÃO E OS DEMAIS ESTADOS: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL 69 133. AUTOLIMITAÇÃO DO PODER POR NORMAS DE DIREITO INTERNO 69134. EXCLUSÃO POR INVIABILIDADE 70135. EXCLUSÃO POR DESINTERESSE 70136. EXCLUSÃO POR RAZÕES DE CONVIVÊNCIA INTERNACIONAL 70137. A COMPETÊNCIA DO JUIZ BRASILEIRO 70138. COMPETÊNCIA INTERNACIONAL CONCORRENTE 71139. DOMICÍLIO DO RÉU 71140. PAÍS DE CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO 71141. ATOS PRATICADOS NO BRASIL OU FATOS AQUI OCORRIDOS 71142. COMPETÊNCIA INTERNACIONAL EXCLUSIVA 72143. IMÓVEIS SITUADOS NO BRASIL 72144. INVENTÁRIOS E PARTILHAS 72145. PRORROGAÇÃO DA COMPETÊNCIA INTERNACIONAL 72146. EXTINÇÃO DO PROCESSO 72147. LITISPENDÊNCIA ESTRANGEIRA 72148. COMPETÊNCIA INTERNACIONAL E DIREITO SUBSTANCIAL ESTRANGEIRO 73TÍTULO VI - ÓRGÃOS E ORGANISMOS ENCARREGADOS DA JURISDIÇÃO 73 CAPÍTULO XII- OS ÓRGÃOS DA JURISDIÇÃO E SUA INDEPENDENCIA: ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA 73 149. CONCEITO E ENQUADRAMENTO SISTEMÁTICO - A TUTELA CONSTITUCIONAL DA ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA 73150. O JUDICIÁRIO ENTRE OS PODERES DO ESTADO 74151. LINHAS-MESTRAS DA ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA 74152. CONTEÚDO DAS NORMAS DE ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA 75153. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA 75154. A JUSTIÇA E A –MAGISTRATURA 75155. AUTONOMIA DO PODER JUDICIÁRIO É INDEPENDÊNCIA DOS JUÍZES 75156. PERÍODOS DE TRABALHO FORENSE 76CAPÍTULO XIII - OS ORGAOS DA JURISDIÇÃO: ESTRUTURA JUDICIÁRIA BRASILEIRA 76 157. NÚMERO FECHADO DE ÓRGÃOS JURISDICIONAIS 76158. DIMENSÕES DA ESTRUTURA JUDICIÁRIA BRASILEIRA 77159. ESTRUTURA JUDICIÁRIA: O MODELO BRASILEIRO 77160. ÓRGÃOS DE CONVERGÊNCIA E ÓRGÃOS DE SUPERPOSIÇÃO 78161. AS JUSTIÇAS E SUA ESTRUTURA 78162. JUÍZOS SINGULARES NA JURISDIÇÃO CIVIL INFERIOR 79163. A COMPOSIÇÃO DOS TRIBUNAIS 79164. A DIVISÃO JUDICIÁRIA BRASILEIRA: LINHAS GERAIS 79165. CONCEITO DE FORO 80

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166. OS FOROS EM SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO 80167. OS FOROS EM PRIMEIRO GRAU DE JURISDIÇÃO 80168. JUÍZOS 81169. JUÍZOS DA MESMA ESPÉCIE OU DE ESPÉCIES DIFERENTES 81170. FOROS REGIONAIS E VARAS DISTRITAIS 81CAPÍTULO XIV - O ESTATUTO CONSTITUCIONAL DA MAGISTRATURA E A INDEPENDENCIA DOS JUÍZES 81 171. O ESTATUTO CONSTITUCIONAL DA MAGISTRATURA 82172. AS CARREIRAS JUDICIÁRIAS 82173. RECRUTAMENTO DE JUÍZES 82174. O INGRESSO NAS CARREIRAS JUDICIÁRIAS: CONCURSO 82175. OUTROS MODOS DE RECRUTAMENTO 82176. O QUINTO CONSTITUCIONAL 83177. DIFERENTES NÍVEIS OU CLASSES 83178. PROMOÇÕES ALTERNADAS POR MERECIMENTO E POR ANTIGÜIDADE 83179. REMOÇÕES 83180. GARANTIAS DOS JUÍZES 84181. A TRÍPLICE GARANTIA, SUA LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA E SUA RELATIVIDADE 84182. VITALICIEDADE 84183. INAMOVIBILIDADE 84184. IRREDUTIBILIDADE DE VENCIMENTOS 85185. IMPEDIMENTOS DOS JUÍZES (IMPARCIALIDADE) 85186. DEVERES DO JUIZ 85187. SÍNTESE DAS GARANTIAS, IMPEDIMENTOS E DEVERES 85188. A INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL DO JUIZ 86189. O CONTROLE DA JUSTIÇA E DA MAGISTRATURA 86190. escolas da Magistratura 86

DINAMARCO, Cândido Rangel; Instituições de Direito Processual Civil, vol. 1, Editora Malheiros, São Paulo: 2001

CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO é Professor Titular de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Foi Procurador de Justiça do Estado. Especializou-se em Direito Processual Civil na Universidade Estatal de Milão, Itália, junto ao Prof. Enrico Tullio Liebman. Integrou a Comissão de Revisão dos Códigos, do Ministério da Justiça.

- Além de artigos e colaborações em re-vistas jurídicas, no País e no estrangeiro, é autor dos seguintes livros: "Direito Processual Civil" (1975); "Juizado Especial de Pequenas Causas" (1985), em cooperação; "Manual de Direito Processual Civil", de Enrico Tullio Liebman (tradução e notas; 2a ed., 1987), e "Manual das Pequenas Causas" (1985).

Por esta Editora publicou, além deste Instituições de Direito Processual Civil: Execução Civil (711 ed., 2000); Fundamentos do Processo Civil Moderno (2 vs.) (4á ed., 2001);A Instrumentalidade do Processo (92 ed., 2001);Intervenção de Terceiros (2;1 ed., 2000); Litisconsórcio (6? ed., 2001); Manual dos Juizados Cíveis (2á ed., 2001);A Reforma do Código de Processo Civil (51 ed., 2001);Teoria Geral do Processo (174 ed., 2001), em colaboração com Ada Pellegrini Grinover e Antonio Carlos de Araújo Cintra.

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MALHEIROS :v: EDITORES INSTITUIÇÕES DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL

VOLUME IFUNDAMENTOS E INSTITUTOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL;JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA;ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA MINISTÉRIO PÚBLICO;ADVOGADO; SERVIÇOS AUXILIARES DA JUSTIÇA;

-MALHEIROS :v :EDITORES - OBRAS DO AUTORExecução Civil, 7á ed., 2000;Fundamentos do Processo Civil Moderno (2vs.), 4í1 ed., 2001; Instituições de Direito Processual Civil (3 vs.), 2001;A Instrumentalidade do Processo, 9á ed., 2001;Intervenção de Terceiros, 2á ed., 2000; Litisconsórcio, 611 ed., 2001;Manual dos Juizados Cíveis, 22 ed., 2001A Reforma do Código de Processo Civil, Sá ed., 2001 Teoria Geral do Processo (em colaboração), 17~1 ed., 2001 Direito Processual Civil, 1974 Cândido Rangel DinamarcoINSTITUIÇÕES DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL - VOLUME I - INSTITUIÇOES DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL © CÂNDIDO RANGEL DINAMARCOISBN DA COLEÇÃO 85-7420-237-1 ISBN DESTE VOLUME 85-7420-212-6Direitos reservados desta edição por MALHEIROS EDITORES LTDA. Rua Paes de Araújo, 29, conjunto 171 CEP 04531-940 - São Paulo - SP Tel.: (Oxxll) 3078-7205 Fax: (Oxxll) 3168-5495 URL: www.malheiroseditores.com.br e-mail: [email protected]ção PC Editorial Ltda.Capa Arte: PC Editorial Ltda.

Impresso no Brasil Printed in Brazil 08-2001

ESCLARECIMENTO AO LEITOR:Esta obra foi programada para ser composta de quatro volumes, três dos quais são agora entregues ao público leitor. Esperamos oferecer o quarto volume no primeiro semestre de 2002, incluindo o estudo da execução civil, das medidas de urgência e do processo perante os tribunais (recursos, ação rescisória, incidentes etc.).

A EDITORA e o AUTOR.

Agradecimento:a Ana Lúcia Pereira Santos pela minuciosa revisão, pelas utilíssimas sugestões e sobretudo por sua abnegada paciência diante das rabugices de um autor exigente.

PLANO DA OBRA

Volume I

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Livro I - Os Fundamentos e as Instituições Fundamentais

TÍTULO I - O DIREITO PROCESSUAL CIVIL

CAPÍTULO 1 - AS GRANDES PREMISSASCAPITULO 11 - A LEI PROCESSUAL CIVIL

TITULO II - O ACESSO À JUSTIÇA E A TUTELA JURISDICIONAL

CAPÍTULO III - OS CONFLITOS E A ORDEM JURÍDICA JUSTA CAPITULO IV - OS ESCOPOS DO PROCESSO CIVIL E A TÉCNICA PROCESSUAL CAPITULO V - ESPÉCIES DE TUTELAS JURISDICIONAIS E A REALIDADE DOS CONFLITOS

TÍTULO III - O PROCESSO CIVIL BRASILEIRO

CAPÍTULO VI - 0 MODELO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIROCAPÍTULO VII - OS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS: PRINCÍPIOS E GARANTIAS DO PROCESSO CIVILCAPITULO VIII - PASSADO E FUTURO DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO: TENDÊNCIAS

TÍTULO IV - OS INSTITUTOS FUNDAMENTAIS

CAPÍTULO IX - INSTITUTOS FUNDAMENTAIS DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Livro II - A Função do Estado no Processo: Jurisdição

TITULO V - JURISDIÇÃO E PODER

CAPITULO X - A JURISDIÇÃO CIVIL CAPITULO XI - A JURISDIÇÃO E OS DEMAIS ESTADOS: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL

TÍTULO VI - ÓRGÃOS E ORGANISMOS ENCARREGADOS DA JURISDIÇÃO

CAPITULO XII - OS ORGÃOS DA JURISDIÇÃO E SUA INDEPENDÊNCIA: ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA;CAPÍTULO XIII - OS ÓRGÃOS DA JURISDIÇÃO: ESTRUTURA JUDICIÁRIA BRASILEIRA; CAPÍTULO XIV - O ESTATUTO CONSTITUCIONAL DA MAGISTRATURAE A INDEPENDÊNCIA DOS JUIZES;

TÍTULO VII - A DISTRIBUIÇÃO DO EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO: COMPETÊNCIA

CAPÍTULO XV - O EXERCÍCIO DA JURISDIÇÀO: COMPETÊNCIA TEORIA GERAL; CAPITULO XVI -- COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS DE SUPERPOSIÇÃO;CAPÍTULO XVII - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM;CAPITULO XVIII - COMPETÊNCIA TERRITORIAL;CAPÍTULO XIX - COMPETÊNCIA DE JUÍZO;CAPITULO XX - COMPETÊNCIA INTERNA DOS ÓRGÃOS JUDICIÁRIOS;CAPÍTULO XXI - COMPETÊNCIA ABSOLUTA OU RELATIVA;CAPÍTULO XXII – PREVENÇÀO;CAPÍTULO XXIII - COMPETÊNCIA DOS FOROS REGIONAIS;

TÍTULO VIII - O EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO CIVIL: SERVIÇOS PARALELOS

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CAPÍTULO XXIV - ATIVIDADES PARALELAS AO EXERCÍCIO DA JURISDIÇÀO;CAPÍTULO XXV - SERVIÇOS COMPLEMENTARES À JURISDIÇÃO: OS AUXILIARES DA JUSTIÇA;CAPÍTULO XXVI - FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA: O MINISTÉRIO PÚBLICO;CAPITULO XXVII - FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA: O ADVOGADO;CAPÍTULO XXVIII - OUTRAS FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA;

Volume II

Livro III - O Método de Exercício da Jurisdição: Processo:

TITULO IX - PROCESSO CIVIL: CONCEITO E FUNÇÃO:

CAPÍTULO XXIX - O CONCEITO DE PROCESSO E SEU REGIME JURIDICO;CAPÍTULO XXX - ESPÉCIES DE PROCESSOS E SEUS RESULTADOS ( O PROCESSO E A VIDA DOS DIREITOS);

TÍTULO X - FORMAÇÃO DO PROCESSO CIVIL E LITISPENDÊNCIA:

CAPÍTULO XXXI - A FORMAÇÃO DO PROCESSO CIVIL E A LITISPENDÊNCIA;CAPITULO XXXII - EFEITOS PROCESSUAIS DA LITISPENDÊNCIA;CAPITULO XXXIII - EFEITOS SUBSTANCIAIS DA LITISPENDÊNCIA;

TÍTULO XI - A DEMANDA E O OBJETO DO PROCESSO CIVIL

CAPITULO XXXIV - A DEMANDA;CAPITULO XXXV - RELAÇÕES ENTRE DEMANDAS;CAPITULO XXXVI - CUMULAÇÃO DE DEMANDAS;CAPITULO XXXVII - O OBJETO DO PROCESSO CIVIL;

TÍTULO XII - RELAÇÃO JURÍDICA PROCESSUAL CIVIL

CAPITULO XXXVIII - RELAÇÃO JURÍDICA PROCESSUAL;

TITULO XIII - SUJEITOS DO PROCESSO CIVIL

CAPITULO XXXIX - O JUIZ NO EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO;CAPITULO XL - OS AUXILIARES DA JUSTIÇA NO EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES COMPLEMENTARES;CAPÍTULO XLI – PARTES;CAPITULO XLII - AÇÃO E DEFESA: SÍNTESE DAS POSIÇÕES DAS PARTES NO PROCESSO; CAPITULO XLIII – LITISCONSÓRCIO;CAPÍTULO XLIV - AS INTERVENÇÕES DE TERCEIROS;CAPÍTULO XLV - O MINISTÉRIO PUBLICO COMO PARTE NO PROCESSO CIVIL;

TITULO XIV - O PROCEDIMENTO E OS ATOS PROCESSUAIS CIVIS

CAPITULO XLVI - 0 PROCEDIMENTO NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO CAPITULO XLVII - ATOS PROCESSUAIS CIVISCAPITULO XLVIII - ATOS DE COMUNICAÇÃO PROCESSUAL: CITAÇÃO E INTIMAÇÃO CAPÍTULO XLIX - ATOS DE COOPERAÇÃO JURISDICIONAL: AS CARTAS CAPÍTULO L - A FORMA DOS ATOS PROCESSUAIS CIVIS

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CAPITULO LI - PRAZOS PROCESSUAIS CIVISCAPITULO LII - DEFEITOS DOS ATOS PROCESSUAIS E DO PROCEDIMENTO

TITULO XV - OS MEIOS INSTRUMENTAIS DO PROCESSO CIVIL

CAPITULO LIII- OS MEIOS INSTRUMENTAIS DO PROCESSO CIVIL: PROVAS E BENS

TÍTULO XVI - OS PRESSUPOSTOS E AS CRISES

CAPITULO LIV - PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DA TUTELA JURISDICIONAL CIVILCAPÍTULO LV - ÓNUS DA INICIATIVA E DEVER DE IMPULSOCAPÍTULO LVI - AS CRISES DO PROCESSO CIVIL: SUSPENSÃO E EXTINÇÃO DO PROCESSO -INCIDENTES CRÍTICOS

TÍTULO XVII - O REGIME FINANCEIRO DO PROCESSO CIVIL

CAPÍTULO LVII - O CUSTO DO PROCESSO CIVIL E OS ENCARGOS DA SUCUMBËNCIACAPITULO LVIII - ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA

VOLUME III

LIVRO IV - O PROCESSO CIVIL DE CONHECIMENTO

TÍTULO XVIII - O PROCESSO CIVIL DE CONHECIMENTO

CAPITULO LIX - O PROCESSO CIVIL DE CONHECIMENTO: CONCEITO E TEMAS FUNDAMENTAIS

TÍTULO XIX - TEORIA GERAL DA PROVA

CAPITULO LX - A PROVA CIVIL: VISAO SISTEMÁTICACAPITULO LXI - OBJETO DA PROVACAPITULO LXII - ÔNUS DA PROVACAPÍTULO LXIII - FONTES CONCRETAS E MEIOS DE PROVA CAPÍTULO LX[V - VALORAÇÃO DA PROVA CIVIL CAPÍTULO LXV - A PRESUNÇÃO E A PROVA

TÍTULO XX - PRESSUPOSTOS E CRISES NO PROCESSO CIVIL DE CONHECIMENTO

CAPITULO LXVI - PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO JULGAMENTO DO MÉRITOCAPÍTULO LXVII - SUSPENSÃO DO PROCESSO CIVIL DE CONHECIMENTO CAPÍTULO LXVIII - EXTINÇÃO DO PROCESSO CIVIL DE CONHECIMENTO

TÍTULO XXI - A TUTELA JURISDICIONAL NO PROCESSO CIVIL DE CONHECIMENTO

CAPITULO LXIX - A TUTELA JURISDICIONAL NA SENTENÇA DE MÉRITO CAPÍTULO LXX - TUTELA JURISDICIONAL DECLARATÓRIACAPÍTULO LXXI - TUTELA JURISDICIONAL CONDENATÓRIA (INCLUSIVE A MANDAMENTAL)CAPÍTULO LXXII - TUTELA JURISDICIONAL CONSTITUTIVA CAPITULO LXXIII - FALSAS SENTENÇAS DE MÉRITOCAPITULO LXXIV - CORRELAÇÃO ENTRE A TUTELA JURISDICIONAL E A DEMANDA

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TÍTULO XXII - OS RESULTADOS DO PROCESSO CIVIL E SUA IMUNIZAÇÃO - COISA JULGADA MATERIAL

CAPITULO LXXV - COISA JULGADA

TITULO XXlll - OS PROCEDIMENTOS NO PROCESSO CIVIL DE CONHECIMENTO EM PRIMEIRO GRAU DE JURISDIÇÃO

CAPITULO LXXVI - PROCEDIMENTOS

LIVRO V - O PROCEDIMENTO COMUM NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO DE PRIMEIRO GRAU DE JURISDIÇÃO

TÍTULO XXIV - O PROCEDIMENTO ORDINÁRIO

CAPÍTULO LXXVII - AS FASES DO PROCEDIMENTO ORDINÁRIOCAPÍTULO LXXVIII - A PETIÇÃO INICIAL E A PROPOSITURA DA DEMANDACAPÍTULO LXXIX - DEFERIMENTO OU INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIALCAPÍTULO LXXX - CITAÇÃOCAPÍTULO LXXXI - INTIMAÇÒESCAPITULO LXXXII - RESPOSTA À DEMANDA INICIAL CAPITULO LXXXIII - CONTESTAÇÃOCAPITULO LXXXIV - AS EXCEÇÕES RITUAIS CAPÍTULO LXXXV - RECONVENÇÃO CAPÍTULO LXXXVI - AÇÃO DECLARATÓRIA INCIDENTAL CAPÍTULO LXXXVII - OUTRAS RESPOSTAS DO RÉU CAPÍTULO LXXXVIII - ÔNUS DE RESPONDER E EFEITO DA REVELIACAPÍTULO LXXXIX - A FASE ORDINATÓRIA E O SANEAMENTO DO PROCESSO - JULGAMENTO CONFORME O ESTADO DO PROCESSO

PREFÁCIO

Este é o livro de minha vida.Não estou a afirmar méritos nem a propor comparações com outros escritos meus e muito menos com as notáveis obras de direito processual civil produzidas no Brasil e no mundo ao longo de mais de um século de ciência do processo. Vejo nestas Instituições de direito processual civil o meu próprio espelho, o espelho da minha vida de processualista, das minhas reflexões, convicções, dúvidas, vacilações e erros. Já se passaram mais de quarenta anos desde quando, guiado pelo Mestre Luís EULÁLIO DE BUENO VIDIGAL, no terceiro ano da Faculdade do Largo de São Francisco, comecei a sentir minhas primeiras curiosidades e uma enorme perplexidade diante desse universo desafiador que é o processo civil. Vivenciei o processo como promotor de justiça, como juiz e como advogado. Esse tem sido um longo estágio de absorção de conceitos e princípios, de tomadas de posição e sobretudo de busca de soluções. Estou convencido de que o processo civil, como toda técnica, só será uma boa técnica na medida em que for capaz de oferecer soluções boas - processo justo é o processo que produz soluções justas. Continuo aprendendo conceitos, reverenciando princípios, desvendando estruturas e buscando soluções boas, mediante o longo e intenso aprendizado que é a docência da disciplina durante trinta anos em minha velha e sempre nova Academia.É esse o universo de imagens espelhadas nas presentes Instituições. Elas foram escritas a partir de pensamentos e conceitos já ensinados em aulas, expostos em livros e artigos, sustentados em pareceres, defendidos em arrazoados e impostos em decisões. São o espelho de meus

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acertos e desacertos, ou o espelho de minha vida de processualista. O livro de minha vida, portanto.N a realidade, duas foram as vidas dos processualistas da minha geração.Como todos de meu tempo, nasci para a ciência processual em um clima de intenso apego à distinção entre a função do processo e a do direito material, de exagerado culto ao valor da ação entre os institutos processuais, de um zelo irracional pelos interesses do autor sem a correspondente preocupação pelos do demandado, de um pacato conformismo diante das ineficiências do sistema e de um constantemente renegado, mas inconscientemente cultivado culto à forma. Os rumos que durante nossas vidas tomou a ciência do processo puseram-nos a repensar nosso modo de ver o sistema processual, para podermos marchar no mesmo compasso das mutantes exigências da sociedade por um processo civil mais efetivo e dinâmico - o que fomos obrigados a fazer pagando o preço de alguns atos de humilde penitência e inevitavelmente fazendo algumas correções de rota. Foi no curso dessas quatro décadas que tomou vulto o movimento mundial pela bandeira da efetividade do processo, especialmente na obra grandiosa dos condotttieri MAURO CAPPELLETTI e VITTORIO DENTI. Este, na Universidade de Pavia e aquele, em Florença e no mundo, passaram a discorrer sobre a justiça social a ser promovida pelos canais do processo, sobre as ideologias que devem estar presentes na configuração dos institutos processuais, sobre a indispensável consciência dos interesses dos consumidores dos serviços judiciários, sobre a caminhada da Justiça ao encontro do cidadão, sobre a imperiosidade da universalização do acesso à justiça etc.O jovem que hoje se inicia recebe já os frutos maduros dessa evolução multifacetária e seus olhos já se abrem para a ciência processual pela óptica do processo agilizado, coletivizado, humanizado. Os que produziram antes dessa evolução, encerrando sua vida de processualista sem haverem recebido o sopro dos novos ventos, também viveram em paz de espírito e não passaram por essa espécie de provação. Minha geração de processualistas ficou a cavalo de uma fase de mudança de método e isso foi ao menos angustiante para quem já havia assimilado os pensamentos e uma visão inerentes às velhas colocações metodológicas; quase de repente, vimo-nos atropelados por rápidas transformações no sistema, que nos cobraram uma revisão geral, se não quiséssemos ficar à margem com saudosistas lamentações. O que havíamos aprendido e ensinado deixou de ser a verdade universal e aceita.Havíamos aprendido que o processo é um instrumento meramente técnico a serviço do direito substancial, não tendo o juiz qualquer compromisso com o valor do justo: se sua sentença fosse portadora de alguma injustiça, ensinaram-nos, que fosse esta debitada ao legislador e não a ele, a quem cumpre exclusivamente impor a lei conforme fora posta em vigor - merecia execração e caricatas humilhações a figura do bon juge Magnot. Condicionaram-nos também a nos empenharmos na busca de conceitos muito precisos e delimitações muito seguras entre os institutos do processo, sem qualquer preocupação com o ângulo externo do sistema e, portanto, sem pensarmos na eficiência deste em face dos conflitos que angustiam pessoas e instabilizam grupos e sociedades; jamais cuidaram de colocar-nos a problemática dos conflitos que permanecem sem solução e pessoas que sofrem lesões e os males da litigiosidade contida, porque o processo sempre foi assim e tem suas irremovíveis limitações, não se podendo aspirar a soluções que estivessem além das possibilidades do sistema e das forças de seus operadores tradicionais.Quando nos demos conta, essas verdades eternas estavam minadas de morte: entravam no burburinho de uma usinagem de alta pressão e principiavam a sair na outra ponta com novas feições, ou em outras vestes, ou simplesmente sendo lançadas no depósito de material imprestável. 0 pensamento moderno caminhou para a afirmação de um intenso coeficiente ético e deontológico no sistema processual, especialmente endereçado ao espírito do juiz, de quem hoje todos esperam um solene compromisso de realizar processos justos e équos e terminar o processo com a oferta de uma efetiva justiça substancial aos litigantes. Caminhou também para a universalização da tutela jurisdicional, em busca da redução dos resíduos conflituosos não jurisdicionalizáveis - efeitos da pobreza, da ignorância e de um atávico conformismo.Não foi sem angústias, incertezas e riscos que nossas vidas mudaram. Esse é o preço a ser pago por quem vive em duas épocas e não quer ser sepultado entre as páginas viradas do livro

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da História. Eis como e por que os processualistas de minha geração foram obrigados a viver duas vidas em uma vida só.Na realidade, este livro é portanto o resultado de minhas duas vidas de processualistaquero que este livro possa ser objeto de três leituras.A primeira leitura que ele se destina a ter é a leitura da didática e do aprendizado. Porque é acima de tudo um curso de direito processual, ele precisa ser suficientemente claro, além de completo na explicação dos princípios, conceitos, institutos e normas, a ponto de ser entendido pelo principiante ainda desprovido de premissas no espírito e, portanto, necessitado de explicações que principiem pelas raízes. Daí a explicação dos fundamentos legitimadores do próprio direito processual e do processo mesmo, como conjunto de técnicas destinadas a eliminar conflitos; daí o empenho em demonstrar os modos como direito e processo se associam em face do objetivo de oferecer tutela jurisdicional a quem tiver razão; daí a proposta de uma leitura moderna de velhos princípios instalados na Constituição e na consciência dos povos; e daí o inevitável risco de às vezes dizer o óbvio, para melhor ser entendido pelos principiantes. Este é um livro dedicado sobretudo aos meus estudantes e é a eles que o endereço em primeiro lugar.A segunda leitura esperada é a leitura profissional. Como profissional de intensa militância no processo, procuro retratar aqui uma experiência de quarenta anos, associando soluções a conceitos, sem ficar só nestes e sem deixar de ver o que se passa na realidade do dia-a-dia perante os tribunais. Daí as informações jurisprudenciais, as figurações e os exemplos de caráter prático intercalados no texto, com vista à sua utilidade para advogados, promotores de justiça e magistrados.A terceira leitura é a dos estudiosos em busca de profundidade no conhecimento do direito processual civil. Sobre cada tema, cada instituto, cada polêmica de que tenho conhecimento, tratei de externar meus pontos-de-vista, consciente do risco de errar e do perigo das críticas a que me exponho. Não quero dizer verdades eternas, mas não me resigno a permanecer nas planícies sem ventos dos entendimentos pacíficos. Ao assumir uma entre duas ou mais posições construídas ao longo da história da minha ciência, ou quando ouso propor pensamentos novos, sei que alguma turbulência virá, mas sei também que sem esses tremores ou abalos a ciência não caminha. Dos destinatários dessa terceira leitura espero a homenagem de uma aceitação generosa ou de sua crítica racional, na qual saberei ver os movimentos de uma ciência que não se estagna, não se conforma com verdades sabidas e quer manter-se inquieta diante dos problemas a resolver.Este livro teve várias origens.Ele foi construído sobre a base dos planos de aula que vim elaborando, ampliando, atualizando e corrigindo nessa vida de trinta anos junto aos estudantes do Largo de São Francisco. Às vezes, respondendo à indagação de um jovem que se inicia, o professor vê-se obrigado a buscar explicações melhores, associar conceitos ou mesmo penitenciar-se de erros. Não erra quem nada faz e nada diz. Muito do que aqui está escrito teve origem em cursos de pós-graduação, que por índole e destinação devem ser abertos ao diálogo e ao mais amplo dos debates, sendo nocivo o docente que se preocupa em expor suas verdades, sem saber que a verdade nem sempre está onde ele pensa que está. Sempre começo meus cursos dizendo aos mestrandos e doutorandos que vejo em nosso convívio um laboratório ao qual levo meus conhecimentos de colega mais adiantado, as teses que elaborei, minhas convicções e também minhas dúvidas. Muitas de minhas suposições puderam ali ser desenvolvidas, muitas propostas foram aprimoradas, muitos enganos foram corrigidos e muitas dúvidas, desfeitas. A tese A instrumentalidade do processo, que me valeu a titularidade acadêmica de direito processual civil, é para mim o mais gratificante dos frutos desses debates.Como é natural, este livro é também fruto de uma evolução cultural desenvolvida pelos pensadores de meu país e do mundo todo. Não se faz ciência por saltos e ninguém pensa sozinho, ainda quando se iluda ao crer que está pensando sozinho (CARNELUTTI). O que escrevo eu, o que escreveram meus antecessores e o que continuará a ser escrito são passos de uma caminhada cujo começo se conhece razoavelmente mas cuja consumação, não ocorrerá jamais, enquanto o homem for homem e enquanto o gênio humano for capaz de criar. Todos procuramos criar algo, mas dependemos todos do que já foi criado antes.

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Com a consciência dessa pequenez histórica do que em um livro se diz e das limitações criativas de quem não é mais que um entre os milhares de construtores de uma ciência, sei que também algo de mim próprio está nesse livro; como elo de uma longa corrente ou mero passo de uma caminhada de que todos participamos, ele foi também alimentado pelo produto de minhas próprias reflexões e do modo como, em minhas duas vidas de processualista, hoje vejo meu instrumento de trabalho. Essa é a principal mola propulsora da produção científica - a esperança de ver progredir as próprias idéias, sem o obcecado temor inerente a um sentimento de autocrítica que inibe o progresso da ciência.Este livro tem também a sua história.É uma história muito pessoal, que me agrada contar apesar do risco de trazer tédio aos leitores. O sonho de produzi-lo parecia uma quimera fugidia que se afasta e se afasta sempre que pensamos caminhar ao seu encontro. Não fui capaz de conciliar a redação de minhas Instituições com as atividades de promotor de justiça, juiz do Tribunal de Alçada, desembargador ou advogado. Em determinado momento, ousei. Por três anos consecutivos isolei-me durante longos períodos em uma pequena ilha ao Sul da Itália, onde em um chalé e longe das solicitações profissionais consegui dar corpo ao sonho. Colho hoje o fruto dessas fugas, mas a memória das próprias fugas é também uma saudade que alimenta. Saudade da pequenina Canneto, da ilha de Lipari, do arquipélago das Ilhas Eólias; saudade de don Gennaro, que nos acolhia hospitaleiro entre os fiéis da paróquia de San Cristoforo; do quitandeiro Michele, que sempre nos vendia mais do que queríamos comprar; do bar do Tano, onde tomava meus cafezinhos diários em meio aos seus comentários sobre os últimos fatos da política e do futebol; da família Fonti, que nos hospedou em sua Residence La irlletta - Mimmo, Rita, Ariana e Roberta foram testemunhas do meu trabalho e da minha alegria ao escrever este livro, quase tanto quanto a LAís e nossos filhos.A história deste livro inclui também o modo como foi escrito. No refúgio em que me abriguei, contei somente com meus próprios apontamentos de aula, com minha memória sobre os temas a desenvolver e com a obra de THEOTÔNIO NEGRÃO. As glosas adicionadas pelo grande advogado paulista a cada artigo do Código de Processo Civil valeram-me como indicação dos problemas que surgem perante os tribunais e informação sobre como eles estão sendo resolvidos. Orgulho-me em dizer que em alguma medida este livro é a condensação sistemática dos pontos suscitados no monumental Código de Processo Civil e legislação processual em vigor.Elaborado desse modo, este livro não contém referências doutrinárias e não pretendo que ele seja uma fonte de pesquisa. Se o estudante, meu primeiro leitor, captar bem as mensagens que lhe transmito, sua iniciação estará consumada e ele poderá depois formar suas próprias convicções mediante outras leituras que fará. Ao segundo leitor, o operador do processo, estou convencido de que as colocações conceituais e os informes de jurisprudência fornecidos poderão trazer alguma ajuda útil ao exercício profissional. Ao terceiro leitor, que se preocupa com profundidades, espero que cada afirmação feita seja reveladora de uma tomada de posição em relação a temas atuais ou eternos da ciência processual. Como ato de respeito a esses três leitores, cuidei somente de identificar pensamentos de autores que me precederam, mediante simples indicação do nome de cada um e com o objetivo de afastar qualquer suspeita de indevidos apossamentos de idéias alheias.Espero que este livro tenha também ™o seu futuro.Deus me dê vida, forças e humildade suficientes pwá recolher as observações, sugestões e críticas que certamente virão e saber analisá-las ao aperfeiçoamento das idéias que as Instituições propõem. Esse é um imperativo do caminhar incessante dos conhecimentos científicos. As respostas de crítica sadia são tão animadoras quanto as manifestações de apoio, fazendo parte da glória de quem escreve. A miséria de quem escreve é a que vem do silêncio e da indiferença.

ARCADAS DE São FRANCISCO, fevereiro de 2001

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Livro I - OS FUNDAMENTOS E AS INSTITUIÇÕES FUNDAMENTAIS

TITULO I - o direito processual civil: CAPÍTULO I - as grandes premissas; CAPITULO II - a lei processual civil. TITULO II - o acesso à justiça e a tutela jurisdicional. CAPÍTULO III - os conflitos e a ordem jurídica justa; CAPÍTULO IV - os escopos do processo civil e a técnica processual; CAPÍTULO V - espécies de tutelas jurisdicionais e a realidade dos conflitos. TÍTULO III - o processo civil brasileiro: CAPITULO VI - o modelo processual civil brasileiro; CAPÍTULO VII - os fundamentos constitucionais: princípios e garantias do processo civil; CAPÍTULO VIII -passado e futuro do direito processual civil brasileiro: tendências. TITULO IV - os institutos fundamentais: CAPÍTULO IX - institutos fundamentais de direito processual civil.

Título I - O DIREITO PROCESSUAL CIVILCapítulo I -AS GRANDES PREMISSAS

1. solução imperativa de conflitos - 2. o direito processual civil - 3. direito formal, sem formalismo - 4. direito processual e direito material - 5. dois planos distintos - 6. o direito processual material - 7. institutos processuais particularmente influenciados pelo direito material - 8. direito público - 9. denominação - 10. a ciência processual civil - 11. a teoria geral do processo - 12. direito processual constitucional - 13. direito processual civil internacional - 14. direi to processual civil comparado - 15. o ramo jurídico, a técnica, a ciência e a arte - 16. instrumento ético e não puramente técnico

1. solução imperativa de conflitos

Processo civil é, resumidamente, técnica de solução imperativa de conflitos (infra, n. 48). Indivíduos e grupos de indivíduos envolvem-se em conflitos com outros, relativamente a bens materiais ou situações desejadas ou indesejadas, nem sempre chegando a uma solução negociada. Às vezes são pretensões que encontram a resistência da pessoa que poderia satisfazê-las e não as satisfaz, sendo vedada a autotutela (infra, n. 44) e até incriminada penalmente (crime de exercício arbitrário das próprias razões, art. 345 CP): isso se dá, de modo geral, no campo das pretensões ou direitos ditos disponíveis, especialmente em matéria obrigacional ou mesmo real, entre privados. Outras vezes trata-se de pretensões que a própria ordem jurídica exclui que sejam satisfeitas por ato do sujeito envolvido, o que se vê especialmente em relações de família (p.ex., a anulação de casamento) e, de modo geral, sempre que se trate de pretensões ou direitos indisponíveis. Em ambas as hipóteses, se não houver a resignação do sujeito quanto ao bem da vida que constitui objeto da pretensão, o único caminho civilizado e permitido para tentar a satisfação será o processo - sendo indiferente, para a realização deste, se a razão está com o sujeito que tomou a iniciativa de acorrer ao sistema judiciário ou com o seu adversário.Vens da vida são todas as coisas, situações ou mesmo pessoas que de algum modo possam ser objeto de aspirações e de direitos. As coisas são bens materiais (móveis, imóveis), as situações relevantes para o direito são bens imateriais (p.ex., a liberdade ou o estado de casado) e as pessoas podem ser objeto de uma relação jurídica, p.ex., quando se trata de sobre elas exercer o pátrio-poder ou a guarda. Fala-se em bens da vida porque é em relação a eles que, na vida comum e independentemente de qualquer atividade processual, os direitos são exercidos e as pretensões incidem (pretensão, no sentido de aspiração ou atitude mental endereçada à obtenção ou conservação do bem da vida: infra, n. 430).Falar em solução imperativa de conflitos corresponde a afirmar que o processo civil constitui monopólio estatal. É o Estado quem o conduz, por obra de agentes específicos que são os juízes e seus auxiliares e mediante o exercício do poder estatal. Consiste este na capacidade de decidir imperativamente e impor decisões - e o que faz o Estado juiz no processo civil é precisamente isso: ele decide segundo certos critérios valorativos e produz resultados práticos até mesmo mediante emprego da força se for necessário. No processo civil moderno ressaltam-se os

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poderes do juiz, endereçados a fazer cumprir rigorosamente as suas decisões, sob pena de o exercício do poder ficar truncado - decidindo mas não impondo a efetivação do decidido. A efetividade do processo é um dos temas de maior destaque no processo civil moderno. Como se dá em todos os setores do exercício do poder estatal, o juiz atua no processo de modo inevitável, o que significa que a efetividade de suas decisões não deve depender da boa-vontade dos sujeitos envolvidos (disposição a obedecer) nem da sua prévia disposição a aceitar os resultados futuros. O processo não resulta de qualquer ajuste de vontades entre os litigantes e, para ter início, basta a iniciativa de um deles. O outro, chamado a participar, poderá ser mais ou menos diligente e pode até omitir-se por completo (revelia etc.), mas sua vontade é indiferente para que o processo se realize ou para que produza os resultados adequados em cada caso.Existem possibilidades de solução de conflitos por terceira pessoa e sem a marca da imperatividade. São os chamados meios alternativos de solução dos conflitos, representados pela arbitragem, pela conciliação e pela mediação, de grande utilidade social e fortemente incrementados pelo direito moderno. O direito estimula a autocomposição por ato de boa-vontade de ambos os envolvidos (transação) ou de um deles (renúncia, submissão) mas, quando por nenhum desses meios se chega à pacificação, não há como eliminar o conflito sem a resignação e sem o processo civil.

2. o direito processual civil

Direito processual é o conjunto de princípios e normas destinados a reger a solução de conflitos mediante o exercício do poder estatal (infra, n. 117). Esse poder, quando aplicado à função de eliminar conflitos e pacificar pessoas ou grupos, constitui o que se chama jurisdição e esta é a função do juiz no processo. Em todos os povos, mas notadamente no Estado-de-direito, é natural que o exercício da jurisdição se submeta a um complexo conjunto de regras jurídicas destinadas ao mesmo tempo a assegurar a efetividade dos resultados (tutela jurisdicional), a permitir a participação dos interessados pelos meios mais racionais e a definir e delimitar a atuação dos juízes, impondo-lhes deveres e impedindo-lhes a prática de excessos e abusos. Essas regras, postas pelo Estado de modo imperativo, são regras de direito e vinculam todos os sujeitos do processo. Elas integram o direito processual, como ramo do ordenamento jurídico nacional. Observá-las é dar efetividade a um valor muito exaltado no Estado democrático moderno, que é o devido processo legal - sistema constitucional e legal de disciplina e limitações ao exercício do poder (infra, n. 93).O direito processual, assim entendido, apresenta-se nas subespécies direito processual civil e direito processual penal.No sistema brasileiro o direito processual civil é o responsável pelo exercício da jurisdição com referência a pretensões fundadas em normas de direito privado (civil, comercial) e também público (administrativo, tributário, constitucional). Nisso o processo civil brasileiro diferencia-se de importantes modelos europeus e latino-americanos em que há certas limitações relacionadas com o Estado em juízo. Nosso sistema é o da chamada jurisdição una e também o Estado se sujeita aos juizes integrantes do Poder Judiciário e às regras do direito processual civil. Aqui inexiste o contencioso administrativo e o processo diferenciado para certas causas regidas pelo direito público. Excluem-se do âmbito do processo civil brasileiro, exclusivamente, as causas de natureza penal.Esses contornos do direito processual civil tornam difícil delimitar de modo positivo o âmbito de sua incidência, sendo usual a afirmação de que ele é o ramo do direito processual destinado a dirimir conflitos em matéria não-penal.Também essa colocação é imperfeita. Os litígios regidos pelo direito do trabalho ou pelo eleitoral são excluídos do âmbito do processo civil comum, embora conduzidos mediante as regras de um processo civil lato sensu. É muito grande a aplicação subsidiária das normas do processo civil comum ao trabalhista (CU, art. 769).

3. direito formal, sem formalismo.

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O direito processual é eminentemente formal, no sentido de que define e impõe formas a serem observadas nos atos de exercício da jurisdição pelo juiz e de defesa de interesses pelas partes. A exigência de formas no processo é um penhor da segurança destas, destinado a dar efetividade aos poderes e faculdades inerentes ao sistema processual (devido processo legal); o que se renega no direito formal é o formalismo, entendido como culto irracional da forma, como se fora esta um objetivo em si mesma. Forma é a expressão externa do ato jurídico e revela-se no modo de sua realização, no lugar em que deve ser realizado e nos limites de tempo para realizar-se. Opõe-se conceitualmente à substância do ato, que se representa pelo seu conteúdo, varia caso a caso e corresponde ao encaminhamento a ser dado ao processo e ao litígio em cada situação específica.A sentença deve conter relatório, motivação e decisório, sendo nula se não motivada. Tal é o modo típico de realização desse ato, ou a sua forma exigida pelo direito (Const., art. 93, me. IX; CPC, arts. 131 e 458). Mas o conteúdo de cada uma dessas suas partes estruturais será o que cada caso concreto impuser, sendo que no decisório estará o julgamento da causa a ser ditado pelo juiz. Toda sentença deverá ser composta daquelas três partes, mas cada uma apresentará um conteúdo substancial correspondente ao caso e composto pelo juiz segundo seu livre convencimento.Uma das características do processo civil moderno é o repúdio ao formalismo, mediante a flexibilização das formas e interpretação racional das normas que as exigem, segundo os objetivos a atingir. É de grande importância a regra da ins4rumentalidade das formas, concebida para conduzir a essa interpretação e consistente na afirmação de que, realizado por algum modo o objetivo de determinado ato processual e não ocorrendo prejuízo a qualquer dos litigantes ou ao correto exercício da jurisdição, nada há a anular ainda quando omitido o próprio ato ou realizado com transgressão a exigências formais. Não há nulidade sem prejuízo (CPC, arts. 244 e 249, § 1- e 2-). As exigências formais estão na lei para assegurar a produção de determinados resultados, como meios preordenados a fins: o que substancialmente importa é o resultado obtido e não tanto a regularidade no emprego dos meios (infra, rln. 702, 714 etc.).A citação é um dos atos essenciais de maior importância no processo, pois é a primeira das providências destinadas à efetivação da garantia constitucional do contraditório (participação dos litigantes) (Const., art. 54, inc. LV, e CPC, art. 213). Mas se o demandado comparece e defende-se mesmo sem ter sido citado, a omissão em nada o prejudicou porque o objetivo do ato, que era a ciência da propositura da causa, foi inteiramente realizado por outro meio. Inexiste a nulidade do processo, em situações assim, embora não cumprida a exigência de citar o demandado (CPC, art. 214).

4. direito processual e direito material

Conceitual e funcionalmente, direito processual opõe-se a direito material, ou substancial.Ele não cuida de ditar normas para a adequada atribuição de bens da vida aos indivíduos, nem de disciplinar o convívio em sociedade, mas de organizar a realização do processo em si mesmo. A técnica da solução de conflitos pelo Estado - ou seja, o processo - está definida nas normas integrantes de um específico ran}o jurídico, que é o direito processual civil. Ao estabelecer como o juiz deve exercer a jurisdição, como pode ser exercida a ação por aquele que pretende alguma providência do juiz e como poderá ser a defesa do sujeito trazido ao processo pela citação, o direito processual não estabelece norma alguma, destinada a determinar o teor dos julgamentos; nem fixa critérios capazes de definir qual dos litigantes tem direito ao bem da vida pretendido (direito à tutela jurisdicional) e qual deles há de suportar a derrota.Jurisdição, ação, defesa e processo são as quatro grandes categorias jurídicas que compõem o núcleo estrutural do direito processual (os seus institutos fundamentais) (infra, nn. 108 ss.). Em torno delas gira todo o conteúdo dogmático dessa ciência. Tutela jurisdicional é a proteção que, por meio do processo e pelo exercício da jurisdição, o Estado dá ao sujeito que tiver razão no litígio (infra, nn. 39 ss.).A instituição de normas contendo critérios para a solução de conflitos (critérios para seu julgamento) constitui tarefa do direito substancial, que é integrado pelo direito civil, comercial,

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agrário, administrativo, ambiental, tributário, financeiro, econômico, eleitoral etc., residindo principalmente nos respectivos Códigos e leis específicas (entre as quais, modernamente, as leis ambientais, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente etc. ). As normas substanciais dirigemse aos sujeitos viventes em sociedade e estabelecem critérios para a atribuição de bens a eles (v.g., as normas sobre propriedade ou posse, as que estabelecem a obrigação de reparar por danos contratuais ou extracontratuais, as que ditam sanção para violações aos deveres entre cônjuges ou transgressões à higidez do meio-ambiente etc.). Disciplinam também a cooperação de pessoas em atividades de interesse comum, como se dá nas leis sobre sociedades mercantis, partidos políticos etc.As normas processuais entram em operação quando algum sujeito, lamentando ao Estado juiz um estado de coisas que lhe desagrada e pedindo-lhe uma solução favorável mediante invocação do direito material, provoca a instauração do processo. A realização do processo, como atividade conjunta de ao menos três sujeitos (juiz, autor e réu), constitui objeto das normas de direito processual.Há normas de direito processual inseridas em corpos legislativos preponderantemente substanciais, como é o caso de tradicionais artigos do Código Civil sobre aprova (arts. 131, 135, 136 ss., 346 etc.). Do mesmo modo, em leis processuais encontramse algumas disposições de natureza substancial -- v.g., o Código de Processo Civil dispondo sobre a indenização devida pelo litigante de má-fé (arts. 16-18). Há também leis que num só corpo trazem disposições substanciais e processuais, como a Lei do Divórcio, a Lei de Locação de Imóveis Urbanos, o Código de Defesa do Consumidor etc.; isso assim acontece, com plena legitimidade sistemática, devido à integração do processo e direito material num só contexto global de tutela, sendo às vezes de toda conveniência disciplinar num só corpo algum instituto de direito substancial e os modos como há de ser tratado posto em litígio perante o Poder Judiciário. Cabe ao intérprete consciente a tarefa de separar as normas processuais das substanciais, principalmente para que possa tratar adequadamente umas e outras, a partir dos pressupostos metodológicos próprios a cada um desses campos do saber jurídico (sobre a norma processual: infra, nn. 6 e 17 ss.).

5. dois planos distintos (Infra, n. 5I)

Precisamente porque as normas processuais não se destinam a disciplinar diretamente as relações interpessoais ou intergrupais na vida comum, nem a criar, modificar ou extinguir direitos subjetivos, assim também não tem essa função o seu destinatário principal - o juiz. Nascem as situações subjetivas substanciais, invariavelmente, do concreto acontecimento de algum ato ou fato previsto em norma jurídica geral - como o direito de propriedade é efeito da ocorrência de algum dos modos de aquisição, definidos no Código Civil (originários, derivados), como o crédito nasce do mútuo ou do dano causado, como o direito à separação judicial vem da prática de atos desonrosos ou grave violação aos deveres do matrimônio etc. O devedor não o é porque o juiz o haja constituído tal, mas porque já o era antes do processo e da sentença; o possuidor não se torna dono por obra da sentença que julga procedente a ação de usucapião mas porque, tendo exercido a posse adequada por tempo suficiente, a lei civil o considera assim; etc. As sentenças judiciais limitam-se a revelar essas situações criadas pela vida e regidas pelo direito material, eliminando dúvidas e valendo como palavra final a respeito (coisa julgada). Elas não criam situações jurídicas novas. Direitos e obrigações preexistem ao processo. Ex facto oritur jus.Visto desse modo, o trabalho do juiz consiste apenas (a) na busca da verdade dos fatos através da prova, (b) no enquadramento desses fatos no modelo genérico definido em lei (fattispecie) e (c) na explicitação e efetivação da norma concreta emergente da ocorrência do fato concreto. Mesmo nos casos em que o juiz constitui alguma situação jurídica nova, postulada pela parte (v.g., sentença que decreta a separação judicial ou o divórcio), o direito à modificação jurídica operada pelo juiz preexiste à sentença. O juiz institui entre as partes o status de divorciados mas o direito a essa modificação é precedente ao processo e à sentença.Assim composto, o ordenamento jurídico divide-se em dois planos distintos, interagentes mas autônomos e cada qual com sua função específica. Às normas substanciais compete definir modelos de fatos capazes de criar direitos, obrigações ou situações jurídicas novas (fattispecie),

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além de estabelecer as conseqüências específicas da ocorrência desses fatos (sanctiones juris). As normas processuais ditam critérios para a descoberta dos fatos relevantes e revelação da norma substancial concreta emergente deles, com vista à efetivação prática das soluções ditadas pelo direito material. Do juiz espera-se a fiel e correta revelação das normas substanciais concretas, partindo do texto das leis e valendo-se de critérios racionais e realistas para a interpretação legítima e socialmente adequada. Seu raciocínio parte de normas gerais, assim pesquisadas, e chega à norma do caso concreto, que ele próprio não cria mas é derivação daquelas.À corrente dualista do ordenamento jurídico, assim configurada, opõem-se as unitárias, que tendem a afirmar a participação do juiz na criação das normas concretas, pressupondo a insuficiência da lei material para a instituição de direitos, obrigações e demais situações jurídicas entre as pessoas (infra, n. 51).

6. o direito processual material

A autonomia do direito processual e sua localização em plano distinto daquele ocupado pelo direito material não significam que um e outro se encontrem confinados em compartimentos estanques. Em primeiro lugar, porque o processo é uma das vias pelas quais o direito material transita rumo à realização da justiça em casos concretos; ele é um instrumento a serviço do direito material. Depois, porque existem significativas faixas de estrangulamento, ou momentos de intersecção, entre o plano substancial e o processual do ordenamento jurídico.A escalada de autonomia científica do direito processual, fruto dos estudos principiados em meados do século XIX, deixou fora de dúvida que o direito processual tem sua vida própria e cabe-lhe uma missão social e jurídica diferente, em relação ao direito substancial. Seus escopos, ou objetivos próprios (sociais, políticos e jurídicos), são bem definidos e não se confundem com os deste (infra, nn. 47-55); apóia-se em fundamentos metodológicos que não são os mesmos do direito substancial (é direito público, formal, não participa da criação de direitos); e tem seu próprio objeto material, que são as categorias jurídicas relacionadas com a atividade destinada a eliminar conflitos. As categorias jurídicas processuais, aglutinadas em torno de seus institutos básicos (jurisdição, ação, defesa e processo), são reconhecidas universalmente como realidades independentes do direito substancial e das situações regidas por ele. Essas conquistas metodológicas principiaram com o reconhecimento da autonomia da ação em face do direito subjetivo material (não é mais havida por inerência deste) e da relação jurídica processual em face da relação substancial controvertida entre os litigantes (ela difere desta em seus sujeitos, em seu objeto e em seus pressupostos: Oskar Von Bülow) (infra, nn. 98 e 500-501). Hoje não há margem para duvidar da autonomia do direito processual e de sua colocação em patamar distinto daquele em que se situam as normas e relações jurídico-materiais.Quando porém se passa das especulações abstratas para a observação das concretas situações de conflitos entre indivíduos ou grupos (crises jurídicas), percebe-se uma proximidade muito significativa entre certos institutos francamente processuais e a situação de direito substancial em relação à qual o processo atuou ou deve atuar. Esses institutos - ação, competência, fontes e ônus da prova, coisa julgada e responsabilidade patrimonial - são responsáveis por situações que se configuram fora do processo e dizem respeito diretamente à vida das pessoas em sociedade, nas suas relações com as outras ou com os bens que lhes são úteis ou desejados; e só num segundo momento eles são objeto das técnicas do processo, a saber, quando um processo se instaura e então se pensa nas atividades a serem desenvolvidas para sua atuação.A ação, a competência, a prova, a coisa julgada e a responsabilidade patrimonial, recebendo do direito processual parte de sua disciplina (na sua técnica), mas também dizendo respeito a situações dos sujeitos fora do processo (às vezes, até antes dele), compõem um setor a que a doutrina já denominou direito processual material (Chiovenda). Elas são, portanto, institutos bifrontes: só no processo aparecem de modo explícito em casos concretos, mas são integrados por um intenso coeficiente de elementos definidos pelo direito material e - o que é mais importante - de algum modo dizem respeito à própria vida dos sujeitos e suas relações entre e si

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e com os bens da vida. Constituem pontes de passagem entre o direito e o processo, ou seja, entre o plano substancial e o processual do ordenamento jurídico (Calamandrei).Aprova, por exemplo. É no processo que se desenvolve toda sua dinâmica e é nele que produzirá sua eficácia institucionalizada. Mas as fontes de prova, ou seja, as pessoas e coisas capazes de fornecer informações ao juiz que julgará, são elementos externos ao processo, fazem parte da vida comum e apenas em um segundo tempo serão trazidas a ele e utilizadas como meios instrumentais. Em seu aspecto estático, as fontes de prova residem no direito substancial (infra, n. 723). Daí sua configuração bifronte e a necessidade de a categoria jurídica prova ser encarada com a consciência de que as fontes de prova vêm para o processo carregadas de conotações relacionadas com o próprio conflito a que se referem. Daí, também, o direito a utilizar-se das fontes legítimas, que integram o amplo conceito do direito à prova (infra, n. 782).A proposta de distinção entre um direito processual formal e um direito processual material conta com o aval da mais prestigiosa voz doutrinária em processo civil. "É preciso evitar a crença de que lei processual seja sinônimo de lei formal " (Chiovenda). Esse pensamento teve o mérito de abrir caminho para a percepção de que existem normas de duas naturezas a influenciar de modo direto certos institutos processuais. São processuais substanciais as que outorgam ao sujeito certas situações exteriores ao processo e que nele repercutirão de algum modo se vier a ser instaurado. São processuais puras, ou processuais formais, as que operam exclusivamente pelo lado interno do processo e nele exaurem sua eficácia, disciplinando os atos e relações inerentes ao processo e não lançando efeitos diretos para o lado externo, ou seja, sobre a vida das pessoas (p.ex., normas sobre a forma dos atos processuais, prazos, procedimentos adequados, recursos etc. ).Já se sustentou no passado, em formosa doutrina, que o próprio direito material seria em si mesmo um direito justicial material (materielles Justizrecht, James Goldschmidt) - entendido este como o aspecto processual do direito substancial (Calamandrei). As normas de direito material, quando relevantes para a decisão de uma causa posta em juízo, transmudar-se-iam em normas de direito justicial material, tendo por destinatário o juiz. Já não se trataria de normas de conduta para os litigantes, mas de normas de julgamento para o juiz. Pelos seus exageros, por renegar a então florescente e já vitoriosa teoria da relação jurídica processual e especialmente por conflitar com o dogma da autonomia do direito processual, essa doutrina não sobreviveu por muito tempo (Liebman). Contribui contudo para que hoje, aplacados os radicalismos autonomistas e proclamada a relatividade do binômio direito processo, possa-se chegar à percepção da necessidade do exame bifocal de alguns institutos a partir de premissas do direito material e com os olhos na particular influência que exerce sobre concretas situações jurídico-substanciais - embora processuais e não materiais sejam os reflexos imediatos desse exame e mesmo com a consciência de que, em si mesmos, esses institutos são de direito processual. A moderna visão do direito processual material não se confunde, em suas premissas e em suas propostas, com o materielles Justizrecht.É inerente ao direito processual material a convergência de normas substanciais e processuais a disciplinar os institutos, em si mesmos processuais, que preenchem as faixas de estrangulamento existentes entre os dois planos do ordenamento jurídico. Ele é, pois, o conjunto de normas e princípios de direito material e de direito processual disciplinadores dos institutos processuais que diretamente se relacionam com o direito à tutela jurisdicional (ação, competência, fontes e ônus da prova, coisa julgada material, responsabilidade patrimonial). Seu objeto material é integrado por esses institutos que, embora processuais em razão de sua direta participação na vida do processo, são diretamente influenciados pelos elementos e pela disciplina da relação jurídica material a ser efetivada mediante este. Em tempos atuais praticamente não é usual falar em direito processual material, mas o conceito é metodologicamente legítimo e concorre muito eficazmente para o bom entendimento do regime jurídico das categorias que o integram.O destaque às faixas de estrangulamento e ao direito processual material é vital para a correta compreensão do tema da divisão do ordenamento jurídico em dois planos funcionalmente distintos, sem a ilusão de que sejam estanques. Privar o sujeito da possibilidade de levar ao Judiciário as suas pretensões (ação), ou privá-lo do juiz previamente competente em certos

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casos (juiz natural), ou dos meios estabelecidos em lei para que obtenha a tutela a que tiver direito (bens, fontes de prova), ou ainda da estabilidade do julgado que o beneficia (coisa julgada) é subtrair-lhe ou reduzir sua possibilidade de acesso à justiça - e, na prática, isso pode equivaler a impor-lhe uma situação contrária aos ditames de direito material e às garantias constitucionais.

7. institutos processuais particularmente influenciados pelo direito material

A rigor, todo o sistema processual constitui reflexo da ordem jurídico-material, à qual é instrumentalmente conexo (infra, n. 51) - sendo seus institutos concebidos e modelados com vista à atuação das normas daquele e realização dos resultados práticos que elas preceituam. Por isso, é natural que as normas substanciais e os elementos concretos de cada causa trazida a juízo (qualidade das partes, fundamento jurídico-material, natureza do bem pretendido etc.) alguma influência projetem sobre o modo como em cada caso os institutos processuais se comportam. Varia muito o grau dessa intensidade e institutos existem que não recebem qualquer influência perceptível ou relevante - como a forma dos atos processais (CPC, arts. 154 ss.), nulidades (art. 243 etc), prazos e sua contagem (arts. 177 ss.), dever de lealdade das partes (art. 14, incs.l-IV), litigância de má-fé e repressão a ela (CPC, arts. 16-18), poderes do juiz (art. 125), seu impedimento ou suspeição (arts. 134-135), extinção do processo por abandono ou desistência (art. 267, incs. 11,111, VII), necessidade de motivação dos atos jurisdicionais (Const., art. 93, me. IX; CPC, arts. 131 e 458, inc.11) etc.O grau de interesse pelo exame da influência que muitos institutos do processo recebem do direito material está na ordem direta da intensidade da ligação de cada um a este - embora seja impossível traçar regras objetivas ou linhas de separação entre eles, arrolando-os e classificando-os segundo os diversos graus de influência que recebem. O certo é que a generalidade dos institutos processuais recebe algum grau de influência da situação de direito material versada no processo (Bedaque), embora em nenhum deles essa influência seja tão intensa quanto a que se projeta sobre os institutos bifrontes, ou seja, sobre aqueles que compõem as faixas de estrangulamento existentes entre a ordem processual e a substancial.Alguns exemplos de institutos que, sem chegar a ser bifrontes, estão diretamente influenciados pelo direito material: a) a permissão de dois ou mais sujeitos demandarem conjuntamente como autores ou serem demandados conjuntamente como réus (litisconsórcio facultativo) está sempre condicionada à existência de algum grau de relação entre a situação de cada um deles e aquilo que pretende, ou que de cada um deles se pretende (conexidade entre causas etc.: art. 46); b) a determinação da Justiça ou do foro competente é sempre feita de acordo com a condição das partes (União Federal: Const., art. art. 109, inc. I), sua sede (domicílio do réu, art. 94 CPC), fundamento jurídico-material do pedido (p.ex., as demandas fundadas em direito real: art. 95), natureza do objeto (imóvel, sempre art. 95); c) o processo só se extingue por acordo entre as partes ou por força de algum ato de disposição de direito quando a matéria for suscetível de transação segundo as regras substanciais pertinentes (CC, art. 131; CPC, art. 269, incs. II, III, V); d) o processo monitório só é admissível em relação a pretensões a receber dinheiro, ou coisas fungíveis, ou determinado bem móvel (art. 1.102-a); e) o procedimento sumário é reservado para causas com valor até vinte salários mínimos ou envolvendo pretensões fundadas em certas categorias jurídico-substanciais, que a lei processual enuncia (art. 275); f) a antecipação de tutela depende da urgente necessidade de quem a pede e suficiente probabilidade de existência do seu direito (art. 273); etc.

8. direito público

O direito processual civil é ramo específico do direito processual, que por sua vez se instala na grande árvore do direito pela vertente do direito público. Suas normas, por se destinarem a disciplinar o exercício do poder pelo Estado e os modos como os interessados são admitidos a colaborar nessa atividade, são invariavelmente de direito público, não-obstante possam ser de direito privado as que regem os conflitos a serem solucionados através do processo. Podem ser

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de direito público ou privado as normas que regem a situação concreta em julgamento, ou seja, as que regem o conflito (direito administrativo, tributário, civil, comercial etc.: supra, n. 2); mas as processuais, que comandam a realização dos atos do juiz, dos litigantes e dos auxiliares daquele no processo, essas são invariavelmente de direito público.Ser de direito público significa que as normas processuais não disciplinam negócios ou interesses conflitantes entre o Estado e as partes, mas o modo como o poder é exercido. 0 Estado juiznão persegue concretos interesses seus em confronto com o dos litigantes, nem se põe no mesmo plano que eles no processo. Exerce imperativamente o poder, tendo por contraposição o estado de sujeição dos litigantes (sujeição é a impossibilidade de impedir o exercício do poder por outrem). Falando de poder e de sujeição ao seu exercício, estamos falando de direito público.

9. denominação

A adjetivação civil, como visto, não corresponde a qualquer ligação enciclopédica do direito processual civil ao direito civil e mesmo ao direito privado como um todo. Por outro lado, modernamente prefere-se falar em direito processual e não direito judiciário, como no passado foi: na Faculdade de Direito de São Paulo havia até há poucas décadas as cátedras de direito judiciário civil, denominação que veio a ser substituída pela atual. O adjetivo judiciário, que pela grafia sugere a idéia de algo próprio aos juizes, etimologicamente associa-se também a judicium, que é a denominação latina para o que hoje se denomina processo - o que insinua até mesmo uma equivalência ao adjetivo da preferência atual (processual).No direito francês, ainda hoje profundamente influenciado por visões pandectistas antecedentes aos progressos científicos do direito processual, a disciplina é denominada droit judiciaire privé, o que induziria a crença numa suposta negativa do caráter público do direito processual. Fala-se ainda em procédure civile, locução que transmigrou para a Itália e leva os italianos, mesmo modemamente, a referir-se ao sistema processual como procédura civile. Em idioma inglês, a matéria é designada por civil procedure. Em alemão, Zivilprozelrecht.

10. A ciência processual civil

Como todo ramo jurídico, o direito processual civil constitui objeto de uma ciência específica. O direito processual despertou como ciência na segunda metade do século XIX, a partir de quando pôde ser definido seu objeto específico e estabelecido seu método próprio. Até então era havido e tratado como mero apêndice do direito privado e chamado direito adjetivo porque não lhe atribuíam os juristas o predicado da autonomia: o adjetivo não tem vida própria e não passa de uma qualidade do substantivo, sempre dependente da existência deste para que possa existir. O processo, naquela visão sincrética, não passaria de mero modo de exercício dos direitos.Tem-se por ciência o conjunto de conhecimentos ordenados segundo método próprio, com adequação à realidade observada, certeza quanto aos resultados das investigações e coerência unitária dos juízos alcançados (Miguel Reale); além disso, toda ciência tem seu próprio objeto material, que a distingue das demais. O processo civil só se alçou à condição científica, assim delineada, a partir de quando absorveu como seus certos institutos e, construindo seu próprio método, pôde ganhar a coerência unitária dos conceitos afirmados.O objeto material da ciência do processo, que numa visão mais vaga e genérica é o conjunto de todas as normas processuais, consiste mais precisamente nos institutos, ou categorias jurídicas em que essas normas se conglomeram. Uma visão moderna aponta como categorias centrais do sistema processual a jurisdição (poder estatal endereçado à pacificação de pessoas e grupos em casos de conflito jurídico), a ação (poder de provocar o exercício da jurisdição e influir em seu direcionamento), a defesa (contraposto negativo da ação, como poder de influir em sentido oposto) e o processo (modo de exercício da jurisdição pelo juiz, da ação pelo autor e da defesa pelo réu: infra, n. 108 ss.).' Esses quatro institutos fundamentais são categorias jurídicas próprias ao direito processual como um todo. O seu estudo, acima das especificidades próprias a cada

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um dos ramos deste (direito processual civil, penal, trabalhista etc.), constitui objeto da teoria geral do processo.

NOTA:

1. Só por razões de ordem didática e de clareza, no texto são empregados os vocábulos autor e réu, para designar, mais amplamente, o demandante e o demandado. Aqueles vocábulos são restritos ao processo de conhecimento; estes abrangem também as partes do processo de execução (exeqüente e executado).

Também de um método próprio dispõe a ciência processual, o que é essencial ao reconhecimento da existência desse específico ramo científico (é o seu objeto formal). Método é o modo pelo qual determinada ciência encara e examina seu objeto material; o método próprio ao direito processual constitui-se dos princípios que lhe sobrepairam, do reconhecimento de sua inserção no direito público e, modernamente, da constante preocupação pela oferta de meios para o efetivo acesso à justiça mediante resultados efetivos e justos. Tal é o método do processo civil de resultados.O caráter instrumental do direito processual ao direito substancial e ao superior objetivo de pacificar pessoas constitui hoje um pólo metodológico de primeira grandeza na ciência do processo. Outra colocação metodológica a que o processualista moderno atribui enorme importância é a inserção do sistema processual na ordem constitucional, ao lado da perspectiva isonômica revelada no repúdio ao processo civil do autor (infra, n. 39).

11. a teoria geral do processo

Nas últimas décadas do século XX desenvolveu-se extraordinariamente a visão sistemática do direito processual como um todo, superando e definindo melhor as tradicionais fronteiras existentes entre seus diversos ramos. Reconhece-se, em resumo, que existe muito em comum entre os diversos ramos processuais e que as peculiaridades de cada um não são suficientes a impedir ou a tornar menos frutífero o exame global dos grandes princípios, dos institutos fundamentais e do método comum - tudo num plano de plena aplicação a todos eles.Não se postula a unidade legislativa, mas a condensação científica de caráter metodológico. Conhecem-se tentativas de reunir num só corpo legislativo o processo civil e o penal, ou ao menos os preceitos mais amplos relativos a eles (Codex juris canonici de 1917, Códigos Processuais da Suécia, Panamá e Honduras); mas não é esse o objetivo da teoria geral do processo, como tal. Contenta-se em elaborar e coordenar ela própria, mediante esforços de síntese, os grandes conceitos, os grandes princípios, as grandes estruturas do sistema processual.Essa colocação metodológica principiou por postular a reunião do direito processual civil e do direito processual penal num só enfoque comum (sempre considerado o processo trabalhista como processo civil lato sensu e, portanto, incluído nesse contexto). Delineou-se desse modo uma teoria geral do processo jurisdicional. Mas apercebeu-se o estudioso de que existe algo mais elevado a considerar, acima dos quadrantes da jurisdição e associando-se ao exercício do poder em geral. Isso propiciou maior amplitude à teoria geral do processo, que hoje vai chegando de modo palpável ao processo administrativo (tributário inclusive) e pode atingir o legislativo. Essa é uma teoria geral do processo estatal. Sempre referida ao exercício do poder, também não se legitima excluir do âmbito dessa teoria geral o processo dos entes intermediários entre o indivíduo e o Estado, como os partidos políticos, associações de categoria, sociedades mercantis etc. Esse é o limite a que pode chegar a teoria geral do processo, a qual tem pertinência a todos os campos em que alguma medida o poder é exercido.Essa tendência expansiva legitima-se na sólida construção sistemática que ela propicia mediante a revelação de princípios superiores, inclusive em sede constitucional e com a transmigração de conceitos e raciocínios mais desenvolvidos com relação ao processo civil. A democratização do processo não Jurisdicional, com a oferta de garantias de ampla defesa, de participação

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(contraditório) e de observância dos modelos estabelecidos pelo direito (due process of law), é um proveitoso resultado desse trabalho fecundo de generalização (Const., art. 5-, incs. LIV e LV). Inversamente, legitima-se também a teoria geral do processo, de modo sensível, pelo enriquecimento do processo civil mediante a maior consciência da natureza pública das normas processuais, desenvolvida extraordinariamente no direito processual administrativo.cessuais, especialmente o devido processo legal (que é um sistema de delimitação do poder e contenção de seu exercício).

12. direito processual constitucional (Infra, n. 74)

Também é dos tempos modernos a ênfase ao estudo da ordem processual a partir dos princípios, garantias e disposições de diversas naturezas que sobre ela projeta a Constituição. Tal método é o que se chama direito processual constitucional e leva em conta as recíprocas influências existentes entre a Constituição e a ordem processual. De um lado, o processo é profundamente influenciado pela Constituição e pelo generalizado reconhecimento da necessidade de tratar seus institutos e interpretar a sua lei em consonância com o que ela estabelece. De outro, a própria Constituição recebe influxos do processo em seu diuturno operar, no sentido de que ele constitui instrumento eficaz para a efetivação de princípios, direitos e garantias estabelecidos nela e muito amiúde transgredidos, ameaçados de transgressão ou simplesmente questionados.O direito processual constitucional exterioriza-se mediante (a) a tutela constitucional do processo, que é o conjunto de princípios e garantias vindos da Constituição (garantias de tutela jurisdicional, do devido processo legal, do contraditório, do juiz natural, exigência de motivação dos atos judiciais etc.) (infra, cap. VII, nn. 74-97); e (b) a chamada jurisdição constitucional das liberdades, composta pelo arsenal de meios predispostos pela Constituição para maior efetividade do processo e dos direitos individuais e grupais, como o mandado de segurança individual e o coletivo, a ação civil pública, a ação direta de inconstitucionalidade, a exigência dos juizados especiais etc. (infra, n. 74).

13. direito processual civil internacional

Já chegou a ser proposto o reconhecimento da presença da teoria geral do processo nas regras referentes aos negócios jurídicos (Elio Fazzalari). Mas tais atos não têm fundamento no poder, senão na autonomia da vontade - o que põe a sua disciplina fora do campo de atuação das grandes regras e princípios proA intensificação das relações econômicas e políticas entre os Estados modernos vem exigindo muito empenho de cada um deles na definição de normas e instituição de meios capazes de propiciar a correta e produtiva cooperação internacional pela via do processo civil. Particular influência tem sido exercida, nesse movimento, pela instituição de poderosos organismos internacionais, como as Comunidades Européias e, mais recentemente, o Mercosul.Não se busca necessariamente a unificação do poder, com instituição de entes supra-estatais dotados de poder normativo ou de jurisdição, como a Corte de Justiça das Comunidades Européias; nem de buscar a utopia de um direito processual uniforme em toda uma área do globo terrestre ou mesmo em espaços regionais significativos - intuito que se chocaria com a sólida barreira das tradições de cada país, fortemente plantadas no direito positivo de cada um e nas práticas vigentes entre os membros da população e em seus tribunais. O próprio Código de Processo Civil Modelo para a América Latina, que é um forte elemento de aproximação entre os países latino-americanos, propõe-se a ser somente um modelo portador de sugestões. Com razão, os processualistas modernos são céticos quanto às tentativas de delimitarfamílias de direito processual (René David), portadoras de traços comuns supostamente capazes de propiciar uma uniformidade de soluções (infra, n. 68). O que importa, hoje, é a compatibilização dos sistemas com vista a criar condições para a profícua cooperação internacional entre os países do globo e, particularmente, entre países de uma área predeterminada (p.ex., América Latina ou ao menos o chamado Cone Sul).

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Tal é o objeto do direito processual civil internacional, como conjunto de normas internas de dado Estado, indispensáveis em razão da existência de outros Estados e conseqüente necessidade de impor limites territoriais à eficácia das normas processuais e ao âmbito de exercício da jurisdição de cada um deles, bem como critérios para a admissibilidade da cooperação jurisdicional e modos de sua operacionalização. A regra fundamental do direito processual civil internacional é a territorialidade da norma processual e da jurisdição, não se exercendo a jurisdição fora dos limites do Estado nem mediante aplicação de normas processuais estrangeiras (CPC, art. 1-). Daí a necessidade de normas sobre cumprimento de cartas rogatórias (para comunicação processual ou realização de prova), sobre o valor da prova de fora da terra, sobre as conseqüências da litispendência em outro Estado, sobre a eficácia e exeqüibilidade de sentenças estrangeiras e, de modo geral, de mecanismos para a recepção de atos oriundos de outro Estado. Dentre as normas de direito processual civil internacional, assumem particular relevância as que estabelecem a competência do juiz nacional em face da existência de juizes de outros Estados soberanos (competência internacional: CPC, arts. 88-89) (infra, nn. 133 ss.).Nesse quadro e assim delimitados os objetivos da aproximação proveitosa entre os sistemas processuais de diversos países, assume importância de primeira grandeza o modo como cada um deles disciplina duas ordens de problemas relacionados com a cooperação :internacional: a) problemas da formação de provimentos jurisdicionais e (b) problemas da circulação e execução de ditos provimentos (Italo Andolina).Numa formulação mais explícita, o objeto do direito processual civil internacional é composto por normas disciplinadoras (a) da extensão territorial das próprias normas processuais do país, (b) dos limites internacionais da jurisdição do Estado, (c) do tratamento processual a ser dado às normas de direito de outros países, (d) da efetivação extraterritorial de atos processuais (citação, provas) e (e) do valor dos atos jurisdicionais estrangeiros, inclusive julgamentos arbitrais (Gaetano Morelli, Italo Andolina, Juan Carlos Hitters).

14. direito processual civil comparado

Um método de interpretação da lei processual, de crescente valia em tempos modernos, consiste no lançamento de olhares além-fronteiras em busca do conhecimento do direito vigente nos demais países. Seja para o aprimoramento do próprio direito interno, seja para melhor adequação das regras internas de direito processual internacional, é indispensável conhecer a lei e as técnicas processuais de outros povos. A regra de ouro de toda comparação jurídica é a utilidade que ela deve ter para a melhor compreensão e operacionalização de pelo menos um dos sistemas jurídicos comparados. A partir daí, chega-se à percepção de que os estudos de direito comparado devem endereçar-se preferencialmente aos ordenamentos jurídicos em que as novas realidades de interesse atual já tenham sido mais vivenciadas e àqueles com cujos países o Brasil vai estreitando relações culturais e comerciais - com os quais é particularmente importante incrementar meios de cooperação jurisdicional.Daí o destacado interesse a) por certos institutos da common law, especialmente as suas class actions no contexto da ordem jurídico-processual norte-americana; b) pela estrutura e mecanismos judiciários e processuais dos países da América Latina, máxime daqueles integrantes do Mercosul; c) pela ordem processual dos países europeus dos quais nos vêm alguns institutos aqui assimilados ou cogitados em tempos mais recentes (processo monitório, medidas urgentes).Como método de investigação científica e não ramo do direito, o direito processual comparado tem por objeto "uma pluralidade de ordenamentos jurídicos atualmente em vigor" e por finalidade "não tanto os ordenamentos tomados para exame em todos os seus detalhes quanto o confronto entre eles e a conseqüente análise das diferenças e das analogias de estrutura e de disciplina perceptíveis" (Alessandro Pizzorusso). Comparam-se as leis e só num segundo momento passa-se ao exame dos conceitos e das opiniões doutrinárias, o que contribuirá para o melhor entendimento do direito estrangeiro.Ao direito comparado reconhecem-se três utilidades fundamentais, a saber: a) enriquece as pesquisas históricas e sociológicas relativas ao direito nacional; b) contribui para o melhor

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conhecimento e aprimoramento deste; c) facilita a compreensão dos povos estrangeiros e melhor regime das relações internacionais (Renê David).Para ser realista e fiel aos seus objetivos, toda comparação jurídica deve também levar em conta certos fatores de aproximação ou diferenciação cultural entre os povos - que são os ob jetivos comuns e as diferenças regionais. Eles atuam com intensidade variável sobre os diversos ramos jurídicos, sendo menos intensas as repercussões que têm sobre o direito processual do que as que se projetam nas Constituições políticas ou no direito substancial - porque o processo se resolve numa técnica criada pelo legislador a partir da experiência dos que operam nos juízos e tribunais, não sendo algo tão intimamente inerente à vida comum das pessoas nas suas relações com outras e com os bens da vida, nem correspondendo a anseios comuns dos membros da população (ressalvados os grandes princípios, que têm raízes políticas e tendem à universalidade). Mesmo assim, tais fatores de convergência ou de divergência não devem ser desconsiderados nos estudos de direito processual comparado - não sendo seguro sequer o enquadramento dos ordenamentos jurídicos processuais dos povos conhecidos nas conhecidas famílias propostas por famosa doutrina (infra, n. 68).O ceticismo do processualista moderno quanto à clássica distribuição dos ordenamentos jurídicos do planeta em famílias (Renê David) é motivado pelas grandes e disseminadas diferenças existentes entre os sistemas processuais - mesmo dentro de regiões culturalmente mais ou menos homogêneas (sempre, n. 68). A consciência dos elementos caracterizadores de cada modelo processual em particular deve integrar-se entre os elementos de cautela indispensáveis a toda comparação jurídico-processual.Em toda comparação jurídica, processual inclusive, quatro ordens de fatores precisam ser sempre levados em conta, sob pena de graves distorções, a saber: a) a diversidade das fontes formais do direito processual, (b) a definição e estrutura da Justiça de cada país, (c) a índole do direito nacional e (d) a diversidade dos conceitos presentes nos ordenamentos jurídicos comparados.Observadas tais premissas, levar-se-á sempre em conta (a) que o direito processual civil brasileiro emana de uma diversidade de fontes formais arroladas na Constituição Federal, entre as quais estão ela própria, as Constituições estaduais, leis complementares ou ordinárias federais e estaduais, regimentos internos dos tribunais - não se legislando por decreto e não tendo os municípios a menor competência legislativa em matéria processual; b) que no Brasil a Justiça se define como um dos Poderes do Estado, o que não sucede em todos os países (na França os juízes são sujeitos ao Ministério da Justiça); c) que a estrutura judiciária brasileira é composta por diversas Justiças e sobre elas situam-se os órgãos de superposição representados pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça. E indispensável ainda (d) levar em conta muitas opções constitucionais e disposições legais responsáveis pela configuração política e técnica do processo civil brasileiro, em eventual contraposição a outros modelos processuais tomados em comparação; compõem esse quadro a explicitude das garantias constitucionais, o controle de constitucionalidade das leis pelo Poder Judiciário e segundo a integração dos métodos difuso e concentrado, a escalada de coletivização da tutela jurisdicional, a singularidade dos órgãos de primeiro grau de jurisdição, o procedimento rígido e portanto preclusivo etc. (sobre o modelo processual civil brasileiro, v. infra, nn. 67-73). Por fim, devem também influir em toda comparação (e) os conceitos vigentes na lei e mesmo as opções terminológicas do legislador e da doutrina, sabendo-se que inexistem convenções ou uniformidade universal a esse respeito (não têm significado rigorosamente equivalente aos seus cognatos de línguas ou sistemas estrangeiros os vocábulos domicílio, residência, citação, litisdenunciação, recurso, insolvência, embargos - e mesmo a locução direito processual civil, que nos sistemas jurídicos da chamada jurisdição dúplice expressa uma amplitude menor que no direito brasileiro: supra, mi. 2 e 9).

15. o ramo juridico, a técnica, a ciência e a arte

Como todo ramo do direito, o direito processual é um setor do ordenamento jurídico, constituído de normas e princípios retores das atividades destinadas à pacificação social (supra, nn. 1-2).

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Mas o estudo desse conjunto normativo apresenta-o também com o tríplice aspecto de uma técnica, de uma ciência e, talvez sobretudo, de uma nobre arte a ser desenvolvida pelos operadores do sistema. Não fora assim, a jurisprudência jamais evoluiria segundo as tendências da sociedade e de acordo com os cambiantes problemas enfrentados por esta (p.ex., a correção monetária imposta pelos tribunais para as reparações por dano extracontratual - Súmula n. 462 STF). Como toda arte, o processo deve ser manipulado por seus operadores com senso de criatividade.Técnica é a predisposição ordenada de meios destinados a obter certos resultados preestabelecidos. Toda técnica será cega e até perigosa se não houver a consciência dos objetivos a realizar, mas também seria estéril e de nada valeria a definição de objetivos sem a predisposição de meios técnicos capazes de promover sua realização. A técnica do processo visa em primeiro lugar à pacificação de indivíduos e grupos de indivíduos, eliminando conflitos mediante a realização da justiça. Na adequada aplicação da técnica processual cumpre ao juiz buscar soluções legitimamente descobertas no direito substancial bem interpretado, o que significa que, num plano imediato, essa técnica é instrumento a serviço da realização do direito substancial - embora, numa visão mais ampla, ambos se filiem ao escopo social de pacificar. A técnica processual é descrita de maneira mais visível nas leis e tem, portanto, indisfarçável tendência às conotações preponderantemente dogmáticas: cada ordem jurídicoprocessual difere, no tempo e no espaço, da ordem jurídico-processual de outros períodos históricos ou de outros países.A ciência processual é responsável pela correta compreensão das normas técnicas do processo, especialmente mediante a definição de conceitos, traçado das estruturas didáticas do sistema e fixação dos escopos a realizar e métodos a prevalecer. É a ciência do processo que oferece aos princípios o lugar que lhes cabe no sistema e, acima de tudo, traz ao juiz as severas recomendações de participação e compromisso com a justiça, que hoje se vêem nas obras dos mais importantes estudiosos. A ciência não tem fronteiras e já foi definida como verdadeira multinacional do processo, "que em cada país tem suas características próprias, mas tem também, no conjunto, uma profunda unidade de inspiração sobre o que devem ser o processo e os princípios fundamentais que o governam " (Liebman).A arte processual fica por conta dos operadores do sistema e tem muito de intuitivo e sadiamente emocional. A par do conhecimento da técnica a aplicar e da ciência que lhe dá sentido racional, como em qualquer arte é indispensável a sensibilidade às legítimas exigências e aspirações do público consumidor - no caso, consumidor do serviço jurisdicional. Assim como o artista plástico é cultor do belo visual e o músico, da harmonia de sons e acordes agradáveis ao sentido da audição, assim também o bom operador do processo há de ser um apaixonado pelo belo ético, ou pelo valor do justo. É aos usuários do sistema que se destinam os resultados do processo, a saber, aos sujeitos envolvidos em conflitos e portadores de anseio pela tutela da qual o juiz é encarregado. Como em toda arte, é indispensável a capacidade de trazer sensações felizes aos destinatários dessa atividade. A técnica e a ciência do processo precisam ser adequadamente aplicadas na função dos artífices da justiça, para que o processo possa efetivamente cumprir seu escopo fundamental, pacificando e fazendo prevalecer os autênticos valores da sociedade. Não se terá um processo justo, ou seja, capaz de conduzir a resultados substancialmente justos, sem a sensibilidade que conduza os operadores do sistema a aplicar convenientemente os grandes princípios sintetizados na cláusula due process of law. Tal sensibilidade artística é essencial à correta condução do processo e dela precisam estar imbuídos todos os artífices deste.De nada valeria uma boa ciência, associada à técnica adequadamente modelada nos textos legais, se não existisse a consciência de praticar a arte do processo com vista aos objetivos que dão vida ao sistema e o legitimam perante a sociedade e sua escala de valores. De nada valeriam boas leis e excelentes conceitos, se não tivéssemos homens capazes de fazer justiça. Daí a imensa responsabilidade da doutrina, de quem é a tarefa deformar mentalidades e por esse modo contribuir para o aperfeiçoamento da arte da justiça. Falar do trinômio técnica-ciência-arte é pensar nas responsabilidades de três sujeitos, que são o legislador, o processualista e os operadores dos instrumentos processuais (juiz, advogado, Ministério Público).

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16. instrumento ético e não puramente técnico

Visto por essa perspectiva integrada, o processo deixa de ser considerado mero instrumento técnico para a realização do direito material. Dizia-se que a missão do juiz seria a efetivação das leis substanciais, não lhe competindo o juízo do bem ou do mal, do justo ou do injusto. Sentenças injustas seriam o fruto de leis injustas e a responsabilidade por essa injustiça seria do legislador, não do juiz. Mas o juiz moderno tem solene compromisso com a justiça. Não só deve participar adequadamente das atividades processuais, endereçando-as à descoberta de fatos relevantes e correta interpretação da lei, como ainda (e principalmente) buscando oferecer às partes a solução que realmente realize o escopo de fazer justiça.Eis por que a doutrina atual considera pobre e insuficiente a indicação do processo como mera técnica instrumentalmente conexa ao direito material. Ele é uma técnica, sim, mas técnica que deve ser informada pelos objetivos e ideologias revelados na ciência processual e levada a efeito com vista à efetivação do valor do justo. Conjuntamente com o próprio direito substancial, o processo é instrumentalmente conexo ao supremo objetivo de pacificar com justiça.Existem ainda outros compromissos do juiz moderno, entrelaçados com os demais objetivos de sua própria função. Ele deve ter consciência das destinações políticas e culturais do sistema que opera, para que o exercício da jurisdição possa dar efetividade a certos valores relevantes para a sociedade como um todo - valores que se expressam nos chamados escopos do processo. O escopo social de educação para o exercício de direitos próprios e respeito aos direitos alheios aconselha o juiz a dispensar a tutela jurisdicional com a possível celeridade; o escopo político de preservação da moralidade administrativa há de estar presente na condução das ações populares; de um modo geral, o escopo também político de dar efetividade aos valores acatados pelo direito objetivo recomenda plena participação do juiz nos processos sob sua direção, tomando razoáveis iniciativas probatórias, dialogando racionalmente com os litigantes, dispondo medidas urgentes que evitem a consumação de males irremediáveis e capazes de frustrar o exercício útil da jurisdição etc. (escopos do processo: infra, nn. 47-53);Assim ligado aos escopos a realizar e sobremodo ao de praticar a justiça ao pacificar os litigantes, tem-se o conceito de processo justo, hoje corrente na teoria processual. Justo será, em primeiro lugar e acima de tudo, o processo que ofereça resultados justos aos litigantes em sua vida comum. Mas, para ter-se razoável segurança de que o processo oferecerá resultados substancialmente justos, ele há de ser justo em si mesmo, mediante o tratamento isonômico dos litigantes, liberdade de atuar na efetiva defesa de seus interesses, participação efetiva do juiz, imparcialidade etc. Ao conjunto de garantias destinadas a conferir ao processo esse perfil de instrumento justo, a Constituição e a doutrina dão a qualificação de devido processo legal (Const., art. 54, inc. LIV) e o exercício do poder estatal no processo só será política e eticamente legítimo quando observada essa cláusula de aceitação geral no processo civil moderno.Existe hoje a legítima tendência a atribuir poder de "criação " ao juiz, mas isso não interfere na questão em exame. A invenção de soluções novas, compatíveis com a realidade sócio-econômica e política do caso em julgamento, é conseqüência da interpretação sociológica ou teleológica da lei e não erige o juiz em legislador ou criador do direito. O juiz que vai aos princípios gerais e constitucionais ou considera as grandes premissas éticas da sociedade ao julgar, cumpre apenas um tradicional mandamento da própria ordem jurídica (os fins sociais da lei, art. 5LICC) e comporta-se como autêntico canal de comunicação entre os valores da sociedade em que vive e os casos concretos que julga. Não fora assim, a jurisprudência jamais evoluiria segundo as tendências da sociedade e de acordo com os cambiantes problemas enfrentados por esta. Do ponto-de-vista jurídico, todavia, inexiste criação em casos assim, justamente porque o juiz não retira da sua vontade ou preferências pessoais a norma substancial que servirá de base para julgar o caso: simplesmente, dá efetividade aos princípios gerais do direito, à analogia etc., que são fontes formais do direito expressamente indicadas na própria ordem jurídica positiva (LICC, art. 44).

Capitulo II -A LEI PROCESSUAL CIVIL

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17. a norma processual civil e seu objeto - 18. normas processuais e normas procedimentais - 19. normas secundárias - 20. normas processuais civis cogentes ou dispositivas - 21. fontes formais da norma processual civil - 22. a Constituiçào Federal - 23. tratados internacionais - 24. a lei - 25. leis federais ordinárias - 26. leis complementares federais - 27. Constituições e leis estaduais - 28. regimentos internos dos tribunais - 29. a jurisprudência - usos-e-costumes judiciários - 30. conhecimento da lei processual - 31. interpretação e integração da lei processual civil - 32. as dimensões da lei processual civil: normas de superdireito - 33. dimensão espacial da lei processual civil: territorialidade - 34. dimensão temporal da lei processual civil: vigência e eficácia - 35. início e fim da vigência da lei processual civil - 36. eficácia da lei processual civil no tempo - 37. regras de direito processual civil intertemporal - 38. cont.: preservação da garantia de tutela jurisdicional (remissão ao direito processual material)

17. a norma processual civil e seu objeto

Norma é preceito. É regra de conduta ou de atribuição de bens. Seja no direito material ou no processual, toda norma é composta de uma abstrata definição de fatos previstos (fattispecie) e da determinação da sua conseqüência (sanctio juris). Em seu conjunto, a norma expressa um juízo de valor do ente que a emite, sobre os fatos possíveis e selecionados no primeiro de seus elementos. Esse juízo, que transparece no segundo elemento (sanctio juris), será de aprovação ou de reprovação, conforme os fatos previstos sejam havidos por favoráveis ou desfavoráveis aos valores escolhidos pelo autor da norma (Carnelutti). A concreta ocorrência dos fatos tipificados desencadeia a conseqüência jurídica estabelecida, fazendo com que surja uma situação jurídica nova. É usual aludir-se ao preceito abstrato residente na sanctio legis como vontade abstrata da lei e ao preceito concreto decorrente da ocorrência dos fatos previstos, como vontade concreta (Chiovenda).Se o réu não apresenta resposta no prazo, essa omissão é um fato previsto na fattispecie do art. 319 do Código de Processo Civil. A sanctio juris consistente na dispensa de prova dos fatos alegados pelo autor é manifestação do juízo de valor que o legislador fez quanto àquela conduta omissiva. A vontade abstrata do art. 319 é que todo autor seja dispensado desse ônus, sempre que o réu não responda à inicial. Em cada caso em que aconteça tal omissão, haverá a vontade concreta do direito no sentido de dispensar a prova (v. ainda art. 334, me. 111).Toda norma tem sobre os destinatários a mesma capacidade de influência que tiver o ente que a emite e quer seu cumprimento. Tal é o significado das normas religiosas, éticas, esportivas etc. Feitos os descontos decorrentes da precariedade dos meios de exigência ou imposição do cumprimento da norma em certos casos, ela sempre revela um vínculo entre o ente produtor e o destinatário, sendo aquele, em alguma medida, capaz de ordenar certas condutas e repelir outras. Diz-se jurídica a norma que rege imperativamente as relações entre dois ou mais indivíduos ou grupos, atribuindo-lhes bens ou determinando-lhes condutas com a possibilidade de imposição de seus preceitos contra a vontade dos sujeitos. As normas jurídicas são ditadas pelo Estado ao positivar seu poder nas leis das mais variadas classificações hierárquicas (Constituição, leis ordinárias, regulamentos, regimentos etc. ); pelos grupos sociais, diretamente (usos-e-costumes); pelos entes intermediários entre o Estado e os indivíduos (estatutos, atos constitutivos de pessoas jurídicas em geral) ou pelos próprios indivíduos mediante atos reveladores da autonomia da vontade (negócios jurídicos). As normas instituídas pelos indivíduos ou pelos entes intermediários são vinculastes na medida de sua compatibilidade com o sistema normativo estatal (Constituição, leis), do qual recebem legitimidade e sua própria capacidade de impor condutas ou atribuir bens. As normas juridicas ditadas pelo Estado, além de condicionarem as demais e serem o suporte da obrigatoriedade de todas, recebem dele o predicado da inevitabilidade. Dizem-se inevitáveis as normas estatais, no sentido de que não tem o indivíduo a faculdade de descumpri-las ou furtar-se ao seu império afastando-se do convívio social como quem se afasta de uma entidade religiosa ou de um clube esportivo. A inevitabilidade das normas estatais é reflexo da inevitabilidade do próprio Estado.A inevitabilidade do Estado e dos atos de exercício do poder estatal transparece no repúdio do direito moderno à velha concepção privatística do processo como contrato (infra, n. 387). Deve

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servir de premissa para a solução de muitos problemas conceituais e práticos de direito processual, ligados à colocação do direito processual como ramo do direito público.As normas estatais são em si mesmas imperativas, porque ditadas no exercício do poder estatal, que se conceitua como capacidade de decidir imperativamente e impor decisões soberanas; sua imperatividade constitui projeção do imperium de que é investido o ente que as emite - o Estado. Ao dispor em sede legislativa sobre os bens e condutas que constituem objeto das normas que edita, este positiva o seu poder, ou seja, ele o exerce concretamente e põe na ordem jurídica o resultado desse exercício. Algumas normas oriundas de outros entes produtores recebem do sistema estatal a sua força vinculaste, na medida em que o Estado, aceitando-as, dispõe-se a dar-lhes efetividade independentemente ou mesmo contra a vontade dos sujeitos obrigados a dar-lhes cumprimento (é o que sucede com os contratos ou estatutos etc. ).Quando a norma jurídica tem por objeto o exercício da função estatal pacificadora que é a jurisdição e refere-se portanto às condutas inerentes à realização do processo, dela se qualifica como norma processual. Sabendo-se que a jurisdição é exercida pelo Estado juiz com plena abertura à participação de um sujeito que veio pedir a tutela jurisdicional (autor, demandante) e de outro em relação ao qual a tutela é pedida (réu, demandado), todos operando segundo determinado método (o devido processo legal), segue-se que o objeto da norma processual abrange as situações de todos esses três sujeitos e de suas condutas coordenadas ao objetivo final de pacificação. Nisso as normas processuais diferem das de direito material, as quais regem diretamente a atribuição de bens e determinação de condutas das pessoas em suas relações na vida comum.Norma processual é, portanto, todo preceito jurídico regulador do exercício da jurisdição pelo Estado, da ação pelo demandante e da defesa pelo demandado - três atividades que se desenvolvem num só ambiente comum, que é o processo (infra, mi. 387-388).Os limites em que a jurisdição se exerce legitimamente e a definição dos casos em que está excepcionalmente excluída; as condições para seu exercício em cada caso concreto; quem a exerce, ou como se distribui o exercício da jurisdição entre os juizes do país; como se exerce e a conjugação do seu exercício com o exercício dos poderes e faculdades inerentes à ação e à defesa pelas partes; onde se exerce, quando se exerce, qual eficácia têm as decisões e qual grau de imunidade as protege contra ulteriores ataques (preclusões, coisa julgada) - eis algumas ilustrações da trama de atividades e situações dos sujeitos do processo, regidas pela norma processual.

18. normas processuais e normas procedimentais

O processo, como realidade fenomenológica, é uma entidade complexa em que figuram dois elementos distintos e interligados: o procedimento, como série de atos coordenados a partir de uma iniciativa de parte (demanda) e direcionados a um provimento do juiz (no processo de conhecimento, sentença de mérito); e a relação jurídica processual, que é um vínculo dinâmico e complexo entre os sujeitos processuais (juiz, autor e réu) e se expressa nas inúmeras situações ocupadas por eles do princípio ao fim (deveres, poderes, faculdades, ônus, sujeição, autoridade). Em preciosa síntese, disse a doutrina que o processo se constitui, ao mesmo tempo, de uma relação entre seus sujeitos e de uma relação entre seus atos (Liebman) (infra, n. 387).Mas existem vozes na doutrina, a sustentar uma precisa distinção entre normas processuais stricto sensu e normas procedimentais, mas essa distinção só em modesta medida e sob ressalvas compatibiliza-se com a natureza complexa do processo, porque se apóia na premissa de que processo e procedimento fossem fenômenos independentes e autônomos. Superada essa visão inadequada dos fenômenos processo e procedimento, não há como distinguir, com nitidez e generalidade, normas alusivas a um e normas alusivas a outro. Toda norma sobre o procedimento em juízo é norma processual porque o procedimento integra o conceito de processo. É impossível distinguir normas que disciplinem o procedimento sem influir no modo-de-ser da relação jurídica processual que lhe está à base e, portanto, também impossível encontrar normas de direcionamento exclusivo ao procedimento e normas direcionadas só à relação processual (infra, n. 387).

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A Constituição Federal de 1988, todavia, veio a realimentar essa distinção ao estabelecer a competência concorrente da União e Estados para legislarem sobre procedimentos em matéria processual (art. 24, me. XI), em confronto com a competência federal exclusiva para ditar normas de direito processual (art. 22, me. 1). Essas disposições obrigam o intérprete a renunciar à precisão dos conceitos e admitir que, na ordem jurídica brasileira, podem existir normas puramente procedimentais ao lado de normas processuais stricto sensu. É preciso penetrar no pensamento do constituinte e, em consonância com o sistema processual como um todo, buscar o significado útil da distinção (interpretação sistemática).Dado que no processo entrelaçam-se o procedimento e a relação jurídica vinculativa de seus sujeitos, entende-se que as normas processuais stricto sensu seriam os preceitos destinados a definir os poderes, deveres, faculdades, ônus e sujeição dos sujeitos processuais (relação jurídica processual), sem interferir no desenho das atividades a realizar (procedimento). Normas procedimentais, nesse contexto, seriam aquelas que descrevem os modelos a seguir nas atividades processuais, ou seja, (a) o elenco de atos que compõem cada procedimento, (b) a ordem de sucessão a presidir a realização desses atos, (c) a forma que deve ser observada em cada um deles (modo, lugar e tempo) e (d) os diferentes tipos de procedimentos disponíveis e adequados aos casos que a própria norma estabelece (infra, nn. 625-626).Mesmo aceitando a (relativa) imposição constitucional de distinguir normas processuais stricto sensu e normas procedimentais, continuemos a empregar ordinariamente a locução normas processuais no sentido amplo, desconsiderada a distinção.Existem ainda as normas de organização judiciária, que convivem com as duas categorias precedentes e também são sujeitas a critérios diferentes de competência legislativa. Constitui tendência entre os processualistas modernos a absorção da organização judiciária no objeto de seus estudos, embora preponderem entre essas normas organizacionais as que disciplinam a administração do Poder Judiciário, sem natureza processual. As normas gerais da organização judiciária brasileira são ditadas superiormente pela Constituição Federal (arts. 92 ss.) e pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional (lei compl. n. 35, de 14.3.79, na medida de sua recepção constitucional), sendo esperado o Estatuto da Magistratura, que a Constituição prevê mas não foi editado até hoje (Const., art. 93). A essas normas superiores devem ater-se as que a própria União e os Estados editam para a organização de suas Justiças (infra, n. 153).

19. normas secundárias

Como o direito processual não se propõe a reger diretamente as relações das pessoas ou grupos na vida comum nem a atribuir-lhes bens da vida ou definir-lhes ou sancionar-lhes as condutas - mas a regular a vida do processo - segue-se que as normas processuais têm caráter instrumental perante as de direito material. A estas, sim, compete aquela disciplina.O caráter instrumental das normas processuais qualifica-as como secundárias. Situam-se num segundo plano, de onde regem as atividades mediante as quais as normas primárias ganham efetividade graças a decisões e atos materiais dotados de imperatividade. Essas atividades atingirão seu objetivo quando tiverem conduzido à definição de direitos e obrigações entre os litigantes, ou mesmo à satisfação do titular de direito (sentenças constitutivas, execução forçada) - mas as regras das quais emerge o desenho dessas situações jurídicas são as substanciais e não as processuais. A atuação daquelas, em caso de conflito envolvendo indivíduos ou grupos de indivíduos, depende das atividades regidas por estas.Daí ter a doutrina definido a norma processual como norma de atuação jurídica, no mesmo plano de outras normas secundárias, que são as de produção jurídica (direito internacional privado, normas sobre processo legislativo etc.). Tanto aquela como estas, integram o que se chamou direito sobre direito (Liebman).

20. normas processuais civis cogentes ou dispositivas

As normas processuais são de direito público pelo fato de regerem relações com o Estado, estando este no exercício do poder (supra, n. 8). Isso não significa que todas elas sejam de

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ordem pública. São de ordem pública todas as normas (processuais ou substanciais) referentes a relações que transcendam a esfera de interesses dos sujeitos privados, disciplinando relações que os envolvam mas fazendo-o com atenção ao interesse da sociedade como um todo, ou ao interesse público. Existem normas processuais de ordem pública e outras, também processuais, que não o são.Não é possível traçar conceitos muito rígidos ou critérios apriorísticos bem nítidos para a distinção entre umas e outras. Como critério geral, são de ordem pública as normas processuais destinadas a assegurar o correto exercício da jurisdição (que é uma função pública, expressão do poder estatal), sem a atenção centrada de modo direto ou primário nos interesses das partes conflitantes. Não o são aquelas que têm em conta os interesses das partes em primeiro plano, sendo relativamente indiferente ao correto exercício da jurisdição a submissão destas ou eventual disposição que venham a fazer em sentido diferente.Há normas processuais sobre competência que se relacionam intimamente com a estrutura do Poder Judiciário e cujo cumprimento é reputado essencial para a manutenção da ordem idealizada pelo constituinte e pelo legislador; tais normas estabelecem a competência absoluta, que não deve ser violada em hipótese alguma (v.g., competência da Justiça Federal ou das estaduais comuns: Const., art. 109). Mas há também normas sobre competência que correspondem a meros critérios pragmáticos, às vezes visando a facilitar a defesa de uma das partes e que, se violadas, nem por isso se compromete a qualidade do serviço jurisdicional ou a estrutura judiciária (v.g., a competência do foro em que o réu tem domicílio: CPC, art. 94); é por isso que a competência, nesses casos, diz-se relativa e em certas circunstâncias pode ser alterada pela vontade das partes. Outro exemplo são as nulidades, que se dividem em absolutas e relativas segundo critérios substancialmente coincidentes com esses descritos (CPC, aris. 84, 246, 398 etc.).Esses diferentes graus de imperatividade indicam a existência de normas processuais cogentes, ao lado de normas processuais dispositivas - aquelas, com imperatividade absoluta e nenhuma liberdade deixada às partes para disporem de modo diferente, ainda que de acordo; estas, dotadas de imperatividade relativa e portanto portadoras de preceitos suscetíveis de serem alterados pelos litigantes. Assim, p.ex., sendo norma dispositiva a que fixa a competência do foro do domicílio do réu, podem as partes pactuar previamente a derrogação dessa regra, elegendo outro foro (CPC, art. 111);1 e pode também o réu, simplesmente deixando de impugnar a escolha de outro foro pelo autor, permitir que a competência do foro escolhido se prorrogue, isto é, que ela se amplie a ponto de comportar a inclusão da causa ali proposta (CPC, art. 114) (infra, n. 215). De um modo geral, as nulidades relativas consideram-se sanadas se a parte prejudicada deixar de alegá-las na primeira oportunidade em que se manifestar no processo (art. 245), o que não acontece em relação às absolutas.

21. fontes formais da norma processual civil

Fontes formais do direito são os canais pelos quais as normas vêm ao mundo jurídico, oriundas da vontade do ente capaz de ditá-las e impô-las ou exigir sua observância. São, por esse aspecto, as formas de expressão do direito positivo. Direito é o sistema normativo de um Estado ou de alguma comunidade ou menos mais ampla. É composto pelas normas positivadas atravês das diversas fontes formais, mais os valores que lhes estão à base e devem transparecer no exame de cada fato relevante para a vida das pessoas ou grupos.

NOTA:

1. Mas a eleição de foro não e um negócio jurídico processual (infra, n. 637).

É ambíguo o significado da locução fonte do direito. Tradicionalmente ela é empregada para designar os modos como o direito se expressa, ou seja, os modos de expressão do direito. Mas por fonte do direito pode-se também designar o ente que produz a norma - o Estado, a própria sociedade, os grupos, os indivíduos e os entes intermediários institucionalizados (tais são as

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fontes substanciais do direito). Por isso, parte da doutrina prefere referir-se a fonte somente nesse sentido, designando os atos de produção jurídica por modos de expressão do direito. Falando-se porém em fontes formais do direito, que não se confundem com suas fontes substanciais (os entes produtores), qualquer mal-entendido fica afastado.As fontes formais da norma processual civil são a própria Constituição Federal e os demais atos que, na condição de tête de chapitre, ela prevê ou consente, a saber: a lei, os tratados internacionais, os principies gerais do direito e os usos-e-costumes forenses.Ao relacionar as possíveis fontes, consideradas em tese e sem especificações relacionadas com as fontes em determinado ordenamento jurídico, fala a doutrina em fontes abstratas do direito. E fontes concretas são as fontes formais consideradas em dada ordem jurídica e especificadas em cada conjunto de normas ali vigentes.

22. A Constituição Federal

Da Constituição Federal vêm (a) as normas integrantes da tutela constitucional do processo, portadoras de garantias que expressam os princípios fundamentais do sistema (controle jurisdicional, isonomia, juiz natural, contraditório e ampla defesa, devido processo legal etc.), bem como (b) as que estruturam a jurisdição constitucional,2 (c) as que asseguram e dão a medida da independência do Poder Judiciário como um todo e dos juízes individualmente, (d) as que ditam a estrutura e competência do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores da União (entre os quais, o Superior Tribunal de Justiça), (e) as que dispõem sobre a estrutura e competência das diversas Justiças e (f) as que fixam critérios para a legislação infraconstitucional sobre o processo mesmo, sobre procedimentos e sobre organização judiciária. As normas processuais fixadas na Constituição Federal, as garantias constitucionais e os princípios ali definidos (tutela constitucional do processo) transparecem depois nas leis de diversas classes, às quais incumbe especificar o que vem daquele nível mais elevado.

2. Jurisdição constitucional: conjunto de medidas jurisdicionais asseguradas pela Constituição Federal para a tutela a pessoas ou grupos em certas situações específicas (tutelas jurisdicionais diferenciadas): ação declaratória de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, ação popular, habeas corpus, mandado de segurança individual ou coletivo, habeas data, mandado de injunção, ação civil pública. Pela destinação desses meios processuais-constitucionais à preservação das pessoas, fala-se em jurisdição constitucional das liberdades (infra, n. 74).

A exigência constitucional de motivação das decisões judiciárias, contida em seu art. 93, inc. IX, é reproduzida em mais de um dispositivo do Código de Processo Civil (arts. 131 e 458, inc. 11). O mandado de segurança, assegurado constitucionalmente (Const., art. 54, inc. LXIX), é disciplinado por lei específica (lei n. 1.533, de 31.12.51). Os juizados especiais e o processo especialíssimo que perante eles se celebra estão previstos constitucionalmente (art. 98, inc. I) e são regidos pela Lei dos Juizados Especiais (lei n. 9.099, de 26.9.95); etc. Além disso, garantias constitucionais mais amplas e menos precisas, como a do devido processo legal e a do contraditório (Const., art. 54, ines. LIV e LV), estão presentes em todo o complexo de normas contidas nas leis infraconstitucionais, especialmente no Código de Processo Civil, impondo-se também como guia interpretativo destas. Cumprir os procedimentos adequados, observar racionalmente as exigências formais do processo, assegurar o direito à prova etc., são meios de dar efetividade àqueles ditames constitucionais mediante atuação do que está no Código de Processo Civil e nas demais normas processuais infraconstitucionais; as leis processuais definem os modos pelos quais se realiza o controle jurisdicional inafastável, garantido pela Constituição Federal (art. 54, inc. XXXV).

23. Tratados internacionais

A Constituição Federal considera também integrados às garantias que ela própria estabelece os preceitos dessa natureza, estabelecidos em tratados internacionais dos quais a República

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Federativa do Brasil seja parte (art. 5-, § 2-°). Ocupa posição de destaque o Pacto de São José da Costa Rica, que é a Convenção Americana de Direitos Humanos, em vigor desde 1978, incorporada à ordem jurídica brasileira em 1992 (dec. n. 678, de 6.11.92) e portadora de uma série de garantias judiciais (muito importante é a da realização do processo em tempo razoável: art. 84). Vigem também tratados relacionados com o cumprimento de atos de cooperação jurisdicional internacional, seja em relação às cartas rogatórias, seja para o reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras. Todos eles são fontes formais de direito processual civil, na medida das normas que contenham sobre essa matéria.Discute-se se as normas contidas em tratados anteriores à Constituição Federal de 1988 consideram-se integradas ao sistema de garantias individuais contido no art. 54 desta, ou se simplesmente fazem parte do direito nacional, em nível infraconstitucional. Deve prevalecer a primeira dessas propostas, em virtude da redação do § 24 do art. 54 constitucional, bem como em razão do destacado espírito garantístico da Constituição.

24. a lei

Leis, com a amplitude que ao vocábulo se empresta nesse contexto são os textos normativos elaborados segundo as competências e o processo legislativo definidos na Constituição e nas leis pertinentes, sempre com a participação do Poder Legislativo. São processuais as leis portadoras de normas gerais e abstratas alusivas ao processo, disciplinando o exercício da jurisdição, da ação e da defesa mediante os atos e formas processuais. Quando aludem ao exercício da jurisdição em matéria não-penal, essas leis são processuais civis (supra, n. 2).Em sentido muito amplo, a categoria lei abrangeria também a própria Constituição Federal, mas aqui esta é tratada separadamente, seja pela sua condição de diploma positivador do poder originário, condicionante de todas as demais fontes de direito, seja pela supremacia que exerce sobre elas.Existem leis processuais federais e leis processuais estaduais, apresentando-se as primeiras nas subespécies de leis complementares ou ordinárias.' As leis complementares são hierarquicamente superiores às ordinárias em relação à matéria que disciplinam, constituindo um patamar intermediário entre a Constituição e elas, as quais portanto nunca podem revogá-las (Coast., art. 69). Mas inexiste relação de hierarquia entre leis federais e leis estaduais: o que se dá, no sistema federativo, é uma distribuição de competências legislativas ditada pela Constituição Federal, de modo que cada ente da Federação (União, Estados) só legisla nas matérias que esta lhe atribui, sendo inconstitucional uma lei - federal ou estadual - que invada a competência normativa de outro.Não se legisla em matéria processual mediante decretos ou regulamentos, os quais são atos do Poder Executivo, não se confundem com as leis e não se lhes equiparam para esse fim. É inerente ao sistema de legalidade coessencial ao Estado-de-direito (Coast., art. 54, me. 11) que exclusivamente a lei possa, salvo nos casos que a própria Constituição Federal indique, dispor sobre atribuição de bens e determinação de condutas das pessoas ou grupos. Seria contrário ao substantive due process of law, nesse contexto democrático, admitir normas sobre processo emitidas pelo Poder Executivo, sem a participação do Legislativo. Por isso, mais de um vez a Constituição Federal refere-se à lei (estadual ou federal) ou emprega o verbo legislar, ao estabelecer as fontes pelas quais é legítimo gerar normas de direito processual (arts. 93, 98, incs. 1-I1, 107, par., 109, § 3-, 110, par., 112, 113, 114, 116, par., 125, § § 1- e 34 etc. ).No passado houve o conhecidíssimo Regulamento 737, que foi um ato do Imperador, elaborado sem a participação do Poder Legislativo. Foi editado no ano de 1850 "com a rubrica de Sua Majestade o Imperador" e, em seus setecentos e quarenta-e-três artigos, regia "a ordem no processo comercial". Em 1890 um decreto do Poder Executivo republicano mandou observar o Regulamento 737 nas causas cíveis em geral (dec. n. 763, de 19.9.90). Compreende-se que se admitissem normas processuais emanadas mediante decretos ou regulamentos, quando a doutrina não reconhecia autonomia à ação e à relação processual, encarando-se o processo como modo de exercício dos direitos (infra, n. 98). Daí a conseqüência de regulamentar o exercício dos direitos via processo, por mero regulamento.

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NOTA:

3. Também nos Estados há leis complementares, mas não é usual seu emprego em matéria processual (cfr., p.ex., Connt-SP, art. 174, § 92).

Não são leis, embora tenham a eficácia destas por disposição constitucional (Coast., arts. 62 e 84, me. XXVI), as medidas provisórias com que nos últimos tempos o Poder Executivo vem chocando a consciência jurídica do país, sempre em beneficio da Fazenda Pública. Elas são ditadas com os falsos fundamentos de urgência e relevância (Coast., art. 62 e 84, me. XXVI), que nesse caso não passam de meros pretextos para o casuísmo. Entram em vigor imediatamente, sem observância do devido processo legal e sem qualquer participação do Poder Legislativo. São a feição moderna dos antigos decretos-leis, de origem fascista, igualmente supressivos do devido processo legal em tema legislativo.A medida provisória n. 1.570, convertida na lei n. 9.494, de 10 de setembro de 1997, restringiu a possibilidade de concessão de tutela antecipada em face da Fazenda Pública. A medida provisória n. 1.632-7, de 12 de dezembro de 1997, ampliou de dois para cinco o anos o prazo para a propositura de ação rescisória por pessoas de direito público e institui novo fundamento, sempre em favor da Fazenda Pública, para a ação rescisória contra sentença em processo de desapropriação imobiliária (art. 4s, caput e par.). Depois, suspensa a eficácia dessa medida provisória por decisão do Supremo Tribunal Federal, a de n. 1.774-20, de 14 de dezembro de 1998, concedeu prazo em dobro à Fazenda também para a propositura de ação rescisória (red. art. 188 CPC); também essa medida provisória teve a eficácia suspensa e o Governo Federal acabou por não reeditá-la (o que significa que o art. 188 permanece em sua redação original). As medidas provisórias n. 1.632-10, de 13 de março de 1998, n. 1.774-20, de 14 de dezembro do mesmo ano e n. 1.984-12, de 10 de dezembro de 1999 institucionalizaram, exclusivamente em favor da Fazenda Pública, a concessão de medidas cautelares em ação rescisória; em relação aos litigantes mortais, continua vigente o disposto no art. 489, pelo qual a ação rescisória não impede a execução da sentença. Será puro acaso, ou as medidas provisórias são empregadas como expedientes conscientemente direcionados ao objetivo de alterar o equilíbrio democrático entre a liberdade do cidadão e a autoridade do Estado, criando situações de desigualdade em favor deste (infra, n. 83)?

25. leis federais ordinárias

Lei federal ordinária é a lei aprovada pelos órgãos competentes de nível federal (Congresso Nacional) independentemente de quorum especial. Sempre que a Constituição não exija de modo específico que dada matéria seja regida por lei complementar, cabe à lei ordinária essa regência. Por outro lado, reserva-se em princípio à lei federal a disciplina do processo em todo o território nacional (Const., art. 22, inc. 1), ressalvada a competência concorrente entre União e Estados para legislar sobre o processo das pequenas causas (juizados especiais) e sobre procedimentos em matéria processual (art. 24, incs. X-XI) (supra, n. 18).Entre as leis federais ordinárias figura em primeiro lugar, como fonte formal de direito processual civil, o Código de Processo Civil (lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973), com inúmeras alterações sofridas a partir do próprio ano de 1973 quando ainda estava em estado de vacatio (lei n. 5.925, de 1.10.73). O art. is do Código de Processo Civil dispõe que por ele se regerá o exercício da jurisdição em todo o território nacional - o que significa que, ressalvadas as disposições em sentido contrário, contidas em leis processuais extravagantes, também ao processo regido por estas o Código de Processo Civil se aplicará.Das dezenas de leis modificadoras sobrevindas de então até ao presente, as mais significativas são as integrantes da chamada Reforma do Código de Processo Civil, editadas principalmente nos anos de 1994 e 1995. Todas essas leis modificadoras são fontes formais de direito processual civil, embora incorporadas ao Código. Elas são responsáveis pela atual configuração deste, muito diferente daquela com que fora aprovado originariamente. Igualmente significativa

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como fonte formal de direito processual civil é a lei que, também durante a vacatio do Código de Processo Civil de 1973, adaptou a ele as disposições de natureza processual contidas em diversas outras leis (lei n. 6.014, de 27.12.73).Há também leis ordinárias federais verdadeiramente extravagantes, alheias ao Código e portadoras de normas processuais em certos setores específicos, como a Lei do Mandado de Segurança, Lei da Ação Civil Pública, Lei dos Juizados Especiais, Lei da Ação Popular, Lei da Assistência Judiciária, Lei do Habeas Data (lei n. 9.507, de 12.11.97), Lei da Ação Direta de Inconstitucionalidade (lei n. 9.868, de 10.22.99) etc. Alguns diplomas contêm numerosas e importantíssimas disposições de caráter processual ao lado da disciplina jurídico-substancial de certas matérias específicas - como a Lei de Falências, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Cambial, a Lei das Duplicatas, a Lei do Cheque, as sucessivas Leis do Inquilinato, a Lei dos Registros Públicos etc. O próprio Código Civil é portador de algumas normas tipicamente processuais, as quais não têm sua natureza alterada pela sede em que se encontram (normas processuais heterotópicas). São tipicamente processuais, p.ex., a que manda processar a demanda de nulidade do casamento por ação ordinária e com a intervenção de um curador que o defenda (art. 222)4; a que manda o autor requerer a separação de corpos como medida antecedente à separação judicial ou divórcio, devendo o juiz concedêla com a possível brevidade (art. 223); a que assegura ao possuidor medidas de urgência em caso de justo receio de ser molestado na posse (art. 501); a que estabelece a competência do juiz do lugar do pagamento, para o depósito com força de pagamento (pagamento por consignação) (art. 976); etc. Isso significa que também os diplomas legislativos situados preponderantemente no campo do direito material podem ser considerados, em alguma medida, fontes formais concretas do direito processual civil.5

NOTA:

4. O curador ao vínculo.5. Sem falar nos institutos bifrontes, que comportam regência integrada por normas substanciais e normas processuais (supra, n. 6). As normas existentes no Código Civil sobre a prova, a hipoteca ou sobre a legitimidade para propor determinadas demandas integram esse contexto (arts. 249, 346, 365, 809 ss. etc.) e constituem o elemento substancial da regência conjunta desses institutos. Para os que negam a existência do direito processual material ou para os que simplesmente o ignoram, tais institutos devem ser havidos por puramente processuais e não, materiais; conseqüentemente, para quem pensa assim são processuais e heterotópicas as normas que os regem.

Além disso, são também fontes formais de direito processual civil, na medida dos dispositivos processuais que contêm, as leis de organização da Justiça Federal, que são leis federais. A mais importante delas é a Lei Orgânica da Justiça Federal (lei n. 5.010, de 30.5.66), seguidamente reformada por outras, igualmente federais. Há também a lei que institui o Regimento de Custas da Justiça Federal, com normas significativas de direito processual (lei n. 9.289, de 4.7.96).São ainda fontes formais de direito processual civil alguns capítulos do Código de Processo Civil de 1939, disciplinadores de certos procedimentos especiais, cuja vigência o atual ressalvou (CPC-73, art. 1.218).Trata-se dos capítulos referentes ao loteamento e venda de imóveis a prestações (arts. 345-349), à dissolução e liqüidação de sociedades (arts. 655-674), aos protestos formados a bordo (arts. 725-729), ao dinheiro a risco (arts. 754-755), à vistoria de fazendas avariadas (art. 756), à apreensão de embarcações (arts. 757-761), à avaria a cargo do segurador (arts. 762-764), às avarias (arts. 765-768) e às arribadas forçadas (arts. 772-775). O art.1.218 do Código de Processo Civil ressalva ainda outros capítulos, que no entanto vieram a ser revogados por leis posteriores (do despejo, da renovação de contrato de locação de imóveis destinados afins comerciais, do Registro de Torrens, das averbações ou retificações do Registro Civil, do bem de família e da habilitação para casamento [Theotônio Negrão] ).

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26. leis complementares federais

São leis complementares aquelas para as quais a Constituição exige um quorum qualificado (art. 69: maioria absoluta dos membros de cada Casa Legislativa). São necessárias, não bastando uma lei ordinária, quanto às matérias para as quais as exige a Constituição; são hierarquicamente superiores às leis ordinárias, que não as podem revogar (Const., art. 69).Na categoria das leis complementares federais processuais encontra-se a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (lei compl. n. 35, de 14.4.79), que deverá ser substituída pelo Estatuto da Magistratura (Const., art. 93), estando em vigor na medida em que recepcionada pela vigente ordem constitucional. Seu objeto é composto por normas sobre a carreira da Magistratura (ingresso, promoção, acesso aos tribunais de segundo grau), cursos oficiais de preparação e aperfeiçoamento de magistrados, vencimentos, aposentadoria, exigências administrativas e sanções disciplinares, composição dos tribunais etc.A Lei Orgânica da Magistratura Nacional não foi recepcionada na parte em que estabelece parâmetros para a competência dos Tribunais de Alçada (art. 108, inc. 111): o art. 125, § 12, da Constituição Federal de 1988, passou essa matéria à competência legislativa exclusiva dos Estados, sem espaço para as limitações postas pela velha lei complementar (José Raimundo Gomes da Cruz).São também leis complementares federais, portadoras de normas processuais ainda quando não sejam tipicamente processuais elas próprias como um todo, o Estatuto do Ministério Público da União (lei compl. n. 75, de 20.5.93; Const., art. 128, § 5-), a Lei Orgânica Nacional da Advocacia-Geral da União (lei compl. n. 73, de 10.2.93; Const., art. 131), a Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública (lei compl. n. 80, de 12.1.94; Const., art. 134, par.), a lei que dispõe sobre o procedimento sumário no processo de desapropriação de imóvel rural (lei compl. n. 76, de 6.7.93; Const., art. 184, § 34) etc.

27. Constituições e leis estaduais

Bem restrito é o espaço ocupado pelos diplomas legislativos estaduais entre as fontes formais de direito processual, dada a competência legislativa da União em matéria processual, que por disposição expressa é em tese exclusiva (Const., art. 22, inc. 1). A competência legislativa estadual nessa matéria é somente aquela indicada em preceitos específicos da Constituição Federal ao aludir às Constituições dos Estados e às suas leis, nela se incluindo exclusivamente as normas (a) sobre o processo dos juizados especiais, (b) sobre procedimentos em matéria processual e (c) sobre a determinação da competência de seus tribunais e varas especializadas (competência concorrente com a da União na primeira e segunda hipóteses e exclusiva na última).'Sempre que à unidade federada se permite instituir tribunais (de Alçada) ou juízos inferiores especializados, é natural que também se lhe conceda autonomia suficiente para preencher a competência de cada um deles e, por esse modo, diferenciar as esferas de atuação dos órgãos que institui.As Constituições estaduais incumbe fixar normas sobre a competência dos Tribunais do Estado - originária ou recursal (Const., art. 125, § 14). Não existe qualquer outro dispositivo na Constituição Federal atribuindo competência normativa às Constituições dos Estados em matéria processual. Mesmo assim, estabelecendo a Constituição Federal que "os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição" (art. 125, caput), algumas delas trazem em si a disciplina geral da organização judiciária no âmbito dos respectivos Estados. A de São Paulo, p.ex., institui um verdadeiro sistema de organização judiciária e competências: contém dispositivos sobre organização e estrutura do Poder Judiciário, carreira da Magistratura, acesso aos tribunais, divisão e competência destes, juizados especiais, ação direta de inconstitucionalidade perante elas etc. (arts. 54-90).É de duvidosa constitucionalidade essa disciplina em sede de Constituição estadual, porque as leis de organização judiciária devem partir de iniciativa do Tribunal de Justiça (Const., art. 125, §

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14) - o que obviamente não ocorre com as Constituições dos Estados. Enquanto elas se limitem a reproduzir princípios e normas já estabelecidos na Constituição Federal e mesmo em leis estaduais previgentes, nenhum problema de ordem prática existirá. Dificuldades poderão surgir quando uma lei estadual de organização judiciária, de iniciativa do Tribunal de Justiça, contrariar o que está na Constituição do Estado ou vice-versa. Prevalecerá esta, por ser hierarquicamente superior? Ou prevalecerá a lei ordinária estadual, porque a Constituição invadiu área que não lhe compete? É preferível a segunda resposta, seja porque favorece a independência do Poder Judiciário, seja porque as duas orações que compõem o § 111 do art. 125 são visivelmente independentes. Um dos preceitos que esse parágrafo contém é: "a competência dos Tribunais será definida pela Constituição do Estado". Outro, que rege outra matéria, é: "sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça ". Diante dessas claras determinações limitativas, não poderia o constituinte estadual, que não tem poder originário, instituir o verdadeiro sistema que pretendeu, provavelmente em busca de uma simetria com a Constituição Federal (essa, sim, produto do poder originário).

NOTA:6. Cfr. Connt., art. 24, incs. X e XI, art. 98, inc. I e art. 125, § 14). O parágrafo do art. 22 da Constituição Federal dispõe ainda que "lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo", mas até ao presente nenhuma lei complementar existe nesse sentido, em relação ao direito processual civil.

Dentre as leis estaduais, as de organização judiciária previstas constitucionalmente (Const., art. 125, caput) são legítimas portadoras de normas processuais sobre competência, sempre a partir da premissa de que ao ente autorizado a criar juízos diferenciados (varas) cabe também definir a competência de cada um. Lei federal define o âmbito da matéria organização judiciária, a ser regida pelas leis estaduais (lei fed. n. 5.621, de 4.11.70). Às leis estaduais de organização judiciária é lícito disciplinar os órgãos de segundo grau de jurisdição, com a composição e estrutura dos tribunais; a divisão judiciária do Estado, com a definição e classificação das comarcas, localização e competência dos juízos de primeiro grau; períodos de trabalho, férias forenses; carreira da Magistratura; serviços auxiliares da Justiça, órgãos do foro extrajudicial etc. (infra, nn. 149-156).Inexistem leis municipais de natureza processual, na mesma medida em que inexistem órgãos jurisdicionais municipais.

28. regimentos internos dos tribunais

À regra do autogoverno do Poder Judiciário, ditada pela Constituição Federal (art. 99), associa-se a independência de cada um dos tribunais, mesmo em relação aos demais tribunais da mesma Justiça. Daí a competência normativa de cada um deles em temas de sua própria organização e funcionamento, cabendo-lhes, entre outras providências, elaborar seus próprios regimentos internos (Coast., art. 96, inc. I, letra a). Esses regimentos são fontes formais de direito processual na medida das disposições que contenham a respeito das competências internas (câmaras, grupos, seções), das atribuições jurisdicionais do presidente, vice-presidente e relator, de eventuais recursos contra atos monocráticos destes (agravos regimentais), critérios para a prevenção de seus próprios juizes etc. Naturalmente, as disposições contidas nos regimentos internos dos tribunais devem guardar a "observância das normas de processo e das garantias processuais das partes" (Coast., ib.) - entendendo-se como tais não só aquelas ditadas pela própria Constituição Federal como ainda as que residem na legislação processual infraconstitucional (p.ex., é necessário que os regimentos internos guardem tudo quanto consta do Código de Processo Civil acerca da ordem dos processos nos tribunais: arts. 547-565).

29. a jurisprudência - usos-e-costumes judiciários

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Jurisprudência não é fonte de direito, tanto quanto juiz não é legislador e jurisdição não é atividade criativa de direitos (supra, n. 5). Um dos mais prestigiosos critérios objetivos para a diferenciação entre a atividade jurisdicional e a legislativa consiste propriamente na referibilidade da primeira a casos concretos, sendo a legislação preordenada à criação de normas gerais e abstratas (Mauro Cappelletti). A essência da função jurisdicional reside na solução de conflitos concretos envolvendo indivíduos ou grupos, não no estabelecimento de normas gerais e abstratas a serem atuadas por outrem para a solução de conflitos concretos.A afirmação da jurisprudência como fonte do direito incorre, inicialmente, num desvio de perspectiva e mesmo de conceitos. Ela o seria se fosse portadora de normas gerais e abstratas com eficácia em relação a casos futuros, atribuindo bens ou determinando condutas e sendo vinculante em relação aos sujeitos atingidos e aos juízes que no futuro viessem a julgar a respeito das situações ali previstas. Isso não acontece. A repetição razoavelmente constante de julgados interpretando o direito positivo de determinado modo (jurisprudência) exerce algum grau de influência sobre os futuros julgadores mas não expressa o exercício do poder, com os predicados de generalidade e abstração inerentes à lei. A diferença entre poder e influência, que são temas de ciência política, reside justamente nisso - que enquanto o primeiro se impõe sem possibilidade de recusa, a segunda somente sugere condutas ou, como no caso da jurisprudência, linhas de interpretação jurídica. A influência que os precedentes jurisprudenciais exercem sobre os juízes é somente um fato e não vincula. O máximo a que se poderia chegar é a afirmação da jurisprudência como fonte informativa ou intelectual do direito (Caio Mário): rationis auctoritate e nunca auctoritatis ratione, ela pode influir sobre decisões futuras mas não as vincula. À própria coisa julgada material a lei nega expressamente qualquer efeito vinculante em relação aos fundamentos da sentença, entre os quais se incluem as interpretações jurídicas efetuadas pelo juiz ou pelo tribunal (CPC, art. 469): como todo fundamento de sentença, a interpretação da lei, feita pelo juiz, não vincula qualquer juiz para julgamentos (supra, n. 5).Num sistema de direito escrito como é o nosso, de origem romana, inexiste a força dos precedentes como portadores de preceitos para o futuro. Não há neles autênticas normas gerais e abstratas contendo previsões de fatos ou condutas (fattispecie) e imposição de conseqüências jurídicas a eles (sanctiones juris). Nisso, os ordenamentos jurídicos de marca romano-germânica afastam-se do sistema da common law, em que uma das partes do julgamento (holding) constitui verdadeira regra a prevalecer em julgamentos futuros.A influência exercida pelas linhas da jurisprudência dos tribunais considera-se suscetível de legítimas resistências pelos juizes inferiores, os quais não se reputam vinculados a ela. Caso bastante expressivo é o da Súmula n. 512 do Supremo Tribunal Federal, pela qual não são devidos honorários advocatícios em processos de mandado de segurança - a qual é às vezes contrariada por algum juiz ou tribunal descontente com a regra que ela contém. Outro exemplo é a fortíssima jurisprudência formada em prol da facultatividade dos juizados especiais (rectius: da sua competência concorrente e não exclusiva). Um juiz que condene impetrante ou impetrado a pagar honorários, ou que prive o sujeito de optar pelas vias ordinárias em vez do processo especialíssimo dos juizados, poderá estar decidindo mal ou bem, como poderá estar interpretando corretamente ou de modo errado o sistema jurídico; mas não comete infração alguma a uma suposta norma jurisprudencial nem estará sua decisão sujeita a ação rescisória por esse fundamento (CPC, art. 485, inc. V: rescindibilidade por violação à letra da lei e, não, da jurisprudência).É de duvidar da legitimidade do costume de dispensar a manifestação da parte contrária nos embargos de declaração - na pressuposição, nem sempre verdadeira, de que dito recurso não tenha o poder de conduzir à alteração da essência do julgamento, senão de sua mera expressão. Há casos em que o recebimento desses embargos altera significativamente o julgado, como se dá quando nessa sede o juízo ou tribunal acolhe um fundamento antes omitido (p.ex., uma preliminar desconsiderada). Além disso, não é de todo excluída a chamada eficácia infringente dos embargos declaratórios, nos quais se acentua a possibilidade de reverter o teor do julgamento (p.ex., não-conhecimento de recurso por erro na contagem do prazo). A oferta de oportunidade de responder aos recursos é inerente às garantias constitucionais do contraditório e do due process of law (Const., art. 5s, incs. LIV e LV).

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As polêmicas súmulas vinculantes, que se cogita de implantar no sistema brasileiro, constituiriam também fontes de direito precisamente porque, segundo a disciplina proposta, elas se imporiam como critérios de julgamento a serem observados pelos juizes.É todavia lícita a formação de certas linhas de condução do processo, caracterizadoras de verdadeiras praxes forenses capazes de produzir efeitos jurídicos - com a ressalva de que jamais poderão suprimir ou alterar faculdades, poderes ou ônus das partes no processo nem, de modo algum, transgredir o que dispõem as fontes formais escritas. Tais são os usos-e-costumes judiciários, integrados à ordem jurídica como técnica de heterointegração da lei (LICC, art. 4Q). Fazem parte desse chamado estilo do foro os termos de juntada, conclusão, data, vista, baixa, carga e outros atos de mera movimentação do processo. Também é do foro o uso consistente em indicar somente o nome do primeiro litisconsorte, seguido das palavras e outros (em vez de nomear todos os litisconsortes); isso se faz geralmente no curso do processo e não na petição inicial. Outro exemplo é o automatismo em atos de rotina (dispensa de despachos em relação a atos meramente ordinatórios, como ajuntada de petições ou documentos e a vista obrigatória às partes), que alguns juízes já vinham praticando em alguma medida, antes mesmo que assim dispusesse a lei (CPC, art. 162, § 4Q, red. lei n. 8.952, de 13.12.94 - uma das leis da Reforma do Código de Processo Civil).

30. conhecimento da lei processual

Respeitadas suas dimensões espaciais e temporais, a lei processual impõe-se a todos independentemente do efetivo conhecimento. Como expressão positivada do poder estatal, nenhuma lei pode ter sua eficácia e imperatividade sujeitas aos azares do conhecimento pelos destinatários e incertezas decorrentes de alegações de desconhecimento. Tal é a (mal) chamada presunção de conhecimento da lei, que se resolve numa expressa disposição legal de superdireito contida no art. 34 da Lei de Introdução ao Código Civil.Essa regra sofre as exceções que forem ditadas na própria lei processual - a qual, ocupando o mesmo grau hierárquico das normas da Lei de Introdução, pode legitimamente ditá-las. Caso típico é a exigência de advertir o réu, quando citado, do prazo que tem para oferecer resposta e do efeito da revelia a que estará sujeito se não responder (CPC, art. 285). Não se presume, portanto, o conhecimento do disposto nos arts. 297 e 319 do Código de Processo Civil, sendo ineficaz a citação feita sem essa advertência e não se aplicando, nesse caso, o efeito da revelia. Não-obstante o silêncio da lei (art. 1.102-b), também não flui prazo para o réu oferecer embargos ao mandado, em processo monitório, quando não advertido previamente das conseqüências da omissão.

31. interpretação e integração da lei processual civil

Os textos legais, como fontes do direito, são portadores da norma, mas não são a norma. As normas vivem no plano ideal do direito e integram um sistema harmônico do qual a lei constitui apenas uma forma de expressão. À corriqueira assertiva de que a lei não equivale ao direito nem o direito se exaure nela, acrescente-se que tampouco cada lei ou cada disposição legal seja em si mesma uma norma. Como toda lei se destina a atribuir bens e determinar condutas humanas para a prevalência de algum valor eleito pelo ente que a produz, só se pode chegar ao conhecimento da norma que ela contém mediante a consciência do valor que lhe está à base. Não há leis axiologicamente anódinas, ou seja, leis que não se vinculem a algum valor a preservar ou cultuar (teoria tridimensional do direito, Miguel Reale).Daí a necessidade de interpretar a lei, em busca do conhecimento da norma que ela contém. O trabalho do intérprete, portanto, estabelece uma conexão entre o passado e o futuro (Tullio Ascarelli), no sentido de que consiste em buscar nos textos já existentes os preceitos que hão de prevalecer no exame de casos regidos por eles. A regra de ouro em toda interpretação jurídica consiste na atenção ao bem-comum, ou seja, às projeções da lei sobre a vida das pessoas, dos grupos e da própria sociedade, com a responsabilidade de causar-lhes sensações felizes segundo critérios de justiça (os fins sociais da lei, art. 52 LICC).

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Assim, p.ex., quando a lei processual manda o juiz conceder a antecipação de tutela para evitar males irreparáveis ou de difícil reparação e em face de uma prova inequívoca (CPC, art. 273), essa locução é interpretada como exigência de prova suficiente a revelar razoável probabilidade dos fatos alegados. Não se pensa em exigir prova irrefutável, pois isso conduziria os juizes a negar o beneficio que aquela norma processual pretende propiciar.Variam os métodos de interpretação, que vão desde a mera análise das palavras (exegese) até à interpretação teleológica, na qual se levam em conta os objetivos queridos pelo direito como um todo, passando pelo método sistemático e pelo histórico-axiológico. É comodista e deve ser repudiada a máxima in claris cessat interpretatio, porque o mais claro dos textos legais sempre comporta exame à luz dos valores da sociedade e nem sempre as palavras revelam com segurança uma intenção: "sin interpretación no hai posibilidad de que exista ningún orden jurídico " (Luís Recaséns Siches). Além disso, a interpretação isolada de um texto legal oferece o risco de distorções, porque toda lei é parte de um contexto normativo e seu significado e dimensão consideram-se o resultado da interação entre todos os elementos da ordem jurídica positivada: daí a importância da interpretação sistemática, na qual avulta a relevância dos ditames superiormente ditados na Constituição Federal (a tutela constitucional do processo: infra, nn. 76 ss.). Como nenhuma ordem jurídica vive isolada no mundo, sendo cada vez mais intensas as interligações culturais e econômicas entre os povos, é grande a utilidade do método comparativo, consistente em buscar em outras ordens jurídicas critérios para o bom entendimento da ordem jurídica nacional (supra, n. 14).Assim, p.ex., quando a Constituição Federal assegura o controle jurisdicional de possíveis lesões ou ameaças a direito (art. 54, inc. XXXV), é preciso ter como incluída nesse dispositivo a tutela jurisdicional a direitos e também a meros interesses juridicamente protegidos. A doutrina européia continental costuma excluir tais situações jurídicas da tutela jurisdicional mediante o processo civil, em sistemas onde existe o contencioso administrativo, que no Brasil não existe. A pura e simples leitura daquele dispositivo constitucional brasileiro (interpretação exegética) conduziria a deixar desprovida de qualquer tutela aquela categoria de situações jurídicas (p.ex., o proprietário de um imóvel não teria como impedir que o vizinho construísse em transgressão a normas edilícias municipais, a dano de seu concreto interesse pela observância destas) (infra, n. 79: inafastabilidade do controle jurisdicional).A interpretação sistemática e teleológica tem levado também os tribunais e a doutrina a reduzir a dimensão do disposto no art. 806 do Código de Processo Civil, pelo qual toda medida cautelar preparatória perderia eficácia quando não proposta a demanda principal no prazo de trinta dias contados da efetivação (v. também art. 808, inc. 1): entende-se que essa sanção só se aplica quando a medida cautelar efetivada tiver eficácia constritiva. Não há por que, p.ex., limitar a trinta dias a eficácia de uma interpelação, notificação ou mesmo produção antecipada de prova (medidas cautelares como tais definidas em lei), porque sua permanência não atinge a esfera de direitos de quem quer que seja.Essa diversidade de métodos interpretativos apóia-se em variados critérios, que didaticamente assim se equacionam: a) método exegético, ou gramatical, consistente no exame das palavras e orações contidas no texto; b) método sistemático, consistente na busca do significado do texto no conjunto das disposições correlatas, contidas na ordem jurídico-positiva como um todo; c) método histórico, consistente no confronto do texto com outros que o antecederam na ordem jurídica e com seus precedentes na tramitação do processo legislativo; d) método axiológico, de profundo significado cultural, consistente na identificação dos valores a serem preservados pela norma (os princípios gerais do direito, os fins sociais da lei, o bem-comum: art. 5-°); e) método comparativo, consistente no confronto com ordenamentos jurídicos estrangeiros.Caso típico de interpretação histórica da lei processual: em sua redação original, o art. 38 do Código de Processo Civil estabelecia que a procuração geral para o foro, estando com afirma reconhecida, habilita o advogado a representar o constituinte em todos os atos do processo. Mas a Reforma, ao excluir aquela referência ao reconhecimento de firma, deixou claro que agora ele não é exigível nem constitui elemento essencial da outorga de poderes para realizar atos processuais. Não teria significado algum aquela exclusão de palavras, não fora para excluir a exigência. Exemplo de interpretação sistemática: embora a lei exija que o autor indique como

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causa de pedir os fatos e os fundamentos jurídicos do pedido (CPC, art. 282, inc. 1II), sendo a demanda julgada nos estritos ternos em que proposta (art. 128), é pacífico no Brasil que o juiz pode fundamentar a sentença em razões jurídicas diferentes das invocadas pelo autor (desde que rigorosamente adstrito aos fatos alegados). Tal interpretação decorre em primeiro lugar da rigidez do procedimento brasileiro, que não permite audiências sucessivas para a investigação de fatos novos; é também efeito da convivência daqueles dispositivos do Código de Processo Civil com o art. 383 do Código de Processo Penal, que expressamente autoriza o juiz a tomar fundamentos jurídicos diferentes dos que constam da denúncia.Fala-se também em interpretação declarativa, que conduz a dar ao texto a exata dimensão decorrente de suas palavras; em interpretação restritiva, pela qual se reduz o âmbito de sua incidência (lex majus dixit quam voluit); e em interpretação ampliativa, tendente a incluir na norma situações não descritas de modo explícito pelo texto (lex minus dixit quam voluit).A integração da norma processual consiste em suprir lacunas da lei mediante o recurso aos princípios gerais de direito, aos usos-e-costumes (que são fonte da lei) e à analogia. Por força desta, estendem-se as disposições de um texto a situações não previstas mas às quais se possa razoavelmente afirmar que o legislador atribuiria as mesmas conseqüências jurídicas se as houvesse previsto (ubi eadem ratio ibi eadem juris dispositio: LICC, art. 42).Particularmente intensa é a analogia entre a tutela cautelar e a antecipada, ambas integrando a categoria das medidas de urgência. A disciplina da tutela antecipada, trazida de modo explícito pela Reforma, limita-se ao que está no art. 273 e seus parágrafos - mas por analogia devem estender-se a ela os preceitos gerais contidos no Livro III do Código de Processo Civil, sobre a tutela cautelar (admissibilidade de concessão em caráter preparatório ou liminarmente e inaudita altera parte, responsabilidade civil objetiva nos casos indicados no art. 811 etc.).

32. as dimensões da lei processual civil: normas de superdireito

Chama-se superdireito o conjunto de normas e princípios que têm por objeto outras leis. Disciplina as fontes jurídicas, critérios de interpretação, as dimensões espaciais e temporais das outras leis - enfim, a vida destas. Dentre as normas de superdireito ocupam espaço muito relevante aquelas referentes à produção jurídica, responsáveis pela disciplina das dimensões espaciais e temporais da lei. Elas não atribuem bens da vida nem contêm preceitos para a conduta das pessoas. Na ordem jurídica brasileira, constitui sede natural e ordinária das normas de produção jurídica a Lei de Introdução ao Código Civil, que, não-obstante ser lei ordinária e portanto situada no mesmo nível hierárquico das normas cuja vigência e eficácia ela visa a disciplinar, conta com sólidos respaldos constitucionais e políticos que lhe garantem a efetividade.Em si mesma, a Lei de Introdução não impediria, p.ex., que uma lei processual trouxesse a determinação de aplicar-se por inteiro a um processo pendente, anulados os atos já realizados. Urna disposição assim, contudo, seria ineficaz em face da garantia constitucional da irretroatividade das leis (Const., art. 5-°, inc. XXXVI).Ao lado das normas de produção jurídica existem, sempre no âmbito do superdireito, as de atuação jurídica - pertencendo a essa categoria as de direito processual (supra, n. 17).

33. dimensão espacial da lei processual civil. Territorialidade

Destinando-se basicamente à disciplina de uma função estatal, que é a jurisdição, é natural que alei processual se imponha exclusivamente no território do Estado que a edita. É inerente à soberania de cada Estado, no contexto internacional, a regência de suas próprias atividades por lei nacional e nunca por lei estrangeira. Essa é a superior razão de ordem política que afasta a submissão do juiz de um Estado soberano à lei processual ditada por outro Estado. Como agente estatal, o juiz atua segundo as leis processuais emanadas de fontes materiais e formais de seu país, nada mais.A expressão positivada do princípio da territorialidade das normas processuais reside basicamente no art. 14 do Código de Processo Civil. O exercício da jurisdição civil rege-se, no

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território nacional, pelo que o próprio Código estabelece e, obviamente, também pelo que emana de outras fontes formais nacionais de direito processual civil. Na realidade, essa disposição legal não contém em si mesma qualquer proibição de que a lei processual brasileira vá além dos limites territoriais do país e seja observada por juízes de outro Estado soberano. Esse impedimento vem das leis dos outros países, que também repelem a aplicação de lei processual que não seja a sua. Como lei nacional, o Código de Processo Civil veda que o juiz brasileiro se paute por lei processual de outro país: correlatamente, as leis de outros países proíbem que seus próprios juízes sigam leis processais estrangeiras - inclusive a brasileira, como é óbvio.Prevalece a lei processual brasileira para a realização de atos processuais no Brasil, ainda que estrangeiras as partes e mesmo que se trate de julgar sobre fatos ocorridos no exterior ou mediante a imposição de normas estrangeiras de direito material (CPC, art. 337). Fatos ocorridos no exterior podem ser objeto de julgamento pelo juiz civil brasileiro, sempre que dotado de competência intenracional; no sistema brasileiro, a nacionalidade das partes é irrelevante para a determinação dessa competência (CPC, arts. 88-89 - infra, n. 137). Por outro lado, a territorialidade de que aqui se cuida é somente da lei processual, sendo admissivel a regência da própria causa (mérito) por leis de outro país.Inverso é o problema dos atos processuais realizados no exterior, com reflexos no Brasil. O mesmo princípio da territorialidade da lei processual, que impede a imposição desta alémfronteiras, conduz ao reconhecimento da validade desses atos quando obedientes à lei do país em que foram realizados e compatíveis com a ordem pública brasileira. Se faltar um desses requisitos, não se homologa a sentença estrangeira (LICC, art. 17) nem se têm por válidos os atos realizados no curso de uma cooperação internacional (cumprimento de carta rogatória para a citação do demandado ou para a produção de prova etc. ).De particular interesse reveste-se a disposição do art. 13 da Lei de Introdução ao Código Civil, o qual, ditando preceitos de direito processual internacional sobre a prova, só será corretamente compreendido e aplicado se se tiverem precisas noções sobre a colocação sistemática dessa preciosíssima categoria jurídica. Quando se tomasse por premissa que a prova é instituto de direito processual tout court, sem a consciência de sua inclusão entre as categorias integrantes do direito processual material (supra, n. 6), o art. 13 pareceria ser portador de ilegítimas exceções à territorialidade da lei processual, ao dispor que "aprova dos fatos ocorridos no estrangeiro rege-se pela lei que nele vigorar, quanto ao ônus e aos meios de produzir-se". Estaria, por outras palavras, mandando que em parte o juiz nacional atuasse segundo normas processuais de outro país, o que não seria politicamente aceitável.É indispensável, portanto, interpretar o art. 13 da Lei de Introdução ao Código Civil sabendo que a prova é um daqueles institutos bifrontes que, por se constituírem em realidades exteriores e precedentes ao processo e se relacionarem muito de perto com o próprio direito à tutela jurisdicional, situam-se nas faixas de estrangulamento que são significativo ponto de encontro entre o direito processual e o substancial (supra, n. 6). Pela sua parcial conotação jurídico-substancial, o direito à prova está imune às rígidas restrições territoriais inerentes ao direito processual.Mesmo assim - e sendo interpretada à luz dessa indispensável premissa sistemática - a disposição contida no art. 13 da Lei de Introdução ao Código Civil tem dimensão menor do que parece (lex majus dixit quam voluit). É preciso distinguir entre (a) julgamentos proferidos no exterior e trazidos ao Brasil para homologação (Const., art. 102, inc. I, letra h, 1 á parte), (b) prova a ser realizada no Brasil e (c) prova a ser valorada pelo juiz brasileiro (quer produzida aqui ou alhures).Quando se trata de homologar sentença estrangeira, é plena a aplicação daquele dispositivo da Lei de Introdução: a ordem jurídica brasileira aceita os julgamentos feitos com base em meios de prova existentes e a partir das regras sobre ônus probatório vigentes no país em que os fatos se deram (naturalmente, desde que presentes os demais requisitos para a homologação: arts. 15 e 17 LICC).Quando no Brasil há de ser produzido algum meio de prova a ser valorado por juiz estrangeiro (juiz brasileiro cumprindo carta rogatória), a parte final do art. 13 exclui a regência pela lei

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estrangeira, pela óbvia razão de que, se inexistir aqui o procedimento probatório vigente no país de ocorrência do fato, o juiz brasileiro não tem como proceder.O juiz brasileiro não tem como, p.ex., colher o juramento a ser feito por uma das partes, que a lei processual italiana expressamente inclui no capítulo sobre a instrução probatória (c.p.c., arts. 233-240).Fosse a prova uma categoria de puro direito processual formal - e não de direito processual material, como é - mais preocupantes seriam as restrições interpretativas ao art. 13 da Lei de Introdução ao Código Civil, em sua disposição relativa ao ônus da prova. Seria uma truculência institucional mandar que o juiz brasileiro julgasse segundo normas processuais estrangeiras. O que legitima essa disposição é o coeficiente jurídico-substancial das normas sobre o ônus da prova. Como categoria bifronte que e, o ônus probatório já se define e pode ser conhecido antes mesmo da realização de qualquer processo - ele pode mesmo ser conhecido pelos sujeitos quando fora do Brasil negociam ou praticam um ato ilícito etc. Depois, se sobre o negócio celebrado ou o ato praticado esses sujeitos vierem a ser partes em processo realizado no Brasil, os fatos a serem considerados pelo juiz brasileiro já são postos diante deste em toda sua integralidade, inclusive com a regência do ônus de sua prova. Quer a produção da prova desses fatos seja feita diretamente no Brasil, quer no exterior (carta rogatória), no momento de julgar o juiz brasileiro levará em conta o que acerca do ônus de sua prova dispuser o direito do país de origem (art. 13 LICC).Embora praticamente uniforme a disciplina geral da distribuição do ônus da prova entre os ordenamentos ocidentais (a cada qual compete a prova dos fatos de seu interesse, sendo havidos por inexistentes os fatos não provados: art. 333 CPC), alguns tópicos específicos da legislação brasileira moderna podem gerar dissonância em relação à lei do país de ocorrência - e é nesses casos que o art. 13 da Lei de Introdução ao Código Civil mostrar-se-á praticamente relevante. Por exemplo, quanto aos fatos ocorridos em outro país o juiz brasileiro só poderá dar por boa a inversão convencional do ônus da prova (CPC, art. 333, par.) se também no país de origem ela for admitida; só poderá inverter ele próprio o ônus da prova em matéria de consumo se lá isso for admissível (CDC, art. 64, inc. VIII). Certas prcesumptiones legis relativas, que invertem o ônus da prova (CC, arts. 545, 943, 490, par. etc), não poderão ser impostas pelo juiz brasileiro se não constarem do direito positivo do país de ocorrência do fato.Também a uma interpretação sistemática deve ser submetida a parte final do art. 13 da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo a qual os juízes e tribunais nacionais não admitirão provas que a lei brasileira desconheça. O art. 332 do Código de Processo Civil, que lhe é posterior, dita o caráter meramente exemplificativo da enumeração dos meios de prova existentes no Brasil, donde resulta que se rejeitarão somente as provas obtidas por meios ilegítimos (meios de prova não especificados na lei brasileira prevalecerão, desde que moralmente legítimos e factíveis na prática). Quer se trate de valorar meios de prova produzidos no exterior (cooperação judiciária, rogatórias), quer pretenda a parte produzir aqui algum meio de prova existente no estrangeiro e não tipificado na lei brasileira, será sempre impositiva a regra do art. 332 do Código de Processo Civil: admissão de meios não tipificados na lei brasileira, mas rejeição de provas obtidas por meios que a ordem pública brasileira repute ilegítimos. Quanto ao modo de realização da prova no exterior, prevalece a lei local - porque esse é um tema de puro direito processual formal, não de direto processual material.A ordem procedimental estrangeira prevalece quanto aos atos processuais realizados fora do Brasil (lex fori). A validade desses atos deve ser reconhecida pelo juiz brasileiro, uma vez obedecida a lei do país em que hajam sido realizados e não transgredidos os valores inerentes à ordem pública brasileira. Sempre que se trate de atividades regidas por regras de puro direito processual, a territorialidade impõe-se em sua plenitude.A rígida territorialidade da lei processual não conflita com a possível extraterritorial idade da lei substancial, a qual em alguns casos rege relações vigentes ou constituídas em outros países e, no caso de litígio judicial, pode servir de critério de julgamento (o decisorium litis, do direito comum medieval). A aplicabilidade da lei substancial estrangeira é questão de direito internacional privado, regida pela Lei de Introdução ao Código Civil (arts.' 74 a 11), sendo expressamente admitida pelo Código de Processo Civil (art. 337).

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34. dimensão temporal da lei processual civil. vigência e eficácia

A lei processual civil passa a existir como tal, tornando-se portanto vigente, no momento que ela própria indicar (p.ex., no dia da publicação ou tantos dias após esta) ou, à falta dessa indicação, quarenta-e-cinco dias após publicada na imprensa oficial (LICC, art. 1Q). Até que chegue o dia assim estabelecido, a lei promulgada e publicada não produz efeito algum, seja quanto a fatos pretéritos, seja em relação aos que nesse período ocorrerem. Ela é, até então, uma lei vacante e não vigente. Finda a eventual vacatio legis (ou não existindo esta: casos de vigência à data da publicação), aplicam-se os preceitos nela contidos (sanctiones juris) aos fatos que sob seu império ocorrerem e que nela estejam previstos de modo geral e abstrato (hipóteses legais; fattispecie). Isso é vigência. Ela permanece vigente até que lhe sobrevenha outra que a revogue por um dos modos hábeis (LICC, art. 24, § 1º).Como toda lei, em principio a processual terá efeito imediato (art. 6º), o que significa que será eficaz a partir de quando vigente. Mesmo já vigente, porém, ela deixa de impor seus preceitos a certas situações já consumadas sob o império da lei anterior e que, por razões políticas inerentes ao devido processo legal substancial, o Estado-de-direito opta por preservar. Restringe-se a eficácia da lei processual, por isso, para deixar intactos o ato jurídico perfeito, os direitos adquiridos e a coisa julgada (Const., art. 54, inc. XXVI; LICC, art. 6º).O direito processual intertemporal tem por objeto, como se vê, a determinação dos momentos de início e fim da vigência da lei processual e também a regência da eficácia da lei velha ou da nova em relação aos processos pendentes e aos já extintos no momento de vigência desta. As normas de direito processual intertemporal têm sua sede na Lei de Introdução ao Código Civil e são normas de superdireito, ou de direito sobre direito (elas são, especificamente, normas de produção jurídica).

35. início e fim da vigência da lei processual civil

Na maioria dos casos, o início da vigência das normas de direito processual civil tem sido definido pela própria lei, geralmente mediante o estabelecimento de uma vacatio prudentemente estabelecida para que haja suficiente divulgação da lei nova. É o que sucedeu, p.ex., com o Código de Processo Civil, que foi publicado em janeiro de 1973 (lei n. 5.869, de 11. 1.73) e ficou vacante até 14 de janeiro de 1974 por disposição de seu próprio art. 1.220. As leis integrantes da Reforma do Código de Processo Civil, promulgadas e publicadas principalmente nos anos de 1994 e 1995, trouxeram suas próprias disposições sobre início de vigência - fixando quase sempre o prazo de sessenta dias a partir da publicação. Mas as medidas provisórias que o Poder Executivo federal vem editando casuisticamente em matéria processual entram em vigor no dia da publicação (Const., arts. 62 e 84, inc. XXVI).Como sucede com as leis em geral, o fim da vigência da lei processual civil ocorre com a sua revogação, a qual decorrerá (a) de expressa disposição revocatória contida na lei nova, (b) da vigência de norma incompatível, ou (c) da regência integral da matéria pela lei nova (LICC, art. 2s, § 14). É usual o emprego da fórmula revogam-se as disposições em contrário, que remete o intérprete ao exame da incompatibilidade entre a lei velha e a nova. A revogação por incompatibilidade pode acontecer pela superveniência de lei do mesmo grau hierárquico, portadora de disposição diferente da contida na lei velha, ou pela não-recepção desta em Constituição posterior a ela.O atual Código de Processo Civil declarou revogadas as disposições em contrário (art. 1.220) mas ressalvou a vigência de uma série de capítulos do Código de 1939 (art. 1.218: supra, n. 25). Ressalvou também as normas recursais deste, em sua aplicação a certas leis especiais (art. 1.217). Isso significa que, descontadas as ressalvas, o velho Código ficou revogado. Exemplo de revogação por incompatibilidade: a exigência constitucional de motivação de todas as decisões judiciárias (Const., art. 93, inc. IX) revogou a permissão de decisão em forma concisa, trazida no art. 459 do Código de Processo Civil (revogação por incompatibilidade constitucional). Exemplo de revogação por regência integral da matéria: o capítulo das provas, do Código de Processo

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Civil de 1939, revogou as normas sobre prova contidas no Código Civil (arts. 131, 135, 136, 137, 138, 142, 143, 144).' Corre-se atualmente o risco de ficar revogada uma parte significativa do capítulo do Código de Processo Civil sobre as provas - o que acontecerá se o projeto de Código Civil vier a ser aprovado com a redação atual (arts. 212-232

NOTA:

7. Não são atingidos os dispositivos do Código Civil referentes à chamada prova ad substantiam, que dizem respeito à forma solene de certos atos jurídico-materiais e nada têm de processuais (infra, n. 781).

36. eficácia da lei processual civil no tempo

Quanto à eficácia da lei processual em relação aos processos pendentes, aplica-se a regra tempus regit actum, segundo a qual fatos ocorridos e situações já consumadas no passado não se regem pela lei nova que entra em vigor, mas continuam valorados segundo a lei do seu tempo. As leis dispõem para o futuro e não para o passado. As previsões gerais e abstratas que contêm são realmente pré-visões e constituem tipificações de fatos e condutas possíveis de ocorrer no futuro e a serem regidos pelos preceitos nelas estabelecidos. Tal é, ao mesmo tempo, o fundamento e o significado da regra da aplicação imediata da lei processual, que não importa retroatividade e traz em si a preservação das situações jurídicas consumadas sob o império da lei revogada.Tais situações jurídicas consumadas são referidas na Lei de Introdução ao Código Civil (art. 64) e na Constituição Federal (art. 54, inc. XXXVI). Falam esses textos na preservação da coisa julgada, do ato jurídico perfeito e do direito adquirido, num trinômio de situações que, examinadas em pormenor e sem visão teleológica ou de conjunto, poderiam conduzir a superposições que dificultam o entendimento (de um ato jurídico perfeito muitas vezes emana um direito adquirido e quase sempre a coisa julgada refere-se ao direito preexistente). A síntese racional dessa tríplice garantia constitucional é o culto à segurança das relações jurídicas, a qual em si mesma constitui um bem constitucionalmente assegurado (José Afonso da Silva). Chega-se à visão sistemática de conjunto mediante a consciência de que o que importa é preservar os "efeitos já produzidos pelos fatos que a lei se destina a regular" (fórmula empregada no projeto de Código Civil pendente no Congresso Nacional). Nem à lei de direito privado, nem à de direito público substancial, nem à do processo é lícito transgredir situações já consumadas, a dano do titular.É generalizada na doutrina a exacerbação da regra de aplicação imediata da lei processual, como se no processo inexistissem ou fossem menos dignas de preservação as situações jurídicas consumadas que a Constituição e a lei querem preservar. Essas situações existem e o que há de peculiar em matéria processual consiste exclusivamente na identificação de casos onde elas ocorrem. Superadas as dificuldades para essa identificação, aplicam-se as restrições constitucionais e legais sempre que a lei processual nova encontre diante de si uma dessas situações - ou seja, a coisa julgada, o ato jurídico perfeito ou o direito adquirido.Essas regras de superdireito consistem em repelir a retroatividade da lei, que seria a imposição do seu império a fatos pretéritos ou a situações consumadas antes da vigência; elas chegam a repelir também a sua aplicação imediata, consistente em impô-la a fatos e situações pendentes quando entra em vigor - sempre que essa imposição seja incompatível com a preservação de alguma daquelas situações já consumadas. É clássica a distinção entre retroatividade da lei e sua aplicação imediata (Roubier).Já se sugeriu em doutrina, também, a distinção entre retroatividade legítima e ilegítima. É legítima, p.ex., a retroatividade da nova disposição que dispensou o reconhecimento de firma em procurações ad judicia (CPC, art. 38) ou da que suprimiu a audiência de conciliação e o juízo liminar de admissibilidade na ação de usucapião (novo art. 942, trazido pela Reforma). Essa retroatividade é legítima porque não fere qualquer posição jurídica conquistada por alguma das partes sob o império da lei anterior.

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37. regras de direito processual civil intertemporal

Na projeção dessas regras gerais de direito intertemporal sobre a vida dos processos, tem-se por certo que: a) a lei processual nova não se aplica aos processos já findos quando ela entrou em vigor, cujos atos se regeram pela lei anterior e cujas decisões têm a eficácia já conseguida antes da passagem da lei velha para a nova - rigorosa aplicação da máxima tempus regit actum; b) a lei processual nova aplica-se inteiramente aos processos instaurados na sua vigência, visto que as previsões contidas na velha já não existem e, obviamente, as conseqüências jurídicas dos atos futuros não são as que ela ditara no passado.Muito delicadas são situações relacionadas com os institutos pertinentes ao direito processual material (supra, n. 6). Se uma lei eliminar a legitimidade para propor determinada demanda ou alterar regras sobre o ônus da prova ou suprimir ou reduzir a possibilidade do emprego de uma fonte de prova (infra, n. 782), ou excluir a responsabilidade de algum bem pelas obrigações do. dono, sua imposição aos casos onde já houvesse um ato jurídico perfeito ou direito adquirido atentaria contra a estabilidade destes. Mas a jurisprudência vem afirmando a aplicação imediata da lei que instituiu o chamado bem de família (lei n. 8.009, de 29.3.90), ficando a casa residencial a salvo da expropriação executiva ainda em relação a obrigações anteriores a sua vigência.As maiores dificuldades, com relação ao direito processual civil temporal, são as que dizem respeito aos processos pendentes no momento de vigência da lei nova.Essas dificuldades ligam-se à natureza dinâmica e evolutiva do procedimento e da relação processual. Embora o processo seja um só e sempre o mesmo do início ao fim, o procedimento em que se exterioriza é composto de inúmeros atos e variadas fases que se sucedem no tempo (infra, nn. 629 e 632). Com a realização de atos e ocorrência de fatos ao longo do procedimento que vai da propositura da demanda inicial até à sentença que põe fim a ele, novas situações jurídicas vão se criando e outras se extingüindo. Essas situações caracterizam-se como direitos processuais adquiridos, tomada essa locução no amplíssimo sentido tradicional de situações jurídicas consumadas.Pensar, p.ex., no réu que não ofereceu resposta no prazo de quinze dias estabelecido pela lei vigente ao tempo (CPC, art. 297) - consumou-se a sua revelia e aplicou-se a regra de presunção de veracidade das alegações de fato contidas na demanda inicial (art. 319). Pensar também numa sentença publicada sob o regime da lei que admite recurso contra ela (art. 513) - criou-se para o vencido a faculdade de recorrer (art. 499). É dessas situações consumadas ao longo do processo que se está falando. Cada uma delas surge num momento, embora no mesmo processo, e cada uma é tratada, no plano da eficácia temporal da lei, como situação autônoma.Assentadas essas premissas, repudiam-se certos critérios radicais e que consistiriam (a) em aplicar por completo a lei nova aos processos já pendentes no momento de sua vigência, (b) em imunizar por completo esses processos à eficácia da lei nova, para que prosseguissem até ao fim sob o regime da velha, ou (c) respeitar as fases procedimentais já superadas ou em curso (postulatória, ordinatória, instrutória, decisória), impondo a lei nova apenas quanto às fases subseqüentes. Prevalece a quarta solução possível, consistente (d) no isolamento dos atos e situações processuais, pelo qual a lei nova, encontrando um processo em curso, respeita a eficácia dos atos processuais já realizados e portanto as situações jurídicas já estabelecidas, disciplinando os atos de todos os sujeitos processuais e as situações das partes somente a partir de sua vigência (Amaral Santos).Por esse critério, que é de aceitação geral na doutrina moderna, não se aplica a lei nova aos atos já realizados nem a situações já consumadas a cada passo do procedimento. Regem-se por ela, todavia, os fatos ainda a praticar, mesmo na mesma fase procedimental pendente quando da passagem da lei velha para a nova. Assim, tornando aos exemplos acima, (a) se o réu tiver ficado revel e no décimo-sexto dia a partir da citação sobrevier lei aumentando o prazo para responder (art. 297), isso não o isenta do efeito da revelia (art. 319), que será uma situação jurídica já consumada sob o império da lei velha; b) se à publicação da sentença sobrevier lei suprimindo o recurso cabível contra ela, continua o vencido com o direito de recorrer (arts. 499 e

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513), muito embora o modo de recorrer possa ser legitimamente regido por lei nova (requisitos da petição e das razões, modo e momento de fazer o preparo etc.).

38. conta: preservação da garantia de tutela jurisdicional (remissão ao direito processual material)

O exagero que às vezes conduz a radicalizar a aplicação imediata da lei processual civil (supra, n. 36) é, ao menos em parte, reflexo de uma outra postura igualmente exacerbada e consistente na obsessão em extrair todas as conseqüências imagináveis do correto postulado da autonomia da relação processual, da ação e do próprio direito processual como um todo. Não é lícito pôr em dúvida essa autonomia em face do direito substancial e de seus institutos, neste estágio avançadíssimo da cultura processualística - mas a moderna ciência processual tem também a consciência da relativização do binômio direito processo e da relação de instrumentalidade do processo em face do direito substancial, responsáveis pela aproximação desses dois planos do ordenamento jurídico e pela consciência das recíprocas influências trocadas entre eles. Os institutos bifrontes, que se situam nas faixas de estrangulamento existentes entre os dois planos do ordenamento jurídico e compõem o direito processual material (supra, n. 6), comportam um tratamento diferenciado em relação à disciplina intertemporal dos fenômenos de conotação puramente processual-formal (ou mesmo procedimental) (supra, n. 18).Essa premissa metodológica deve conduzir ao repúdio de critérios que, com fundamento no dogma da autonomia do direito processual e seus institutos em relação à ordem jurídico-substancial, deixem de levar em conta a existência de categorias jurídicas que não pertencem exclusivamente àquele mas compartilham de uma natureza dúplice - e tais são a ação, a competência, a prova, a coisa julgada e a responsabilidade patrimonial (supra, n. 6). A aplicação de lei nova que elimine ou restrinja insuportavelmente a efetividade de situações criadas por essas normas bifrontes transgrediria as garantias de preservação contidas na Constituição e na lei, porque seria capaz de comprometer fatalmente o direito de acesso à justiça em casos concretos - e, conseqüentemente, de cancelar direitos propriamente substanciais dos litigantes. Seria ilegítimo transgredir situações pré-processuais ou mesmo extraprocessuais como essas aqui consideradas, as quais configuram verdadeiros direitos adquiridos e, como tais, estão imunizadas à eficácia da lei nova por força da garantia constitucional da irretroatividade das leis (Const., art. 54, inc. XXXVI). Atingir o próprio direito de ação, impor ao sujeito novas competências ou privá-lo dos meios antes postos à sua disposição para a obtenção da tutela jurisdicional (provas, bens), teria o efeito de suprimir direitos adquiridos. Nesses casos, a lei velha continua eficaz apesar de no momento de sua vigência coexistir processo algum pendente e ato processual algum a ser preservado. Preservam-se situações extraprocessuais intimamente ligadas à realidade jurídico-material e, portanto, ao direito de acesso à justiça.Por isso, não pode a lei nova retirar a proteção jurisdicional antes outorgada a determinada pretensão, excluindo ou comprometendo radicalmente a possibilidade do exame desta de modo a tornar impossível ou particularmente difícil a tutela antes prometida. É até tolerável a retirada de uma tutela específica, desde que outras vias suficientes subsistam, como no caso de a lei nova extinguir determinado título executivo extrajudicial antes do exercício da ação executiva: restando ao titular do eventual direito alguma outra via processual a percorrer (no caso, processo de conhecimento ou monitório), isso basta para legitimar a aplicação da lei nova. Inexiste direito adquirido, nessa óptica, a determinada espécie de tutela jurisdicional ou a determinada categoria de ação.Não se admite a aplicação imediata da lei processual nova, p.ex., caso ela venha a criar novas impossibilidades jurídicas (v.g., para impedir que qualquer dívida de jogo tivesse apreciação jurisdicional e não somente aquelas contidas na previsão do art. 1.477 do Código Civil); ou a instituir algum litisconsórcio necessário ativo antes inexistente (p.ex., exigindo a participação de todos os condôminos para os litígios referentes à propriedade: CC, art. 623, inc. II).No tocante à competência, as garantias constitucionais do juiz natural vedam expressamente a imposição de tribunais de exceção, criados depois de ocorrido o fato, bem como tornam

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irrelevantes as novas competências fixadas ulteriormente, sempre que isso reduza a possibilidade de ampla defesa (Const., art. 54, inc. XXXVII) (mas v. infra, n. 80-81).Também não se pode impor a lei nova que altere regras de distribuição do ônus da prova ou subtraia bens à responsabilidade patrimonial, excluindo sua penhorabilidade. A ampliação de algum prazo recursal depois de já passada em julgado a sentença de mérito não exclui a auctoritas rei judicatce já consumada em beneficio do credor; nem o aumento do prazo para propor ação rescisória pode significar o restabelecimento do direito de propô-la, se o prazo ditado pela lei velha já estiver extinto quando a nova entrar em vigor (v. MP. n. 1.632-7, de 12.12.97).A jurisprudência afirma de modo bastante radical a aplicação imediata da chamada Lei do Bem de Família (lei n. 8.009, de 29.3.90). Seguidos julgados vêm imunizando a casa residencial do devedor à responsabilidade patrimonial (CPC, art. 591) mesmo em relação aos débitos já constituídos quando da vigência dessa lei, inclusive já existindo processo pendente e mesmo que esse processo seja uma execução forçada e o bem já se encontrasse penhorado. Essa orientação transgride as garantias oferecidas pela Constituição e pela lei, ao desconsiderar situações legitimamente consolidadas, em que, inclusive, poderiam caracterizar-se fraudes do devedor se ele houvesse alienado ou gravado o bem (fraude a credores ou à execução, alienação do bem sob constrição judicial: arts. 106-113 CC, arts. 591 e 593 CPC etc.). Excluir o bem à responsabilidade patrimonial, nesses casos, na prática pode importar exclusão da própria tutela jurisdicional e, por isso, ter o significado de ultraje à garantia instituída no art. 54, inc. XXXV, da Constituição Federal (sempre que o devedor não disponha de outros bens suficientes para a satisfação do crédito).

Título II - O ACESSO À JUSTIÇA E A TUTELA JURISDICIONAL

Capítulo III - OS CONFLITOS E A ORDEM JURÍDICA JUSTA

39. tutela jurisdicional a pessoas ou grupos - ao autor ou ao réu - contra o processo civil do autor - 40. processo civil de resultados - 41. sistema de promessas e limitações - 42. a universalização da tutela jurisdicional e as ondas renovatórias - 43. acesso à justiça - 44. os conflitos (crises jurídicas) - 45. meios alternativos de acesso à justiça (justiça parajurisdicional) - 46. equivalência funcional - o valor social da conciliação, da mediação e da arbitragem

39. tutela jurisdicional a pessoas ou grupos - ao autor ou ao réu - contra o processo civil do autor

Tutela jurisdicional é o amparo que, por obra dos juízes, o Estado ministra a quem tem razão num litígio deduzido em processo. Ela consiste na melhoria da situação de uma pessoa, pessoas ou grupo de pessoas, em relação ao bem pretendido ou à situação imaterial desejada ou indesejada. Receber tutela jurisdicional significa obter sensações felizes e favoráveis, propiciadas pelo Estado mediante o exercício da jurisdição.A outorga da tutela jurisdicional não depende exclusivamente do implemento dos requisitos puramente processuais ditados pela lei para que o juiz possa pronunciar-se sobre a pretensão que lhe foi apresentada pelo demandante. Se o sujeito formular um pedido em tese admissível na ordem jurídica (p.ex., condenação a pagar indenização); se for necessário o ingresso em juízo sob pena de não obter o que pretende; se ele for a pessoa indicada pela lei para postular em juízo o direito que alega e se sua pretensão for deduzida em face da pessoa qualificada para suportar os efeitos pretendidos; se se valer do tipo adequado de processo, se realizar todos os atos processuais que a lei descreve e exige etc. - enfim, se estiverem reunidos todos os requisitos processuais exigíveis - ele terá o poder de exigir do juiz uma sentença a propósito da sua pretensão. Mas, não-obstante estejam presentes esses e todos os outros requisitos processuais imagináveis, a sentença será desfavorável ao autor sempre que em face dos fatos provados e perante o direito material ele não tiver o direito que alega (p.ex., se foi sua e não do réu a culpa pelo dano lamentado). Nesse caso, não receberá tutela alguma.

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Em linguagem processual diz-se que não basta ao autor ter o direito de ação e exercê-lo adequadamente. Ter ação assegura-lhe somente a obtenção da sentença, sem que necessariamente esta lhe seja favorável - ação é somente direito ao meio e não aos resultados do processo (Liebman). Para obter sentença favorável é preciso que, além da ação, ele tenha o direito alegado (v.g., que seja realmente credor, como alega) (infra, nn. 539-540).Num processo em que litigam dois sujeitos em posições antagõnicas, só um deles receberá a tutela jurisdicional. Poderá ser o autor, mas também poderá ser o réu, conforme a convicção do juiz e, conseqüentemente, conforme o teor da sentença que pronunciar. A dialética do processo de conhecimento, pondo ordinariamente em choque a tese do autor e a antítese do réu, conduz à síntese representada pela sentença; e o julgamento contido nesta será no sentido ditado pelo contexto dos fatos confirmados ou não pelas provas, pela qualificação desses fatos em determinada categoria jurídico-substancial (v.g., mútuo, depósito, responsabilidade contratual ou extracontratual etc.) e pela correta interpretação dos textos jurídicos.Os dois sujeitos receberão tutela parcial, em caso de procedência parcial da demanda: pedi cem e obtive sessenta, o que significa que fui tutelado nessa medida e o réu o foi em relação aos outros quarenta.Assim conceituada, a tutela jurisdicional não é necessariamente tutela de direitos, mas tutela a pessoas ou a grupos de pessoas. Com muita freqüência ela é legitimamente dispensada a quem não tem direito algum, (a) ou porque o autor não tem o direito que afirmou, sendo improcedente a sua demanda e portanto recebendo o réu a tutela jurisdicional, (b) ou porque ele viera ajuízo precisamente para pedir a declaração de que entre ele e o réu inexiste determinada relação jurídica material (p.ex., ação declaratória negativa de obrigação cambial). A parte vitoriosa receberá uma tutela nesses casos, mas a tutela que receberá não é tutela a direito, simplesmente porque ela consistirá na negativa da existência de direitos entre os litigantes. A declaração judicial de inexistência de direitos ou relações jurídicas entre as partes é dotada da mesma imperatividade de que é portadora a sentença condenatória, a constitutiva ou a declaratória positiva. A tutela jurisdicional ministrada nesses casos consiste em aliviar o vencedor da pretensão do adversário (seja ele o autor ou o réu) e impedir que volte a ser formulada em processos futuros. Proteger a esfera jurídica da pessoa contra as incertezas decorrentes de futuras demandas é também ministrar-lhe tutela jurisdicional, na medida do imenso valor que tem a certeza jurídica na vida das pessoas.No processo executivo, no qual em vez do julgamento de uma pretensão busca-se a satisfação da pretensão do exeqüente (sem qualquer julgamento sobre a existência ou inexistência do direito), só a este pode ser oferecida uma tutela jurisdicional assim estável. Jamais ao executado, dado o desfecho único do processo executivo: se pelos meios adequados ficar reconhecida a inexistência do crédito (ou seja, nos embargos opostos pelo executado), simplesmente nenhuma das partes receberá coisa alguma da parte adversária. Não é como no processo de conhecimento, em que a um dos litigantes será favorável a sentença, sendo desfavorável ao outro - ora favorável ao autor, ora ao réu.Em qualquer espécie de processo pode haver um desfecho em que o juiz, sem afirmar ou negar o direito alegado pelo autor, trunca as suas atividades em virtude de algum acontecimento anômalo ou porque desde o início faltasse algum requisito para que pudesse chegar ao fim (pressupostos de admissibilidade do julgamento do mérito: infra, nn. 830 ss.). É o caso, v.g., do abandono da causa pelo demandante (CPC, art. 267, inc. 111), ou do demandante que esteja em juízo em defesa de algum direito ou interesse alheio (CPC, art. 64: p.ex., pedido de sentença de divórcio feito por quem não é cônjuge da parte contrária). A extinção do processo em tais circunstâncias é uma tutela outorgada ao demandado, quer no processo de conhecimento ou de execução, mas tutela mais tênue e menos efetiva porque dotada de grau muito menor de imunidade. Expressamente a lei exclui a autoridade da coisa julgada sobre julgamentos assim (CPC, art. 468), o que significa que o réu não fica a salvo de nova demanda a ser proposta pelo adversário com o mesmo objetivo da primeira. Tal não é uma tutela jurisdicional plena, como aquela que definitivamente atribui o bem ao sujeito ou o imuniza a novas iniciativas do adversário.

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Resumidamente, a tutela jurisdicional é conferida ora ao autor e ora ao réu, não necessariamente àquele; ela é sempre conferida a pessoas e não a direitos, podendo ser dada a um dos litigantes precisamente para negar que existam direitos e obrigações entre ele e o adversário.Essa conceituação de tutela jurisdicional e definição de seus destinatários são de primordial importância na processualística moderna, sobretudo porque trazem em si a afirmação de que o processo civil não é algo que se faça necessariamente em beneficio do autor, mas sempre com vista à pacificação dos litigantes e dando tutela a quem tiver razão. A ciência moderna repudia a falsa idéia de um processo civil do autor.

40. processo civil de resultados

Falar da tutela jurisdicional nos termos assim propostos tem ainda o valor de realçar a distinção entre ela própria, que é algo praticamente significativo na vida das pessoas, e a mera garantia da ação: esta é outorgada pela Constituição e pela lei aos titulares de pretensões insatisfeitas, independentemente de terem ou não terem razão - desde que presentes os requisitos para que o juiz possa dispor a respeito. Ter ação é somente ter direito ao provimento jurisdicional, ainda que esse provimento seja desfavorável ao autor, dando tutela jurisdicional ao seu adversário (demandas julgadas improcedentes). Bem vistas as coisas, portanto, o realce dado ao direito de ação pela doutrina tradicional era também reflexo de uma postura introspectiva em que o sistema processual parecia ser um objetivo em si mesmo, sem preocupações com os objetivos a realizar, ou seja, sem se preocupar com os resultados que dele esperam a sociedade, o Estado e os indivíduos.Diferente é o posicionamento moderno, agora girando em torno da idéia do processo civil de resultados. Consiste esse postulado na consciência de que o valor de todo sistema processual reside na capacidade, que tenha, de propiciar ao sujeito que tiver razão uma situação melhor do que aquela em que se encontrava antes do processo. Não basta o belo enunciado de uma sentença bem estruturada e portadora de afirmações inteiramente favoráveis ao sujeito, quando o que ela dispõe não se projetar utilmente na vida deste, eliminando a insatisfação que o levou a litigar e propiciando-lhe sensações felizes pela obtenção da coisa ou da situação postulada. Na medida do que for praticamente possível, o processo deve propiciar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de receber (Chiovenda), sob pena de carecer de utilidade e, portanto, de legitimidade social. O processo vale pelos resultados que produz na vida das pessoas ou grupos, em relação a outras ou aos bens da vida - e a exagerada valorização da ação não é capaz de explicar essa vocação institucional do sistema processual, nem de conduzir à efetividade das vantagens que dele se esperam. Daí a moderna preferência pelas considerações em torno da tutela jurisdicional, que é representativa das projeções metaprocessuais das atividades que no processo se realizam e, portanto, indica em que medida o processo será útil a quem tiver razão.Ao municiar o juiz de uma soma de poderes severíssimos, destinados a remover a inadimplência do sujeito condenado por obrigação de fazer ou de não-fazer (art. 461), a Reforma do Código de Processo Civil postou-se nessa linha metodológica do processo civil de resultados, sabido que essas são as obrigações mais propícias ao inadimplemento. Pelos meios tradicionais de execução específica são muito mais angustiosas as dificuldades e delongas enfrentadas pelo credor, sempre que o obrigado se obstine em não cumprir o comando emergente da sentença que o haja condenado a um fazer ou a um não-fazer.

41. sistema de promessas e limitações

Conscientes da necessidade da tutela jurisdicional institucionalizada como fator de paz na sociedade, os povos obtêm do Estado solenes promessas de dispensá-la e pautar o exercício da jurisdição por certas linhas capazes de assegurar a boa qualidade dos resultados. Como em outros países, no Brasil figura em sede constitucional essa fundamental promessa, aqui formalizada na proibição de excluir da apreciação judiciária as queixas por lesão ou ameaça a direitos (art. 5-, inc. XXXV).

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Tal é a fórmula tradicionalmente apresentada como garantia constitucional da ação e, em tempos mais recentes, como garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional.Essa promessa assim ampla é complementada por outras, cada uma delas de menor espectro que a primeira mas todas dotadas de profundo significado social e político, pelas quais o Estadode-direito oferece meios específicos para o controle jurisdiçãonal de seus próprios atos - como o mandado de segurança individual e o coletivo, o mandado de injunção, o habeas-data, a ação popular, a ação direta de inconstitucionalidade (Const., art. 54, incs. LX1X a LXX111; art. 102, inc. 1, letra a) e outras ainda, para a ampliação da tutela jurisdicional referente a litígios que só nas duas últimas décadas passaram a ser admitidos na Justiça (ações civis públicas, pequenas causas: art. 129, inc.11 e art. 98, inc. 1). Tais são as promessas complementares que a Constituição faz, sempre com vista a vincular o Estado-de-direito à efetivação da tutela jurisdicional.Para satisfatório cumprimento dessas promessas, também na Constituição reside uma série de garantias, que ingressam no sistema como promessas instrumentais. Trata-se das garantias do contraditório, da ampla defesa, motivação das decisões judiciárias, juiz natural etc. - todas destinadas a dar efetividade à promessa-síntese, que é a de acesso à justiça (art. 54, inc. XXXV) e àquelas outras que lhe estão ao redor (promessas complementares). Toda a tutela constitucional do processo converge ao aprimoramento do sistema processual como meio capaz de oferecer decisões justas e efetivas a quem tenha necessidade delas. Falase em devido processo legal (due process of law) para designar o conjunto de garantias destinadas a produzir um processo équo, cujo resultado prático realize a justiça.Por outro lado, a ordem jurídica trata de delinear e delimitar racionalmente os poderes do juiz, inerentes à jurisdição, para que o exercício desta se dê sempre por meios socialmente convenientes e juridicamente idôneos, sem perder de vista a mais profunda razão de ser de todo o sistema, que é a existência de conflitos a dirimir. Trata-se de limitações legitimamente ditadas no próprio plano constitucional e também na lei, todas visando à adequação do sistema do processo à realidade de sua própria técnica e do contexto social e político no qual ele se destina a operar.A mais ampla de todas essas limitações consiste no veto sistemático ao exercício espontâneo da jurisdição, caracterizado pela máxima nemo judex sine actore (CPC, arts. 2- e 262), pelo qual a formação do processo civil depende sempre da iniciativa de parte (infra, n. 398); projeção dessa regra é a necessária correlação entre a sentença e a demanda, que se resolve na proibição de conceder ao autor algo a mais ou diferente do que foi pedido (julgamentos extra vel ultra petita), ou mesmo de lhe dar uma tutela jurisdiçional com base em fatos que não alegou (CPC, arts. 128 e 460) (supra, nn. 940 ss.).Também as próprias garantias constitucionais acima indicadas como promessas periféricas à promessa central comportam exame pelo seu próprio lado negativo, constituindo limitações ao exercício da jurisdição. Por exemplo, em clima de Estadode-direito impõe-se ao juiz a observância da liberdade de conduta dos litigantes no processo e da efetiva disponibilidade dos meios processuais instituídos no sistema, tudo em aplicação da garantia constitucional do due process of law. A observância das normas sobre procedimento é penhor de idoneidade no exercício da jurisdição e ao juiz não é lícito omitir atos essenciais ou praticá-los por forma diferente da ditada na lei, a dano dos litigantes; as regras de competência também limitam o exercício da jurisdição, porque o ato realizado por juiz diferente daquele indicado pela Constituição ou pela lei, com ultraje a uma das garantias do juiz natural (infra, n. 81), é ilegítimo e por isso fadado a possível nulidade; etc.Nos casos em que falte competência internacional à Justiça do país tem-se uma limitação ainda mais severa à promessa de ministrar tutela jurisdicional, porque ali falta ao Estado a própria jurisdição e nenhum de seus juízes processará ou julgará a causa. (infra, nn. 133 ss.).Outras limitações legítimas e muito significativas são aquelas que impedem a emissão de medidas jurisdicionais quando pedidas por quem não seja titular dos interesses em conflito (parte ilegítima) (art. 6- CPC: p.ex., cobrar crédito alheio), ou sem necessidade da tutela jurisdicional (p.ex., vir a juízo por mero capricho, quando o devedor está disposto a pagar: CPC, art. 34), ou por via processual inadequada (p.ex., propor execução civil sem ter título executivo), ou ainda

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sem que a providência pedida seja em tese admissível na ordem jurídica do país (p.ex., cobrar uma dívida de jogo: art. 1.477 CC). Depois, o concreto poder de exigir os provimentos jurisdicionais condicionase sempre à apresentação de uma demanda corretamente formulada segundo a lei, à capacidade de quem a formula, à legítima investidura do juiz a quem e dirigida e, de modo geral, à observância de todos os atos e fases do procedimento que a lei estabelece e exige. Tais são os pressupostos de admissibilidade dos provimentos de mérito, que constituem objeto de profundos exames e investigações na ciência processual (infra, n. 726).No estudo do direito processual pelas suas grandes linhas metodológicas e a partir dos princípios gerais, a consciência desse jogo de promessas, garantias e limitações concorre eficazmente para a boa compreensão do sistema e das suas raízes plantadas na Constituição Federal e nas necessidades da nação. O mesmo Estado que promete exercer a jurisdição para debelar lesões ou ameaças a direitos e interesses (Const., art. 5-, inc. XXXV) por outro lado autolimita-se nesse exercício segundo padrões revelados a partir de premissas políticas e sociais de aceitação geral. Não seria exagero dizer que o conhecimento do direito processual é o conhecimento dessas promessas e dessas limitações.

42. a universalização da tutela jurisdicional e as ondas renovatórias

No processo civil moderno e na sua técnica bastante desenvolvida, a garantia constitucional " da ação "1 figura como verdadeira cobertura geral do sistema de direitos, destinada a entrar em operação sempre que haja alguma queixa de direitos ultrajados ou de alguma esfera de direitos atingida. Mas a amplitude dessa garantia não é total e absoluta, nem se aspira a isso.As legítimas limitações ditadas pela Constituição e pela lei ao exercício da jurisdição constituem fator de racionalidade e realismo no sistema. Ao lado delas outras limitações existem, que não são legítimas e concorrem para impedir que o sistema do processo civil cumpra adequadamente e de modo integral a sua função de pacificar pessoas e fazer justiça. Trata-se de fatores vindos das imperfeições da própria lei processual e outros fatores, igualmente perversos, residentes na realidade política, sócio-econômica e cultural da sociedade à qual o processo se destina a servir. Para o aperfeiçoamento do sistema é indispensável identificar essas barreiras internas e externas ao sistema (Augusto Mario Morello) e procurar afastá-las na medida do que realisticamente for havido por possível (infra, n. 54).Da lei vêm defeitos como a extrema burocracia dos serviços judiciários e pequena abrangência dos julgamentos, com causas que se repetem às centenas e congestionam os juízos e tribunais (p.ex., os inúmeros lesados que vieram isoladamente buscar a liberação dos cruzados retidos pelo Plano Collor). Da realidade econômica vem a insuficiência de recursos das pessoas carentes para custear o litígio sem prejuízo da subsistência, associada à precariedade dos serviços de assistência judiciária. Da realidade cultural da nação vem a desinformação e, o que é pior, a descrença nos serviços judiciários. Da estrutura política do Estado vêm dificuldades como a que se apóia no mito da discricionariedade administrativa e exagerada impermeabilidade dos atos administrativos à censura judiciária (esse fator de resistência, felizmente, vai sendo atenuado na jurisprudência mais recente).

NOTA:

1. É mais próprio falar em garantia da inafastabilidade da tutela jurisdicional (infra, n. 79).

Da atuação conjugada desses ilegítimos fatores limitativos decorre a exclusão de muitas pretensões, que não têm como receber tratamento e solução em via jurisdieional. As determinantes desse mal constituem fatores de resistência a um movimento expansivo testemunhado na generalidade dos ordenamentos jurídicos ocidentais modernos e caracterizado como universalização da jurisdição. Universalizar a jurisdição é endereçá-la à maior abrangência factível, reduzindo racionalmente os resíduos não jurisdicionalizáveis. Que o universo das situações litigiosas aflitivas dos membros da população possa, na maior medida aconselhada

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pela visão realista e racional do contexto, ser canalizado ao processo para a efetividade das promessas de tutela jurisdicional solenemente celebradas na Constituição.Muito se tem feito em tempos recentes, no mundo e no Brasil, em prol da universalização da tutela jurisdicional. Fala a doutrina internacional em três ondas renovatórias do direito processual, voltadas (a) à assistência jurídica integral aos necessitados, (b) à abrangência de certos conflitos supra-individuais antes excluídos de qualquer tutela em juízo (direitos e interesses difusos e coletivos) e (c) ao aperfeiçoamento técnico dos mecanismos internos do processo (Mauro Cappelletti). No Brasil esses movimentos de ruptura com o conformismo do processo civil tradicional fazem-se sentir de maneira extraordinariamente significativa, nestas últimas duas décadas. A implantação dos juizados especiais de pequenas causas (hoje, juizados especiais cíveis), a instituição da ação civil pública e da ação coletiva para tutela dos valores ambientais e do consumidor, o mandado de segurança coletivo, a prática mais reiterada desse notável instrumento político que é a ação popular, a atuação vigilante do Ministério Público em juízo, mais a evolução da mentalidade dos juízes, agora voltados aos valores subjacentes a toda essa realidade - eis o quadro desse movimento vivido no Brasil com intensidade maior que em qualquer outro quadrante do mundo civilizado e que, quando bem compreendido e corretamente conduzido, poderá constituir-se em eficiente fator de adaptação do sistema processual à realidade das necessidades da população. Augura-se que o exagero com que às vezes alguns desses mecanismos são manipulados não conduza a uma retração e retrocesso em relação aos progressos que eles significam.

43. acesso à justiça

Mesmo quando se reduza ao mínimo suportável a chamada litigiosidade contida (Kazuo Watanabe), restam ainda as dificuldades inerentes à qualidade dos serviços jurisdicionais, à tempestividade da tutela ministrada mediante o processo e à sua efetividade. Isso significa que não basta alargar o âmbito de pessoas e causas capazes de ingressar em juízo, sendo também indispensável aprimorar internamente a ordem processual, habilitando-a a oferecer resultados úteis e satisfatórios aos que se valem do processo. Um eficiente trabalho de aprimoramento deve pautar-se por esse trinômio, não bastando que o processo produza decisões intrinsecamente justas e bem postas mas tardias ou não traduzidas em resultados práticos desejáveis; nem sendo desejável uma tutela jurisdicional efetiva e rápida, quando injusta. Para a plenitude do acesso à justiça importa remover os males resistentes à universalização da tutela jurisdicional e aperfeiçoar internamente o sistema, para que seja mais rápido e mais capaz de oferecer soluções justas e efetivas. É indispensável que o juiz cumpra em cada caso o dever de dar efetividade ao direito, sob pena de o processo ser somente um exercício improdutivo de lógica jurídica. Tal é mesmo um dever do juiz, estabelecido no art. 125, inc. 11, do Código de Processo Civil (infra, nn. 509 ss.).Essas necessidades resolvem-se, resumidamente, num binômio composto pelos elementos quantidade e qualidade. Não basta aumentar o universo dos conflitos que podem ser trazidos à Justiça sem aprimorar a capacidade de produzir bons resultados. Nem basta produzir bons resultados em relação aos conflitos suscetíveis de serem trazidos à Justiça, deixando muitos outros fora do âmbito da tutela jurisdicional.Acesso à justiça é acesso à ordem jurídica justa (ainda, Kazuo Watanabe), ou seja, obtenção de justiça substancial. Não obtém justiça substancial quem não consegue sequer o exame de suas pretensões pelo Poder Judiciário e também quem recebe soluções atrasadas ou mal formuladas para suas pretensões, ou soluções que não lhe melhorem efetivamente a vida em relação ao bem pretendido. Todas as garantias integrantes da tutela constitucional do processo convergem a essa promessa-síntese que é a garantia do acesso à justiça assim compreendido.Acesso à justiça não equivale a mero ingresso em juízo. A própria garantia constitucional da ação seria algo inoperante e muito pobre se se resumisse a assegurar que as pretensões das pessoas cheguem ao processo, sem garantir-lhes também um tratamento adequado. É preciso que as pretensões apresentadas aos juizes cheguem efetivamente ao julgamento de fundo, sem a exacerbação de fatores capazes de truncar o prosseguimento do processo, mas também o

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próprio sistema processual seria estéril e inoperante enquanto se resolvesse numa técnica de atendimento ao direito de ação, sem preocupações com os resultados exteriores. Na preparação do exame substancial da pretensão, é indispensável que as partes sejam tratadas com igualdade e admitidas a participar, não se omitindo da participação também o próprio juiz, de quem é a responsabilidade principal pela condução do processo e correto julgamento da causa. Só tem acesso à ordem jurídica justa quem recebe justiça. E receber justiça significa ser admitido em juízo, poder participar, contar com a participação adequada do juiz e, ao fim, receber um provimento jurisdicional consentâneo com os valores da sociedade. Tais são os contornos do processo justo, ou processo équo, que é composto pela efetividade de um mínimo de garantias de meios e de resultados (supra, n. 40 e infra, n. 79).A Reforma do Código de Processo Civil, processada especialmente mediante leis aprovadas nos anos de 1994 e 1995, foi uma resposta a muitos dos reclamos da doutrina e da população por um sistema processual mais eficiente e capaz de atender ao trinômio qualidade-tempestividade-efetividade.Visando à melhoria da qualidade da tutela jurisdicional, trouxe uma inovação importantíssima na preparação do juiz para o julgamento da causa, que é a audiência preliminar instituída pelo novo art. 331 do Código de Processo Civil: é nesse momento que, se não obtiver a conciliação dos litigantes, o juiz se capacita dos pontos e questões relevantes, definindo então o objeto da prova a ser realizada e meios probatórios a produzir.Para a tempestividade da tutela jurisdicional, não só ditou muitas novidades simplificadoras dos atos processuais como ainda instituiu e disciplinou a chamada tutela jurisdicional antecipada (art. 273), além de implantar no sistema processual brasileiro uma tutela diferenciada e célere, representada pelo processo monitório (arts. 1102-a, 1102-b, 1102-c).Para a efetividade da tutela, particularmente no campo angustioso das obrigações de fazer ou de não-fazer, municiou o juiz com poderes eficientíssimos a serem exercidos ainda no processo de conhecimento e com dispensa da formal instauração de uma execução forçada (art. 461).

44. os conflitos (crises jurídicas: infra, n. 58)

Todo o discurso sobre o acesso à justiça, seja mediante a tutela jurisdicional de que se encarrega o Estado ou por obra dos meios alternativos (arbitragem, mediação, conciliação), insere-se na temática dos conflitos e da busca de soluções. O processo civil, como técnica pacificadora, deita raízes na existência de conflitos a dirimir (ou crises jurídicas) e é daí que recebe legitimidade social e política como instituição destinada a preservar valores vivos da nação. Nem teria qualquer significado prático toda a preocupação pelo processo, seus institutos, sua ciência, seu método, se não houvesse aquilo que lhes dá razão de ser e exige sua presença na sociedade, ou seja, os conflitos entre pessoas ou grupos.O conceito de conflito não é muito claro em doutrina. A mais abalizada tentativa de defini-lo foi a que o envolveu na idéia de lide, apontada como conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida (Carnelutti). O conflito, elemento substancial da lide, seria representado pela incidência de interesses de dois ou mais sujeitos sobre o mesmo bem, sendo este insuficiente para satisfazer a ambos, ou a todos esses interesses. A exteriorização do conflito, ou seu elemento formal, seria a tensão entre a exigência externada por um sujeito (pretensão) e a resistência oposta pelo outro. Essa construção, além de exageradamente ligada a relações de direito privado, dá destaque a algo que socialmente é quase indiferente, ou seja, ao conflito conforme definido pelo seu autor. Na vida social o que incomoda e aflige não é a teórica incidência de interesses sobre o bem, mas justamente as exigências não satisfeitas. Aí estão os conflitos que o processo visa a dirimir.Interesse, nessa linguagem e nesse sistema, é uma relação de complementariedade entre a pessoa e o bem - aquela dependendo deste para satisfazer necessidades, este sendo potencialmente hábil a satisfazer necessidades das pessoas. Interesse, nesse sentido objetivo, não é idéia que guarde necessária relação com as aspirações dos sujeitos, ou seja, com a postura mental destes em relação ao bem.

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Conflito, assim entendido, é a situação existente entre duas ou mais pessoas ou grupos, caracterizada pela pretensão a um bem ou situação da vida e impossibilidade de obtê-lo - seja porque negada por quem poderia dá-lo, seja porque a lei impõe que só possa ser obtido por via judicial (supra, n. 1). Essa situação chama-se conflito, porque significa sempre o choque entre dois ou mais sujeitos, como causa da necessidade do uso do processo.A jurisdição só tem caráter secundário em relação a pretensões que poderiam ser satisfeitas pelo outro sujeito: quanto a elas, o primeiro instrumento preordenado à satisfação das pretensões é o próprio sistema de deveres e obrigações, que deve motivar o obrigado, levando-o a satisfazer. Não satisfazendo, eis o conflito. No tocante às pretensões que só por via processual podem ser atendidas, a jurisdição tem caráter primário e não secundário (infra, n. 120). Em ambas as hipóteses, há sempre algum conflito como causa determinante da necessidade da jurisdição.

45. meios alternativos de acesso à justiça (justiça parajurisdicional)

A sólida herança cultural transmitida pela obra dos cientistas do direito, mais a prática diuturna dos problemas da Justiça institucionalizada e exercida pelo Estado com exclusividade mediante julgamentos e constrições sobre pessoas e bens, são responsáveis pelo grande zelo votado à jurisdição como objeto de hermético monopólio estatal. Mas a exagerada valorização da tutela jurisdicional estatal, a ponto de afastar ou menosprezar o valor de outros meios de pacificar, constitui um desvio de perspectiva a ser evitado.A absorção estatal do poder de solucionar conflitos interindividuais deu-se mediante a instauração das cognitiones extra ordinem, que ingressaram no sistema processual romano por volta do séc. III DC. Passou-se do sistema conhecido por ordo judiciorum privatorum, em que o julgamento era feito pelo judex, cidadão privado e verdadeiro árbitro, para um sistema em que o próprio proctor passou a instruir o processo e julgar a causa. Esse movimento, que correspondia à afirmação do poder estatal antes insuficiente para impor-se aos particulares com a marca da inevitabilidade (o processo era um contrato entre as partes), foi o grande responsável pelo mito da exclusividade do Estado e da sua jurisdição como meio de solução de conflitos.Na realidade, a tutela jurisdicional tradicional não é o único meio de conduzir as pessoas à ordem jurídica justa, eliminando conflitos e satisfazendo pretensões justas. Como função estatal, a jurisdição tem conotações próprias, de imperatividade e inevitabilidade, ausentes nos outros meios de solução dos conflitos - sendo legítimo aos agentes do poder estatal até mesmo o uso racional e equilibrado da força física para vencer resistências (CPC, art. 461, § 52). Por isso e graças à soberania de que seu poder é dotado, reserva-se o Estado a capacidade de ditar a última palavra sobre todo conflito, não reconhecendo final enforcingpower aos pronunciamentos de outros entes ou indivíduos e dando por ilegítimos os pactos ou imposições que visem a excluir o exame judicial (p.ex., a atitude corporativista de entidades desportivas que proíbem é punem as tentativas de solução jurisdicional de conflitos envolvendo atletas ou associações). Só nesse sentido, porém, é que se pode falar em monopólio ou exclusividade estatal quanto aos meios de solução de conflitos interindividuais ou transidindividuais.Melhor seria se não fosse necessária tutela alguma às pessoas, se todos cumprissem suas obrigações e ninguém causasse danos nem se aventurasse em pretensões contrárias ao direito. Como esse ideal é utópico, faz-se necessário pacificar as pessoas de alguma forma eficiente, eliminando os conflitos que as envolvem e fazendo justiça. O processo estatal é um caminho possível, mas outros existem que, se bem ativados, podem ser de muita utilidade. Sem razão, alegou-se a inconstitucionalidade da arbitragem, pelo fundamento de que suprimiria o controle jurisdicional (infra, n. 46).Ora, sempre que aspire a um bem, não o obtendo porque não lho dá quem podia dá-lo ou porque a lei exige que ele só seja obtido pelos caminhos da Justiça, cabe ao sujeito resignar-se e com isso sacrificar seu próprio interesse; ou tentar, de algum modo, impor seu interesse ao outro sujeito (Carnelutti). A resignação pode dar-se antes de exteriorizada a pretensão, não surgindo então conflito algum; ou depois de surgido o conflito, que por esse meio se extingue. A renúncia ao bem é uma forma de autocomposição. Variam os modos pelos quais o sujeito vai em busca do bem pretendido.

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Uma ordem de soluções apontadas como socialmente convenientes, além de juridicamente legítimas, é aquela integrada por atividades reunidas nos conceitos de autocomposição e no de heterocomposição (Niceto Acalá-Zamora y Castillo). Com uma série de ressalvas limitativas, emergentes da lei e da ordem pública, esses meios de solução de conflitos podem ser legitimamente ativados sem que qualquer processo haja sido instaurado, evitando-o, ou na pendência de um processo em curso, pondo-lhe fim. Os modos de autocomposição ou de heterocomposição comportam, pois, as modalidades extraprocessual e endoprocessual.Existe autocomposição quando os próprios sujeitos envolvidos no conflito, ou um deles unilateralmente, encontra caminho apto à pacificação.A autocomposição unilateral dá-se nas modalidades de renúncia ou submissão:a) unilateralmente, quem vinha externando alguma exigência (pretensão) renuncia a ela e com isso cessa o fator de intranqüilidade que envolvia ele próprio e o adversário. A renúncia ao direito, que é uma atitude de resignação, não só determina a extinção do processo como ainda a do próprio direito supostamente existente (CPC, art. 269, inc. V, e art. 794, inc. 1II);b) unilateralmente ainda, aquele que vinha resistindo à exigência do adversário decide submeter-se a ela. A submissão, no processo de conhecimento, aparece com o título de reconhecimento do pedido, o qual, quando homologado pelo juiz, determina a extinção do processo sem necessidade de ser julgada a causa pelo juiz (CPC, art. 269, inc. II); no processo de execução o demandado submete-se satisfazendo a pretensão do adversário (art. 794, inc. I). Não o diz a lei, mas se no curso do processo de conhecimento o réu satisfizer a pretensão do autor, isso é mais que mero reconhecimento do pedido e sem dúvida integra-se no conceito amplo de submissão, dando causa à extinção do processo.Essas são as autocomposições unilaterais legítimas, porque altruístas e resolvem-se em atos de disposição de direitos ou interesses. A autotutela, como espécie egoísta de autocomposição unilateral, é anti-social e incivilizada, razão por que em princípio a lei a proscreve e sanciona (CP, art. 345, crime de exercício arbitrário das próprias razões). Ao próprio Estado é vedada a autotutela em muitas situações (p.ex., efetuar descontos nos vencimentos de seus funcionários sob a alegação de danos causados ao patrimônio público), sem embargo da chamada autoexecutoriedade dos atos administrativos.Existem casos verdadeiramente extraordinários, em que a lei autoriza a autotutela - como o exercício do direito de retenção (CC, arts. 516, 772 etc.), o desforço imediato a uma moléstia possessória (CC, art. 502) e, em geral, os atos de preservação de direitos.A autocomposição bilateral transparece na transação, que se resolve em mútuas concessões (CC, art. 1.025) e, portanto, participa ao mesmo tempo da natureza da renúncia e da submissão, cada um dos sujeitos acedendo na parcial disposição de seus próprios interesses.É natural que todo ato de disposição só seja permitido em lei quando se referir a direitos e interesses que se confinem no patrimônio de seu próprio titular, sem projeções significativas sobre outras pessoas ou agrupamentos. Não se permite a disposição de direitos e interesses de pessoas incapazes ou que atinja o interesse público: p.ex., a integral e incondicionada renúncia a pretensão formulada em ação civil pública, relativa ao meio-ambiente etc. Tal é o significado da locução direitos disponíveis e tal a mens do art. 1.035 do Código Civil, permissivo da transação somente "quanto a direitos patrimoniais de caráter privado ". Esse dispositivo não tem contudo toda a extensão que parece, porque em certa medida e atendidas certas exigências substanciais e formais, também aos entes públicos é permitido transigir; de outro lado, a própria lei admite certas formas de transação em matéria não-patrimonial, como o acordo para a separação consensual ou para a conversão da litigiosa em consensual (CPC, art. 447, par.; art. 1.123).Em todas as suas modalidades, pode a autocomposição ser espontânea ou induzida. Autocomposição induzida é aquela a que se chega mediante a intercessão de uma terceira pessoa, dita conciliador ou mediador.Como meio alternativo de heterocomposição avulta o juízo arbitral, ou arbitragem, que consiste no julgamento do litígio por pessoa escolhida consensualmente pelas partes (o árbitro), mediante trâmites bastante simplificados e menor apego a parâmetros legais rígidos (o possível julgamento por eqüidade: lei n. 9.307, de 23.9.96, art. 22); exclui-se esse meio alternativo quanto a direitos não-disponíveis (art. 12 c/c art. 25), justamente porque o juízo arbitral resulta de uma convenção

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entre as partes (convenção de arbitragem, art. 32) e o julgamento não é feito por juiz, agente estatal, mas por árbitro, cidadão privado.O vocábulo composição, que aparece nos compostos autocomposição e heterocomposição, recebeu de conceituadíssima doutrina o significado de regramento, ou estabelecimento da norma que disciplina o conflito de interesses. Compor a lide significaria criar a norma que a resolve (Francesco Carnelutti). Mas o juiz não compõe a lide nesse sentido, ou seja, ele não cria a norma do litígio: reconhece sua existência e revela os direitos e obrigações eventualmente emergentes dela no caso concreto (supra: n. 5: os dois planos do ordenamento jurídico). A composição que ele realiza (heterocomposição) ou a que realizam os próprios litigantes (autocomposição), não consiste em estabelecer normas mas em produzir resultados práticos socialmente úteis, representados pela concreta atribuição de bens ou definição de condutas permitidas ou vedadas - ou seja, a eliminação do conflito e pacificação dos litigantes. Também as pessoas em conflito não criam normas para dirimir o conflito em que se encontram: simplesmente dirimem o conflito, põem-lhe fim, sem qualquer preocupação com norma alguma.

46. equivalência funcional - o valor social da conciliação, da mediação e da arbitragem

A crescente valorização e emprego dos meios não-judiciais de pacificação e condução à ordem jurídica justa, ditos meios alternativos, reforça a idéia da equivalência entre eles e a atividade estatal chamada jurisdição.Do ponto-de-vista puramente jurídico as diferenças são notáveis e eliminariam a idéia de que se equivalham, porque somente a jurisdição tem entre seus objetivos o de dar efetividade ao ordenamento jurídico substancial, o que obviamente está fora de cogitação nos chamados meios alternativos. Mas o que há de substancialmente relevante no exercício da jurisdição, pelo aspecto social do proveito útil que é capaz de trazer aos membros da sociedade, está presente também nessas outras atividades: é a busca de pacificação das pessoas e grupos mediante a eliminação de conflitos que os envolvam. Tal é o escopo social magno da jurisdição, que atua ao mesmo tempo como elemento legitimador e propulsor da atividade jurisdicional (infra, n. 48).Essa perspectiva teleológica do sistema processual sugere a equivalência funcional entre a pacificação estatal imperativa e aquelas outras atividades, nem sempre estatais e jamais dotadas do predicado da inevitabilidade, com que se buscam os mesmos objetivos e a mesma utilidade social. Na doutrina moderna há prestigiosa voz afirmando a natureza jurisdicional do juízo arbitral (Carlos Alberto Carmona) e sabe-se que, em alguns casos, os meios alternativos são capazes de produzir resultados melhores que os da jurisdição estatal. Nesse quadro, é legítimo considerar ao menos parajurisdicionais as atividades exercidas pelo árbitro (infra, n. 365).A arbitragem internacional é praticada com muita intensidade e prevalece na solução dos grandes litígios, sobrepujando a solução junsdicional nessa área. No âmbito dos conflitos internos alguns países praticam a arbitragem de modo desenvolvido. Nos conflitos internos brasileiros ainda é muito escassa a opção pela solução arbitral, embora de longa data presente na legislação, desde muito antes da edição da Lei da Arbitragem (os dois Códigos de Processo Civil nacionais já disciplinavam o juízo arbitral, a partir de antigas disposições que já vinham com o Código Civil). A Lei dos Juizados Especiais também sugere a louvação dos litigantes em árbitros (art. 24) mas nem assim a arbitragem vem sendo praticada com a intensidade esperada.A conciliação consiste na intercessão de algum sujeito entre os litigantes, com vista a persuadi-los à autocomposição. Pode dar-se antes do processo e com vista a evitá-lo, qualificando-se nesse caso como conciliação extraprocesual; quando promovida no curso do processo é endoprocessual. A mediação é a própria conciliação, quando conduzida mediante concretas propostas de solução a serem apreciadas pelos litigantes (ela é objeto de normas específicas em certos países, como a França e a Argentina). O moderno processo civil brasileiro inclui entre os poderes-deveres do juiz no processo, com muita ênfase, o de tentar a qualquer tempo a conciliação entre as partes (arts. 125, inc. IV 331, 342 etc.). Assim também, a Lei dos Juizados Especiais (arts. 21-26) (infra, n. 368).A conciliação extraprocessual pode levar as partes à renúncia, à submissão ou à transação e, quando obtida alguma dessas soluções, ela é suscetível de ser homologada pelo juiz competente

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ou referendada pelo Ministério Público, em atos que têm a eficácia de título executivo (LJE, art. 57). Isso significa que, tratando-se de avença que dependa de cumprimento futuro e não sendo cumprida, o credor dispõe da via da execução forçada para obter a satisfação (CPC, arts. 583, 584, inc. IIl, 585, inc. II, 586 etc.; LJE, arts. 14, 51, 53 etc.).A restauração dos tradicionais juizados de paz é um ditame constitucional, até agora não cumprido (Const., art. 98, inc. II). Visa à conciliação extraprocessual, tanto quanto a que se praticou nos juizados informais de conciliação e o foram desde a pioneira experiência gaúcha dos conselhos de conciliação e arbitragem.A conciliação endoprocessual pode também conduzir à renúncia, à submissão (reconhecimento do pedido, satisfação imediata) ou à transação, assim como à desistência da ação (mera extinção do processo, mantendo-se o status quo ante como se demanda alguma houvesse sido proposta). A homologação pelo juiz põe fim ao processo (CPC, art. 269, incs. 11, 111 e V, art. 794, inc. I) e, se for o caso de exigir judicialmente o cumprimento, haverá também título judicial para isso (art. 584, inc.111).As vantagens dessas soluções alternativas consistem principalmente em evitar as dificuldades que empecem e dificultam a tutela jurisdicional, a saber: a) o custo financeiro do processo (taxas judiciárias, honorários de advogados, perícias etc.); b) a excessiva duração dos trâmites processuais, que muitas vezes causa a diluição da utilidade do resultado final; c) o necessário cumprimento das formas processuais, com a irracional tendência de muitos a favorecer o formalismo. Indicam-se também, em prol da arbitragem, (d) o melhor conhecimento do thema decidendum pelos árbitros especializados, além (e) do menor apego à rigidez da lei, dada a possibilidade de optar pelo juízo de eqüidade (CPC, art. 1.075, inc. IV) e (f) da ausência de publicidade, que favorece a preservação da privacidade ou mesmo de segredos empresariais.

Capítulo IV - OS ESCOPOS DO PROCESSO CIVIL E A TÉCNICA PROCESSUAL

47. abandono da visão puramente jurídica do processo civil - 48. o fundamental escopo social: pacificação - 49. outro escopo social: educação - 50. escopos políticos - 51. o escopo jurídico do processo civil - as teorias unitária e dualista do ordenamento jurídico - 52. escopos do processo civil e técnica processual - 53. os processos, provimentos e procedimentos como técnicas - 54. equilíbrio entre exigências contrapostas - 55. certeza, probabilidade e risco em direito processual civil

47. abandono da visão puramente jurídica do processo civil

Tradicionalmente e até tempos bem recentes, acreditava-se que o sistema processual tivesse uma finalidade puramente jurídica, sendo ele, em resumo, um instrumento a serviço do direito material. Confrontavam-se a propósito duas conhecidíssimas posições metodológicas que fizeram escola na primeira metade deste século. Uma delas sustentava que a jurisdição tem o escopo de atuar a vontade concreta da lei, ou seja, ela seria exercida com o objetivo único de propiciar a realização prática do direito nos casos trazidos a juízo, não competindo aos juizes a criação de normas jurídico-substanciais (Chiovenda). A outra dessas doutrinas sustentava que a norma de regência de cada conflito só se considera perfeita e acabada por obra da sentença, sendo o direito material insuficiente para a composição da lide; conseqüentemente, o escopo do processo seria ajusta composição da lide (Carnelutti). Nenhuma dessas teorias cuidava de examinar o sistema processual pelo ângulo externo e metajurídico, nem de investigar os substratos sociais, políticos e culturais que legitimam sua própria existência e o exercício da jurisdição pelo Estado. Atuar a vontade concreta da lei ou dar acabamento à norma de regência do caso são visões puramente jurídicas e nada dizem sobre a utilidade do sistema processual em face da sociedade.Para sustentar que o sistema processual teria por escopo ajusta composição da lide, partia Carnelutti de uma importantíssima premissa metodológica, que era a da insuficiência do direito positivo para reger as concretas situações conflitivas da vida, ou seja, as lides. Antes da sentença não haveria direitos e obrigações e a missão do juiz seria acima de tudo a de completar

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o trabalho do legislador, produzindo a norma do caso em exame e com isso dando efetiva existência a direitos e obrigações entre as partes. Tal foi uma das manifestações da teoria unitária do ordenamento jurídico, para a qual o processo e o direito material situarse-iam num mesmo plano e os direitos e obrigações não preexistiriam à sentença. A função criadora do processo, nessa perspectiva, consistiria no que Carnelutti denominou justa composição da lide. Tal é uma colocação puramente jurídica, dado que se limita, tanto quanto a de Chiovenda, a examinar o fenômeno processo como algo preordenado exclusivamente à vida do direito material. A grande diferença entre as duas teorias residia em que, enquanto para uma a norma do caso concreto receberia da sentença o seu acabamento final e antes desta os direitos inexistiriam (Carnelutti), para a outra o ordenamento jurídico é composto de dois planos distintos (teoria dualista, Chiovenda) e os direitos e obrigações preexistem à sentença, sendo por ela revelados com vista à concreta realização prática determinada pela norma também preexistente (infra, n. 51).Por serem estritamente jurídicas - embora antagônicas nas colocações propostas - essas duas posições metodológicas favoreciam o dogma da natureza técnica do processo como instrumento do direito material, sem conotações éticas ou deontológicas, além de dificultar a valorização dos meios alternativos de solução dos conflitos. Constituem conquistas das últimas décadas a perspectiva sócio-política da ordem processual e a valorização dos meios alternativos. A descoberta dos escopos sociais e políticos do processo valeu também como alavanca propulsora da visão crítica de suas estruturas e do seu efetivo modo de operar, além de levar as especulações dos processualistas a horizontes que antes estavam excluídos de sua preocupação.A independência e responsabilidade do juiz, critérios para seu recrutamento, formas e graus de sua participação no processo, seu compromisso com a justiça, métodos de interpretação da lei substancial, o chamado uso alternativo do direito, a questão da legitimidade das associações de juízes ou de sociedades de advogados, a importância do ensino jurídico etc. - eis uma gama significativa de temas que, por não pertencerem estritamente ao direito processual em si mesmo, jamais figurariam em estudos de um processualista preso às tradicionais premissas puramente jurídicas de sua ciência; mas que, estando ligados a ele de forma funcionalmente muito íntima, hoje são objeto de nossas preocupações e vêm sendo incluídos na pauta dos importantes congressos internacionais promovidos peia Associação Internacional de Direito Processual e das jornadas do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual.

48. o fundamental escopo social. Pacificação

Como o Estado tem funções essenciais perante sua população, constituindo síntese de seus objetivos o bem-comum, e como a paz social é inerente ao bem-estar a que este deve necessariamente conduzir (tais são as premissas do welfare State), é hoje reconhecida a existência de uma íntima ligação entre o sistema do processo e o modo de vida da sociedade. Constituem inevitáveis realidades as insatisfações que afligem as pessoas, as quais são estados psíquicos capazes de comprometer sua felicidade pessoal e trazem em si uma perigosa tendência expansiva (conflitos que progridem, multiplicam-se, degeneram em violência etc.). Ignorar as insatisfações pessoais importaria criar clima para possíveis explosões generalizadas de violência e de contaminação do grupo, cuja unidade acabaria por ficar comprometida. Como vem sendo dito, a litigiosidade contida é perigoso fator de infelicidade pessoal e desagregação social (Kazuo Watanabe) e por isso constitui missão e dever do Estado a eliminação desses estados de insatisfação.É manifestamente impossível satisfazer a todos - e a própria estrutura dialética dos conflitos mostra que a plena satisfação de um dos sujeitos implica contrariedade ao outro. Mas a experiência mostra também que, apesar de contrariado, o litigante vencido tende a aceitar a solução de seus conflitos com sofrimento menor que o decorrente das instabilidades inerentes à indefinição. De todo modo, das angústias de dois resta somente a possível decepção de um, satisfeito o seu adversário.

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Nesse quadro é que avulta a grande valia social do processo como elemento de pacificação. O escopo de pacificar pessoas mediante a eliminação de conflitos com justiça é, em última análise, a razão mais profunda pela qual o processo existe e se legitima na sociedade.Tal é o ponto de apoio e elemento de legitimação dos meios alternativos de solução de conflitos. Partes que transigem ou conciliador que encaminha litigantes a uma solução não têm solenes compromissos com a lei nem lhes toca dar-lhe efetividade ou promover-lhe a atuação (escopo jurídico da jurisdição). Mas a pacificação é o indisfarçável resultado dessas iniciativas, quando frutíferas - e tal é o ponto comum entre a jurisdição e os meios alternativos.A consciência do escopo social de pacificação mediante a eliminação de conflitos e insatisfações é um dos fatores que levam o Estado-de-direito a proibir o exercício espontâneo da jurisdição. A tutela jurisdicional que o juiz se disporia a dar sem a iniciativa de parte poderia ser desprovida de utilidade, na medida de sua incidência sobre situações que não estivessem sendo motivo de angústias e tristezas ao possível titular de direitos. Ou poderia até fomentar conflitos que, apesar de algum direito violado ou obrigação descumprida, ainda estivessem latentes e portanto não constituiriam um inconveniente social. A mais clara manifestação da existência de insatisfações socialmente inconvenientes é o comparecimento a juízo para propor uma demanda com o pedido de remoção do incômodo que elas significam para o sujeito (infra, n. 398).

49. outro escopo social. Educação

Sempre no plano das relações sociais, o exercício continuado e correto da jurisdição constitui elemento de valia, no sentidode educar as pessoas para o respeito a direitos alheios e para o exercício dos seus. As demoras da justiça tradicional, seu custo, formalismo, a insensibilidade de alguns aos verdadeiros valores e ao compromisso com a justiça, a mística que leva os menos preparados e leigos em geral ao irracional temor reverencial perante as instituições judiciárias e os órgãos da Justiça - eis alguns dos fatores que ordinariamente inibem as pessoas de defender convenientemente seus direitos e interesses em juízo e conseqüentemente acabam por privá-las da tutela jurisdicional. Onde a Justiça funciona mal, transgressores não a temem e lesados pouco esperam dela.Esses maus vezos, de fundo cultural ou psicossocial, comportam combate pela via da educação, que pode vir da instrução escolar básica, de campanhas publicitárias de variada ordem e, como dito, do exemplo ofertado pelos bons resultados do processo.Embora não privativa das camadas sociais mais carentes e menos informadas, é a elas que mais prejudicam a atitude de descrença e o temor reverencial. A implantação dos juizados especiais e a divulgação de seus bons resultados constituem força positiva, no sentido de educar para a litigiosidade racional civilizada. Também a farta publicidade jornalística de acontecimentos judiciários ligados à política nacional e aos desmandos administrativos e financeiros do próprio Governo ajuda a crer na Justiça como última esperança e leva as pessoas a invocar de modo mais efetivo e freqüente a tutela que ela é apta a oferecer. Também o Poder Judiciário tem suas mazelas, que vêm sendo amplamente divulgadas em tempos recentes, mas a campanha de desmoralização dos juizes e tribunais, ferozmente lançada por conhecido político brasileiro, é um desserviço institucional.Tal é o segundo importante escopo social do processo: educar para a defesa de direitos próprios e respeito aos alheios.

50. escopos políticos

Importa ainda, através do processo, concorrer para a estabilidade das instituições políticas e para a participação dos cidadãos na vida e nos destinos do Estado.Por esse aspecto, a própria atuação continuada dos preceitos residentes na ordem jurídica estatal constitui elemento político de grande valia. Quando se dizia, sem ressalvas, que o escopo do processo é a atuação da vontade concreta da lei, punha-se atenção nos resultados que o processo é apto a produzir em casos concretos, fazendo com que, caso por caso, a vontade da lei fosse realizada (Chiovenda). Mas, pensando-se agora no resultado das atividades somadas

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do Poder Judiciário, tem-se em mira a estabilidade do próprio ordenamento jurídico, que constitui projeção positivada do poder estatal. Generalizar o respeito à lei é propiciar a autoridade do próprio Estado, na mesma medida em que este se enfraquece quando se generalize a transgressão aos preceitos que estabeleceu ao legislar de modo genérico e abstrato.Eis um importantíssimo aspecto positivo do exercício da jurisdição, erigindo-se a estabilidade das instituições estatais em relevante escopo político do processo.Por outro lado, sendo a participação política um dos esteios do Estado democrático, as nações modernas têm consciência da importância de realçar os valores da cidadania - premissa essa que repercute no sistema processual mediante a implantação e estímulo a certos remédios destinados à participação política. A ação popular, como remédio processual-constitucional destinado ao zelo pelo patrimônio dos entes públicos e pela moralidade administrativa, mais a ação direta de inconstitucionalidade com que entidades representativas são admitidas ao controle da fidelidade da lei e atos normativos aos ditames da Constituição, constituem vias de legítima participação política integrantes do sistema processual (Const., art. 5-, inc. LVIII; art. 102, inc., letra a, c/c art. 103).Ganha também realce nos tempos presentes o valor do processo como meio de culto à liberdade mediante defesa dos indivíduos e das entidades em que se agrupam, contra os desmandos do Estado. Estamos no campo das chamadas liberdades públicas e notadamente das garantias de preservação do princípio liberal nas relações entre o indivíduo e o ente político. O Esta do democrático define-as e faz a solene promessa de observálas e limitar o exercício do poder, de modo a não invadir a esfera de liberdade reservada aos indivíduos, com dano à vida em grupo ou ao desenvolvimento dos objetivos comuns; mas a realidade mostra episódios de transgressão a esses propósitos do Estado-de-direito, que de tempos em tempos avulta de modo insuportável. Entre os modos disponíveis para a enérgica e equilibrada reação a esses abusos do poder pelo Estado situa-se a busca da tutela jurisdicional adequada (habeas corpus, mandado de segurança individual ou coletivo, mandado de injunção, habeas data etc.).

NOTA:

1. Embora as liberdades públicas não se restrinjam a esse âmbito nem se limitem às relações dessa natureza.Daí por que se justifica a inclusão, entre os objetivos que norteiam o sistema processual, desses escopos políticos assim descritos e que são aptos a servir de parâmetro para aferir sua eficiência, a saber: a) a estabilidade das instituições políticas, (b) o exercício da cidadania como tal e (c) a preservação do valor liberdade.

51. o escopo jurídico do processo civil - as teorias unitária e dualista do ordenamento jurídico (supra, n. 5)

O repúdio à confinação teleológica do sistema processual, formulada nos moldes tradicionais que lhe reconheciam somente algum objetivo perante a ordem jurídica, não significa que o processo não tenha responsabilidades nesse setor. Simplesmente afasta-se a exclusividade da sua visão jurídica, no reconhecimento de importantes escopos sociais e políticos do sistema. Ele é uma instituição jurídica e seria insensato excluir o seu exame no plano do direito e das demais instituições jurídicas da nação.Em um século de construção científica do processo civil andou a doutrina de tentativa em tentativa, na busca do verdadeiro objetivo da ordem processual (Zanzucchi), mas durante muito tempo sem se aperceber de que é absolutamente indispensável ampliar as investigações para fora do campo do direito. As especulações foram infecundas e insatisfatórias enquanto se limitaram a conduzir os estudiosos a conclusões falsas ou ao menos pobres, como ao indicar que o escopo do processo civil seria (a) a tutela de direitos, (b) a produção de decisões, (c) a coisa julgada etc.Desse período são as duas notáveis colocações que, mais do que proporem a definição do escopo do processo, foram além e se digladiaram na tentativa de estabelecer uma

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importantíssima base metodológica do sistema. Trata-se das teorias segundo as quais o escopo do processo seria ajusta composição da lide ou a atuação da vontade concreta do direito (supra, n. 47).A primeira delas identifica-se como teoria unitária do ordenamento jurídico (Carnelutti) e a segunda, dualista (Chiovenda, Liebman). O ordenamento jurídico seria unitário se processo e direito material se fundissem numa unidade só e a produção de direitos subjetivos, obrigações e concretas relações jurídicas entre sujeitos fosse obra da sentença e não da mera ocorrência de fatos previstos em normas gerais.A corrente dualista afirma que no universo do direito de origem romano-germânica (civil law) a ordem jurídica divide-se em dois planos muito bem definidos, o substancial e o processual, cada qual com funções distintas. O direito material é composto por normas gerais e abstratas, cada uma delas consistente numa tipificação de fatos (fattispecie: p. ex., causar dano a outrem) e fixação da conseqüência jurídica desses fatos (v.g., a obrigação de indenizar) (supra, n. 17): sempre que ocorre na vida concreta algum fato que se enquadre no modelo definido naquela previsão legal, automaticamente se desencadeia a sanctio juris estabelecida no segundo momento da norma abstrata. Direitos subjetivos, obrigações e relações jurídicas constituem criação imediata da concreta ocorrência dos fatos previstos nas normas: a sentença não os cria nem concorre para a sua criação.Para a consciente percepção da ordem processual e do sistema jurídico como um todo é absolutamente imprescindível tomar posição quanto a essas duas teses antagônicas, que definem de modos diferentes o ponto de inserção do processo no sistema do direito objetivo.Sem radicalismos e com a consciência de que soluções como essas jamais poderiam ser ditadas sub specie teternitatis, diante do direito vigente mostra-se frágil e inaceitável a teoria unitária. Seus sustentadores jamais conseguiram demonstrar o acerto da premissa fundamental da tese proposta, que seria a suposta inaptidão do sistema jurídico-substancial a gerar concretos direitos, obrigações e relações jurídicas. A realidade da vida mostra que direitos e obrigações nascem, desenvolvem-se, modificam-se e extinguem-se, na grande maioria, sem qualquer interferência judicial e sem a intercessão de qualquer outro meio de pacificação ou composição. Cumprir obrigações e respeitar direitos constituem, afinal, o que se chama vida fisiológica dos direitos. As transgressões são a patologia. A vida dos direitos é firmemente calcada na premissa da preexistência das situações jurídicas de direito material em torno das quais se desenvolvem os processos em juízo.Ilustrações da preexistência de direitos e obrigações ao processo e à sentença: a) a constituição do devedor em mora e fluência de juros a partir de momentos anteriores à sentença que declara a existência da obrigação principal; b) a extinção do direito subjetivo material por prescrição antes da sentença que o reconheça como potencialmente existente; c) a sentença de acolhimento da demanda de investigação de paternidade, colocando o autor como ocupante da situação familiar devida desde o momento em que nascera (se morto o pai antes da sentença, nem por isso o filho assim declarado fica privado de seu quinhão na herança); d) a aquisição do domínio por usucapião, que se consuma no momento em que implementado o requisito do tempus, sendo admissível sua dedução em defesa apesar de não amparado o possuidor por qualquer prévio reconhecimento judicial da prescrição aquisitiva que alega (Súmula 237 STF); e) a admissibilidade da reivindicação do bem sobre o qual exercera posse ad usucapionem por tempo suficiente, tendo-a perdido o possuidor sem ainda haver obtido sentença que declarasse o usucapião a seu favor.Não fora a preexistência do direito à sentença, nenhuma dessas retroprojeções dos efeitos desta seria possível. O único bem jurídico que invariavelmente todos os pronunciamentos judiciais de mérito acrescentam à situação jurídico-material (independentemente do conteúdo e natureza jurídica de cada um) é a segurança jurídica - e a segurança não é em si mesma um bem regido pelo direito substancial. É importantíssimo fator social de eliminação de insatisfações e angústias, mas incide sobre direitos, obrigações ou mesmo meras situações jurídicas que lhe preexistiam, somente para evitar novos questionamentos a respeito.Das possíveis sentenças de mérito - todas pronunciadas em processo de conhecimento - apenas a constitutiva cria uma situação jurídico-substancial nova (mediante o reconhecimento do

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preexistente direito do autor a essa modificação). A condenatória limita-se a acrescentar uma situação jurídico-processual, representada pela constituição do título executivo (aplicação da vontade sancionatória). Nessas sentenças, bem assim nas meramente declaratórias (incluídas entre estas as que julgam improcedente qualquer demanda), o único elemento constante e indispensável é sempre a declaração da existência ou inexistência de direitos, obrigações ou relações jurídicas. Todas elas, contendo uma declaração imperativa dessa existência ou inexistência - e ainda mais quando cobertas pela auctoritas rei judicata 8, são portadoras de segurança jurídica para os litigantes.Tem-se por correta, portanto, a teoria dualista do ordenamento jurídico. Confirma-se que a sentença não cria direitos mas revela-os; e a execução forçada, que também tem caráter jurisdicional, confere-lhes efetividade quando falta o adimplemento voluntário pelo obrigado. Mesmo quando por sentença fica instituída uma situação jurídica nova (sentenças constitutivas) o direito a essa nova situação preexiste à sentença que a cria (p.ex., o direito a obter a separação judicial ou a anulação do contrato). O escopo jurídico do processo civil não é a composição da lide, ou seja, a criação ou complementação da regra a prevalecer no caso concreto - mas a atuação da vontade concreta do direito.É intuitivo que nem todas as sentenças produzem, por si mesmas, esse resultado de dar efetividade prática aos preceitos legais. Só o fazem aquelas que operam modificações em situações jurídicas dos litigantes, ou seja, as sentenças constitutivas (p.ex., a que anula um contrato ou decreta o divórcio). As demais dependem sempre de providências ulteriores para a realização prática do resultado desejado (o adimplemento ou a própria execução forçada). Observações dessa ordem constituíram fundamento de críticas que no passado se dirigiram à teoria da atuação da vontade concreta da lei como escopo (jurídico) do processo; respondeu-se contudo - e com vantagem - que são duas coisas diferentes o produzir a atuação do direito e o ter o objetivo de produzila (Chiovenda). A sentença que condena o devedor a pagar não deixa desde logo no mundo da realidade concreta a realização dos preceitos do direito e a satisfação do direito do credor, mas predispõe requisitos para que isso venha a ocorrer (elimina possíveis dúvidas a respeito, autoriza a execução). O sistema processual como um todo - e não só a sentença, isoladamente, ou os atos que a precedem - é que se consideram voltados à atuação da vontade concreta do direito substancial.Nos últimos tempos, vem ganhando força a convicção do poder que o juiz tem de adaptar seus julgamentos às realidades sociais, políticas e econômicas que circundam os litígios postos em juízo - e cresce com isso a impressão de que a sentença criasse o direito do caso concreto ao inovar em relação aos julgados anteriores e aos próprios textos legais. Mera ilusão. Se isso fosse verdade, aberto estaria o caminho para o arbítrio, numa verdadeira ditadura judiciária em que cada juiz teria a liberdade de instituir normas segundo suas preferências pessoais. Tal seria de absoluta incompatibilidade com as premissas do due process of law e do Estado-de-direito, em que a legalidade racional e bem compreendida vale como penhor das liberdades e da segurança das pessoas.As preferências axiológicas, éticas, sociais, políticas ou econômicas do juiz, enquanto opções pessoais, não podem prevalecer assim e impor-se imperativamente mediante atos que não são dele mas do Estado - do qual ele é um agente impessoal. A grande e legítima liberdade que o juiz tem ao julgar é liberdade de remontar aos valores da sociedade, captá-los e compreendê-los com sensibilidade e com a mais autêntica fidelidade a um universo axiológico que não é necessariamente o seu. Agindo dessa maneira, o juiz coloca-se como válido canal de comunicação entre os valores vigentes na sociedade e os casos concretos em que atua. Isso não é criar normas, mas revelá-las de modo inteligente, sabido que a lei não é a fonte única e exclusiva do direito, mas também os princípios gerais de direito. Essa dinâmica de uma jurisprudência evolutiva segundo as mutações da sociedade constitui projeção pratica da conhecida lição de que o direito se compõe de um trinômio representado por fato, valor e norma (Miguel Reale). Valorar os fatos concretos de uma causa mediante a interpretação dos textos de lei à luz dos princípios e dos valores da sociedade não é criar normas antes inexistentes na ordem jurídica como um todo.

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Os que vêem nessa liberdade interpretativa uma criação jurídica lançam mão de uma imagem muito expressiva e elegante, mas irreal, ao compararem o juiz ao maestro condutor de orquestra, em sua liberdade de enriquecer as composições musicais com seus próprios sentimentos e criatividade: uma sinfonia de Mozart ou Beethoven não é igual a si mesma, quando interpretada por Herbert von Karajan, Zubin Metha ou Lorin Maazel. Mas existe uma grande diferença entre a atividade do juiz e a do maestroarranjador, dado que este não lida com direitos e obrigações de outras pessoas nem impõe imperativamente a outrem as soluções ditadas por seus gostos pessoais. A maior ou menor fidelidade à composição dos Mestres pode causar impressões sensoriais mais agradáveis ou menos, mas não diminui nem aumenta o patrimônio das pessoas, nem altera o curso de suas vidas. Se o juiz tivesse a mesma liberdade que os maestros têm, estaria comprometido esse sólido pilar do Estado-de-direito, que é o princípio da legalidade sintetizado na garantia constitucional do due process of law (em si mesmo conceituado como sistema de freios e limites ao exercício do poder estatal). A elegante comparação não passa, como se vê, de um astuto expediente dialético de argumentação, sem raízes na realidade.

52. escopos do processo civil e técnica processual

O destaque dado aos escopos do processo e à sua inserção na ordem política e social não deve conduzir ao menosprezo da técnica processual. O processo jamais deixará de ser uma técnica. Para o aprimoramento do sistema e para que ele possa cumprir adequadamente suas funções no plano social, no político e no jurídico, é preciso ter consciência integral de todos os seus escopos, situados nessas três áreas - o que obviamente não deve conduzir a afastar as preocupações pela técnica processual mas a enriquecê-la com os dados assim obtidos. Como conjunto de meios preordenados à obtenção de resultados desejados, toda técnica precisa ser informada pela definição dos resultados a obter.Assim como uma -técnica desprovida da prévia definição de objetivos é cega e irracional, assim também a mais profunda das consciências axiológicas será inócua e absolutamente inútil sempre que não se traduza em técnicas adequadas.A preocupação com a técnica processual leva os processualistas modernos a propor a revisitação dos institutos do processo (Barbosa Moreira), agora à luz das conquistas metodológicas das última décadas, submetendo-os a uma releitura capaz de dar-lhes modernidade e melhor utilidade social e política. O processo civil é sempre uma técnica - técnica de solução de conflitos - e como tal há de ser tratado. Criticar as técnicas vigentes e buscar seu aprimoramento ou substituição por outras não significa menosprezar a técnica processual em si mesma, mas revalorizá-la. Jamais conhecerá verdadeiramente o direito processual aquele que se contentar com belas colocações ideológicas, menosprezando conceitos e ignorando os institutos e as estruturas básicas do sistema.Constitui significativa revisitação da técnica processual a Reforma do Código de Processo Civil operada em tempo bem recente. Consciente das ondas renovatórias da ordem processual (supra, n. 42), o legislador brasileiro realizou inovações em diversos setores do sistema processual civil, conferindo maior agilidade e efetividade aos institutos vigentes. Nessa fidelidade aos valores descobertos pela ciência processual moderna e na sensibilidade com que transportou para a técnica processual as conquistas antes postas no plano abstrato e doutrinário, reside a legitimidade metodológica da Reforma.

53. os processos, provimentos e procedimentos como técnicas

As técnicas do processo aparecem de maneira muito sensível e eloqüente na discriminação das diversas espécies de tutelas jurisdicionais admissíveis conforme a situação trazida pelo demandante - e a serem dispensadas mediante as chamadas vias ordinárias representadas pelos normais processos de conhecimento ou de execução, ou tutelas diferenciadas que se concedem mediante a realização de processos especialíssimos, como o monitório, o de mandado de segurança, o dos juizados especiais etc. Cada um desses processos rege-se por uma técnica própria e apresenta configuração própria para as relações entre seus sujeitos -

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poderes, deveres, faculdades de cada um deles em relação aos demais, espécies de medidas a serem concedidas e efetivadas pelo juiz (provimentos) etc. -tudo inserido em técnicas preordenadas aos resultados propostos.Os processos de conhecimento não diferenciados (vias ordinárias) incluem cognição plena, contraditório desde o início, instrução mais delongada ou menos conforme o caso e, por fim, sentença de mérito. As sentenças de mérito serão condenatórias, constitutivas ou meramente declaratórias, cada qual regida por técnicas e pressupostos diferentes. Constitui também um importantíssimo aspecto técnico do sistema a interligação funcional entre o processo condenatório e a execução forçada, que em princípio se condiciona à existência de uma sentença condenatória produzida naquele. Na técnica processual tradicional, a sentença condenatória é ao mesmo tempo o último ato de um processo de conhecimento e o pressuposto de uma futura execução.O processo executivo faz-se por diversas técnicas, conforme se refira a obrigações de fazer ou de não-fazer, ou a obrigação de entregar coisa ou pagar dinheiro, sendo que nesta última hipótese existem as técnicas da execução contra devedor solvente (execução singular, individual), em contraposição à execução universal e coletiva representada que são a falência e a insolvência civil - nas quais se arrecadam todos os bens do devedor e convocam-se todos os seus credores. Nos processos de execução de toda ordem o juiz dispõe de poderes e realiza atos inteiramente diversos dos que têm lugar no processo de conhecimento, atuando invariavelmente sobre os bens que direta ou indiretamente servirão à satisfação do credor; em todas as execuções por dinheiro ele os faz avaliar, aliena-os a quem mais der e entrega ao exeqüente o valor que lhe é devido.Nos processos destinados às tutelas diferenciadas variam também as técnicas e os poderes do juiz, como v.g., o poder de emitir o mandado de pagamento ou de entrega no processo monitório, sempre inaudita altera parte (sem prévio contraditório); o de conceder tutela liminar em mandado de segurança etc. No processo civil das causas de menor complexidade (pequenas causas) têm as partes o ônus de comparecer à sessão de conciliação e à audiência de instrução e julgamento, sofrendo as conseqüências do não-comparecimento. Na generalidade dos processos integrados no sistema das tutelas diferenciadas a cognição é sumária e não plena (infra, n. 63).É também muito importante o aspecto técnico residente na disciplina dos procedimentos a serem adotados nos processos em geral e nos diversos graus de jurisdição. Toda disciplina procedimental envolve o elenco de atos a serem praticados, a ordem seqüencial de sua realização e a forma com que cada ato se realizará. Pelo aspecto da forma, disciplinam-se o modo, o lugar e o tempo para a realização do ato. Além disso, a lei estabelece os casos em que cada modelo procedimental deve ser adotado e exige a observância desses preceitos, seja no tocante à escolha do procedimento adequado, seja na realização de todos os atos exigidos, na ordem e pela forma adequadas (infra, nn. 626 ss.).O Código de Processo Civil manda que o procedimento ordinário prevaleça no processo de conhecimento em primeiro grau de jurisdição sempre que para o caso não haja norma específica optando por outro procedimento; e manda também que ele principie com a apresentação de uma petição inicial, prosseguindo com a citação do réu, prazo para resposta, audiência preliminar, eventual prova pericial, audiência de instrução em julgamento - e terminando com a prolação de uma sentença. Esses são perceptíveis aspectos técnicos do sistema processual.As técnicas procedimentais constituem o resultado de experiências multisseculares, às quais o legislador aporta as inovações e aperfeiçoamentos que na prática lhe pareçam úteis. As significativas revisitações aos institutos processuais, que se vêm fazendo ultimamente, vão produzindo também alterações nos procedimentos em si mesmos, como modo de adequar a técnica do processo às novas conquistas da ciência. De todo modo, vigentes no sistema determinados modelos procedimentais, a eles deve necessariamente conformar-se o procedimento de todo processo que em concreto se realiza, sob pena de nulidade e possível ilegitimidade dos provimentos jurisdicionais a serem produzidos. O procedimento como técnica e a necessidade de sua observância constituem fatores de segurança dos litigantes, sem os quais se abriria caminho para abusos, arbitrariedades e conseqüente insegurança. Afastados os

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exageros de um passado extremamente apegado à rigidez formal, a definição dos procedimentos é um aspecto do princípio da legalidade vigente no Estado-de-direito (devido processo legal).Sobre a flexibilização das exigências formais do procedimento, v. supra, n. 3 e infra, n. 714 (a instrumentalidade das formas). Sobre a legitimação pelo procedimento e pelo devido processo legal, infra, n. 391.

54. equilíbrio entre exigências contrapostas

O exame crítico a que os sistemas processuais do mundo ocidental e suas próprias raízes e dogmas vêm sendo submetidos constitui resultado da consciência teleológica desenvolvida nas investigações dos processualistas modernos e conduz a propostas de aprimoramento após a identificação dos pontos de maior deficiência e fragilidade.Sabe-se que certos defeitos são insuperáveis e tem-se a consciência de que o ideal possível é reduzi-los, não eliminá-los. O mais grave dos problemas é a duração dos processos, responsável pela eternização dos litígios e prolongamento das angústias dos litigantes. Mas jamais se conseguirá agilizar tanto os procedimentos a ponto de, em sua generalidade, eles serem capazes de oferecer solução bastante pronta aos litígios. Ao lado de certos fatores ditos perversos, como o espírito burocrático, desídias, retardamentos intencionais etc., militam em prol das longas demoras processuais certas legítimas razões de segurança recíproca das partes, garantias de defesa e contraditório, modos mais ou menos complexos na realização de atos, prazos etc. - tudo concorrendo para conter os ímpetos de celeridade e assim prolongar a angústia dos sujeitos envolvidos no litígio (supra, n. 42).Isso significa que todo movimento de agilização encontra limites legitimamente intransponíveis, que levam o construtor do sistema a conformar-se com o racional equilíbrio possível entre duas exigências antagônicas, a saber: de um lado a celeridade processual, que tem por objetivo proporcionar a pacificação tão logo quanto possível; de outro, a ponderação no trato da causa e das razões dos litigantes, endereçada à melhor qualidade dos julgamentos. São dois valores conhecidos o da segurança das relações jurídicas, responsável pela tranqüilidade que sempre contribui para pacificar (e isso aconselha a celeridade); e o da justiça nas decisões, que também é inerente ao próprio escopo fundamental do sistema processual (pacificar ~justiça). Como é muito difícil fazer sempre bem o que se consegue fazer logo, impõe-se como indispensável o equilíbrio entre as duas exigências, com renúncia a radicalismos (Calamandrei). Boa técnica processual será aquela que caminhar equilibradamente entre esses valores.A quem se ativesse de modo tradicional ao escopo jurídico do sistema, o valor da segurança teria menos valor - e talvez por isso é que o processo tradicional sempre foi mais formalista, estimulando delongas que adiavam sempre a definição do litígio a pretexto de desvendar com precisão os fatos e ser bastante fiel aos desígnios do direito substancial. Mesmo a visão teleológica do processo civil instrumentalmente comprometido com o escopo pacificador, contudo, jamais poderá postular o exagerado desapego às formas porque isso importaria criar situações perigosas para os litigantes, com riscos de injustiça. O Estado-de-direito opera invariavelmente sobre normas preestabelecidas e o exercício do poder legitima-se sempre pela observância de procedimentos adequados, como penhor das garantias do contraditório e do due process of law.O exame das linhas básicas do processo em sua programação operacional (procedimento, oportunidades de defesa, recursos etc.) mostra o convívio indispensável entre normas tendentes a agilizá-lo e normas que lhe impedem a excessiva aceleração, impondo maior ponderação no trato dos litígios.São exemplos de meios aceleratórios do procedimento: a) os prazos aceleratórios, impostos para que os atos das partes e do juiz não possam retardar-se além de um tempo razoavelmente dimensionado pelo legislador (p.ex., o prazo de quinze dias para responder à inicial); b) as preclusões em geral, definidas como perda da faculdade de realizar atos, entre as quais as que decorrem da inobservância de prazos (preclusão temporal); c) a coisa julgada formal (preclusão máxima), que impede a eternização de recursos contra a sentença; d) as medidas antecipatórias, entre as quais as cautelares, a tutela antecipada e a execução provisória - todas destinadas a

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evitar a corrosão da tutela jurisdicional pelos males decorrentes do tempo; e) a instituição de um elenco grande de títulos executivos extrajudiciais e do novo processo monitório brasileiro, tendentes a produzir a tutela jurisdicional efetiva independentemente da realização do processo de conhecimento; etc.São exemplos de normas que impedem a maior celeridade, propiciando meios para um julgamento melhor e, conseqüentemente, para a preservação dos direitos dos litigantes: a) todas as que, em nível legal ou constitucional, asseguram amplitude de defesa e exercício do contraditório; b) especialmente as que impedem a realização de atos antes de decorrido determinado tempo (prazos dilatórios, ou de desaceleração: vg., a audiência no procedimento sumário não pode realizar-se antes de decorridos dez dias da citação - art. 277 CPC); c) as que instituem os recursos, propiciando reexame da causa ou de incidentes a ela inerentes; d) as que oferecem a ação rescisória para a correção de possíveis erros graves no julgamento (arts. 485 ss.); etc.

55. certeza, probabilidade e risco em direito processual civil

O risco de errar é inerente a qualquer processo e a obsessão pela verdade é utópica. Ainda quando se prescindisse por completo do valor celeridade e se exacerbassem as salvaguardas para a completa segurança contra o erro, ainda assim o acerto não seria uma certeza absoluta. Por isso, ao estabelecer o equilíbrio entre as exigências de acelerar e de ponderar, o legislador e o juiz devem estar conscientes da inevitável falibilidade do sistema (projeção da própria falibilidade humana), convivendo racionalmente com o risco e dando força aos meios de sua correção.Variam muito a natureza dos riscos ocorrentes no processo e a sede em que ameaçam a qualidade de seus resultados. Pode haver erro in procedendo ou in judicando. Pode haver erro na admissão ou inadmissão da prova, erro na sua produção, erro na sua avaliação, erro na interpretação do direito. O erro pode ser resultado de disposições legais mal formuladas ou de más colocações do juiz, ou de condutas imputadas às partes. Não há como reduzir o risco a zero.No contexto do desejado equilíbrio ganha realce o valor da probabilidade, como parâmetro a ser observado pelo legislador ao modelar os institutos processuais e pelo juiz em cada uma de suas manifestações no processo. Probabilidade é mais do que mera credibilidade ou mesmo que verossimilhança, mas é necessariamente menos que certeza. Não passa da preponderância dos elementos convergentes à aceitação uma proposição, sobre os elementos divergentes: quando há mais razões para acreditar numa afirmação, diz-se que o fato afirmado é provável e, havendo mais razões para rejeitá-la, ele é improvável (Nicoló Framarino dei Malatesta). E, como a certeza absoluta é sempre inatingível, precisa o operador do sistema conformar-se com a probabilidade, cabendo-lhe a criteriosa avaliação da probabilidade suficiente.São exemplos da aceitação da probabilidade pelo legislador: a) a instituição de presunções relativas, que com base naquilo que ordinariamente acontece autorizam o juiz a aceitar um fato não provado, desde que conhecido o fato ordinariamente capaz de produzi-lo (v.g., do pagamento de uma parcela da obrigação presume-se o das parcelas antecedentes: CC, art. 943); b) a negação de efeito suspensivo ao recurso especial e ao extraordinário, cuja interposição não impede a execução do acórdão recorrido, porque esses recursos têm admissibilidade reduzida e seu conhecimento e provimento não são fatos de ocorrência ordinária (CPC, art. 497); c) a vinculação da execução à existência de título executivo, que quando extrajudicial (CPC, art. 585) não constitui resultado de julgamento pelo juiz e mesmo assim autoriza atos constritivos como a penhora, transferindo ao demandado o ônus de oferecer embargos para sua defesa etc.A consciência da probabilidade suficiente, pelo juiz, revela-se em primeiro lugar no emprego das máximas de experiência (CPC, art. 335), cabendo-lhe aceitar ou rejeitar a ocorrência de determinado fato segundo sua própria observação do que ordinariamente acontece: isso dá azo às chamadas presumptíones hominis, como aquela segundo a qual a culpa do acidente automobilístico se atribui, salvo prova em contrário, ao condutor do veículo que abalroou outro

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por trás (ou porque transitava muito próximo a este - imprudência; ou porque calculou mal a distância - impericia; ou porque estava desatento ou seu veículo não tinha perfeitas condições para trafegar - negligência). Também sujeito ao critério da probabilidade é o sistema das medidas de urgência (cautelares ou antecipatórias de tutela: arts. 273 e 796 ss.) - que o juiz concederá ou negará conforme sua apreciação do fumus boni juris e não necessariamente apoiado na demonstração cabal da ocorrência dos fatos relevantes.Um campo de enorme relevância prática para o desenvolvimento da idéia da probabilidade suficiente é o da avaliação da prova, que o juiz realizará em face das regras sobre o ônus de provar (CPC, art. 333). Tem-se como inexistente o fato alegado e não provado, mas não é legítimo, diante da regra de equilíbrio aqui considerada, considerar não-provada uma alegação quando a ocorrência do fato for suficientemente provável. O juiz que pretenda chegar ao estado subjetivo de certeza absoluta fará muitas injustiças pelo temor de fazer algumas.Exemplo eloqüente é o da investigação de paternidade pelos métodos mais modernos conquistados pela ciência. Mesmo a análise do DNA nem sempre é capaz de produzir a certeza absoluta da paternidade. Mas o grau de probabilidade que oferece é enorme e basta para a aceitação do fato desde que amparada por alguma demonstração de um relacionamento entre os possíveis parceiros na geração do autor. Não seria compatível com o sistema equilibrado de probabilidades e riscos a obcecada busca da certeza das relações sexuais entre eles, mediante provas concretas e específicas de sua ocorrência.O importante, para segurança do sistema, é que se ofereçam mecanismos suficientes para neutralizar e corrigir os possíveis erros a que a calculada aceitação de seus riscos pode conduzir. Entre esses mecanismos ocupa lugar de destaque o sistema do duplo grau de jurisdição, destinado a corrigir desvios de perspectiva do juiz, seja na valoração da prova, seja na interpretação do direito, seja na compreensão da própria causa em julgamento. Também a ação rescisória é um instrumento corretivo, nos estreitos limites em que se admite (art. 485).Outros exemplos de técnicas corretivas: a) a execução provisória poderá ser desfeita, reconduzindo-se as partes e seu patrimônio ao status quo ante se a sentença exeqüenda vier a ser reformada pelo tribunal que julgar o recurso interposto contra ela (CPC, art. 588, inc. III); b) as medidas cautelares podem ser modificadas ou revogadas a todo momento (art. 807) e a sua concessão com base em mero fumus boni juris não vincula o julgamento da causa principal (art. 810); c) também as antecipações de tutela são provisórias e revocáveis, vedando-as a lei quando forem aptas a criar situações irreversíveis (art. 273, § 24) etc.

Capítulo V - ESPÉCIES DE TUTELAS JURISDICIONAIS E A REALIDADE DOS CONFLITOS

56. as situações da vida, o direito substancial e as técnicas processuais - 57. provimentos jurisdicionais - 58. as crises jurídicas e as tutelas cognitiva e executiva - 59. tutela preventiva, reparatória ou sancionatória - tutela inibitória - tutela específica ou inespecífica (ressarcitória) - 60. entre a tutela individual e a coletiva - 61. meios processuais adequados - 62. tutelas jurisdicionais de urgência - 63. tutelas jurisdicionais diferenciadas - cogniçào sumária - 64. esco lha da tutela jurisdicional adequada - 65. espécies de processos - 66. disponibilidade e indisponibilidade nas escolhas

56. as situações da vida, o direito substancial e as técnicas processuais

Cabe ao direito material a atribuição de bens da vida a pessoas ou grupos e, de um modo geral, a definição do modo-de-ser de suas relações em sociedade. É por ele que deve pautar-se a conduta de pessoas e grupos de pessoas ao estabelecerem relações com os bens da vida ou com outras pessoas ou grupos, ao cumprirem obrigações e ao exigirem condutas alheias ou bens a que aspiram. Embora o direito material não seja concebido nem destinado particularmente à solução de conflitos (supra n. 4), quando o conflito surge é dele que vêm os critérios para a solução.As soluções ditadas pelo direito material são variáveis de acordo com a natureza e circunstâncias das situações regidas. As vezes é direito a obter um bem que atualmente pertence a outrem

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(obrigações por dinheiro, por coisa certa etc.). Outras vezes, direito sobre o próprio bem, sem a intermediação de outro sujeito (direitos reais). Outras ainda, direito ao resultado de determinada conduta comissiva ou omissiva de outro sujeito (obrigações de fazer ou de não-fazer: incluir advertências em maços de cigarros, cessar uma atividade poluidora etc.). Em outros casos, direito à modificação de uma situação jurídica (divórcio, anulação de ato administrativo ou contrato etc. ).Às variadas espécies de situações regidas pelo direito material corresponde simétrica variedade de meios processuais adequados a dar-lhes solução efetiva em caso de insatisfação, sempre mediante imposição das regras jurídico-substanciais pertinentes. Como instrumento do direito material, o processo deve dar a quem tem razão precisamente aquilo que segundo este ele tem o direito de obter (bens da vida, materiais ou imateriais). A variedade de meios processuais constitui, assim, espelho da variedade das soluções ditadas no direito substancial.Para essa correspondência indispensável e valendo-se da experiência multissecular do processo, o legislador estabelece uma variedade de provimentos jurisdicionais, de procedimentos e de processos, num quadro pragmático de busca de soluções adequadas e féis ao direito substancial. Na variedade de provimentos, procedimentos e processos reside a multiplicidade dos meios de outorga de tutela jurisdicional existentes numa ordem jurídica. As soluções estão no direito substancial, os meios de impô-las são processuais.

57. provimentos jurisdicionais

Provimento é ato imperativo de exercício do poder em situações concretas. Uma sentença é provimento e a ordem para entregar o bem ao credor na execução também o é - tanto quanto é provimento ainda o ato de nomeação de funcionário público ou o julgamento de uma licitação pública (provimentos administrativos). Trata-se, portanto, de conceito amplo de direito público, não estritamente confinado ao processo jurisdicional.No processo de conhecimento, que é estruturado para produzir o julgamento da pretensão, o provimento final é a sentença de mérito, com que o juiz a julga procedente, ou improcedente, ou procedente em parte (CPC, art. 459); na execução, o provimento final é o ato com que o juiz manda entregar o bem. Em todas as espécies de processos existem provimentos interlocutórios, emitidos na pendência do processo, sem pôr-lhe fim e destinados à preparação do provimento final (recebimento da demanda inicial, saneamento do processo, deferimento ou indeferimento da produção de um meio de prova, mandado de pagamento ou entrega no processo monitório, ordem para penhorar ou reforçar penhora ele.); esses são provimentos-meio e não provimentos-fim. Somente os provimentos finais podem ser portadores da tutela jurisdicional devida àquele que tiver razão segundo as regras de direito material.Os provimentos consistem sempre em manifestações da vontade do Estado-juiz mediante o emprego de palavras. São pronunciamentos judiciais, no sentido de que, pelas palavras usadas, o juiz emite um preceito, determinação ou comando - seja ao julgar a pretensão mesma (mérito), ao pôr ordem no processo ou simplesmente ao dar-lhe impulso em direção ao provimento final (designar dia e hora para audiência ou para a praça ou leilão de bens). Ao lado dos provimentos existem os atos materiais que o juiz realiza no processo, sem a emissão de um preceito ou vontade (inquirir testemunha, realizar uma inspeção judicial etc. - art. 440).A concessão de tutela jurisdicional pela sentença de mérito constitui sempre um julgamento, feito com base em regras de direito material - sabendo-se que o processo de conhecimento é sempre realizado em preparação do julgamento do mérito, ou seja, da decisão sobre as pretensões trazidas ajuízo. Concorrendo certos requisitos (especialmente, o título executivo: arts. 483, 486), terá cabimento outra espécie de provimento jurisdicional, que não contém qualquer julgamento mas a própria satisfação do direito do demandante - e isso se faz no processo de execução. Executar é satisfazer o direito de uma pessoa ou grupo de pessoas à custa do patrimônio de outra, independentemente da vontade desta ou até mesmo contra sua vontade. O provimento satisfativo que se dá no processo de execução é sempre uma ordem de entrega (de dinheiro, de coisa determinada ele.) e nessa entrega reside a tutela jurisdicional executiva, conceitualmente oposta à tutela cognitiva.

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No processo monitório tem-se um provimento final satisfativo (entrega do dinheiro ou coisa devida), que se dá ao cabo da segunda fase de seu procedimento, por isso mesmo denominada fase executiva (CPC, art. 1.102-c).

58. as crises jurídicas e as tutelas cognitiva e executiva

A diversidade de provimentos concebidos e instalados na ordem processual é um dos aspectos da técnica processual, destinando-se cada um deles a debelar uma espécie de crise jurídica mediante a oferta de solução prática adequada segundo os desígnios do direito substancial e sempre com vista a produzir resultados úteis na vida dos sujeitos. Sabido que o processo civil é institucionalmente voltado a produzir tais resultados (processo civil de resultados) e que cada uma dessas situações caracterizadas como crises jurídicas apresenta dificuldades específicas que não estão necessariamente presentes em todas, é natural que as técnicas variem e sejam diferentes os provimentos a emitir em cada uma delas. É indispensável associar cada tipo de provimento - ou cada espécie processual de tutela - às variáveis situações lamentadas e à solução que lhes destina o direito material. Essas situações recebem a qualificação de crises jurídicas por se resolverem sempre em estados de insatisfação e inconformismo de alguém que de algum modo se afirma molestado em seus direitos e pede remédio para a situação lamentada.Conquanto não seja ainda de emprego generalizado na doutrina dos processualistas, a locução crise jurídica é muito expressiva e representa a matéria-prima do lavor dos operadores do processo. Crise é dificuldade, é perigo, risco. Crises jurídicas são momentos de perigo nas relações entre pessoas ou grupos, suscetíveis de serem normalizadas pela imposição do direito material.A mais simples dessas situações da vida, que o sujeito lamenta ao demandar em juízo, é a crise de certeza, representada por dúvidas objetivas criadas no meio social no tocante a direitos e obrigações ou à existência, inexistência ou modo-de-ser de relações jurídicas (p.ex.: o suposto devedor afirma em público que nada mais deve porque já pagou ou porque nunca foi devedor, enquanto o outro sujeito afirma que é credor e continua sendo porque nada recebeu). A tutela jurisdicional adequada para dirimir essa situação da vida das pessoas é a que a ordem processual outorga mediante as sentenças meramente declaratórias. Essas sentenças de mérito não alteram situações jurídicas nem mandam pagar, entregar, fazer ou não fazer - nem preparam alguma futura execução. Simplesmente afirmam ou negam a existência de direitos, obrigações etc., caracterizando pois a tutela meramente declaratória. Consiste essa tutela na oferta de um bem juridicamente relevante na vida das pessoas em sociedade, que é a certeza jurídica - certeza da existência ou certeza da inexistência da relação jurídica substancial, ou ainda certeza quanto ao modo-de-ser dessa relação (valor da obrigação, condições sua exigibilidade etc.) (supra, n. 39 e infra, n. 904). Onde havia a crise de certeza, como efeito da sentença meramente declaratória passa a haver certeza.Outra situação para a qual se busca solução em juízo é a crise de adimplemento, ou seja, a possível existência de algum direito insatisfeito porque o sujeito a quem cumpriria adimplir deixou de fazê-lo e o outro sujeito insiste em receber. Se realmente existir o direito afirmado pelo autor, será necessário que uma sentença declare essa existência e com isso chame o obrigado ao adimplemento sob pena de suportar futura execução. Tal é a função da sentença condenatória, que em si mesma não oferece tutela efetiva e plena porque a satisfação do direito irá depender de um ato do próprio obrigado (adimplemento) ou da realização da execução forçada. Persistindo o inadimplemento, a tutela efetiva e plena virá no processo de execução e mediante o ato de entrega, que a caracteriza. Essa é a tutela condenatório-executiva que, como se vê, o sistema processual ministra em dois tempos distintos (a sentença e depois a execução) (infra, n. 911).A tutela puramente executiva é juridicamente adequada nos casos em que o sujeito tem à sua disposição a execução forçada sem a necessidade de percorrer um prévio processo de conhecimento nem portanto obter sentença condenatória. Esses casos são aqueles em que o crédito é amparado por algum título executivo extrajudicial (nota promissória, contrato de hipoteca etc.:

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CPC, art. 585). Está claro que a tutela executiva se situa no campo das medidas debeladoras de crises de adimplemento.Tem-se tutela executiva, também, pela via do processo monitório. Não é tutela condenatório-executiva, como nos casos ordinários - em que a pessoa deve passar primeiro pelo processo de conhecimento, ali obtendo a sentença de condenação e só depois, com base nela, promover a execução forçada, num segundo processo; mas também não é tutela executiva pura, porque o sujeito não dispõe previamente de um título executivo, mas simplesmente de um documento não elencado como tal e sem os requisitos deste (CPC, art. 1.102-a). Num só processo ele obtém o título executivo (mandado de pagamento ou entrega) e ali mesmo prossegue, executando (art. 1.102-c). É portanto, uma tutela monitório-executiva. Mas o resultado final, tanto quanto na tutela condenatório-executiva ou na tutela executiva pura, é sempre a obtenção final do bem.Para a solução de situações da vida caracterizadas como crises das situações jurídicas a ordem processual oferece a tutela constitutiva, que consiste na criação, modificação ou extinção de alguma relação jurídica entre os litigantes (v.g., a sentença que concede a separação judicial, a que anula o contrato ou a que adjudica a propriedade de um imóvel ao autor). Essa categoria de tutela jurisdicional tem cabimento quando o direito material estabelece o direito do litigante a uma modificação jurídica dessa ordem. A tutela constitutiva é a mais perfeita das que têm lugar no processo de conhecimento, porque a sentença já traz em si mesma a sua própria efetivação e o resultado desejado é produzido por ela própria, sem necessidade nem cabimento de processo executivo e sem contar, em momento algum, com a disposição do obrigado a obedecer ou a cumprir (anulado o contrato, ele já não existe; passada em julgado a sentença de separação judicial, as partes já estão separadas).Pelo aspecto das técnicas processuais, em resumo, a tutela efetiva e plena, capaz de debelar por completo a crise jurídica lamentada pelo demandante, será (a) meramente declaratória, (b) constitutiva ou (c) executiva. A tutela executiva será executiva pura, quando concedida mediante o emprego exclusivo do processo de execução (títulos executivos extrajudiciais); ou condenatório-executiva, quando concedida em dois tempos, mediante a realização de dois processos (o condenatório e o executivo)'; ou ainda monitório-executiva, quando é o resultado de um processo em que se produz o título para a execução e se executa (processo monitório). A tutela constitutiva e as executivas de toda ordem são satisfativas, porque acrescem ao patrimônio do sujeito algo mais que a mera certeza .z A tutela condenatória não é satisfativa e não é tutela plena, porque nada- acresce ao patrimônio do destinatário.Examinando o sistema processual pelos resultados que é capaz de oferecer em face das diferentes situações da vida trazidas em busca de remédio, tem-se que resumidamente elas são três e três são os possíveis resultados da jurisdição, assim dispostos: a) crise de certeza, tutela declaratória, resultado certeza; b) crise de situações jurídicas, tutela constitutiva, resultado modificação jurídica; c) crise de adimplemento, tutela executiva, resultado atribuição do bem da vida.

59. tutela preventiva, reparatória ou sancionatória - tutela inibitória - tutela específica ou inespecífica (ressarcitória)

Sempre pela óptica da natureza dos resultados jurídico-materiais oferecidos, a tutela jurisdicional será preventiva, reparatória ou sancionatória. Essa divisão tem como critério os modos como a tutela incide na vida das pessoas, em relação às violações já sofridas ou ainda iminentes - e sempre segundo critérios ditados pelo direito substancial.A tutela preventiva consiste em evitar a violação de direitos e criação ou agravamento de situações desfavoráveis. Se a situação lamentada na demanda é o perigo ou iminência de que essas situações venham a ocorrer e se consumem danos ou agravamentos, há hipóteses em que a lei material predispõe meios de evitá-los (p.ex., condicionando o sujeito que está instalando um parque industrial a fazê-lo com cautelas suficientes a evitar a dispersão de partículas nocivas ao meio-ambiente). Quando a prevenção do dano é feita mediante o veto a alguma conduta e condenação do sujeito a abster-se, tem-se a tutela inibitória (ação de nunciação de obra nova etc. ).

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NOTA:

l. Ou três, no caso de ser necessária a liquidação de sentença (CPC, arts. 603 e 605-610).2. O vocábulo património está empregado em seu significado mais amplo, equivalendo a acervo de direitos, ou esfera jurídica.

Quando já consumados os atos comissivos ou as omissões lesivas, resta dar remédio à situação criada (repará-la), o que o direito material manda que se faça mediante recondução dos sujeitos, na medida do possível, ao estado precedente à transgressão. Tal é a tutela reparatória, que se distingue da preventiva justamente porque tem cabimento com o fito de restabelecer situações, não de prevenir transgressões. São exemplos dessa categoria a tutela possessória, consistente em devolver ao titular o bem apossado por outrem; o mandado de segurança, fazendo com que a autoridade administrativa reintegre no cargo o funcionário demitido sem defesa; ou o caso mais simples da sentença, seguida de execução, com que o credor obtém coisas ou dinheiro devidos etc.Sempre que jurídica ou materialmente a tutela específica não seja possível - e só mesmo quando não o for - tem lugar a tutela ressarcitória, que é modalidade da tutela reparatória. Ela consiste em propiciar dinheiro em lugar do bem ou da situação subtraída ao demandante, em casos como a perda ou destruição do bem devido, a alienação a terceiro do imóvel prometido à venda (sem que a promessa haja sido levada a registro) etc. O direito moderno vem progressivamente impondo a tutela específica, a partir da idéia de que na medida do que for possível na prática, o processo deve dar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter. Essa sapientíssima lição (Giuseppe Chiovenda), lançada no início do século, figura hoje como verdadeiro slogan da moderna escola do processo civil de resultados, que pugna pela efetividade do processo como meio de acesso à justiça e proscreve toda imperfeição evitável. A Reforma do Código de Processo Civil deu especial ênfase à prioridade da satisfação específica dos direitos,.municiando o juiz de severíssimos poderes destinados a obter o cumprimento das obrigações de fazer ou de não-fazer ou, de todo modo, a oferecer ao credor um resultado prático equivalente ao cumprimento - sempre com a expressa advertência de que a solução pecuniária só se admitirá por opção do próprio credor ou quando impossível a satisfação in natura (art. 461, caput e §14).Já antes da Reforma, a jurisprudência brasileira corrigiu um erro e uma injustiça que vinham sendo perpetrados, consistentes em decidir que, não estando registrado o contrato de promessa de compra-e-venda, o adquirente não teria direito à adjudicação compulsória mas a mera indenização. Hoje é pacífica a solução tecnicamente correta e eticamente justa, com os tribunais concedendo a adjudicação compulsória independentemente de prévio registro e somente respeitando eventuais direitos de terceiros.Há situações, ainda, em que o direito material oferece à parte inocente o acesso a uma situação jurídica nova, em razão da conduta injurídica de outro sujeito. É o caso da resilição do contrato por inadimplemento (CC, art. 1.092, par.); ou da anulação de ato administrativo porque realizado de modo contrário à lei e danoso ao sujeito que vem ajuízo reclamar (Súmula 473 STF); ou da separação judicial por conduta desonrosa ou grave violação a deveres do matrimônio. Tal é a tutela sancionatória, caracterizada pela imposição de medidas de repressão, verdadeiros castigos a certas condutas indevidas.3Em resumo, pelo modo como incide na vida ou patrimônio das pessoas segundo os preceitos do direito material, a tutela jurisdicional será (a) preventiva, (b) reparatória ou (c) sancionatória. A tutela preventiva consiste em meios destinados a resguardar direitos contra violações iminentes, o que se faz diretamente mediante a imposição de medidas processuais ou pela imposição de condutas ao obrigado - qualificando-se nesse caso como inibitória. A tutela reparatória será específica quando proporciona ao sujeito o próprio bem a que tinha direito; ou ressarcitória, consistente em propiciar dinheiro em substituição ao bem (tutela inespecífica, genérica, pecuniária). Num só processo podem cumular-se tutelas de duas ou mais naturezas: p.ex., a

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inibitória, consistente no impedimento a prosseguir em determinada conduta, em cúmulo com a ressarcitória pelo dano já causado.

NOTA:

3. A tutela sancionatória aqui descrita não se confunde com aquela representada pela execução forçada (que também se qualifica como sancionatória), dado que a sanção existente nesta é categoria processual e não de direito substancial (sanção executiva é a invasão do patrimônio do devedor).

60. entre a tutela individual e a coletiva

O direito moderno, por imposição da aglutinação de interesses supra-individuais na sociedade de massa, tende a ser um direito da coletividade e não mais apenas direito dos indivíduos, como nos moldes tradicionais. É das últimas décadas do século XX a intensa legislação de apoio aos valores do meio-ambiente, da cultura e da história, de proteção aos consumidores como grupo em que se concentram interesses homogêneos etc. - tudo se reconduzindo ao conceito amplo de direitos e interesses transindividuais.Da disciplina jurídico-substancial dessas relações supra-individuais nasceu a necessidade de um direito processual supraindividual. No Brasil o movimento teve início em 1985, com a edição da Lei da Ação Civil Pública, seguida da Constituição Federal de 1988 (que instituiu o mandado de segurança coletivo), do Código de Defesa do Consumidor, do Estatuto da Criança e do Adolescente etc. As ações coletivas, de que são titulares o Ministério Público e certos entes dotados de legitimação adequada segundo a lei (especialmente associações fundadas há mais de ano e tendo o objetivo estatutário de defesa de determinados direitos e interesses de massa: cfr, p.ex., CDC, art. 82; LACP, art. 54), visam à tutela de classes, categorias ou grupos de pessoas acima da proteção individual de cada um de seus componentes. Tal é o significado da locução transmigração do individual para o coletivo, em uso na doutrina brasileira moderna (Barbosa Moreira).Essa farta legislação é o reflexo brasileiro de uma das ondas renovatórias que nesta segunda metade de século atingiram o processo civil de origem romano-germânica, tradicionalmente apegado a certas premissas individualistas como a da legitimidade individual para demandar em juízo (ninguém pode defender em juízo direito alheio, a menos que seja seu representante: CPC, art. 62) e a da rigorosa limitação subjetiva da coisa julgada, que jamais poderia aproveitar nem prejudicar quem não houvesse sido parte no processo (art. 472) (supra, n. 42). Tendo por modelo as class actions do direito norte-americano, apercebeu-se o legislador brasileiro de que é socialmente útil afrouxar racionalmente essas limitações subjetivas, para que o exercício da jurisdição - e portanto a tutela jurisdicional - possa chegar a campos antes não cobertos por ela.Começou pela preocupação com valores ambientais, mediante a percepção de que o meio-ambiente e sua higidez são patrimônio comum dos habitantes de um bairro, de uma cidade, região, país ou mesmo do mundo inteiro, sem pertencer particularmente a nenhum indivíduo. Vigentes os padrões tradicionais da tutela exclusivamente individual (CPC, art. 6-Q), não se cogitava da reação de qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos às lesões que se perpetrassem contra os valores ambientais, o que os deixava completamente a descoberto de qualquer proteção efetiva. Foi assim que, no ano de 1985, chegou-se ao primeiro diploma significativo com normas destinadas à tutela supra-individual. A lei n. 7.347, de 24 de julho daquele ano (Lei da Ação Civil Pública) declara-se destinada a oferecer meios de tutela jurisdicional ao meio-ambiente e também a outros valores (artísticos, estéticos, históricos, turísticos e paisagísticos - culturais, enfim). Instituiu a legitimidade daqueles órgãos representativos, a partir da observação de que, embora fosse imprudente permitir iniciativas dessa ordem a todo indivíduo ou cidadão como tal (riscos de demandas maliciosas motivadas por interesses pessoais), era positiva a experiência norte-americana da legitimacy of representation outorgada a entidades intermediárias como essas.' Foi assim que esses interesses e direitos absolutamente difusos - pertencentes a todos os membros da comunidade mas indivisíveis e insuscetíveis de serem atribuídos a titulares

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individualizados - passaram a contar com tutela jurisdicional preventiva (adequar-se ou cessar atividades), reparatória (recompor o ambiente lesado) ou mesmo ressarcitória (indenização destinada a um fundo instituído para custear medidas de proteção ao meio-ambiente).

NOTA:4. No sistema das class actions, também o indivíduo pode ser havido por legitimado a pleitear pelo grupo (ideological plaintiff) mas sua idoneidade a tanto é aferida caso a caso pelo juiz, o qual emite um certificado (certification) com o qual admite a produção de efeitos coletivos por provocação individual.

A tutela jurisdicional coletiva aos consumidores como massa de pessoas não individualizadas - mas sempre ligadas por algum interesse comum' - sobreveio em 1990 com a lei n. 8.078, de 11 de setembro desse ano, que é o Código de Defesa do Consumidor. São admitidas a demandar em juízo na defesa dos consumidores as mesmas entidades legitimadas às ações civis públicas ambientais, exigindo-se sempre que, além do requisito da preconstituição, as associações tenham tal defesa como objetivo estatutário. Expressamente, a lei institui a ação civil pública para a defesa da massa de consumidores em seus direitos difusos (propaganda enganosa dirigida a um público indeterminado), coletivos (como os dos consumidores de determinado produto) e individuais homogêneos (massa de consumidores lesados por determinado produto ou serviço). A tutela que por essa via se concede também será preventiva, reparatória especifica ou ressarcitória, conforme o caso - com a peculiaridade de que a última poderá beneficiar indivíduos lesados ou destinar-se a um fundo destinado à proteção da massa de consumidores (art. 100). A sentença que julga uma demanda de tutela a direitos e interesses difusos tem eficácia erga omnes, ou seja, impõe-se a todos com o mais absoluto caráter de universalidade. A que decide sobre direitos e interesses coletivos impõe-se ultra partes, atingindo todos os membros do grupo, associação, entidade etc., a que remontarem tais direitos (v g., os freqüentadores de um cinema no qual a sentença mandou que se instalassem equipamentos de segurança). A sentença genérica que reconhece a existência de direitos individuais homogêneos favorece a todos os possíveis lesados - a quem compete comparecer depois em juízo, individualmente, com a demonstração do dano sofrido (art. 98); se a demanda tiver sido julgada improcedente, cada um daqueles que se afamam lesados continua autorizado a demandar individualmente em juízo, sem que a autoridade da coisa julgada incida sobre a sentença que assim julgou (art. 103, inc.111).

NOTA:5. Para fixar critérios definidores dessas ligações que caracterizam os direitos supra-individuais (respectivamente, difusos, coletivos ou individuais homogêneos), fala o Código de Defesa do Consumidor em "circunstâncias de fato ", "relação jurídica base" e "origem comum" dos direitos: v. art. 81.

São direitos individuais homogêneos, ou acidentalmente coletivos (Barbosa Moreira), aqueles que têm por titulares pessoas que poderão ser individualizadas; mas, sendo todos eles oriundos do mesmo fato (produto lesivo) e sendo significativamente numerosos os indivíduos lesados, o impacto de massa decorrente da lesão levou o legislador a dar-lhes trato processual coletivo.Vê-se portanto que por dois aspectos essenciais se caracteriza a técnica processual empregada para a tutela referente aos valores transindividuais: a outorga de legitimidade ao Ministério Público e outras entidades para agirem em juízo e a extensão dos efeitos da sentença e da sua autoridade de coisa julgada a sujeitos que não fizeram parte do processo mas que a lei considera legitimamente representados pelas entidades autorizadas a agir. É óbvio também que a tutela coletiva não pretende ser exclusiva, com banimento da individual: a própria legislação específica ressalva explicitamente a admissibilidade das demandas individuais mesmo depois de proposta a coletiva e ainda que esta venha a ser julgada improcedente (CDC, art. 103, § 24) - o que confirma a intenção de manter a tutela individual.A instituição e intensa prática das ações civis públicas é um significativo aspecto da tendência expansiva caracterizada como universalização da jurisdição, consistente em postular a redução

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dos resíduos de conflitos não-jurisdicionalizáveis - e que também é uma nota do direito processual moderno (supra, n. 42).

61. meios processuais adequados

Atuando no campo que lhe compete, o direito processual predispõe meios hábeis à imposição das normas, soluções e resultados indicados pelo direito material. Para tanto, concebem-se técnicas e oferecem-se espécies diferentes de processos, provimentos, procedimentos variáveis mediante a necessidade de cada espécie de situações da vida comum etc. - tudo a partir de uma regra de adaptabilidade que é inerente à condição instrumental do processo (supra, nn. 47ss.). A instituição de procedimentos especiais tem a finalidade de adequar às peculiaridades de certas situações regidas pelo direito material o iter a ser percorrido entre a demanda inicial e a sentença que julgará a pretensão do autor. 6Se ele pretende remover a mora do credor alegando que este se recusa a receber o que lhe é devido, proporá a chamada ação de consignação em pagamento e o juiz, deferindo-lhe a inicial, conceder-lhe-á o prazo de cinco dias para efetivar o depósito, que o réu aceitará ou não - no primeiro caso extingüindo-se o processo e no segundo, prosseguindo com a defesa que este formular (CPC, arts. 890 ss.); se se tratar de estabelecer ou aviventar limites entre dois imóveis procede-se como mandam os arts. 950981 do Código de Processo Civil (ação demarcatória), com a descrição inicial dos imóveis demarcandos, levantamento da linha divisória por agrimensores em trabalho de campo, homologação do laudo pelo juiz etc.A idéia de procedimentos especiais no sistema do processo de conhecimento é metodologicamente associada à visão instrumental do processo, dada a necessidade de oferecer meios realmente aderentes às variadíssimas situações que ocorrem na vida comum das pessoas. É sintomático o fato de o Código de Processo Civil, na parte em que disciplina os procedimentos especiais, dedicar um número muito grande de dispositivos (seguramente, a maioria dos que compõem esse Livro 1V) à definição das hipóteses de cabimento de cada um - muito mais que à descrição de atos e formas caracterizadores dos procedimentos diferenciados. A grande preocupação do legislador brasileiro foi, como por ali se percebe, a de tipificar situações da vida pertinentes a cada uma das tutelas assim especificadas, preordenando a cada uma dessas crises jurídicas uma dessas espécies de tutela - tudo com grande influência de conceitos e categorias de direito material.

NOTA:6. Ao lado do procedimento comum, que pode ser ordinário ou sumário (CPC, arts. 272, 274, 275 etc.), há dezenas de procedimentos especiais descritos no Código de Processo Civil e em leis especiais, sendo classificados em procedimentos especiais de jurisdição contenciosa ou de jurisdição voluntária (CPC, L. IV, arts. 890 ss.) (infra, n. 634).

No trato dos procedimentos especiais, curva-se a lei brasileira a longa tradição romanística e continua falando em ações (ação de consignação em pagamento, ação demarcatória, ação de usucapião), como se a ação comportasse tais qualificações jurídicomateriais e como se ela fosse típica no direito moderno. Variam as espécies de tutela jurisdicional, mas a ação, como poder de atuar em juízo e exigir o provimento de mérito, não é consignatória, não é demarcatória, não é de usucapião etc. As actiones eram típicas no direito romano mas o sistema moderno é diferente, pois a garantia constitucional da ação constitui uma cobertura geral dos direitos, independentemente do fundamento jurídico substancial das pretensões (infra, nn. 557-558). Embora fale em ações, o que o Livro IV do Código de Processo Civil mais contém é a pormenorizada disciplina de certas tutelas jurisdicionais específicas a serem dispensadas mediante o emprego dos procedimentos que ali são descritos.

62. tutelas jurisdicionais de urgência

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Como facilmente se compreende, ordinariamente o juiz primeiro estabelece contato com a causa e seus fundamentos, entre os quais os de fato e a prova, para depois julgar. Assim é a linha geral dos processos de conhecimento (que devem terminar com um sentença de mérito), com óbvias razões para que o conhecimento seja o natural apoio do julgamento.Todo procedimento, no processo civil de conhecimento brasileiro, inclui certos elementos estruturais indispensáveis, que são a demanda, a citação, a resposta, a instrução e a sentença (infra, n. 972).Mas há situações urgentes em que, a esperar pela realização de todo o conhecimento judicial, com a efetividade do contraditório, defesa, prova e discussão da causa, os fatos podem evoluir para a consumação de situações indesejáveis, a dano de algum dos sujeitos. O tempo às vezes é inimigo dos direitos e o seu decurso pode lesá-los de modo irreparável ou ao menos comprometê-los insuportavelmente (Carnelutti).Há situações em que o direito perecerá por inteiro quando chegado o momento do mal definitivo, sem qualquer utilidade da tutela específica. Exemplos: a) o concurso público vem a realizar-se antes que o juiz conceda segurança para que seja aceita a inscrição do candidato excluído pela comissão de concurso; b) o protesto de uma cambial é realizado antes da medida judicial destinada a sustá-lo; c) testemunha importante para o esclarecimento dos fatos vem a falecer antes de chegado o momento procedimental adequado a tomar-lhe o depoimento.Em outras situações não se consuma uma lesão definitiva, mas as angústias e prejuízos da espera, somados ao estado de privação que se prolonga, constituem males a serem evitados. Isso acontece, por exemplo, com o retardo na tutela jurisdicional referente a alimentos devidos entre ascendentes e descendentes.Para remediar tais situações aflitivas, a técnica processual excogitou certas medidas de urgência, caracterizadoras da tutela jurisdicional antecipada e da chamada tutela cautelar Trata-se de técnicas teoricamente diferentes, endereçadas a situações diferentes, mas todas têm o comum objetivo de neutralizar os efeitos maléficos do decurso do tempo sobre os direitos.Existe uma diferença conceitual entre (a) as medidas que oferecem ao sujeito, desde logo, a fruição integral ou parcial do próprio bem ou situação pela qual litiga e (b) as medidas destinadas a proteger o processo em sua eficácia ou na qualidade de seu produto final. As primeiras, oferecendo situações favoráveis às pessoas na vida comum em relação com outras pessoas ou com os bens, integram o conceito de tutela jurisdicional antecipada. As segundas, qualificadas como medidas cautelares, resolvem-se em medidas de apoio ao processo - para que ele possa produzir resultados úteis e justos - e só indiretamente virão a favorecer o sujeito de direitos.As tutelas antecipadas foram instituídas no direito brasileiro, com foros de generalidade, pelo novo art. 273 que a Reforma trouxe ao Código de Processo Civil. Ao lado das antecipações atípicas ali disciplinadas há também clássicas hipóteses de antecipação, firmemente instaladas na ordem processual, como são as liminares em processos possessórios, em mandado de segurança, ação popular, ação civil pública etc. Uma sustação de protesto cambiário é medida antecipatória de tutela, embora costumeiramente tratada como medida cautelar.As medidas cautelares estão disciplinadas no Livro III do Código de Processo Civil (arts. 796 ss.). Existem as cautelares tipificadas; em lei (produção antecipada de prova, arresto, seqüestro, busca-e-apreensão etc), sem prejuízo de possibilidade de concessão de medidas atípicas ou inominadas, aderentes à realidade de cada caso (poder geral de cautela: art. 798).Apesar das diferenças conceituais relacionadas com a destinação de umas e outras, as antecipações de tutela e as medidas cautelares têm um fortíssimo elemento comum de agregação, que induz a integrá-las numa categoria só - a saber, na categoria das medidas de urgência. No estágio atual do pensamento processualístico, que se endereça a resultados sem se deter em desnecessários pormenores conceituais e puramente acadêmicos, o que importa é pensar nas medidas cautelares e nas antecipatórias de tutela jurisdicional como modos de combate a esse inimigo dos direitos, que é o tempo. Daí legitimar-se o destaque à categoria medidas de urgência, pondo em plano inferior as distinções entre suas espécies.As tutelas jurisdicionais de urgência têm em comum, ao lado dessa sua destinação, (a) a sumariedade na cognição com que o juiz prepara a decisão com que as concederá ou negará e (b) a revocabilidade das decisões, que podem ser revistas a qualquer tempo, não devendo criar

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situações irreversíveis. Quer se trate de antecipar a tutela ou de acautelar o processo, a lei não exige que o juiz se paute por critérios de certeza,? mas pela probabilidade razoável que ordinariamente vem definida como fumus boni juris (CPC, art. 273, art. 814 etc.). Entre fazer bem feito e fazer logo, em situações de urgência o juiz opta por fazer logo, deixando o juízo definitivo do bem ou do mal para as sossegadas investigações destinadas ao julgamento do mérito da causa (Calamandrei). E, por isso mesmo que as medidas de urgência se emitem com fundamento numa cognição incompleta e superficial, é natural que elas não sejam definitivas, não vinculem o juiz quando vier a julgar a própria causa (sentença de mérito), não sejam suscetíveis de obter a autoridade da coisa julgada e, portanto, comportem revisão sempre que ele se convença de que a parte não tinha o direito que num primeiro momento parecia ter.

NOTA:

7. Sabendo-se que a certeza absoluta não é algo ao alcance do conhecimento humano. A própria "certeza " que se exigiria para os julgamentos definitivos de mérito não passa de um grau elevado de probabilidade (supra, n. 55).

Assim contidas numa ampla categoria unitária, as medidas cautelares e as antecipações de tutela regem-se por uma disciplina também unitária, que só em pontos muito específicos se bifurca em regras privativas de cada uma das espécies. Quando inseriu no direito brasileiro a ampla possibilidade de antecipação de tutela em casos não tipificados (de visível analogia com o poder geral de cautela estabelecido no art. 798), a Reforma do Código de Processo Civil limitou-se a um só artigo de lei e seus parágrafos (art. 273). Pouco mais fez do que fixar os pressupostos genéricos da antecipação (urgência e probabilidade), exigir fundamentação da decisão concessiva e imprimir-lhe caráter de provisoriedade e reversibilidade. Mas a estreitíssima analogia com as providências cautelares - e tão estreita que ambas se colocam numa só categoria unitária e ainda grassa muita dificuldade em distingüi-las conceitualmente, nos tribunais e mesmo em escritos de pensadores muito autorizados - autoriza folgadamente a transposição, para as medidas antecipatórias, da disciplina geral da cautelaridade, contida no Livro 111 do Código de Processo Civil (arts. 796 ss.).Em conseqüência, (a) também as antecipações podem ser concedidas em caráter preparatório ou incidente (art. 796), (b) a competência para concedê-las em caráter preparatório é a do juiz competente para conhecer da ação principal" (art. 800), (c) elas poderão ser concedidas depois ou antes da contestação e mesmo inaudita altera parte (art. 804), (d) responsabiliza-se objetivamente o beneficiário da antecipação pelos prejuízos que ela causar (art. 811) etc. Uma regra inerente às medidas cautelares, que às antecipatórias não se aplica, é a da concessibilidade de-oficio - porque estas não se destinam a tutelar o processo, como aquelas, e conseqüentemente não se configura a fundamental razão de ordem pública que manda o juiz ditar cautelas incidentes mesmo sem que a parte lho requeira.

NOTA:8. Dispensando-se a urgência quando for o caso de reprimir expedientes protelatórios da parte contrária (art. 273, inc. II).

A unificação sistemática das tutelas de urgência exclui a utilidade prática de indagações acerca da natureza de certas medidas a que alguns atribuem natureza cautelar e outros, antecipatória. Inseridas no contexto das medidas de urgência, sem a preocupação por investigar em qual espécie se contêm, dispensam-se os requintes da precisão conceitual.Também a execução provisória constitui tutela antecipada e cabe em casos excepcionais (CPC, arts. 520, incs. I-IV, c/c art. 588 etc.), apoiando-se o legislador (e não o juiz, como nos casos acima) na boa probabilidade militante a favor do exeqüente graças à sentença favorável que obteve e não-obstante o recurso interposto pela parte adversa. A admissibilidade de execução provisória é excepcional no sistema e somente se dá nos casos em que a lei nega efeito suspensivo ao recurso interposto (sempre, art. 520).

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63. tutelas jurisdicionais diferenciadas - cognição sumária (infra, nn. 771, 774, 777 e 976)Ordinariamente, para decidir o juiz interpreta os fatos alegados pelas partes (causa de pedir e fundamentos da defesa), insere-os nas categorias jurídico-substanciais adequadas (responsabilidade civil contratual ou extracontratual, mútuo, locação, comodato etc.), interpreta também a lei pertinente e investiga por todos os meios oferecidos pela ordem processual a ocorrência ou inocorrência dos fatos alegados. Vale-se para tanto da prova, que constitui verdadeira mola do processo de conhecimento, ou meio processual destinado a perquirir a verdade (a prova, meio instrumental indispensável: infra, nn. 771-772). Isso é conhecer e essa atividade leva o nome de conhecimento, ou cognição. Todos os pontos sobre os quais o juiz busca inteirar-se suficientemente para julgar formam o objeto do conhecimento do juiz (infra, n. 774).Em certos litígios marcados pela necessidade de uma tutela jurisdicional particularmente tempestiva - e assim capitulados pela lei - o juiz é dispensado de realizar uma cognição plena, ou seja, ele é autorizado a decidir com fundamento em investigações menos cuidadosas. Tal é a cognição sumária, que se limita à investigação das alegações trazidas pelo autor, diferindo-se a momento futuro o eventual exame dos fundamentos de defesa (como no processo monitório); ou que se contenta com o exame menos profundo das alegações a serem consideradas no julgamento (como no processo dos juizados especiais). Na primeira hipótese tem-se uma cognição sumária porque incompleta; na segunda, sumária porque superficial (Chiovenda). Numa, falta a plenitude da extensão horizontal de uma investigação completa; noutra, a profundidade vertical de uma investigação exauriente (Watanabe) (infra, n. 777).Tem-se cognição sumária (a) no processo monitório, em que o mandado de pagamento ou entrega é emitido à vista das alegações do autor, sem sequer aguardar as do réu e limitando-se ao exame do documento trazido por aquele; b) na execução por título extrajudicial, em que o juiz se limita a controlar a presença de um título executivo sem fazer perquirições sobre a efetividade do crédito e, muito menos, das possíveis razões defensivas do demandado; c) no processo dos juizados especiais, em que não há perícia nem se admitem certas espécies de resposta do réu (particularmente, denunciação da lide e chamamento ao processo: WE, art. 10Q); d) no procedimento sumário, onde também se excluem as intervenções de terceiro e a ação declaratória incidental (CPC, art. 280, inc. 1: (infra, nn. 1.242-1.243) etc.

64. escolha da tutela jurisdicional adequada

Da existência de provimentos jurisdicionais distintos, portadores de tutelas diferentes, bem como processos e procedimentos diferenciados segundo as necessidades da específica tutela a preparar, decorre a imperativa necessidade de fazer escolhas adequadas ao ingressar em juízo com pedido de tutela jurisdicional. Não basta verificar a necessidade da tutela jurisdicional em si mesma, a qual constitui conseqüência do estado de insatisfação de uma pretensão do demandante, sendo-lhe proibida a autotutela. Caso a caso, é também indispensável examinar a própria pretensão e seus fundamentos, à luz do direito material, para saber qual a solução oferecida por este. O pedido, para ser viável, deve ser feito segundo essa escolha adequada.O cônjuge que lamenta a prática de grave violação aos deveres do matrimônio pelo outro cônjuge poderá ter direito à tutela consistente na separação judicial mas nunca, com base nesse motivo, à anulação do casamento. É o direito material que assim estabelece, não o processual (CC, arts. 209-210; Lei do Divórcio, art. 54).Em princípio essas escolhas adequadas não comportam opções segundo a preferência do sujeito interessado, devendo ser fiéis aos preceitos de direito material. As margens deixadas à escolha pessoal são excepcionais e bem tipificadas na lei substancial. Alguma liberdade de escolha existe, em primeiro lugar, nas obrigações alternativas (CC, arts. 884-888) e nas obrigações de dar coisa incerta (CC, arts. 874-877): se a escolha couber ao credor o sujeito a fará ao propor a demanda, cabendo-lhe então essa relativa margem de opção para a determinação da tutela jurisdicional a ser-lhe concedida se tiver razão. Existe ainda possibilidade de escolha no caso dos chamados direitos concorrentes, que se resolvem em diferentes

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conseqüências jurídicas estabelecidas pela lei material para um fato só, com a possibilidade de escolha peremptória pela parte.Exemplo clássico é a venda ad mensuram, verificando-se depois que as medidas do imóvel não correspondem às indicadas no contrato. Optará o comprador, na medida do possível, por pedir (a) a complementação da área (actio ex empto), (b) a redução do preço (actio quanti minoris) ou (c) a resolução do contrato (actio redhibitoria) (CC, art. 1.136). É claro que, satisfeito o comprador em uma dessas pretensões, extintos estarão todos os possíveis direitos concorrentes. 9

NOTA:9. Tal é o significado da tradicional máxima electa una via ad alteram non datur regressus perante o direito moderno. 0 simples ingresso em juízo com um dos pedidos admissíveis não inibe o comprador de postular um dos outros direitos concorrentes. Enquanto nenhum destes estiver satisfeito, todos eles existem. Impedir o julgamento de mérito em relação a qualquer deles transgrediria a garantia constitucional do controle jurisdicional (Const., art. 52, inc. XXXV).

65. espécies de processos

Da escolha jurídico-substancial adequadamente feita resultam conseqüências processuais de grande relevância, a principiar com a determinação da natureza do provimento jurisdicional cabível (cognitivo ou executivo, constitutivo ou condenatório etc.). Em técnica processual a natureza do provimento, por sua vez, dita a do processo, falando-se então em processo executivo em contraposição ao cognitivo e subclassificando-se este em meramente declaratório, constitutivo ou condenatório (em certos casos, mandamental: art. 461). Há também o processo monitório, em que se cria o título executivo e se executa o direito, sem julgamento do mérito (e por isso é que ele não se enquadra na categoria dos processo de conhecimento). E há o cautelar, pelo qual se preparam provimentos destinados a favorecer a tutela a ser dada em algum daqueles outros processos, ditos principais.Quem pretende a modificação de alguma situação jurídica pode pleitear a tutela constitutiva e não a condenatória; quem quer receber dinheiro pedirá tutela condenatória e não constitutiva (e depois, se for o caso, pedirá também a executiva) etc. Se optar pela complementação da área (CC, art. 1.139), o comprador levará ajuízo o pedido de sentença condenatória que imponha ao vendedor a obrigação de outorgar-lhe o domínio do que for necessário (ou mesmo sentença constitutiva que lhe outorgue desde logo esse domínio). Se quiser abatimento do preço já integralizado, pedirá sentença condenatória (condenação a restituir); se o preço não estiver integralizado bastará a tutela declaratória, com o reconhecimento de que a dívida para com o vendedor é menor. Se preferir a resolução do contrato, será caso de demanda constitutiva negativa, ou desconstitutiva.Quando se trata de definir a adequação da tutela cognitiva ou executiva, o critério é meramente processual e apóia-se na existência ou inexistência do título executivo (nulla executio sine titulo: CPC, arts. 583, 586). Processo executivo será sempre aquele em que se veicular a pretensão à tutela executiva. Para postular a tutela monitória é indispensável a exibição de documento idôneo, do qual se possa razoavelmente inferir a existência do crédito (art. 1.102-a).Processo de conhecimento, ou cognitivo, é aquele instaurado para processar e julgar pretensões a uma sentença de mérito, ou seja, à tutela cognitiva. Daí ser também chamado processo de sentença (infra, nn. 771 e 911). Mas a distinção entre provimentos condenatórios e constitutivos apóia-se preponderantemente em escolhas feitas em face do direito material, em nada influindo qualquer fator processual. A admissibilidade dos provimentos meramente declaratórios independe do modo como o direito material rege a situação descrita e está ligada ao pressuposto da incerteza objetiva (crise de certeza) (supra, n. 58).Quando se trata de determinar a adequação da tutela constitutiva é sempre invariavelmente o direito material que constitui fator decisivo: só pode ter lugar-essa tutela quando a alteração de uma situação jurídica constituir ditame da lei material. Se a solução não puder ser esta, terá cabimento a tutela condenatória ou a meramente declaratória. Mas para distinguir entre os casos

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de cabimento de uma ou de outra entre estas, o dado relevante é de fato e não de direito: crise de adimplemento no primeiro caso, crise de certeza no segundo.Constitui também modalidade de processo, distinta das tradicionais, o processo dos juizados especiais cíveis (causas de menor complexidade). O critério distintivo é inteiramente outro e apóia-se no modo especialíssimo como ali se relacionam seus sujeitos, caracterizando-se esse processo pela grande liberdade formal deixada às partes e maiores poderes do juiz. Perante os juizados especiais cíveis realizam-se processos cognitivos e executivos (lei n. 9.099, de 26.9.95, art. 14).Processo coletivo é aquele destinado à tutela jurisdicional coletiva (meio-ambiente, consumidor etc.) e caracteriza-se pelo redobrado espírito publicístico e grande amplitude dos provimentos que gera. O sistema admite processos coletivos de natureza cognitiva, cautelar e, em certa medida, executiva (excluída a execução coletiva de condenação genérica a favor de eventuais titulares de direitos individuais homogêneos, não-obstante o disposto no art. 98 do Código de Defesa do Consumidor).

66. disponibilidade e indisponibilidade nas escolhas

Porque o uso do instrumental jurídico-processual está na estrita dependência das soluções de direito material cabíveis e do processo e procedimento adequados a produzir os resultados postulados, a lei é rigorosa quanto à necessidade de escolher adequadamente a tutela a pleitear - seja nos casos em que não deixa margem alguma ao demandante, seja mesmo quando lhe dá alguma; exige também, rigorosamente, a correta escolha da espécie de processo pelo qual se pleiteia a tutela. Feita uma escolha inadequada, o processo não chegará a seu fim normal e tutela alguma será ministrada a quem a demandou.É o que sucede, se for pedida a anulação do casamento com base em transgressões posteriores à celebração, se for pedida tutela executiva sem estar o exeqüente munido de título executivo, se for pedido despejo sem existir locação etc.Existe alguma superposição entre a tutela condenatória e a meramente declaratória, com casos em que a lei permite a escolha do autor: quando a obrigação for exigível, ele optará entre uma e outra (CPC, art. 4-, par.). Permite-se ainda a escolha entre uma tutela diferenciada cabível e as chamadas vias ordinárias dispostas pelo Código de Processo Civil-(procedimento ordinário ou sumário): ainda quando admissível o mandado de segurança, ou o processo dos juizados especiais, ou o monitório, cabe ao demandante a legítima opção. Nesses casos e nesses limites, ele poderá, segundo seu próprio juízo de conveniência, optar pela espécie de tutela jurisdicional que preferir (infra, n. 949).Não existe, contudo, a possibilidade de optar pelo procedimento da preferência do autor. A determinação do procedimento adequado constitui ditame de ordem pública do processo, cujo desatendimento vicia a propositura da demanda e impede sua apreciação. A regra é a chamada indisponibilidade do procedimento, que em princípio deve levar o juiz a indeferir a petição inicial se escolhido procedimento inadequado e não for possível adaptar (CPC, art. 295, inc. V: infra, nn. 635 e 978). É excepcional a permissão de optar pelo procedimento ordinário, como requisito para a cumulação de demandas regidas por procedimentos diferentes (art. 292, § 24).A tendência é atenuar os rigores das conseqüências das escolhas inadequadas. Só se indeferem petições iniciais e só se extinguem processos se não for possível adaptar e se, tendo a causa sido processada por rito inadequado, disso tiver resultado prejuízo (a regra da instrumentalidade das formas: CPC, art. 245 - supra, nn. 61 e 64); além disso, o autor deverá sempre ser ouvido antes da eventual extinção do processo por esse motivo (infra, n. 878).

Título III - O PROCESSO CIVIL BRASILEIRO

Capítulo VI - O MODELO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

67. sistema processual e modelo processual - 68. o direito processual civil e o mito das famílias do direito - 69. elementos relevantes para a identificação do modelo processual civil - 70. o

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pensamento jurídico-processual brasileiro - 71. elementos para a identificação do modelo processual civil brasileiro no plano constitucional e no técnico-processual - 72. o modelo constitucional do processo civil brasileiro - 73. o modelo infraconstitucional do processo civil brasileiro (técnico-operacional)

67. sistema processual e modelo processual

Sistema é um conjunto fechado de elementos interligados e conjugados em vista de objetivos externos comuns, de modo que um atua sobre os demais e assim reciprocamente, numa interação funcional para a qual é indispensável a coerência entre todos. Sistema processual é um conglomerado harmônico de órgãos, técnicas e institutos jurídicos regidos por normas constitucionais e infraconstitucionais capazes de propiciar a sua operacionalização segundo o objetivo externo de solucionar conflitos.Um dado sistema processual, considerado pelo conteúdo específico das normas que o regem, pela concreta conformação dos órgãos que o operam e pelo modo-de-ser dos institutos encadeados em razão desse objetivo constitui um modelo processual. Tem-se por modelo processual, portanto, cada um dos sistemas processuais encontrados especificamente nos diversos lugares do mundo e em tempos diferentes. Falar em modelo processual é considerar um dado sistema processual pelos elementos que concretamente o identificam e diferenciam de outros no tempo e no espaço. Com essas premissas, o modelo processual civil brasileiro é o resultado do que dispõem as normas constitucionais e infraconstitucionais deste país com relação às técnicas e categorias jurídicas predispostas à solução de conflitos e às pessoas e conjuntos de pessoas encarregadas de pôr em ação as técnicas processuais.O Uruguai renunciou a ter um modelo processual próprio, ao praticamente transcrever em seu Código General del Proceso o Código de Processo Civil Modelo para a América Latina. Na utópica hipótese de todos os países integrantes do bloco seguirem o exemplo uruguaio, não mais teríamos modelos nacionais neste continente, mas apenas um modelo continental.

68. o direito processual civil e o mito das famílias do direito

Famosa doutrina propôs o enquadramento de todos os sistemas jurídicos do planeta em famílias, entendida cada uma destas como um bloco de ordenamentos jurídicos de países ocupantes de determinado espaço regional, ligadas a raízes e tradições comuns e portadoras de certas características mais ou menos constantes. Daí, entre outras, a família romano-gemânica, a da common law, a dos países socialistas etc. (Renê David). Nenhuma proposta de específico enquadramento familiar foi feita pelo autor com relação ao direito dos povos latino-americanos, cujos ordenamentos seriam destituídos de elementos que pudessem congregá-los em uma família. Pensou-se em associar esses sistemas jurídico-processuais aos da Europa continental, do qual recebem muita influência, sendo nitidamente romano-germânicas as raízes dos ordenamentos jurídicos da América de língua portuguesa e espanhola.Mas a própria idéia de agrupar o direito em famílias, conforme proposto naquela doutrina, já vem sendo posta em dúvida pelos juristas modernos, especialmente pelos processualistas. Esse ceticismo tem sido gerado pela observação das grandes e disseminadas diferenças existentes entre os sistemas processuais -mesmo no âmbito de regiões culturalmente mais ou menos homogêneas, como a América Latina. São facilmente perceptíveis as profundas discrepâncias existentes entre o processo civil de cada um dos países da área - os hispano-americanos cultivando intensos laços ibéricos que no Brasil já não existem e, mesmo entre eles, sentindo-se diferenças muito grandes que identificam cada um e os diferenciam entre si (cortes supremas com funções não-coincidentes, adoção ou rejeição do contencioso administrativo, opções políticas federativas ou unitárias, técnicas processuais diferenciadas etc.). Essas diferenças são facilitadas pela própria natureza do direito processual, cujas normas técnicas não têm origem necessariamente em sentimentos comuns do povo mas são criadas pelo legislador segundo critérios pragmáticos com vista ao melhor funcionamento dos mecanismos do processo (sem

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embargo de tenderem à universalidade os grandes princípios políticos do sistema, geralmente plantados em nível constitucional) (supra, n. 14).Mais realista, portanto, será sempre a apreciação do sistema processual de cada país pela soma de suas características próprias, destacando os pontos mais relevantes para a configuração de um modelo no plano político-constitucional e no plano técnico operacional do direito infraconstitucional.

69. elementos relevantes para a identificação do modelo processual civil

É praticamente impossível enunciar por critérios puramente objetivos os pontos que qualificam um sistema processual como modelo, sem subjetivismos e sem a mínima carga das preferências culturais ou axiológicas do analista. Por mais que se disponha a postar-se como puro e fiel observador - e até acredite que assim se comporta - ele jamais se liberta por completo de suas próprias preferências culturais e dos pressupostos axiológicos de sua cultura e de sua formação jurídica.Para quem se coloca em perspectiva instrumentalista, inerente ao método que se vai chamando processo civil de resultados, obviamente os elementos relevantes para essa reconstrução sistemática estarão muito longe de coincidir por inteiro com aqueles levados em conta por estudiosos ligados ao método tradicional, para quem os fundamentos axiológicos, sociais e políticos do processo não ocupam lugar de tanto destaque.Mesmo se partindo de uma visão do processo pelo seu ângulo externo, porém - com a premissa de sua inserção no sistema político da nação e de seu compromisso com certos escopos sociais e políticos a realizar - para um exame equilibrado é sempre indispensável dar também muita importância a certos aspectos técnicos da vida das instituições processuais: a grande utilidade das ideologias processuais reside na aptidão que tiveram a influenciar as técnicas do processo e direcioná-las aos objetivos escolhidos (supra, mi. 52-53).Para a reconstrução do modelo processual civil brasileiro, tão objetiva quanto possível e conduzida a partir dessas premissas, levam-se em conta elementos relativos ao estado da doutrina, aos fundamentos constitucionais do sistema e aos institutos processuais em si mesmos.

70. o pensamento jurídico processual brasileiro

A notória influência de Enrico Tullio Liebman na doutrina processual brasileira, como responsável pela instalação de um pensamento verdadeiramente científico antes inexistente, deixou certas marcas que até hoje, mais de meio século depois, ainda estão presentes e caracterizam o pensamento jurídico-processual nacional. Ele trouxe (a) o empenho no estudo da ação como instituto central do sistema, acompanhado da determinação dos pressupostos processuais como categoria autônoma e distinta na qual não se incluem as condições da ação, mais (b) a afirmação do processo como relação jurídica entre seus sujeitos principais, (c) a clara distinção entre sentenças de mérito e meramente terminativas, (d) a visão da coisa julgada como imutabilidade dos efeitos da sentença e não como efeito em si própria, (e) a nítida distinção entre os processos de conhecimento e de execução, (fl o conceito funcional de título executivo etc. Esses pontos e outros, até porque assimilados ao direito positivo pela edição do Código de Processo Civil de 1973, estão presentes na doutrina brasileira em geral. As divergências doutrinárias e conceituais existentes não são tantas, nem em tantos setores, que possam considerar-se capazes de comprometer a substancial unidade de pensamento reinante entre os processualistas brasileiros em geral. Discutem-se pontos periféricos ou de pormenor - como a configuração das condições da ação, o âmbito dos pressupostos processuais, a natureza do título executivo etc. - mas a estrutura do pensamento processual brasileiro é uma só e tem-se mantido constante.Nisso a doutrina brasileira diferencia-se das de outros países, até mesmo do que dizem os processualistas italianos modernos, que já não dão tanta importância à ação, às suas condições e seus elementos identificadores. Ela permanece distanciada dos alemães, que jamais se preocuparam em isolar as condições da ação dos pressupostos processuais, como requisitos de admissibilidade do julgamento do mérito. A doutrina brasileira tem por certa a existência de um

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trinômio de questões na composição do objeto do conhecimento do juiz, competindo-lhe decidir sobre o processo (pressupostos processuais e requisitos de regularidade processual), sobre a ação (suas condições) e sobre o mérito (os fatos, o valor da prova, o direito material) - enquanto que a tendência européia moderna é no sentido de expor somente os dados de um binômio (pressupostos processuais e mérito) (infra, rui. 727 e 775).Além disso e certamente por conta do modo como se estruturam os organismos judiciários brasileiros, a doutrina daqui trata todas as questões sobre distribuição das funções jurisdicionais no plano da competência, diferentemente do que se dá na Itália, p.ex., onde parte dessa problemática é tratada como questão de jurisdição.Também se acata com segura tranqüilidade a teoria da substanciação, com a generalizada convicção de que, da causa de pedir posta na demanda inicial, somente a narrativa dos fatos concorre para delimitar o âmbito da tutela jurisdicional possível, sendo autorizado o juiz a dar aos fatos narrados qualificação jurídica diferente da proposta pelo autor (infra, n. 946) - diferentemente do que se pensa em países europeus, em que prevalece o sistema da individualização (vinculação pelos fundamentos jurídico-materiais e não pelas circunstâncias de fato); dá-se muito valor aos deveres de impulso processual a cargo do juiz, em contraposição às tendências menos inquisitórias prevalentes lá onde o processo civil é encarado com menores pendores publicísticos (adversary system); criou-se um verdadeiro pensamento brasileiro em torno do litisconsórcio necessário e do unitário, distingüindo-se esses conceitos com precisão que em nenhum outro país se vê etc.Vista pelo aspecto global, a cultura processual brasileira apresenta um grande paradoxo metodológico decorrente da aceitação de conceitos e propostas técnico-processuais hauridas na obra de Mestres europeus, especialmente alemães e italianos, ao mesmo tempo em que nossa fórmula político-constitucional de separação dos Poderes do Estado tem muito mais do modelo norte-americano. Aqui, como nos países da common law, o controle dos atos da Administração é feito por juízes do Poder Judiciário, inexistente o contencioso administrativo que nos principais países europeus existe. Com esse feitio, o direito brasileiro deveria repelir certas idéias presentes na doutrina européia e ligadas à distinção entre justiça ordinária e justiça administrativa (o contencioso administrativo). A presença de litígios fundados em direito administrativo, público por excelência, deveria afastar-nos, por exemplo, da clássica definição do direito processual civil como "conjunto de normas e princípios disciplinadores do exercício da jurisdição, da ação e da defesa em matéria civil" (Liebman). Sabido que a instrumentalidade ao direito material é o canal pelo qual o processo recebe legítimas influências deste (Cappelletti), é natural que o processo civil nacional seja muito mais publicista e portanto caracterizado por graus de indisponibilidade que não estão presentes no processo civil ordinário (não administrativo) de países europeus. É conhecida a tendência dos europeus modernos a mitigar diferenças entre o processo civil ordinário e o administrativo, mas o exagerado apego da doutrina brasileira a certos conceitos arraigados na doutrina tradicional italiana, como o de lide,' caracteriza esse paradoxo entre um pensamento doutrinário ligado a pressupostos privatísticos, numa ordem jurídico-processual endereçada cumulativamente à solução de litígios fundados em direito privado e em direito público.

NOTA:1. Conceito que já não goza de tanto prestígio entre os italianos, como entre os brasileiros.

Quando se passa às manifestações em sede de ideologias do processo vê-se que parte da doutrina brasileira assimilou em grande escala as colocações sugeridas pelos pioneiros da escola instrumentalista, com grande engajamento a esta e às chamadas ondas renovatórias (supra, n. 42). A bibliografia brasileira atual exibe um número significativo de obras voltadas aos grandes temas do instrumentalismo, como o acesso à justiça e a inafastabilidade do controle jurisdicional, o direito processual constitucional em suas variadas manifestações, os escopos sociais e políticos do processo e a efetividade deste, os poderes de iniciativa probatória do juiz, a tutela coletiva etc. - além da instrumentalidade do processo em si mesma, como núcleo central de todas essas preocupações. Ao lado de argentinos, uruguaios e italianos, os brasileiros situam-

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se entre os que mais vêm produzindo nesse campo, sem embargo de outros setores doutrinários perseverarem na opção, também legítima, pela visão preponderantemente técnica do sistema.Em síntese, prepondera no Brasil um modelo doutrinário (a) que privilegia o instituto da ação e sua garantia constitucional, em confronto com os demais institutos fundamentais do processo civil; b) que dá às condições da ação a dignidade de categoria autônoma, distinta dos pressupostos processuais; c) que enfatiza os elementos identificadores da ação, como ponto de apoio para uma série de desdobramentos (limites do provimento admissível, litispendência, coisa julgada); d) que separa nitidamente os processos cognitivo e executivo, embora seja crescente o número dos que propugnam pela mitigação dessa separação (sentenças mandamentais, ações executivas lato sensu); e) que não fala em distribuição de jurisdição, mas sempre de competência; fl que em parte muito significativa se empenha nos estudos de direito processual constitucional com ênfase aos pressupostos ideológicos do processo civil; g) que desenvolve temas ligados à tutela coletiva; etc.

71. elementos para a identificação do modelo processual civil brasileiro no plano constitucional e no técnico-processual

É natural que em grande medida o pensamento da doutrina de um país constitua projeção dos modos como sua Constituição e sua lei definem pressupostos e estruturam os institutos pertinentes ao ramo jurídico de seu interesse. A tendência de certas idéias e conceitos à universalização não chega ao ponto de autorizar o pensador a prescindir do que o direito positivo de seu país dispõe. Eis por que, na busca dos contornos de um modelo processual, é indispensável tomar por ponto de partida a dogmática residente no direito posto - até porque, se não fosse assim, os sistemas processuais do mundo inteiro propenderiam a uma utópica homogeneização e sequer teria sentido falar em modelos (a doutrina é uma verdadeira multinacional: Liebman).Não-obstante, a seleção útil dos pontos caracterizadores de um modelo jurídico pressupõe o necessário conhecimento do passado das instituições nacionais e de elementos de outros ordenamentos. O emprego do método histórico e do comparativo é indispensável quando se quer identificar um sistema e procurar o traçado do perfil que o diferencia de outros no tempo e no espaço. A esses pressupostos associa-se o conhecimento do pensamento doutrinário vigente e dos rumos apontados pela doutrina em face das evoluções constantes da ordem jurídico-positiva (racional e legítima futurologia processual.Talvez num passado relativamente remoto fosse lícito considerar elementos da dogmática processual exclusivamente a partir do que dispõe a lei, sem maiores zelos pelo que a Constituição dispõe sobre o processo. Mas a partir de quando, em escala praticamente mundial, estabeleceu-se a consciência dos assentos político-constitucionais de toda a técnica do processo, na mesma medida passou a ser indispensável que a definição de um modelo processual se fizesse a partir de elementos colhidos no direito infraconstitucional e também na Constituição do país.Os elementos relevantes de nível constitucional são muito numerosos na realidade brasileira. A Constituição Federal de 1988 - particularmente explícita e extraordinariamente voltada ao valor do ser humano e da cidadania - contém um número grande de disposições garantísticas endereçadas de modo específico ao processo (ao lado de garantias gerais que ao sistema processual se aplicam, como a da isonomia), bem como a oferta de um arsenal de remédios processuais destinados à tutela jurisdicional das liberdades. A definição do modelo constitucional do processo civil brasileiro deve levar em conta, portanto (sem negligenciar o pensamento dos doutrinadores), as duas grandes vertentes dessas disposições constitucionais pertinentes, a saber;I- a tutela constitucional do processo, consistente nos princípios e garantias que a Constituição consagra e impõe como modo de institucionalizar critérios e parâmetros democráticos, dos quais não se afastará a lei infraconstitucional e segundo os quais os juízes pautarão suas decisões e a própria interpretação do direito infraconstitucional;

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II - a jurisdição constitucional das liberdades, integrada por específicos modos de tutela jurisdicional diferenciada assentados em plano constitucional e oferecidos em complementação à genérica garantia constitucional do acesso à justiça (supra, n. 12 e infra, n. 74).No plano infraconstitucional, naturalmente vocacionado à disciplina da técnica do processo, tem o Brasil um Código de Processo Civil promulgado no ano 1973 e incessantemente alterado ao longo de menos de três décadas de vigência - ao lado de fartíssima legislação processual extravagante, atinente à tutela jurisdicional em situações particulares (ações coletivas, falências e concordatas, locação, títulos de crédito, registros públicos etc.). Certas leis especiais sobrevindas na década dos oitenta, às quais se associou a Reforma do Código de Processo Civil em 1994 e 1995, dotaram o sistema processual civil brasileiro atual de uma nova fisionomia em relação à que transparecia do próprio Código em sua conformação original - sobressaindo-se no presente quatro conotações de primeira grandeza, capazes de contribuir significativamente para a definição de um modelo:I - a oferta de tutelas jurisdicionais coletivas, em repúdio ao confinamento estritamente individualista mantido pelo Código. Essa tutela, relativa a direitos e interesses supra-individuais, é disciplinada por leis extravagantes, com respaldo em explícitas consagrações constitucionais;II - medidas de universalização da jurisdição relacionadas com a tutela a pessoas de menor capacidade aquisitiva e suas pretensões de menor valor (os juizados especiais cíveis);III - medidas tendentes a assegurar a efetividade do processo, especialmente mediante o reforço dos poderes do juiz para a imposição do cumprimento das obrigações de fazer e de não-fazer (o novo art. 461, trazido pela Reforma);IV - medidas de aceleração da tutela jurisdicional, consistentes na antecipação da tutela (art. 273), no julgamento antecipado do mérito (especialmente em caso de efeito da revelia: arts. 319 e 330), nas técnicas do processo monitório (arts. 1.102-a ss.), na instituição de grande número de títulos executivos extrajudiciais (art. 585) etc.A par dessas características - importantíssimas porque resultam de evoluções bastante recentes e particularmente significativas - outras inúmeras existem no plano infraconstitucional das técnicas operacionais do processo, as quais são tantas que sua enumeração ficará sempre sujeita às preferências do analista. Todas somadas e adequadamente interpretadas, chega-se aos contornos do modelo infraconstitucional (técnico-operacional) do processo civil brasileiro (infra, n. 73).

72. o modelo constitucional do processo civil brasileiro (supra, n. 12 e infra, nn. 74 ss.)

Particularmente explícita como se sabe, a Constituição Federal brasileira de 1988 não se limita a enunciar a garantia do devido processo legal como preceito organizatório do sistema. Nem faz como as precedentes cartas políticas, que formalmente ofereciam apenas a garantia da ação (hoje, art. 54, inc. XXXV) e exigiam da doutrina imenso lavor reconstrutivo destinado à demonstração de que ali residiam verdadeiramente as garantias da inafastabilidade do controle jurisdicional e do próprio due process of law. Alinhada às tendências garantísticas modernas, inerentes ao modelo internacional do processo civil (Comoglio), a Constituição brasileira empenha-se na tutela constitucional do processo - conceito que já não goza de tanto prestígio entre os italianos, como entre os brasileiros - antes não explícito e tendo por finalidade a segurança de um processo justo e équo. A própria cláusula due process, agora também explícita (art. 54, inc. LIV), prossegue sendo o repositório sintético de todas as garantias em particular, de modo que não será legítimo, por violação a ela, o processo que não atenda a qualquer uma delas (infra, n. 94). A generosa idéia do processo justo e équo, que vem sendo cultuada pelos processualistas modernos, apóia-se na constatação de que dificilmente produzirá resultados substancialmente justos o processo que não seja em si mesmo justo - ou seja, aquele que for realizado sem o predomínio dos parâmetros político-liberais emanados das garantias constitucionais do sistema.Em outra vertente, empenha-se ainda a ordem constitucional brasileira na oferta dos remédios inerentes à jurisdição constitucional das liberdades, em medida sequer cogitada por qualquer outra Constituição dos Estados conhecidos. Para a preservação da liberdade em si mesma, bem

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como do legítimo patrimônio material e moral das pessoas e grupos, a ordem constitucional institui certos remédios processuais aplicáveis a situações específicas - como o mandado de segurança individual ou coletivo, o mandado de injunção, o habeas data, a ação civil pública, a ação popular, a ação direta de inconstitucionalidade. Sem embargo da natureza processual que têm - a qual se revela no plano técnico de sua operacionalização - esses remédios deitam raízes no espírito democrático da Constituição na medida de sua destinação a fazer valer os valores da cidadania. Como integrantes da sociedade política, pessoas e grupos dispõem dessas vias processuais destinadas a conter desmandos ou excessos dos agentes estatais e, de um modo bem amplo, para a preservação da liberdade e do patrimônio. Daí falar-se em jurisdição constitucional das liberdades, numa locução destinada a revelar o dúplice aspecto dos writs oferecidos pela Constituição Federal (supra, n. 12).Essas duas ordens de observações conduzem à conclusão central de que o modelo constitucional do processo civil brasileiro é acentuadamente garantístico, no duplo sentido de que toda a vida do processo civil deve necessariamente ser permeada da mais estrita fidelidade aos princípios ditados na Constituição Federal; e de que o sistema processual inclui medidas de tutela específica destinadas à preservação das liberdades e dos valores da cidadania.Dentre as garantias inerentes ao modelo avulta extraordinariamente, dada sua relevância institucional e sócio-política de primeira grandeza, a do acesso à justiça. Essa garantia não está explícita na Constituição, apesar do notório caráter de explicitude de que se permeia. Ela é a síntese e razão de ser de todas as garantias - inclusive a do devido processo legal, que tutela todas as demais - pela simples razão de que nela reside a promessa constitucional de que os serviços jurisdicionais devem ser realizados com vistas postas no resultado final do processo. Assegurar acesso à justiça é assegurar justiça. Por isso também, essa garantia síntese inclui a promessa de propiciar, pela via do processo, não somente a efetividade dos direitos (diretamente) mas ainda o respeito a todas as demais garantias (sobre o processo como meio de atuação das garantias constitucionais, infra, n. 97).Menos genericamente, as matrizes constitucionais do processo civil brasileiro apontam-no como um sistema em que (a) prepondera a legalidade, estando o juiz adstrito ao que dispõe a lei e garante a Constituição e portanto não lhe sendo lícito privar as partes dos meios processuais institucionalizados no direito positivo; b) prevalece a liberdade no processo, agindo cada um dos litigantes segundo seus próprios desígnios e, naturalmente, colhendo os efeitos favoráveis ou desfavoráveis de suas escolhas; c) assegura-se a todos a igualdade em oportunidades processuais (paridade em armas).Ainda mais especificamente, é inerente ao modelo constitucional do processo civil brasileiro a presença de certos princípios e regras que estão na Constituição como projeção de universais sentimentos liberal-democráticos ou reflexo de arraigadas tradições locais. Assim são (a) os órgãos e organismos judiciários organizados como Poder, sem sujeição dos juízes a controle pelo Poder Executivo, (b) a inexistência de controle externo da Magistratura, (c) a competência do Poder Judiciário para o controle da constitucionalidade das leis e atos normativos, inexistindo no Brasil as cortes constitucionais que alhures existem, (d) a coexistência do método difuso e do concentrado para esse controle, (e) a opção pela chamada jurisdição una, portanto sem adoção do contencioso administrativo, (î) a existência de diversos organismos judiciários, denominados Justiças, sempre no âmbito do Poder Judiciário, (g) a competência de revisão outorgada ao Supremo Tribunal Federal, o qual não se limita à mera cassação como sucede com outras cortes supremas, (h) a garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional, (i) as garantias destinadas a estabelecer a imparcialidade do juiz (juiz natural), Ú) a própria garantia de igualdade das partes, (k) a do contraditório e ampla defesa, (1) o severíssimo veto à adoção de prova obtida por meios ilícitos, (m) a de publicidade dos atos processuais e (n) a exigência de motivação das sentenças e demais atos judiciais, que em substância é uma particularização da garantia do devido processo legal. A garantia do devido processo legal tem abrangência suficiente para assegurar a liberdade dos litigantes no processo, o direito à prova e aos recursos etc.Eis a definição do modelo constitucional do processo civil brasileiro, colhida da soma dos elementos essenciais contidos na exposição feita: um modelo particularmente garantístico, com severos ditames preordenados ao processo justo e à preservação das liberdades (inclusive pela

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proibição das provas obtidas por meios ilícitos), no qual ao Poder Judiciário compete todo o controle jurisdicional - inclusive em relação a todas as causas envolvendo a Administração pública e à constitucionalidade das leis -podendo o controle de constitucionalidade ser difuso ou coletivo, dispondo o Supremo Tribunal Federal de competência para rejulgar as causas em grau de recurso extraordinário sem se limitar à mera cassação e sendo públicos os julgamentos feitos pela própria corte suprema e por todos os órgãos jurisdicionais em todas as Justiças existentes no Brasil.

73. o modelo infraconstitucional do processo civil brasileiro (técnico-operacional)

A par dos elementos identificadores que constituem resultado de inovações recentes (tutela coletiva, juizados especiais, efetividade do processo e aceleração da tutela jurisdicional - supra, n. 71), é natural que a ordem jurídico-processual brasileira mostre uma série grande de características capazes de lhe traçar o perfil de um modelo no plano infraconstitucional (técnico-operacional). Todo sistema jurídico caracteriza-se como modelo em face das opções feitas em relação a certos pontos de importância mais destacada.São as seguintes as opções mais importantes que caracterizam o modelo infraconstitucional do processo civil brasileiro:I - singularidade dos órgãos judiciários de primeiro grau de jurisdição (não há tribunais de primeira instância);II - existência de juizados especiais cíveis, competentes para causas de menor complexidade (pequenas causas);III - coexistência entre a tutela jurisdicional coletiva e a individual, com forte tendência ao incentivo daquela;IV - aptidão do processo civil à outorga de tutela relativa a direitos subjetivos e também aos chamados interesses juridicamente protegidos (inexistente o contencioso administrativo);V - severos poderes concedidos ao juiz, para a efetividade da tutela jurisdicional;VI - aceleração da tutela jurisdicional mediante (a) a possibilidade de julgamento antecipado do mérito em certos casos, (b) a antecipação provisória da tutela ou de seus efeitos, (c) a instituição do processo monitório, em que o título executivo judicial pode ser produzido com rapidez, (d) a instituição de numerosos títulos executivos extrajudiciais, (e) a generalização da admissibilidade da tutela jurisdicional, inclusive com a instituição do poder cautelar geral do juiz, (f) tentativas de reduzir exigências formais desnecessárias;VII - inclusão da conciliação entre os deveres fundamentais do juiz;VIII - oralidade bastante atenuada, (a) reduzindo-se sua prática às poucas audiências que o sistema inclui, (b) autorizado-se a plena recorribilidade das decisões interlocutórias em primeiro grau de jurisdição, mas (c) assegurando-se parcialmente a identidade física do juiz que houver dado início à instrução oral da causa (infra, n. 288);IX - procedimento rígido, sem possibilidade de retrocessos, desenvolvido em fases e permeado de preclusões (infra, nn. 632633);X - impulso processual a cargo do juiz;XI - saneamento do processo, destinado a eliminar questões que no futuro pudessem impedir o julgamento do mérito, assim como a preparar a instrução probatória mediante definição do objeto da prova e dos meios probatórios a serem produzidos;XII - audiência preliminar destinada à tentativa de conciliação e ao saneamento do processo (a disposição que a instituiu é fortemente inspirada no que dispõe o art. 301 do Código de Processo Civil Modelo para a América Latina);XIII -poderes de iniciativa probatória, racionalmente concedidos ao juiz em alguma medida (mitigação do princípio dispositivo);XIV - existência de grande quantidade de procedimentos especiais;XV -pluralidade de graus jurisdicionais (e mera duplicidade, para recursos em matéria de fato ou de direito local ou contratual);XVI - combate a sentenças de mérito pela via excepcional da ação rescisória, que se desenvolve em processo autônomo e não vem tratada como recurso;

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XVII - execuções por título executivo judicial ou extrajudicial, processadas pelo mesmo modo.Além dessas características outras existem, que de algum modo também podem concorrer para a definição dos contornos do modelo infraconstitucional do processo civil brasileiro, como: 14) incentivo à arbitragem, seja nos juizados especiais cíveis, seja mediante legislação independente; 22) expressa menção à jurisdição voluntária, com o enunciado de uma série de procedimentos alusivos a ela; 32) grande preocupação ética, com explícitas sanções à deslealdade processual; 44) distribuição da competência estruturada segundo o método da repartição tríplice; 5Q) inúmeros casos de legitimidade do Ministério Público, seja para agir ou para intervir; 62) ênfase à instrumentalidade das formas, dispondo-se que nada se anula se o escopo do ato nulo ou omitido houver sido alcançado ou se não tiver ocorrido prejuízo à parte; 79) acatamento da teoria da substanciação (a narrativa dos fatos, contida na demanda inicial, é que limita a tutela jurisdicional - e não a categoria jurídico-processual proposta); 8Q) formação do processo, sempre, mediante demanda endereçada ao juiz; 94) conseqüente poder deste, de indeferir a petição inicial ou recebê-la, determinando a citação do demandado; 104) citações e intimações feitas prioritariamente por via postal; 114) adoção de exceções rituais para a argüição da incompetência relativa, ou da suspeição ou impedimento do juiz; 124) admissibilidade da ação declaratória incidental, para a propositura de demanda prejudicial à inicial; 134) suspensão do processo, sem casos de sua interrupção; 14°-) explícita adoção do meio de prova consistente na inspeção judicial; 154) inexistência de juramento, como meio de prova; 16-) repúdio à prova plena; 174) expressa adoção do princípio do livre convencimento racional para a apreciação da prova, devendo as decisões ser motivadas (livre convencimento motivado); 184) expressa vedação a julgamentos extra vel ultra petita, devendo a demanda ser julgada nos limites em que tiver sido proposta (correlação entre a tutela jurisdicional e a demanda); 19-) condenação do vencido a reembolsar honorários advocatícios ao vencedor (salvo exclusões ditadas em leis especiais); 20-) inexistência de condenações com reserva, sendo plena a coisa julgada incidente sobre as sentenças mérito, mesmo nos casos de cognição sumária; 214) grande elenco de recursos, seja contra atos do juiz de primeiro grau de jurisdição, seja dos tribunais; 224) tipicidade dos recursos cabíveis contra atos jurisdicionais de primeiro grau de jurisdição (apelação e agravo de instrumento); 234) recursos aos órgãos de superposição (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça), exclusivamente em matéria jurídica federal (federal questions) de nível constitucional ou infraconstitucional; 244) veto à reformatio in pejus, excluído portanto o beneficio comum da apelação; 254) conseqüente adoção do recurso adesivo; 264) adoção dos embargos de declaração, legalmente qualificados como recurso e destinados à correção da sentença; 27-) exigência de duplo grau de jurisdição em causas nas quais for vencida a Administração pública ou sempre que julgada procedente a demanda de anulação de casamento (remessa oficial); 284) execução singular e individual contra o devedor solvente e execução universal e coletiva contra o insolvente; 294) devedor insolvente sujeito a processo de falência quando comerciante e à insolvência civil, quando não-comerciante (devedor civil); 304) execução singular realizada exclusivamente em beneficio do credor penhorante; 314) consagração da máxima prior tempore potior jure fora dos casos de insolvência do devedor; 324) responsabilidade patrimonial incidente sobre bens alienados ou gravados em fraude de execução (sanção mais severa que a imposta em caso de mera fraude a credores); 334) remição de bens por parentes do devedor (pelo valor da arrematação ou adjudicação) e remição da execução por ele próprio (pagando a dívida); 34-) disciplina explícita e minuciosa da tutela cautelar, em Livro específico do Código de Processo Civil.Tais são as opções responsáveis pela identificação do modelo processual civil brasileiro no plano infraconstitucional. Falar em opções significa dar destaque aos pontos em que o legislador tomou alguma posição quando poderia ter tomado outra diferente ou oposta, sabendo-se que outras posições foram tomadas pelo legislador nacional no passado ou são tomadas pela lei de outros países, no passado ou no presente. Diante de tantos pontos ao menos relativamente particulares, é praticamente impossível condensar numa precisa fórmula sintética o perfil desse modelo assim descrito analiticamente; mas, de uma perspectiva bastante ampla e captando apenas o que há de mais genérico e significativo, define-se o sistema processual civil brasileiro como um modelo de processo empenhado na universalização da tutela jurisdicional inclusive

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mediante a oferta de tutela coletiva e absorção de litigantes de pequeno poder econômico, com grandes poderes do juiz em matéria instrutória e para a efetividade do processo, com tendência à aceleração da outorga da tutela e sendo rígido e atenuadamente oral o procedimento.

Capítulo VII -OS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS: PRINCÍPIOS E GARANTIAS DO PROCESSO CIVIL

74. processo e Constituição - 75. valor sistemático dos princípios - o processo como direito público - 76. tutela constitucional do processo civil - princípios e garantias constitucionais - 77. princípios gerais e regras técnicas - os princípios formativos do processo - 78. os princípios constitucionais do processo civil (princípios gerais) - 79. princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional - 80. a imparcialidade do juiz e as garantias do juiz natural - 81. o juiz natural - 82. princípio da igualdade - 83. a garantia constitucional da igualdade e os privilégios do Estado no processo civil brasileiro - 84. o princípio do contraditório e sua dupla destinação - 85. contraditório e partes - 86. o contraditório no processo executivo - 87. contraditório e tutela coletiva - 88. contraditório e juiz - 89. princípio da liberdade das partes - 90. a liberdade, a disponibilidade da tutela jurisdicional e o valor do princípio inquisitivo - 91. princípio da publicidade dos atos processuais - 92. princípio do duplo grau de jurisdição - 93. exigência constitucional de motivação das sentenças e demais decisões judiciárias - 94. a convergência dos princípios e garantias constitucionais do processo civil: devido processo legal - 95. o acesso à justiça como princípio-síntese e objetivo final - 96. interpretação sistemática e evolutiva dos princípios e garantias constitucionais do processo civil - 97. tutela jurisdicional aos princípios e garantias constitucionais do processo civil

74. processo e Constituição

Direito processual constitucional é o método consistente em examinar o sistema processual e os institutos do processo à luz da Constituição e das relações mantidas com ela. O método constitucionalista inclui em primeiro lugar o estudo das recíprocas influências existentes entre Constituição e processo - relações que se expressam na tutela constitucional do processo e, inversamente, na missão deste como fator de efetividade dos preceitos e garantias constitucionais de toda ordem; inclui também o exame do arsenal de medidas integrantes da chamada jurisdição constitucional das liberdades (mandado de segurança, ação popular, ação civil pública etc.) (supra, n. 12).Dá-se atualmente tanta importância ao direito processual constitucional - e às duas vertentes caracterizadas pela tutela constitucional do processo e pela jurisdição constitucional das liberdades - que a maneira como a Constituição se comporta nessa área é tomada como elemento identificador de cada modelo processual (os modelos constitucionais do processo civil - supra, n. 72).A tutela constitucional do processo é feita mediante os princípios e garantias que, vindos da Constituição, ditam padrões políticos para a vida daquele. Trata-se de imperativos cuja observância é penhor da fidelidade do sistema processual à ordem político-constitucional do país (infra, mi. 76-77).Em sentido vetorialmente inverso ao da tutela constitucional do processo, apresenta-se o sistema processual como fator de efetividade das normas ditadas no plano constitucional, que ele promove de modo direto e de modo indireto (infra, n. 97). A tutela da Constituição pelo processo acaba produzindo, em alguns casos, verdadeiras mudanças informais desta, o que se dá quando os julgados dos tribunais se encaminham no sentido de alterar substancialmente o significado antes atribuído a alguma norma ou garantia. Essas mudanças são legítimas porque, sendo o juiz um intérprete da ordem jurídica como um todo, cumpre-lhe decidir com atenção à lei posta e também aos princípios gerais do direito (supra, n. 51) - e a conseqüência é que o continuado exercício da jurisdição faz com que em algumas matérias os textos legais e mesmo os constitucionais recebam interpretação à luz de valores vigentes no presente e que no momento

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de sua edição não eram aceitos ou eram dimensionados ou interpretados de modo diferente (Ana Cândida da Cunha Ferraz).Vêm da experiência norte-americana os casos mais significativos de mudança informal da Constituição por força das linhas adotadas pelos tribunais. Na realidade brasileira, em que a Constituição é o menos estável dos diplomas jurídicos positivos (embora insistentemente se afirme que nossa Constituição é do tipo rígido), as sucessivas e freqüentes reformas constitucionais acabam deixando pouco espaço para as mudanças informais. Um raro (e lamentável) exemplo é a tolerância do Supremo Tribunal Federal para com as medidas provisórias, que a Constituição de 1988 concebera como instrumento excepcionalíssimo para o Presidente da República legislar em casos de extrema urgência (art. 62) e hoje se apresentam como modo quase ordinário de legislar sem a prévia participação das Casas do Congresso.A atuação indireta do processo sobre a Constituição realiza-se continuamente nos juízos e tribunais, no dia-a-dia de sua constante operação. Como a Constituição é a matriz a que remonta toda a ordem jurídica do país (tête de chapitre), sendo o direito material infraconstitucional um conjunto de desdobramentos do modo como ela define a ordem social, a política e a econômica, dar atuação aos preceitos infraconstitucionais significa impor a efetividade das próprias normas constitucionais. A efetividade do ordenamento jurídico nacional como um todo, que é um dos escopos políticos do processo (supra, n. 50), no fundo é a efetividade da própria Constituição.Quando o juiz decide em matéria de propriedade, fazendo prevalecer os fins sociais da lei, ele está dando efetividade ao art. 52 da Lei de Introdução ao Código Civil e também, indiretamente, à norma constitucional que dita a função social da propriedade (Const., art. 52, inc. XXIII); quando condena o ofensor por danos morais, faz cumprir preceitos contidos no Código Civil (arts. 159, 1.547 etc.) e de igual modo uma expressa disposição constitucional (Const., art. 54, inc. V).Dá-se a influência direta do processo sobre a vida da Constituição sempre que a própria norma constitucional é examinada e concretamente efetivada mediante a atividade do juiz. Isso acontece no julgamento de causas que incluam discussão sobre a compatibilidade ou incompatibilidade entre uma norma de direito infraconstitucional e outra situada em nível constitucional (controle difuso de constitucionalidade); ou ainda quando perante o Supremo Tribunal Federal é proposta a ação direta de inconstitucionalidade (controle concentrado de constitucionalidade: Const., art. 102, inc. 1, letra a). Numa hipótese ou em outra, o reconhecimento da incompatibilidade importa afastamento da eficácia da norma infraconstitucional, para preservação do princípio da supremacia da Constituição.Em resumo: a) o direito processual constitucional é um método de exame do sistema processual à luz dos preceitos contidos na Constituição; b) ele inclui a tutela constitucional do processo e a jurisdição constitucional das liberdades; c) operam em dois sentidos as relações entre a Constituição e o processo: a Constituição cercando o sistema processual de princípios e garantias, o sistema processual servindo de instrumento de atuação dos preceitos contidos na Constituição.

75. valor sistemático dos princípios - o processo como direito público

A grande relevância institucional do método denominado direito processual constitucional consiste em revelar o significado dos princípios constitucionais que atuam sobre a ordem processual, sabido que todo conhecimento só é verdadeiramente científico quando tiver por apoio a consciência dos princípios que o regem: sem essa consciência, há o grande risco de perder a necessária coerência unitária entre os conceitos exarados e jamais ter-se segurança quanto ao acerto e boa qualidade dos resultados das investigações. Sem princípios um conhecimento é desorganizado e só pode ser empírico porque faltam os elos responsáveis pela interligação desses resultados. No que diz respeito às ciências jurídicas o conhecimento dos princípios é responsável pela boa qualidade e coerência da legislação e também pela correta interpretação dos textos legais e das concretas situações examinadas. O verdadeiro cientista do direito deve ter clara noção do modo como se inter-relacionam e interagem os conceitos de sua ciência e precisa remontar sempre, no estudo dos diversos institutos, aos grandes princípios que a regem.

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Tanto maior será o valor dos princípios nas ciências jurídicas, quanto mais forte a tendência à globalização dos conceitos na realidade da crescente cooperação internacional. Essa tendência vem conduzindo à valorização dos estudos de direito comparado, que enriquecem o conhecimento do direito nacional com sugestões e trocas de experiências, mas a comparação jurídica só pode ser útil se se conhecerem os princípios que estão à base de cada uma das legislações comparadas, consideradas as tendências universais ou regionais. O que difere um modelo jurídico de outro, no tempo e no espaço, são os princípios que um adote e outro não, ou um adote com maior ou menor intensidade que o outro (Chiovenda). É fadada ao insucesso, pelo fenômeno da rejeição, qualquer tentativa de transplantar para um país institutos ou soluções vigentes em outro, se não forem coerentes com os princípios vigentes naquele.Os princípios em que toda ciência se apóia são dados exteriores a ela própria, pelos quais ela se liga a uma área de conhecimento mais ampla. São as premissas que determinam o seu próprio modo-de-ser e dão-lhe individualidade perante outras ciências, constituindo-se em raízes alimentadoras de seus conceitos e de suas propostas. Até etimologicamente compreende-se que os princípios científicos constituem verdadeiros pontos de partida de uma ciência (Miguel Reale), ou elementos de sua inserção na grande árvore do conhecimento humano (são os pontos em que a ciência principia). Os conceitos e estruturas de uma ciência maior são elementos de apoio em que se sustenta outra de menor amplitude; a própria ciência mais ampla é sustentada por princípios hauridos em outra ainda mais ampla e assim sucessivamente até chegar-se aos grandes fundamentos filosóficos do conhecimento. Por isso, só se pode obter a racional determinação dos princípios responsáveis por uma ciência a partir de quando se saiba qual lugar esta ocupa entre os outros ramos do conhecimento humano - sem o que não se saberia onde buscá-los legitimamente. No tocante a uma ciência jurídica, seus princípios só se conhecerão com segurança quando se souber qual a posição ocupada na classificação das ciências jurídicas em geral.O direito processual tem por objeto as posições ocupadas no processo pelos seus três sujeitos principais - juiz, autor e réu - bem como os atos que realizam e a relação jurídica existente entre eles. O poder do juiz no processo é jurisdição, o autor atua com fundamento no que se chama ação, o réu exerce defesa e o método dessa cooperação entre os três é processo. Jurisdição, ação, defesa e processo constituem portanto o núcleo da ciência processual, ou, como se diz, o núcleo do seu objeto material.'Por isso é que, como dito, o direito processual é ramo do direito público (supra, n. 8), traduzindo-se na disciplina do exercício do poder estatal enquanto endereçado à solução de conflitos (jurisdição), com regras sobre o modo desse exercício e limitações a ele. É das grandes matrizes do direito público, portanto, que a ciência processual recebe esses influxos caracterizados como princípios. A história do direito processual mostra que houve uma significativa evolução a partir dos parâmetros privatísticos do direito romano, em que o processo era verdadeiro contrato entre as partes, para chegar-se às formulações atuais, que indicam no processo uma relação imperativa e inevitável do juiz com as partes. A inclusão do demandado no processo, a autoridade que o juiz exerce ao longo deste e a imposição de resultados não têm por apoio a vontade dos litigantes que previamente manifestassem aquiescência, mas o próprio poder estatal, definido como capacidade de decidir imperativamente e impor decisões. O poder estatal e seu exercício não se legitimam na vontade dos particulares em cada caso, a partir de quando, consolidado o Estado e definidos seus contornos, ele assume certos objetivos e certas funções, agindo segundo essas escolhas políticas e assim gerando a sujeição dos indivíduos. É nota característica do Estado moderno a inevitabilidade de suas decisões, o que significa que, agindo com base no poder e não num suposto concerto de vontades com os indivíduos, não cabe a estes a escolha entre sujeitar-se ou não. Sujeição, como conceito geral em direito, é a impossibilidade de evitar os atos de outro sujeito e a sua eficácia (Carnelutti).

76. tutela constitucional do processo civil -princípios e garantias constitucionais

A percepção de que o processo civil é ramo do direito público constitui uma grande premissa metodológica que conduz a colocá-lo como alvo de uma série de preceitos e garantias postos na

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Constituição, os quais se traduzem num verdadeiro sistema de promessas e limitações: promessas de dar solução aos conflitos e conduzir os sujeitos à ordem jurídica justa e limitações consistentes em uma série de condicionamentos e restrições a esse exercício (supra, n. 41). Tais limitações são ditadas com vista a assegurar às partes uma série de posições e possibilidades no processo, que o juiz não pode desrespeitar. Já estamos falando das garantias que a ciência processual moderna reúne e enfeixa no conceito de tutela constitucional do processo.

NOTA:

I . Institutos fundamentais do direito processual: infra, nu. 108 ss.

Realmente, o sistema processual é tutelado por uma série de preceitos constitucionais ditados como padrões a serem atendidos pelo legislador ao estabelecer normas ordinárias sobre o processo e pelo intérprete (notadamente o juiz) encarregado de captar o significado de tais normas, interpretando os textos legais. Essa tutela reside nos chamados princípios e garantias constitucionais, de índole acentuadamente política e que correspondem a importantíssimas opções do moderno Estado-de-direito. Em última análise, a tutela constitucional do processo consiste na projeção da índole e características do próprio Estado sobre o sistema processual.Falar em acesso à ordem jurídica justa, por exemplo (ou na garantia de inafastabilidade do controle jurisdicional), é invocar os próprios fins do Estado moderno, que se preocupa com o bem comum e, portanto, com a felicidade das pessoas; valorizar o princípio do contraditório equivale á trazer para o processo um dos componentes do próprio regime democrático, que é a participação dos indivíduos como elemento de legitimação do exercício do poder e imposição das decisões tomadas por quem o exerce; cuidar da garantia do devido processo legal no processo civil vale por traduzir em termos processuais os princípios da legalidade e da supremacia da Constituição, também inerentes à democracia moderna; garantir a imparcialidade nos julgamentos mediante o estabelecimento do juiz natural significa assegurar a impessoalidade no exercício do poder estatal pelos juízes, agentes públicos que não devem atuar segundo seus próprios interesses mas para a obtenção dos fins do próprio Estado; etc.Mas a tutela constitucional do processo não seria efetiva se as grandes linhas-mestras desenhadas pela Constituição (princípios) não ganhassem eficácia imperativa mediante as correspondentes garantias. Consistem as garantias constitucionais em preceitos dotados de sanção, isso significando que sua inobservância afetará de algum modo a validade ou eficácia do ato transgressor, o qual não pode prevalecer sobre os imperativos constitucionais. Por isso é que geralmente os dispositivos constitucionais reveladores dos grandes princípios são encarados como garantias, a ponto de ser usual o uso indiferente dos vocábulos princípio e garantia para designar a mesma idéia.Caso isolado de princípio constitucional endereçado ao processo e desprovido do caráter de imperatividade é o do chamado princípio do duplo grau de jurisdição. É um principio sim e, como tal, há de inspirar o legislador ao editar leis e o juiz ao interpretá-las e resolver os casos de dúvida sobre a concreta admissibilidade de algum recurso. Não é uma garantia, porém, dado que apropria Constituição apresenta hipóteses de grau único de jurisdição (p.ex., em certos casos de competência originária dos tribunais, em que é excepcional a recorribilidade dos julgados).

77. princípios gerais e regras técnicas - os princípios formativos do processo

A técnica processual inclui também um número extenso de regras de grande importância, desenvolvidas ao longo dos séculos e da experiência acumulada, sendo responsáveis pela boa ordem do processo e correto encaminhamento de suas soluções. Rigorosamente, contudo, não se qualificam como princípios porque têm lugar no interior do sistema e não atuam como pilares sobre os quais este se apóia (estes, sim, são os verdadeiros principios, especialmente os de índole político-constitucional).

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Entre essas regras técnicas avultam quatro, que a doutrina tradicionalmente chama de princípios e especifica como princípios formativos do processo (ou princípios informativos, segundo alguns). São as seguintes:a) princípio econômico, voltado à produção do melhor resultado desejável com o menor dispêndio possível de recursos;b) princípio lógico, que aconselha a seleção de meios eficazes à descoberta da verdade e das soluções corretas, evitando erros;c) princípio jurídico, que postula a igualdade no processo e a fidelidade dos julgamentos ao direito substancial;d) princípio político, dirigido ao binômio representado pelo máximo possível de garantia social com o mínimo de sacrifício pessoal.Esses falsos princípios, enunciados em antiga doutrina italiana e acatados prestigiosamente na brasileira, são na realidade regras técnicas e não refletem opções políticas. Um processo realizado de modo econômico, lógico, juridicamente adequado e politicamente correto (para empregar aquela linguagem usual) é um processo tecnicamente bem feito, sem embargo de produzir ou não produzir resultados coerentes com as grandes premissas constitucionais - esses, sim, verdadeiros princípios. O máximo que se pode dizer em prol de tais regras técnicas como possíveis princípios é que elas refletem, pelo aspecto técnico, as idéias que os princípios representam.Existem inúmeras outras regras técnicas de grande importância e prestígio, também geralmente indicadas como princípios, mas que não o são. É o caso, p.ex., do chamado princípio da demanda, pelo qual a jurisdição só se exerce mediante provocação de parte (CPC, art. 22, art. 262); do princípio da correlação entre provimento e demanda, pelo qual o juiz não pode conceder ao autor senão o que foi pedido, sendo também obrigado a pronunciar-se sobre o pedido todo (arts. 128, 560); do princípio do livre convencimento, que dá ao juiz liberdade para examinar os resultados da prova segundo sua própria capacidade perceptiva e atento ao que consta dos autos, motivando sua decisão (art. 131 c/c art. 458, inc.11); do princípio da oralidade, que postula a preponderância do verbal sobre o escrito no procedimento; do princípio dispositivo, da lealdade, da instrumentalidade das formas etc. etc. É claro que, no fundo, a todas essas regras pode-se chegar, com algum esforço de raciocínio, a partir das idéias representadas pelos princípios gerais e políticos do processo, ou seja, a partir de suas premissas externas e fundamentais. Mas, em si mesmas, elas não são verdadeiros princípios do direito processual.Falar em princípios como pontos de partida ou colunas externas de apoio de uma ciência, exclui realmente que se tomem por princípios do direito processual essas regras que, sendo internas a ele, não têm a responsabilidade de atuar como elementos de sua ligação aos ramos maiores e ao tronco da grande árvore do conhecimento jurídico. Mesmo assim e com toda essa ressalva, podemos continuar falando em princípios nesses casos, para evitar inúteis discrepâncias verbais em face da doutrina em geral. Tenha-se sempre presente, contudo, que esses “princípios" não têm todo o caráter de generalidade de que são dotados os de origem político-constitucional, pois referem-se apenas a algum setor do direito e da ciência processuais e não ao processo civil como um todo (p.ex., o princípio" do livre convencimento tem pertinência exclusivamente à disciplina da prova; o da oralidade, à forma dos atos no procedimento etc.). Jamais poderão ser considerados princípios gerais, portanto.

78. os princípios constitucionais do processo civil (princípios gerais)

A Constituição impõe expressamente alguns princípios que devem prevalecer em relação a processos de toda espécie (civil, penal, trabalhista; jurisdicional ou não), a saber: o do devido processo legal, o da inafastabilidade do controle jurisdicional, o da igualdade, da liberdade, do contraditório e ampla defesa, juiz natural e publicidade. Contém ainda as linhas das quais se infere o princípio do duplo grau de jurisdição (ao estruturar basicamente o Poder Judiciário e indicar a competência recursal dos tribunais), embora não lhe dê contornos de autêntica garantia. Além disso, formula a exigência de motivação das decisões judiciárias, que não se qualifica como princípio porque lhe falta o caráter de idéia mestra, ou ponto de partida: trata-se de exigência

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técnica das mais importantes e grande responsabilidade pelo perfil político-democrático do processo, sendo uma projeção especificada do princípio do due process of law - esse, sim, autêntico princípio.A Constituição formula princípios, oferece garantias e impõe exigências em relação ao sistema processual com um único objetivo final, que se pode qualificar como garantia-síntese e é o acesso à justiça.' Com esse conjunto de disposições, ela quer afeiçoar o processo a si mesma, de modo que ele reflita, em menor, o que em escala maior está à base do próprio Estado-dedireito. Ela quer um processo pluralista, de acesso universal, participativo, isonômico, liberal, transparente, conduzido com impessoalidade por agentes previamente definidos e observância das regras etc. - porque assim ela mesma exige que seja o próprio Estado e assim é o modelo político da democracia. A efetividade dessas disposições constitui penhor da (relativa) universalização da tutela jurisdicional, com a desejada redução dos resíduos não-jurisdicionalizáveis, bem como do aprimoramento do processo mesmo e de seus resultados, segundo os parâmetros do processo justo e équo.

NOTA:

2. Essa é também a finalidade da oferta das tutelas diferenciadas que se reúnem no conceito de jurisdição constitucional das liberdades.

Muitos desses princípios, garantias e exigências convergem a um núcleo central e comum, que é o devido processo legal, porque observar os padrões previamente estabelecidos na Constituição e na lei é oferecer o contraditório, a publicidade, possibilidade de defesa ampla etc. São perceptíveis e inegáveis as superposições entre os princípios constitucionais do processo, sendo impossível delimitar áreas de aplicação exclusiva de cada um deles - até mesmo em razão dessa convergência e porque nenhum deles se conceitua por padrões rigorosamente lógicos, mas políticos.Ao sentenciar em desfavor de uma das partes sem ter colhido as provas admissíveis que ela haja regularmente requerido, o juiz viola ao mesmo tempo as garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.

79. princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional

O inc. XXXV do art. 54 da Constituição, antes interpretado como portador somente da garantia da ação, tem o significado político de pôr sob controle dos órgãos da jurisdição todas as crises jurídicas capazes de gerar estados de insatisfação às pessoas e, portanto, o sentimento de infelicidade por pretenderem e não terem outro meio de obter determinado bem da vida. Esse dispositivo não se traduz em garantia do mero ingresso em juízo ou somente do julgamento das pretensões trazidas, mas da própria tutela jurisdicional a quem tiver razão. A garantia da ação, como tal, contenta-se em abrir caminho para que as pretensões sejam deduzidas em juízo e a seu respeito seja depois emitido um pronunciamento judicial, mas em si mesma nada diz quanto à efetividade da tutela jurisdicional. O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional manda que as pretensões sejam aceitas em juízo, sejam processadas e julgadas, que a tutela seja oferecida por ato do juiz àquele que tiver direito a ela - e, sobretudo, que ela seja efetiva como resultado prático do processo (supra, n. 42).Todo esse feixe de aberturas propiciado pelo princípio da inafastabilidade sujeita-se às restrições legitimamente postas pelas regras técnicas do processo e mesmo pelo convívio com outras normas viventes no próprio plano constitucional. Isso explica por que certas pretensões em face do Estado encontram a barreira representada pelas fórmulas de independência dos Poderes e equilíbrio entre eles; por que a propositura de uma demanda em juízo é sempre sujeita a uma série de requisitos técnico-processuais, inclusive de forma; por que as pretensões só poderão ser afinal julgadas se presentes os chamados pressupostos de admissibilidade do julgamento do mérito etc. Tais são óbices legitimamente postos à plena universalização da tutela jurisdicional, de cuja presença no sistema se infere a legítima relatividade da garantia da inafastabilidade

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dessa tutela. Essa relatividade não significa debilidade da garantia e não pode conotar-se por um nefasto conformismo diante de situações não jurisdicionalizáveis, sob pena de inutilidade da garantia. Dos óbices legítimos e intransponíveis é indispensável distinguir os óbices perversos, residentes às vezes na própria lei, em sua interpretação apegada a valores do passado e principalmente em certas realidades sociais, econômicas ou culturais estranhas à ordem processual - como a pobreza, o temor reverencia) etc. Essas são verdadeiras barreiras internas e externas, que dificultam o acesso à justiça (Morello).O inc. XXXV do art. 5- da Constituição Federal, que é o suporte constitucional dessa tendência expansiva, comporta interpretação sistemática em coordenação com a garantia constitucional da igualdade, o que conduz à conseqüência de não ser lícita qualquer restrição que leve em conta a raça da pessoa, seu sexo, cor ou idade (art. 54, caput e art. 3-, inc. IV), ou mesmo sua nacionalidade. O art. 54 emprega a fórmula brasileiros ou estrangeiros residentes no país, mas do amplo conteúdo garantístico do art. 3s extrai-se que também aos estrangeiros não-residentes se oferecem iguais oportunidades e, portanto, igual possibilidade de acesso à justiça.Não-obstante a redação do art. 5-Q da Constituição Federal e art. 95 do Estatuto do Estrangeiro, seria contrária à índole do Estado-de-direito modelado por aquela a exclusão de pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras não radicadas no país, negando-se-lhes a tutela jurisdicional. Negar a esses sujeitos a possibilidade de acesso à justiça seria tão contrário à índole do Estado brasileiro quanto negá-la a nacionais ou a estrangeiros residentes (Const., art. 5% § 2Q). Seria aberrante, p.ex., permitir que ficasse sem a possibilidade de obter a proteção do mandado de segurança um estrangeiro em trânsito em algum aeroporto do país e vítima de violação a algum direito líqüido-e-certo (Celso Bastos); igualmente absurdo seria excluir da proteção jurisdicional os estrangeiros que, sem residir no país, investem em bolsas de valores nacionais. A ordem jurídica brasileira não exige sequer o requisito da reciprocidade, ou seja, não exige que em igualdade de situações o brasileiro conte com a possibilidade de acesso à justiça no país em que estiver (como exige o art. 16 das disposições sobre a lei em geral, que antecedem o Código Civil italiano). 3

80. a imparcialidade do juiz e as garantias do juiz natural

A Constituição não dedica palavras à garantia da imparcialidade do juiz mas contém uma série de dispositivos destinados a assegurar que todas as causas postas em juízo - cíveis, trabalhistas, criminais - sejam conduzidas e processadas por juízes imparciais. Seria absolutamente ilegítimo e repugnante o Estado chamar a si a atribuição de solucionar conflitos, exercendo o poder, mas permitir que seus agentes o fizessem movidos por sentimentos ou interesses próprios, sem o indispensável compromisso com a lei e os valores que ela consubstancia - especialmente com o valor do justo. Os agentes estatais têm o dever de agir com impessoalidade, sem levar em conta esses sentimentos ou interesses e, portanto, com abstração de sua própria pessoa. O juiz, ao conduzir o processo e julgar a causa, é naquele momento o próprio Estado, que ele consubstancia nessa atividade.

NOTA:

3. Ou prelegge- texto que, no Brasil, mutatis mutandis, equivale à Lei de Introdução ao Código Civil.

A imparcialidade, conquanto importantíssima, não é um valor em si própria mas fator para o culto de uma fundamental virtude democrática refletida no processo, que é a igualdade. Quer-se o juiz imparcial, para que dê tratamento igual aos litigantes ao longo do processo e na decisão da causa.Imparcialidade não se confunde com neutralidade nem importa um suposto dever de ser ética ou axiologicamente neutro. A doutrina processual moderna vem enfatizando que o juiz, embora escravo da lei como tradicionalmente se diz, tem legítima liberdade para interpretar os textos desta e as concretas situações em julgamento, segundo os valores da sociedade (supra, n. 51). O sistema de pluralidade de graus de jurisdição e a publicidade dos atos processuais operam

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como freios a possíveis excessos e prática de parcialidades a pretexto dessa liberdade interpretativa. No julgamento dos recursos, feito por outras pessoas, não se reproduzem necessariamente os mesmos possíveis sentimentos e interesses do juiz inferior, reconstituindo-se a indispensável impessoalidade.Com essa ressalva é de ser entendida a aguda observação, feita em doutrina, de que a imparcialidade deve ser para o juiz o mesmo que a indiferença inicial é para o pesquisador científico (Liebman). Exige-se a indiferença quanto ao caso concreto e às pessoas nele envolvidas, mas não se quer a indiferença em relação aos valores e escolha de caminhos para fazer justiça.Sem poder racionalmente oferecer uma formal garantia de que os juízes serão imparciais, procura a Constituição criar as melhores condições possíveis para a imparcialidade daqueles, minimizando-se quanto se possa os riscos de comportamentos parciais. Para tanto, ela estabelece a garantia do juiz natural, proibidos os chamados tribunais de exceção (infra, n. 81), além de cercar o juiz de uma série de garantias e impedimentos destinados a deixá-lo imune a influências nefastas (art. 95, caput e par.).O trinômio vitaliciedade-inamovibilidade-irredutibilidade de vencimentos, assim como a definição tão objetiva quanto possível dos critérios para a carreira dos juízes (art. 93, incs.1-111), são penhores da independência destes perante os órgãos dos demais Poderes do Estado. Também o Poder Judiciário como um todo é dotado de uma série de prerrogativas institucionais: autogoverno, autonomia administrativa e orçamentária etc. (art. 96) (infra, nn. 151 ss.). A independência é um indispensável fator de imparcialidade.A par disso, o Código de Processo Civil estabelece casos em que, segundo a experiência comum, o juiz se considera fragilizado em sua capacidade de ser firme e imparcial, com o risco de mostrar-se menos resistente a pressões e tentações a que, como ser humano, poderia estar sujeito: vêm daí os conceitos de impedimento e suspeição do juiz (CPC, arts. 134-135), integrados na técnica pela qual o juiz se abstém de oficiar em dado processo ou pode ser recusado pela parte (infra, n. 508). Também o princípio da demanda, que reduz o juiz à inércia até que haja a iniciativa de parte para a formação de um processo (CPC, arts. 24 e 262), figura entre os cuidados da ordem jurídica em prol do resguardo da imparcialidade judicial (infra, nn. 398 e 540).Assegurado que os julgamentos serão feitos pelo juiz natural indicado pela lei; guarnecidos o juiz e o Poder Judiciário de garantias que os tornem menos vulneráveis; sujeito o juiz a impedimentos destinados a deixá-lo fora de atividades que poderiam tentá-lo ao desvio; e ainda afastado o juiz quando incurso em alguma situação capaz de fazer temer por algum comprometimento seu - tudo isso somado reduz os riscos do julgamento parcial e dá o perfil da garantia de imparcialidade na ordem jurídica brasileira. A Declaração Universal dos Direitos do Homem contém explícita proclamação do direito ao julgamento por juiz imparcial - "...um tribunal independente e imparcial, para a determinação de seus direitos e obrigações... " (art. X). E o Pacto de San José da Costa Rica: "toda pessoa tem o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei... " (art. 84, n. 1).

81. o juiz natural

A garantia do juiz natural consiste em exigir que os atos de exercício da função estatal jurisdição sejam realizados por juizes instituídos pela própria Constituição e competentes segundo a lei. Seu significado político-liberal associa-se mais de perto às garantias do processo penal que do processo civil, resolvendo-se na preocupação de preservar o acusado e sua liberdade de possíveis desmandos dos detentores do poder: daí a idéia, sempre presente entre os estudiosos daquela matéria, de que a garantia do juiz natural impõe que o processo e julgamento sejam feitos pelo juiz que já fosse competente ao momento em que praticado o ato a julgar. No processo civil, em que as pessoas comparecem com suas pretensões e estas são julgadas - não os fatos, em si mesmos, ou a pessoa - tal aspecto da garantia do juiz natural deixa de ter toda a

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grande importância que tem no processo penal. A preexistência do órgão judiciário não se confunde com a preexistência de sua competência para o caso.Com esse desconto, prepondera a garantia conforme costuma ser apresentada, ou seja, caracterizada por esse trinômio: a) julgamentos por juiz e não por outras pessoas ou funcionários; b) preexistência do órgão judiciário, sendo vedados, também para o processo civil, eventuais tribunais de exceção instituídos depois de configurado o litígio; c) juiz competente segundo a Constituição e a lei.Novas competências, estabelecidas depois de ocorridos os fatos que constituem fundamento de uma pretensão a ser deduzida em juízo, impõem-se ao processo civil que se instaurar em busca da satisfação desta. "Determina-se a competência no momento em que a ação é proposta", não antes (CPC, art. 87). Mesmo quando já instaurado o processo, a competência passará para outro órgão judiciário nas hipóteses de extinção do órgão prevento ou de superveniência de novas normas que lhe alterem a competência absoluta.A exigência de que os julgamentos se façam por juiz como tal indicado na Constituição impede que os valores da pessoa, património inclusive, fiquem expostos a medidas imperativas e definitivas ditadas por órgãos não qualificados a isso e, portanto, sem a aura de imparcialidade e sem as garantias de idoneidade que caracterizam a Magistratura. Não se excluem, obviamente, os julgamentos feitos pela Administração, seja em sede disciplinar ou no trato de interesses de outras pessoas ou entidades, como é o julgamento das licitações públicas. O processo e julgamento que a garantia do juiz natural manda fazer exclusivamente por juizes são aqueles que conduzem ao final enforcingpower, sem sujeição a novas apreciações e censura por outros órgãos. Os atos da Administração, mesmo quando consistentes naqueles julgamentos, são sujeitos ao controle pelos juízes ao menos pelo aspecto da legalidade (Súmula 473 STF) - e tal é uma imposição e desdobramento do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. Os julgamentos resultantes do controle jurisdicional é que se prestam a essa definitividade caraterizada como coisa julgada, ficando imunes a qualquer questionamento ulterior.A Constituição dá corpo à garantia de ser julgado exclusivamente por juiz, ao elencar taxativamente os organismos judiciais do pais, aptos portanto a serem o juiz natural das causas que vierem a julgamento. Trata-se do Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e tribunais e juízos inferiores de todas as Justiças (eleitoral, trabalhista, militar, federal, estaduais comuns e estaduais militares onde houver) (art. 92), aos quais se acrescem os juizados especiais (art. 98, inc. 1); a própria Constituição autoriza que se incluam juízes leigos, sem concurso portanto e não-vitalícios, competentes para a instrução das chamadas causas de menor complexidade e para proferir sentenças sujeitas a homologação pelo juiz togado (Const., art. 98, inc. 1; lei n. 9.099, de 26.9.95, arts. 7-, 22, 24, § 24, 37 e 40); eles não exercem jurisdição, mas mera atividade parajurisdicional (infra, nn. 364 e 519). Os juízes de paz, também definidos na Constituição Federal (art. 98, inc. 11), não exercerão jurisdição alguma e limitar-se-ão à conciliação e atividades relacionadas com a habilitação para o casamento e sua celebração.Em sua pureza abstrata, o princípio do juiz natural não exige que as causas sejam julgadas por membros da chamada ordem judiciária. Nos países da chamada jurisdição dúplice, certas causas envolvendo a Administração competem a juízes constitucionalmente legítimos, que integram o chamado contencioso administrativo e exercem autêntica jurisdição embora não sejam integrantes da Justiça. Isso não se dá no Brasil, em que a jurisdição se exerce exclusivamente por integrantes da Magistratura (jurisdição una: infra, mi. 70, 73, 150).O órgão judiciário competente deve preexistir aos fatos com base nos quais a causa será proposta - e essa é a segunda garantia relacionada com o juiz natural. Ao vedar a instituição de tribunais de exceção (art. 54, inc. XXXVII), quer a Constituição Federal impedir que, já delineada uma situação, venha o Estado a criar órgãos ou organismos endereçados a julgamentos segundo influências espúrias. Essa disposição aplica-se ao processo civil, tanto quanto ao penal.Os tribunais de exceção de que se tem notícia, notadamente o de Nuremberg no século XX, foram constituídos para julgamentos em matéria penal. Infelizmente a repulsa a eles só prepondera em tempos de normalidade institucional, sendo ignorada precisamente nos momentos de convulsão, quando mais necessário seria que se impusesse.

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Pelo aspecto técnico-processual, a condição de juiz preexistente constitui requisito sem o qual será juridicamente inexistente eventual julgamento emitido por outra pessoa ou órgão subjetivamente incapaz de ser juiz natural. Tal requisito qualifica-se como pressuposto processual, sendo absolutamente inviavel o processo conduzido por quem não seja juiz ou não o fosse antes (pressuposto da investidura) (infra, n. 833).A legislação do Sistema Financeiro da Habitação permite que um cidadão comum, não juiz e sequer integrante dos quadros estatais (o agente fiduciário), promova a alienação de imóvel do devedor inadimplente em leilão, ficando desfalcado o patrimônio deste por obra de alguém que não é o juiz natural (dec-lei n. 70, de 21.11.66, arts. 31-32). Mas a jurisprudência vem negando a inconstitucionalidade do dispositivo.A terceira das garantias constitucionais do juiz natural em processo civil é a da competência. Considera-se competente o juiz como tal definido pela Constituição ou pela lei mediante a indicação taxativa das causas que ele tem a atribuição de processar e julgar. É indispensável, em outras palavras, que entre o juiz e a causa exista uma relação de adequação legítima (Celso Neves), que só a Constituição e a lei definem e só elas podem alterar. Não é lícito impor a alguém um juiz cuja competência não resulte da Constituição ou da lei em vigor no momento da propositura da demanda (CPC, art. 87) - não sendo permitido sequer aos mais elevados órgãos do Poder Judiciário alterar as regras de competência estabelecidas no direito positivo. Tal é o significado do disposto no inc. LIII do art. 5- da Constituição, ao proclamar o direito a julgamento por juiz competente.Isso não significa que o sistema de competência seja absolutamente rígido. A própria lei indica os casos em que se prorroga a competência de algum juízo ou tribunal, tornando-se competente quando ordinariamente não o seria (casos de incompetência relativa). Mas também aqui é da lei que vêm as regras sobre essa flexibilização, seja mediante a determinação dos casos em que a competência se prorroga (competência territorial), seja estabelecendo taxativamente as causas das possíveis prorrogações (p.ex., eleição de foro nos casos previstos no art. 111 CPC) (infra, n. 210).O julgamento feito por juiz incompetente não traz vício tão grave quanto o que haja sido feito por não-juiz, ou por órgão judiciário que não fosse preexistente (tribunais de exceção). Por isso, se o juiz que comandou o processo e julgou a causa estiver regularmente investido no exercício da jurisdição e o órgão judiciário já existia desde antes dos fatos, seu ato será nulo mas juridicamente existente - embora para aquela causa não recebesse da lei a atribuição de exercer a jurisdição (ele seria um juiz incompetente, mas não deixa de ser juiz). Se não for interposto recurso pela parte vencida, essa sentença ficará imunizada pela coisa julgada e seus efeitos prevalecerão - o que não acontece com as sentenças juridicamente inexistentes (infra, n. 707).Será ineficaz a sentença se o juiz incompetente que a proferiu pertencer a outra Justiça, diferente daquela pela qual a causa deveria ter tramitado e sido julgada (figure-se o caso absurdo de um pedido de divórcio julgado pela Justiça do Trabalho). Não que falte jurisdição a esse juiz incompetente, porque a jurisdição é rigorosamente una e somente o seu exercício é que se distribui por juizes de diversos setores (infra, n. 117). Mas a grave inconstitucionalidade dessa exorbitância de competência não pode ser superada pelo decorrer de prazos ou acontecimentos processuais porque as regras sobre estes são de nível infraconstitucional e carecem de aptidão a validar aquilo que a Constituição não quer: só poderia haver prorrogação da competência constitucional, com alteração das normas da Constituição Federal sobre a competência das diversas Justiças, se a própria Constituição ditasse tais normas flexibilizadoras. Existem conseqüências práticas da distinção entre sentenças, nulas, inexistentes ou ineficazes (infra, mi. 1.231 ss.).

82. princípio da igualdade

Destinado a ser um microcosmos em relação ao Estado democrático, o processo civil moderno rege-se pelos grandes pilares da democracia, entre os quais destaca-se a igualdade como valor de primeira grandeza. O princípio isonômico, ditado pela Constituição em termos de ampla generalidade (art. 54, caput, c/c art. 3s, inc. IV), quando penetra no mundo do processo assume

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a conotação de princípio da igualdade das partes. Da efetividade deste são encarregados o legislador e o juiz, aos quais cabe a dúplice responsabilidade de não criar desigualdades e de neutralizar as que porventura existam. Tal é o significado da fórmula tratar com igualdade os iguais e desigualmente os desiguais, na medida das desigualdades. A leitura adequada do art. 125, inc. I, do Código de Processo Civil, mostra que ele inclui entre os deveres primários do juiz a prática e preservação da igualdade entre as partes, ou seja: não basta agir com igualdade em relação a todas as partes, é também indispensável neutralizar desigualdades. Essas desigualdades que o juiz e o legislador do processo devem compensar com medidas adequadas são resultantes de fatores externos ao processo -fraquezas de toda ordem, como a pobreza, desinformação, carências culturais e psicossociais em geral. Neutralizar desigualdades significa promover a igualdade substancial, que nem sempre coincide com uma formal igualdade de tratamento porque esta pode ser, quando ocorrentes essas fraquezas, fonte de terríveis desigualdades. A tarefa de preservar a isonomia consiste, portanto, nesse tratamento formalmente desigual que substancialmente iguala. Exemplo vivo é a promessa constitucional e legal de assistência jurídica integral aos necessitados (Const., art. 5-, inc. LXX1V, art. 24, inc. XIII).Dos tempos em que a mulher casada aparecia perante a sociedade como pessoa extremamente dependente do marido é o dispositivo segundo o qual as ações de separação judicial e de divórcio têm por foro competente o da residência da mulher - figure ela na condição de autora ou de ré (CPC, art. 100, inc. I). Essa era uma fórmula de reequilíbrio, num trato desigual aos desiguais. Mas a emancipação da mulher, sua profissionalização etc., levaram o constituinte a proclamar a absoluta equivalência jurídica dos sexos, vedada qualquer discriminação (Const., art. 5Q, inc. 1, c/c art. 311, inc. IV). Continuaria em vigor aquele dispositivo do Código de Processo Civil ou estaria revogado pela Constituição de 1988? A jurisprudência vem optando firmemente pela primeira resposta.A igualdade de todos perante a lei repercute também na garantia constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional, a qual deve ser outorgada a todos, "sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (Const., art. 311, inc. IV, de plena aplicação em tema de acesso à justiça). Essa disposição serve de corretivo à má redação do art. 511, caput, fonte da falsa impressão de que estrangeiros não residentes no país não desfrutariam das garantias oferecidas pela Constituição Federal. Não só nacionais, como pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras radicadas ou não no país são todos beneficiados por essas garantias (supra, n. 79).O tema da prática do princípio isonômico pelo juiz é muito próximo ao da imparcialidade e com ele bastante relacionado. 0 juiz imparcial atua de modo equilibrado, o parcial é propenso a buscar o favorecimento de uma das partes. Nem teria significado a preocupação pela imparcialidade do juiz, não fora com o fito de garantir aos sujeitos litigantes o tratamento isonômico indispensável para que, ao fim, o processo possa oferecer tutela jurisdicional a quem efetivamente tenha razão. Na outra ponta, o tema da isonomia confina com o das garantias da liberdade, do contraditório e da ampla defesa, porque a igualdade das partes inclui igualdade em oportunidades de participar com liberdade, defendendo-se adequadamente. Contraditório é participação e participar do processo significa, para as partes, empregar as armas lícitas disponíveis com o objetivo de convencer o juiz a dar julgamento favorável. Daí o destaque dado à parità nelle armi em estudos sobre o princípio isonômico, mas que bem poderia ser feito também no trato do contraditório.O contraditório não é aspecto da isonomia nem constitui projeção desta. O que os relaciona intimamente é essa convergência funcional, somada ao fato de que ambos são importantíssimas premissas democráticas e, portanto, manifestações do zelo do Estado contemporâneo pelas liberdades públicas. Isonomia e contraditório caminham politicamente juntos, embora cada qual tenha sua própria individualidade conceitual independente. Contraditório equilibrado é contraditório com igualdade.Ainda no tema da prática da isonomia pelo juiz, vê-se que esse dever inclui não só o de oferecer oportunidades iguais de participação aos litigantes, mas também o de pô-los sempre em situação equilibrada, mediante decisões coerentes. O juiz pratica a isonomia dando oportunidades iguais, v.g., quando concede prazos equivalentes a ambas as partes para apresentarem memoriais com

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alegações finais; ou quando, tendo diligenciado a obtenção de um meio de prova de interesse de uma das partes (p.ex., quebra do sigilo bancário do adversário), tem o dever isonômico de diligenciar análogo elemento probatório de interesse da outra parte etc.A prática da isonomia pelo juiz não se limita à sua conduta na direção do processo (disposições sobre prova etc.), mas deve estar presente também ao julgar a causa. O processo équo, ou processo justo, de que fala a doutrina, é aquele feito segundo legítimos parâmetros legais e constitucionais e que ao fim produza resultados exteriores justos.Se o juiz determina a correção monetária do crédito de uma das partes segundo determinado índice, pelo mesmo índice deve fazer atualizar as parcelas a deduzir. Ao condenar autor e réu por honorários da sucumbência em caso de procedência parcial da demanda inicial (CPC, arts. 20 e 21), deve fixar o mesmo percentual com relação à parte do litígio em que cada um ficou vencido. Se julga improcedente a demanda do autor, deve condenálo a reembolsar honorários ao réu pelo mesmo valor que teria sido imposto a este em caso de procedência (honorários não calculados sobre o valor formalmente atribuído à causa, mas pelo montante da condenação negada, pois sobre esse valor é que seriam calculados os honorários se o autor houvesse tivesse obtido ganho de causa: CPC, art. 20, § 34).

83. a garantia constitucional da igualdade e os privilégios do Estado no processo civil brasileiro

Uma realidade preocupante, no direito infraconstitucional brasileiro e em várias linhas da orientação constante dos tribunais, são os privilégios de que gozam os entes estatais e seus agentes quando partes no processo civil. Às disposições legais que instituem situações de desequilibrada vantagem ao Estado e ao Ministério Público acrescem-se certas tendências dos juizes a privilegiá-los ainda mais, o que eles fazem ao conferir a essas entidades tratamentos incompatíveis com a garantia constitucional da isonomia processual. Compreende-se o zelo pelas coisas do Estado e do interesse público, sendo legítimas as medidas destinadas a evitar malversações ou omissões lesivas aos bens e interesses geridos pelos agentes do Estado; mas o que preocupa é o exagerado desequilíbrio antfsonômico instituído em nome desse zelo e desse interesse geral, que vem conduzindo o sistema processual a deixar os adversários da Fazenda ou do Ministério Público em situação inferiorizada no processo, a dano dos pilares do processo justo e équo.4

NOTA:

4. Em parte, o conjunto de disposições legais privilegiadoras dos entes estatais teve origem, na vida processual brasileira, na experiência fascista do Código de Processo Civil de 1939, promulgado pela ditadura do Estado-Novo getulista.

Eis os mais destacados tratamentos diferenciados que o direito positivo e os tribunais vêm concedendo aos entes públicos:I - prazos privilegiados à Fazenda Pública e ao Ministério Público: em quádruplo para contestar, em dobro para recorrer (art. 188). O fundamento desse tratamento diferenciado seria a suposta diferença entre o Estado e os demais litigantes, caracterizando-se aquele como uma estrutura pesada e burocrática em que as providências e decisões costumam ser mais demoradas. Estar-se-ia, aparentemente, garantindo isonomia mediante a compensação dessa desigualdade de fato. Mas o Estado não é o único ente assim moroso e complexo. Outras entidades existem, como as grandes empresas e certas instituições privadas de fins benemerentes, que enfrentam as mesmas dificuldades e não são tratadas pelo mesmo modo. Além disso, o Ministério Público é hoje uma entidade diligente e organizadíssima, para a qual os prazos privilegiados são apenas uma cômoda vantagem a mais;II - ciência dos atos judiciais mediante vista dos autos (art. 236, § 24) e não mediante publicação pela imprensa, como se dá em relação aos litigantes comuns (caput);

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III- honorários da sucumbência arbitrados em níveis inferiores. O § 44 do art. 20 do Código de Processo Civil manda que, quando vencida a Fazenda Pública, os honorários que reembolsará ao vencedor sejam "fixados consoante apreciação eqüitativa do juiz"-o que tem levado juizes e tribunais a arbitramentos verdadeiramente privilegiados. Interpretam o adjetivo eqüitativo como se eqüidade significasse modicidade, ou barateamento. O resultado é que no mesmo processo, se vencido o particular, os honorários vêm sendo estipulados entre o mínimo de 10% e o máximo de 20% sobre a condenação ou o valor econômico da pretensão (art. 20, 32); mas, quando vencida a Fazenda Pública, o arbitramento fica muito aquém;IV - duplo grau de jurisdição obrigatório. Uma sentença proferida em primeiro grau de jurisdição não passa em julgado, nem é exeqüível, quando contrarie os interesses da Fazenda Pública (art. 475, ines. I1-111). Esse aberrante favorecimento, que a generalidade dos ordenamentos processuais dos povos civilizados desconhece, põe o Estado em situação manifestamente mais cômoda que os particulares, além de apoiar-se no falso pressuposto da incapacidade profissional, desleixo ou mesmo corrupção generalizada entre os procuradores dos entes estatais;V - institucionalização da suspensão dos efeitos da sentença, em ação rescisória, mas exclusivamente em beneficio da Fazenda Pública (MP n. 1.774-20, de 14.12.98, art. 74). Em alguma medida os tribunais já vêm mitigando a regra de que "a ação rescisória não suspende a execução da sentença rescindenda " (CPC, art. 489), em consideração à garantia constitucional do acesso à justiça. Agora, diante do que em seu próprio interesse vem de dispor o Poder Executivo, em nome da garantia constitucional da isonomia é aconselhável maior flexibilização dessa regra, em beneficio de quem quer que seja.Disposições infraconstitucionais como essas não trariam máculas ao sistema se houvesse da parte dos juízes e tribunais a disposição a confrontá-las severamente com a garantia constitucional da igualdade, impedindo que se impusessem ou confinando-as no menos espaço possível. Mas a realidade é oposta. Não apenas vem sendo quase invariavelmente afirmada a constitucionalidade de disposições dessa ordem, como também juízes existem que vão além e concedem à Fazenda Pública e ao Ministério Público outros privilégios que sequer na lei estão propostos. Isso acontece quando excluem a incidência do efeito da revelia, não havendo a Fazenda oferecido contestação (CPC, art. 319); quando, em confronto com o disposto no art. 604 do Código de Processo Civil, negam-se a determinar o pronto prosseguimento da execução contra a Fazenda e tomam o zeloso cuidado de lhe colher a manifestação sobre o cálculo apresentado pelo credor, chegando a retificá-lo; ou ainda quando negam que possa ela figurar como ré em processo monitório, sendo que a lei não distingue (arts.1.102-a); idem, quanto à consignação extrajudicial em face dos entes estatais (art. 890, § 14) etc. Tais manifestações são expressões do mesmo espírito fazendário que vem levando a condenar a Fazenda vencida por honorários módicos quando a lei manda que sejam eqüitativos.Essa é uma postura de defesa do Estado, inerente à filosofia política do Estado totalitário, que a Constituição Federal de 1988 quis extirpar ao dar grande realce aos valores do ser humano, do trabalho, da cidadania e da liberdade. A manutenção de dispositivos anti-econômicos no vigente Código de Processo Civil explica-se pelo fato de ele ser mera continuação do estatuto de 1939, em relação ao qual muito pouco inovou substancialmente. Apoiados no falso dogma da indisponibilidade dos bens do Estado, os privilégios concedidos pela lei e pelos tribunais aos entes estatais alimentam a litigiosidade irresponsável que estes vêm praticando, mediante a propositura de demandas temerárias, oposição de resistências que da parte de um litigante comum seriam sancionadas como litigância de má-fé (CPC, arts.16-18), excessiva interposição de recursos etc. - tudo concorrendo ainda para o congestionamento dos órgãos judiciários e retardamento da tutela jurisdicional aos membros da população.A regra de interpretação sistemática e evolutiva dos princípios e garantias constitucionais (infra, n. 96) deveria produzir a consciência de que a isonomia de hoje não tem o mesmo significado político e a mesma dimensão da "isonomia" vigente ao tempo da Carta Constitucional outorgada pelo governo autoritário no ano de 1937, sob cujo império foi promulgado o Código de Processo Civil de 1939. Hoje é outra a fórmula de equilíbrio entre a autoridade do Estado e a liberdade e direitos dos particulares.

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84. o princípio do contraditório e sua dupla destinação

A garantia do contraditório, imposta pela Constituição com relação a todo e qualquer processo - jurisdicional ou não (art. 54, inc. LV) - significa em primeiro lugar que a lei deve instituir meios para a participação dos litigantes no processo e o juiz deve franquear-lhes esses meios. Significa também que o próprio juiz deve participar da preparação do julgamento a ser feito, exercendo ele próprio o contraditório. A garantia deste resolve-se portanto em um direito das partes e uma série de deveres do juiz. É do passado a afirmação do contraditório exclusivamente como abertura para as partes, desconsiderada a participação do juiz.

85. contraditório e partes

A participação a ser franqueada aos litigantes é uma expressão da idéia, plantada na ordem política, de que o exercício do poder só se legitima quando preparado por atos idôneos segundo a Constituição e a lei, com a participação dos sujeitos interessados. Tem-se por ponto de partida a essencial distinção entre atos de poder, que atingirão a esfera jurídica de pessoas diferentes de quem os realiza; e atos da vontade, ou negócios jurídicos, que se destinam à auto-regulação de interesses e são realizados pelos próprios titulares destes (autonomia da vontade). A força vinculante dos negócios jurídicos tem origem e legitimidade na vontade livremente manifestada. A daqueles, na participação dos destinatários segundo as regras pertinentes.Tal é uma derivação da conhecida tese da legitimação pelo procedimento, lançada em sede de sociologia política e de valia em relação a todas áreas de exercício do poder (Niklas Luhmann). Na realidade, o que legitima os atos de poder não é a mera e formal observância dos procedimentos, mas a participação que mediante o correto cumprimento das normas procedimentais tenha sido possível aos destinatários. Melhor falar, portanto, em legitimação pelo contraditório e pelo devido processo legal.Em qualquer sistema processual é imenso o valor da oferta de meios de participação aos litigantes, porque ordinariamente são eles os sujeitos mais aptos a fazê-lo, conhecendo melhor os fatos a alegar e os meios de prova disponíveis em cada caso. Além disso, a realidade mostra que o interesse pessoal é sempre a mais eficiente mola da defesa dos direitos e da sua efetividade. Quem vem ajuízo postular ou resistir é movido pela aspiração ao bem da vida litigioso, seja para obtê-lo (autor, demandante), seja para manter o status quo ante (réu, demandado). Sabido que o processo tem o escopo magno de eliminar conflitos, não só é natural que às pessoas envolvidas nestes se confie a iniciativa de procurar a ajuda do Poder Judiciário, sendo proibida ao juiz a instauração do processo de-oficio - como ainda que se conte com a participação de cada um, no curso do processo instaurado, em busca de solução favorável. Instaurado o processo, cresce hoje a tendência a reforçar os poderes do juiz e seus deveres de participação - mas ainda assim todo sistema processual é construido de modo a oferecer a cada uma das partes, ao longo de todo o procedimento, oportunidades para participar pedindo, participar alegando e participar provando. Oferecer-lhes his day in court é abrir-lhes portas para essa tríplice participação.O juiz, inerte no início e sempre atuando por provocação de parte (CPC, arts. 24 e 262), é um institucionalizado ignorante dos fatos que interessarão para o julgamento, sendo-lhe vedado decidir segundo o conhecimento que eventualmente tenha deles, fora dos autos (art. 131). As partes, conhecendo os fatos até porque os vivenciaram na maior parte dos casos, sabem de quais pessoas poderão valer-se como testemunhas, conhecem realidades captáveis mediante perícias (contábeis, médicas, de engenharia etc), têm documentos ou sabem onde estão. Daí seu interesse em participar e a legitimidade da exigência constitucional de que se lhes dê oportunidade para isso. Foi com vista a essa realidade que já falou a doutrina no processo como jogo (Calamandrei), sendo usual apontá-lo como a dinâmica do entrechoque entre uma tese sustentada pelo autor e uma antítese trazida pelo réu, ambas à espera da síntese que virá do juiz.

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Para cumprir a exigência constitucional do contraditório, todo modelo procedimental descrito em lei contém e todos os procedimentos que concretamente se instauram devem conter momentos para que cada uma das partes peça, alegue e prove. O autor alega e pede na demanda inicial; instituído o processo mediante o ajuizamento desta, o réu é admitido a pedir logo de início, podendo alegar fundamentos de defesa e postular a improcedência da demanda ou a extinção do processo; o autor pode pedir a antecipação da tutela, o que obterá se concorrerem os requisitos postos em lei (CPC, art. 273); ambas as partes são admitidas a produzir provas dos fatos alegados; a parte contrariada por uma decisão tem o caminho aberto para pedir ao Tribunal uma decisão favorável (recurso). Ao pedir, cada um dos litigantes alega, isto é, traz fundamentos destinados a convencer o juiz; e alega também, ao fim do procedimento e antes da sentença, analisando os fatos, as provas e as conseqüências jurídicas daqueles etc.No processo de conhecimento, todo procedimento apresenta momentos destinados à dedução de pedidos (fase postulatória) e outros à produção de provas e alegações (fase instrutória).5Essa é a dinâmica do pedir-alegar-provar, em que se resolve o contraditório posto à disposição das partes. Essa participação torna-se criticamente necessária para a defesa dos direitos em juízo quando surge algum ato contrário ao interesse do sujeito. Diz-se então que o contraditório se exerce mediante reação aos atos desfavoráveis, quer eles venham da parte contrária ou do juiz: reage-se à demanda inicial contestando e à sentença adversa, recorrendo.Por outro lado, a efetividade das oportunidades para participar depende sempre do conhecimento que a parte tenha do ato a ser atacado. O sistema inclui, portanto, uma atividade, posta em ação pelo juiz e seus auxiliares, consistente na comunicação processual e destinada a oferecer às partes ciência de todos os atos que ocorrem no processo. O primeiro e mais importante deles é a citação, indicada como a alma do processo, que é o ato com que o demandado fica ciente da demanda proposta, em todos os seus termos (CPC, art. 213), tornando-se parte no processo a partir de então (infra, nn. 661 e 1.028). Para o conhecimento dos atos que se realizam ao longo do procedimento, com o eventual chamamento a ter alguma conduta ou abster-se dela, existem as intimações (art. 234): o autor é intimado da defesa processual deduzida pelo réu, este é intimado quando o autor pede a antecipação da tutela, 6 a parte que requereu uma perícia é intimada a adiantar os honorários do perito, ambos são intimados das decisões e sentenças proferidas etc.

NOTA:

5 . O que não significa que só na fase postulatória se possam fazer pedidos, nem que toda prova e toda alegação sejam confinadas à fase instrutória (p.ex., documentos são trazidos já com a petição inicial ou com a contestação e estas devem conter alegações que a lei considera indispensáveis).6. Embora as medidas mais urgentes possam ser concedidas inaudita altera parte. Nesses casos, o contraditório é efetivado a posteriori.

Atenta a esse quadro de participação dos litigantes, a doutrina vem há algum tempo identificando o contraditório no binômio informação-reação, com a ressalva de que, embora a primeira seja absolutamente necessária sob pena de ilegitimidade do processo e nulidade de seus atos, a segunda é somente possível. Esse é, de certo modo, um culto ao valor da liberdade no processo, podendo a parte optar entre atuar ou omitir-se segundo sua escolha. No processo de conhecimento, o réu que não oferece contestação considera-se revel e a lei, legitimamente, endereça-lhe a pesada sanção consistente em mandar que em principio o juiz tome por verdadeiras todas as alegações verossímeis feitas pelo autor em matéria de fato (CPC, art. 319). Nem por isso, contudo, peca esse processo por falta de contraditório - dado que, com a citação regularmente feita, o demandado ficara ciente e isso significa que decorrem de sua própria omissão as conseqüências que ele suportará.Há casos em que a reação se impõe como absolutamente indispensável, falando a doutrina, com relação a eles, na necessidade de um contraditório efetivo. É o que se dá quando a citação tiver sido feita por meios precários, como a publicação de editais, vindo o réu a permanecer revel. A

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lei manda que o juiz dê curador a esse demandado (art. 94, inc. II), com o munus de oferecer obrigatoriamente a defesa, sob pena de nulidade de todos os atos processuais subseqüentes. Faz-se necessária uma reação que em casos normais seria somente possível, justamente porque a informação não foi feita de modo confiável. Não se sabe se o réu não respondeu à inicial porque não quis, ou porque não soube da sua propositura.

86. o contraditório no processo executivo

No processo de execução, que não comporta discussões nem julgamento sobre a existência do crédito - mas comporta-os com referência a outras questões - o contraditório que se estabelece endereça-se somente aos julgamentos que nesse processo podem ter lugar. Não há processo sem decisão alguma, não há decisão sem prévio conhecimento e não há conhecimento sem contraditório.Por isso, também no processo executivo está presente o trinômio pedir-alegar-provar, ao cabo de cuja realização o juiz decide. A vigente Constituição Federal não permite duvidar da inclusão do processo executivo na garantia do contraditório (art. 54, inc. LU) e isso é democraticamente correto porque não só o processo de conhecimento produz resultados capazes de atingir o patrimônio das pessoas: o de execução o atinge sempre, sendo que a execução por dinheiro produz o gravíssimo resultado consistente na expropriação do bem penhorado. Sendo a participação indispensável fator legitimante da imposição dos resultados do exercício do poder (supra, n. 85), seria ilegítimo privar o executado de participar do processo executivo - simplesmente sujeitando-se aos atos do juiz e suportando inerte o exercício do poder sobre os bens de sua propriedade ou posse. Além disso, mandando a lei que a execução se faça pelo modo menos gravoso possível (CPC, art. 620), não haveria como dar efetividade a essa regra medular da execução forçada se não fosse mediante a dialética do contraditório.O devedor tem, por exemplo, oportunidade para escolher o bem que prefere para sofrer penhora (nomeação à penhora: art. 655), para pedir redução desta ou substituição do bem penhorado por outro (art. 685, inc. I), para remir a execução, pagando (art. 651) etc. O credor pedirá o reforço de penhora (art. 685, inc. II), a adjudicação do bem penhorado (art. 671) etc. A ambas as partes é lícito pedir nova avaliação do bem (art. 683) ou a sua alienação antecipada (art. 670) etc. Aquele que pede ampara seu pedido com os fundamentos que tiver (alegações) e trará a prova do que alegar. Isso é contraditório, integrado pelo trinômio pedir-alegar-provar e apoiado pelo sistema de informações consistente na citação e intimações.

87. contraditório e tutela coletiva

A garantia do contraditório, que impõe a participação dos litigantes no processo, tem como corolários imediatos (a) a regra da legitimidade ad causam, não sendo uma pessoa admitida em juízo para defender em nome próprio interesses alheios (CPC, art. 64); b) a da eficácia da sentença restrita aos sujeitos que figuraram no processo como partes - não se podendo, p.ex., executar sobre o patrimônio do empregador a sentença proferida em face do preposto;7 c) a dos limites subjetivos da coisa julgada, não podendo um sujeito ficar vinculado ao teor de uma sentença proferida em processo no qual não haja sido parte (art. 472).Modernamente tais restrições vão sendo depuradas do significado individualista de que tradicionalmente se revestiam, entendendo-se que um processo conduzido por entidade dotada de legitimidade adequada segundo a lei possa produzir efeitos sobre pessoas integradas em determinado grupo ou comunidade. Tal é o fundamento da tutela coletiva preparada mediante o exercício das ações coletivas pelo Ministério Público, associações e outras entidades que a lei indica - e relacionadas com os valores do meio-ambiente, das relações de consumo etc. (LACP, art. 54; CDC, art. 82). A idoneidade dessas entidades qualificaas como legítimas substitutas processuais dos interessados e sua participação satisfaz às exigências do contraditório - agora visto da óptica do direito moderno e dos objetivos da tutela referente a direitos e interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos. Os efeitos da sentença e a autoridade da coisa julgada vão além dos próprios sujeitos que nesses casos figuram como autores, atingindo e

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vinculando os integrantes do grupo ou comunidade substituída no processo pelo autor (CDC, art. 103). Não reside nisso qualquer ultraje à garantia constitucional do contraditório, porque os entes qualificados para o exercício da ação pública atuam no interesse do grupo ou comunidade interessada, sendo tecnicamente qualificados como seus substitutos processuais (infra, nn. 440 e 548).

NOTA:

7. O art. 1.521, inc. III, do Código Civil, estabelece a responsabilidade civil do preponente pelos atos do empregado, mas essa é uma regra que se exaure no campo do direito substancial e significa somente que o primeiro tem obrigações derivadas das condutas do segundo. Como qualquer pessoa que em tese seja obrigada, o patrão só poderá suportar execução legítima em caso de ter sido parte no processo de conhecimento (CPC, art. 568, inc. I): permitir que contra ele se executem sentenças proferidas em face do empregado seria sujeitá-lo aos efeitos de um processo do qual não participou em contraditório. No entanto, não falta quem sustente o contrário, confundindo regras de direito material com as do processo.

88. contraditório e juiz

A garantia constitucional do contraditório endereça-se também ao juiz, como imperativo de sua função no processo e não mera faculdade (o juiz não tem faculdades no processo, senão deveres e poderes: infra, n. 497). A doutrina moderna reporta-se ao disposto no art. 16 do nouveau côde de procédure civile francês como a expressão da exigência de participar, endereçada ao juiz. Diz tal dispositivo: "o juiz deve, em todas as circunstâncias, fazer observar e observar ele próprio o princípio do contraditório". A globalização da ciência processual foi o canal de comunicação pelo qual uma regra de direito positivo de um país pôde ser guindada à dignidade de componente desse princípio universal, transpondo fronteiras. A participação que a garantia do contraditório impõe ao juiz consiste em atos de direção, de prova e de diálogo. A lei impõe ao juiz, entre seus deveres fundamentais no processo, o de participar efetivamente (infra, n. 509).Tal é a perspectiva do ativismo judicial, que vem sendo objeto de ardorosos alvitres nos congressos internacionais de direito processual, marcados pela tônica da efetividade do processo. Opõese aos postulados do adversary system prevalente no direito anglo-americano, onde o juiz participa muito menos (especialmente no tocante à colheita da prova) e desenvolve, como se diz, a relatively passive role.A direção do processo é exercida em primeiro lugar mediante o impulso do procedimento, do qual a lei expressamente encarrega o juiz (CPC, art. 262, parte final: o impulso oficial): nãoobstante seja das partes o interesse primário pela solução dos conflitos em que estão envolvidas, nem por isso se pode desconsiderar que o processo é o instrumento público de exercício de uma função pública - a jurisdição. Embora possam as partes ter a disponibilidade das situações de direito material pela qual litigam, não pode o Estado juiz permanecer inteiramente à disposição do que elas fizerem ou omitirem no processo, sem condições de cumprir adequadamente sua função. O processo não é um negócio, ou mesmo um jogo entre os litigantes, mas uma instituição estatal.Ao enunciar que "o processo civil começa por iniciativa da parte mas se desenvolve por impulso oficial-, o art. 262 do Código de Processo Civil deixa clara a distinção entre iniciativa e impulso - sendo aquela absolutamente privativa das partes, mas cabendo ao juiz endereçar ao destino final os processos que por iniciativa de parte tenham sido instaurados.Em princípio, por isso, as omissões dos litigantes não devem conduzir à paralisação do processo, sendo dever do juiz encaminhá-lo adiante segundo as regras do procedimento, para com isso poder realizar os objetivos da função jurisdicional mediante a prática do ato final desejável (sentença de mérito no processo de conhecimento, entrega do bem na execução forçada). A regra do impulso oficial, como desdobramento da participação que a garantia do contraditório

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impõe ao juiz, quer que ele determine ou realize os atos necessários independentemente de requerimento das partes. Só em casos extraordinários, que a lei indica, a omissão das partes conduz à paralisação ou mesmo à extinção do processo.O juiz não precisa aguardar a iniciativa das partes, muito menos consultá-las previamente, para designar a audiência preliminar exigida pelo art. 331 do Código de Processo Civil; idem, quanto à audiência de instrução e julgamento; se a parte que requereu perícia persistir em não depositar os honorários prévios, o juiz seguirá avante no procedimento sem essa prova, sendo indevida a extinção do feito por esse motivo. As hipóteses de abandono do processo, responsáveis pela extinção deste, são de aplicação excepcional e nos estritos termos das previsões contidas nos incs. 11-111 do art. 267 do Código de Processo Civil.O juiz exerce o poder-dever de direção do processo, também, mediante a atividade de saneamento, que é por definição inquisitiva e portanto independe de provocação das partes. Sanear significa depurar o processo de imperfeições, deixando-o em condições de prosseguir sem questões técnicas a resolver. Bem saneado o processo, resta somente produzir os meios de prova destinados ao julgamento das pretensões dos litigantes (mérito) e, naturalmente, julgar o mérito afinal. No procedimento ordinário brasileiro, é na audiência preliminar (art. 331 CPC) que em princípio o juiz declara saneado o processo, havendo antes determinado a realização de providências regularizadoras (arts. 317, 328) e sem embargo de continuar resolvendo questões processuais que sobrevierem (infra, nn. 1.130 ss.).O juiz saneia o processo, p.ex., mandando que as partes regularizem a representação, sob pena de extinção do processo ou revelia (CPC, art. 13); chamando o autor a suprir irregularidades da petição inicial ou exigindo-lhe o recolhimento de custas; apreciando questões sobre possibilidade jurídica, legitimidade ad causam (condições da ação). Para nenhuma dessas providências ele depende da iniciativa da parte contrária.A efetiva direção do processo, pelo impulso e saneamento, constitui fator importantíssimo para a celeridade da oferta de tutela jurisdicional, evitando atividades inúteis e retrocessos indesejáveis.Outro dever do juiz moderno é o de ter iniciativas probatórias em certos casos e em alguma medida. A visão tradicionalista do processo, com exagerado apego àquela idéia de um jogo em que cada um esgrima com as armas que tiver, levava à crença de que o juiz, ao tomar alguma iniciativa de prova, arriscar-se-ia temerariamente a perder a imparcialidade para julgar depois. Tal era o fundamento do princípio dispositivo, naquela visão clássica segundo a qual só as partes provariam e o juiz permaneceria sempre au-dessus de la mêlée, simplesmente recebendo as provas que elas trouxessem, para afinal examina-las e valora-las. Mas a vocação solidarista do Estado moderno, que não permanece naquele laissez faire, laissez passer da filosofia liberal, exige que o juiz seja um personagem participativo e responsável do drama judiciário, não mero figurante de uma comédia. Afinal, o processo é hoje encarado como um instrumento público que não pode ser regido exclusivamente pelos interesses, condutas e omissões dos litigantes - ele é uma instituição do Estado, não um negócio em família (Liebman).Por isso, o princípio dispositivo vai sendo mitigado e a experiência mostra que o juiz moderno, suprindo deficiências probatórias do processo, não se desequilibra por isso e não se torna parcial. Isso não significa que o juiz assuma paternalmente a tutela da parte negligente. O que a garantia constitucional do contraditório lhe exige e que saia de uma postura de indiferença e, percebendo a possibilidade de alguma prova que as partes não requereram, tome a iniciativa que elas não tomaram e mande que a prova se produza. Exige-lhe também, para a efetividade da isonomia processual (CPC, art. 125, inc. 1), que diligencie o que a parte pobre não soube ou não pôde diligenciar (até porque patrocinada por advogados dativos, nem sempre suficientemente aplicados). O processo civil moderno repudia a idéia do juiz Pilatos, que, em face de uma instrução mal feita, resigna-se a fazer injustiça atribuindo a falha aos litigantes. O art. 399 do Código de Processo Civil dá expressamente ao juiz esse poder-dever de suprir deficiências probatórias; o art. 33, mandando que o autor adiante os honorários do perito quando o exame tiver sido determinado de-oficio pelo juiz, confirma a existência desse poder. No art. 342 estabelece-se que o juiz chame as partes para serem interrogadas, a requerimento do adversário ou deoficio. Ainda existem vozes doutrinárias contra essa maneira de ver afigura do juiz no

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processo, mas o compromisso que todo juiz deve ter com o valor do justo não pode permitir solução diferente (infra, n. 784).O dever de iniciativa probatória é maior quando a relação jurídico-material litigiosa é marcada pela indisponibilidade: p.ex., o juiz jamais julgará improcedente uma ação de investigação de paternidade por insuficiência de provas, sob a alegação de que o autor não requereu o exame imunológico ou genético (HLA, DNA). É menos intenso esse poder-dever nos litígios sobre direitos disponíveis entre capazes, mas mesmo nessas hipóteses ele não se aniquila por completo porque isso significaria reduzir o juiz a mero espectador sem consciência da função pública que exerce no processo.O juiz participa em contraditório, também, pelo diálogo. A moderna ciência do processo afastou o irracional dogma segundo o qual o juiz que expressa seus pensamentos e sentimentos sobre a causa, durante o processo, estaria prejulgando e, portanto, afastando-se do cumprimento do dever de imparcialidade. A experiência mostra que o juiz não perde a eqüidistância entre as partes quando tenta conciliá-las, avançando prudentemente em considerações sobre a pretensão mesma ou a prova, quando as esclarece sobre a distribuição do ônus da prova ou quando as adverte da necessidade de provar melhor. Tais premissas estão presentes na instituição da audiência preliminar que a Reforma introduziu no procedimento ordinário brasileiro (CPC, art. 331), na qual o juiz tenta conciliar as partes e as alerta do ônus probatório a cargo de cada uma delas. Nem decai o juiz de sua dignidade quando, sentindo a existência de motivos para emitir de oficio uma decisão particularmente gravosa, antes chama as partes à manifestação sobre esse ponto. O juiz mudo tem também algo de Pilatos e, por temor ou vaidade, afasta-se do compromisso de fazer justiça.Essa última alternativa é também oriunda do art. 16 do nouveau côde de procédure civile francês, segundo o qual o juiz "não pode fundamentar sua decisão sobre pontos de direito que ele próprio haja suscitado de oficio, sem ter previamente chamado as partes a apresentar suas alegações". A riqueza dessa sábia disposição tem levado a doutrina a erigi-la também em mandamento universal, inerente à garantia constitucional do contraditório e ao correto exercício da jurisdição. O juiz, p.ex., que ouve as partes antes de extinguir o processo por uma ilegitimidade ad causam não alegada pelo réu e portanto não posta em contraditório entre as partes, não está manifestando uma suposta predisposição contra o autor, ou prejulgando: ao contrário, ele estará oferecendo ao próprio autor uma oportunidade para, alegando, dissuadi-lo daquela impressão inicial.

89. princípio da liberdade das partes

A liberdade, como valor humano de primeiríssima grandeza, integra a essência da democracia 8 e chega a constituir um verdadeiro centro em torno do qual uma série de garantias constitucionais gravita. Ela é formalmente assegurada no art. 54, caput, da Constituição Federal e, para propiciar a liberdade dos particulares em face do próprio Estado, a ordem constitucional institui garantias muito amplas, entre as quais avultam a do devido processo legal e a da legalidade. A primeira delas (art. 54, inc. LIV), resolvendo-se num sistema de limitações ao exercício do poder estatal, impede que a esfera de liberdade das pessoas seja invadida além do que for compatível com o regime democrático e com a própria Constituição. Pela garantia da legalidade, que é uma significativa especificação do substantive due process of law, resigna-se o Estado a só interferir nas escolhas das pessoas - e portanto na sua liberdade - mediante normas regularmente instituídas pelo Poder competente ("ninguém é obrigado afazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei ": art. 54, inc. II) (infra, n. 93).

NOTA:8. Democracia = liberdade + igualdade + participação (supra, n. 82).

Dizendo que legum omnes servi sumus ut liberi esse possumus,9 demonstravam os romanos a consciência do valor da legalidade como penhor de liberdade das pessoas.

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Não existe norma constitucional específica, portadora da garantia de liberdade das partes no processo. Essa liberdade é, todavia, óbvia projeção processual da própria garantia geral de liberdade (art. 5s, caput).I ° É também - e acima de tudo - uma intuitiva decorrência de várias outras garantias constitucionais do processo. O pleno e eficaz exercício das garantias de ingresso em juízo e acesso à justiça (art. 5s, inc. XXXV), do contraditório e da ampla defesa (art. 54, inc. LV) depende da liberdade que as partes tenham de atuar segundo suas próprias estratégias, suas escolhas, sua vontade e sua conveniência. O conteúdo dessa liberdade é representado pelo conjunto de faculdades de que as partes dispõem ao longo de todo o processo, qualquer que seja a espécie deste ou o tipo de procedimento. Sua medida é a medida das garantias constitucionais, cuja efetivação depende da livre atuação dos litigantes - porque a liberdade das partes outra coisa não é senão a faculdade de desfrutar dos benefícios oferecidos por aquelas. Respeitados os limites postos pela lei em harmonia com o sistema constitucional, cada uma das partes atuará como quiser e quando quiser, formulando pedidos e requerimentos na medida do que quiser e omitindo-se, se assim preferir, nos momentos em que entender de omitir-se. As manifestações da garantia constitucional da liberdade das partes transparecem ao longo de todo o processo, desde a sua instauração e até que se extinga.

NOTA:

9. Somos todos escravos da lei, para que possamos ser livres.10. Tanto quanto a igualdade das partes é uma projeção do princípio isonômico geral, ditado na Constituição (supra, n. 82).11. As faculdades processuais são situações jurídicas ativas que integram a complexa malha de situações jurídicas ativas e passivas denominada relação jurídica processual (infra, n. 492).

O exercício da ação é em primeiro plano regido pela faculdade de demandar em juízo, fazendo-o o sujeito no momento que escolher (respeitados, naturalmente, os prazos prescricionais ou decadenciais).Nos casos em que a lei admite o processo perante os juizados especiais (lei n. 9.099 de 26.9.95, esp. art. 34), o autor tem a liberdade de optar entre estes e os juízos ordinários.' 2 Estando presentes os requisitos para a tutela monitória (CC, arts. 1.102-a ss.), ainda assim ele é livre para agir pelo processo comum. Tem também a liberdade de demandar pelas vias ordinárias ainda quando o seu direito seja líqüido-e-certo e portanto suscetível de proteção pela via do mandado de segurança (Const., art. 54, inc. LXIX, e lei n 1.533, de 31.12.51). Trata-se de tutelas jurisdicionais diferenciadas que a Constituição e a lei instituíram com vista à celeridade e em beneficio do titular de certas situações especiais (causas de pequeno valor, prova documental suficiente, direito líqüido-e-certo etc.) - sendo regra geral a liberdade de dispor de vantagens como essas, o que o beneficiário fará quando preferir e até mesmo porque pode entender que isso lhe será mais conveniente em alguns casos.Assegura-se também ao autor a liberdade de pedir menos, ainda que tenha direito a mais - com a conseqüência de não poder receber tutela jurisdicional além dos limites do que tiver pedido: arts. 128 e 460 CPC.Havendo direitos concorrentes, terá a liberdade de pedir o objeto que preferir - como no caso do comprador de um imóvel admensuram, que, se as medidas deste não corresponderem ao estipulado em contrato, optará livremente entre postular a complementação da área, o abatimento do preço ou a rescisão do negócio (CC, art. 1.136).

NOTA:12. Esse tema foi muito polêmico, mas a jurisprudência encaminhou-se fortemente no sentido de reconhecer tal liberdade.

Ninguém pode ser coagido a demandar, mesmo nos casos excepcionalíssimos de litisconsórcio necessário ativo: se um dos sujeitos optar por não participar do litígio, a conseqüência será a inadmissibilidade da demanda daquele que vier sem a companhia dele - e não uma suposta

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coação a demandar (infra, n. 577).13 Nos casos em que o litisconsórcio é admissível (CC, art. 46), se não estiverem presentes os elementos que o caracterizariam como necessário o autor terá a liberdade de demandar sozinho ou de propor sua demanda em face de todos os legitimados passivos, ou de somente um deles, ou de quantos quiser (daí chamar-se facultativo o litisconsórcio nesses casos).Para a efetividade do contraditório e ampla defesa, pode o demandado opor exceção de incompetência ou omitir-se, deixando que se torne competente o foro em que foi proposta a demanda (prorrogação legal: CPC, art. 114). Pode impugnar o valor da causa ou deixá-lo como está (art. 261, par), denunciar a lide a terceiro ou deixar de fazê-lo (arts. 70 ss.), chamar ou não chamar terceiro ao processo (arts. 77 ss.) etc.Pode também optar pelos argumentos de defesa em que mais confiar, ou deduzir todas as defesas que tiver, ainda em caso de não serem totalmente compatíveis entre si (regra de eventualidade na defesa: infra, n. 1.070). E - o que é mais relevante que tudo - pode optar entre oferecer defesa ou omitir-se, ficando revel (arts. 329 e 322 etc.).O vencido poderá recorrer ou resignar-se com o julgamento desfavorável. As partes podem pedir a anulação um ato processual por motivo de nulidade relativa ou preferir que se convalide (art. 245) etc. etc.Pelo aspecto puramente técnico-formal, a liberdade das partes é assegurada mediante a regra geral de liberdade das formas (CPC, art. 154), segundo a qual os atos processuais revestir-se-ao, em princípio, da forma que seu produtor preferir (p.ex., nada impede que uma peça processual seja redigida em versos, desde que apresente todos os requisitos exigidos em lei). Mesmo nos casos em que a lei exija forma especial para o ato (petição inicial, interposição e razões de recurso etc.: arts. 282, 514), essa exigência é mitigada pela regra segundo a qual o puro erro de forma não terá conseqüências maiores que a anulação do próprio ato, sem atingir necessariamente os demais (arts. 248 e 250) e pelo chamado princípio da instrumentalidade das formas, que salva da anulação os atos cuja irregularidade não haja causado prejuízo e aqueles que, apesar da irregularidade, tenham atingido o objetivo (arts. 244 e 249, § 14: p.ex., a petição inicial não indicou o endereço do réu mas apesar disso ele veio a ser citado pessoalmente). Essas mitigações reforçam a liberdade formal das partes no processo.Forma do ato processual é o conjunto das características extemas de sua manifestação (lugar, tempo e modo de realização) (infra, n. 576). Opõe-se à substância do ato, que é dada pelo seu conteúdo específico. Uma petição inicial terá a forma que a lei exige (CPC, art. 282), mas o conteúdo será aquele que lhe der o autor, no exercício da sua liberdade de postular como melhor entender: ele narrará os fatos que lhe convêm, deduzirá o pedido que for do seu interesse, em face do sujeito que escolherá etc.

NOTA:

13. A demanda proposta sem participação de todos os legitimados necessários não será julgada pelo mérito e o processo extingüir-se-á (art. 267, inc. VI). Nemo ad agendum cogi potest: a providência estabelecida no parágrafo do art. 47 do Código de Processo Civil só se aplica aos casos de litisconsórcio necessário passivo.

Como é natural ao próprio conceito de liberdade, a das partes não é absoluta nem o sujeito está imune às possíveis conseqüências desfavoráveis das opções que fizer. A racionalidade e funcionalidade do princípio liberal no processo expressa-se no equilíbrio entre normas que concedem faculdades e outras que as restringem, relativizando o conceito de liberdade processual.Faculdade é a liberdade de conduta e de exercício dos direitos segundo escolhas próprias e o interesse de cada um (infra, n. 493). Mas no próprio regime político da democracia, do qual o sistema processual é uma reprodução a menor, é natural que a liberdade encontre limites ditados pelo interesse público e existência de outras liberdades a preservar. 14

NOTA:

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14. Constitui surradíssimo lugar-comum a afirmação de que a liberdade de cada um vai até onde encontra a liberdade de outrem.

Isso explica uma série de construções inerentes ao sistema, destinadas a promover o equilíbrio entre a liberdade de cada um dos litigantes e a do outro, bem como a compatibilidade da liberdade de ambos com o interesse público pelo correto exercício da jurisdição, com segurança para todos. Explica também, mais especificamente, a necessidade de observar as exigências formais do sistema, respeitando-se os prazos, realizando-se os atos no lugar adequado t7 e revestindo-se cada um deles de um mínimo de requisitos quanto ao modo de sua feitura;tg explica ainda as exigências éticas do sistema, resumidas no chamado princípio da lealdade processual que o Código de Processo Civil consagra e exalta (arts. 14-15), assim como as sanções cominadas aos infratores. Essas limitações à plena liberdade das partes acomodam-se em três categorias básicas, a saber:I - negação de uma faculdade ou redução de suas dimensões, não tendo a parte como agir segundo uma escolha própria. É o que sucede quando a lei proíbe que uma das partes, não tendo ainda prestado depoimento pessoal, assista ao do adversário (CPC, art. 344); ou quando condiciona a retirada dos autos de cartório, estando em curso um prazo comum para ambas as partes, ao prévio ajuste entre elas (art. 40, § 2-) etc. Inexistente uma faculdade, não tem a parte sequer a possibilidade de realizar o ato que quer ou de exteriorizar a escolha feita;

NOTA:

15. As mais significativas faculdades processuais têm por reverso outros tantos ônus - caracterizados estes como imperativos do próprio interesse (infra, n. 494) - cujo desempenho é importante para obter vantagens ou evitar desvantagens no processo (p.ex., o ônus de contestar e o de provar). As partes têm também deveres, que são imperativos de conduta geralmente acompanhados de uma sanção pelo descumprimento (infra, n. 498): dever de lealdade (art. 14, inc. 11), dever de dar cumprimento ao comando contido em sentença que condena a um jazer ou a um não-fazer (art. 461), dever de permanecer em lugar acessível e comparecer à presença do juiz sempre que solicitado (deveres impostos ao falido) (dec-lei n. 7.661, de 21.6.45, art. 34) etc. A imposição de ônus e deveres restringe o âmbito da liberdade das partes, mas essa restrição é legítima na medida em que concorra para o equilibrado dimensionamento das posições e das oportunidades de ambas no processo.16. CPC, arts. 177 ss. Em princípio, os atos de parte realizados fora do prazo não produzirão o efeito desejado: p.ex., uma apelação interposta depois dos quinze dias não devolverá a causa ao tribunal e não impedirá que a sentença passe em julgado (arts. 508, 508 etc.).17. O rol de testemunhas deve ser depositado pela parte no cartório e não no protocolo geral (art. 407).18. Os atos processuais em geral são escritos em português e não em outra língua (art. 156). A propositura da demanda deve vir em petição escrita e não em forma oral; a petição inicial deve indicar o juiz a quem é dirigida, o nome e qualificação das partes, o pedido, os fatos em que se fundamenta etc. (art. 282). A apelação precisa conter a crítica da sentença apelada e o explícito pedido de nova decisão art. 514) etc.

II - não-obtenção do efeito desejado. Existem atos que, embora materialmente tenha a parte a faculdade de realizá-los, ou de realizá-los pelo modo que escolher, não produzirão efeito algum ou só produzirão o efeito desejado se forem atendidos determinados requisitos. Tal ineficácia atinge tanto os atos unilaterais quanto os bilaterais das partes, sempre que não expressem escolhas amparadas pela lei. Não se pode dizer, v.g., que o autor não tenha a liberdade de propor sua demanda perante um órgão judiciário absolutamente incompetente (p.ex., demanda em face da União, proposta na Justiça do Estado) mas essa escolha será ineficaz porque em casos assim é dever do juiz determinar a remessa da causa ao órgão competente ainda quando não o requeira o réu (art. 113).'9 Materialmente, pode também a parte ou modificar os elementos da demanda depois de citado o réu (art. 264), ou realizar atos apesar de o processo estar

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suspenso (art. 266), ou recorrer sem recolher previamente as custas (art. 511), ou escolher o recurso de apelação quando for cabível o agravo ou vice-versa etc. - mas também esses atos e escolhas serão ineficazes e a modificação da demanda não será considerada pelo juiz, o ato realizado durante a suspensão processual não produzirá o efeito desejado 20 e o recurso sem preparo não progredirá, o mesmo sucedendo com o recurso mal escolhido ;21

NOTA:

19. A má escolha de um órgão relativamente incompetente (demanda proposta em foro que não é o domicílio do réu etc.) tornar-se-á eficaz se, no prazo para a defesa, o réu não suscitar a exceção de incompetência (art. 114).20. Rex., ato realizado quando falecida a parte contrária e antes que se dê a sucessão pelos herdeiros (arts. 265, inc. l, e 1.055 ss. Ressalva-se a eficácia de atos urgentes (art. 266).21. Ressalvados os casos de aplicação da regra da fungibilidade recursal.

III - sanções à parte infratora. Pelas escolhas ilegítimas que fizer - e independentemente do destino reservado aos atos decorrentes delas (v. acima) - em casos mais graves responderá a parte por conseqüências que variam em natureza e intensidade, segundo a lei. Em alguma medida a imposição dessas sanções é culto ao valor da lealdade processual e constitui o lado negativo das exigências éticas do processo, que o Código valoriza. Tal é o significado da genérica repressão à litigância de má-fé mediante a responsabilidade objetiva pelos danos causados (arts. 16-18); ou da multa em caso de ato atentatório à dignidade da Justiça (arts. 600-601); ou ainda da exclusão do contraditório à parte que inova no curso do processo mediante expedientes de alteração da situação de fato caracterizados como atentado (alienando o bem penhorado, prosseguindo em obra embargada etc.: arts. 879 ss.) etc. 22Esse conjunto de garantias, restrições e sanções é responsável pelo desejado equilíbrio da situação das partes na relação processual, associando-se por isso à exigência de tratamento isonômico entre elas (supra, n. 82). Nenhum princípio é absoluto na Constituição e cada um deles recebe legítimas limitações decorrentes da convivência com outros (infra, n. 96), mas, nos limites da liberdade consentida pela Constituição ou pela lei, não podem as partes ser tolhidas em sua faculdade de escolher e atuar segundo suas próprias escolhas. Não tem o juiz o poder de limitar faculdades que a lei não limite, nem é o legislador autorizado a estabelecer limitações que comprometam o livre exercício da ação e da defesa, em contraditório e segundo o devido processo legal. Além disso, as leis e as situações concretas que no processo surgem devem ser interpretadas de modo a favorecer razoavelmente o livre curso daquelas garantias, tendo as partes, em principio, a liberdade de atuar segundo suas próprias escolhas - ressalvada, obviamente, a relatividade da garantia constitucional da liberdade das partes e da sua configuração infraconstitucional.

NOTA:

22. As sanções que atingem diretamente o ato apenas (somente podendo repercutir nas pessoas) consistem nas ineficácias consideradas no parágrafo precedente e no desfazimento do ato - como o cancelamento de frases ou dizeres injuriosos (art. 15) ou de manifestações marginais ou interlineares (art. 161). Nada impede que de um ato ou escolha contrária à lei resulte uma sanção ao ato e também ao agente: é o caso dos embargos de declaração opostos com o intuito de retardar o andamento do processo, que não serão conhecidos e ainda sujeitarão o embargante a multa e, em caso de reincidência, à inadmissibilidade do novo recurso que vier a interpor (enquanto não tiver pago a multa) (art. 538, par.). Também o lançamento de cotas marginais ou interlineares sujeitará a parte a uma multa, além de serem elas riscadas.

Não pode o juiz, p.ex., exigir que a petição inicial ou razões recursais sejam redigidas em prosa, quando a lei só exige que tenham a forma escrita (arts. 282, 514 etc.). Nem poderia o legislador

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exigir cauções exageradas e capazes de impedir a propositura da demanda ou dedução de defesa. 23 O dever de dizer a verdade, ditado em lei (CPC, art. 17, inc.11), não pode ser interpretado de modo a obrigar a parte a prestar ao juiz informes do interesse do adversário: constitui exagero ter por atentatório à dignidade da Justiça o silêncio do executado quanto à localização de bens a penhorar (art. 600, me. IV). Ambas as partes têm a liberdade de omitir-se, silenciando.90. a liberdade, a disponibilidade da tutela jurisdicional e o valor do princípio inquisitivoEmbora seja sempre franqueada aos próprios interessados a mais ampla liberdade de agir, sendo exclusivamente seu o juízo sobre a conveniência e oportunidade da instauração do processo em busca de tutela jurisdicional (princípio da demanda: infra, nn. 398 e 540), uma vez formado este a tendência moderna é reforçar os poderes de direção e impulso do juiz. Não há oposição, contraste ou conflito entre a disponibilidade da tutela jurisdicional, que repudia a instauração de processos de-oficio pelo juiz; e o princípio inquisitivo, responsável pela efetividade do próprio poder jurisdicional estatal a ser exercido sempre que provocado. Exaure-se aquela no veto à iniciativa oficial, não chegando se quer ao ponto de permitir a unilateral e peremptória revogação da vontade de contar com o processo e com a tutela jurisdicional.

NOTA:

23. A Corte constitucional italiana julgou inconstitucional o art. 98 do codice di procedura civile, que exige a caução a ser prestada pelo autor quando houver fundada suspeita de que, sendo vencido, não terá como honrar os encargos da sucumbência (cautio pro expensis).

A extinção do processo de conhecimento por desistência depende sempre da anuência do adversário e homologação do juiz (art. 158, par.: infra, nn. 457 e 835). Uma vez instaurado o processo, a sua natureza pública e a supremacia do Estado juiz sobre as partes apontam para o exercício da jurisdição segundo as normas oriundas da Constituição e da lei e com a consciência do compromisso de pacificar com justiça e dar efetividade aos preceitos de direito substancial.Atuam pois em campos distintos a disponibilidade da tutela jurisdicional, que informa a conduta dos sujeitos antes da instauração do processo e até que ele se instaure; e o princípio inquisitivo, que diz respeito ao modo como o processo é conduzido.O princípio inquisitivo não é porém soberano no processo civil, nem deve chegar ao ponto de sobrepujar o dispositivo. Corresponde este à longa tradição privatista que por muito tempo imperou, desde as origens romanas, assentada sobre a premissa de que o processo seria mero exercício dos direitos e a ação, o próprio direito subjetivo em atitude de resgate de suas próprias forças (infra, n. 555) - donde a secular tendência a permitir que as partes tudo pudessem ao longo do processo, inclusive negligenciar no exercício das faculdades processuais, porque a conseqüência de suas condutas e omissões seria apenas o perecimento daquelas, as quais são em si mesmas disponíveis.No processo civil moderno a tendência é reforçar os poderes do juiz, dando relativo curso aos fundamentos do processo inquisitivo. Ele tem o dever não só de franquear a participação dos litigantes, mas também de atuar ele próprio segundo os cânones do princípio do contraditório, em clima de ativismo judicial (supra, n. 88). Repudia-se o juiz Pilatos, que deixa acontecer sem interferir. Daí os poderes judiciais de direção e impulso do processo, a serem exercidos em beneficio da tutela jurisdicional justa, tempestiva e efetiva (infra, nn. 730-732).Quando aplicado de modo absoluto, o principio dispositivo conduziria à integral liberdade concedida aos litigantes para determinar o ritmo do procedimento, os rumos da instrução processual etc. Embora sofra mitigações no processo civil moderno, ele conta porém com a força da natureza humana e das tendências hedonísticas do juiz menos empenhado - o qual prefere manter-se estático e esperar pelas provocações das partes.

91. princípio da publicidade dos atos processuais

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A publicidade dos atos processuais constitui projeção da garantia constitucional do direito à informação (Const., art. 5-, inc. XIV), em sua específica manifestação referente ao processo. Os agentes públicos, atuando como personificação viva do próprio Estado, dão contas de suas atividades aos sujeitos diretamente interessados, aos seus próprios superiores hierárquicos, aos órgãos de fiscalização institucionalizada e ao público, a bem da transparência destinada a permitir o controle interno e externo daquilo que fazem ou omitem. Para controle de seu grau de aplicação ao serviço público, lisura no proceder e qualidade do serviço, eles devem estar sob uma vigilância tal que permita a justa reação dos destinatários de seus atos, a formação de opinião pública e a atuação fiscalizadora e disciplinar dos órgãos competentes.No que diz respeito ao conhecimento pelas partes e seus patronos, as garantias constitucionais da publicidade dos atos do processo (Const., art. 52, inc. LX; art. 93, inc. IX) constituem apoio operacional à efetividade do contraditório, dado que as reações das partes são condicionadas à ciência dos atos que lhes dizem respeito (supra, n. 85). Por isso, no tocante às partes e seus advogados tais garantias não sofrem restrição alguma: o parágrafo do art. 155 do Código de Processo Civil, ao dizer que o direito de consultar autos e pedir certidões se restringe às partes e procuradores, não impõe qualquer requisito especial ao exercício dessa faculdade, que é inerente à ampla liberdade constitucionalmente garantida àquelas (supra, 1111. 89-90).O advogado como tal, não estando no patrocínio de qualquer das partes do processo, tem a prerrogativa de examinar os autos em cartório (art. 40, inc. 1), salvo nos casos de segredo de justiça. Há situações em que o interesse público ou a segurança ou privacidade das partes desaconselha o livre acesso dos advogados (art. 155, incs. 1-11: matéria de família). Dos processos de separação judicial ou divórcio, a terceiros só se franqueiam certidões da parte dispositiva da sentença - e sempre sob a condição de terem interesse jurídico em obtê-las - o mesmo sucedendo em relação ao inventário e partilha deles resultantes (art. 155, par.).A abertura do conhecimento dos autos aos órgãos superiores da jurisdição é um imperativo lógico do sistema de múltiplos graus jurisdicionais. Também se franqueia o acesso a eles, sem restrição alguma, aos órgãos censórios da Magistratura, como Corregedorias-Gerais e Conselhos Superiores, aos quais compete a fiscalização da conduta dos juízes inclusive para fins disciplinares.A publicidade geral dos atos processuais é tema mais problemático, dada a necessidade de preservar os valores inerentes ao direito à informação, permitindo ao público a fiscalização de seus juizes - e ao mesmo tempo equilibrá-los com a discrição inerente à função jurisdicional e defesa das partes, advogados, Ministério Público, testemunhas, peritos, juiz etc., contra os males do sensacionalismo. A fórmula brasileira desse equilíbrio inclui a publicidade das audiências, admitida a presença de pessoas estranhas ao processo - sempre ressalvados os casos de segredo de justiça (art. 444). Mas tem sido negada, tanto no Brasil como alhures, autorização à transmissão televisiva ou radiofõnica de audiências ou sessões de julgamento ao vivo.Opondo-se de modo jocoso à liberação dos atos processuais aos órgãos da mídia, num dos recentes congressos mundiais de direito processual um de seus participantes (Marcel Storme) figurou o início de uma transmissão dessas, com o locutor dizendo: "agora, por especial patrocínio de Coca-Cola, passamos a ouvir a palavra de Sua Excelência o sr. Juiz".Com esses contornos constitucionais e infraconstitucionais, a publicidade que se tem no Brasil é a chamada publicidade restrita e não a popular. Protegem-se por inteiro as partes contra os males dos julgamentos secretos, permitindo-se sua presença a todas as audiências e acesso aos autos em que litigam, mas impõem-se restrições ao acesso de estranhos aos autos do processo e à divulgação irrestrita dos atos processuais.No processo civil italiano as partes e procuradores estão presentes à instrução, mas ausentes da sessão de julgamento, fazendo-se este em camera di consiglio. Antes da Constituição Federal de 1988 havia no Brasil esse julgamento secreto, em conselho, no tocante às argüições de relevância da questão federal, que eram requisito de admissibilidade do recurso extraordinário em certos casos.

92. Princípio do duplo grau de jurisdição

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A Constituição Federal expressa clara opção pela possibilidade de recursos contra as decisões judiciárias, (a) ao estabelecer a competência dos tribunais de superposição para o julgamento do recurso ordinário, do extraordinário e do especial (STF: art. 102, ines. 11-11- STJ: art. 105, incs.11-111) (b) ao dispor sobre os recursos a serem endereçados aos tribunais integrantes da Justiça da União (Superior Tribunal Militar, Tribunal Superior do Trabalho, Tribunal Superior Eleitoral e Tribunais Regionais Federais) (quanto aos últimos, art. 108, inc. 11) e (c) ao prever órgãos inferiores e superiores nas Justiças Estaduais.Essa opção, tradicionalmente plantada na ordem constitucional brasileira e de todo o mundo ocidental, significa que a Constituição tem por superadas as velhas quizílias doutrinárias em que se apontavam supostos males capazes de desaconselhar a admissibilidade de recurso contra as decisões dos juízes; ela consagra a orientação vigente em todo o mundo civilizado atual, ao consagrar o que ordinariamente se denomina princípio do duplo grau de jurisdição.Dizia-se, p.ex., que a confirmação do julgado em segundo grau seria uma desnecessária e anti-econômica duplicação de atividades, enquanto que sua reforma desprestigiaria os juizes perante a opinião pública, sendo humanamente possíveis os erros em qualquer grau de jurisdição.Muito mais fortes e legítimas que as objeções lançadas no passado são as razões que fundamentam o princípio. Delas, as mais importantes são de ordem político-institucional e consistem (a) na conveniência de evitar a dispersão de julgados e assim promover a relativa uniformização da jurisprudência quanto à interpretação da Constituição e da lei federal, o que não seria factível se cada um dos milhares dos juízos de primeiro grau decidisse em caráter definitivo; b) a necessidade de pôr os juízes inferiores sob o controle dos superiores, como modo de evitar desmandos e legitimar a própria atuação do Poder Judiciário como um todo. Nesse contexto, o princípio do duplo grau de jurisdição constitui elemento do desejável equilíbrio entre a segurança jurídica (que aconselha a outorga de tutela jurisdicional com a maior brevidade possível) e a ponderação nos julgamentos, responsável pela melhor qualidade e maior confiabilidade destes (supra, n. 54).Existe ainda a conveniência psicológica de oferecer aos perdedores mais uma oportunidade de êxito, sabendo-se que ordinariamente há maior probabilidade de acerto nos julgados por juízes mais experientes e numerosos (especialmente no Brasil, em que os órgãos de primeiro grau são monocráticos e os tribunais julgam em colegiado): confinar os julgamentos em um só grau de jurisdição teria o significado de conter litigiosidades e permitir que os estados de insatisfação e desconfiança se perpetuassem - provavelmente acrescidos de revoltas e possíveis agravamentos.Esse princípio, na realidade, pode conduzir a uma pluralidade de graus jurisdicionais, não apenas duplicidade. Como em cada uma das Justiças existentes no país há órgãos situados no mínimo em dois planos; e como em superposição a elas, sem pertencer a nenhuma, há o Supremo Tribunal Federal (bem como o Superior Tribunal de Justiça, em superposição à Justiça Federal, às dos Estados e à do Distrito Federal) - as decisões dos órgãos inferiores podem ser objeto de reexame pelo órgão imediatamente superior e assim sucessivamente. O acesso aos órgãos recursais competentes é feito por iniciativa da parte vencida e cada recurso está sujeito a uma série de pressupostos de admissibilidade, colocados pela lei (especialmente Código de Processo Civil) e pela própria Constituição. Os recursos extraordinários e especial - da competência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça - são sujeitos a pressupostos especialíssimos e só se admitem com fundamento em violação à Constituição Federal ou à lei federal; sua admissibilidade é extraordinária no sistema, de modo que na maioria dos casos os graus jurisdicionais concretamente admissíveis são realmente dois e não plúrimos.Concorrendo os pressupostos de admissibilidade dos recursos, a parte contrariada por uma decisão em primeiro grau de jurisdição (juiz singular, varas) tem a faculdade de pedir novo julgamento por um Tribunal de Alçada ou pelo Tribunal de Justiça, conforme o caso (Justiças Estaduais), ou por um Tribunal Regional Federal (Justiça Federal). O recurso cabível será de apelação ou agravo, conforme o caso. Em alguns casos, no seio do próprio tribunal que julgou o recurso cabe mais outro (embargos infringentes), que ele julgará com uma composição mais ampla (maior número de julgadores). Esse terceiro grau de exame não corresponde a um terceiro grau de jurisdição, pelo próprio fato de o novo reexame ser feito pelo mesmo tribunal.

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Existem ainda os casos em que, independentemente da interposição de qualquer recurso, a sentença de primeiro grau de jurisdição jamais passa em julgado e, por determinação oficiosa do juiz, é necessariamente sujeita a reexame pelo tribunal competente para a apelação (duplo grau obrigatório, ou reexame necessário, ou remessa oficial: CPC, art. 475) (supra, n. 83; infra, n. 958).A censura feita pelo órgão ad quem (destinatário do recurso) situa-se no plano puramente jurisdicional e resolve-se em novo julgamento da causa ou de alguma pretensão incidente a ela, 24 sem interferir na independência do juiz a quo. Os tribunais não ditam parâmetros para julgamentos futuros e limitam-se a dar solução ao caso, sem desdouro para o juiz inferior.O primeiro reflexo prático do princípio do duplo grau de jurisdição consiste no veto às avocações, que nos processos administrativos se admitem: 25 como é inerente à garantia constitucional do juiz natural, todas as causas se propõem exclusivamente perante o juiz que seja competente segundo os ditames da Constituição ou da lei, sendo excluída qualquer alteração dessas regras mesmo pelos mais elevados tribunais do país (supra, mi. 80-81). Só se tem acesso aos tribunais quando, proferida a decisão pelo órgão competente, houver recurso da parte - salvo os casos de competência originária ou de remessa oficial (art. 475), que são excepcionais e também decorrem sempre do direito positivo. Fora disso, o julgamento feito com supressão de grau jurisdicional é infringente às próprias normas sobre competência e à garantia do juiz natural.

NOTA:24. Rex., decisão que deferiu ou indeferiu o pedido de realização de uma prova.25. "Avocar é chamar a si funções originariamente atribuídas a um subordinado " (Hely Lopes Meirelles). Em direito processual, avocação é a chamada do processo por um órgão jurisdicional superior, com supressão de seu julgamento pelo inferior ou mesmo intermediário (Tribunais de Justiça etc.).

Em princípio, os recursos a um tribunal são interpostos contra decisão do órgão imediatamente inferior, excluída a admissibilidade de recursos per saltum. Vai-se aos Tribunais de Justiça, aos de Alçada e aos Regionais Federais com recurso contra ato do juiz de primeiro grau. Vai-se ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça recorrendo de acórdãos desses tribunais; ao Supremo Tribunal Federal, também contra acórdão do Superior Tribunal Federal. Em dois casos excepcionalíssimos a Constituição permite o recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal contra decisões de primeiro grau jurisdicional, sem passar pelos tribunais competentes para as apelações: a) contra julgamentos dos órgãos recursaís dos juizados especiais cíveis, dos quais não cabe apelação aos tribunais locais ou recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça; b) nos embargos a execuções fiscais de pequeno valor.Diferentemente dos demais princípios integrantes da tutela constitucional do processo, este não é imposto pela Constituição com a exigência de ser inelutavelmente observado pela lei. Além de não explicitar exigência alguma a respeito, ela própria abre caminho para casos em que a jurisdição será exercida em grau único, sem possibilidade de recurso. Assim sucede com os casos de competência originária dos tribunais da Justiça Comum (Regionais Federais, de Justiça, de Alçada), cujos acórdãos só poderão ser objeto de recurso extraordinário ou especial quando concretamente concorrerem os rigorosíssimos pressupostos a que estes estão condicionados. Mais excepcional ainda é a recorribilidade dos acórdãos do próprio Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça (os deste podem ser objeto de recurso àquele).Situação peculiar é a das sentenças proferidas pelos juizados especiais cíveis, que estão sujeitas a um recurso endereçado a um colegiado composto por juízes de primeiro grau (não desembargadores, nem juizes de alçada) e sediado nos próprios juizados. Essa construção, presente na primitiva Lei das Pequenas Causas (lei n. 7.244, de 7.1.84), foi elevada a nível constitucional (Const., art. 98, inc.1) e transparece agora na vigente Lei dos Juizados Especiais (lei n. 9.099, de 26.9.95, art. 41).Sem que haja uma autêntica garantia do duplo grau de jurisdição, poder-se-ia pensar na compatibilidade constitucional de disposições legais que o excluíssem, criando bolsões de

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irrecorribilidade. Casos assim extremos transgrediriam o essencial fundamento político do duplo grau, que em si mesmo é projeção de um dos pilares do regime democrático, abrindo caminho para o arbítrio do juiz não sujeito a controle algum (Coast., art. 5º, § 2º). Além disso, uma disposição dessa ordem seria incompatível com os padrões do devido processo legal - esse, sim, garantido constitucionalmente.Duas leis da mesma data, disciplinadoras da execução fiscal e dos processos em geral afetos à Justiça Federal (leis nn. 6.825 e 6.830, de 22.9.80), excluem o acesso aos órgãos recursais em causas abaixo de determinado valor econômico,26 cabendo recurso para o próprio juízo prolator da sentença. Tais disposições são suspeitas de inconstitucionalidade mas nenhuma delas foi dada por inconstitucional pelos tribunais competentes.

NOTA:

26. Cinqüenta ORTNs.

93. exigência constitucional de motivação das sentenças e demais decisões judiciárias (infra, n. 1.223)

Também ligada ao pressuposto político da necessidade de controle das atividades do juiz é a exigência constitucional de motivação das sentenças e demais atos jurisdicionais (Coast., art. 93, inc. IX). A regra do livre convencimento dá ao julgador a prerrogativa de valorar os elementos probatórios do processo segundo sua própria inteligência e sensibilidade, sem estar vinculado a estritos critérios legais que predeterminassem o valor de cada meio de prova ou, menos ainda, o de cada prova em concreto (CPC, art. 131) (infra, nn. 813 ss.). Além disso, a ampla independência funcional do juiz deixa-o livre para tomar suas próprias decisões, sem imposições nem influências de outras pessoas ou órgãos, mesmo dos órgãos superiores da própria Magistratura. Para conferir racionalismo e legitimidade a toda essa independência de que goza o juiz, é preciso exigir que preste contas do que decide, explicitando as razões pelas quais chega às conclusões adotadas. Daí a exigência de motivação, ditada também na lei ordinária ao estabelecer a tríplice estrutura das sentenças (relatório-motivação-dispositivo: CPC, art. 458). Disposição como essa existe também com relação à sentença arbitral (art. 26 LA).O art. 131 do Código de Processo Civil, ao fixar a regra do livre convencimento, manda que este se forme com base nos elementos de prova existentes nos autos, o que levou a doutrina a definir a regra do livre convencimento motivado (José Rogério Cruz e Tucci). Motivando adequadamente, o juiz presta contas de sua conduta às próprias partes, aos órgãos superiores da Magistratura e à opinião pública, para os devidos controles e particularmente para aquele que se faz em via recursal.Para cumprir seu objetivo político e atender às exigências da Constituição e da lei, a motivação deve ser tal que traga ao leitor a sensação de que o juiz decidiu de determinado modo porque assim impunham os fundamentos adotados, mas decidiria diferentemente se tivesse adotado outros fundamentos - seja no exame da prova, seja na interpretação do sistema jurídico. Tal é a exigência de coerência na motivação, sem a qual ela é irregular e a sentença, nula. Exige-se também que a motivação seja completa, sem omitir pontos cuja solução pudesse conduzir o juiz a concluir diferentemente. Sempre que a sentença seja repartida em capítulos, cada um deles consistindo no julgamento de uma pretensão, todos eles devem ser precedidos de uma motivação que justifique a conclusão assumida pelo juiz (infra, nn. 890-891).A exigência de inteireza da motivação (Michele Taruffo) não chega ao ponto de mandar que o juiz se manifeste especificamente sobre todos os pontos, mais relevantes ou menos, ou mesmo sem relevância alguma ou quase sem relevância, que as partes hajam suscitado no processo. O essencial é motivar no tocante aos pontos relevantes e essenciais, de modo que a motivação lançada em sentença mostre que o juiz tomou determinada decisão porque assumiu determinados fundamentos com que esta guarda coerência. A regra de equilíbrio é esta: motiva-se no essencial e relevante, dispensa-se relativamente a motivação no periférico e circunstancial.

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Sem ser um princípio, a exigência de motivação adequada figura como uma garantia constitucional das mais relevantes e insere-se no quadro de imposições ao juiz e limitações à sua liberdade de atuação, caraterizado pela cláusula due process of law.A jurisprudência tem por insuficientemente motivados os acórdãos que, ao negar provimento a um recurso, limitam-se a dizer que o ato de primeiro grau de jurisdição fica mantido por seus próprios e jurídicos fundamentos. Tal é a motivação per relationem, que também a doutrina encara com extrema cautela. Mas a Lei dos Juizados Especiais admite que, no caso de o colégio recursal negar provimento ao recurso pelos próprios fundamentos da sentença, a súmula de julgamento sirva de acórdão (art. 46).O art. 165 do Código de Processo Civil admite a fundamentação concisa nas decisões dos relatores e presidentes de tribunal, bem como nas decisões interlocutórias do juiz de primeiro grau de jurisdição - reservando a exigência de motivação plena às sentenças e acórdãos (v. art. 162). Também concisa é a fundamentação das sentenças dos juizados especiais cíveis, bastando-lhes a indicação dos elementos de convicção do juiz (lei n. 9.099, de 26.9.95, art. 38); os acórdãos do colégio recursal trarão fundamentação sucinta (art. 46). Mas autorizar a fundamentação concisa ou sucinta não significa dispensar a motivação ou sua inteireza, pois isso viria de encontro à Constituição Federal (infra, nn. 1.223-1.224).

NOTA:

27. Salvo quando o recorrente nada argumentara contra a decisão inferior, limitando-se a transcrever argumentos trazidos ao juiz antes da prolação desta.

94. a convergência dos princípios e garantias constitucionais do processo civil. devido processo legal

A expressa garantia do due process of law, contida no inc. LIV do art. 5- da Constituição Federal, tem o significado sistemático de fechar o círculo das garantias e exigências constitucionais relativas ao processo, numa fórmula sintética destinada a afirmar a indispensabilidade de todas e reafirmar a autoridade de cada uma. Esse enunciado explícito vale ainda como norma de encerramento portadora de outras exigências não tipificadas em fórmulas mas igualmente associadas à idéia democrática que deve prevalecer na ordem processual (art. 54, § 24) .A doutrina tem muita dificuldade em conceituar o devido processo legal e precisar os contornos dessa garantia - justamente porque vaga e caracterizada por uma amplitude indeterminada e que não interessa determinar. A jurisprudência norte-americana, empenhada em expressar o que sente por due process of law, diz que é algo que está em torno de nós e não sabemos bem o que é, mas influi decisivamente em nossas vidas e em nossos direitos (juiz Frankfurter). À cláusula atribui-se hoje uma dimensão que vai além dos domínios do sistema processual, apresentando-se como um devido processo legal substancial que, em essência, constitui um vínculo autolimitativo do poder estatal como um todo, fornecendo meios de censurar a própria legislação e ditar a ilegitimidade de leis que afrontem as grandes bases do regime democrático (substantive due process of law).Ao proclamar genericamente que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" (art. 54, inc. LIV), quis a Constituição brasileira pôr esses valores sob a guarda dos juizes, não podendo eles ser atingidos por atos nãojurisdicionais do Estado. Quis também proclamar a autolimitação do Estado no exercício da própria jurisdição, no sentido de que a promessa de exercê-la será cumprida com as limitações contidas nas demais garantias e exigências, sempre segundo os padrões democráticos da República brasileira (supra, n. 41). O poder estatal exercido pelo juiz sofre todas as limitações inerentes ao Estado-de-direito democrático, não podendo ele avançar sobre competências de outros juizes e não podendo, ainda quando eventualmente lho autorize a lei, exercer o poder de modo capaz de comprimir as esferas jurídicas dos jurisdicionalizados além do que a Constituição permite.

NOTA:

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28. O funcionário que causa dano ao Estado responde por ele e as leis administrativas costumam estabelecer o limite de dez por cento dos vencimentos para descontos mensais até que ressarcido o dano. Mas a jurisprudência tem como certo que mesmo esses descontos só poderão ser feitos por ordem do juiz e como ato do processo de execução forçada (penhora), depois de regular condenação. A Administração é vedado impô-los, numa autotutela que transgrediria a garantia do devido processo legal.

Isso significa, em primeiro lugar, que nenhuma técnica ou prática processual poderá estreitar tanto os canais de acesso à tutela jurisdicional, que a Justiça se torne insuportavelmente seletiva e deixe resíduos não jurisdicionalizáveis capazes de comprometer o sistema (p.ex., exacerbando exigências sem as quais o mérito das causas não possa ser julgado). Técnicas e práticas contrárias à tendência de universalização da tutela jurisdicional seriam a negação da garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional (Const., art. 54, inc. XXXV; supra, n. 42). A fórmula due process of law importa ainda reafirmação da garantia de igualdade entre as partes e necessidade de manter a imparcialidade do juiz, inclusive pela preservação do juiz natural (supra, mi. 80-82). Ela tem também o significado de mandar que a igualdade em oportunidades processuais se projete na participação efetivamente franqueada aos litigantes e praticada pelo juiz (garantia do contraditório, art. 511, inc. LV, supra, nn. 84, 85 e 88). Absorve igualmente a regra de que as decisões judiciárias não-motivadas ou insuficientemente motivadas serão nulas e portanto incapazes de prevalecer (a exigência de motivação: Const., art. 93, inc. IX; supra, n. 92) e a de que, com as naturais ressalvas destinadas à preservação da ordem pública e da intimidade pessoal, os atos processuais deverão ser dotados de publicidade (supra, n. 90); etc.É óbvio que nenhuma dessas garantias teria necessidade de reafirmação ou suporte mediante a cláusula genérica do devido processo legal. Ela tem, contudo, o mérito de traçar o perfil de mocrático do processo e atrair à órbita das medidas de tutela constitucional certas garantias não caracterizadas como verdadeiros princípios ou lançadas de modo genérico em outros dispositivos constitucionais mas que com ele guardem pertinência (Cintra-Grinover-Dinamarco). Diante disso, consideram-se incluídas no quadro do devido processo legal as garantias de inadmissibilidade da prova obtida por meios ilícitos (art. 54, inc. LVI), da inviolabilidade do domicílio (art. 54, inc. XI), do sigilo das comunicações e dados (art. 54, inc. XII) etc.; e, se alguma disposição infraconstitucional for emitida ou alguma decisão judiciária proferida, sem infração a qualquer dessas garantias assim tipificadas mas violando as premissas do Estado liberal democrático, ela será violadora da garantia ampla e vaga do due process of law - e por isso carecerá de legitimidade constitucional.Daí o caráter organizatório da cláusula. Outros modelos constitucionais, menos explícitos que o brasileiro, contentam-se em anunciá-la sem especificar garantias particularizadas, reportandose os juízes ao due process sempre que se vejam diante de uma situação infratora ao espírito democrático da nação e aos grandes pilares político-liberais plantados na Constituição.O perfil de processo que resulta dessa garantia é o do processo justo e équo que, na voz da mais moderna doutrina, é o processo regido por garantias mínimas de meios e de resultado, com emprego de instrumental técnico-processual adequado e conducente a uma tutela adequada e efetiva (Luigi Paolo Comoglio). O contexto de garantias tipificadas e atípicas contidas na fórmula due process of law oferece aos litigantes um direito ao processo justo, com oportunidades reais e equilibradas.Direito ao processo justo é, em primeiro lugar, o direito ao processo tout court - assegurado pelo princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional que a Constituição impõe mediante a chamada garantia da ação. Sem ingresso em juízo não se tem a efetividade de um processo qualquer e muito menos de um processo justo. Garantido o ingresso em juízo e até mesmo a obtenção de um provimento final de mérito, é indispensável que o processo se haja feito com aquelas garantias mínimas: a) de meios, pela observância dos princípios e garantias estabelecidas;b) de resultados, mediante a oferta de julgamentos justos, ou seja, portadores de tutela jurisdicional a quem efetivamente tenha razão.

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Os meios, sendo adequadamente empregados, constituem o melhor caminho para chegar a bons resultados. E, como afinal o que importa são os resultados justos do processo (processo civil de resultados), não basta que o juiz empregue meios adequados se ele vier a decidir mal; nem se admite que se aventure a decidir a causa segundo seus próprios critérios de justiça, sem ter empregado os meios ditados pela Constituição e pela lei. Segundo a experiência multissecular expressa nas garantias constitucionais, é grande o risco de erro quando os meios adequados não são cumpridos.passado. Os textos comportam diferentes leituras, conforme o contexto em que se inserem - contexto que varia no espaço e evolui no tempo e cuja configuração em dado país e em dado momento é determinante do significado das palavras contidas na Constituição e na lei.Tal é a expressão e o. fundamento da regra de interpretação sistemática e evolutiva a que devem ser submetidos os textos constitucionais responsáveis pelo direito processual constitucional (supra, n. 31).Eis o conceito e conteúdo substancial da cláusula due process of law, amorfa e enigmática, que mais se colhe pelos sentimentos e intuição do que pelos métodos puramente racionais da inteligência.

95. o acesso à justiça como princípio-síntese e objetivo final

As promessas e limitações residentes nas diversas garantias constitucionais e interligadas pelo fio condutor que é o devido processo legal têm um só e único objetivo central, que é o acesso à, justiça. O processo justo, celebrado com meios adequados e produtor de resultados justos, é o portador de tutela jurisdicional a quem tem razão, negando proteção a quem não a tenha. Nem haveria justificativa para tanta preocupação com o processo, não fora para configurá-lo, de aperfeiçoamento em aperfeiçoamento, como autêntico instrumento de condução à ordem juridica justa. Tal é o que se propõe quando se fala em processo civil de resultados (supra, nn. 40 e 43).

96. interpretação sistemática e evolutiva dos princípios e garantias constitucionais do processo civil

A evolução das idéias políticas e das fórmulas de convivência em sociedade repercute necessariamente nos modos de interpretação e na dimensão semântica de palavras que, embora mantidas nos textos constitucionais ou legais, acabam por transmitir idéias diferentes daquelas de que foram portadoras noIndica-se como ilustração dessas variações interpretativas a substancial evolução do entendimento dado à garantia da igualdade no sistema constitucional norte-americano: as limitações à liberdade da população negra foram gradualmente restringidas e algumas delas, que antes não eram consideradas incompatíveis com a regra constitucional da isonomia, depois vieram a ser repudiadas porque se passou a entender que são proibidas pela Constituição - sem que esta houvesse sofrido qualquer emenda que alterasse o teor formal da garantia. Caso expressivo foi o de um negro submetido a júri, havendo a justiça local impedido a participação de negros no colegiado, atendendo ao disposto em lei estadual; a Corte Suprema julgou inconstitucional essa lei discriminatória.No Brasil, significativo exemplo é a evolução da extensão da garantia do controle jurisdicional, formalmente inalterada desde regimes constitucionais pretéritos (hoje, art. 54, inc. XXXV) - particularmente no tocante aos limites da censurabilidade dos atos da Administração pelos juizes. Constitui visível tendência dos tribunais brasileiros o deslocamento da linha divisória entre os aspectos legais do ato - que comportam exame pelo Poder Judiciário (Súmula 473 STF) - e o mérito do ato administrativo, que o sistema,constitucional de separação entre os Poderes do Estado imuniza a esse exame. Sem alteração em texto algum e mantendo-se até a fórmula básica (censurabilidade da forma, incensurabilidade do mérito), hoje os tribunais vão além daquilo que ousavam em tempos passados e chegam bem mais próximos ao chamado mérito do ato administrativo (p.ex., revendo a prova feita no processo administrativo, com fundamento na qual o administrador tomara decisões em matéria disciplinar). Essa evolução, consistente em

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ampliar a órbita do controle jurisdicional, é efeito do espírito liberal das Constituições modernas e da generalizada tendência à universalização da tutela jurisdicional - responsável pela minimização dos resíduos conflituosos não jurisdicionalizáveis (supra, n. 42).Ainda em relação à garantia do controle jurisdicional, sente-se hoje a tendência à tutela jurisdicional relacionada com meros interesses (ou interesses juridicamente protegidos), os quais são menos que os direitos subjetivos e no passado, por influência dos países onde existe o contencioso administrativo, no Brasil eram excluídos de qualquer tutela. Acreditava-se que as regras edilícias sobre recuo e afastamento entre prédios urbanos fossem ditadas exclusivamente em favor do interesse público gerido pelas municipalidades, não tendo o vizinho direito à tutela jurisdicional destinada a impor sua observância.Em substância, no que diz respeito aos princípios e garantias individuais a regra de interpretação sistemática e evolutiva deve ser avaliada e praticada à luz da suprema garantia do acesso à justiça - entendida esta como penhor da justiça que o sistema processual é encarregado de promover. Para a efetividade dessa garantia é indispensável um sistema processual capaz de assimilar conflitos com toda a generalidade possível e de dar-lhes tratamento adequado, de modo a não produzir injustiças em casos concretos (v. ainda supra, n. 42). Interpretar assim as garantias constitucionais do processo é adequá-lo às exigências de processo équo e justo, que o pensamento processualístico moderno postula.Essa premissa metodológica é que está fazendo falta, nos pronunciamentos da Justiça brasileira em relação aos privilégios concedidos ao Estado em juízo (supra, n. 83).Nessa interpretação sistemática é indispensável ter em conta o grande número de princípios e garantias integrantes da tutela constitucional do processo, o qual é responsável por muitas superposições e criam clima para dificuldades interpretativas decorrentes de aparentes incompatibilidades. A regra de ouro para a solução de problemas dessa ordem é a lembrança de que nenhum princípio constitui um objetivo em si mesmo e todos eles, em seu conjunto, devem valer como meios de melhor proporcionar um sistema processual justo, capaz de efetivar a promessa constitucional de acesso à justiça (entendida esta como obtenção de soluções justas - acesso à ordem jurídica justa) (supra, mi. 40 e 43). Como garantia-síntese do sistema, essa promessa é um indispensável ponto de partida para a correta compreensão global do conjunto de garantias constitucionais do processo civil.Não fora essa seguríssima premissa metodológica, haveria grande dificuldade para a justificação sistemática das medidas urgentes, concedidas inaudita altera parte e portanto não preparadas segundo um contraditório entre as partes. Mas o próprio valor democrático do contraditório, que não é fim em si mesmo mas um dos meios de construção do processo justo e équo, há de ceder ante as exigências substanciais de promover o acesso à justiça, em vez de figurar como empecilho à efetividade desta. Os princípios existem para servir à justiça e ao homem, não para serem servidos como fetiches da ordem processual.

97. tutela jurisdicional aos princípios e garantias constitucionais do processo civil

Em sua vocação a conferir efetividade aos princípios e preceitos contidos na Constituição, o sistema processual dispõe de técnicas a serem utilizadas (não só mas também) com o empenho em preservar as próprias disposições constitucionais de tutela ao processo. Tal é o duplo sentido vetorial das relações entre Constituição e processo (supra, n. 74), o qual, pelo perfil agora considerado, assume aspectos de uma interação de maior complexidade porque (a) a Constituição estabelece princípios e garantias destinados a proporcionar o processo, équo, (b) o processo dispõe e atua técnicas que dão efetividade a esses princípios e garantias e ainda (c) a própria Constituição fornece alguns dos instrumentos processuais para essa atuação: trata-se dos remédios integrantes da jurisdição constitucional das liberdades, como, de modo particular, o recurso extraordinário, o mandado de segurança e a ação direta de inconstitucionalidade (Const., art. 52, inc. LIX; art. 102, inc. II, letra a, e inc. III). Além desses meios específicos, dá-se resguardo aos princípios e garantias de tutela ao processo mediante as técnicas processuais ordinárias e com emprego dos meios que a lei oferece (especialmente o Código de Processo Civil).

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De todo modo, é indispensável a concreta existência de meios processuais capazes de promover o controle de constitucionalidade de leis e decisões suspeitas de ultraje aos princípios e garantias constitucionais do processo. Quer mediante o controle concentrado, quer pelo difuso, a verificação da legitimidade constitucional de leis e decisões judiciárias caberá em único ou último grau de jurisdição ao Supremo Tribunal Federal, institucionalmente definido como guarda da Constituição.29Além disso, no dia-a-dia da experiência processual desenvolve-se de modo contínuo uma relevantíssima atividade com que juízes e tribunais promovem a efetividade das disposições infraconstitucionais responsáveis pela operacionalização dos princípios constitucionais do processo. Sabido que a lei ordinária constitui reflexo e especificação das grandes matrizes constitucionais, também a lei processual é em princípio modelada de modo a oferecer soluções práticas conformes com os desígnios do constituinte. Na medida em que a lei guarde essa fidelidade à Constituição e os juízes a interpretem e imponham seus preceitos em consonância com os princípios e garantias contidas nesta, cada decisão judiciária é um ato de efetivação dos preceitos constitucionais. Partindo dessa premissa sistemática, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é iterativa no sentido de que só se aprecia uma alegação de infração a preceitos constitucionais se o mesmo ato, dito violador, não estiver, num primeiro momento, em contraste com a própria lei: são as chamadas inconstitucionalidades indiretas, que se resolvem em infrações a esta antes de se caracterizarem como contrastes com a Constituição mesma. Ao cumprir adequadamente a lei ordinária do processo e ao corrigir os desvios eventualmente praticados, indiretamente os juízes e tribunais estão outorgando efetividade aos princípios e garantias integrantes do sistema de tutela constitucional do processo civil. Na vida dos processos, o sistema de nulidades constitui o suporte técnico que propicia às partes a alegação de tais desvios e aos juízes, o poder de corrigi-los.

NOTAS:

29. Em único grau de jurisdição: ação direta de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade (Const., art. 102, inc. I, letra a). Em último grau: recurso extraordinário (art. 102, inc. III).

O Código de Processo Civil brasileiro não é pródigo em proclamações explícitas de princípios, fazendo-o somente quanto ao da publicidade (ao dizer que os atos processuais serão públicos: art. 155) e ao da igualdade entre as partes (que o juiz tem o dever de preservar: art. 125, inc. I). No tocante a todos, no entanto, contém disposições cuja correta aplicação conduz à sua efetividade. Ao oferecer meios de ingresso em juízo e obtenção dos provimentos finais (sentença de mérito), ele abre caminho para o controle jurisdicional (Const., art. 5% inc. XXXV); disciplinando citações e intimações e exigindo as primeiras sob pena de nulidade (art. 214), está transpondo ao plano operativo a garantia do contraditório; estruturando competências e oferecendo meios de controlar incompetências, aplica a garantia do juiz natural; ditando o impedimento do juiz, preserva as garantias de imparcialidade; ao disciplinar a admissibilidade dos diversos meios probatórios, cultua a garantia constitucional do direito à prova etc.A oferta e a prática efetiva de meios de controle da observância dos princípios e garantias constitucionais do processo são condições indispensáveis para que tais preceitos constitucionais saiam de um estado puramente formal ou estático e para que as garantias que contêm sejam atuantes e dinâmicas, com vista à efetividade dos resultados desejados (Luigi Paolo Comoglio).

Capítulo VIII - PASSADO E FUTURO DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO: TENDÊNCIAS

98. três fases metodológicas na história do processo civil - 99. os grandes mestres de direito processual civil (panorama internacional) - 100. a ciência processual civil brasileira na segunda metade do século XIX e na primeira metade do século XX - 101. Liebman, a Escola Processual de São Paulo e o moderno processo civil brasileiro - 102. sucessão histórica das fontes formais do direito processual civil brasileiro - 103. dois Códigos substancialmente análogos - 104. o

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constitucionalismo e a abertura para a perspectiva metajurídica do processo civil (a sétima fase da história do processo civil brasileiro) - 105. influências do processo civil da common law- 106. albores de uma integração latino-americana - 107. tendências modernas do processo civil brasileiro: prognósticos e aspirações

98. três fases metodológicas na história do processo civil

O processo civil moderno é o resultado de paciente evolução desenvolvida a partir de um longo e estagnário período no qual o sistema processual era encarado como mero capítulo do direito privado, sem autonomia. Ele passou por uma riquíssima fase de descoberta de conceitos e construção de estruturas bem ordenadas, mas ainda sem a consciência de um comprometimento com a necessidade de direcionar o processo a resultados substancialmente justos. Só em tempos muito recentes, a partir de meados do século XX, começou a despontar a perspectiva teleológica do processo, superado o tecnicismo reinante por um século.Falamos então no período de sincretismo, no período autonomista ou conceituai e, finalmente, no período teleológico ou instrumentalista.Só passou a existir uma verdadeira ciência do processo civil na segunda dessas fases, pois no sincretismo inicial os conhecimentos eram puramente empíricos, sem qualquer consciência de princípios, sem conceitos próprios e sem a definição de um método. O processo mesmo, como realidade da experiência perante os juízos e tribunais, era visto apenas em sua realidade física exterior e perceptível aos sentidos: confundiam-no com o mero procedimento quando o definiam como sucessão de atos, sem nada se dizerem sobre a relação jurídica que existe entre seus sujeitos (relação jurídica processual), nem sobre a conveniência política de deixar caminho aberto para a participação dos litigantes (contraditório).Uma das mais sintomáticas características desse sincretismo inicial, responsável pela colocação do sistema processual nos quadrantes do direito privado, era a visão do processo como mero modo de exercício dos direitos. Para ilustrar esse pensamento disse conceituado romanista já nos albores do século XX: "sendo proprietário de uma coisa, eu posso vendê-la, doá-la, constituir servidões ou hipotecas sobre ela. Posso enfim realizar uma longa série de atos jurídicos e ao realizá-los exerço a minha propriedade, porque esta é o pressuposto da possibilidade de realizar tais atos jurídicos [...1 Está incluída entre estes a ação com a qual se garante a relação jurídica: quem propõe a ação está a exercer o próprio direito, justamente porque a defesa do direito é um elemento constitutivo dele próprio " (Vittorio Scialoja).A segunda dessas fases (autonomista, conceituai) teve origem em 1868, com a famosa obra com que Oskar Von Bülow proclamou em termos sistemáticos a existência de uma relação jurídica toda especial entre os sujeitos principais do processo -juiz, autor e réu - a qual difere da relação jurídico-material litigiosa por seus sujeitos (a inclusão do juiz), por seu objeto (os provimentos jurisdicionais) e por seus pressupostos (os pressupostos processuais). 1 A sistematização de idéias em torno da relação jurídica processual conduziu às primeiras colocações do direito processual como ciência, afirmado o seu método próprio (distinto do método concernente ao direito privado) e seu próprio objeto material (as categorias jurídico-processuais: jurisdição, ação, defesa e processo). Essas idéias fundamentais abriram caminho para um fecundíssimo florescer de reflexões e obras científicas, especialmente da parte de alemães, austríacos e italianos - inicialmente voltadas a um dos conceitos fundamentais da ciência processual, a ação. Construíram-se ricas e variadas teorias, todas convergindo à afirmação da autonomia desta em face do direito subjetivo substancial. Tomou-se consciência dos elementos identificadores da ação (partes, causa de pedir, pedidó), elaborou-se a teoria das condições da ação e dos pressupostos processuais, formularam-se princípios. Os alemães dedicaram-se com particular interesse ao árduo tema do objeto do processo, seja em obras gerais, em ensaios ou monografias, chegando a soluções mais ou menos estabilizadas (infra, nn. 113 e 433).

NOTAS:

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1. Pressupostos processuais, nessa linguagem, é locução que aproximadamente equivale ao grande gênero designado no Brasil por pressupostos de admissibilidade do julgamento do mérito. Tem extensão maior do que os pressupostos processuais usualmente4 indicados pela doutrina brasileira (infra, nn. 726 e 831-833).

A obra de Von Bülow (a conhecida e importantíssima Die Lehre von den Proceleinreden and die Procej3voraussetzungen - Teoria dos pressupostos processuais e das exceções dilatórias) foi precedida de três estudos sobre a actio romana vista da perspectiva do direito moderno, nos quais já se lançaram as bases para a percepção da autonomia da ação em confronto com aquele conceito romanístico. Trata-se dos escritos que envolveram em famosíssima polêmica os romanistas alemães Bernhard Windscheid e Theodor Muther.Foi nessa segunda fase que os processualistas se aperceberam de que o processo não é um modo de exercício dos direitos, colocado no mesmo plano que os demais modos indicados pelo direito privado, mas caminho para obter uma especial proteção por obra do juiz - a tutela jurisdicional. O objeto das normas de direito processual não são os bens da vida (cuja pertinência, uso, disponibilidade etc. o direito privado rege) mas os próprios fenômenos que na vida do processo têm ocorrência, a saber: a jurisdição, a ação, a defesa e o processo (institutos fundamentais, ou categorias amplíssimas em que se contêm todos os demais institutos do direito processual).Essas novas idéias, a partir de então cultivadas, puseram fim ao período sincrético do direito processual, no qual se colocava a conceituação privatística da ação como algo inerente ao direito subjetivo material (daí, teoria imanentista) - actio aliud non est quam jus quod sibi debeatur in judicio persequendi.2 Daí a indicação, naqueles albores nebulosos, da ação como um direito adjetivo - dado que os adjetivos não têm vida própria e só se explicam pela aderência a algum substantivo (infra, n. 555). A alusão ao próprio direito processual como direito adjetivo (conceito do período sincrético) era sinal da negação da sua autonomia.Suplantado o período sincrético pelo autonomista, dissipados ficaram tais equívocos e cresceu a consciência da autonomia conceitual da ação, do processo e do próprio sistema processual. Foi no entanto preciso quase um século para que os estudiosos se apercebessem de que o processo, como técnica de pacificação, não é algo destituído de conotações éticas e deontológicas nem de objetivos a serem cumpridos no plano social, no econômico e no político. Preponderou por muito tempo a crença de que ele fosse mero instrumento do direito material, sem consciência de seus escopos metajurídicos (supra, nn. 47 ss.). Esse modo de encarar o processo por um prisma puramente jurídico foi superado a partir de quando alguns estudiosos, notadamente italianos (destaque a Mauro Cappelletti e Vittorio Denti), lançaram as bases de um método que privilegia a importância dos resultados da experiência processual na vida dos consumidores do serviço jurisdicional - o que abriu caminho para o realce hoje dado aos escopos sociais e políticos da ordem processual, ao valor do acesso à justiça e, numa palavra, à instrumentalidade do processo.Tal é o momento atual da ciência do processo civil - fase instrumentalista ou teleológica - em que se tem por indispensável definir os objetivos com os quais o Estado exerce a jurisdição, como premissa necessária ao estabelecimento de técnicas adequadas e convenientes.

NOTAS:

2. Dizia-se também que a ação seria o próprio direito subjetivo que, quando violado, adquire forças para buscar sua restauração em via judiciária.

99. os grandes mestres de direito processual civil (panorama internacional)

A obra de Bülow, conquanto escrita no trato de temas específicos hoje sem atualidade e destituídos de qualquer interesse, em suas poucas páginas iniciais é apontada como a certidão de nascimento da ciência processual, pela proposta de superação do empirismo vigente na fase sincrética. Seguiram-se-lhe, a partir da segunda metade do século XIX, a do também alemão

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Adolf Wach sobre a ação meramente declaratória; a de Degenkolb e a do húngaro Plosz, que deram força à autonomia da ação em face do direito subjetivo material (teoria da ação como direito abstrato); e os compêndios de Hellwig, de Kohler, de Stein e do austríaco Fritz Klein - este já antecipando raízes éticas e sociais de um processo encarado como instrumento de justiça.Entre os processualistas alemães que produziram no século XX ocupa posição de destaque James Goldschmidt (18741940), responsável pela teoria do processo como situação jurídica (Der Prozej8 als Rechtslage), em crítica à teoria da relação jurídica processual. Sem embargo da pouca aceitação de suas propostas pela doutrina em geral, essa obra celebrizou-se pelo grande rigor científico e especialmente pelo legado que mediante ela Goldschmidt inseriu na ciência do direito, que é a conceituação e sistematização dos ônus processuais como categoria distinta dos deveres e das obrigações. São também suas as propostas em tomo do materielles Justizrecht, tendentes a apresentar todo o direito substancial, quando invocado em litígios postos em juízo, pela perspectiva processual (daí falar em direito justicial material: supra, n. 6). Auto-exilado na Espanha nos tempos nazistas de discriminações raciais, ali escreveu Principios generales del proceso. Escreveu também o tratado ZivilprozeJ3 recht e o manual Lehrbuch des deutschen Zivilprozef rechts.Ainda entre os alemães, foram importantes os tratados gerais de Leo Rosenberg, Adolf Schõnke, Ernest Heinitz, Friedrich Lent e Karl Heinz Schwab - este último aparecendo também como continuador da obra de Rosenberg em suas sucessivas edições post mortem e notabilizando-se pela monografia Der Streitge genstand im Zivilprozej8 recht, com riquíssima resenha doutrinária e conclusões próprias sobre o tormentoso tema do objeto do processo. As principais obras dos alemães desse período foram traduzidas ao castelhano, sendo que a de Lent conta com preciosa tradução ao italiano, feita por Edoardo Ricci. De Heinitz, a monografia I limiti oggettivi della cosa giudicata é um importante estudo não só sobre o tema que lhe dá o título, mas igualmente sobre a causa petendi e as duas vertentes de sua teoria (individuação e substanciação). Os processualistas alemães dão bastante atenção ao tema do objeto do processo (infra, nn. 113, 433) e, conquanto hajam sido os primeiros a desbravar o conceito de ação, há muito afastaram-se do estudo desta, preferindo falar da demanda (Klage) ou do direito de demandar (Klagerecht) (infra, n. 555).Os processualistas italianos do século XIX, entre os quais o mais importante foi Ludovico Mortara (1855-1937), não penetraram em cheio no segundo período metodológico do direito processual, permanecendo ainda imbuídos do procedimentalismo que caracterizava o período sincrético. A escola italiana de direito processual surgiu no início do século XX, com a monumental obra de Giuseppe Chiovenda (1872-1937), profundo estudioso dos clássicos romanos e conhecedor da doutrina alemã. Um de seus mais significativos ensaios, denominado Romanesimo e germanesimo nel processo civile foi escrito com o declarado objetivo de enfatizar a importância das raízes romano-germânicas do processo civil moderno, de conhecimento indispensável ao bom entendimento sistemático da ordem processual. Seus Principii di diritto processuale civile (primeira edição no ano de 1906) e depois as Istituzioni di diritto processuale civile (estas, com tradução brasileira), além dos Saggi di diritto processuale civile (coletânea de ensaios), constituem ainda a fonte e a matriz de teorias moderníssimas. É também sua a monografia La condanna nelle spese giudiziali, que abriu caminho para a percepção de que a justificativa da condenação do vencido a pagar custas e os honorários do advogado do vencedor é a relação de causalidade entre a sua conduta e o custo do processo, não a sucumbência em si mesma. Chiovenda deu muito destaque à importância sistemática da ação no direito processual, defendendo a teoria desta como direito concreto e atribuindo-lhe natureza de direito potestativo: é leitura obrigatória aos estudiosos de direito processual a famosa aula inaugural proferida no ano de 1903 na Universidade de Bolonha e divulgada com o título "L'azione nel sistema dei diritti ". Em seu legado encontram-se muitas formulações definitivas, de projeção universal e sempre invocadas apesar do decurso do tempo e surgimento de novas escolas. Merece especial realce o famoso pensamento emitido em prol da efetividade do processo, que constitui o slogan central da própria escola instrumentalista: "na medida do que for praticamente possível, o processo deve proporcionar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de

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obter". O pensamento de Chiovenda pôde depois ter continuidade pela obra de dois discípulos que muito escreveram e lecionaram em Universidades italianas (Calamandrei e Liebman).3De Chiovenda são ainda essas preciosas lições eternas, úteis a todo momento para o bom entendimento do sistema processual: a) a sentença que julga procedente a demanda deve dar ao autor a mesma situação que daria se tivesse sido proferida no próprio momento em que aquela foi proposta; b) o causador da necessidade de instaurar um processo (ordinariamente a parte sucumbente) deve responder pelas despesas que o processo trouxe para aquele que tinha razão. Essa lições relacionam-se com a preocupação pela inteireza da tutela jurisdicional e resumem-se na máxima "a necessidade de valer-se do processo para obter razão não deve reverter a dano daquele que tem razão ".Em Florença, Piero Calamandrei (1889-1956) fez também sua escola e lançou as raizes de um pensamento político do processo, ainda hoje vivo na obra de seus discípulos, entre os quais Mauro Cappelletti. Foi um pensador profundamente comprometido com os valores éticos da sociedade e do direito, de extrema sensibilidade às angústias dos litigantes e deveres do juiz perante eles. Além das Istituzioni di diritto processuale civile secondo il nuovo Codice, do clássico Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari e dos conhecidos La cassazione civile, 11 procedimento monitorio nella legislazione italiana, La chiamata in causa e La illegittimità costituzionale delle leggi nel processo civile, ele escreveu ensaios muito sugestivos como 7l processo come gioco " e 7l processo civile sotto l'incubo fiscale" - este, de manifesta atualidade tanto na Itália como no Brasil e quiçá no mundo todo, dadas as preocupações de ordem tributária que constituem verdadeiros pesadelos na vida dos cidadãos em tempos modernos. São de deliciosa leitura suas profundas e jocosas sátiras à figura do juiz, contidas no artigo "Elogio dei giudici fatto da un avvocato ", que em português foi publicado como Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. Calamandrei foi de extrema fidelidade a Chiovenda, na sustentação da ação como direito concreto. Seus escritos foram depois reunidos na monumental publicação Opere giuridiche.

NOTAS:

3. Curiosamente, Chiovenda figura também como autor de um pequeno livro intitulado Lezioni di diritto amministrativo. Trata-se na realidade de apostilas de aulas que ministrou na Universidade de Roma nos anos de 1909 e 1910. Foram recuperadas pelo pesquisador prof Franco Cipriani e publicadas na forma de livro (a redação do texto foi feita, à época, por Riccardo Ventura).4. Fora aluno de Carlo Lessona e não de Chiovenda, mas tomou a este como verdadeiro guia intelectual.5. Especialmente Giuseppe Tarzia, Edoardo Ricci e Bruno Cavallone, que são professores titulares na mesma Escola onde Liebman pontificou na última fase de sua vida.6. Liebman foi aluno de Chiovenda na Universidade de Roma.

Em Milão, Enrico Tullio Liebman (1903-1986) foi o grande criador de uma escola que ainda hoje ali vive na obra e nos ensinamentos de seus discípulos' e projeta-se particularmente no pensamento dos processualistas brasileiros. Como seu Mestre Chiovenda,6 Liebman ostentava sólidos conhecimentos das origens romanas e germânicas do direito moderno, que ele revelou especialmente ao construir sua própria teoria da ação como direito ao provimento de mérito e da execução como sanção ao devedor inadimplente. São expressivas, a respeito, a aula inaugural proferida em 1949 na Universidade de Turim ("L'azione nella teoria del processo civile") e a monografia Le opposizioni di mérito del debitore nel processo di esecuzione (na edição brasileira, Embargos do executado). Um marco fundamental da obra liebmaniana é sua teoria da coisa julgada como autoridade dos efeitos da sentença, exposta em monografia de grande atualidade e respeitada em toda a doutrina internacional, na qual renega tudo que antes se escrevera e sustentara no sentido de que ela fosse, em si mesma, mais um efeito que a sentença produz. A tese Efficacia ed autorità della sentenza foi também traduzida ao português - bem como o Manuale di diritto processuale civile, de leitura obrigatória. Além disso, Liebman escreveu um

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livro (Processo de execução) e muitos artigos sobre o direito processual civil brasileiro, estes reunidos no volume Estudos sobre o processo civil brasileiro (sobre a importância de Liebman na doutrina e na legislação brasileiras, infra, n. 101).Contemporâneo de Chiovenda e também de seus principais discípulos foi o profundo e enciclopédico pensador Francesco Carnelutti (1879-1965), criador da teoria da lide como centro do sistema processual. Essa proposta metodológica importou deixar em planos inferiores o estudo da ação e de suas condições, que ocupam lugar de astros de primeira grandeza na constelação de institutos processuais descrita pelos estudiosos de seu tempo. Carnelutti chegou a renunciar ao conceito de interesse de agir, como condição da ação. Sua obra sistemática de processo civil inclui principalmente o monumental Sistema del diritto processuale civile, as preciosas Lezioni di diritto processuale civile (com três volumes portadores de idéias importantíssimas sobre o processo de execução), as didáticas Istituzioni di diritto processuale civile e Diritto e processo - que é o mais recente de todos (1958) e constitui o repositório mais maduro de seu pensamento, que nunca parou de evoluir. A monografia La prova civile é o estudo mais importante que já se produziu sobre o tema; monograficamente, produziu ainda La sentenza condizionale. Em sua agitada criatividade, Carnelutti foi sempre um insatisfeito, seja em face das conquistas gerais da doutrina, seja perante sua própria obra, criticando duramente os opositores de suas idéias e reformulando-as muitas vezes. Envolveu-se em agressivas polêmicas com vários autores italianos, entre os quais Liebman e o comercialista Tullio Ascarelli. Na velhice escreveu comovida despedida, como que se justificando e desculpando-se por seu gênio contundente ("Lettera agli amici "). A versatilidade de Carnelutti manifesta-se em escritos que fez sobre direito processual penal e em delicadas abordagens filosóficas de temas de direito processual em geral e de teoria geral do direito: são importantíssimos os livros Teoria generale del diritto e Metodologia del diritto.Da enorme constelação dos estudiosos italianos do processo civil, merecem ainda atenção especial:Alfredo Rocco (1875-1935), autor do clássico La sentenza civile e de um prestigioso estudo sistemático da falência (Il fallimento), sendo extremado defensor da teoria da ação como direito abstrato de agir;Francesco Menestrina, que ofereceu conceitos definitivos sobre o intrincadíssimo tema da prejudicialidade (La pregiudiciale nel processo civile) e dedicou-se também ao estudo da execução forçada (L'accessione nell'esecuzione);Enrico Redenti (1883-1963), com valiosas propostas sobre o litisconsórcio necessário e sua configuração (11 processo civile con pluralità di parti), com a obra geral Diritto processuale civile, com o volume Profili pratici del diritto processuale civile, com a tese da jurisdição como atividade produtiva de sanções (Intorno al concetto di giurisdizione) e com a monografia Legittimità delle leggi e Corte costituzionale;Marco Tullio Zanzucchi (1884-1948), que além de um livro institucional marcado pela extrema singeleza e precisão de conceitos (Diritto processuale civile)7 escreveu monograficamente sobre temas recursais no volume Nuove domande, nuove eccezioni, nuove prove in appello e ainda Esecuzione forzata.'Emilio Betti, que também escreveu sobre direito privado (especialmente a clássica Teoria generale del negozio giuridico).

NOTAS:

7. Com comovente dedicatória à esposa falecida, na qual invoca tristes lembranças dos tempos de guerra no Norte da Itália (Segunda Guerra Mundial).8. Ou, por extenso: Le domande in separazione nella esecuzione forzata e Ia rivendicazione fallimentare.

Em sede processual é autor de um livro que se tornou muito polêmico (Diritto processuale civile italiano) porque no prefácio trouxe veemente defesa do regime totalitário de Benito Mussolini com

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críticas aos seus adversários. Escreveu ainda Il concetto dell'obbligazione costruito dal punto di vista dell'azione e Trattato dei limiti soggettivi della cosa giudicata in diritto romano;Carlo Fumo, autor do famoso Disegno sistematico delle opposizioni nel processo executivo, bem como das monografias Contributo alla teoria della prova legale e La sospensione del processo executivo;Antonio Segni (1891-1972), processualista que também se dedicou à política e chegou a ocupar a Presidência da República Italiana, foi autor de importantes estudos sobre o tema da intervenção de terceiros - entre os quais o livro Intervento adesivo e o verbete "Intervento in causa ";Sergio Costa, cuja principal obra foi o livro Manuale di diritto processuale civile, tendo também escrito o verbete Z'intervento iussu iudicis ";Tito Carnacini, autor de estudos e conceitos definitivos sobre a responsabilidade civil de bens alienados, com tônica na inoponibilidade das alienações aos credores do devedor ( "L'alienazione dell'immobile colpito da pignoramento nel diritto francese", "L'alienazione dell'immobile colpito da pignoramento nel diritto tedesco" e "L'alienazione dell'immobile colpito da pignoramento nel diritto italiano "). Escreveu ainda o livro Contributo alla teoria del pignoramento e o alentado ensaio "Tutela giurisdizionale e tecnica del processo";Salvatore Satta (1902-1975), celebrado literato 9 e estudioso do processo civil com muita ênfase em seus fundamentos filosóficos e que, além da obra geral Diritto processuale civile, escreveu livro específico sobre o processo executivo (L'esecuzione forzata) e uma monografia sobre a alienação de bens em hasta pública (La rivendita forzata);

NOTAS

9. Sua obra II giorno del giudizio obteve grande sucesso no ano de 1979.

Edoardo Garbagnati, a quem se creditam teses de valor definitivo sobre o concurso de credores (Il concurso di creditori nel processo di espropriazione), o processo monitório (Il procedimento d'ingiunzione e I procedimenti d'ingiunzione e per convalida di sfratto) e, provavelmente acima de tudo, sobre o delicado tema da substituição processual (La sostituzione processuale nel nuovo codice di procedura civile);Enrico Allorio, autor de importante tese sobre a coisa julgada (La cosa giudicata rispetto ai terzi) e de idéias modernas a respeito do tema litisconsórcio alternativo, até hoje muito pouco versado pela doutrina em geral ("Litisconsorzio alternativo passivo e impugnazione incidentale ");Gian Antonio Micheli, conhecidíssimo pela monografia L'onere della prova e autor de ensaios importantes como "Giurisdizione e azione ", "Dell'esecuzione forzata " e "Dell'unità del concetto ai esecuzione forzata ".Mais recentemente, imortalizou-se Mauro Cappelletti como o Mestre fundador de uma nova escola. Foi professor em Florença, desempenhando permanentemente funções na Universidade norte-americana de Stanford (aposentado desde 1994 por razões de saúde). Foi um constante batalhador pela bandeira da efetividade do processo, com inúmeras obras e escritos menores editados em italiano e em língua inglesa. É conhecidíssima a sua monumental obra enciclopédica produzida em co-autoria com o norte-americano Bryant Garth ( Access to justice - a worldwide movement to make rights effective - a general report "). Escreveu também The judicial process in comparative perspective, além de Giudici legislatori? e Giudici irresponsabili? Entre seus inúmeros ensaios, presentes em toda boa bibliografia de processo civil moderno, estão "Accesso alla giustizia come programma di riforme e come metodo di pensiero ", "Spunti in tema di contraddittorio " etc. É conhecidíssima a coletânea que reúne diversos desses estudos, denominada Processo e ideologie. Em fase precedente escrevera La pregiudizialità costituzionale nel processo civile, Il controllo giudiziario di costituzionalità nel diritto comparato, La testimonianza della parte nel sistema dell'oralità etc.Na Península Ibérica são importantíssimos os tratados gerais dos espanhóis Jaime Guasp e Leonardo Prieto-Castro Ferrandiz (este, com estruturas e colocações muito à moda germânica), além de José Alberto dos Reis, que em Portugal foi o grande processualista do século e

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escreveu, além dos Comentários ao Código de Processo Civil e do Código de Processo Civil anotado, também um estudo específico sobre a execução forçada (Processo de execução) e outro dedicado à intervenção de terceiros no processo civil (Intervenção de terceiros). Portugal teve também João de Castro Mendes e Artur Anselmo de Castro. Em tempos mais remotos ocuparam lugar de muito destaque e são ainda hoje reverenciados (máxime em pesquisas sobre os elementos históricos do processo civil) os portugueses Manuel de Almeida e Sousa, o Lobão (assim cognominado em razão da localidade em que nasceu), Silvestre Gomes de Morais, Leite Velho, Pereira e Sousa, Correia Teles - este, autor da famosíssima Doutrina das acções.Na ciência processual da América Latina o grande nome foi o uruguaio Eduardo Juan Couture (1906-1956), alma gêmea de Piero Calamandrei e, como este, portador de grandes preocupações pelo sentimento de justiça que deve nortear as leis e as práticas do processo. Além de seus Fundamentos del derecho procesal civil, que constituem a maior fonte para as pesquisas latino-americanas e se refletem nos estudos dos processualistas mais modernos, legou ainda uma coletânea contendo textos de conferências feitas na Universidade de Paris na primavera de 1949 (Introducción al estudio del proceso civil), o conhecido Vocabulario jurídico de grande utilidade, os três volumes da coletânea Estudios de derecho procesal civil e a Interpretação das leis processuais (com tradução ao português). A continuação do trabalho de Couture em seu país ficou por conta de Enrique Véscovi, Adolfo Gelsi Bidart, Angelo Landoni Sosa, Luis Torello Giordano, Jaime Greiff, Dante Barrios de Angelis e Pedro Bertolino (este, mais diretamente ligado ao processo penal).Os processualistas argentinos cultuam com muito zelo a memória e a obra de Amílcar Angel Mercader, antigo mestre de La Plata, cidade que hoje é a sede de uma verdadeira Escola Argentina de Processo Civil (Augusto Mario Morello, Roberto Ornar Berizonce, Gualberto Lucas Sosa, Juan Carlos Hitters). Na ciência processual argentina ocupam também lugar de destaque os nomes de Lino Palacio, Santiago Sentis Melendo (autor e coordenador de inúmeras traduções de obras processuais), Adolfo Armando Rivas, Adolfo Alvarado Velloso, Osvaldo Alfredo Gozaíni e Jorge Walter Peyrano - este, autor de valiosos estudos sobre o atualíssimo tema da tutela de urgência.São ainda importantes na história do processo civil da América Latina as obras dos colombianos Hernando Devis Echandía e Jairo Parra Quintano (especialmente sobre temas probatórios), do chileno Raul Tavolari Oliveros, dos mexicanos Niceto Alcalá-Zamora y Castillo (Proceso, autocomposición y autodefensa) e Hector Fix-Zamudio (Constitución y proceso civil en Lationamerica, La protección procesal de los derechos humanos etc.).

100. a ciência processual civil brasileira na segunda metade do século XIX e na primeira metade do século XX

Tardou muito até que os estudiosos do direito processual no Brasil captassem as lições e inovações lançadas com tanta força nas obras dos processualistas germânicos e italianos que a partir da metade do século XIX construíram os pilares dessa nova ciência. Óbvias razões históricas mantiveram nossos processualistas, durante muito tempo, ligados às pesquisas dos clássicos lusitanos e dos glosadores medievais. Por muito tempo ligados ao pensamento sincretista, era comum ver nos escritos de nossos antigos processualistas citações de romanistas (Savigny) e de civilistas, especialmente franceses, no trato de temas processuais.A conseqüência prática era o apego a idéias superadas e perseverança em soluções incompatíveis com a evolução. Durou mais do que, seria desejável a obcecada ligação aos cânones pandectistas e da filosofia liberal, presentes nos civilistas franceses. É o caso do dogma da intangibilidade da vontade, pelo qual a obrigação de fazer, quando não cumprida, geraria para o credor o direito ao equivalente pecuniário - sem possibilidade de uma execução específica (mas, hoje, v. art. 461 CPC).Mesmo nesse contexto de indefinições metodológicas surgiram idéias brilhantes que, justamente porque isoladas e sem a costura fina fundada em autênticos princípios processuais, foram verdadeiramente surpreendentes. A mais festejada de todas é a de Francisco de Paula Baptista (1811-1871), que, escrevendo em meados do século XIX (e portanto antes da revolução

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provocada pela obra de Billow), disse decorrer de uma ficção fútil e pueril a generalizada crença de que a alienação de bens do devedor em hasta pública se caracterizasse como um negocio de compra-e-venda, nos moldes do direito privado: o processualista pernambucano teve a finíssima intuição, que externou em sua obra, de que essa alienação é um ato estatal imperativo dotado da natureza jurídica de uma expropriação - com o que antecipou em muitas décadas o que depois se descobriu e passou a ser afirmado pelos estudiosos já com apoio nas premissas metodológicas que se foram estabelecendo (Compendio de theoria e pratica do processo civil comparado com o commercial e de heremeneutica juridica). Em São Paulo, João Mendes Júnior (1856-1923), pensador de sólida cultura tomista, construiu a teoria ontológica do processo, de cunho propriamente científico e calcada na teoria das causas; sua principal obra foi o Direito judiciário brasileiro.Além deles, figuraram no processo civil brasileiro precedente à chegada de influxos da nova escola os professores João Monteiro (Teoria do processo civil e comercial) (1845-1904), Manoel Aureliano de Gusmão (A coisa julgada), Estevam de Almeida (1863-1926), Joaquim Ignacio de Ramalho (o Barão de Ramalho, autor de Praxe brasileira e Instituições orfanológicas) (1809-1902) e o Conselheiro Antonio Joaquim Ribas, autor da Consolidação da leis do processo civil, de 1876 (infra, n. 102) - todos da Faculdade de Direito de São Paulo, cuja predileção pelo direito processual é portanto bastante antiga. Na Bahia, Eduardo Espinola escreveu seu merecidamente famoso Código de Processo do Estado da Bahia Anotado.Na década dos anos quarenta ascendeu à cátedra de direito judiciário civil o professor Gabriel José Rodrigues de Rezende Filho (1893-1957). Ao lado de Machado Guimarães, Amilcar de Castro e Pontes de Miranda, Gabriel Rezende Filho foi um dos últimos processualistas de destaque anteriores à chegada de Enrico Tullio Liebman com sua bagagem cultural e suas propostas modernizadoras. Foi autor do conceituadíssimo Curso de direito processual civil, de leitura obrigatória por muitas gerações, além da monografia Modificações objetivas e subjetivas da ação. Teve atuação importante na formação de processualistas que depois se destacaram muito mais que os da geração anterior, como Luís Eulálio de Bueno Vidigal, Alfredo Buzaid, José Frederico Marques e Moacyr Amaral Santos (infra, n. 101). Participou de um marco importantíssimo na elaboração da ciência brasileira de direito processual, que foi a fundação da Revista de direito processual civil, juntamente com Liebman e os então jovens discípulos de ambos. Estavam lançadas as bases do movimento que depois veio a ser denominado Escola Processual de São Paulo (v. ainda infra, n. 101).Luís Machado Guimarães (1895-1971), lecionando na Universidade Federal do então Distrito Federal (Rio de Janeiro), escreveu conhecidos ensaios sobre temas de muita atualidade, como o litisconsórcio ( As três figuras do litisconsórcio ") e a carência de ação ("Carência de ação"). É sua a tentativa mais séria de desvendar o significado do vocábulo instância, que era de emprego tradicional no direito brasileiro e jamais tinha sido suficientemente esclarecido ("A instância e a relação processual "), bem como um estudo sobre tema até hoje ainda não muito versado no Brasil, que é o efeito preclusivo da coisa julgada ("Preclusão, efeito preclusivo, coisa julgada "). Participou também de uma grande coletânea de Comentários ao Código de Processo Civil, cujo quarto volume foi de sua lavra.Amfcar de Castro, professor em Minas Gerais, escreveu Das execuções de sentenças estrangeiras no Brasil, obra mesclada de conhecimentos de direito processual civil e de direito internacional privado. Na vigência do atual Código de Processo Civil, produziu um dos volumes de conhecidos comentários a ele. Também de Minas Gerais foi Alfredo de Araújo Lopes da Costa, autor de uma das melhores obras gerais sobre processo civil na vigência do Código de Processo Civil de 1939, que foi o Direito processual civil brasileiro; escreveu também o Manual elementar de direito processual civil (depois revisto e atualizado por Sálvio de Figueiredo Teixeira) e um conhecido volume sobre a citação (Da citação no processo civil).Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (1892-1979), que fora estudioso de matemática e depois diplomata, não se notabilizou como professor - que não foi - mas é responsável por uma monumental obra jurídica, na qual ocupa posição de primeira grandeza seu enciclopédico Tratado de direito privado, em sessenta volumes. Ainda fora do direito processual, escreveu Comentários à Constituição (Const. federal de 1967, depois com adaptações à emenda n. 1, de

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1969). Em tema de processo civil são seus os Comentários ao Código de Processo Civil (de 1939, depois adaptados ao de 1973), o Tratado da ação rescisória das sentenças e de outras decisões e o peculiaríssimo Tratado das ações. São muito conhecidas as posições de Pontes de Miranda acerca da distinção entre ação de direito material e - como dizia ele - "ação "processual. Uma das grandes contribuições que trouxe à ciência jurídica foram as páginas escritas sobre a ineficácia do ato jurídico, contidas no Tratado de direito privado. Germanista, costumava incluir em sua bibliografia autores alemães muito pouco conhecidos, como Georg Kuttner - a quem atribuía a concepção da categoria das ações mandamentais. Desdenhava os autores italianos e era fortíssimo na bibliografia lusitana clássica. Pouco citava autores brasileiros, especialmente os modernos - no Tratado das ações, em cuja bibliografia comparecem apenas quatro autores nacionais, a obra nacional mais recente que citou foi A coisa julgada, de Manoel Aureliano de Gusmão, editada em 1922 (o Tratado é dos anos sessenta). Nãoobstante suas discrepâncias em face das opiniões e premissas metodológicas correntes no Brasil e na doutrina internacional mais acatada pelos autores brasileiros, ainda hoje conta Pontes de Miranda com seguidores fervorosos e profundamente imbuídos de suas idéias peculiares - e também opositores radicais, mercê de seu gênio agitado, irreverente e, a seu modo, agressivo.Os escritos de Machado Guimarães e Gabriel Rezende Filho situam-se a cavalo de dois períodos legislativos do direito processual civil brasileiro, ou seja, o das codificações estaduais e o do Código de Processo Civil de 1939. O primeiro deles foi, inclusive, autor de um dos volumes de conhecida coleção de Comentários ao Código de Processo Civil, que então foram editados. Amilcar de Castro chegou a escrever Comentários ao Código de Processo Civil (de 1973). Todos eles eram conhecedores das novas doutrinas da época, fazendo constantes alusões à obra de Chiovenda, Carnelutti e alemães e pautando sua obra pelos princípios, conceitos e estruturas caracterizadores do período autonomista do direito processual - como condições da ação nos moldes que depois vieram a difundir-se bastante na doutrina brasileira, relação jurídica processual, pressupostos processuais etc. Pontes de Miranda escreveu na vigência dos Códigos Estaduais e dos dois Códigos nacionais.

101. Liebman, a Escola Processual de São Paulo e o moderno processo civil brasileiro

A definitiva institucionalização da fase autonomista ou conceitual na doutrina processual brasileira (supra, n. 98), com plena absorção dos elementos de uma verdadeira ciência do processo civil, foi propiciada pela chegada de Enrico Tullio Liebman, espontaneamente afastado de sua cátedra na Universidade italiana de Parma por notórias razões políticas e étnicas (fascismo, anti-semitismo).Em sua bagagem cultural, Liebman trouxe uma íntima familiaridade com os grandes fundamentos do processo civil romano, canônico, medieval, germânico moderno e italiano, cujos textos e interpretação pelos Mestres ele sabia invocar com adequação e segurança e, ao mesmo tempo, com grande simplicidade. Chegou logo ao início da vigência do primeiro Código de Processo Civil brasileiro (1939) e, trazido a lecionar na Faculdade de Direito de São Paulo, aos estudantes da época pôde proporcionar o privilégio de conviver diretamente com as efervescências de uma ciência européia que então se firmava (na Itália estavam em curso os estudos para elaboração do atual codice di procedura civile).Quando veio, Liebman já havia escrito dois de seus principais livros, que foram Le opposizioni di merito del debitore nel processo d'esecuzione (1931) e Efficacia ed autorità della sentenza (1935). Convivendo com brasileiros, captou logo o espírito de nosso direito e da obra dos nossos autores, familiarizandose com as fontes históricas representadas pelo direito lusitano antigo e com os seus clássicos comentadores. Deu demonstração disso ao redigir suas prestigiosas notas à tradução brasileira das Instituições de direito processual civil de Giuseppe Chiovenda.A mais significativa contribuição aportada por Enrico Tullio Liebman à ciência processual brasileira foram as pesquisas e estudos que organizou com um grupo de jovens estudiosos da época, que ele reunia semanalmente em sua residência" - destacando-se entre eles Luís Eulálio de Bueno Vidigal, Alfredo Buzaid, José Frederico Marques e Bruno Afonso de André. Os escritos dos discípulos, ligados pelo fio das premissas presentes em suas lições, foram a continuação

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brasileira do pensamento de Liebman e o primeiro fruto desse movimento denominado Escola Processual de São Paulo. Estava implantado o método verdadeiramente científico na doutrina brasileira do processo civil.A Revista de direito processual civil, idealizada por Liebman àquele tempo, só veio a tornar-se realidade em 1960 e durou muito pouco, com a publicação de apenas seis números, mas é o atestado do trabalho do Mestre e de Gabriel Rezende Filho junto aos seus discípulos.Dos discípulos de Liebman, dois tornaram-se professores catedráticos na Faculdade do Largo de São Francisco (Alfredo Buzaid e Luís Eulálio de Bueno Vidigal), enquanto José Frederico Marques veio a ocupar igual posição na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Bruno Afonso de André, que também ali lecionou, tornou-se magistrado e depois desembargador de notória paixão pelo processo.

NOTAS:

10. Uma casa à Al. Min. Rocha Azevedo, hoje provavelmente substituída por algum edifício.

Dentre os escritos de Vidigal, o que há de mais notável é a tese Da execução direta das obrigações de prestar declaração de vontade, de viva atualidade até hoje pela proposta, que contém, de abandonar velhos dogmas e preconceitos pandectistas e abrir caminho para a execução específica das obrigações (CPC, art. 461) - repudiando a docilidade com que o direito brasileiro aceitava a conversão destas em pecúnia. Produziu também escritos sobre o mandado de segurança, instituto então relativamente novo no direito brasileiro, sobre a ação rescisória e outros, que veio depois a reunir na coletânea Direito processual civil. É também de sua autoria um volume de Comentários ao Código de Processo Civil (de 1973), envolvendo o setor onde está a atual disciplina da ação rescisória. Afora o grande valor de sua obra escrita, foi imenso o mérito de Vidigal na formação de novos processualistas, seus discípulos nos bancos acadêmicos, vários dos quais vieram a tornar-se professores titulares na Faculdade do Largo de São Francisco. Foi ele, por isso, o mais importante dos esteios da continuidade da Escola Processual de São Paulo.Dos alunos mais ligados a ele desde os tempos acadêmicos, cinco tomaram-se professores titulares no Largo de São Francisco, a saber: Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em direito constitucional; Ada Pellegrini Grinover, em direito processual penal; Antonio Junqueira de Azevedo, em direito civil; Ivette Senise Ferreira, em direito penal; Cândido Rangel Dinamarco, em direito processual civil. Receberam também influência do Mestre Vidigal, em cursos de pós-graduação, os profs. José Ignacio Botelho de Mesquita, Antonio Carlos de Araújo Cintra, Rogério Lauria Tucci e Kazuo Watanabe, todos eles processualistas da Faculdade do Largo de São Francisco.Alfredo Buzaid (1914-1991), que mais tarde veio a redigir o anteprojeto do vigente Código de Processo Civil e como Ministro da Justiça defendeu o projeto em sua tramitação legislativa (infra, n. 103), tem a seu crédito livros primorosos, dentre os quais se destaca Do agravo de petição no sistema do Código de Processo Civil - verdadeira pérola da literatura brasileira da época, que merece ser reverenciada no podium das melhores obras nacionais sobre processo civil (com minucioso estudo da teoria carneluttiana da lide e notável sistematização dos pressupostos de admissibilidade do julgamento do mérito, tema do qual foi pioneiro entre os autores nacionais). Escreveu ainda A ação declaratória no direito brasileiro, Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro, Da ação revocatória e Do concurso de credores no processo de execução, que lhe granjearam invejável prestígio. Buzaid ocupou ainda o cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal.José Frederico Marques foi o autor do mais festejado curso de direito processual civil escrito no país durante a vigência do Código de 1939 - as suas Instituições de direito processual civil, em cinco densos volumes, leitura obrigatória até aos tempos presentes. Escreveu ainda a monografia Da jurisdição voluntária. Eclético, nos últimos tempos de sua atividade passou a lecionar direito processual penal na Pontificia Universidade Católica de São Paulo, sendo autor dos famosos Elementos de direito processual penal, das monografias Da competência em matéria penal e O júri e sua nova regulamentação legal e de numerosos ensaios, muitos dos

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quais reunidos no volume Elementos de processo penal. Escreveu ainda um livro de direito penal que foi de leitura obrigatória para os estudantes e profissionais da época (Curso de direito penal). Foi magistrado, aposentando-se como desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.Contemporaneamente a Vidigal e Buzaid, ocupou também a cátedra de direito processual civil em São Francisco o professor Moacyr Amaral Santos (1902-1983), mestre de decantados méritos didáticos e autor das Primeiras linhas de direito processual civil - ainda hoje, um dos cursos mais adotados e lidos no país. Monograficamente, escreveu Da reconvenção no direito brasileiro, Ações cominatórias no direito brasileiro e, de maior projeção que esses, Prova judiciária no cível e comercial. É também seu o volume de conhecida coletânea de comentários ao Código de Processo Civil de 1973 sobre a prova. Foi Ministro do Supremo Tribunal Federal.O interesse pela ciência do processo civil, fortemente incentivado pela permanência de Liebman entre os brasileiros, propagou-se de São Paulo a outros Estados com muita força, de modo que a chamada Escola Processual de São Paulo acabou sendo absorvida numa verdadeira escola brasileira de direito processual, forte em diversos Estados da Federação com Mestres de muito destaque. São pontos comuns dessa linha de pensamento (obviamente, sem concordâncias integrais nem simetria estrutural absoluta) a ênfase dada à autonomia do direito processual perante o substancial, a invocação de certos princípios gerais, tônica ao instituto jurídico-processual da ação entre os demais institutos fundamentais do direito processual, aceitação das condições desta e sua carência como categorias autônomas, nítida distinção entre o processo de conhecimento e o executivo etc. - tudo muito à moda dos conhecimentos romano-germânicos que chegaram ao Brasil pela lição de Liebman ç pela leitura da obra dos grandes Mestres ligados à linha autonomista do processo civil.Com a vigência do atual Código de Processo Civil, reacendeu-se em 1974 esse interesse brasileiro pelo direito processual, com um enorme florescer de obras e surgimento de novos cultores dessa ciência. A igual surto de interesse presenciou-se mais recentemente, a partir de quando teve início o movimento de modernização do processo civil brasileiro - inicialmente com a Lei das Pequenas Causas, que é de 1984,11 seguida da Lei da Ação Civil Pública (1985), da Constituição Federal de 1988, do Código de Defesa do Consumidor (1990) e, por fim, da Reforma do Código de Processo Civil (1994-1995). Esse último movimento provocou verdadeiro frisson entre os processualistas brasileiros, que produziram muitas dezenas de livros sobre as inovações - seja em comentários sistemáticos à Reforma, seja na análise particularizada de cada um dos institutos renovados ou implantados por ela.Ocuparam e ocupam destaque no pensamento processualístico brasileiro alguns verdadeiros Mestres da atual geração de processualistas, todos eles comentadores do vigente Código de Processo Civil, como o gaúcho Alcides Mendonça Lima, autor de inúmeras obras, entre as quais a monografia Introdução aos recursos cíveis; Galeno Lacerda, também do Rio Grande do Sul, a quem a doutrina brasileira deve a pérola que é o despacho saneador; o baiano José Joaquim Calmon de Passos, que escreveu preciosas monografias como A ação no direito processual civil brasileiro (em defesa da teoria abstrata da ação), A revelia do demandado, A nulidade no processo civil e Do litisconsórcio no Código de Processo Civil - além de uma polêmica obra de assento filosófico, produzida com o objetivo de pôr à calva as mazelas da Justiça de seu Estado e influências espúrias comprometedoras da independência de seus juízes (Direito, poder, justiça e processo -julgando os que nos julgam); Egas Dirceu Moniz de Aragão, professor da Universidade Federal do Paraná, autor de Estudos sobre a reforma processual (de 1974); e Celso Neves, de São Paulo, que produziu as monografias Da arrematação de real a real e Contribuição ao estudo da coisa julgada civil, bem como a obra sistemática Estrutura fundamental do processo civil (em que expõe sua conhecida doutrina sobre a função juris-integrativa e jurissatisfativa, em confronto com a jurisdicional).

NOTAS:

11. Sucedida pela Lei dos Juizados Especiais, que é de 1995 e a revogou.

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Nos anos oitenta obteve notoriedade nacional o movimento chamado direito alternativo, promovido por juízes do Rio Grande do Sul com o objetivo de buscar a justiça a todo custo e mesmo contrariando o direito positivo, especialmente em favor dos pobres. Esse método incluía a proposta de uma radical deformalização do processo civil, com vista à eliminação de possíveis óbices à efetividade de uma justiça substancial. Descontadas as atitudes passionais e o sensacionalismo de que se revestiu, o movimento dos juízes alternativos foi um culto ao processo civil de resultados (supra, n. 40).

102. sucessão histórica das fontes formais do direito processual civil brasileiro

Pelo aspecto das fontes, a história do processo civil brasileiro divide-se em sete fases, a última das quais consistente em um conjunto de diplomas integrado pela Constituição Federal de 1988, algumas leis especiais (Lei da Ação Civil Pública, Lei dos Juizados Especiais etc.) e pela Reforma do Código de Processo Civil. São características centrais dessa fase a coletivização da tutela jurisdicional e o empenho em sua efetividade.Propôs um historiador do processo civil brasileiro a divisão da história do processo civil brasileiro em cinco fases (Moacyr Lobo da Costa). Fala-se aqui em sete, em consideração à superveniência do Código de 1973 e dessas inovações ulteriores.A primeira delas foi a de vigência das vetustas Ordenações Filipinas, promulgadas pelo rei de Portugal no início do século XVII e que sobreviveram à Independência brasileira. O Livro 3 das Ordenações oferecia um processo extremamente formalista, escrito (não oral) e calcado no princípio dispositivo, com impulso pelas partes. Era um processo muito distante dos padrões hoje vigentes, sem as premissas publicistas que aconselham o impulso do juiz e sem a menor preocupação por racionalizar as formas, a sua exigência e as conseqüências de sua inobservância.Ainda nessa fase teve vigência o famoso Regulamento 737, editado contemporaneamente ao Código Comercial e no mesmo ano de sua promulgação (1850), com a missão de disciplinar somente a ordem do juízo no processo comercial. O processo civil em geral continuou regido pelas Ordenações do Reino.A segunda fase caracterizou-se pela chamada Consolidação Ribas. O conselheiro Antonio Joaquim Ribas, encarregado pelo Imperador de fazer uma compilação das numerosas leis processuais existentes, elaborou seu trabalho mediante a redação orgânica da legislação esparsa mas sem se furtar a inovações ditadas por sua própria cultura e pelas fontes de direito romano, deixando de ser autêntica consolidação. A Consolidação das leis do processo civil entrou em vigor no ano de 1876.A terceira fase, caracterizada pela aplicação do Regulamento 737 ao processo civil em geral, foi obra do primeiro Governo republicano (1890). Tal diploma buscou a racionalização do procedimento, com redução do formalismo e algumas medidas de economia, mas sobre seu nível técnico divergem as opiniões: há os que louvam sua boa técnica e os que afirmam ser ele um atestado da ignorância dos juristas da época.A abertura para a quarta fase do direito processual civil positivo brasileiro foi oferecida pela Constituição Republicana de 1891, que, ao instituir a dualidade de Justiças, criou também a concorrência de competências para legislar sobre processo civil: com a legislação federal sobre o processo, destinada às causas processadas pela Justiça Federal, conviveriam os Códigos Estaduais, a reger a Justiça de cada Estado. Mas nem todas as unidades federadas fizeram o seu e a maioria foi de baixo nível técnico-científico. A doutrina atual costuma louvar os Códigos de Processo Civil da Bahia, de Pernambuco e de São Paulo, elaborados por juristas conhecedores dos progressos científicos em curso na doutrina européia a partir da segunda metade do século anterior.Restabelecida pela Constituição de 1934 a competência exclusiva da União para legislar sobre o processo civil, a vigência do primeiro Código de Processo Civil brasileiro, em 1939, caraterizou a quinta fase da história legislativa de nosso processo civil.A sexta fase principiou no ano de 1974 com a vigência do atual Código de Processo Civil. A sétima, com as inovações acontecidas a partir do ano de 1985 (coletivização, efetividade etc.).

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103. dois Códigos substancialmente análogos

O Código de Processo Civil de 1939 foi marcado pelo empenho em introduzir no processo civil brasileiro certas conquistas da processualística então moderna, como a oralidade no procedimento e afirmação dos poderes do juiz como diretor do processo, além de empregar estruturas e linguagem hauridas das obras de alemães e italianos e disciplinar de modo relativamente minucioso o despacho saneador de criação lusitana moderna (infra, 1111. 1.130 ss.). Ele foi o marco de um significativo progresso, mas vinte anos de sua prática bastaram para mostrar as deficiências que apresentava, mesmo no plano da técnica legislativa - especialmente no trato de certos institutos, como a competência, a chamada crise da instância, os recursos e seus efeitos, o processo executivo etc. O procedimento continuava a ser muito rígido, sem possibilidade de antecipar o julgamento do mérito em hipótese alguma. As medidas cautelares (ditas medidas preventivas) eram tratadas de modo insuportavelmente empírico, sem a menor tentativa de dar-lhes uma colocação sistemática.Curiosamente, o Código de 1939 procurava adotar técnicas sugeridas pela doutrina européia e ao mesmo tempo sua Exposição de Motivos fundamentava no direito e na obra de autores norte-americanos a modernização proposta, especialmente no que diz respeito à valorização da figura do juiz e seus poderes inquisitivos. A explicação está no fato de o anteprojeto ter sido redigido por uma pessoa (o advogado Pedro Batista Martins, sem declaradas preferências políticas) e a Exposição de Motivos ter sido feita por outra - o então Ministro da Justiça, Francisco Campos, político ligado ao regime de Vargas e empenhado no reforço do Estado perante a população.A busca de aperfeiçoamento foi feita pelo Presidente Jânio Quadros, que em 1961 encarregou um competente processualista, o pro£ Alfredo Buzaid, de elaborar o anteprojeto de um novo Código de Processo Civil. O anteprojeto assim elaborado fez-se lei em 1973, sob os auspícios do mesmo Alfredo Buzaid, então Ministro da Justiça. Por essas razões, foi inicialmente conhecido como Código Buzaid - mas é de justiça ressaltar o trabalho consciente e empenhado do relator do projeto no Congresso Nacional, o senador paranaense Accioly Filho. A vigência do Código de 1973 propiciou a sexta fase legislativa do processo civil brasileiro.É muito grande a' superioridade técnica do segundo Código de Processo Civil sobre o primeiro. Não só a linguagem é muito mais apurada e científica, como o é a abordagem de certos temas e institutos, dentre os quais a competência, fases do procedimento, os fenômenos da formação, suspensão e extinção do processo, os recursos, a execução forçada e as medidas cautelares. Quatro são os setores em que ele realmente inovou em relação ao Código anterior, ditando soluções mais justas e mais ágeis: a) no processo de conhecimento, ao determinar que a revelia do demandado leve o juiz a aceitar como efetivos os fatos alegados na petição inicial (efeito da revelia, art. 319); b) ainda no processo de conhecimento, ao autorizar que, nos casos de efeito da revelia e sempre que inexista a necessidade de realizar provas, o mérito da causa seja julgado antecipadamente, sem designação de audiência de instrução e julgamento (art. 330, incs. 1-II); c) no tocante à execução forçada, ao equiparar a eficácia dos títulos executivos extrajudiciais à dos judiciais, como é na Europa há dez séculos; d) em relação à tutela cautelar, instituindo um Livro específico para a sua disciplina (L. 3, arts. 796-899), explicitando e disciplinando o poder cautelar geral do juiz e estabelecendo critérios de admissibilidade e procedimentos para as medidas cautelares típicas. Não há dúvida de que o Código de Processo Civil de 1973 representou um extraordinário avanço técnico, em relação ao seu antecessor.No presente, porém, examinado o Código de 1973 com os sentidos aguçados pela consciência das modernas conquistas da ciência processual, vê-se que ele reproduz em substância o mesmo sistema processual vigente no de 1939. À sua superioridade técnica não corresponde uma evolução ideológica nem a implantação de um novo modelo processual, porque traz em si, como o outro, o desenho de um sistema individualista de tutela jurisdicional, além de não propor instrumentos aceleradores da tutela (como a antecipação da tutela jurisdicional, agora ditada no novo art. 273), nem oferecer ao juiz meios para a enérgica imposição da efetividade de seus resultados (p.ex., como no novo art. 461). Explica-se essa continuidade sistemática, pelos poucos conhecimentos (e menor engajamento) dos estudiosos brasileiros da época em relação

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às ondas renovatórias do processo civil (supra, n. 42) e aos movimentos modernizadores já em curso na doutrina européia (a escola instrumentalista). Considerados os períodos em que se divide a história do pensamento processualístico, os dois Códigos Brasileiros de Processo Civil situam-se no período autonomista, ou conceitual (supra, n. 98). As conquistas caracterizadoras da fase instrumentalista, ou teleológica, principiaram a ingressar no direito positivo brasileiro com diplomas supervenientes ao Código de 1973.

104. o constitucionalismo e a abertura para a perspectiva metajurídica do processo civil (a sétima fase da história do processo civil brasileiro)

Um significativo fator de abertura para as preocupações éticas em relação à ordem processual foi o crescimento do interesse de parte da doutrina pelos temas constitucionais do processo, com a verdadeira imersão de alguns processualistas no direito processual constitucional (supra, nn. 12 e 70). Enquanto os processualistas permanecessem no estudo puramente técnico-jurídico dos institutos e mecanismos processuais, confinando suas investigações ao âmbito interno do sistema, era natural que prosseguissem vendo nele mero instrumento técnico e houvessem por correta a afirmação de sua indiferença ética. Quando se volta ao confronto das normas e institutos do processo com as grandes matrizes político-constitucionais a que estão filiados, o estudioso passa naturalmente a sentir a necessidade da crítica ao sistema, inicialmente feita à luz dos princípios e garantias que a Constituição oferece e impõe - e com isso está aberto o caminho para as curiosidades metajurídicas decorrentes da conscientização dos valores residentes à base dessas exigências constitucionais.O estudo puramente técnico do procedimento não vai além da descrição dos atos processuais, exigências formais que os condicionam, das interligações entre eles e conseqüências dos desvios eventualmente praticados. Mesmo o conhecimento das posições dos sujeitos no processo (poderes, deveres, faculdades etc.) continua pobre enquanto plantado em premissas infraconstitucionais. O direito processual constitucional põe o estudo do procedimento e da relação jurídica processual sob o enfoque das garantias do devido processo legal, do contraditório, da igualdade, da liberdade etc. - e com isso o estudioso conscientiza-se de que os preceitos e exigências do Código constituem projeção de normas de maior amplitude e mais alta posição hierárquica, sendo indispensável a interpretação sistemática. Daí para entender que o sistema processual é uma conjugação de meios técnicos para a efetividade do postulado democrático da participação em liberdade e com igualdade, o passo é pequeno e já se vai chegando à percepção das grandes balizas do que se chama justo processo.Na realidade, a doutrina brasileira nunca foi inteiramente indiferente às ligações entre o processo e o plano constitucional, dado que já no século XIX um prestigioso processualista propunha o exame do processo civil em correlação com a preservação dos direitos individuais (João Mendes Júnior). Nos anos cinqüenta veio à luz uma série de manifestações de interesse pelos fundamentos constitucionais do processo, quando então se fez a afirmação de um direito processual constitucional, conceituado como "a condensação metodológica dos princípios introdutórios do processo em geral" (José Frederico Marques). A partir dos anos setenta sobrevieram obras de fôlego, colocadas em sede processual-constitucional, seja enfocando a garantia da ação e inafastabilidade da tutela jurisdicional, seja pondo em realce a cláusula due process of law ou ainda estudando a árdua questão ética das provas obtidas por meios ilícitos etc. Em trabalhos dessa ordem, era inevitável a sugestão, ainda que implícita, de uma transmigração para o metajurídico mediante invocação dos valores do homem e imperiosidade de sua preservação no processo e mediante ele.Não foi por mero acaso que logo em seguida se manifestou de modo muito forte o engajamento de parte da doutrina brasileira às propostas da escola instrumentalista e às ondas renovatórias por ela postas em destaque, com preocupações pelo atendimento aos portadores de pretensões de baixo valor econômico, pela tutela coletiva - ao meio-ambiente, aos consumidores ou a comunidades integradas em grupos associativos - pela efetividade da tutela jurisdicional, pelos escopos sociais do processo, pelo acesso à justiça como um valor a ser a todo custo postulado pela ordem processual e, enfim, pela implantação de um sistema de processo justo e équo.

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Foi assim que, tomada consciência das debilidades do sistema residente no Código de Processo Civil, surgiram movimentos em prol das inovações que vieram na Constituição Federal de 1988, em leis extravagantes e mediante a Reforma do Código de Processo Civil.

105. influências do processo civil da common law

Quando o processo civil brasileiro começou a modernizar-se, duas das mais significativas linhas dessa modernização vieram por inspiração colhida na experiência norte-americana da common law. Uma delas foi o extremo informalismo no trato de causas de pequeno valor econômico, que conduziu à primeira lei sobre o processo das pequenas causas e seus juizados (lei n. 7.244, de 7.11.84); outra, o menor apego dos norte-americanos a regras individualistas de legitimidade ativa e limites subjetivos da coisa julgada e dos efeitos da sentença, que propiciou a primeira lei disciplinadora da tutela coletiva (Lei da Ação Civil Pública: lei n. 7.347, de 24.7.85). Essas duas verdadeiras retificações de rota são igualmente significativas na determinação dos rumos do processo civil brasileiro, mas metodologicamente a segunda delas é mais rica que a primeira porque importa repensamento de velhos dogmas e mesmo uma releitura do princípio do contraditório.A Lei das Pequenas Causas e agora a sua sucessora, a Lei dos Juizados Especiais (lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995), mitigaram consideravelmente as exigências formais do procedimento, seja para abrir caminho às manifestações mais espontâneas das partes, seja transigindo na tradicional preocupação por uma rigorosa documentação dos atos do processo. Permite-se, por exemplo, a propositura oral da demanda na secretaria dos juizados, sem o formalismo de uma petição inicial, precisa descrição da causa de pedir etc. - sendo admitido que o próprio litigante o faça diretamente, sem a intermediação de advogado (em certos limites: lei n. 9.099, de 26.9.95, art. 94). A documentação dos atos é feita mediante emprego dos meios conquistados pela moderna tecnologia, sem exigência de transcrição integral e literal dos depoimentos testemunhais e lavratura de termos, assinatura de todos etc. (lei n. 9.099, art. 12, esp. caput e § 34). Nesse procedimento extremamente oral e concentrado, a rapidez com que as coisas se passam dispensa as solenes documentações inerentes a procedimentos destinados a durar anos e anos, com possíveis substituições do juiz e sempre com o grande risco de perda da memória dos fatos acontecidos em audiência. Acima de tudo, do processo que se faz perante as small claim's courts o sistema das pequenas causas brasileiras captou o espírito de confiança no juiz e no que ele afirma e atesta - e daí a dispensa do relatório, que nas sentenças tradicionais é absolutamente indispensável (lei n. 9.099, art. 38; CPC, art. 458, inc.1).As duas leis portadoras de disciplina jurídica para o processo das pequenas causas (a primeira e a vigente) dispuseram-se a afrontar o dogma da absoluta indispensabilidade da defesa técnica, ao permitirem que, em causas de valor não superior a vinte salários mínimos, em principio possam os litigantes defender-se por si mesmos, sem a necessária participação de advogado. Havendo a Constituição de 1988 ditado a regra da indispensabilidade do advogado (art. 133), o superveniente Estatuto da Advocacia (lei n. 8.906, de 4.7.94) estabeleceu que o patrocínio técnico seria indispensável em todo e qualquer juízo ou tribunal (art. 2Q), com a claríssima intenção de impedir a defesa de direitos, nos juizados especiais cíveis, por quem não seja habilitado na Ordem dos Advogados do Brasil. Essa manifestação corporativista foi impugnada perante o Supremo Tribunal Federal numa ação direta de inconstitucionalidade, com o seríssimo fundamento de que fere substancialmente a garantia constitucional de acesso à justiça. Foi concedida medida liminar que suspendeu a eficácia do art. 211 do Estatuto e pende ainda de julgamento essa ação de inconstitucionalidade.As leis que disciplinam a tutela coletiva - notadamente a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor - trazem das class actions norte-americanas uma postura diferente da nossa tradicional em face do princípio do contraditório, que ali não é visto como fonte de estrita exigência de participação de todos os titulares de um possível direito, como requisito de validade da sentença e sua imposição a todos. A iniciativa e participação de todos e cada um é substituída pela outorga de uma legitimidade adequada a instituições e entidades organizadas - de modo que, promovido o processo pela pessoa assim legitimada (entre nós, o Ministério Público,

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associações etc.: LACP, art. 54; CDC, art. 82) (supra, n. 60), considera-se que os titulares do direito estiveram ideologicamente no processo e isso basta para que a garantia do contraditório esteja satisfeita. A legitimacy of representation pelo autor ideológico (ideological plaintiffl é um instrumento substitutivo da legitimidade individual consagrada no art. 64 do Código de Processo Civil, em prol da agilidade da tutela a grupos ou coletividades - o que inclusive permite que a sentença venha a produzir efeitos e adquirir autoridade de coisa julgada erga omnes ou ultra partes conforme o caso (CDC, art. 103, incs. I-II).O Código de Defesa do Consumidor exclui a coisa julgada nas sentenças coletivas que julguem improcedente o pedido de condenação referente a direitos individuais homogêneos - com o que as ações individuais continuam admissíveis apesar do insucesso da coletiva promovida pela entidade legitimada (art. 103, inc. III).O que há de mais rico e promissor nessas técnicas é a proposta de sua própria generalização, para que o sistema processual brasileiro como um todo possa desvencilhar-se dos rigores de vetustas regras herdadas dos romanos, em si mesmas responsáveis pela segurança do processo mas em certa medida inimigas da agilidade que se pretende na preparação e outorga da tutela jurisdicional. Da perspectiva do processo civil de resultados, é legítimo ousar prudentemente, transigindo com exigências que retardem a tutela e permitindo soluções e condutas que, sem criarem grandes riscos de males prováveis e sem remédio, concorram para a maior aderência do processo à realidade dos conflitos e possam abreviar a penosa duração dos juízos.

106. albores de uma integração latino-americana

A individualidade do modelo processual brasileiro (supra, nn. 72-73) no contexto mundial e especialmente no latino-americano começa a ser questionada, neste momento de câmbio de milênio, pelas forças de uma incipiente coesão continental que ainda não se sabe a quais resultados conduzirá. Paralelamente aos esforços desenvolvidos por uma autêntica cadeia de união, notadamente no plano econômico (Mercosul) progridem os estudos promovidos pelo Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, destinados a enriquecer a ordem jurídica de cada um dos países envolvidos. Das teses, propostas e discussões travadas nas Jornadas que se realizam bienalmente resultou a redação de um Código de Processo Civil Modelo para a América Latina, que, sem ser lei e portanto não tendo força imperativa, procura ser uma fonte inspiradora de reformas. Mais objetivamente que num compêndio, as propostas equacionam-se ali segundo as estruturas de um verdadeiro código e em linguagem legislativa. É propósito de seus autores oferecer um modelo capaz de ser em alguma medida assimilado no sistema jurídico e na cultura dos países integrantes da comunidade jurídica latinoamericana, integrante do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual.É uma questão muito delicada, essa do modo como melhor convém aproximar duas ordens jurídico-processuais. Como se tem afirmado em congressos e escritos, unificar todos os países sob uma só legislação é praticamente impossível porque isso dependeria da unificação do poder, com renúncia à soberania de cada um (sequer a Comunidade Européia se propõe a isso). É também muito difícil uniformizar os sistemas processuais, plasmando-os todos rigorosamente segundo um modelo comum, dadas as tradições jurídicas de cada um deles, sua estrutura judiciária e modos como em cada país se equacionam as relações entre os Poderes do Estado. A solução é compatibilizar os sistemas, uniformizando disposições somente na medida do que for política e culturalmente suportável. Esse tema foi desenvolvido no Congresso Internacional de Direito Processual, realizado em setembro de 1995 na cidade siciliana de Taormina, sob o patrocínio da Associação Internacional de Direito Processual, com análoga conclusão (supra, nn. 14 e 68).A necessidade de compatibilizar sistemas processuais é tanto maior quanto mais forte a integração dos países numa união com objetivos predeterminados, ainda que preponderantemente econômicos. A proliferação dos grandes e pequenos contratos internacionais e a incrementada migração de empresas e capitais geram a necessidade de intensificar a cooperação processual internacional, dados os conflitos internacionais que essas relações propiciam. A necessidade de fazer citações e intimações, de promover execuções e

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produzir provas em território estrangeiro só pode ser satisfatoriamente atendida, com a agilidade que a vida dos negócios exige, se cada um dos países estiver adequadamente aparelhado para expedir e cumprir cartas rogatórias e para conferir força imperativa a sentenças estrangeiras, tudo sem exigências e formalidades irracionais que prejudiquem a própria ordem econômica. Técnicas de cooperação internacional existem, inclusive mediante a homologação de sentenças estrangeiras pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (Const., art. 102, inc. I, letra h), mas é indispensável que as exigências de um país sejam de igual teor e grau que as dos demais, até mesmo por uma questão política de reciprocidade e também para preservação do princípio da isonomia entre os litigantes nas relações internacionais.Além disso, para o cumprimento dessas medidas de cooperação internacional é indispensável que as diversas ordens jurídicas se homogeneízem parcialmente - no tocante à admissibilidade de meios de prova e de sua produção (o Brasil não cumpriria carta rogatória destinada a obter prova por algum meio que considere ilícito: Const., art. 54, inc. LVI), requisitos para a citação ficta (o Supremo Tribunal Federal não homologaria sentença estrangeira dada à revelia, tendo o réu sido citado por edital sem o mínimo de cautelas que aqui se exigem) e modo de colher a própria prova (não teria validade no Brasil uma prova feita alhures em cumprimento de carta rogatória, sem oferta de participação contraditória de ambas as partes).É também muito conveniente que uma homogeneização dos sistemas processuais - conquanto sempre parcial e atenta às realidades e tradições culturais e políticas de cada país - estenda-se o máximo possível segundo essas limitações, para que o juiz encarregado de atos de cooperação internacional possa ter razoável conhecimento do sistema do país que os solicita. A grande dispersão de disposições desnecessariamente diferentes, prejudicando o bom entendimento do contexto de onde vem a solicitação, é fator de menor qualidade e eficiência dos atos solicitados.Tal é a fórmula, por enquanto necessariamente vaga, do modo como convém ser processada uma troca de influências entre as ordens jurídicas de países integrados em uma comunidade, como o Mercosul, que depende de uma eficiente cooperação processual internacional para atingir seus objetivos econômicos. Para esse fim o Código-Modelo é um legítimo e útil repositório de sugestões sobre os modos como cada pais e todos em conjunto podem afeiçoar seus sistemas processuais com vista à crescente cooperação entre os integrantes do bloco latino-americano. Ainda é muito tênue a coesão entre esses países (compare-se com a que existe entre os integrantes da Comunidade Européia) e, portanto seriam prematuros e precipitados quaisquer prognósticos ou proposições muito concretas ou específicas que no presente momento histórico se quisessem adiantar.

107. tendências modernas do processo civil brasileiro: prognósticos e aspirações

Das linhas do modelo processual civil vigente e do conhecimento das forças que em passado recente fizeram dele o que ele é pode-se legitimamente inferir tendências e, sem o temor de arriscar-se em temerários exercícios de futurologia, adiantar prognósticos de uma possível evolução. Tal seria mais dificil se o processo civil brasileiro vivesse um período de estagnação e conformismo, sem a evidência de forças atuando sobre sua lei e sua doutrina - mas isso não é o que acontece. As significativas inovações legislativas principiadas em 1 084 mediante a Lei das Pequenas Causas, com a precedência e acompanhamento de uma atividade doutrinária muito intensa, põem o observador atento no epicentro de acontecimentos muito bem definidos, com a possibilidade de determinar os rumos da evolução.Uma primeira tendência é a absorção de maiores conhecimentos e mais institutos inerentes ao sistema da common law. Integrado na cultura processual européia-continental segundo os institutos e dogmas hauridos primeiramente das lições dos lusitanos antigos e, depois, dos italianos e alemães, o processualista brasileiro vai-se conscientizando da necessidade de buscar novas luzes e novas soluções em sistemas processuais que desconhecem ou minimizam esses dogmas e pautam-se pelo pragmatismo de outros conceitos e outras estruturas. O interesse pela cultura processualística dos países da common law foi inclusive estimulado por estudiosos italianos que, a exemplo Mauro Cappelletti e Michele Taruffo, desenvolvem intensa cooperação com Universidades norte-americanas. Os congressos internacionais patrocinados pela

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Associação Internacional de Direito Processual contam com a participação de processualistas de toda origem e isso vem quebrando as barreiras existentes entre duas ou mais famílias jurídicas, antes havidas como intransponíveis.

NOTAS:

12 Porque o que ontem era futuro hoje é presente, que em passado se converte (Miguel Reale).13. Há mais de trinta anos Liebman aconselhava em aulas a intensificação das pesquisas de direito comparado envolvendo o direito dos Estados Unidos.

Ainda há o que aprender da experiência norte-americana das class actions e de muitas das soluções de common law ainda praticamente desconhecidas aos brasileiros, mas é de prever que os estudos agora endereçados às obras jurídicas da América do Norte conduzam à absorção de outros institutos.Os americanos praticam, p.ex., a discovery, que é quase uma devassa dos meios de prova disponíveis e inclui um rigoroso dever de dizer a verdade, sob rigorosíssimas sanções; notoriamente, dão significativo valor vinculante aos holdings, que são as máximas jurídicas estabelecidas em sentenças judiciárias (stare decisis); acatam as citações promovidas pelo server, cidadão privado, por encargo da própria parte e sem interferência do juiz, cartório ou oficial de justiça; permitem que um processo, conquanto principiado por iniciativa individual, se coletivize mediante a certification of class action; etc. Estranham muito ao observador ligado às premissas romano-germânicas as práticas inerentes ao adversary system, que deixam o juiz em situação de espectador do drama do processo e chocam-se com a moderna tendência ao ativismo judiciário (os americanos praticam, p.ex., a cross examination e a cross interrogation - cabendo aos advogados dirigir diretamente perguntas à parte oposta ou às testemunhas, sob o olhar do juiz). Também, o sistema processual dos Estados Unidos é menos exigente quanto à motivação dos atos judiciários.A segunda das grandes tendências de caráter metodológico geral ainda é uma incógnita- ou seja, a integração latino-americana. São muitas as práticas diferentes, arraigadas nos diversos sistemas processuais das áreas, praticamente impossíveis de superar e seguramente muito difcil de harmonizar. Ainda não se sabe quais rumos tomará o Mercosul, que no presente é a grande mola propulsora dos desejos de compatibilizar sistemas - sendo notório que o interesse comercial é sempre a mais poderosa motivação de movimentos com essa finalidade. O Código Modelo é um sinal e uma boa provocação e as afinidades culturais cultivadas pelo Instituto Ibero-Americano, um válido incentivo - mas ainda estamos longe de resultados palpáveis.À parte essas possíveis guinadas de influência externa, no puro plano dos progressos internos uma série de caminhos vão sendo trilhados e é de prever que por ali se desenvolverá a modernização do processo civil brasileiro, a saber:

1- universalização da jurisdição.

A enorme tendência brasileira a eliminar resíduos conflituosos não jurisdicionalizáveis, manifestada na instituição dos juizados especiais cíveis e na coletivização da tutela jurisdicional, começou a projetar-se sobre o plano legislativo há pouco mais de uma década (Lei das Pequenas Causas, 1984). Ufanismos à parte, ainda resta muito a fazer. É indispensável que, paralelamente a essa legislação de cunho processual, caminhe uma adequação dos sistemas de organização judiciária, sabendo-se que muitos Estados ainda há, em que os juizados especiais estão muito longe de cumprir seus objetivos. 14 Sem uma verdadeira mentalidade uníversalizadora dos responsáveis pela estruturação do sistema e pela operação do processo ágil e informal que dele se espera, reduzem-se as esperanças de uma evolução útil. A realidade vem evidenciando o enorme risco de burocratização dos juizados, mercê da qual seu processo poderá reduzir-se à quase-inutilidade a que as más práticas fadaram o procedimento sumário. O problema é essencialmente cultural e muita responsabilidade cabe à doutrina nesse campo - sendo dela o encargo de sensibilizar consciências e formar opinião pública no sentido de exigir a

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correta adequação do sistema. Por outro lado, os instrumentos de tutela coletiva vão sendo objeto de muitos exageros e abusos, o que lhes compromete a legitimidade social e faz temer por indesejáveis retrocessos legislativos. A experiência vem mostrando ações coletivas promovidas sem o necessário senso de responsabilidade, indo além dos objetivos do instituto e incluindo invasão da autonomia dos Poderes do Estado e injustas humilhações a pessoas de bem. Ainda há juizes que não chegaram a um ponto aceitável de maturidade cultural a esse respeito, deixando-se envolver em inconvenientes entusiasmos e assim propiciando a exacerbação dos sadios ideais coletivizadores da tutela jurisdicional. A eco-histeria e a consumo-histeria desfiguram a imagem dos novos institutos. Is Também aqui compete à doutrina - assim como aos tribunais superiores - um empenhado trabalho de educação cultural endereçado ao equilíbrio do sistema (sabido que a educação para o exercício dos direitos é um dos escopos sociais do exercício da jurisdição: supra, n. 49);

NOTAS:

14. Lamentavelmente, São Paulo é um deles. É edificante o bom exemplo dado pelo Rio de Janeiro.15. Já se concedeu liminar em ação civil pública, para impor ao Executivo determinado horário para a subida e a descida das Rodovias que ligam São Paulo a Santos (Rodovias Imigrantes e Anchieta). Já se julgou procedente ação civil pública para suspender direitos políticos de todos os vereadores de um município, bem como - pasmem - também da própria Câmara de Vereadores. 16. Parafraseando Winston Churchill, em conhecida manifestação sobre a democracia: talvez o sistema de súmulas vinculantes seja o pior que se possa imaginar, mas até hoje não se propôs nenhum melhor que esse.

II - súmulas vinculantes.

Uma notória causa da lamentada morosidade da Justiça brasileira é a extraordinária repetição de teses jurídicas presentes em causas e recursos à espera de julgamento. Esse mal vem comprometendo de modo particularmente grave a atuação do Supremo Tribunal Federal, sabendo-se que no ano de 1996 o índice de repetitividade atingiu a impressionante marca de 88% dos recursos ali julgados. No Superior Tribunal de Justiça, três entes públicos são responsáveis por 70% dos recursos julgados ou a julgar, a saber: Fazenda Nacional, Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS) e Fazenda do Estado de São Paulo. O misoneísmo cultural de alguns tem sido causa de irracionais resistências ao único expediente promissor até hoje excogitado para debelar o mal da repetitividade das teses jurídicas presentes em muitos milhares de casos a julgar em todas as instâncias. Usando argumentos contraditórios e reciprocamente excludentes, dizem uns que a sumulação da jurisprudência propiciaria uma ditadura do Judiciário e sustentam outros que ela comprometeria a independência dos juízes. Alegam ainda que essa proposta atentaria contra o princípio político da separação e harmonia entre os Poderes do Estado, como se existisse uma fórmula universal e eterna de repartir atribuições entre eles: como se sabe, a separação de Poderes atende ao equilíbrio que cada sistema constitucional estabelece (checks and balances) e cada Constituição define soberanamente esse equilíbrio segundo as legítimas conveniências do lugar e do tempo. Para o desafogo dos serviços judiciários e conseqüente aceleração da tutela jurisdicional em beneficio da população em geral, a implantação das súmulas vinculantes é uma necessidade - até porque, como dito, não se tem notícia de alguma outra proposta capaz de atingir esse urgentíssimo objetivo. 16 A evolução do processo civil brasileiro, segundo as modernas tendências universalizadoras e aceleradoras, exige a pronta adoção desse método inovador;

III - aceleração do processo.

Para melhorar as condições de tempestividade da tutela jurisdicional, muitas medidas vêm sendo tomadas na legislação brasileira de processo civil. Entre nós, são tradicionalmente muito

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numerosos os títulos executivos extrajudiciais (casos em que se dispensam as demoras de um prévio processo de conhecimento); já está presente o processo monitório (em que se produz título executivo judicial com bastante celeridade); já se generalizou a admissibilidade da antecipação da tutela jurisdicional (art. 273) e algo vem sendo feito no sentido de deformalizar o procedimento (juizados especiais, simplificação de certos atos mesmo no processo comum). Mas também por esse aspecto é indispensável formar uma verdadeira consciência racional - seja para que o legislador ouse prosseguir ditando normas conducentes à eliminação de formalismos inúteis, seja para que os juizes as pratiquem. Pouca utilidade tem, p.ex., eliminar na lei a esdrúxula liquidação por cálculo do contador, se os juizes continuarem a ouvir o devedor e homologar cálculos antes de determinar a penhora; seria uma ridícula reforma a dispensa de reconhecimento de firma na procuração ad judicia pela lei, enquanto os juizes prosseguirem a exigi-Ia; etc. Também esses são entraves culturais que cabe à doutrina combater e aos tribunais, pela atividade educativa de seus julgados, extirpar;

IV - ações executivas lato sensu.

Um fator responsável pela pouca celeridade na produção final de uma tutela é a clássica separação funcional entre o processo de conhecimento e a execução forçada. Obtida a sentença condenatória, que em si não produz tutela jurisdicional palpável na prática - porque o cumprimento do preceito depende sempre, em alguma medida, da vontade do obrigado - em caso de persistir a crise de adimplemento é sempre indispensável ao credor a promoção de um novo processo, o executivo, no qual irá buscar a efetiva tutela jurisdicional pretendida. Em torno de uma pretensão só e para uma só tutela, são necessários dois processos (ambos dependentes da iniciativa do credor, petição inicial e citação). Por isso, expressivos setores da doutrina brasileira vêm preconizando o alargamento das hipóteses das chamadas ações executivas lato sensu, caracterizadas pela concentração, num processo só, das atividades endereçadas ao julgamento da pretensão e à atuação prática do julgado. Essa técnica, que remonta ao sistema das execuções per officium judicis do direito medieval, já está presente numa série de processos especiais do direito brasileiro atual - ações possessórias, de despejo, de desapropriação. Também no processo monitório se procede de modo semelhante, com a cognição (sumária) realizada numa primeira fase e a execução em outra, sem a necessidade de novo processo. Em todos esses casos os resultados são positivos, sem qualquer mácula à garantia constitucional do contraditório. Augura-se que as evoluções modernizadoras do processo civil brasileiro incluam a ampliação dos casos de aplicação das ações executivas lato sensu - autorizando ao juiz a espontânea execução de sentenças condenatórias, sem esperar pela iniciativa do credor ou depender dela;

V - efetividade da tutela jurisdicional.

O novo art. 461 do Código de Processo Civil é uma promissora abertura para o superamento de barreiras à plena efetividade das decisões judiciárias. Rompendo preconceitos, manda que o juiz exerça legítimas pressões psicológicas sobre o sujeito condenado por obrigação de fazer ou de não-fazer, para que cesse suas resistências indesejadas pelo direito e cumpra a obrigação (§§ 2Q 4- e 5-); manda ainda que, não obtido esse resultado, ele determine providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento " (caput). Essas novas disposições, trazidas pela Reforma do Código de Processo Civil, têm o grande mérito de superar irracionais preocupações ligadas ao mito da intangibilidade da vontade e da própria pessoa, as quais eram responsáveis pela crença na inadmissibilidade de execução específica por obrigações de não-fazer. Espera-se que saibam os juizes exercer à plenitude esses grandes poderes que agora a lei explicita, rompendo preconceitos do passado e impondo medidas prudentes mas muito firmes, sem o que não serão efetivas as próprias inovações legislativas voltadas à efetividade da tutela jurisdicional. Aqui também o fator cultural é de primordial importância.

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Por outro lado, o que essas novas disposições contêm pode ser somente o primeiro passo de uma caminhada. São endereçadas exclusivamente às obrigações de fazer e de não-fazer, porque notoriamente é nesse setor que se concentram as maiores oportunidade de inadimplemento - sabido que o cumprimento específico dessas obrigações depende estritamente da vontade do obrigado. Mas também a realização das obrigações de entregar coisas ou de dar dinheiro poderá ser agilizada quando a vontade do obrigado for adequadamente motivada - inclusive mediante imposição de medidas de pressão psicológica. A abertura representada pelo novo art. 461 do Código de Processo Civil sugere que no futuro análogas medidas venham a ser ditadas com referência a essas obrigações, como meio de afastar ou reduzir as conhecidas delongas até agora favorecidas pelas formas burocráticas da execução tradicional.Todos esses pontos que clamam por aperfeiçoamentos, na medida em que eles se mostram previsíveis como natural prosseguimento de movimentos já iniciados estão intimamente ligados a novas mentalidades e sua implantação depende da disposição a romper com preconceitos. As miradas na história das instituições processuais e em ordenamentos processuais estrangeiros deixam patente que muito pouco há de universal ou eterno nas técnicas adotadas em determinado país e em dado momento, sendo irracional o exagerado apego a dogmas herdados e atualmente cultivados. Nesse quadro, o desenho do futuro do processo civil brasileiro pode deixar de ser mero e tolo exercício de uma futurologia irracional para ser uma futurologia assentada na consciência de certas forças propulsoras. As previsíveis resistências culturais - que se fazem sentir sempre que se pensa em inovar - quando bem direcionadas servirão de prudentes advertências contra excessos ou sandices inovadoras, mas apesar delas tudo indica que, em certos pontos muito importantes, o processo civil brasileiro está a caminho de importantes aperfeiçoamentos.

Título IV - OS INSTITUTOS FUNDAMENTAIS

Capítulo IX- INSTITUTOS FUNDAMENTAIS DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL

108. dos fundamentos aos institutos fundamentais - 109. jurisdição - 110. processo - 111. o objeto do processo e a lide - 112. ação e defesa - 113. demanda - 114. a jurisdição como instituto central do sistema - 115. os meios (provas e bens) - 116. coisa julgada

108. dos fundamentos aos institutos fundamentais

O sistema processual, apoiado nas colunas externas representadas pelos grandes fundamentos constitucionais, é em si uma estrutura que inclui suas próprias vigas-mestras. Os princípios e garantias constitucionais são responsáveis por sua fixação na ordem político-jurídica como um todo; a estrutura do sistema dá-lhe corpo e sustentação interna. Assim como as normas e o conhecimento do direito civil giram em torno de certas categorias centrais (pessoas, bens, atos jurídicos), também as normas processuais e a ciência do processo convergem a um centro onde está seu núcleo fundamental.As grandes categorias de direito processual, que compõem e exaurem o objeto das normas processuais, são a jurisdição, a ação, a defesa e o processo. A jurisdição é o poder que o juiz exerce para a pacificação de pessoas ou grupos e eliminação de conflitos; a ação é o poder de dar início ao processo e participar dele com vista à obtenção do que pretende aquele que lhe deu início; a defesa é o poder de resistir, caracterizando-se como o exato contraposto da ação; o processo é ao mesmo tempo o conjunto de atos desses três sujeitos, o vínculo jurídico que os interliga e o método pelo qual exercem suas atividades (infra, n. 387). Tudo que as normas processuais disciplinam enquadra-se num desses quatro setores do direito processual ou cumulativamente em mais de um deles. Nada, no direito processual ou em sua ciência, está fora desses setores. O quadrinômio jurisdição-ação-defesa-processo constitui e exaure, portanto, o objeto material da ciência processual - ou seja, as realidades a que esta dedica suas investigações e suas conclusões (supra, n. 10).

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No processo civil moderno é indispensável pensar nas categorias jurídicas que compõem o sistema (institutos processuais) a partir das premissas representadas pelos princípios e garantias. O estudo dos institutos fundamentais não prescinde do correto conhecimento dos fundamentos do sistema.

109. jurisdição (Infra, nn. 117-132)

À jurisdição costuma ser atribuída uma tríplice conceituação, dizendo-se habitualmente que ela é ao mesmo tempo um poder, uma função e uma atividade. Na realidade, ela não é um poder, mas o próprio poder estatal, que é uno, enquanto exercido com os objetivos do sistema processual; assim como a legislação é o poder estatal exercido para criar normas e a administração, para governar. Como função a jurisdição caracteriza-se pelos escopos que mediante seu exercício o Estado juiz busca realizar - notadamente o escopo social de pacificar pessoas, eliminando litígios (supra, nn. 48 ss.). A atividade jurisdicional constitui-se dos atos que o juiz realiza no processo, segundo as regras do procedimento.A recondução da jurisdição ao conceito político de poder estatal, entendido este como capacidade de decidir imperativamente e impor decisões, é fator importantíssimo para o entendimento da natureza pública do processo e do direito processual, bem como para sua colocação entre as demais funções estatais e distinção em face de cada uma delas (legislação e administração).O exercício da função jurisdicional é distribuído entre os inúmeros juizes existentes no país, mediante as técnicas e critérios inerentes à competência. Todos os órgãos jurisdicionais são dotados de jurisdição e esta não se divide nem se reparte - o que se reparte são as atividades jurisdicionais atribuídas a cada um deles e a serem exercidas pelo juiz que, segundo a Constituição e a lei, for definido como competente (infra, 1111. 157 ss.). Daí conceituar-se a competência como quantidade de jurisdição entregue ao exercício de cada juiz ou tribunal (Liebman). Ela é também conceituada, tradicionalmente, como medida da jurisdição.Não se distribui nem reparte o poder jurisdicional, porque ele não é em si mesmo um poder, mas mera expressão do poder estatal, que em si também é uno e não se divide; nem se distribui ou reparte a função jurisdicional, porque esta se caracteriza pelos objetivos a realizar e todos os juízes atuam para a realização desses objetivos (infra, nn. 121, 126 e 191-192).

110. processo (Infra, nn. 386-392)

A existência de processo numa ordem jurídica é imposição da necessidade do serviço jurisdicional: o processo existe acima de tudo para o exercício da jurisdição e esse é o fator de sua legitimidade social entre as instituições jurídicas do país. Na medida em que a população necessita de juizes e do serviço que lhe prestam (a pacificação mediante o exercício da jurisdição), é também indispensável um método pelo qual esse serviço é prestado.Como método de trabalho, processo é o resultado da soma de todas as disposições constitucionais e legais que delimitam e descrevem os atos que cada um dos sujeitos processuais realiza no exercicio de seus poderes fundamentais, ou seja: a jurisdição pelo juiz, a ação pelo demandante e a defesa pelo réu. O conceito de processo abrange o de procedimento e o de relação jurídica processual (infra, nn. 387-390).As diversas situações jurídicas que se formam no processo e nele se sucedem constituem efeitos das condutas dos três sujeitos que integram a relação jurídica processual - sendo esta composta, segundo fórmula antiga e notória, de juiz que julgue, autor que demande e réu que se defenda (Ord., L. 111, XXX, pr.).1 Assim é em todo o direito e não exclusivamente no processo - sabendo-se que toda obrigação, todo dever, todo direito, toda relação jurídica tem origem em fatos e por efeito de fatos transformam-se e extinguem-se (ex facto oritur jus). Sujeitos do processo são pessoas físicas ou jurídicas na sua condição de titulares das situações jurídicas vividas no processo - poderes, deveres, faculdades, ônus, sujeição. Como condensação integrada dessas situações, a relação jurídica processual é o vínculo que interliga seus titulares, ou seja, os

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sujeitos processuais. Os atos que realizam e atuam sobre a relação jurídica processual são atos processuais e fazem parte do procedimento (infra, nn. 388-389).

NOTAS:

1. Judicium est actum trium personarum, judicis, actoris, rei.

111. o objeto do processo e a lide

Todo processo tem seu objeto, que é a pretensão trazida pelo demandante ao juiz, em busca de satisfação. Essa pretensão, caracterizada como expressão de uma aspiração ou desejo e acompanhada do pedido de um ato jurisdicional que a satisfaça, constituirá o alvo central das atividades de todos os sujeitos processuais e, particularmente, do provimento que o juiz emitirá ao fim. É em relação a ela que a jurisdição se exerce e a tutela jurisdicional deve ser outorgada àquele que tiver razão. Objeto do processo é o que ordinariamente se chama mérito e tanto existe no processo de conhecimento quanto no executivo, no monitório ou no cautelar (infra, nn. 432-433).Conhecidíssima doutrina, que o Código de Processo Civil endossa, sustenta que o objeto do processo seria representado pela lide - sendo esta o conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida (Carnelutti). Tal conceito, conquanto preciso e inegavelmente útil, não merece receber todo o destaque que em passado relativamente recente lhe dava a doutrina brasileira, porque nem sempre o processo e o exercício da jurisdição dependem da existência de uma lide; toda a teoria desta gira em torno dos conflitos relacionados com bens e direitos disponíveis, especialmente no campo do direito das obrigações, não sendo de fácil aplicação aos conflitos regidos pelo direito público ou referentes a direitos indisponíveis (infra, n. 432).

112. ação e defesa (Infra, nn. 539-559)

Ação é costumeiramente definida como direito ou poder de exigir o provimento jurisdicional final ou, especificamente no processo de conhecimento, como o poder de exigir a sentença que julgue o mérito da causa ou ainda direito à sentença de mérito. Julgar o mérito é decidir a pretensão trazida pelo autor em busca de tutela jurisdicional - pela procedência ou improcedência. Ter ação não significa, por si só, ter direito à sentença favorável, mas direito à sentença de mérito tout court. Tanto atende ao direito de ação a sentença que acolhe a pretensão do autor, dando-lhe tutela jurisdicional, como a que a rejeita, tutelando o réu. A ação é exercida mediante um ato de iniciativa do processo (demanda, petição inicial) e por uma série de atos de participação ao longo de todo o procedimento (infra, nn. 541-542).A ação é conceituada como direito abstrato de agir, na afirmação de que sua existência e seu exercício prescindem, ou abstraem, da existência do direito subjetivo alegado pelo autor. As teorias concretistas, ao sustentarem que a sentença seria direito à sentença favorável, associavam sua existência à desse direito (infra, n. 555).Defesa é o contraposto negativo do poder de ação, ou seja, ela é o conjunto de poderes e faculdades que permitem ao demandado opor-se à pretensão do autor, pleiteando sua rejeição. O direito de defesa é exercido mediante todos os atos permitidos ao réu no processo, destinados a trazer elementos ao juiz e convencê-lo a não conceder a tutela pedida pelo adversário.Postas assim, ação e defesa têm muito em comum e são poderes que se situam rigorosamente no mesmo plano, considerada a essencial igualdade das partes no processo. No mesmo nível constitucional em que está a garantia da ação (Const., art. 54, inc. XXXV), estão também outras garantias que, destinando-se a todos os sujeitos processuais, têm o efeito de dar pesos equivalentes à ação e à defesa (isonomia das partes, contraditório, ampla defesa: v. esp. art. 52, inc. LV). A ação e a defesa, tanto quanto a jurisdição, exercem-se no processo e a oferta de oportunidades equilibradas para o exercício de ambas constitui exigência do devido processo legal, preordenada à produção da tutela jurisdicional a quem efetivamente tiver razão (processo justo e équo) (supra, rui. 40 e 43).

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A garantia constitucional da ação (Const., art. 511, inc. XXXV) não impede que a lei imponha requisitos para a efetiva e individualizada existência desse direito em casos concretos. Trata-se das condições da ação, que, segundo conhecida doutrina (Liebman) e seu reflexo no Código de Processo Civil, são a possibilidade jurídica da demanda, o interesse de agir e a legitimidade ad causam (art. 267, inc. VI) (infra, nn. 542 ss.). Elas figuram entre os pressupostos de admissibilidade do julgamento do mérito, ao lado de outros requisitos postos pela lei e pelo sistema (como, v.g., o próprio exercício da ação pela propositura da demanda inicial, a capacidade das partes, a regularidade do procedimento etc.) (infra, n. 727 e 832). A falta de uma das condições da ação caracteriza-se como carência de ação, que tem por conseqüência a negativa do julgamento do mérito e extinção do processo sem esse julgamento. A doutrina moderna tende a considerar todos os pressupostos do julgamento de mérito englobadamente, renunciando à clássica distinção entre condições da ação e pressupostos processuais (infra, nn.727 e 831).

113. demanda (infra, nn. 430-458)

O ato inicial de comparecimento a juízo com uma pretensão chama-se demanda. Demandar é pedir, postular. Demanda é um ato e não se confunde com ação, que é um direito, ou poder. Não é correto dizer que se propõe uma ação, mas uma demanda: é esta que se considera proposta, ou seja, posta diante do juiz à espera de satisfação. Por isso, embora seja correto falar em condições da ação, como requisitos sem os quais não há o direito ao provimento a ser emitido pelo juiz (sentença de mérito), é preferível falar em elementos constitutivos da demanda, não da ação. São eles os fatores que, em cada demanda concretamente considerada, dão-lhe individualidade própria e a distinguem das demais (daí, identificadores segundo a linguagem mais comum na doutrina); esses fatores são as partes, a causa de pedir e o pedido (infra, nn. 436 ss.).É importantíssima, na doutrina e na prática do processo, a consideração dos elementos que constituem e dão corpo a cada demanda. Eles delimitam a possibilidade de tutela jurisdicional, não sendo lícito ao juiz dispor para quem não seja parte no processo, ou com fundamento em fato não alegado pelo demandante, ou em relação a um objeto não pedido - ou seja, não lhe sendo permitido decidir fora ou além dos limites das partes, da causa de pedir e do pedido, conforme postos na demanda inicial (arts. 128, 460) (infra, nn. 456 e 940 ss.).

114. a jurisdição como instituto central do sistema

O que motiva pessoas a terem a iniciativa do processo é sempre algum estado de insatisfação, para o qual pedem remédio ao demandar. A jurisdição é exercida para dar remédio a insatisfações, definindo situações e terminando por atribuir o bem controvertido a quem tiver razão. Quem concede a tutela a uma das partes (precisamente, àquela que tiver razão) é o juiz, fazendo-o no exercício da jurisdição e sempre mediante o processo. Daí falar-se em tutela jurisdicional e daí, também, a percepção de que é a jurisdição que opera como ponte entre uma insatisfação e um remédio, produzindo os resultados necessários à convivência social.A exigência de uma provocação para que a jurisdição possa ser exercida, sendo inertes os órgãos que a exercem (princípio da demanda ou da iniciativa de parte), leva parte significativa da doutrina a privilegiar a ação como tema central entre os institutos fundamentais do direito processual. Esse posicionamento, que é continuação de longa tradição privatista vinda dos romanos com a sua actio, consiste substancialmente em pensar todo o sistema como um processo civil do autor, o que é metodologicamente desaconselhável e eticamente inconveniente. Reconhece-se que a racional liberação dos caminhos da ação é uma exigência democrática inerente à garantia do controle jurisdicional e do acesso à justiça, mas também o são na mesma medida as franquias da defesa - porque ambas as partes têm igual direito aos resultados justos do processo, não se sabendo de início qual delas está amparada de razão. O processo não é institucionalmente destinado à satisfação das aspirações do autor, sendo lícito também ao réu esperar pela tutela jurisdicional - que obterá se sua posição estiver amparada pelo direito

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material (supra, n. 39: contra o processo civil do autor). Sequer politicamente se legitima portanto o privilégio metodológico tradicionalmente conferido à ação. Ela e a defesa são importantes garantias outorgadas aos litigantes, mas ambas convergem à jurisdição e são exercidas para preparar o correto exercício desta. O resultado do processo é obra da jurisdição.Há também os que colocam o processo ao centro do sistema, porque todos os poderes dos sujeitos processais se realizam segundo as regras do processo e, portanto, tudo convergiria a ele. Tal é uma razão puramente técnica e corresponde à visão apenas técnica do sistema. O instituto processo é instrumento para o exercício da jurisdição, que é a mola do sistema é produtora de resultados externos na vida das pessoas.

115. os meios (provas e bens) (infra, nn. 721-724)

Para exercer a jurisdição de modo correto e útil, o juiz precisa lançar mão de certos elementos exteriores ao processo, que constituem os meios sem os quais seria impossível chegar aos resultados desejados. Esses meios são os bens e as fontes de prova.Prova é a demonstração da veracidade de uma alegação quanto aos fatos relevantes para o julgamento. No processo, põemse diante do juiz as alegações de ambas as partes e ele, sem saber previamente onde está a verdade, necessita de elementos que o autorizem a formar convicção a respeito. Esses elementos são as fontes de prova, consistentes em pessoas ou coisas nas quais o juiz descubra fatores capazes de lhe determinar essa convicção (fotografias de dois automóveis logo depois de um acidente, documentos assinados pelas partes etc.; também uma testemunha é fonte de prova, porque dela pode o juiz extrair elementos de convicção) (infra, n. 723). As provas são meios particularmente relevantes no processo de conhecimento, que se conclui com o julgamento de uma pretensão, dependendo este da descoberta da verdade dos fatos; mas são relevantes também, ainda que em menor escala, para o processo de execução, em que o mérito não será julgado mas sempre alguns julgamentos o juiz deve fazer.Para decidir sobre um pedido de reforço da penhora ele precisa da prova de que o bem penhorado vale menos que o necessário para a satisfação do credor (CPC, art. 685); para deferir a remição do bem, precisa da prova da relação de parentesco entre o requerente e o executado (art. 787) etc.Para a efetiva satisfação do direito do credor que vem ajuízo (execução forçada), o juiz exerce o poder jurisdicional sobre os bens responsáveis, ou seja, sobre aqueles bens que, segundo a lei, sejam aptos a produzir essa satisfação (o patrimônio do devedor responde por todas as suas obrigações: art. 591). Os atos de constrição judicial consistem na busca-e-apreensão da coisa móvel especificamente devida, na imissão do sujeito na posse de bem imóvel, na penhora de bens suficientes para a satisfação de crédito em dinheiro, na alienação do bem em hasta pública etc. (arts. 625, 659). Os atos constritivos sobre bens são realizados preponderantemente no processo executivo, o qual tem a função específica de propiciar a satisfação prática e não o julgamento - mas também no processo de conhecimento há espaço para certos atos constritivos, seja em cumprimento a liminares, a antecipações de tutela em geral (em matéria possessória, ambiental, de consumo etc. )2 e, mesmo depois de proferida a sentença de mérito, para o cumprimento de obrigações de fazer ou de não-fazer fixadas em sentença (art. 461, esp. § 5-°).Também sobre pessoas o juiz exerce poderes de constrição, como se dá na busca-e-apreensão de menores etc. (arts. 839 e 888, incs.111-V etc.). Nessa situação, também as pessoas figuram como meios predispostos ao exercício da jurisdição.

116. coisa julgada (infra, nn. 952-970)

O exercício útil da jurisdição requer que seus resultados fiquem imunizados contra novos questionamentos, porque uma total vulnerabilidade desses resultados comprometeria gravemente o escopo social de pacificação: a segurança jurídica é reconhecido fator de paz entre as pessoas no convívio social. Por isso, o direito consagra o instituto da coisa julgada, destinado a preservar a estabilidade dos efeitos da sentença de mérito e impedir que novas leis ou novas

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sentenças aniquilem ou reduzam a utilidade pacificadora do exercício da ação no processo de conhecimento (Const., art. 54, inc. XXXVI; CPC, arts. 467 ss.). Coisa julgada é, por definição, a imutabilidade dos efeitos da sentença de mérito (Liebman) (infra, nn. 956-957). O efeito constitutivo (divórcio, anulação de contrato), o efeito declaratório (sentença que reconhece a paternidade) e o efeito condenatório (p.ex., condenação a pagar dinheiro) ficam estabilizados por força da coisa julgada e em princípio não podem ser desfeitos.3O resultado do processo de execução, que é a satisfação do credor pela obtenção do bem pretendido, não é protegido pela coisa julgada - a qual representa o grau máximo de imunização que pode incidir sobre um ato estatal - mas dispõe de algum grau de imunidade: só por sentença judiciária, em situações excepcionais e dentro dos prazos prescricionais pertinentes pode ser desconstituída a entrega do bem (art. 486).

NOTAS:

2. Código de Processo Civil, art. 928; Lei da Ação Civil Pública, art. 12, Código de Defesa do Consumidor, art. 84, § 31; etc.3. Salvo eventual admissibilidade da ação rescisória, que é sujeita a requisitos muito estritos (art. 485) e ao prazo de dois anos para a propositura (art. 495).

Livro II - A FUNÇÃO DO ESTADO NO PROCESSO: JURISDIÇÃO

TÍTULO V - jurisdição e poder: CAPÍTULO X - a jurisdição civil; CAPÍTULO XI - a jurisdição e os demais Estados: competência internacional. TÍTULO VI -órgãos e organismos encarregados da jurisdição: CAPITULO XII - os órgãos da jurisdição e sua independência: organização judiciária; CAPITULO XIII - os órgãos da jurisdição: estrutura judiciária brasileira; CAPÍTULO XIV - o estatuto constitucional da Magistratura e a independência dos juízes. TÍTULO VII - a distribuição do exercício da jurisdição: competência: CAPÍTULO XV - o exercício da jurisdição: competência (teoria geral); CAPITULO XVI - competência dos tribunais de superposição; CAPÍTULO XVII - competência da Justiça comum; CAPÍTULO XVIII - competência territorial; CAPÍTULO XIX - competência de juízo; CAPÍTULO XX - competência interna dos órgãos judiciários; CAPÍTULO XXI - competência absoluta ou relativa; CAPÍTULO XXII -prevenção; CAPÍTULO XXIII - competência dos foros regionais. TÍTULO VIII - o exercício da jurisdição civil. Serviços paralelos: CAPÍTULO = V - atividades paralelas ao exercício da jurisdição; CAPITULO XXV - serviços complementares à jurisdição: os auxiliares da Justiça; CAPITULO XXVI -funções essenciais à justiça: o Ministério Público; CAPíTuLo XXVII -funções essenciais à justiça: o advogado; CAPíTuLo XXVIII - outras funções essenciais à justiça.

Título V - JURISDIÇÃO E PODER

Capítulo X - A JURISDIÇÃO CIVIL

117. conceito - a jurisdição no quadro do poder estatal - 118. inevitabilidade - 119. definitividade (imunidade) - 120. atividade secundária ou primária - 121. dimensões da jurisdição - 122. espécies de jurisdição - 123. jurisdição voluntária - 124. jurisdição civil ou penal - 125. jurisdição comum ou especial - 126. jurisdição inferior ou superior- 127. jurisdição de direito ou de eqüidade- 128. unidade da jurisdição e pluralidade dos órgãos que a exercem: competência - 129. o Estado juiz e os juizes no exercício da jurisdição - 130. impessoalidade, imparcialidade e indelegabilidade - 131. poderes e deveres do juiz - 132. limitações à jurisdição e ao seu exercício – territorialidade

117. conceito - a jurisdição no quadro do poder estatal

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Assumido que o sistema processual é impulsionado por uma série de escopos e que o Estado chama a si a atribuição de propiciar a consecução destes, uma das funções estatais é a de realizar os escopos do processo. Tal é a jurisdição, função exercida pelo Estado através de agentes adequados (os juizes), com vista à solução imperativa de conflitos interindividuais ou supra-individuais e aos demais escopos do sistema processual (supra, 1111. 48-52). Entre esses escopos está o de atuação do direito material, tradicionalmente apontado como fator apto a dar à jurisdição uma feição própria e diferenciá-la conceitualmente das demais funções estatais - pois nenhuma outra é exercida com o objetivo de dar efetividade ao direito material em casos concretos. Conceitua-se a jurisdição, a partir dessas premissas, como função do Estado, destinada à solução imperativa de conflitos e exercida mediante a atuação da vontade do direito em casos concretos.Falar em solução imperativa é pressupor a presença do poder estatal. O Estado persegue os objetivos do processo com fundamento em sua própria capacidade de decidir imperativamente e impor decisões (definição de poder estatal, segundo a ciência política), sem a necessidade de anuência dos sujeitos. A situação destes, perante o Estado que exerce a jurisdição, é de sujeição - conceituada esta como impossibilidade de evitar os atos alheios ou furtar-se à sua eficácia (Carnelutti). Esse é o significado da afirmação da jurisdição como função pública, regida por normas de direito público (supra, n. 8).Todas as funções do Estado são exercidas com fundamento no poder (jurisdição, legislação, administração), mas só a jurisdição com o objetivo de atuar a vontade do direito material. Legislando, o Estado cria normas jurídicas, que são imperativas mas não têm destinatário certo nem se endereçam a determinada situação concreta, conhecida e definida (daí o caráter genérico e abstrato da lei, em contraste com a sentença, que é específica e concreta). Administrando, o Estado cumpre outras missões no plano social e econômico, tendo a lei como limite mas não agindo com a finalidade de dar-lhe atuação: construir uma escola, uma estrada, ou desencadear campanhas educativas para o sexo ou para o respeito ao meio-ambiente é cumprir o que mandam a Constituição e a lei, mas os objetivos dessas atividades estão ligados ao dever de propiciar o bem-comum e não ao de dar efetividade à lei. O escopo jurídico de propiciar essa efetividade é insuficiente para legitimar a jurisdição e o sistema processual como um todo, mas concorre para a boa compreensão do conceito daquela (supra, n. 51).Pelo aspecto técnico, a atividade jurisdicional é sempre substitutiva das atividades dos sujeitos envolvidos no conflito, a quem a ordem jurídica proíbe atos generalizados de autodefesa (supra, n. 45). Seja quando o sujeito aspira a um bem negado pela pessoa que lho podia dar (p.ex., pretensão a uma soma de dinheiro etc.), seja nos casos em que o processo é o único caminho para obtê-lo (anulação de casamento) (supra, n. 44), a atividade jurisdicional é sempre substitutiva de alguma atividade das pessoas. Os atos proibidos de autotutela são substituídos pela atividade do juiz que, serenamente e com imparcialidade, verifica se o sujeito tem ou não razão e, por ato seu, propicia-lhe a obtenção do bem na primeira hipótese. A jurisdição é diferente da atividade vedada ao autor, justamente por seu caráter imparcial e pela final imperatividade de que se reveste. Tendo ele razão, o exercício da jurisdição pelo juiz propicia-lhe o bem em substituição à atividade omitida pelo réu ou proibida a ele. Se a razão estiver com o réu, à resistência deste o Estado acrescenta a sua própria, vedando ao autor novos atos de tentativa de obter o bem (coisa julgada). De todo modo, dá-se sempre a substituição de atividades de todas as partes pela atividade jurisdicional do Estado.O caráter substitutivo está presente, ainda quando um dos sujeitos litigantes é o próprio Estado. O fato de o juiz ser agente estatal poderia levar à falsa idéia de que nesses casos não existisse substituição alguma, mas isso fica desmentido diante da observação de que a jurisdição é em si mesma diferente das demais funções e atividades estatais. Mesmo quando exercida em face do próprio Estado, ela se pauta pela imparcialidade e pelos escopos de pacificação, de atuação do direito etc., o que não é inerente às atividades dos demais agentes estatais. Não se trata necessariamente de substituir pessoas, mas atividades. E a atividade jurisdicional é sempre diferente da administrativa ou legislativa, especialmente pelos escopos que a norteiam e pela condição de isenção de ânimo dos que a exercem (imparcialidade).

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Com essas características, a jurisdição situa-se, juntamente com a legislação, entre as atividades jurídicas do Estado. É uma atividade ligada essencialmente à atuação jurídica, enquanto a legislação se destina à produção jurídica. Ambas diferem da administração, que não tem objetivos jurídicos. A jurisdição identifica-se pela presença de dois elementos essenciais, quais sejam o caráter substitutivo e os escopos a realizar.Esses critérios diferenciadores não são desmentidos pelo fato de, no exercício da jurisdição, o juiz em certos casos criar situações jurídicas novas - como nas sentenças constitutivas. Estas criam novas situações jurídicas (anulando o contrato, dissolvendo o matrimônio) mas as situações assim criadas são concretas e as sentenças que as criam não são dotadas de eficácia geral e abstrata.

118. inevitabilidade

Conseqüência direta e óbvia da inserção da jurisdição no campo do poder estatal é a sua inevitabilidade, que outra coisa não é senão a inevitabilidade do próprio poder estatal como um todo, proclamada pela ciência política. O poder estatal não é exercido na medida em que o desejem ou aceitem os particulares, mas segundo os desígnios e decisões do próprio Estado, expressos pelos agentes regularmente investidos. A relação de autoridade e sujeição, existente entre o Estado e os particulares, é o fator legitimante da inevitabilidade do poder estatal e do seu exercício (infra, n. 492).Não é inevitável ó poder de entidades particulares, às quais as pessoas se filiam e das quais se desligam segundo sua vontade e por expressa permissão constitucional (Const., art. 5s, inc. XX). O sócio de uma companhia, o membro de uma comunidade religiosa, o associado de um clube esportivo etc., podem forrar-se aos atos de exercício do poder exercidos pelos órgãos diretivos dessas entidades, demitindo-se delas quando bem entenderem., Mas ao membro de uma população não é permitido desligar-se do Estado, declarar-se dissidente ou recedente e com isso ficar imune ao exercício do poder estatal.A inevitabilidade da jurisdição manifesta-se, em primeiro lugar, pela dispensa de qualquer ato de anuência do demandado para figurar no processo: a citação basta para fazê-lo parte neste e, com isso, pô-lo em estado de sujeição - o mesmo estado em que, mercê da propositura da demanda, também o demandante se coloca. Além disso, os resultados do processo impor-se-ão imperativamente a ambos os litigantes, independentemente de qualquer concerto de vontades que antecipe a aceitação do modo como venha a ser feito o julgamento da causa. A criação de uma situação jurídica nova pela sentença constitutiva (divórcio, anulação de contrato), a possibilidade da execução e até mesmo do emprego da força como efeito da sentença condenatória, a declaração de inexistência da obrigação, contida numa sentença de improcedência da demanda etc., são efeitos do exercício da jurisdição que, uma vez instaurado o processo, independem da vontade dos litigantes e são impostos pelo juiz com fundamento no imperium de que está investido.O Código de Processo Civil apresenta um caso em que curiosamente se permite ao réu recusar a demanda e, com isso, ser excluído do processo por sua exclusiva vontade: é o do terceiro que, citado depois da nomeação à autoria feita pelo réu, só prosseguirá na causa se assim preferir (art. 66; infra, n. 599). As imunidades à jurisdição, estabelecidas em tratados internacionais, permitem que as pessoas imunes (ONU, Estados estrangeiros e agentes diplomáticos) valham-se da Justiça brasileira quando quiserem, propondo demandas, mas não sejam suscetíveis de serem demandadas aqui contra sua vontade (infra, n. 136): para eles, por notórias razões diplomáticas de convivência internacional, a jurisdição brasileira não é inevitável. A instauração do processo arbitral depende do consenso das partes e prévia aceitação do julgamento a ser feito mediante a sentença do árbitro (lei n. 9.307, de 23.9.96, esp. art. 3º)?O predicado de inevitabilidade não chega ao ponto de impor a alguém a participação em um processo, na condição de demandante (autor ou exeqüente). O princípio democrático e constitucional da liberdade (supra, n. 89) tem por primeiro corolário, na ordem processual, o de que nemo ad agendum cogi potest, só se fazendo autor quem o quiser e, em demonstração dessa sua vontade, ajuizar uma demanda (infra, n. 577).

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A efetividade de tal liberdade é assegurada na prática pela regra nemo judex sine actore, expressa pelo Código de Processo Civil em seus arts. 22 (o juiz só dará a tutela jurisdicional a pedido da parte) e 262 (o processo civil começa por iniciativa de parte). Tal é a regra apontada pela doutrina em geral como principio da demanda, ou da inércia da jurisdição (infra, n. 398).

119. definitividade (imunidade)

Das funções realizadas pelo Estado é a jurisdição a única dotada do predicado de definitividade, caracterizado pela imunização dos efeitos dos atos realizados. Os primeiros destinatários dessa definitividade são as próprias partes, que ficam adstritas aos resultados do processo. Não se exclui dessa regra sequer o próprio Estado, quando parte neste. Os atos dos demais Poderes do Estado podem ser revistos pelos juízes no exercício da jurisdição, mas o contrário é absolutamente inadmissível.

NOTAS:

1. Suportando somente as sanções inerentes à participação na entidade e em relação aos objetivos desta - mas não podendo ser impedido de, para o futuro, ficar alheio a ela e às suas regras.2. O processo civil romano do ordo judiciorum privatorum, eminentemente contratual, dependia da litiscontestatio, que era o ajuste de vontades pelo qual as partes declaravam previamente que aceitariam a sentença a ser proferida pelo judex. Como cidadão privado, este não passava de um árbitro.

O mais elevado grau de imunidade a futuros questionamentos, outorgado pela ordem jurídica, é a autoridade da coisa julgada material, que se restringe às sentenças de mérito (CPC, arts. 467, 468) (supra, n. 480 e infra, nn. 897 e 952 ss.). A própria Constituição a assegura (art. 5-, inc. XXXVI), primeiramente como afirmação do poder estatal, não admitindo que os atos de exercício de um poder que é soberano por natureza possam ser depois questionados por quem quer que seja. Tal é o primeiro significado da final enforcing power em que se traduz a autoridade da coisa julgada material. Nem outros órgãos estatais, nem o legislador ou mesmo nenhum juiz, de qualquer grau de jurisdição, poderá rever os efeitos de uma sentença coberta pela coisa julgada e com isso alterar a situação concretamente declarada ou determinada por ela (CPC, art. 267, inc. V, e art. 301, inc. VI). Daí ser ela uma garantia constitucional, outorgada aos sujeitos em beneficio da segurança das relações jurídicas e intangibilidade dos resultados do processo. Sem a coisa julgada, tais resultados poderiam ser revistos sucessivamente e muito menor seria a utilidade social da jurisdição porque deixaria sempre o caminho aberto para o reacender de conflitos.É menos intensa a imunização que a ordem jurídica outorga aos demais atos de exercício da jurisdição. As sentenças terminativas, que extinguem o processo sem julgamento do mérito (carência de ação, vício de representação, inépcia da petição inicial, desistência da ação etc.), não impedem que a demanda seja reproposta (arts. 28 e 268) nem que no novo processo o juiz decida a mesma questão de modo diferente (negando a carência de ação afirmada no processo anterior etc.); a entrega do bem, no fim do processo de execução, pode depois ser questionada mediante pedido de anulação desta (art. 486); etc. Mas, por menor que seja a intensidade do grau de imunidade concedido a um ato jurisdicional, sempre é exclusivamente o Poder Judiciário quem poderá neutralizá-lo, ou desconstituí-lo.A definitividade, ordinariamente indicada como característica da jurisdição, na verdade só se impõe com relação aos resultados do processo de conhecimento, fixados na sentença de mérito. Nos demais casos (sentença terminativa, processo de execução etc), não se tem verdadeira definitividade, mas algum grau de imunidade - grau maior ou menor, conforme o caso.

120. atividade secundária ou primária

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Existe em doutrina o hábito de apontar a jurisdição como atividade secundária, ou seja, atividade que se legitima nos casos em que uma pessoa, podendo satisfazer a pretensão de outra, não a satisfaz. Duas ordens de ressalvas merece no entanto essa corrente afirmação da doutrina.A jurisdição só pode ser realmente uma atividade secundária, quando exercida nos casos em que o demandado, podendo satisfazer o direito do demandante, não o faz. Isso se dá especialmente no campo do direito das obrigações (dívidas não pagas, obrigações de fazer ou de não fazer), mas não só. Também para o restabelecimento de situações garantidas pelos direitos reais (restituição do bem, direito de propriedade) e mesmo em significativas áreas do direito público, a jurisdição poderá caracterizar-se como atividade secundária, operando onde o sistema de vínculos à vontade do sujeito não haja sido suficiente para levá-lo a adimplir.Quando se trata de pretensões ligadas ao campo obrigacional, é inegável que o primeiro instrumento posto pela ordem jurídica para a satisfação dos direitos é o próprio sistema de obrigações, responsável por severas motivações sobre o obrigado, para que cumpra (multas, sanções agravadoras em geral, crédito, imagem etc.). O processo é o segundo. O sistema de obrigações atua sobre a vontade do obrigado com a ameaça implícita ou explícita das sanções ao inadimplemento. Por isso, ordinariamente cumpre e só ocorre o conflito nos casos em que descumprir. No campo do direito público, exemplifique-se com o administrador que, podendo e devendo nomear o candidato concursado a determinado cargo, não o nomeou e preferiu nomear outra pessoa.Mas outras relações jurídicas existem, de onde também surgem conflitos capazes de angustiar pessoas ou grupos de pessoas e que portanto também geram a necessidade do exercício da jurisdição - sem que, no tocante a elas, a ordem jurídica admita a satisfação voluntária de pretensões. A jurisdição, nesses casos, não é atividade secundária, mas primária.Não se dissolve o vínculo matrimonial sem a atividade do Estado-juiz (anulação, divórcio), nem se extingue o pátrio-poder, nem se anula uma eleição. Nesses casos o processo constitui remédio rigorosamente primário para a solução dos conflitos.O ser primária em certos casos e secundária em outros não retira à atividade jurisdicional o caráter substitutivo. Ainda quando primária (sentença de anulação de casamento etc.), a jurisdição se exerce porque de algum modo o sistema jurídico impede que o autor imponha unilateralmente sua pretensão a outrem. Ela é substitutiva da atividade de quem pretende (autor) e é impedido de realizar sua pretensão pela própria força, ou pela astúcia etc. (exercício arbitrário das próprias razões) - e não daquele que eventualmente pudesse satisfazer a pretensão deste (réu).A mais ampla das ressalvas a serem feitas à generalizada afirmação do caráter substitutivo da jurisdição é de caráter metodológico. Só se pode colocar a questão de o juiz realizar aquilo que o sujeito obrigado poderia realizar e não realizou (atividade secundária) ou realizar o que esse sujeito sequer poderia realizar (atividade primária), quando se pensa nos casos em que o autor realmente tivesse o direito alegado (direito a uma soma em dinheiro, direito à anulação do casamento etc. ). Toda essa construção cai no vazio, contudo, quando se pensa no autor que não tinha razão, ou seja, que não tinha direito ao bem que veio a juízo postular. Nesses casos, a jurisdição não é primária nem secundária em seus resultados. A indiscriminada afirmação do caráter secundário das atividades jurisdicionais constitui, como se vê, desdobramento do pensamento definido na locução processo civil do autor - postura metodológica que vê no processo um sistema de proteção a quem pediu primeiro e não a quem tiver razão (supra, n. 39).Pelo aspecto técnico, o direito de ação não é direito aos resultados úteis ou favoráveis do processo, mas somente direito a obter o pronunciamento do juiz sobre a pretensão que lhe é apresentada (teoria abstrata da ação: infra, n. 555). Não é primária nem secundária a atividade do juiz que julga improcedente a demanda, dando força à resistência oposta pelo réu.

121. dimensões da jurisdição

O vocábulo jurisdição é formado pela junção das palavras latinas juris (jus, juris = direito) e dictio (substantivo derivado do verbo dico, dicere, que significa dizer). .Iuris-dictio é, etimologicamente,

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dicção do direito ou pronúncia do direito. Seu significado semântico é contudo muito mais amplo no direito moderno, em que não existe, como no direito romano clássico, aquele confinamento ao processo cognitivo.Como é sabido, no processo do ordo judicio~ privatorum (ações da lei e período formular) o judex nomeado pelo pretor chegava somente até ao ponto de decidir a causa, competindo a execução ao próprio credor. O vocábulo jurisdictio era próprio dessa ordem processual mais restrita que as atuais, onde notoriamente o juiz não só julga mas também executa.No direito moderno, a solução de conflitos pelo Estado não inclui somente o dizer o direito: inclui também os atos com que, independentemente da vontade do obrigado ou mesmo contra sua vontade manifesta, o juiz propicia ao credor a efetiva obtenção do bem sonegado. A atividade exercida pelo juiz no processo executivo, onde isso se faz, é substitutiva das atividades do credor e desenvolve-se segundo os escopos do sistema processual - especificamente os de eliminar conflitos e dar efetividade à lei (supra, nn. 48, 51 etc.). Sempre que se trate de impor soluções que de algum modo dependam da vontade do obrigado, o processo de conhecimento é insuficiente para produzir tais resultados: a satisfação do credor, que a um tempo tem o duplo significado de eliminação do conflito e realização prática dos preceitos legais, só pode ser imposta mediante as medidas que caracterizam o processo executivo. Por essas razões somadas, é hoje praticamente pacífica a doutrina ao incluir no âmbito da jurisdição não somente as atividades judiciais inerentes ao processo de conhecimento, mas também ao executivo.Além disso, a moderna evolução do direito brasileiro vem atribuindo ao juiz notável poder de coerção, destinado a pressionar significativamente a vontade do obrigado para que cumpra (CPC, art. 461; CDC, art. 84). Essa é uma técnica diferente da executiva, pois consiste em motivar a vontade do obrigado e não em desconsiderá-la - mas é, tanto quanto a execução, endereçada à efetiva realização dos direitos, estando inserida no contexto das atividades jurisdicionais (infra, n. 919).Quando levada a extremos, a formação etimológica do vocábulojurisdição conduziria a excluir do âmbito jurisdicional não só a execução como também as sentenças constitutivas, dado que estas não se limitam a dizer o direito, destinando-se a criar concretas situações jurídicas novas. Conhecida teoria brasileira fala, no primeiro caso, em atividade juris-satisfativa e, no segundo, juris-integrativa (Celso Neves). A visão da função jurisdicional no direito moderno, no entanto, notadamente em face dos escopos sociais do processo, é suficiente para afastar esse critério puramente etimológico e reconhecer à jurisdição uma órbita bem mais ampla e rica.3Por outro lado, a categoria jurisdição abrange as espécies jurisdição contenciosa e jurisdição voluntária (ou graciosa), nãoobstante tradicionais lições no sentido de que esta não seria nem jurisdição, nem voluntária (infra, n. 123).

122. espécies de jurisdição

Sendo una como expressão do poder estatal, que é também uno e não comporta divisões (supra, n. 117), a rigor a jurisdição não seria suscetível de classificação em espécies. A própria distinção entre jurisdição contenciosa e voluntária tem por funda3. Se a formação etimológica de um vocábulo fosse suficiente para determinar sua extensão semântica, também o vocábulo átomo - que etimologicamente significa sem partes - estaria a definir uma unidade indivisível. Mas a física indica que, apesar do nome, átomo é um núcleo que contém nêutrons e prótons - ou seja, ele contém partes, embora o nome indique o contrário.mento o modo mais ou menos explícito pelo qual os conflitos chegam ajuízo e a solução mais ou menos direta que eles recebem por obra do juiz, sem a mínima insinuação de que se tratasse de duas jurisdições realmente distintas e, portanto, de dois poderes (infra, n. 123).As conhecidas classificações das espécies de jurisdição justificam-se, apesar disso, pela utilidade didática de que são portadoras e por serem elementos úteis para o entendimento de uma série de problemas processuais, como a competência, graus de jurisdição, poderes decisórios mais amplos do juiz em certos casos etc.Segundo o costume doutrinário tradicionalmente estabelecido, classificam-se as espécies da jurisdição: a) segundo o modo como o juiz se comporta diante do conflito, em jurisdição

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contenciosa ou voluntária; b) segundo a matéria, em jurisdição civil e penal; c) segundo a Justiça competente, em jurisdição comum e especial; d) segundo as fontes formais do direito relevantes para julgar, em jurisdição de direito e de eqüidade; e) segundo a posição hierárquica do órgão julgador, em jurisdição inferior e superior.

123. jurisdição voluntária

Existem situações conflituosas em que o juiz não é chamado a dirimir diretamente o conflito mas a criar situações novas capazes de dar a desejada proteção a um dos sujeitos ou a ambos, como que administrando os interesses de um ou de todos. Tem-se nesse caso uma atividade judicial (de juizes) que tradicionalmente a doutrina inclui no quadro da administração pública de interesses privados. Tal atividade, que é a jurisdição voluntária, opor-se-ia à jurisdição contenciosa, na qual o conflito existente entre os sujeitos é posto diretamente diante do juiz e dele recebe solução favorável a um dos sujeitos e desfavorável ao outro. O Código de Processo Civil, ao dizer que "a jurisdição civil, contenciosa e voluntária, é exercida pelos juízes, em todo o território nacional, conforme as disposições que este Código estabelece " (art. 14), não só afirma a existência dessas duas vertentes da jurisdição (contenciosa e voluntária) como também manda que a segunda delas se exerça segundo os atos, as formas e as garantias inerentes ao processo civil. Há procedimentos a observar, está presente o contraditório, as decisões e sentenças devem ser motivadas, opera o duplo grau de jurisdição etc. - enfim, prevalecem os padrões ditados pela garantia do devido processo legal (supra, n. 94).Essas características da jurisdição voluntária afastam a tradicional idéia de que ela não teria natureza jurisdicional, sendo administração. Na jurisdição voluntária é tênue o escopo jurídico de atuar a vontade do direito, incluído entre as características da jurisdição e do próprio sistema processual, mas isso não basta para desfigurá-la porque o direito moderno dá primazia a outros escopos, notadamente o de solucionar conflitos para pacificar pessoas. A exclusividade do escopo jurídico da jurisdição, própria do período conceitual do direito processual civil mas repudiada na processualística moderna (supra, nn. 47-48), seria no passado uma válida premissa para a negação do caráter jurisdicional à jurisdição voluntária mas hoje não tem mais essa força. Em todos os casos nos quais o juiz é chamado a exercer a jurisdição voluntária existe sempre um alguma situação conflituosa e um estado de insatisfação que afligem pessoas e necessitam solução. Pode ser um conflito mais ou menos aparente ou intenso, mais explícito ou menos explícito na demanda apresentada ao juiz e que ele resolverá mais diretamente ou menos - mas é sempre a realidade social de um conflito que leva o juiz a exercer a jurisdição voluntária, tanto quanto a contenciosa.Quando um dos quinhoeiros pede em juízo a alienação de quinhão em coisa comum (CPC, art. 1.112, inc. V), isso significa que inexiste concórdia entre ele e os demais co-proprietários quanto ao modo de utilizar o bem nem o consenso em aliená-lo. Se houvesse e todos concordassem na alienação por dado preço a algum deles ou a terceiro, não seria necessário o processo: sem conflito inexiste processo e o exercício de jurisdição não tem razão de ser. No processo que então se instaura, o juiz determina o valor do quinhão pelas formas adequadas e oferece a todos a preferência para aquisição (CC, art. 1.139), determinando a venda a estranho se nenhum deles a exercer. Tudo se faz em contraditório, com decisões judiciárias e possibilidade de recursos, sem embargo de tratar-se de processo de jurisdição voluntária (incluído no titulo do Código reservado aos procedimentos especiais de jurisdição voluntária).Há casos em que conflito é menos aparente e não vem deduzido como tal na demanda trazida a juízo. É o que se dá nos processos de separação judicial consensual (arts. 1.120-1.124), sempre motivados por uma crise do matrimônio e, portanto, crise j urídica necessitando solução. Como não se permite aos cônjuges dissolver o vínculo ou mesmo a sociedade conjugal pelos mesmos modos como o constituíram, essa crise receberá solução em juízo. O juiz não é chamado, ali, a ditar soluções por ele próprio, mas limita-se em princípio a homologar o acordo a que os cônjuges hajam chegado - apenas negando a homologação quando certos requisitos mínimos não houverem sido cumpridos (guarda de filhos menores e regime de visitas). De algum modo, portanto, ele sempre estará decidindo e suas decisões ficam sujeitas a recurso. É inegável que,

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conquanto não exposto conflito algum na petição inicial do processo de separação judicial, é sempre um conflito que lhe dá causa.Despreocupada dos conflitos como núcleo justificador da atividade jurisdicional, a doutrina tradicional indica várias espécies de jurisdição voluntária, incluindo habitualmente entre elas certos casos de mera certificação feita pelo juiz (legalização de livros comerciais, aposição de visto) ou pura e simples recepção e publicidade (publicação de testamento particular). Esses atos têm realmente pura natureza administrativa (administração pública de interesses privados, realizada pelo juiz), mas não há a mínima razão ou utilidade prática ou sistemática que justifique considerá-los de jurisdição voluntária. Não se referem a conflitos, nem lhes dão solução, nem se realizam pelas formas do processo civil. Não são atos de jurisdição voluntária.Pelo aspecto teleológico, o que distingue a jurisdição voluntária da contenciosa e lhe dá alguma dose de autonomia conceitual é sua destinação a dar tutela jurisdicional a um dos sujeitos do processo, sabendo-se de início a qual deles ela poderá ser dada e excluindo-se que a outro o seja. Isso se vê com bastante clareza no processo (de jurisdição voluntária: arts. 1.177 ss. CPC) de interdição de pessoas sem condições psíquicas para a administração de sua própria pessoa e bens. O direito material não atribui a quem quer que seja o direito à interdição de pessoas de sua família e muito menos o direito a exercer os encargos da curatela. Quer simplesmente, sempre a bem da pessoa incapacitada, que ela fique afastada dessa administração e tenha um curador. O processo de interdição, por isso, terminará por dar um curador à pessoa suspeita de incapacidade, se ela tiver necessidade disso; ou a manterá na plena administração de sua pessoa e bens, na hipótese contrária. De todo modo, é sempre ao interditando que a tutela será dispensada. Inexiste aquela abertura, coessencial aos processos de conhecimento de jurisdição contenciosa, à concessão de tutela jurisdicional a quem tomou a iniciativa do processo (demandante, autor) ou à parte oposta (demandado, réu). No processo da separação judicial consensual (também de jurisdição voluntária), ambos os cônjuges são tutelados mediante a homologação do acordo que hajam celebrado mediante o desfazimento da sociedade conjugal que os dois reputam inconveniente.Bem próximo a esse critério diferenciador chegou uma doutrina, formulada entre muitas na tentativa de conceituar a jurisdição voluntária: aquela segundo a qual o juiz atuaria parcialmente nesses processos - e não com imparcialidade, como na jurisdição contenciosa (Giovanni Cristofolini). Na realidade, jamais o juiz pode atuar com parcialidade, entendida esta como predisposição a julgar em favor de um dos sujeitos processuais independentemente da verdade dos fatos e da boa interpretação do direito. Na jurisdição voluntária, onde o juiz em certa medida sempre julga, o julgamento será sempre imparcial, ainda que o processo em si mesmo seja aparelhado a dar a tutela a determinado sujeito (como na interdição), ou a ambos (como na separação consensual).Com essas características, jurisdição voluntária é a atividade jurisdicional destinada a pacificar pessoas mediante a tutela a uma delas ou a ambas, em casos de conflitos postos diante do juiz sem confronto entre possíveis direitos de uma ou de outra.

Em síntese, as características distintivas da jurisdição voluntária são essas: a) é atividade jurisdicional e não administrativa, (b) destina-se à tutela de pessoas em casos de conflito, (c) não consiste em dirimir diretamente conflitos entre elas, (d) conseqüentemente, não são julgadas pretensões antagônicas e (e) destina-se a dar tutela a uma das partes, previamente determinada, ou a ambas, sem se colocar parvo juiz a escolha entre tutelar uma delas ou a outra.

124. jurisdição civil ou penal

Fala-se inicialmente em jurisdição civil em contraposição a jurisdição penal, em simetria com a classificação do próprio direito processual em direito processual civil e direito processual penal. Assim como a rigor o direito processual não comporta tais adjetivações, sendo invariavelmente um conjunto de normas e princípios de direito público e tendo objeto próprio (supra, nn. 8-9), assim também a jurisdição não é civil ou penal, ao sabor dos fundamentos penais ou não-penais das pretensões sobre as quais ela se exerce. Aceita porém a conveniência prática dessa

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classificação, tem-se por jurisdição civil a que se exerce para a solução de conflitos segundo preceitos de direito não-penal: a grande extensão da área coberta por essa espécie de jurisdição, máxime nos sistemas em que inexiste a justiça administrativa (contencioso administrativo), põe sob a autoridade dos juízes civis todos os litígios fundados em direito civil, comercial, administrativo, tributário e constitucional. Inexistindo outro adjetivo que represente melhor essa abrangência da jurisdição civil, por essa locução entende-se a jurisdição exercida em matéria não penal.A distinção entre as jurisdições civil e penal é levada em conta pelas leis de organização judiciária ao fixarem a competência de varas cíveis ou criminais ou ao dividirem os tribunais em seções. Não se chega porém ao ponto de, a partir da divisão estrutural de tribunais como o Superior Tribunal de Justiça, subdividir a jurisdição civil em jurisdição de direito público e jurisdição de direito privado.

125. jurisdição comum ou especial

Tanto no âmbito da jurisdição civil quanto da penal, costuma-se fazer a distinção entre jurisdição comum e jurisdição especial. Essas subclassificações têm por critério aproximativo a natureza das normas jurídico-substanciais com base nas quais os conflitos serão julgados. Assim como o direito penal militar é direito especial em relação ao direito penal comum, também o direito do trabalho é direito especial em relação do direito civil.' Por isso existe uma jurisdição civil comum, exercida por órgãos da chamada Justiça comum (Justiça Federal, Justiças dos Estados e Justiça do Distrito Federal), em contraposição à jurisdição especial exercida por órgãos de uma Justiça especial que é a Justiça do Trabalho.A jurisdição trabalhista é civil por natureza mas, no sistema brasileiro, disciplinada por leis próprias e exercida segundo um processo todo especial, por órgãos distintos (a Justiça do Trabalho). Quando se fala em jurisdição civil, portanto, exclui-se também o exercício da jurisdição em matéria trabalhista. É a jurisdição civil comum, referente a litígios não-penais e não-trabalhistas.

126. jurisdição inferior ou superior

Faz-se a distinção entre jurisdição inferior e jurisdição superior, segundo os graus em que ela exercida. A jurisdição é adjetivada de inferior, quando exercida pelos juizes de primeiro grau, ou seja, por aqueles que ordinariamente processam e julgam as causas originariamente, sem terem competência recursal alguma e, ao contrário, estando suas decisões sujeitas aos recursos endereçados aos tribunais. É chamada superior a jurisdição exercida pelos órgãos dotados de competência recursal.No Brasil a jurisdição civil inferior é exercida pelos juízes federais e pelos juízes de direito estaduais em exercício nas diversas seções judiciárias, comarcas e varas existentes em todo o Estado. Todos os órgão brasileiros de jurisdição civil inferior (juízos de primeiro grau de jurisdição, ou de primeira instância) são singulares e não colegiados.

NOTAS:

4. Embora conotado de notórias razões e fundamentos de ordem pública, o direito do trabalho nasceu como disciplina de uma específica relação jurídica de prestação de serviços (esta, regida pela lei civil), que é a relação de emprego.

A jurisdição superior, exercida pelos tribunais (órgãos colegiados), desdobra-se em variados níveis, que vão dos Tribunais de Justiça, de Alçada ou Regionais Federais até ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal. A jurisdição superior é exercida em grau de recurso contra decisões dos órgãos inferiores ou originariamente, em relação a causas que, segundo a Constituição Federal ou as dos Estados, devem ser desde o início processadas

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perante eles (mandado de segurança contra ato do Presidente da República: competência do Supremo Tribunal Federal, art. 102, inc. 1, Const.).Nos processos das pequenas causas a jurisdição superior não é exercida por tribunais, mas por um colegiado composto de juízes dos próprios juizados especiais cíveis (lei n. 9.099, de 26.9.95, art. 41, § 12).

127. jurisdição de direito ou de eqüidade

O critério das fontes formais de direito leva à distinção entre as chamadas jurisdição de direito e jurisdição de eqüidade. Em principio cumpre ao juiz decidir segundo as regras enunciadas no direito positivo, ou seja, na lei, da qual se costuma dizer que ele é escravo. São excepcionais as autorizações a julgar sem os parâmetros ditados em lei (CPC, art. 127), porque a generalização de julgamentos assim abriria caminho ao arbítrio. Por lei entendem-se todas as normas postas pelos entes dotados de competência constitucional para isso, em todos os níveis (Constituição, lei ordinária federal, fontes estaduais etc.), sendo que julgar segundo tais normas é um fator de segurança inerente à legalidade imposta pelo Estado-de-direito. Isso não significa que, no exercício da própria jurisdição de direito, o juiz esteja impedido de interpretar os textos legais a partir dos valores da sociedade, nem que ele esteja vinculado à letra da lei (supra, mi. 4 e 51). Julgar por eqüidade é pautar-se por critérios não contidos em lei alguma e não apenas interpretar inteligentemente os textos legais. Ao julgar por eqüidade o juiz remonta ao valor do justo e à realidade econômica, política, social ou familiar em que se insere o conflito - à aequitas enfim - para retirar daí os critérios com base nos quais julgará. Mesmo um julgamento por eqüidade deve ser feito com impessoalidade, sem ter por fonte os gostos pessoais ou preferências axiológicas do julgador. Cumpre-lhe comportar-se como autêntico canal de comunicação entre os valores vigentes na sociedade e o caso em julgamento. A impessoalidade no julgamento é assegurada pelos mecanismos inerentes ao duplo grau de jurisdição, cumprindo aos tribunais fazer a retificação de eventuais personalismos do juiz inferior (supra, n. 51).São casos de jurisdição de eqüidade, no processo civil brasileiro: a) a fixação do valor dos alimentos devidos entre ascendentes e descendentes ou entre cônjuges e a serem dimensionados segundo a necessidade do credor e a possibilidade do devedor (CC, art. 400); b) as decisões sobre a guarda de filhos (lei n. 6.515, de 26.12.77, art. 10°-, esp. § 1º); c) a fixação e dimensionamento das multas diárias por descumprimento de liminares ou sentenças relativas a obrigações de fazer ou de não-fazer (CC, art. 461, § 4Q); d) o arbitramento dos honorários da sucumbência, especialmente nos casos do art. 20, § 4º do Código de Processo Civil etc.No processo arbitral, pode o julgador (árbitro) decidir por eqüidade quando expressamente autorizado pelas partes (lei n. 9.307, de 23.9.96, art. 22, art. 11, inc. II e art. 25, inc. II). Nos juizados especiais cíveis o árbitro é autorizado por lei a julgar por eqüidade, dispensada a autorização dos litigantes (lei n. 9.099, de 26.9.95, art. 25); mas o juiz exerce jurisdição de direito, apesar da redação do art. 62 da lei especial.Qualificam-se como dispositivas ou determinativas as sentenças que decidem por eqüidade. Essas sentenças não deixam de ser o que são - meramente declaratórias, constitutivas ou condenatórias (infra, nn. 895, 904, 911, 919, 924 etc.) - só pelo fato de tomarem outros critérios jurídico-substanciais para o julgamento do mérito, diferentes daquele que está em lei formal editada pelo Estado. Seus efeitos são suscetíveis de coisa julgada material, tanto quanto os de qualquer outra sentença de mérito (infra, n. 902).

128. unidade da jurisdição e pluralidade dos órgãos que a exercem: competência

A unidade da jurisdição, filha da unidade do próprio poder estatal - da qual aquela é mera expressão - significa que, assim como não se concebe que o Estado pudesse ter mais de uma capacidade de decidir e impor decisões (supra, nn. 109-110), assim também inexistem duas ou várias "capacidades " de fazê-lo com o objetivo de solucionar conflitos. O Estado exerce seu poder (único) mediante atividades de seus múltiplos organismos - fazendo-o ao legislar, ao governar e ao solucionar conflitos das mais variadas ordens. Cada juiz, de qualquer grau, em

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qualquer das variadas Justiças de que se compõe o Poder Judiciário brasileiro, exerce a mesma jurisdição que os demais juízes exercem: é sempre o poder estatal exercido com o objetivo pacificador, ou seja, é sempre a jurisdição. As espécies de jurisdição, determinadas segundo alguns ditames de pura ordem prática (supra, n. 122), não infirmam essa unidade.A distribuição do exercício da jurisdição entre Justiças (Federal, Estaduais, do Trabalho etc.) ou entre juizes e tribunais pertencentes à mesma Justiça apresenta a temática da competência, tradicionalmente conceituada como medida da jurisdição. A jurisdição nacional (única) é exercida por todos os jùízes do país, mas a cada um deles ou a cada grupo de juizes (Justiças) a Constituição e a lei atribuem a missão de exercê-la com relação a determinadas pessoas, sobre tais ou quais espécies jurídico-materiais de litígios (de direito do trabalho, de direito penal, de direito civil em geral, de direito de família), em determinado lugar e nos variados graus de jurisdição (a competência dos tribunais). Pensando na jurisdição como atividade (não como poder ou como função) diz-se que competência é a quantidade de jurisdição cujo exercício é atribuído a cada órgão ou grupo de órgãos (Liebman).Em cada país a distribuição da competência para o exercício da função jurisdicional leva em conta, como premissa geral e inafastável, o modo como se estruturam os órgãos de sua Magistratura. No Brasil, em que a Constituição institui várias Justiças diferentes e reciprocamente autônomas, 5 sobrepondo a todas dois tribunais que não pertencem a nenhuma delas (o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça) e estruturando-as em órgãos inferiores e órgãos superiores - é sobre esse pano de fundo que se distribuem as causas de toda natureza. A jurisdição civil é exercida pelos organismos qualificados como Justiça comum (a Federal, as Estaduais e a do Distrito Federal), com a admissibilidade, em tese, de recursos para os dois tribunais de superposição, os quais têm também alguma competência originária em matéria cível. Os critérios para escolha das causas de competência de cada Justiça ou de cada órgão judiciário ligam-se sempre aos elementos do litígio a ser ajuizado (qualidades das partes, fundamento da demanda, natureza do bem) e à espécie de processo a instaurar (mandado de segurança ou vias ordinárias, o processo comum ou o especial dos juizados especiais etc.). No direito brasileiro esses critérios são numerosíssimos e arredios a classificações muito precisas (sobre esses critérios e a inaceitabilidade dos esquemas de distribuição da competência construídos por autores estrangeiros, infra, nn. 191 ss., esp. n. 209).

NOTAS:

5. Militar, Eleitoral, do Trabalho, Federal, Estaduais e do Distrito Federal.

129. o Estado juiz e os juízes no exercício da jurisdição

O exercício da jurisdição é feito pelo Estado mediante a atuação de agentes específicos, que são os juizes de todos os graus. Eles atuam como se fossem o próprio Estado, visto que este, como pessoa jurídica, constitui pura abstração sem existência física e não tem outro modo de externar seus desígnios e exercer seu poder senão por obra de pessoas físicas. Tais são os juízes, que corporificam o Estado e o representam no exercício da jurisdição. 6Há uma pequena dose de exagero em indicar somente os juízes como agentes do Estado no exercício da jurisdição brasileira, uma vez que ao Senado Federal a Constituição outorga essa função em certos casos. Mas esses casos são tão raros e não dizem respeito à jurisdição civil (art. 52, incs. 1-11: competência para processar e julgar o Presidente da República, o Vice-Presidente, Ministros etc., em crimes de responsabilidade), que o exagero é quase insignificante. A jurisdição civil é realmente, segundo entendimento que vem de tempos imemoriais, atribuição específica dos juizes (Liebman). No Brasil os juízes que exercem a jurisdição pertencem todos ao Poder Judiciário, inexistindo o contencioso administrativo.

NOTAS:

6. Ou o presentam (Pontes de Miranda).

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Daí decorre, em primeiro lugar, que só haverá verdadeiro exercício da jurisdição quando os atos de seu exercício forem realizados por pessoa investida na condição de juiz - ou seja, pessoa que, segundo as regras constitucionais e legais vigentes, tenha sido admitida à Magistratura, nomeada e empossada no cargo, estando no exercício deste (garantias do juiz natural: Const., art. 54, incs. XXXII e LIII). Fora disso não se tem um juiz e portanto não se trata de um legítimo agente estatal (juiz natural - supra, nn. 81-82).Só se tem um juiz regularmente investido, quando investido no cargo, ou seja, no órgão judiciário competente para o processo e julgamento de dada causa. Não basta somente ser juiz. Um dos aspectos dessa exigência é a regra da aderência ao território, destacada pela doutrina em geral (Cintra-Grinover-Dinamarco), pela qual um juiz só o é nos limites do território de sua investidura. Na realidade, a exigência de investidura conduz a restrições mais significativas, sendo irregular o exercício da jurisdição por pessoa investida em outro órgão judiciário que não no órgão por onde flui a causa.

130. impessoalidade, imparcialidade e indelegabilidade

A abstração feita para entender que é o Estado quem exerce a jurisdição, embora os atos desse exercício sejam materialmente realizados pelos juizes, tem por corolário imediato a conotação de impessoalidade, que qualifica a atuação destes. O juiz não é sujeito do processo, em nome próprio: ele ocupa o lugar do mais importante dos sujeitos processuais, que é o Estado. Não atua em função de seus interesses, ou de seus escopos pessoais, mas dos escopos que motivam o Estado a assumir a função jurisdicional (supra, nn. 47 ss.). No passado já se afirmou que seria o juiz o titular passivo do direito de ação, mas essa idéia está completamente superada e hoje todos sabem que tal titular passivo é o Estado.Dessas óbvias constatações decorre uma série de conseqüências- todas elas centradas na idéia da presença do Estado e não da pessoa física do juiz como sujeito processual. Uma delas é a continuidade no exercício da jurisdição, não sendo exigido que o processo seja conduzido desde o início até ao fim pelo mesmo juiz.' Outra, muito importante, é a proibição de julgar com fundamento na ciência privada do juiz, ou seja, em seu conhecimento pessoal dos fatos (CPC, art. 131).8 Os mandados de segurança contra ato judicial, embora indicando como autoridade coatora o juiz, são impetrados contra o juízo, ou seja, contra o órgão jurisdicional - pouco importando quem o ocupava e quem o ocupa no momento em que a impetração vier a ser julgada (e o juiz não pagará custas se a segurança for concedida). A competência ou incompetência não são aferidas com referência à pessoa do juiz, mas aos órgãos e organismos que os juízes ocupam ou compõem.Só se vê o juiz como sujeito processual - ele próprio e não como agente do Estado - nos incidentes da exceção de suspeição ou de impedimento (arts. 134-135 e 312-314) (infra, nn. 1.0871.090): ali ele figura como exceto, em oposição à parte que lhe argüi a suspeição ou impedimento, que é o excipiente. Como sujeito passivo da exceção, ele poderá reconhecer o pedido, afastando-se do processo. Mas não julga a exceção. Se não se abstiver de prosseguir no feito, remete os autos do incidente ao tribunal competente, que julgará a exceção.Os mais destacados desdobramentos da impessoalidade da atividade jurisdicional são o dever de imparcialidade do juiz e a indelegabilidade da jurisdição.O Estado-de-direito atua, inclusive sub specie jurisdictionis, com obediência às regras e princípios de justiça que ele mesmo consagrou em fórmulas residentes na Constituição e na lei, sendo inadmissível que um agente seu, mero ocupante passageiro de um cargo, pudesse sobrepor seus sentimentos ou seus próprios interesses a esses critérios objetivamente estabelecidos de forma legítima e impessoal (supra, n. 81). Tal é a conexão entre o dever de imparcialidade e o caráter impessoal do exercício da jurisdição.

NOTAS:

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7. A identidade física do juiz só é exigida a partir do momento em que tem início a instrução oral da causa (art. 132). O prcetor romano devia encerrar durante o tempo de sua investidura todos os processos que tivesse iniciado. Extinto o poder do pretor que se afastava do cargo, os processos pendentes se extingüiriam. Não se tinha, portanto, o grau de impessoalidade vigente no direito atual.8. Se conhecer os fatos pessoalmente, é seu dever declinar essa circunstância e dar-se por impedido, vindo a depor como testemunha (art. 409, inc. 1).

Da impessoalidade no exercício da jurisdição decorre também que as competências não podem ser delegadas, uma vez que o poder de julgar não pertence à pessoa do juiz, mas ao Estado - cumprindo a este, mediante a legislação pertinente, atribuir o exercício da jurisdição aos ocupantes dos cargos ali indicados. A Constituição Federal não exclui de modo explícito a delegabilidade, mas ela é coessencial ao regime de competências traçado por ela própria e pela lei, sendo inerente à garantia constitucional do juiz natural (supra, n. 82). São portanto legítimas as proibições de delegar funções, contidas em Constituições estaduais.Também constitui reflexo da impessoalidade a ausência de faculdades à disposição do juiz. Ele exerce o poder estatal e cumpre os deveres que tem perante o Estado, na realização do processo justo e mediante julgamentos justos. Não tem, contudo, faculdades - que se conceituam como liberdade de conduta e de exercício dos direitos segundo escolhas próprias e o interesse de cada um - simplesmente porque não há direitos ou interesses seus em jogo no processo (supra, nn. 88-89; infra, n. 497).Assunto diferente é a liberdade interpretativa do juiz, associada à liberdade para formar racionalmente seu convencimento na valoração das provas (CPC, art. 131) - dado que essas liberdades não correspondem a ditames do próprio interesse. O juiz não tem, p.ex., liberdade para aceitar o processo ou dar-se por incompetente, ou para delegar a competência; mas tem ampla liberdade para aceitar as conclusões do laudo do perito ou rejeitá-las racionalmente em decisão fundamentada (art. 436).

131. poderes e deveres do juiz

A jurisdição exerce-se mediante a prática de atos de diversas ordens, dispostos segundo critérios de técnica processual (instruir a causa, sanear o processo, julgar o mérito) e dimensionados segundo certas opções políticas do legislador. No processo civil moderno, que exalta a necessidade de obter resultados, incrementam-se os poderes do juiz no sentido de suprir deficiências das partes e seus procuradores (especialmente em matéria probatória) e de empenhar-se na imposição do cumprimento das obrigações, especialmente das de fazer ou de não-fazer, inclusive mediante atos de pressão psicológica sobre o obrigado (CPC, art. 461). Da garantia do contraditório extrai-se o dever judicial de participar intensamente do processo, com poderes que antes não se reconheciam nem os juizes exerciam (supra, mi. 80, 85, 94 etc.; infra, n. 509).Ao lado desses poderes, diretamente ligados ao exercício jurisdição, o juiz é dotado de outros, integrados no conceito de poder de policia (conceito de bastante aplicação em direito público em geral, especialmente direito administrativo), pelos quais lhe é lícito impor a disciplina no processo mesmo e nas audiências que preside (a chamada polícia das audiências - infra, n. 513).

132. limitações à jurisdição e ao seu exercício – territorialidade

As limitações constitucionais e legais à oferta da tutela jurisdicional aparecem na disciplina da jurisdição sob as vestes de certas técnicas, como a da competência, das condições da ação, exigências procedimentais etc. (pressupostos de admissibilidade do provimento de mérito). Trata-se de limitações porque são regras destinadas a impedir o exercício indiscriminado da jurisdição, condicionando-o a requisitos postos racionalmente (infra, n. 41). Os exemplos acima são de limitações que se passam no direito interno, qualificando-se por isso como limites internos da jurisdição (Liebman).

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Uma ordem muito significativa de limitações internas de extrema relevância na prática do processo é representada pela territorialidade da investidura do juiz, como conseqüência das regras de divisão judiciária do território nacional. A cada órgão judiciário só é lícito exercer a jurisdição no âmbito geográfico do foro que lhe é atribuído por lei e eventuais invasões além divisas constituem ultrajes à investidura do órgão cujo território haja sido invadido. O tema não se confunde com o da distribuição das causas entre foros, pois consiste em vedar a imposição do poder sem respeitar divisas. Intimamente ligada à territorialidade da jurisdição é a necessidade de expedir cartas precatórias, solicitando a cooperação do juiz do lugar para a realização de atos no foro em que exerce a jurisdição (infra, mi. 663 ss.). Tal é a importância dessa ordem de limitações, que a doutrina chega a erigi-la em princípio inerente à jurisdição (Cintra-Grinover-Dinamarco).De certo modo, as normas que compõem o direito processual são um conjunto de limitações ao exercício da jurisdição: no Estado-de-direito, em que vige a cláusula due process of law, o poder exerce-se segundo a Constituição e a lei, nos limites que elas estabelecem (supra, n. 94).Externamente a jurisdição é limitada por certos fatores inerentes ao convívio entre Estados soberanos, que levam cada um destes a excluir sua própria jurisdição em muitos casos. As regras da chamada competência internacional (CPC, arts. 88-90) são limitativas da própria jurisdição, não meros critérios de distribuição do exercício da jurisdição entre os juizes do mesmo país (competência). Em relação às causas excluídas da competência do juiz nacional, a jurisdição do país não se exerce porque o poder estatal é insuficiente para chegar até a elas. Por falta de competência internacional, o juiz nacional será carecedor de jurisdição. Não se trata de mera incompetência, como a locução poderia fazer crer (infra, mi. 133 ss.). Tal é um sistema de limitações territoriais da própria jurisdição e não de seu exercício.Eis por que só surgem os problemas de competência interna, destinados à determinação do juiz nacional competente em cada causa e em cada situação, depois de estabelecido que o juiz nacional é internacionalmente competente. Só tem significado pesquisar a competência quando da jurisdição já se tem certeza (infra, n. 193).

Capítulo XI - A JURISDIÇÃO E OS DEMAIS ESTADOS: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL

133. autolimitação do poder por normas de direito interno - 134. exclusão por inviabilidade - 135. exclusão por desinteresse - 136. exclusão por razões de convivência internacional - 137. a competência do juiz brasileiro - 138. competência internacional concorrente - 139. domicílio do réu - 140. país de cumprimento da obrigação - 141. atos praticados no Brasil ou fatos aqui ocorridos - 142. competência internacional exclusiva - 143. imóveis situados no Brasil - 144. inventários e partilhas - 145. prorrogação da competência internacional - 146. extinção do processo - 147. litispendência estrangeira - 148. competência internacional e direito substancial estrangeiro.

133. autolimitação do poder por normas de direito interno

Inexistindo uma ordem jurídica supranacional capaz de centralizar decisões e impor eficazmente limitações ao poder de cada um dos Estados, é cada um destes quem estabelece os limites de sua chamada competência internacional. Não o faz por altruísmo ou necessariamente em nome das boas relações internacionais, mas movido por três ordens de razões, que são (a) a impossibilidade ou grande dificuldade para cumprir em território estrangeiro certas decisões dos juízes nacionais, (b) a irrelevância de muitos conflitos em face dos interesses que ao Estado compete preservar e (c) a conveniência política de manter certos padrões de recíproco respeito em relação a outros Estados. A conveniência do exercício da jurisdição e a viabilidade da efetivação de seus resultados são os fundamentais critérios norteadores das normas de direito interno sobre competência internacional (Gaetano Morelli).Um aspecto puramente político preside o contexto internacional da atribuição e reconhecimento da competência dos juízes dos diversos países. É que o Estado, como realidade política, compõe-se de território (seu corpo fisico), população (pessoas que se reúnem sob seu poder e

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sua tutela) e instituições políticas (conjunto de normas positivadoras do poder sobre o território e a população). Sobre esses três elementos constitutivos do Estado é que se concentra o interesse em atuar a jurisdição, como modo de expressão do poder estatal (supra, nn. 117-118).Variam as técnicas legislativas empregadas para a definição do âmbito da jurisdição nacional no plano internacional (Liebman). O Código de Processo Civil vigente indica de modo explícito e direto as hipóteses de competência exclusiva do juiz brasileiro (art. 89) e as de sua competência em concurso com possível competência de juiz de outro Estado (art. 88). O estatuto de 1939 empregava a técnica indireta: ao disciplinar a competência territorial interna deixava sem previsão alguma os casos que pretendia excluir da competência do juiz brasileiro. A opção por enunciados diretos confere mais clareza ao sistema e elimina as dificuldades interpretativas inerentes ao outro sistema. A Lei de Introdução ao Código Civil também disciplinava a competência internacional do juiz brasileiro pelo método direto (art. 12), mas foi derrogada pelo Código de Processo Civil de 1973, que trouxe completa disciplina da matéria (LICC, art. 24, § 14).Mesmo o sistema direto, como o adotado no Brasil, não chega ao ponto de ditar exclusões explícitas. É o que se dá no art. 88 do Código de Processo Civil, que, ao definir os casos de competência concorrente do juiz brasileiro, não faz a ressalva da competência exclusiva de outros países. Ele não acrescenta que, ainda ocorrendo uma das hipóteses indicadas (p.ex., réu domiciliado no Brasil), o juiz brasileiro não será internacionalmente competente quando intercorrer alguma norma de competência internacional contida em lei do país onde a sentença se destina a produzir efeito (p.ex., imóvel ali situado).

134. exclusão por inviabilidade

As legislações dos povos em geral costumam definir casos em que a jurisdição do país é exclusiva, o que significa que eventual sentença ou qualquer determinação proferida alhures não será exeqüível no território nacional. Essa é uma afirmação da soberania de cada Estado, com a reserva para si do poder de definir situações e solucionar conflitos referentes a certos bens. No caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal negará homologação a sentenças estrangeiras que hajam invadido a esfera de competência exclusiva do juiz brasileiro (CPC, arts. 89 e 483; Const., art. 102, inc. I, letra h; LICC, art. 15, letra a; RISTF, art. 217, inc. I) - o que significa que nenhuma utilidade essa sentença terá.Uma sentença estrangeira mandando reintegrar uma pessoa na posse de imóvel situado em território brasileiro não teria utilidade alguma, porque o único meio de executá-la seria invadindo o território nacional, o que não é possível senão pela guerra.O conhecimento dessa realidade leva os Estados em geral a se absterem de exercer a jurisdição com referência às causas definidas pela lei estrangeira como de competência exclusiva dos juizes de seu país. Eventual inclusão não passaria, em princípio, de uma vã demonstração de força (Morelli) porque (a) de um lado, o juiz de um Estado não tem a capacidade de impor suas decisões além das próprias fronteiras, dependendo sempre da cooperação do juiz local; b) de outro, como a cooperação é negada nesses casos, o que um Estado estrangeiro decidisse não traria consigo o predicado da imperatividade, que também é essencial ao conceito de poder estatal.Por essa razão, exclui-se a competência do juiz brasileiro para o processo de execução quando os bens a serem atingidos por ele se situam fora do território nacional; inversamente, o Brasil não cumpre cartas rogatórias extraídas de processo executivo instaurado no exterior e destinadas a exercer atos de constrição sobre bens imóveis aqui situados (penhora, busca-e-apreensão etc.) 2 Tratando-se de bens móveis, instaura-se o processo executivo no país em que se encontram, mediante prévia homologação ou reconhecimento da sentença estrangeira se foro caso (o que obviamente não se dá quando a execução se funda em título executivo extrajudicial admitido pelo sistema processual-do país onde se encontram os bens móveis - nota promissória etc.). Discute-se se são ou não exeqüíveis no Brasil as medidas cautelares concedidas no exterior e, inversamente, se é ou não competente o juiz brasileiro para a concessão de cautelares relacionadas com processo pendente no exterior.

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NOTAS:

1. Conceituado este como capacidade de decidir imperativamente e impor decisões (supra, n. 117).2. Esse preceito aplica-se às execuções singulares e também às coletivas: "toda e qualquer ação, inclusive de falência, relativa a imóvel situado no Brasil, é da competência exclusiva da autoridade brasileira, com exclusão de qualquer outra " (STF).

A exclusão da competência internacional da autoridade judiciária de um país por inviabilidade de execução constitui o reverso da exclusividade da competência internacional dos juízes de outro país. A ressalva da inviabilidade constitui elemento indispensável à interpretação da lei interna do país – entendendo-se, p.ex., que o juiz brasileiro será competente para as causas em que o réu for aqui domiciliado (art. 88, inc. I), a menos que o objeto do litígio seja um imóvel situado em outro país etc.

135. exclusão por desinteresse

Seria absurdamente insensato que um Estado pretendesse exercer seu poder em relação a todo e qualquer conflito que existisse em qualquer lugar do mundo, envolvendo como partes quem quer que fosse. Mesmo que tal fosse possível e inexistissem barreiras de outra ordem (inviabilidade), o desperdício de energias e recursos seria óbvio e nenhum beneficio traria ao próprio Estado, à sua população, à integridade de seu território ou às suas instituições. Sabido que o escopo magno do processo, perseguido mediante o exercício da jurisdição, é a solução de conflitos como modo de obter a paz social (supra, n. 48), não haveria por que um Estado pretender atuar seu poder com o objetivo de proporcionar a paz social no âmbito de outro Estado. Por isso, o direito interno pauta-se também pelo critério do interesse na solução de conflitos, estabelecendo a competência de seus juizes somente para os litígios que de algum modo possam interferir em sua própria ordem pública.Essa orientação é tradicionalmente seguida pelos legisladores, os quais incluem na competência do juiz de seu país causas envolvendo pessoas ali domiciliadas (CPC, art. 88, inc. I), relativas a bens ali situados (art. 89, incs. 1), fundadas em fatos ali acontecidos (art. 88, inc. III) etc. - abstendo-se de ir além porque isso não traria beneficio algum ao país.

136. exclusão por razões de convivência internacional

Além disso, regras de boa convivência internacional aconselham que o Estado vá além no respeito à soberania alheia, abstendo-se de exercer jurisdição sobre bens e interesses de outros Estados soberanos, de seus agentes diplomáticos e de certas entidades internacionais, como a Organização das Nações Unidas, o Mercosul ou a Comunidade Européia. Daí as imunidades à jurisdição, que são limitações internacionais impostas a esta, de modo que cada Estado renuncia à competência de seus juizes também nessa medida.Essas imunidades não significam exclusão absoluta da jurisdição brasileira em relação a tais pessoas, mas somente renúncia a um dos predicados desta, ou seja, à sua inevitabilidade (supra, n. 118). Isso significa que, embora não se possa impor aos imunes a condição de parte no processo como demandados, admitese que eles se valham da jurisdição brasileira e, sempre segundo sua vontade exclusiva, venham a propor demandas perante juizes do país - figurando então como autores em processo de conhecimento ou monitório, ou como exeqüentes no processo executivo. Admite-se também que, sendo citado e submetendo-se voluntariamente ao poder do juiz brasileiro, fique o sujeito sob a jurisdição brasileira naquele processo. Tais são as renúncias à imunidade, que podem ser praticadas pelos beneficiários desta.Os casos de imunidade à jurisdição estão regulados em tratados internacionais e nos costumes internacionais, sempre segundo o critério da mais estrita reciprocidade, como convém a compromissos dessa ordem. Numa visão global, entende-se que as imunidades são amplas,

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referindo-se não somente aos atos de soberania ou de poder exercidos pelos Estados ou seus representantes (atos jure imperii), como aos seus atos de gestão de bens e interesses (atos jure gestionis, inclusive de caráter negocial: compra-e-venda de bens, assunção de obrigações etc.). Exclui-se a imunidade contudo, legitimando-se o exercício da jurisdição nacional, (a) para causas relacionadas com imóveis situados no país ou (b) com atividades profissionais aqui exercidas pelo agente diplomático - comércio, profissões liberais etc., ou ainda (c) quando o agente diplomático for cidadão brasileiro.

137. a competência do juiz brasileiro

Acatadas essas determinantes limitativas, os arts. 88 e 89 do Código de Processo Civil estabelecem a órbita de competência do juiz brasileiro, fazendo-o com atenção aos bens e valores inerentes ao Estado brasileiro (território, população e instituições) e levando em conta o interesse deste na solução dos conflitos. Tais são os pontos de ligação (momenti di collegamento: Liebman) tomados por critério pelas normas sobre competência que de algum modo levam em consideração o fator territorial - seja no plano interno, seja no internacional. E, como são variáveis os graus de intensidade com que os pontos de ligação selecionados pelo legislador interferem na vida e nos interesses do país, a lei fixa casos em que a competência do juiz nacional é exclusiva e portanto impede a eficácia de sentenças eventualmente pronunciadas no exterior (CPC, art. 89); e outros em que, sendo menos intensa a relevância desses pontos de ligação, a competência fixada em atenção a eles não exclui outras e será, portanto, concorrente (art. 88). Mesmo entre os casos de competência internacional exclusiva, ou entre os de competência internacional concorrente, varia a intensidade da influência dos fatores determinantes, na medida de sua relevância em face dos grandes fundamentos do Estado e de sua ordem pública. O caso de maior intensidade é o dos conflitos capazes de afetar o território nacional e o de menor é o das causas que tenham por réu pessoa domiciliada no Brasil.O território nacional, como corpo flsico do Estado, é objeto das atividades jurisdicionais exclusivas do juiz brasileiro por determinação do inc. 1 do art. 89 do Código de Processo Civil ("ações relativas a imóveis situados no Brasil ", competência internacional exclusiva).A população nacional, como conjunto de pessoas que vivem sob a autoridade e tutela do Estado, é atingida pela jurisdição brasileira por força do disposto no inc. 1 do art. 88, que no entanto não exclui aos domiciliados no território nacional a possibilidade de serem demandados perante juizes de seu país de origem ou nacionalidade (é competente o juiz brasileiro quando "o réu, qualquer que seja a sua nacionalidade, estiver domiciliado no Brasil").As instituições nacionais, incluindo-se a ordem econômica da nação, constituem objeto da jurisdição brasileira por força de disposições que dão competência ao juiz brasileiro para litígios referentes a obrigações que aqui devessem ser cumpridas (art. 88, inc. 11) e para os decorrentes " de fato ocorrido ou de ato praticado no Brasil" (art. 88, inc. 111), bem como para processar o inventário e partilha de bens situados no país (art. 89, inc. 11, competência internacional exclusiva).O elenco contido nos arts. 88 e 89 do Código de Processo Civil é rigorosamente taxativo, visto que inexiste qualquer outro dispositivo estabelecendo mais casos de competência do juiz brasileiro, ou mesmo alguma razão superior que a impusesse além do que ali está - o que induz a conseqüência de que outros litígios, mesmo quando fosse viável a execução fora do Brasil, aqui não serão processados ou julgados.Para que o juiz brasileiro seja internacionalmente competente basta que ocorra uma das hipóteses indicadas naqueles cinco incisos, excluída portanto a exigência de requisitos positivos cumulativos. Uma demanda de condenação por dinheiro será da competência do juiz brasileiro ainda quando o réu não seja aqui domiciliado (art. 88, inc. 1), desde que se trate de obrigação a ser cumprida no Brasil (inc. 11) ou se funde em ato aqui praticado ou fato aqui ocorrido (inc. 111); inversamente, mesmo que o foro de cumprimento da obrigação seja outro e a demanda não se funde em fatos aqui ocorridos, o juiz brasileiro será internacionalmente competente para causas como essas, sempre que aqui esteja domiciliado o réu.

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Nos casos em que os pontos de ligação têm menor intensidade de reflexos na vida do país, exclui-se a competência internacional brasileira, ainda quando afirmada por algum dispositivo da lei interna, sempre que houver algum forte ponto de resistência na lei do país onde se pretenda depois fazer cumprir a sentença. Assim é no óbvio exemplo das demandas relativas a imóvel situado no exterior, de nada valendo o fato de o réu ser domiciliado no Brasil (CPC, art. 88, inc. 1). Essa leitura sistemática é sempre indispensável, diante das próprias razões de inviabilidade que levam o legislador de cada país a limitar a competência internacional de seus juízes e também porque as normas sobre competência internacional, sendo de direito interno, não podem impor-se aos juizes de outros Estados.A competência internacional do juiz brasileiro depende da ocorrência de algum dos requisitos positivos postos pela lei nacional (arts. 88-89) e, cumulativamente, de um requisito negativo que é a inexistência de norma, no país onde se pretende cumprir a sentença, que impeça sua eficácia (supra, mi. 134-135).

138. competência internacional concorrente

O art. 88 do Código de Processo Civil arrola os casos em que o juiz brasileiro é internacionalmente competente sem que a ordem jurídica brasileira exclua a competência dos juízes de outro Estado - com a conseqüência de que, se uma dessas causas for proposta em outro país, a sentença ali proferida poderá ser eficaz no Brasil.3 O legislador deixou nítida a intenção de estabelecer a competência internacional concorrente nos casos elencados nos incisos do art. 88, ao não incluir neste as palavras "com exclusão de qualquer outra ", empregadas no art. 89 ao instituir hipóteses de competência exclusiva. Assim agiu porque se trata de causas que não são de primeiríssima relevância para a vida do país, como são as que ele preferiu deixar sob regime da exclusividade.Se na Itália é promovida uma demanda em face de cidadão italiano domiciliado no Brasil, é competente o juiz de lá por força da cidadania do réu, embora o fosse também o daqui, pelo fato do domicílio (CPC, art. 88, inc. 1). Como o caso é de competências concorrentes, a sentença que nesse caso vier a ser proferida pelo juiz italiano não será violadora da competência do juiz brasileiro, nem vice-versa.

NOTAS:

3. Desde que presentes os demais requisitos.

139. domicílio do réu

Dos fatores determinantes da competência internacional do juiz brasileiro, o domicílio do réu é o de maior amplitude e menor intensidade. Ao estabelecer que os membros da população sejam em princípio réus no país (art. 88, inc. 1), o Código de Processo Civil ditou uma regra que guarda simetria com a do foro comum para fins de competência interna (art. 94): vale para os processos de conhecimento em geral mas não prevalece quando para a causa houver a competência exclusiva de um juiz estrangeiro. 4 Tal competência tem o duplo objetivo de dificultar, na medida do possível, que os membros da população brasileira sofram muito amiúde os incômodos de serem demandados em outros países (submetendo-se portanto a outro poder estatal) e de deixá-los mais acessíveis para aqui serem demandados. Ela abrange pessoas físicas e jurídicas. É complementada com as disposições pelas quais será havida como domiciliada no país a pessoa jurídica estrangeira que aqui tiver alguma filial, agência, sucursal etc. (art. 88, par.) e o funcionário responsável por esta estará em juízo em nome da pessoa jurídica, com poderes de representação (art. 12, inc. VIII e § 32) .5O vocábulo réu é empregado nesse dispositivo em seu significado próprio e estrito, ou seja, indica apenas o demandado em processo de conhecimento. O domicílio do executado no país não é ponto de ligação suficiente para determinar a competência do juiz brasileiro porque o

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processo de execução é invariavelmente da competência internacional do juiz do país onde se situam os bens a serem constritos.

NOTAS:

4. A competência territorial interna do foro do domicílio do demandado (art. 94) não prevalece quando houver um foro especial determinado em lei (art. 100 etc): infra, n. 139.5. Havendo mais de um réu na demanda proposta, basta que um deles tenha domicílio brasileiro para que o juiz daqui seja internacionalmente competente? v. infra, n. 145.

A Convenção de Nova Iorque, que regula a cooperação internacional em matéria de alimentos (e que é direito positivo no Brasil: dec. n. 56.826, de 2.9.65), legitima o Ministério Público a promover a homologação e execução, em um país, de decisão sobre alimentos provisionais, proferida em outro. Isso significa a reconhecer a competência do juiz do país em que tem domicílio o beneficiário dos alimentos, ainda quando o réu seja domiciliado no Brasil e aqui tenha bens.

140. país de cumprimento da obrigação

Independentemente do domicílio de qualquer das partes, também é internacionalmente competente o juiz brasileiro quando o Brasil figurar como o fórum destinaue solutionis da obrigação que o autor pretende seja reconhecida em sentença (art. 88, inc. 11). Essa competência independe de realmente existir a relação afirmada na petição inicial, bastando que a obrigação sobre cuja existência ou inexistência o juiz se pronunciará tenha algum ponto do território brasileiro como lugar de cumprimento: se a obrigação inexistir será caso de improcedência da demanda e não de incompetência do juiz brasileiro. O mérito da causa não será julgado (nem procedência nem improcedência), sendo extinto o processo por falta de jurisdição, se, tendo o autor alegado que a obrigação deveria ser cumprida no Brasil, isso não corresponder à verdade e a lei ou o contrato estabelecerem outro país como forum destinatce solutionis (a menos que por outra razão a causa pertença à competência internacional brasileira - p.ex., réu domiciliado aqui).

141. atos praticados no Brasil ou fatos aqui ocorridos

Também são da competência do juiz brasileiro, em concurso com a competência eventualmente atribuída por lei de outro país, as demandas que tenham por fundamento atos praticados no Brasil ou fatos aqui ocorridos (art. 88, inc. 11). Essa competência não fica prejudicada se o ato ou fato não tiver efetivamente ocorrido ou se não tiver a conseqüência jurídico-material pretendida pelo autor, o que influirá no julgamento do meritum causa mas não o impedirá. Se o ato ou fato tiver ocorrido fora do país, o juiz brasileiro será incompetente.Por atos praticados no Brasil entendem-se os atos jurídicos e particularmente os negócios jurídicos em geral. Fatos ocorridos no país são fatos jurídicos stricto sensu, ou seja, acontecimentos capazes de gerar efeitos de direito não programados por uma declaração de vontade (atos ilícitos, ações de responsabilidade civil).

142. competência internacional exclusiva

A competência exclusiva da autoridade judiciária brasileira (CPC, art. 89) corresponde à avaliação, feita pelo legislador, do peso maior que certas causas têm para os interesses do Estado. Conceder eficácia a sentenças estrangeiras sobre imóveis situados no país (inc. 1) seria permitir a mutilação do território nacional, cuja integridade é resguardada pela própria Constituição Federal (art. 20, § 211) e portanto não pode em hipótese alguma ficar sob o poder de autoridades de outro Estado. Sem intensidade tão profunda são os inventários e partilhas referentes a bens situados no Brasil, que o Código manda processar exclusivamente aqui -

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fazendo-o com o fito de impedir que universalidades de bens integradas no patrimônio econômico da nação possam ser afetadas por ato de juiz estrangeiro.

143. imóveis situados no Brasil

As "ações relativas a imóveis situados no Brasil " (art. 89, inc. 1) são aqui processadas qualquer que seja o fundamento do pedido feito. Quer se trate de demanda fundada em direito real (esp. as ações reivindicatórias, de usucapião etc.) ou pessoal (p.ex., ações de despejo), a competência brasileira é exclusiva sempre que o objeto do pedido for um imóvel aqui situado. Por esse aspecto a regra desse inc. I é mais enérgica do que a fornecida pelo art. 95 do Código de Processo Civil, que, disciplinando a competência territorial interna, fixa ao forum rei sitce somente as causas que cumulativamente se refiram a imóveis e tenham fundamento de direito real (v. art. 94).Essa amplitude da disposição deixa sem relevância qualquer preocupação sobre as demandas em relação às quais se discute se têm fundamento em direito pessoal ou real (possessórias). Em qualquer hipótese as ações possessárias serão da competência do juiz brasileiro sempre que tenham por objeto um imóvel situado no país.

144. inventários e partilhas

O inc. 11 do art. 89 inclui na competência internacional brasileira exclusiva o "inventário e partilha de bens, situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional". Aplica-se essa regra, quer os bens deixados pelo de cujus sejam todos imóveis, ou todos móveis ou de ambas as classes. Nem importa a nacionalidade do falecido, se brasileiro ou não e ainda que nunca tenha residido no Brasil e no exterior haja falecido (o jogo de hipóteses de foros concorrentes, contido no art. 96, prevalece somente para a determinação da competência territorial interna; infra, rui. 273 ss.). Como em muitos países a sucessão hereditária não é jurisdicionalizada - inexistindo o processo de inventário e realizando-se a partilha por ato negocial - o inventário abrangendo bens situados no Brasil e bens situados nesses países pode ser realizado aqui, sem ultraje à competência de qualquer juiz estrangeiro.Os inventários, a que o inc. 11 do art. 89 alude, poderão ser inclusive os que se fazem pela forma de arrolamento ou adjudicação ao herdeiro único (CPC, arts. 1.131, 1.032, 1.036), prevalecendo sempre a competência do juiz brasileiro quanto a todos eles e também para a homologação de partilha amigável (CPC, art. 1.031 e CC, art. 1.773). São também abrangidos pelo dispositivo as partilhas resultantes de separação judicial ou divórcio.

145. prorrogação da competência internacional

Embora nada diga a lei, em alguma medida deve ser admitida a alteração das regras de competência internacional que ela estabelece, para o fim de incluir na competência da autoridade judiciária do país causas não previstas ou para excluir outras. Com certa similitude em relação fatores de prorrogação de competência interna (CPC, arts. 102 e 111: infra, nn. 295 ss.), vale como legítimo critério o grau de relevância para a ordem pública que aquelas regras têm e que varia principalmente quando se confrontam os casos de competência internacional concorrente e os de competência internacional exclusiva. Esta é sempre absoluta, não comportando qualquer modificação pela vontade das partes ou por algum fato qualquer. As regras de competência internacional concorrente é que, por não serem ditadas por razões tão profundamente fincadas na ordem pública, comportam algum grau de flexibilização.Quanto às regras de competência interna, são de três ordens as causas de sua possível flexibilização, pelo fenômeno da prorrogação da competência: a vontade dos litigantes (eleição de foro), a relação de conexidade entre duas causas (que permite a atração de uma ao foro competente para a outra, sendo as todas objeto de um processo só e só um julgamento) e a omissão do réu, deixando de invocar a incompetência pela forma adequada (infra, nn. 299-302).

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A jurisprudência afirma a eficácia das cláusulas de eleição de foro, especialmente em causas relacionadas com matéria obrigacional (comércio internacional, instituições financeiras, transporte internacional). Tal aceitação é bastante razoável, dado o valor da autonomia da vontade e o princípio democrático da liberdade, em que se apóia. Não é de interesse vital para o país o processamento, aqui, de causas que tenham por réu pessoa domiciliada no Brasil, ou fundadas em obrigação que aqui se deveria cumprir ou ainda em ocorrências aqui verificadas. Mas há manifestações pretorianas no sentido de que a eleição de foro estrangeiro não pode ter a eficácia de subtrair a causa ao juiz nacional.É necessário reconhecer também a força da conexidade entre causas, para determinar a competência do juiz brasileiro ou de algum estrangeiro, sempre que se trate de conflitos para os quais as leis de ambos os países estabeleçam a competência concorrente de um e de outro. Não se pode, por força da conexidade, atribuir a um juiz determinada causa que ordinariamente não lhe pertenceria, mesmo ocorrendo conexidade com outra que seja da sua competência, quando o direito do outro país a tem por exclusivamente sua. Fora disso, aceitar a competência para ambas é dar efetividade à garantia constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional (Const., art. 52, inc. XXXV; supra, n. 79), que fica transgredida quando um juízo ou tribunal se nega a processar e julgar a causa conexa. Mas os tribunais vêm rechaçando a conexidade como causa de prorrogação da competência internacional do juiz brasileiro, sem cogitar da garantia constitucional do controle jurisdicional.bA situação é mais clara quando se trata de litisconsórcio passivo, sendo somente um dos dois réus domiciliado no país. Até por aplicação analógica da regra contida no § 4º do art. 94 do Código de Processo Civil, ditada para a competência territorial interna, chegar-se-á ao resultado desejável - sendo que ela está ao mesmo nível hierárquico das normas ditadas para reger a competência internacional. Particularmente grave é a situação no caso de litisconsórcio passivo necessário, em que a negativa de julgar com relação a um implicaria negativa de julgar em relação a todos. Mesmo nos casos de obrigações conexas (p.ex., decorrentes de um só contrato) mas destinadas a cumprimento em países diferentes, a conexidade entre as causas deve conduzir à aceitação de todas pelo juiz brasileiro, quando propostas cumulativamente numa demanda só (sempre com a ressalva da possível competência internacional exclusiva de outro país).

146. extinção do processo

Diferentemente do que acontece em caso de incompetência no plano interno (foro ou juízo incompetente etc), a incompetência internacional do juiz brasileiro conduz à extinção do processo. Lá, desloca-se o processo para o juiz competente, que é sempre um juiz nacional, sendo todos os juízes nacionais agentes do poder de um só e mesmo Estado soberano (os autos são remetidos ao juiz competente, quer seja relativa ou absoluta a incompetência do juiz perante o qual a causa tiver sido proposta: CPC, art. 113, § 24: infra, nn. 191 e 212).' Como falta jurisdição ao juiz internacionalmente incompetente - e não mera competência - qualquer ato que ele realize é juridicamente inexistente como ato jurisdicional (a não ser, é óbvio, a sentença que extingue o processo por esse motivo).

NOTAS:

6. "O direito brasileiro não elegeu a conexão como critério de fixação da competência internacional " (STJ).7. Por razões puramente práticas, a incompetência do juizado especial importa extinção do processo (LJE, art. 51, inc. III).

Além disso, na prática seria extremamente difícil e complicado transpor autos de um processo a juiz de outro país, onde muitas vezes o procedimento é tão diferente que nada se poderia aproveitar do que tivesse sido feito.

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147. litispendência estrangeira

Em sua redação aparentemente redundante, o art. 90 do Código de Processo Civil enuncia a regra da irrelevância, no Brasil, da pendência de processos no exterior. Como a eficácia da sentença estrangeira depende de homologação pela Justiça brasileira, só se obtêm resultados equivalentes aos de um processo brasileiro mediante a soma do processo estrangeiro e da homologação aqui feita (Morelli). Por isso, quis o legislador brasileiro não só permitir a repropositura da demanda aqui, não-obstante a litispendência estrangeira, como ainda excluir que essa litispendência produza no Brasil qualquer dos efeitos processuais que produziria a pendência de um processo perante o juiz brasileiro (infra, mi. 406 ss.). Essa regra assim bastante ampla está expressa nas duas orações de que se compõe o art. 90, para o qual a ação intentada perante tribunal estrangeiro (a) não induz litispendência e (b) não obsta a que a autoridade brasileira conheça da mesma causa e das que lhe são conexas.Litispendência é a pendência de um processo (pendência da lide). Um processo reputa-se pendente desde quanto a demanda é apresentada ao Poder Judiciário (CPC, art. 263) até quando se torna irrecorrível a sentença que lhe põe termo com ou sem julgamento do mérito (arts. 162, § 14, 267, 269).Em si mesma, a locução não induz litispendência não tem, nesse contexto, o significado de dizer que a pendência no processo no exterior não impede a repropositura de demanda igual à já proposta (mesmas partes, mesma causa de pedir, mesmo pedido: art. 301, §§ 12-34) - pela simples razão de que esse impedimento já está excluído pela segunda oração contida no art. 90. É verdade que a doutrina e a lei brasileiras têm o mau hábito de confundir litispendência com um dos efeitos da litispendência, que é o impedimento de repropositura da mesma demanda (ou demanda igual). O próprio Código de Processo Civil emprega a locução "induz litispendência ", no art. 219, para expressar esse veto à dualidade de processos por demandas iguais. Aqui, no entanto, se induzir litispendência significasse isso, o art. 90 estaria dizendo duas vezes a mesma coisa, num ridículo absurdo que não se pode imputar ao legislador. A interpretação das duas orações gramaticais contidas nesse dispositivo leva portanto ao entendimento de que a propositura de uma demanda no exterior (a) não produz no Brasil um estado de processo pendente e (b) não impede a repropositura de demanda em tríplice identidade com aquela.A pendência de um processo no Brasil (litispendência) produz certos efeitos substanciais e processuais em relação às partes e, em alguma medida, também perante terceiros (infra, nn. 406407). A litispendência estrangeira não produz os efeitos processuais consistentes em prevenir o juízo, perpetuar a competência, estabilizar a demanda ou suspender outros processos em caso de prejudicialidade (art. 90, la parte). É porém razoável o entendimento de que a citação válida, ainda quando feita alhures, produz os efeitos substanciais de constituir o devedor em mora, interromper a prescrição ou tomar litigiosa a coisa (infra, nn. 419 ss.).A segunda das proposições ali contidas corresponde a um pensamento mais ou menos usual nessa matéria. Nega-se que a pendência de processo no exterior impeça a propositura da mesma demanda aqui, até porque o juiz brasileiro de primeiro grau, ao apreciar eventual defesa consistente nessa litispendência estrangeira, teria de penetrar no exame dos requisitos para a homologação da sentença que lá vier a ser proferida - o que constituiria uma antecipação do juízo de delibação reservado ao Supremo Tribunal Federal. O Brasil, no entanto, é signatário do Código Bustamante, portador de normas sobre direito internacional privado entre os países aderentes, cujo art. 394 estabelece justamente o oposto do que diz o art. 90 do Código de Processo Civil. Conseqüentemente, sendo os tratados internacionais fontes formais do direito brasileiro, em relação aos processos pendentes em países participantes da Convenção de Havana prevalece a relevância da litispendência estrangeira e o art. 90 não se aplica (Vicente Greco Filho).No direito interno, proibir que tenha curso um processo entre as mesmas partes, pela mesma causa de pedir e com o mesmo pedido de outro já pendente significa prevenir uma situação que possivelmente ocorrerá quando um deles terminar e ocorrer a coisa julgada: Como não é lícito proferir sentença de mérito sobre uma demanda já julgada definitivamente por sentença passada em julgado (CPC, art. 468), cuida a lei de impedir que sigam paralelamente dois processos com o

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mesmo conteúdo. Tal é o significado da chamada exceção de litispendência, que é causa explícita de extinção do processo (art. 301, inc. V, §§ 14-34: infra, n. 410). Quanto ao processo instaurado fora do país, no entanto, não se sabe ainda se seu resultado poderá impor-se aqui: isso será objeto do juízo de delibação a ser feito a posteriori e com exclusividade pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal (Const., art. 102, inc. 1, letra h). Por isso, a lei libera desde logo a propositura e prosseguimento do processo no Brasil, mesmo que em coincidência de conteúdo com algum outro já pendente no estrangeiro.É claro que tal disposição só tem razão de ser no que diz respeito às causas da competência concorrente do juiz brasileiro (CPC, art. 88). No tocante àquelas de sua competência exclusiva (art. 89), jamais se poderia sequer em tese pensar em qualquer eficácia da sentença estrangeira aqui - e muito menos do processo que a prepara (Celso Agrícola Barbi).

148. competência internacional e direito substancial estrangeiro

A problemática da competência internacional não coincide nem se confunde com a da extraterritorialidade do direito substancial (supra, n. 33). Como expressão do poder estatal, a jurisdição de um país é exercida exclusivamente nos lindes territoriais deste e sempre segundo as normas nacionais de direito processual. O direito material, ao contrário, vai além-fronteiras em muitos casos, segundo normas de superdireito representadas pelo direito internacional privado (LICC, arts. 74-11). Especialmente em contratos entre particulares, que são regidos pela disponibilidade própria do direito privado (comercial, civil), permite-se até que as partes indiquem a norma de regência, optando legitimamente pela lei do país que escolherem. O Código de Processo Civil admite claramente que juízes brasileiros julguem a causa segundo o direito estrangeiro que em cada caso tenha legítima pertinência (art. 337).8 É perfeitamente admissível, portanto, que não-obstante a competência internacional pertença à autoridade judiciária de dado Estado soberano, esse juiz internacionalmente competente venha a julgar segundo normas jurídico-substanciais de outro país e até mesmo a dar-lhe efetividade mediante os atos do processo de execução forçada.Mesmo certas normas de direito público substancial podem ter aplicação extraterritorial e ser impostas mediante ato jurisdicional de juiz de outro Estado. É rigorosamente admissível que um ente tributário de determinado país vá a outro e obtenha sentença sobre seu crédito, chegando inclusive a promover a execução com base na condenação que ali obtiver.Quanto às causas da competência concorrente do juiz brasileiro (art. 88), prevalecerá a sentença que passar em julgado em primeiro lugar - o que significa que a auctoritas rei judicatce deve prevalecer perante a ordem jurídica brasileira ainda quando obtida no exterior (segundo o Supremo Tribunal, ainda quando a sentença proferida em outro país não haja ainda sido homologada no Brasil). Dessa premissa decorre também a inadmissibilidade, no Brasil, de demandas idênticas a outra já julgada no exterior por sentença passada em julgado.

NOTAS:

8. V. também o art. 14 da Lei de Introdução ao Código Civil, derrogado pelo Código de Processo Civil, cujo art. 337 disciplinou a matéria (LICC, art. 22 § 12).

Título VI - ÓRGÃOS E ORGANISMOS ENCARREGADOS DA JURISDIÇÃO

Capítulo XII- OS ÓRGÃOS DA JURISDIÇÃO E SUA INDEPENDENCIA: ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA

149. conceito e enquadramento sistemático - a tutela constitucional da organização judiciária - 150. o Judiciário entre os Poderes do Estado - 151. linhasmestras da organização judiciária - 152. conteúdo das normas de organização judiciária - 153. competência legislativa - 154. a Justiça e a Magistratura - 155. autonomia do Poder Judiciário e independência dos juizes - 156. períodos de trabalho forense

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149. conceito e enquadramento sistemático - a tutela constitucional da organização judiciária

Com a função jurisdicional exercida pelo Estado relacionamse intimamente os variados aspectos da constituição orgânica do complexo de instituições afetas a esse exercício. Por isso, o estudo e a crítica das instituições judiciárias do país são de suma relevância para a compreensão do modo como o sistema processual se comporta - até porque tudo que diz respeito à Justiça toca muito de perto a vida da sociedade (Roger Perrot).1 Como se sabe, em todos as áreas científicas o conhecimento de uma função há de estar sempre ligado ao dos órgãos que a desempenham, sob pena de ser superficial ou desviado da realidade.O número imenso de pessoas e causas atendidas pelos órgãos judiciários e a necessidade que cada um pode a qualquer tempo ter de servir-se deles são a demonstração da relevância prática do tema e da importância de dar-lhe trato verdadeiramente científico, inclusive mediante acesso a experiências desenvolvidas em outros países (comparação jurídica). Pelo aspecto político, mudam segundo as opções liberais ou autoritárias de um regime os critérios de recrutamento dos juizes, o seu estatuto, garantias, gama de poderes etc. (Perrot). Jamais poder-se-ia pensar num processo civil pautado exclusivamente, na dinâmica de seu operar diuturno, pelas normas objetivas tipicamente processuais, de modo que ele atuasse sobre a vida das pessoas sem a influência do modo-de-ser dos órgãos que lhe dão efetividade e das qualidades pessoais dos agentes estatais encarregados desse serviço.

NOTAS:

1. Justiça: complexo de instituições judiciárias do país (infra, n. 154).

Por isso, não é metodologicamente correto cindir de modo absoluto, ou mesmo separar exageradamente, o estudo do direito processual e o da organização judiciária. A consciência dessa interligação tem levado os estudiosos modernos do processo a conceder espaço aos grandes temas da organização judiciária, deixando estes de figurar como meros aspectos administrativos referentes aos órgãos, supostamente sem conexão com a função por eles exercida. A interação órgão-função é uma realidade que não pode ser desconsiderada e que sempre aconselha um exame global capaz de indicar caminhos - no caso, capaz de melhorar as condições de oferta de acesso à justiça.Todos os temas inerentes à organização judiciária são, por algum modo e em alguma medida, ligados à dinâmica do processo e ao exercício da jurisdição. Assim, (a) a composição dos juízos define as atribuições do juiz singular no processo de primeiro grau e dos membros dos colegiados em segundo; b) a estrutura judiciária do país é o pano-de-fundo de toda a distribuição da competência jurisdicional, seja entre as Justiças, entre os foros e juízos espalhados por todo o território nacional ou entre os diversos graus de jurisdição; c) a fixação de épocas para os trabalhos forenses influi ao menos na validade dos atos e fluência de prazos; d) as garantias dos juízes e da Magistratura são pressupostos de independência e imparcialidade no exercício da jurisdição; e) os critérios de recrutamento, assim como a implantação de escolas da Magistratura, dizem respeito à problemática da capacitação técnica para esse exercício etc.Não-obstante essa íntima relação, em si mesma a organização judiciária tem natureza preponderantemente administrativa. As normas que a regem integram o direito administrativo da Justiça e das instituições judiciárias. Têm por objeto a disciplina destas e das relações entre o juiz e o Estado. Aqui não se trata, como em direito processual, das relações entre o Estado juiz e os sujeitos litigantes - mas entre cada juiz e o Estado, ou entre o Estado e esse corpo orgânico que é a Magistratura. Lá os juízes aparecem como meros agentes impessoais do Estado, no exercício de atividades que este só pode exercer mediante a atuação de pessoas físicas (supra, n. 129); aqui, como sujeitos de deveres, ônus, faculdades, prerrogativas e direitos, bem como destinatários de garantias e impedimentos.

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Essa dupla perspectiva leva as Constituições a cercar os juízes de garantias, instituindo uma tutela constitucional da organização judiciária, porque se sabe que seria insuficiente a mera tutela do processo sem esses cuidados com os órgãos responsáveis por ele. Para a efetividade de um sistema atuante e dinâmico de garantias do sistema processual é indispensável que também as linhas-mestras da organização judiciária sejam adequadamente balizadas e garantidas em nível constitucional. Não só sobre o sistema processual em si mesmo se projetam os grandes princípios político-constitucionais, mas de igual modo sobre a organização judiciária, para que os órgãos sejam aptos a desempenhar a contento a função para que são instituídos. A tutela constitucional da organização judiciária associa-se à tutela constitucional do processo como meio de assegurar que a tutela jurisdicional às pessoas seja fornecida de modo adequado, segundo os ditames inerentes ao processo justo e équo.

150. o Judiciário entre os Poderes do Estado

As mais amplas disposições constitucionais atinentes à organização judiciária, pelo aspecto político, são as que colocam o Judiciário como um Poder entre os Poderes do Estado, autônomo e em harmoniosa convivência com o Legislativo e o Executivo. Logo no art. 24 a Constituição Federal diz que "são Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário ". Depois, ao cuidar da organização dos Poderes (Tít. 111), ela inclui um capítulo do Poder Judiciário, composto de trinta-e-cinco artigos, em que, entre outras disposições, assegura a autonomia desse Poder e sua independência perante os outros (arts. 92-126).A separação entre os chamados Poderes do Estado é muito mais uma fórmula de equilíbrio entre os órgãos que exercem o poder, do que equilíbrio entre funções. A busca da moderação do poder é um postulado democrático ligado à idéia de que le pouvoir arrête le pouvoir, no sentido de que a distribuição do exercício do poder estatal, mediante competências objetivamente definidas e possibilidade de controle interórgãos, é o melhor modo de evitar excessos e assegurar a efetividade das garantias democráticas de liberdade e igualdade. A separação tríplice entre os Poderes, tradicional no constitucionalismo brasileiro e incluindo a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário (Const., art. 99), é um modo de oferecer à população uma proteção forte contra possíveis excessos cometidos pelo Poder Executivo ou pelo Legislativo. Como modo de controlar e delimitar o exercício das funções inerentes ao poder estatal, a separação de Poderes está intimamente associada ao substantive due process of law (supra, n. 94).As disposições portadoras de garantias ao Poder Judiciário como um todo e aos juízes individualmente inserem-se no contexto, da tutela constitucional da organização judiciária e só têm significado sistemático e legitimidade política na medida em que se traduzam em garantias ao consumidor do serviço jurisdicional. Não se concedem franquias como privilégios corporativos a uma casta de favoritos, mas como meio de assegurar a independência dos juizes perante os governantes do Estado. Como se sabe, historicamente todos os movimentos liberais pela supremacia da Constituição e pela separação de Poderes foram motivados pela vontade de subordinar o Executivo, antes incontrolado, às regras e controles inerentes ao Estado-de-direito. Por isso é que, (a) se o Judiciário fosse dependente do Executivo para a organização de seus serviços e administração de seu pessoal, sem a capacidade de autogoverno; b) se a investidura e permanência de seus integrantes estivesse ligada à confiança ou à vontade dos membros de outro Poder; ou (e) se houvesse um sistema de consultas e autorizações como requisito para o exercício da jurisdição - o Judiciário não seria um Poder e o exercício do poder estatal pelo Executivo ou Legislativo ficaria fora de controle.A tríplice separação dos chamados Poderes do Estado, presente na Constituição brasileira de modo muito similar ao modelo norte-americano, não é traço invariável na Europa continental. A Constituição francesa, p.ex., inclui somente dois Poderes, o Executivo e o Legislativo (representados pelo Gouvernement e pelo Parlement), sendo os órgãos jurisdicionais tratados como mera autoridade judiciária. Isso não é sinal de um grau menor de independência dos juízes franceses, que são amparados por garantias suficientes ainda que estruturalmente ligados ao

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Poder Executivo. Simplesmente, são fórmulas diferentes de assegurar o mesmo resultado, a saber, a independência do juiz e sua conseqüente imparcialidade mesmo em face dos poderosos do Estado.Também diferentemente do que se dá em países europeus, os juízes brasileiros conglomeram-se numa entidade só, a Magistratura, todos integrando o Poder Judiciário e sem o dualismo inerente ao contencioso administrativo.

151. linhas-mestras da organização judiciária

Definida a localização estrutural dos juizes no organograma estatal (um Poder entre os Poderes), a Constituição Federal chama também a si o traçado das linhas-mestras da organização judiciária brasileira, seja ditando diretamente uma série de disposições destinadas a prevalecer em relação a todo o Poder Judiciário nacional, seja determinando a elaboração de uma lei complementar a ser observada pela União e pelos Estados em suas legislações. Essa lei complementar, que se pautará por certos parâmetros enunciados no art. 93 do Constituição, ainda não foi editada. Continua em vigor, por isso e na medida em que recepcionada pela ordem constitucional vigente, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que é do ano de 1979 e, portanto, anterior à Constituição Federal vigente (lei compl. n. 35, de 14.3.79).São de diversas ordens as disposições constitucionais atinentes à organização judiciária (tutela constitucional da organização judiciária), estabelecendo elas:I - o elenco fechado dos órgãos judiciários do país, fora dos quais não se admite o exercício da jurisdição (arts. 92, 98, 125, § 34, e 126). Em seu conjunto eles constituem a Justiça brasileira, ou o Poder Judiciário do país;II - garantias institucionais ao Poder Judiciário e individuais aos juizes, ao lado de impedimentos impostos a estes;III - a estrutura judiciária brasileira, constituída de órgãos distribuídos entre diversas Justiças e os órgãos superpostos a estas (órgãos de superposição: Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça);IV - a composição e competência dos órgãos de superposição (ar(s. 101-102 e 104-105);V - a estrutura e competência de cada uma das Justiças da União, nos diversos graus jurisdicionais;VI - a observância dos princípios constitucionais pelos Estados na organização das respectivas Justiças, cabendo às Constituições estaduais a disciplina da competência de seus tribunais (art. 125, capot e § 14);VII - a determinação de que as leis locais de organização judiciária sejam necessariamente da iniciativa do Tribunal de Justiça (ib.).De envolta com a matéria puramente organizacional do Poder Judiciário, entre essas normas acham-se disposições que, ou são preponderantemente de direito processual e não de organização judiciária, ou ao menos situam-se numa zona cinzenta e participam de igual modo de ambas as naturezas. As normas sobre competência estão nessa situação, porque é natural que o mesmo poder legiferante (no caso, o Estado federado), ao instituir um órgão judiciário (os juízos e os tribunais), delimite desde logo o campo de atuação de cada um, ou seja, a sua competência. De outro lado, ao definir a competência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça a Constituição (a) institui o recurso extraordinário, o recurso especial e o recurso ordinário constitucional, que só por essa via indireta estão delineados na ordem constitucional (art. 102, incs. II-III; art. 105, incs. II-I1I); b) afirma o próprio princípio do duplo grau de jurisdição, ao definir ou prever a competência recursal dos tribunais em geral; c) idem, quanto à ação rescisória de seus próprios julgados, atribuídas à competência de cada um dos órgãos de superposição e dos tribunais superiores; d) idem, em relação à ação direta de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade (art. 102, inc. l, letra a).Em resumo: a Constituição Federal institui órgãos e organismos judiciários e, ao definir-lhes a competência, indiretamente garante certos remédios processuais - como alguns recursos, a ação rescisória, a ação direta de inconstitucionalidade e a de constitucionalidade.

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A par dessas, há uma série de disposições no capítulo do Poder Judiciário que são puramente processuais. Elas são: a) a que exige a motivação de todas as decisões jurisdicionais (art. 93, inc. IX); b) a que exige a maioria absoluta dos membros do tribunal ou de seu órgão especial para a declaração de inconstitucionalidade (art. 97); c) a que dita regras para a execução contra a Fazenda Pública (art. 100); d) a que confere legitimidade ad causam a diversos sujeitos ou entidades para a ação direta de inconstitucionalidade (art. 103); e) a que autoriza os Estados a instituir a representação por inconstitucionalidade em face das respectivas Constituições (art. 125, § 24).

152. conteúdo das normas de organização judiciária

Estabelecido que o conceito puro da organização judiciária a coloca no plano da estrutura de órgãos e organismos e das relações entre o Estado e seus agentes, são normas de organização judiciária as que regem (a) a Justiça e sua autonomia, (b) a estrutura judiciária, (c) a composição dos juízos em todos os graus de jurisdição, (d) o regime da Magistratura e (e) os períodos de trabalho forense.A disciplina da Magistratura e seu regime é muito ampla e variada, abrangendo aspectos importantes da carreira e das garantias. A da estrutura judiciária resolve-se no traçado de um desenho no qual aparecem os órgãos de superposição e as Justiças, cada qual em seus diversos níveis jurisdicionais - bem como na distribuição geográfica de órgãos pelo território nacional. A dos períodos de trabalho já não se situa no plano do exame anatômico do Poder Judiciário, transbordando para o de seu funcionamento, mas mesmo assim diz respeito mais de perto aos órgãos que à função (daí sua inclusão na organização judiciária e não no direito processual).As normas sobre todos os temas de organização judiciária ou estão na própria Constituição Federal ou devem ser fiéis às linhas gerais integrantes da tutela constitucional da organização judiciária, sob pena de ilegitimidade. Todas têm sua razão de ser (a) no plano técnico da funcionalidade e eficiência do Poder Judiciário ou (b) no plano político do federalismo brasileiro, da separação dos Poderes do Estado e da convivência internacional.

153. competência legislativa

As normas de organização judiciária estão presentes, em primeiro lugar, na própria Constituição Federal, que, como visto, traça as linhas-mestras de todo o sistema e já cuida de disciplinar diretamente certos temas. Além disso, sendo a responsável maior pela distribuição de competências para o exercício do poder estatal como um todo, a Constituição impõe também normas referentes à competência para legislar em tema de organização judiciária. Em linhas bem gerais, tal competência está assim distribuída:Í - o Estatuto da Magistratura fixará diretrizes a serem observadas na organização judiciária da União e dos Estados, observando ele próprio os parâmetros impostos pela Constituição Federal (Const., art. 93, caput);11- a lei federal disporá sobre as diversas Justiças da União (art. 107, par.; art. 113; art. 121; art. 124, par.), inclusive a Justiça local do Distrito Federal e Territóriosz (art. 22, inc. XV11);III - as leis sobre cargos, vencimentos etc., ou alterando a organização ou divisão judiciária, serão da iniciativa do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais Superiores ou dos Tribunais de Justiça (art. 96, inc. 11);

NOTAS:

2. Embora atualmente não haja no Brasil um Território sequer.

IV - a competência originária e recursal dos tribunais dos Estados é regida pelas Constituições estaduais (art. 125, § 12, primeira parte);

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V - no mais, a organização das Justiças estaduais é da competência das leis ordinárias do Estado, sempre por iniciativa do Tribunal de Justiça (art. 125, § 1-, 2a parte);VI - os tribunais, em seus regimentos internos, criarão normas sobre seus próprios serviços jurisdicionais e administrativos (autogoverno da Magistratura: art. 96, inc. I, letra a);VII - sobre a criação e funcionamento da justiça de paz e juizados especiais legislarão a União e os Estados (art. 98, incs. III; v. ainda art. 24, inc. X).

154. a Justiça e a –Magistratura

O conjunto das instituições judiciárias do país, ou seja, dos órgãos que exercem a jurisdição, compõe o que tradicionalmente se chama Justiça. A Justiça brasileira é composta dos órgãos de superposição (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça) e dos diversos organismos chamados Justiças, cada uma delas com sua estrutura própria (infra, n. 161). Ela é una e inteiramente contida no Poder Judiciário, visto que no Brasil coexiste o contencioso administrativo.A diversidade de usos do vocábulo Justiça poderia gerar alguma dúvida, mas tenha-se presente que a Justiça, como o conjunto das instituições judiciárias nacionais, não se confunde com as Justiças, ou seja, com cada um dos organismos separados para o exercício da jurisdição nos casos que a Constituição determina (Justiça Federal, Eleitoral etc. ). E o vocábulo Justiça, grafado com inicial maiúscula, não se confunde com justiça, que é o predicado daquilo que é justo. O acesso à justiça, que é um dos temas centrais do processualismo moderno, não se resolve em mero ingresso na Justiça (supra, n. 43).O conjunto das pessoas investidas nos órgãos judiciários, ou seja, o conjunto dos juízes do país, é a Magistratura. Assim conceituada, esta se confunde com a categoria profissional dos juízes. Enquanto Justiça é um conceito ligado ao serviço público consistente no exercício da função jurisdicional, Magistratura exprime o conglomerado humano dos sujeitos que ocupam os cargos e atuam como agentes do Estado.A distinção entre esses dois conceitos muito próximos facilita o melhor entendimento e distinção entre (a) as garantias que se oferecem à Justiça como ente institucional coletivo integrante de um Poder do Estado e que deve ser independente em relação aos demais e (b) as regras que traçam os contornos da Magistratura como ente corporativo dos juízes (recrutamento, carreira) e oferecem garantias a estes, para que possam ser independentes e, com isso, imparciais. A Justiça, como Poder do Estado, tem seu autogoverno, gere seus próprios serviços e pessoal e é dotada do poder de censura dos atos dos demais Poderes (infra, n. 155). A Magistratura, como corporação integrada pelos juízes, sujeita-se a um estatuto diferenciado por uma carreira delineada já em sede constitucional e pelas garantias e impedimentos endereçados aos seus membros; embora inspiradas por nítidas razões políticas, essas disposições têm caráter antes de tudo administrativo, no sentido de que se resolvem num conjunto de medidas que definem deveres e prerrogativas do agente público perante o Estado que o emprega.É impossível e inconveniente separar de modo radical esses dois aspectos, o da independência do Poder Judiciário e o da independência dos juízes - mas tem muita utilidade a percepção daquilo que é a autonomia institucional de um Poder e daquilo que é a independência pessoal dos sujeitos que o integram. Sabese que, onde o Judiciário é menos forte, seus integrantes são mais expostos às interferências dos demais Poderes: essa submissão é sinal de um Judiciário fraco. A separação que se costuma fazer, destinada sobretudo a manter fidelidade aos conceitos, não desconsidera a interação entre a independência do Poder Judiciário e a dos juízes.

155. autonomia do Poder Judiciário é independência dos juízes

No campo das instituições políticas, o Poder Judiciário convive com os demais Poderes do Estado, notadamente com o Executivo, mediante a fórmula que hic et nunc emerge da Constituição Federal. Inexiste uma receita universal ou perene para a efetivação da regra de independência e harmonia entre os chamados Poderes do Estado, sabendo-se que até mesmo a condição de Poder não é concedida à autoridade judiciária em todos os ordenamentos

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constitucionais conhecidos (a França é um exemplo do contrário: supra, n. 150). A ordem constitucional brasileira outorga ao Poder Judiciário o poder de autogoverno, que se resolve numa série de competências privativas a serem exercidas sem a interferência dos demais Poderes ou com alguma interferência já preestabelecida e dimensionada na própria Constituição ou na legislação pertinente (Lei Orgânica da Magistratura Nacional, Estatuto da Magistratura). A síntese dessas prerrogativas asseguradas ao Poder Judiciário como um todo reside na fórmula autonomia administrativa e financeira, contida no art. 99 da Constituição Federal. Essa autonomia permite aos tribunais gerir seus próprios serviços, seus recursos, seu pessoal, sua disciplina interna, sem necessidade de anuência ou aprovação por qualquer dos demais Poderes do Estado - e nisso reside a própria configuração da Justiça brasileira como Poder.Inexiste na fórmula brasileira de independência e separação de Poderes algum órgão externo ao qual o Judiciário ou seus tribunais devam alguma obediência administrativa. Estão, porém, sujeitos à atividade fiscalizadora dos Tribunais de Contas (Const., art. 71, inc. II, c/c art. 75), que se faz a posteriori e, portanto, não condiciona a realização do ato nem sua eficácia.A par da autonomia do Poder Judiciário como um todo em face dos demais Poderes, a Constituição Federal dita ainda o poder de autogoverno dos tribunais isoladamente (esp. art. 96, inc. 1). Cada um dos tribunais elabora seu próprio regimento, sem a participação de outros órgãos ou necessidade de anuência ou homologação, mesmo no âmbito do próprio Poder Judiciário; organiza seus próprios serviços, administra seu próprio pessoal, manipula verbas etc. Ao ditar essas competências, em primeiro lugar a Constituição estabeleceu uma fórmula de convivência entre os diversos tribunais do país, de modo que um não interferirá administrativamente nas decisões dos demais além da medida autorizada por ela própria, por mais graduado que seja aquele ou menos que o seja o outro (o Tribunal de Justiça não tem voz nos assuntos administrativos de um Tribunal de Alçada); ademais, complementou com isso a regra de autonomia da Justiça em si mesma, ao oferecer a cada tribunal um escudo interno e outro externo, que o preserva de ilegítimas interferências de qualquer órgão estatal, integrante de qualquer dos três Poderes.Em complementação à fórmula autonomia administrativa e financeira (art. 99) e ao poder de elaborar o regimento interno (art. 96, inc. I), a Constituição dá a cada tribunal a competência para (a) eleger seus órgãos diretivos, (b) organizar suas secretarias e serviços auxiliares, (c) prover os cargos de juiz de carreira no âmbito de sua atuação, (d) propor ao Legislativo a criação de novos cargos em primeiro grau de jurisdição, (e) prover cargos administrativos mediante concursos segundo a lei e a Constituição, (f) decidir sobre a vida funcional de juízes e servidores (férias, licenças): art. 96, inc. I, letras a a f.Na fórmula constitucional vigente, não é absoluta a autonomia política ou administrativa da Justiça em relação aos outros Poderes do Estado nem a independência de cada tribunal. Em todos os países do mundo essa independência é sempre sujeita a determinadas regras de equilíbrio, expressas na locução checks and balances (freios e contrapesos), pelas quais alguma participação um deles terá nos negócios dos outros. Nesse quadro, a nomeação de ministro do Supremo Tribunal Federal é da competência exclusiva do Presidente da República, exigida também a aprovação pelo Senado Federal (art. 101, par.); os cargos dos tribunais, reservados a membros do Ministério Público e advogados (quinto constitucional), são providos pelo Chefe do Executivo a partir da lista tríplice que o tribunal elaborará (art. 94, par.); as leis de organização judiciária dependem da participação dos três Poderes do Estado, com iniciativa dos tribunais (arts. 93, 99, § 24, 125 etc.), aprovação pelo Legislativo e sanção pelo Executivo; etc. No âmbito do Judiciário mesmo, alguns tribunais (Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Tribunais de Justiça etc.) têm competência para a iniciativa de leis referentes aos tribunais inferiores que lhes estejam submetidos (criação ou extinção de tribunais, alteração do número de seus membros, fixação de vencimentos: art. 96, inc. 11).Embora não seja absoluta a autonomia político-administrativa do Poder Judiciário nem a dos seus tribunais, os temperamentos assim postos pela Constituição constituem o desenho e medida das interferências a que estão legitimamente sujeitos, sendo inadmissíveis quaisquer outras fora desses limites. Especialmente, não se admite interferência alguma no tocante ao exercício da jurisdição: a Constituição brasileira não tem, como a italiana, um dispositivo segundo

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o qual os juízes estão sujeitos somente à lei (art. 101, 2a parte) mas essa regra é inerente ao princípio de legalidade vigente no Estado-de-direito e à própria separação entre os Poderes do Estado. A independência jurídica dos juízes imuniza-os de influências inclusive no âmbito do próprio Judiciário: eventuais erros ou imputação de erros cometidos nas decisões judiciárias são objeto de conhecimento pelos órgãos superiores através dos recursos, ação rescisória, mandado de segurança etc. - carecendo de legitimidade qualquer determinação ou insinuação superior sobre o modo como o juiz deverá julgar.3Discute-se atualmente, de lege ferenda, a legitimidade de um possível efeito vinculante das súmulas do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, em certas situações. Obviamente, só se admitirá essa eficácia expansiva das decisões judiciárias se e quando apoiada por medidas adequadas de direito positivo, inclusive em sede constitucional. Com tais cautelas, sujeitar os juízes aos efeitos de decisões superiores não lhes tolherá a liberdade, do mesmo modo como esta não se considera prejudicada pela sujeição à lei.

156. períodos de trabalho forense

O tema dos dias do ano e horas do dia em que os órgãos judiciários permanecem em operação tem acima de tudo o aspecto jurídico-administrativo de um regime de trabalho dos agentes do Poder Judiciário. Vêm num segundo momento as relevantes repercussões que essa disciplina projeta sobre a admissibilidade da prática de atos processuais e sobre a validade destes (o tempo como aspecto formal dos atos do processo: infra, n. 679). Caracterizando-se pois como tema de organização judiciária, as normas responsáveis pela disciplina temporal das atividades judiciárias serão da competência da União, para as Justiças a seu cargo, e dos Estados para as Justiças estaduais (Const., art. 125, § 1-, 2.4 parte). Integram essa disciplina (a) a determinação dos períodos do ano em que os órgãos judiciários oficiam normalmente, daqueles em que oficiam em regime de férias forenses e daqueles em que só se realizam serviços urgentíssimos de plantão judiciário; b) a definição dos dias isolados em que não há expediente forense; c) as normas sobre horário dos órgãos judiciários. Os períodos em que os serviços não se realizam ou ficam desacelerados constituem as férias e os recessos. Os dias isolados de paralisação judiciária são os feriados. Quanto à fixação de horários há uma interferência do Código de Processo Civil, que limita a realização dos atos processuais ao período compreendido entre as seis e as vinte horas de cada dia útil (art. 172); mas os serviços de cartório e de protocolo para recebimento de petições podem ser regidos por outro horário (CPC, art. 172, § 34).

NOTAS:

3. Constitui vergonhosa exceção a realidade de um determinado Estado brasileiro, onde o chefe político incontrastado é ostensivamente reverenciado por juízes e desembargadores... e não ousem decidir contra o Estado, contra o chefe, contra os parentes do chefe ou contra as empresas do chefe.

De cunho puramente administrativo e sem qualquer relação com os atos processuais e sua validade são as normas referentes às férias dos juízes, as quais regem os períodos de descanso a que eles têm direito como funcionários estatais. Diferentemente, as férias forenses têm uma importância muito grande na vida do processo, porque durante elas a realização dos serviços processuais fica suspensa ou desacelerada, não se praticam atos que não sejam urgentes e poderão ser nulos os que se praticarem (infra, nn. 679-680).Nas férias individuais do juiz, quando não coincidirem com o período de férias forenses, os ofícios judiciários funcionam ordinariamente e outro juiz deve estar investido temporariamente no cargo. Os atos processuais realizam-se sem qualquer alteração por esse motivo.

Capítulo XIII - OS ORGAOS DA JURISDIÇÃO: ESTRUTURA JUDICIÁRIA BRASILEIRA

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157. número fechado de órgãos jurisdicionais - 158. dimensões da estrutura judiciária brasileira - 159. estrutura judiciária: o modelo brasileiro - 160. órgãos de convergência e órgãos de superposição - 161. as Justiças e sua estrutura - 162. juízos singulares na jurisdição civil inferior- 163. a composição dos tribunais - 164. a divisão judiciária brasileira: linhas gerais - 165. conceito de foro - 166. os foros em segundo grau de jurisdição - 167. os foros em primeiro grau de jurisdição - 168. juízos - 169. juízos da mesma espécie ou de espécies diferentes - 170. foros regionais e varas distritais

157. número fechado de órgãos jurisdicionais

A Justiça brasileira é composta do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e dos inúmeros órgãos judiciários de mais de um grau de jurisdição distribuídos entre as diversas Justiças indicadas na Constituição Federal, a saber: Justiça Militar da União, Justiça Eleitoral, Justiça do Trabalho, Justiça Federal, Justiças dos Estados e Justiça do Distrito Federal e Territórios (Const., arts. 92, 98, 125, § 3-, e 126). Um dos pilares da tutela constitucional da organização judiciária consiste na imposição desse número fechado de órgãos e organismos, fora dos quais é absolutamente ilegítimo o exercício da jurisdição. É inerente ao princípio do juiz natural a garantia de que as pessoas e suas pretensões só sejam julgadas por juizes investidos segundo a ordem vigente no país (supra, 1111. 80-81).Podem os Estados instituir também suas Justiças Militares, competentes para julgar policiais e bombeiros militares em crimes militares (Const., art. 125, §§ 3Q e 4Q), mas elas só foram criadas em poucos Estados. As Justiças Militares dos Estados exercem exclusivamente jurisdição penal, não a civil.As Justiças da chamada jurisdição especial, todas elas da União (Militar, do Trabalho e Eleitoral),' estruturam-se em graus de jurisdição suficientes para apreciar todas as questões infraconstitucionais relacionadas com suas respectivas áreas de atuação (direito penal militar, direito do trabalho, direito eleitoral).' Da última decisão de cada uma delas somente poderá caber recurso ao Supremo Tribunal Federal (violação à Constituição Federal etc.). No topo de cada Justiça especial situa-se um Tribunal Superior, a saber: Superior Tribunal Militar, Tribunal Superior do Trabalho e Tribunal Superior Eleitoral, todos com sede no Distrito Federal e competência sobre todo o território do país.As Justiças que exercem a chamada jurisdição comum (Justiça Federal e Justiças estaduais comuns) recebem uma definição constitucional diferente. Cada Estado tem seu Tribunal de Justiça e alguns deles, também Tribunais de Alçada (Paraná, São Paulo e Minas Gerais) (Const., art. 93, inc. 111; LOMN, art. 108, inc. 111).3 Na Justiça Federal existem tantos Tribunais Regionais Federais quantas as regiões em que o país está dividido e que são atualmente em número de cinco (Const., art. 110)4 (infra, n. 161).Sobre essas Justiças paira o Superior Tribunal de Justiça, que é também um dos Tribunais Superiores da União mas não faz parte de nenhuma delas. Competem-lhe os recursos eventualmente cabíveis contra a última decisão de cada uma dessas Justiças em matéria infraconstitucional (decisões dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais de Justiça ou dos Tribunais de Alçada) (recurso especial e recurso ordinário: art. 105, incs. II-III).

NOTAS:

1. Lembrado contudo o que está logo acima: em uns poucos Estados há a Justiça Militar Estadual, que também tem caráter de Justiça Especial.2. Todas elas decidem também, sobre direito processual - respectivamente, processo penal militar, processo do trabalho e processo eleitoral.3. Em 1997 e 1998, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro extingüiram os Tribunais de Alçada que tinham.4. Com sede no Distrito Federal, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Recife.

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Questões constitucionais são sempre endereçadas ao Supremo Tribunal Federal (recurso extraordinário), quer em relação a decisões do Superior Tribunal de Justiça, de qualquer dos outros Tribunais Superiores, dos tribunais da Justiça comum ou mesmo dos colegiados recursais dos juizados especiais cíveis (Const., art. 102, inc. 111).Em resumo: a) o Supremo Tribunal Federal faz o controle de constitucionalidade em relação aos julgados de última ou única instância de todas as Justiças ou do Superior Tribunal de Justiça (Const., art. 102, me. 111)5; b) o Superior Tribunal de Justiça faz o controle da observância da lei federal em relação aos julgados - sempre em última ou única instância - dos tribunais locais (Tribunais de Justiça ou de Alçada) e da Justiça Federal (Tribunais Regionais Federais); c) nas Justiças especiais o controle de legalidade é feito pelos respectivos Tribunais Superiores.

158. dimensões da estrutura judiciária brasileira

Os órgãos e organismos judiciários brasileiros estendem-se e distribuem-se no plano vertical e no horizontal, diferenciando-se entre si pela constituição interna inerente a cada um, pelo grau de jurisdição ou pelo agrupamento de causas que lhes são afetas - mas todos unificados pela função a exercer, que é sempre a jurisdição.Embora haja órgãos e organismos federais e estaduais predispostos ao exercício da jurisdição, isso não significa que exista uma suposta jurisdição estadual. Constitui antigo e judicioso ensinamento na doutrina brasileira o de que a jurisdição não é estadual nem federal. Ela é simplesmente nacional e, como expressão do poder estatal soberano da República brasileira, seu exercício é distribuído pela Constituição Federal segundo os critérios reputados convenientes. As competências jurisdicionais atribuídas aos Estados integram-se na fórmula federativa brasileira.No plano vertical, o Supremo Tribunal Federal sobrepõe-se a todas as Justiças e ao Superior Tribunal de Justiça. Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça sobrepõe-se à Justiça Federal e às Justiças dos Estados e do Distrito Federal e Territórios. O Supremo, como ápice do Poder Judiciário, está no mesmo nível político da Presidência da República e do Congresso Nacional.

NOTAS:

5. Decisões de última instância em um tribunal: recursos. Decisões em única instância: causas de sua competência originária (infra, nn. 232 e 236).

No plano horizontal, alinham-se as diversas Justiças, cada uma com sua quantidade de jurisdição a exercer (causas afetas a cada uma delas) e sem que nenhuma interfira nas outras.Outra vez no plano vertical, em cada Justiça há órgãos de pelo menos dois graus de jurisdição (supra, n. 92), sendo que os órgãos superiores de uma delas têm poder de revisão exclusivamente quanto aos atos dos órgãos inferiores dela própria.Sempre no âmbito de cada Justiça, há a distribuição horizontal de seus órgãos por mais de um critério. Pelo critério territorial dá-se a divisão de toda a área do país em foros. Para cada Justiça a divisão territorial do país é feita de um modo, seja para fins de jurisdição inferior, seja superior (comarcas nas Justiças estaduais e seções judiciárias, na Federal). Ainda horizontalmente, separam-se juízos no mesmo foro - como as varas especializadas na mesma seção judiciária ou comarca, ou os Tribunais de Justiça e os de Alçada no mesmo Estado (juízos de segundo grau).Existe, portanto, uma verdadeira pirâmide de órgãos, tendo no ápice o Supremo Tribunal Federal, no nível imediatamente inferior os Tribunais Superiores, depois os órgãos de segundo grau de todas as Justiças (Tribunais Regionais do Trabalho, Tribunais Regionais Eleitorais, Tribunais Regionais Federais, Tribunais de Justiça, Tribunais de Alçada) e, na base, os órgãos de primeiro grau.

159. estrutura judiciária: o modelo brasileiro

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Esse jogo de distribuição de órgãos e organismos judiciários em posições vertical e horizontalmente diferenciadas é o estágio atual de uma evolução brasileira principiada nos primórdios da vida política do país e apóia-se em fundamentos (1) de ordem político-institucional e (11) de ordem operacional e técnica.Pelo aspecto político, essa estrutura judiciária é ao mesmo tempo o espelho (a) da fórmula brasileira de separação e recíproca autonomia entre os chamados Poderes do Estado, (b) do regime federativo da República brasileira e (c) do respeito a normas de convivência internacional.Faz parte da fórmula brasileira de separação, harmonia e recíproco respeito entre os Poderes do Estado a competência do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar originariamente os pedidos de mandado de segurança contra ato do Presidente da República e dos Presidentes das Casas do Congresso Nacional (Const. art. 102, inc. II, letra d). A Constituição Federal quer que o os atos dos órgãos de cúpula do Poder Executivo ou do Legislativo sejam submetidos a esse enérgico controle jurisdicional, que é o mandado de segurança, unicamente pelo órgão de cúpula do Poder Judiciário - e não por qualquer outro, de nível politicamente menos elevado. 6Passando á competência originária do Supremo Tribunal Federal em matéria penal, vê-se que só a ele compete processar e julgar, nos crimes comuns, o Presidente e o Vice-Presidente da República, os senadores e deputados federais etc. (art. 102, inc. 1, letra b). Julga também, com competência originária exclusiva, os habeas corpus em que uma dessas pessoas figure como paciente (letra d). Também esses são corolários do postulado da independência e harmonia entre os Poderes do Estado.Como reflexo do regime federativo, de cujos valores é extremamente ciosa a Constituição Federal (arts. 12, 34, 4-, 5-), exclui-se que o Estado Federal, ou seja, a República Federativa do Brasil, submeta-se a atos jurisdicionais das unidades federadas. Como centro de irradiação do poder estatal, a União reserva para si uma série de competências, seja no plano legislativo, administrativo ou jurisdicional, pelas quais se sobrepõe às unidades federadas e procura garantir a unidade federativa nacional. Nesse contexto é que se situa a disposição pela qual a Justiça Federal - e não as Justiças dos Estados - é que tem competência para processar e julgar causas em que sejam partes a União ou suas emanações mais próximas (autarquias federais, empresas públicas federais: Const., art. 109, inc. I). Também tem fundamento na estrutura federativa brasileira a competência originária do Supremo Tribunal Federal para os litígios que envolvam a União e algum Estado federado ou o Distrito Federal, ou estes entre si (art. 102, inc. I, letra f

NOTAS:

6. Pelas vias ordinárias, no entanto (procedimentos comuns regidos pelo Código de Processo Civil), os atos dessas autoridades elevadíssimas podem ser objeto de censura pelos órgãos inferiores da jurisdição, só chegando ao Supremo Tribunal Federal se houver matéria constitucional a ser examinada.

Razões de convivência internacional colocam também o Supremo Tribunal Federal - órgão de cúpula que é - como competente para homologar sentenças estrangeiras? e para processar e julgar originariamente as causas que envolvam, de um lado, um Estado estrangeiro ou organismo internacional e, de outro, a própria União, algum Estado federado ou o Distrito Federal (art. 102, inc., I, letras e e h).Em matéria criminal é exclusiva do Supremo Tribunal Federal a competência originária para processar e julgar os chefes de missões diplomáticas de caráter permanente (art. 102, inc. 1, letra c).Pelo aspecto técnico-operacional, a instituição de organismos e órgãos especializados traz em si a intenção de permitir que, graças à especialização em certas matérias, os juizes consigam maior agilidade, conhecimentos mais profundos e sensibilidade mais aguçada para as causas que lhes competem. Isso sucede não só na especialização de Justiças mediante as normas constitucionais sobre cada uma delas e sua competência de jurisdição (matéria trabalhista, eleitoral etc.), como também na instituição de varas especializadas (criminais, cíveis, da família, registros públicos etc.), na repartição de competências entre Tribunais de Justiça e de Alçada e

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até mesmo na distribuição interna de competência entre órgãos fracionários de um mesmo tribunal - como acontece com as três seções em que se divide o Superior Tribunal de Justiça (direito público, direito privado e direito penal).

NOTAS:

7. Essa homologação é feita por ato monocrático do Presidente do Supremo Tribunal Federal (Const., art. 102, inc. I, letra h; RISTF, art. 222).

Essa complexa distribuição de competências é que dá razão de ser à estrutura judiciária construída assim como está. A existência de Justiças e de órgãos superpostos a elas, a hierarquização de órgãos no seio de cada Justiça, a justaposição entre as diversas Justiças ou entre varas do mesmo foro etc. - tudo isso somado exprime o modelo brasileiro de estrutura judiciária, sobre o qual se constrói toda a disciplina da competência. Existe uma intensa interação entre a disciplina da competência e a estrutura judiciária do país (supra, nn. 191-192).

160. órgãos de convergência e órgãos de superposição

O Supremo Tribunal Federal e os Tribunais Superiores (inclusive o Superior Tribunal de Justiça) exercem jurisdição sobre todo o território nacional (Const., art. 92, par.), pela simples razão de que são órgãos de cúpula, instituídos para serem centras de convergência. Cada uma das Justiças especiais da União tem por cúpula seu próprio Tribunal Superior, que é o responsável pela última decisão nas causas de competência dessa Justiça - ressalvado o controle de constitucionalidade, que sempre cabe ao Supremo Tribunal Federal. Quanto às causas processadas na Justiça Federal ou nas locais, em matéria infraconstitucional a convergência conduz ao Superior Tribunal de Justiça, que é um dos Tribunais Superiores da União embora não integre Justiça alguma; em matéria constitucional, convergem diretamente ao Supremo Tribunal Federal. Todos os Tribunais Superiores convergem unicamente ao Supremo Tribunal Federal, como órgão máximo da Justiça brasileira e responsável final pelo controle de constitucionalidade de leis, atos normativos e decisões judiciárias.Eis por que o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal se dizem órgãos de superposição. O primeiro sobrepõe-se à Justiça Federal, às Estaduais e à do Distrito Federal e Territórios; o segundo, a todas as Justiças do país e a todos os tribunais, inclusive ao próprio Superior Tribunal de Justiça. Nem um nem outro pertence a qualquer Justiça.

161. as Justiças e sua estrutura

Cada Justiça é um sistema fechado e finito, composto de elementos indicados em numerus clausus pela Constituição Federal e que são os órgãos judiciários predispostos ao exercício da jurisdição nas causas e nos graus ali estabelecidos. Segundo a linguagem corrente no Brasil, as Justiças aqui existentes classificam-se (a) em especiais e comuns e (b) em Justiças da União e Justiças locais.São especiais as Justiças que exercem a chamada jurisdição especial, referente a ramos do direito substancial especial. A Justiça Eleitoral trata com o direito eleitoral; a Justiça do Trabalho, com direito e relações do trabalho; a Justiça Militar, com o direito penal militar. São comuns as que exercem a jurisdição comum, em relação a conflitos regidos preponderantemente pelo direito substancial comum (direito civil, direito comercial, direito administrativo).' Tais são a Justiça Federal, as Justiças dos Estados e a Justiça do Distrito Federal e Territórios (supra, n. 125), que atuam segundo as regras do direito processual civil e do direito processual penal comuns. Os processos conduzidos pelas Justiças especiais são regidos por ramos do direito processual especial - direito processual do trabalho, direito processual penal militar, direito processual eleitoral.São Justiças da União aquelas que compõem o organograma judiciário desta, entrelaçam-se com os demais Poderes federais e são mantidas pelos cofres federais - a saber, Justiça do

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Trabalho, Justiça Eleitoral, Justiça Militar e Justiça Federal.9 As Justiças da União exercem jurisdição sobre todo o território nacional - sem embargo das regiões em que o país é dividido, para a distribuição desse exercício. As Justiças locais são comuns (Justiças dos Estados e Justiça do Distrito Federal e Territórios), sendo poucas as unidades federadas que instituíram suas Justiças Militares estaduais (estas, especiais). Das Justiças da União somente a Justiça Federal é comum e todas as outras, especiais.É erro grosseiro, mas muito freqüente, a contraposição entre Justiça Federal e Justiça comum - como se a Justiça Federal não fosse comum.

NOTAS:

8. Mas também direito tributário, que é direito especial.9. A rigor, todas elas são federais. Mas só uma delas tem o nome de Justiça Federal.

Cada uma das Justiças estrutura-se em mais de um grau de jurisdição. Todas têm órgãos inferiores e órgãos superiores, diferenciando-se no entanto os níveis em que se colocam os tribunais de cada uma delas. Cada uma das Justiças especiais é encimada por um Tribunal Superior, o que não acontece com as comuns. O que caracteriza por esse aspecto os Tribunais Superiores das diversas Justiças especiais (Superior Tribunal Militar, Tribunal Superior do Trabalho, Tribunal Superior Eleitoral) é que de suas decisões só pode eventualmente caber algum recurso ao Supremo Tribunal Federal e jamais a qualquer outro tribunal - enquanto que dos órgãos de último grau das diversas Justiças comuns (Tribunais Regionais Federais, Tribunais de Justiça ou Tribunais de Alçada) poderão caber recursos ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça.O recurso ao Supremo Tribunal Federal é o recurso extraordinário, fundado em razões de ordem constitucional (Const., art. 102, inc.111), Ao Superior Tribunal de Justiça, recurso especial - que tem por fundamento matéria legal infraconstitucional (art. 105, inc. 111). Há também casos de recurso ordinário cabível: a) contra decisões dos tribunais locais, ao Superior Tribunal de Justiça (art. 105, inc. 11); b) contra decisões dos Tribunais Superiores, inclusive do próprio Superior Tribunal de Justiça, ao Supremo Tribunal Federal (art. 102, inc. 11). Esse recurso tem cabimento contra decisões tomadas em grau único de jurisdição (competência originária), negando um dos writs constitucionalmente assegurados; se concessiva a decisão, não cabe o recurso ordinário. Além disso, o Superior Tribunal de Justiça atua excepcionalmente como órgão de segundo grau de jurisdição, julgando apelações e agravos contra atos de juizes de primeiro grau da Justiça Federal, nas raríssimas causas indicadas no art. 105, inc. 11, letra c da Constituição Federal. Os dois tribunais de superposição têm ainda competência para dirimir certos conflitos de competência (Const., art. 102, inc. 1, letra o; art. 105, inc. l, letra d).Sem levar ainda em conta a existência de órgãos judiciários das diversas Justiças, situados em mais de um, em alguns ou em muitos pontos do território nacional (divisão judiciária: infra, n. 164), elas se estruturam assim:I - a Justiça do Trabalho compõe-se, em primeiro grau de jurisdição, de varas do trabalho, cada uma integrada por um juiz do trabalho (togado, de carreira) (Const., art. 116, red. em. conrt. n. 24, de 9.12.99).1° Seus órgãos de segundo grau são os Tribunais Regionais do Trabalho, cada um deles exercendo jurisdição sobre determinada região: manda a Constituição que haja ao menos uma região para cada Estado da Federação, podendo haver Estado dividido em mais de uma (como o de São Paulo, onde se situam a 22 e a 1511 Regiões). No ápice da Justiça do Trabalho está o Tribunal Superior do Trabalho (art. 111), cuja competência recursal, em princípio referente a matéria de direito (não de fatos e sua prova), diz respeito aos julgados dos Tribunais Regionais do Trabalho;II - a Justiça Eleitoral é integrada, em primeiro grau de jurisdição, pelos juizes eleitorais (que são os próprios juizes estaduais acumulando funções) e pelas juntas eleitorais (art. 121). Em segundo grau, pelos Tribunais Regionais Eleitorais - um em cada Estado e um no Distrito Federal (art. 120). O Tribunal Superior Eleitoral, órgão de cúpula dessa Justiça, é recursalmente

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competente para as causas julgadas pelos Tribunais Regionais Eleitorais (Cód. Eleit., art. 22, inc. u);III - a Justiça Militar tem apenas os conselhos de Justiça Militar como órgãos de primeiro grau de jurisdição (conselhos especiais ou permanentes) e o Tribunal Superior Militar como órgão de jurisdição superior (Const., art. 122). Inexistem órgãos intermediários entre os conselhos e o Tribunal Superior;IV - a Justiça Federal tem varas em primeiro grau de jurisdição (juízes federais) e um tribunal de segundo grau em cada uma das regiões em que o território nacional se divide. São atualmente cinco os Tribunais Regionais Federais, com sede no Distrito Federal, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Recife;V - cada uma das Justiças dos Estados e a do Distrito Federal e Territórios tem suas varas em primeiro grau e, em segundo, o Tribunal de Justiça. Os Estados de São Paulo, Minas Gerais e Paraná têm também Tribunais de Alçada' 1 - que as unidades federadas podem legitimamente criar, diante de expressa autorização constitucional (Const., art. 96, inc. 11, letra c; LOMN, art. 108). A divisão do Estado em comarcas (foros) e a definição das varas a existir em cada uma delas (juízos) é feita por lei estadual de iniciativa do Tribunal de Justiça (Const., art. 96, inc. II, letra c).

NOTAS:

10. A emenda constitucional n. 24, de 9 de dezembro de 1999, extinguiu as antigas juntas de conciliação e julgamento, das quais faziam parte um Juiz Presidente (togado) e dois inúteis vogais, estes nomeados por critérios políticos ou de influência pessoal e ordinariamente propensos a julgar a favor da classe a que pertenciam, custando muito aos cofres públicos. Foi bom extinguir esse corporativo cabide de empregos, de origem getulista.

162. juízos singulares na jurisdição civil inferior

Na Justiça comum são singulares os órgãos que exercem a jurisdição em primeiro grau - ou seja, eles são preenchidos por uma pessoa só. Daí serem também chamados de órgãos monocráticos. Essa é uma antiga opção brasileira, em parte similar à norte-americana e decididamente divergente dos modelos europeus. No sistema brasileiro, o juiz recebe a demanda inicial, processa-a, instrui a causa e julga a demanda. Na linguagem brasileira de processo civil, tribunal é invariavelmente órgão de jurisdição superior - quer no âmbito de cada uma das Justiças, quer em superposição a elas.São órgãos colegiados de primeiro grau de jurisdição as juntas eleitorais e os conselhos da Justiça Militar - todos sem interesse para o processo civil, o qual só é praticado nas Justiças comuns.O sistema de juízos singulares favorece a efetivação da oralidade no processo civil, dada essa ampla competência de um juiz só para todo o processo. Nos países em que o primeiro grau de jurisdição é exercido por colegiados, no máximo um dos componentes do órgão julgador terá tido contato imediato com a prova - como na Itália, onde, em relação a algumas causas, a instrução é conduzida por um dos três membros do colégio que julgará (giudice istruttore) e não por todos os três. No sistema francês, em que o juiz encarregado da instrução (juge de la mise en état) sequer participa do colégio julgador, a imediatidade é nenhuma - ou seja, aqueles que julgarão não tiveram qualquer contato imediato com as fontes de prova13 (infra, 1111. 288 e 631).

NOTAS:

11. Em São Paulo eles são três: dois civis e um criminal.12. Códice di procedura civile, arts. 174 ss. Mas essa estrutura está em crise, tendo já entrado em vigor o dec. legislat. n. 51, de 19 de fevereiro de 1998, com a transferência de muitas causas à competência de um juiz que, conquanto pertença ao tribunale, decide como giudice unico.

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No exercício da jurisdição civil, os juizes federais e os estaduais consideram-se vinculados ao processo a partir de quando hajam principiado a participar da instrução oral e até que profiram sentença ou deixem de ocupar o cargo (CPC, art. 132). Essa exigência de identidade física do juiz só é factível e relevante em sistemas de juiz singular, como o brasileiro. Favorece a oralidade, na medida em que propicia o julgamento da causa por aquele que tomou contato imediato com a prova.

163. a composição dos tribunais

Como órgãos colegiados que são, os tribunais compõem-se de uma pluralidade de juizes e decidem, conforme o caso, pela totalidade de seus membros (plenário), ou por algum de seus órgãos fracionários (turmas, câmaras, grupos, seções), ou ainda mediante ato singular de algum de seus integrantes (presidente, vice-presidente, relator). A decisão de cada um destes considera-se decisão do tribunal mesmo. Nenhum dos órgãos fracionários tem sua própria individualidade ou autonomia senão no seio do tribunal do qual faz parte e sempre segundo a própria Constituição, as normas processuais infraconstitucionais ou o regimento interno.A Constituição Federal não contém toda a disciplina da composição interna dos tribunais. Estabelece apenas o número dos integrantes do Supremo Tribunal Federal (onze ministros, art. 101), do Superior Tribunal de Justiça (ao menos trinta-e-três ministros, art. 104),14 dos demais Tribunais Superiores (arts. 111, 119 e 123) e dos Tribunais Regionais Federais (no mínimo sete juizes: art. 107). No mais, limita-se a dar uma tênue indicação dos modos como se distribuem internamente as atribuições dos tribunais - como no preceito que autoriza a instituição de um órgão especial,_com funções de plenário, nos tribunais que contem com mais de vinte-e-cinco membros (art. 93, inc. XI) e no que outorga ao plenário ou ao órgão especial a competência exclusiva para declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo (art. 97). Fora isso, à lei processual e ao regimento interno cabem a estruturação de cada tribunal e a distribuição interna de competências.

NOTAS:

13. Nouveau code de procéure civile, art. 779, al. 32. A doutrina francesa costuma associar a oralidade aos debates, dizendo que a realização destes perante o colégio julgador constitui fator que caracteriza o processo como oral.14. Eles são atualmente trinta-e-três.

O Código de Processo Civil, p.ex., contém cerca de trinta referências ao relator, dispondo sobre sua competência. Dispõe sobre a competência do presidente ou vice-presidente do tribunal a quo para o juízo de admissibilidade do recurso extraordinário e do especial (art. 541). Fala das turmas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça (art. 546) etc.Por disposição de seu regimento interno, o Supremo Tribunal Federal é composto de duas turmas, cada qual integrada por cinco ministros (ait. 42). São seus órgãos o Plenário, as duas turmas e a Presidência (art. 3-).No Superior Tribunal de Justiça são órgãos fracionários colegiados o Plenário, a Corte Especial composta por vinte-e-um ministros (que é o órgão especial autorizado pelo art. 93, inc. XI, da Constituição) e três seções, cada uma delas composta por duas turmas de cinco ministros cada (RISTJ, art. 52). Não integram as turmas o Presidente, o Vice-Presidente e o Coordenador-Geral da Justiça Federal (art. 1% § 1-°).O Conselho de Administração e o Conselho da Justiça Federal, que oficiam junto ao Superior Tribunal de Justiça, não exercem função jurisdicional (arts. 44-74).

164. a divisão judiciária brasileira: linhas gerais

Divisão judiciária é o regime legal da fragmentação do território nacional com o objetivo de atribuir porções deste à competência dos diversos órgãos e organismos que exercem a

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jurisdição. Ela vem estampada na Constituição Federal e nas leis federais e estaduais pertinentes à organização judiciária, levando em conta as peculiaridades de cada uma das Justiças e de seus graus jurisdicionais.

NOTAS:

15. Tal é o significado da Corte Especial, integrante do Superior Tribunal de Justiça (RIM, art. 11).16. Arts. 119, 120, 121, 491, 492, 493, 527, 528, 529, 531, 533, 536, 543, §§ 24 e 34, 544, esp. § 211, 545, 549, 557, 558 etc. etc.

O Supremo Tribunal Federal e os Tribunais Superiores da União (Superior Tribunal de Justiça, Superior Tribunal Militar, Tribunal Superior Eleitoral e Tribunal Superior do Trabalho), exatamente porque são órgãos de convergência, exercem jurisdição sobre todo o território nacional (Const., art. 92, par.). Quanto a eles, por isso, não se fala em divisão judiciária, que é um fenômeno de caráter territorial e geográfico e diz respeito ao modo como, em cada uma das Justiças, divide-se o território brasileiro para o exercício da jurisdição (seja inferior, seja de segundo grau).Cada uma delas é composta por órgãos que se situam em pontos diferentes do território nacional, em maior ou menor quantidade conforme o caso. As Justiças da União, como é natural, cobrem todo o território nacional. A Justiça de cada Estado cobre o território do Estado e a do Distrito Federal e Territórios, o do Distrito Federal. 17 É natural também que, sendo mais intensa a atividade dos órgãos de primeiro grau de jurisdição, reduzindo-se a quantidade de causas à medida que se sobe na hierarquia jurisdicional, aqueles existam em número bem mais elevado que estes: cada Estado tem dezenas ou centenas de juízos de primeiro grau mas só um Tribunal de Justiça (e, eventualmente, Tribunais de Alçada). É natural, ainda, que cada uma das Justiças seja composta de órgãos mais numerosos ou menos, na proporção do volume de serviço a cargo de cada uma delas: as Justiças dos Estados são as que mais causas processam e julgam, daí ser muito maior a quantidade de juizes estaduais que os de qualquer das outras Justiças. Essa diferença quantitativa tem por conseqüência que, quanto maior o número de órgãos de uma Justiça, menor é a área sobre a qual cada um deles exerce jurisdição (competência territorial).

NOTAS:

17. Somente o Distrito Federal, apesar do nome dessa Justiça, porque não há Território algum no Brasil.

Na Justiça Federal há foros que equivalem ao território de um Estado (nas unidades de menor movimento forense) e, nos Estados que a lei dividiu em diversos foros, estes não chegam a uma dezena. As comarcas, que são os foros das Justiças locais, contam-se às dezenas ou mesmo centenas, em alguns Estados.Por outro lado, justamente porque existem várias Justiças e são regidas mesmo na Constituição por normas diferentes e sem preocupação de homogeneidade, variam de uma para outra os critérios de distribuição dos órgãos jurisdicionais pelo território nacional. Seria mais fácil sistematizar a estrutura judiciária se cada uma das Justiças da União se compusesse de um Tribunal Superior situado na Capital Federal, órgãos de segundo grau em cada Capital de Estado e juízos inferiores localizados em cada uma das comarcas das Justiças locais. Mas isso não se dá, nem seria útil ou desejável. Mesmo em segundo grau de jurisdição surgem diferenças entre as Justiças, que obrigam o entendimento de que a divisão do território do país é feita, em relação a uma delas, de um modo e, em relação a outra, de outro modo.Um Tribunal de Justiça ou de Alçada tem competência restrita ao seu Estado. Mas um Tribunal Regional Federal cobre toda a região a que pertence. O da Primeira Região (DF) exerce jurisdição sobre o Distrito Federal, Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás, Tocantins, Bahia, Maranhão, Pará, Amazonas, Amapá, Roraima e Rondônia; o da Segunda (RJ), nos Estados do

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Rio de Janeiro e Espírito Santo; o da Terceira (SP), em São Paulo e Mato Grosso do Sul; o da Quarta (Porto Alegre), no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná; o da Quinta (Recife), em Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí.

165. conceito de foro

Foro é a base territorial a cargo de cada órgão judiciário de qualquer grau, sabendo-se que esse é um vocábulo que expressa sempre a idéia geográfica de território (do latim forum, fori = praça ou lugar). A dimensão de cada foro é muito variável, pela dúplice razão (a) da diferença entre os níveis jurisdicionais (foros menores em primeiro grau e maiores em segundo etc.) e (b) do tratamento diferente que cada Justiça recebe da Constituição e da lei. O Supremo Tribunal Federal e os Tribunais Superiores têm por foro todo o território nacional - e esse é o maior de todos os foros que a organização judiciária do país reconhece (Const., art. 101). A determinação de inúmeros foros dentro desse foro nacional é o resultado da divisão judiciária (supra, n. 164).No âmbito de cada Justiça, os tribunais de segundo grau jurisdicional têm por foro a soma dos foros de todos os órgãos de primeiro grau de jurisdição que a ele se reportam. O foro dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais de Alçada equivale ao de todas as comarcas do Estado a que pertencem (ou seja, abrange todo o Estado); o do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios é todo o território da Capital; o de cada Tribunal Regional Federal equivale ao de todas as varas submetidas a ele - ou seja, cada um desses tribunais exerce jurisdição sobre toda a região que lhe é afeta.Nos raciocínios destinados à busca do órgão judiciário competente, só se pensa em Estado ou em região quando se tem diante de si uma causa da competência originária dos tribunais. Tratando-se de causa a propor perante juiz de primeiro grau, busca-se a comarca ou o foro federal competente, prescindindo-se do Estado ou região em que se situa; a questão do tribunal recursalmente competente só surgirá em caso de recurso interposto e será resolvida pelo critério funcional, sem interferência direta das regras de distribuição territorial da competência (cada tribunal é competente para recursos de decisões dos órgãos inferiores que lhe sejam subordinados - e essa regra basta).Subindo de grau, vê-se que os Tribunais Superiores têm por foro toda a soma dos foros dos tribunais que a eles se reportam, o que significa que eles exercem jurisdição sobre todo o território nacional (é o caso do Superior Tribunal de Justiça). Assim também o Supremo Tribunal Federal, que a todos se sobrepõe (Const., art. 92, par.).

166. os foros em segundo grau de jurisdição

Os Tribunais Regionais Federais, como órgãos de segundo grau da Justiça Federal, exercem jurisdição nas regiões a que pertencem e que são atualmente cinco (ADCT, art. 27, § 6-), com sede no Distrito Federal, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Recife. Cada uma delas abrange alguns Estados (supra, n. 164).Os tribunais das Justiças Estaduais exercem jurisdição, obviamente, sobre todo o território do próprio Estado. Cada Estado é o foro de seu próprio Tribunal de Justiça ou de Alçada. Por isso, a competência recursal de cada um desses tribunais limita-se às causas oriundas dos órgãos de primeiro grau jurisdicional do próprio Estado.Na Justiça Eleitoral cada um de seus órgãos de segundo grau de jurisdição (os Tribunais Regionais Eleitorais) tem por foro um Estado ou o Distrito Federal (Const., art. 120). Na Justiça Militar da União inexistem órgãos de segundo grau entre os conselhos, que são de primeiro grau, e o Superior Tribunal Militar, que é um Tribunal Superior. Por isso, define-se somente o foro daqueles (que é o que a lei determinar, caso a caso) e o deste, que é todo o território nacional. Na Justiça do Trabalho o segundo grau jurisdicional é exercido pelos Tribunais Regionais do Trabalho nas regiões preestabelecidas e que não correspondem necessariamente aos Estados - mas, por exigência constitucional, em cada Estado há pelo menos uma região (art. 112).

167. os foros em primeiro grau de jurisdição

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Para fins de exercício da jurisdição de primeiro grau pelas Justiças locais, o país está dividido em comarcas, que abrangem todo o território nacional. Cada Estado tem suas comarcas e as comarcas de todos os Estados, somadas entre si e com a do Distrito Federal, preenchem toda a extensão do mapa do Brasil. Comarca é conceito exclusivo da organização das Justiças locais. Designa somente os foros em que está dividido o território nacional para o fim de exercício da jurisdição por juízes de primeiro grau das Justiças dos Estados e da Justiça do Distrito Federal e Territórios, não tendo portanto a mesma amplitude conceitual que o vocábulo foro. Comarca é o foro das Justiças estaduais, em primeiro grau de jurisdição. Mesmo assim, o Código de Processo Civil fala indiscriminadamente em comarca, sem ter em conta que suas normas regem o processo civil tanto perante as Justiças Estaduais quanto perante a Federal - sendo que, na organização desta, tal vocábulo não tem significado algum.Fala em comarcas onde haja representante judicial de incapazes (art. 9s, par), em imóveis que se situem em duas ou mais comarcas (art. 107), em comarcas onde o transporte seja particularmente difícil (art. 182), em cartas precatórias para cumprir diligência fora dos limites da comarca (art. 200), em comarcas com mais de uma vara (art. 207), em comarcas contíguas (art. 230) etc.Quanto à Justiça Federal, diz a Constituição que "cada Estado, bem como o Distrito Federal, constituirá uma seção judiciária " (art. 110). Enquanto só nas Capitais dos Estados havia varas federais, esse conceito era relevante e tinha-se por certo que, para a Justiça Federal, cada Estado era uma seção judiciária e cada seção judiciária era um foro (com relação ao primeiro grau de jurisdição). Mas, permitindo agora a própria Constituição que a lei criasse varas federais em outras cidades (art. 110), quando elas principiaram a ser criadas deixou de haver coincidência entre o território de cada Estado e o foro sujeito à jurisdição exercida pelas varas.O foro sujeito às varas federais com sede na Capital de São Paulo não é mais todo o Estado de São Paulo, porque estão subtraídas as áreas cobertas pelas varas de Araçatuba, Bauru, Campinas, Franca, Jaú, Guaratinguetá, Piracicaba, Presidente Prudente, Ribeirão Preto, Santos, São Bernardo do Campo, São Carlos, São José do Rio Preto, São José dos Campos e Sorocaba; e as varas ali sediadas têm por foro a porção territorial com sede em cada uma dessas cidades. Tal fenômeno, que não é exclusivo da Terceira Região nem do Estado de São Paulo, compromete a correspondência entre o Estado e o foro federal e deixa sem razão de ser o art. 110 da Constituição, perdendo toda utilidade o conceito de seção judiciária.Nos Estados em que só existem varas na Capital, o foro federal coincide com a seção judiciária (porque, para a Constituição, seção judiciária ainda é o Estado: art. 110). Naqueles em que há varas pelo interior, a extensão não coincide. De todo modo, como conceitualmente seção judiciária já não é necessariamente sinônimo de foro federal, é melhor empregar essa segunda locução quando se quer designar, em termos gerais, cada uma das porções territoriais em que o país está dividido para o exercício da jurisdição de primeiro grau pela Justiça Federal.Assim como nas Justiças estaduais há comarcas, na Federal há foros federais. Mas, como estes são territorialmente mais amplos que aquelas - abrangendo o território de muitas comarcas - na prática os atos a serem realizados fora da comarca onde tem sede a vara federal vêm sendo objeto de carta precatória ao juiz estadual do lugar. A rigor, como o juiz federal tem competência sobre todo o foro federal e não somente sobre a comarca onde se situa a vara, seria legítima a realização desses atos pelo próprio juiz da causa e seus auxiliares, sem nada deprecar.Para a Justiça do Trabalho, foro de primeiro grau é em princípio a base territorial estabelecida pela lei para o exercício da jurisdição pelas varas do trabalho. Embora não haja qualquer vinculação da organização de uma Justiça à de outra, as leis de organização da Justiça do Trabalho fazem coincidir os foros trabalhistas com as comarcas da Justiça Estadual. Um foro trabalhista corresponde sempre a uma comarca ou mais, porém nunca mistura comarcas nem toma para si somente parte de determinada comarca, deixando o restante para outro foro trabalhista. l8 Na Justiça Eleitoral existem os foros de primeiro grau representados pelas zonas eleitorais, que correspondem ao território de uma comarca ou de parte dela (caso dos grandes centros urbanos) (Cód. Eleit., art. 35). Ali têm exercício os juizes eleitorais e as juntas eleitorais. O foro de primeiro grau de Justiça Militar é a base territorial dos Conselhos de Justiça Militar

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(Conselhos Especiais de Justiça e Conselhos Permanentes de Justiça) e corresponde ao território de cada Estado ou do Distrito Federal (LOJM, arts. 16, 30 etc.).

NOTAS:

18. Embora seja crescente a difusão da Justiça do Trabalho, com a tendência a implantar varas federais que, somadas, cubram todo o território nacional, a Constituição Federal ainda dispõe que, nas comarcas onde não as houver, a jurisdição trabalhista será exercida pelos juízes estaduais (art. 112). Nesses casos, a comarca será o foro trabalhista.

168. juízos

Juízo significa órgão jurisdicional. Cada órgão jurisdicional é um juízo, tanto em primeiro como em qualquer outro grau de jurisdição. O juízo não se confunde com a pessoa física do juiz que desempenha suas funções. Ele é uma unidade de serviço dentro da Justiça. Compreende o próprio cargo do juiz e os dos auxiliares da Justiça integrantes do quadro fixo desta (cartório, secretaria, oficiais de justiça). Em primeiro grau jurisdicional são juízos da Justiça Federal e das Justiças locais cada uma de suas varas. Nos graus superiores, cada tribunal é um juízo. O Supremo Tribunal Federal é um juízo, o Superior Tribunal de Justiça é outro, cada Tribunal de Justiça o é etc.No mesmo foro pode haver uma pluralidade de juízos ou somente um - é o caso das comarcas com uma vara só. Nos grandes centros há pluralidade de varas num só foro.Em segundo grau de jurisdição, a Justiça Federal só tem um juízo em cada região, a qual é um foro de segundo grau (esse juízo é o Tribunal Regional Federal). Cada Estado, que para fins de Justiça Estadual em segunda instância é um foro, terá somente um juízo superior (Tribunal de Justiça) ou mais de um (Tribunal de Justiça e de Alçada).Os juízos de primeiro grau, ou seja, as varas, costumam ser agrupados pelas leis de organização judiciária segundo certos critérios de especialização, surgindo assim varas criminais, varas cíveis, varas da família e sucessões, varas dos registros públicos etc. Inexiste uniformidade entre as leis de organização judiciária federais (Justiça Federal) e as estaduais, nem entre as leis dos diversos Estados - daí a existência de varas especializadas em procedimento sumário ou em falências e concordatas, em alguns Estados, sem que em outros elas necessariamente existam. As varas da mesma categoria e denominação, no mesmo foro, são órgãos da mesma espécie. As de categorias diferentes são, entre si, órgãos de espécies diferentes (esses conceitos são relevantes na disciplina da competência: infra, n. 282).

169. juízos da mesma espécie ou de espécies diferentes

A pluralidade de órgãos judiciários na estrutura da Justiça do país manifesta-se na existência (a) de órgãos integrando o mesmo organismo ou organismos diferentes (Justiças); b) de órgãos da mesma Justiça, situados no mesmo grau de jurisdição ou em graus diferentes; c) de órgãos da mesma Justiça e mesmo grau de jurisdição, mas diferenciados territorialmente; d) de órgãos da mesma Justiça, mesmo grau e ainda abrangendo o mesmo território, mas dotados de competências diferentes no âmbito deste e da Justiça a que pertencem; e) de órgãos do mesmo grau, mesma Justiça, mesmo território e rigorosamente da mesma competência.No âmbito da Justiça comum, entre os juízos de primeiro grau jurisdicional e os de segundo existe relevante diferença estrutural, sendo singulares aqueles (ocupados por uma só pessoa) e colegiados estes; são também colegiados os órgãos de superposição (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça). A diferenciação entre órgãos e a graduação das distinções constitui elemento muito útil no estudo da competência de cada um deles.Há juízos ordinários, como os das Justiças que exercem a jurisdição comum em relação aos das demais Justiças, que são juízos especiais; ou como as varas cíveis em confronto com as especializadas, que no seio da mesma Justiça são especiais também. A diferença entre uns e outros é a mesma que existe entre normas gerais e normas especiais, sendo especiais os órgãos

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encarregados de litígios regidos por leis especiais no plano do direito substancial (direito penal militar, direito eleitoral, direito de família, direito acidentário etc.) (Carnelutti).Partindo-se dessas premissas, são órgãos judiciários da mesma espécie aqueles cujas competências se diferenciam exclusivamente no plano territorial - pertencendo à mesma Justiça, situando-se no mesmo nível hierárquico e tendo competência para julgar sobre a mesma matéria e mesmas pessoas. A competência entre eles é discriminada por critérios fundamentalmente relacionados com os elementos de ligação ao território. Daí falar-se em órgãos e competências territorialmente diferentes, mas substancialmente iguais. Consideram-se órgãos judiciários de espécies diferentes aqueles que pertençam a Justiças diferentes ou se situem em níveis hierárquicos desiguais ou sejam dotados de competências diferenciadas por matéria, por valor ou ratione personce.Quando se trata de órgãos rigorosamente do mesmo tipo (mesmo grau de jurisdição, todos ordinários ou todos com a mesma especialização etc), mínimo é o interesse prático decorrente de sua pluralidade. À medida que se diferenciam, das diferenças emergem conseqüências práticas que aconselham o pleno conhecimento dos elementos diferenciadores. É particularmente importante o conhecimento das razões das diferenças entre os órgãos judiciários e do modo como os dispõem a Constituição e a lei nessa complexa trama da estrutura judiciária do país. O estudo dessas razões é pertinente ao trato da própria estrutura judiciária e depois, como reflexo dessa estrutura, ao exame da competência dos órgãos e organismos judiciários do país (infra, nn. 191 ss.).

170. foros regionais e varas distritais

Alguns Estados vêm criando foros regionais nos centros de grande concentração urbana e varas distritais em municípios de escasso movimento forense, como modo de descentralizar serviços e levar a Justiça a uma proximidade maior dos usuários.Não são autênticos foros - nem os foros " regionais, nem as áreas jurisdicionalizadas pelas varas distritais. Fazem parte de um foro, ou comarca, na qualidade de unidades territoriais divisionárias, ou subforos. Conseqüentemente, carecem de autonomia, em face das regras contidas no Código de Processo Civil, para o fim de fixação da competência territorial. Só se indaga da competência de algum dos foros regionais, ou das varas distritais, para causas que de antemão se saiba que pertencem à da comarca em que se situam: sempre que aquelas regras gerais indiquem a competência de outra comarca, não se cogitará das varas distritais ou dos foros regionais (infra, rui. 334 ss.).As varas distritais são geralmente instaladas em municípios de pequeno volume de serviços judiciários, pertencentes a comarcas do interior. Os foros regionais são divisões das comarcas de maior densidade demográfica e, portanto, serviços forenses muito intensos. Eles abrangem áreas periféricas ou ao menos mais distantes do centro das grandes cidades. Em relação ao foro central, são como satélites em torno de um centro gravitacional.

Capítulo XIV - O ESTATUTO CONSTITUCIONAL DA MAGISTRATURA E A INDEPENDENCIA DOS JUÍZES

171. o estatuto constitucional da Magistratura - 172. as carreiras judiciárias - 173. recrutamento de juizes - 174. o ingresso nas carreiras judiciárias: concurso - 175. outros modos de recrutamento - 176. o quinto constitucional - 177. diferentes níveis ou classes - 178. promoções alternadas por merecimento e por antigüidade - 179. remoções - 180. garantias dos juizes - 181. a tríplice garantia, sua legitimidade democrática e sua relatividade - 182. vitaliciedade - 183. inamovibilidade - 184. irredutibilidade de vencimentos - 185. impedimentos dos juizes (imparcialidade) - 186. deveres do juiz - 187. síntese das garantias, im pedimentos e deveres- 188. a independência funcional do juiz- 189. o controle da Justiça e da Magistratura - 190. escolas da Magistratura

171. o estatuto constitucional da Magistratura

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Por um lado, o estabelecimento de normas relativas aos juízes e aos cargos que ocupam constitui aspecto das exigências democráticas referentes à organização legal do serviço público, que inclui a acessibilidade aos cargos públicos a todos aqueles que preencham os requisitos legais (Const., art. 37, inc. II) (Hely Lopes Meirelles); por outro, um Poder Judiciário democrático em oportunidades de acesso e progressos funcionais, segundo regras preestabelecidas, é em si mesmo penhor de independência dos juízes e exercício adequado da jurisdição. Na efetividade dessas oportunidades, concedidas segundo a Constituição e a lei, reside a legitimidade política dos julgamentos judiciários nos países onde os juízes não são eleitos pelo voto popular.Daí o empenho da Constituição Federal em fixar regras fundamentais estruturando a Magistratura, o que ela faz principalmente ao dispor sobre a carreira em si mesma, o ingresso, promoções e acesso aos tribunais etc., bem como ao estabelecer garantias e impedimentos do juízes. Tudo isso somado constitui o estatuto constitucional da Magistratura, que depois repercute na Lei Orgânica da Magistratura Nacional e nas leis de organização judiciária de todos os níveis. A intenção é, acima de tudo, manter o juiz imune a influências dos agentes de todos os Poderes do Estado, inclusive da própria cúpula do Poder Judiciário.A Lei Orgânica da Magistratura Nacional (lei compl. n. 35, de 14.3.79) constitui o repositório básico da legislação infraconstitucional pertinente ao tema, na medida de sua compatibilidade com as grandes colunas estabelecidas na Constituição Federal - ou seja, na medida de sua recepção por esta. Ela está fadada à revogação pelo Estatuto da Magistratura, que a Constituição prevê (art. 93) mas ainda não foi editado.

172. as carreiras judiciárias

A mais ampla das regras constitucionais sobre a carreira da Magistratura é precisamente a que determina seja esta instituída em carreira. Essa norma não é ditada de modo direto pela Constituição, mas transparece nitidamente nos incs. I-III de seu art. 93, que, falando em ingresso na carreira, em cargo inicial, em promoção, em entrâncias e acesso aos tribunais, deixam fora de dúvida a exigência de organização das carreiras judiciárias.Carreira é o agrupamento de cargos da mesma profissão, hierarquizados segundo as exigências funcionais e com acesso privativo dos titulares dos cargos inferiores aos imediatamente superiores. Toda carreira é composta de classes, segundo a hierarquização existente em cada uma delas.Inexiste porém uma rígida e invariável exigência de estruturação de toda a Magistratura em carreira. Logo na disciplina da composição dos dois tribunais de superposição, a própria Cons-' tituição Federal deixa claro que tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça são integrados por cargos isolados, sem ligação a carreira alguma e sem as progressões funcionais que são inerentes a esta (arts. 101 e 104). Nem a um nem a outro se chega por promoção.Cargos isolados são aqueles que não se escalonam em classes nem se interligam de modo que de um deles o servidor pudesse passar a outro. O ocupante de cargo isolado ali permanecerá até que aposentado, exonerado ou falecido, sem qualquer expectativa jurídica de progressão funcional.Apenas na Justiça Eleitoral inexiste carreira. Nas outras existe, mas ainda assim vigem regras constitucionais que impõem exceções a esse critério. Assim é o acesso aos tribunais da Justiça comum pelo chamado quinto constitucional: não são de carreira os advogados e membros do Ministério Público nomeados para integrar os Tribunais de Justiça, Tribunais de Alçada ou Tribunais Regionais Federais (Const., art. 94). O Superior Tribunal Militar é composto de ministros nomeados pelo Presidente da República sem qualquer vinculação a carreira alguma (art. 123).Por outro lado, não existe uma só carreira judiciária, mas várias: uma na Justiça Militar, uma na Justiça do Trabalho, uma na Justiça Federal, uma na Justiça de cada Estado e uma na Justiça do Distrito Federal e Territórios (sempre excluída a Justiça Eleitoral, onde carreira não há). Cada

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uma delas tem seu quadro funcional, que é estanque e isolado dos quadros das demais: inexistem remoções ou transferências de qualquer ordem, de uma Justiça para outra.Só na Justiça Eleitoral é que os cargos são preenchidos por membros de outras Justiças ou Tribunais (além de advogados) (Const., arts. 119-120).Não-obstante essas limitações, a regra da organização em carreira constitui elemento de valia na institucionalização da Magistratura brasileira. Não só pelo aspecto puramente administrativo é conveniente que seja assim, dadas as maiores possibilidades de organização, como também pelas conotações políticas da legalidade e isonomia nas escolhas, motivação representada pelas pro moções e acesso aos tribunais e, sobretudo, pela carga de independência que as regras da carreira são capazes de oferecer aos juizes.As normas constitucionais sobre a Magistratura disciplinam o ingresso e as promoções, com destaque ao acesso aos tribunais - que é um dos aspectos das possíveis promoções de um magistrado. Na técnica jurídico-administrativa, tem-se (a) o provimento inicial ou originário, quando se trata de preencher o cargo com pessoa ainda não integrante do quadro da carreira e (b) provimento derivado, no preenchimento com pessoa já integrante da carreira e ocupante de cargo hierarquicamente inferior ou do mesmo nível hierárquico. Na linguagem usual em tema de organização judiciária, fala-se em ingresso, promoção e remoção.

173. recrutamento de juízes

Conhecem-se internacionalmente muitos meios de recrutar juizes, que vão desde a livre nomeação pelo Chefe do Executivo até ao sistema tecnicamente mais depurado, que é o dos concursos públicos. Há também a cooptação, consistente em escolha pelos próprios tribunais, bem como o método das eleições públicas, fundado na ilusão de maior aderência democrática, legitimando-se no voto dos cidadãos o exercício do poder em sede jurisdicional. Não se pode dizer, de modo absoluto, que algum desses critérios seja em si melhor que todos os outros, ou conveniente para todas as situações, até porque há costumes arraigados e perigos de distorções - o que é um constante risco no sistema de eleição popular dos juizes. Nos Estados norte-americanos que o praticam, a instabilidade e as angústias em face do risco de não-reeleição constituem um conhecido mal. A nomeação pelo Presidente da República é elemento de interferência de um Poder do Estado sobre outro e só encontra explicação numa longa tradição e no jogo de influências recíprocas que dão equilíbrio à independência de cada um deles (checks and balances). Na complexa organização judiciária brasileira vigem diversos sistemas, especialmente diante da consideração de que há juizes que integram carreiras e os que não.

174. o ingresso nas carreiras judiciárias: concurso

O provimento originário ou inicial dos cargos inerentes às carreiras judiciárias faz-se mediante concurso público de provas e títulos, organizado pelos tribunais e com a participação de um examinador indicado pela Ordem dos Advogados do Brasil. Para efetividade do sistema de concursos, a nomeação deve obedecer rigorosamente à ordem de classificação final dos candidatos (Const., art. 93, inc. 1). Assim é na Justiça Federal, na Justiça do Trabalho, na Justiça Militar e nas Justiças locais (dos Estados e do Distrito Federal e Territórios), que são estruturadas em carreiras. O cargo inicial é de juiz substituto, nas justiças locais; de juiz federal substituto, na Justiça Federal; de juiz do trabalho substituto; de juiz-auditor substituto, na Justiça Militar. Os cargos subseqüentes só são acessíveis aos substitutos assim recrutados.

175. outros modos de recrutamento

Onde não existe carreira judiciária e mesmo nos quadros das Justiças em que ela existe, a Constituição institui cargos a serem ocupados por juízes recrutados fora da Magistratura e por outro meio que não o concurso público. São meios diferentes entre si e mesclados por modos complexos, com a interferência do Chefe do Executivo ou não, com ou sem participação do Tribunal etc., num casuísmo que torna praticamente impossível qualquer sistematização.

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A nomeação para os cargos de ministros do Supremo Tribunal Federal independe de concurso e decorre de escolha pessoal do Presidente da República, que os nomeia após aprovação pelo Senado Federal, atendidos certos requisitos (Const., art. 101). Os ministros do Superior Tribunal de Justiça são nomeados pelo Presidente da República a partir de listas tríplices elaboradas pelo próprio Tribunal e sempre mediante prévia aprovação pelo Senado Federal (art. 104 c/c art. 94).Assim também é a nomeação dos ministros do Tribunal Superior do Trabalho (Const., art. 111, § 24, red. em. const. n. 24, de 9.12.99).Na Justiça Militar, somente os juízes-auditores substitutos são admitidos por concurso e integram a carreira, com expectativa de progressão funcional (LOJM, art. 33). Todos os ministros do Superior Tribunal Militar e os militares que fazem parte dos conselhos são nomeados pelo Presidente da República (Const., art. 123), sem concurso (os primeiros, mediante prévia consulta ao Senado Federal).Na Justiça Eleitoral, em que coexiste carreira, as funções jurisdicionais são exercidas, em primeiro grau, por juizes estaduais. Em segundo (Tribunais Regionais Eleitorais), por juízes estaduais, juízes federais, membros dos tribunais da Justiça comum (Estaduais e Federal) e advogados. Os magistrados são eleitos pelos respectivos tribunais e os advogados, escolhidos pelo Presidente da República a partir de uma lista fornecida pelo Tribunal de Justiça (Const., art. 120).Os juizes leigos dos juizados especiais civis (Const., art. 98, inc. l) são recrutados discricionariamente pelo juiz titular de cada juizado, entre advogados militantes e sem necessidade de concurso, integrando os quadros que ali se formarão (lei n. 9.099, de 26.9.95, art. 74); mas nada obsta à realização de concursos, ou provas seletivas, que darão maior legitimidade às escolhas a fazer. Os juizes de paz, previstos constitucionalmente, serão escolhidos por eleição popular (art. 98, inc. II). Nem aqueles nem estes são, contudo, investidos de jurisdição. Os leigos exercem funções parajurisdicionais, instruindo a causa e redigindo sentenças a serem homologadas pelo juiz togado (lei cit., arts.. 37 e 40: infra, n. 364). O juiz de paz terá somente função conciliatória e encargos administrativos, sem jurisdição (casamentos etc.).

176. o quinto constitucional

Também independe de concurso o provimento dos cargos reservados a membros do Ministério Público e a advogados, como no chamado quinto constitucional que a Constituição Federal manda observar nos tribunais da Justiça comum (Tribunais Regionais Federais, Tribunais de Justiça e Tribunais de Alçada). A escolha é feita inicialmente pelas entidades da categoria (Ordem dos Advogados do Brasil ou órgão de cúpula do Ministério Público), que elaboram uma lista sêxtupla. Dessa lista, o próprio Tribunal retira três nomes e, da lista tríplice assim formada, o Chefe do Executivo escolhe o candidato a ser nomeado (Const., art. 94). Nem o Tribunal está adstrito à ordem em que os nomes aparecem na lista sêxtupla, nem o Presidente da República ou o Governador do Estado à ordem da lista tríplice.Também nos Tribunais Superiores da União há uma parcela reservada a advogados e membros do Ministério Público, cujos cargos são providos pelo mesmo modo que o quinto constitucional (art. 94). Assim é no Superior Tribunal de Justiça, onde uma terça-parte é reservada a esses profissionais (art. 104, par., inc. 11) e no Tribunal Superior do Trabalho, onde três cargos são preenchidos por advogados e três, por membros do Ministério Público do Trabalho (art. 111, § 14, me. 1). Não se trata contudo de quinto constitucional, porque a proporção é outra.Nos Estados em que existem Tribunais de Alçada, o promotor de justiça ou advogado que ali vem a ser investido torna-se juiz para todos os efeitos, inclusive com vitaliciedade e possibilidade de acesso ao Tribunal de Justiça. A eles são reservadas as vagas inerentes ao quinto constitucional, para as quais concorrem os membros dos Tribunais de Alçada dentro de cada uma das classes (interpret. LOMN, art. 100, § 44). Nessa medida eles integram a carreira, na qual ingressaram com investidura na penúltima de suas classes.Ainda se discute sobre o modo de preenchimento das vagas do Tribunal de Justiça, reservadas ao quinto constitucional, nos Estados em que há Tribunais de Alçada. Existem decisões

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sustentando que, integrados por completo no Poder Judiciário, os advogados e procuradores investidos em cargos desses tribunais já se consideram juizes e, portanto, não concorrem àquelas vagas. Elas seriam providas por profRionais ainda no exercício da advocacia ou do Ministério Público. Esse critério, contudo, na prática acaba por alterar para mais a proporção de desembargadores não oriundos da carreira, porque o Tribunal de Justiça receberia, a título de quinto constitucional, não só esses assim nomeados diretamente como também os que, sem terem feito concurso à Magistratura e sem terem sido juízes de primeiro grau, ocupam cargos nos Tribunais de Alçada. Correto e fiel à fórmula constitucional é a prática tradicionalmente vigente em São Paulo, onde os cargos de desembargador do quinto constitucional são absolutamente privativos dos juizes dos Tribunais de Alçada, neles investidos por esse critério.

177. diferentes níveis ou classes

É inerente a toda carreira a distribuição de seus cargos em níveis diferentes, chamados classes. A Constituição Federal refere-se às classes integrantes das carreiras judiciárias pela tradicional denominação de entrâncias (art. 93, me. 11), mas duas observações precisam ser feitas a propósito. A primeira é que a lei emprega o vocábulo entrância somente para designar as classes funcionais nas carreiras judiciárias estaduais: inexistem entrâncias nas demais Justiças, embora em alguma medida haja degraus na carreira. A segunda observação a ser feita é que a Constituição dá um trato específico e separado ao tema do acesso aos tribunais (art. 93, inc.111), com a impressão inicial de que o acesso fosse algo diferente das promoções que em primeiro grau de jurisdição se fazem. Essa impressão é falsa, até porque a própria Constituição, no mesmo inciso, fala em promoção aos Tribunais de Justiça. Apesar das aparências, portanto, a estruturação das carreiras em classes, ou níveis, vai desde os cargos iniciais de juiz substituto até ao tribunal onde cada uma delas termina (Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais do Trabalho).

178. promoções alternadas por merecimento e por Antigüidade

Uma regra fundamental, inerente à estrutura de toda carreira (judiciária ou não), é a do acesso aos cargos mais elevados exlusivamente pelos ocupantes de cargos da classe imediatamente inferior, sendo vedadas as promoções per saltum. A Constituição Federal estabelece expressamente que nas Justiças Estaduais as promoções far-se-ão de entrância para entrância e, para os tribunais, exclusivamente entre os ocupantes da entrância mais elevada (art. 93, inc. 1); onde existem Tribunais de Alçada, da última entrância há acesso a eles e deles aos cargos de desembargador do Tribunal de Justiça (LOMN, art. 100, § 3-).Na Justiça do Estado de São Paulo, em que existe um quadro de juízes substitutos de segundo grau de jurisdição, têm acesso a ele os juízes da última entrância estadual, por mera remoção (progressão horizontal - lei compl. est. n. 646, de 8.1.90). Esses juízes são auxiliares nas Câmaras do Tribunal de Justiça ou dos Tribunais de Alçada, podendo também substituir os titulares. A partir do quadro que ocupam, habilitam-se à promoção a juizes dos Tribunais de Alçada (sem prejuízo de igual direito, assegurado aos juízes de última entrância que não hajam sido removidos a esse quadro).Para preservar a independência dos juizes e evitar discriminações internas ou externas, tradicionalmente a ordem constitucional brasileira impõe que o provimento dos cargos das carreiras judiciárias por promoção se faça alternadamente, pelos critérios do merecimento e da antigüidade (Const., art. 93, inc. 11). Tanto um como outra são aferidos na entrância (LOMN, art. 80, § 14, inc. 1); o que significa que juizes mais antigos na carreira mas há menos tempo na entrância são legitimamente preteridos pelos que ali estejam há mais tempo; essa é uma regra salutar que visa a desfavorecer seguidas escolhas de comarcas mais convenientes por um magistrado, em detrimento dos demais. Tais critérios prevalecem do mesmo modo, no tocante à promoção aos tribunais de cada uma das Justiças - na medida em que o provimento dos cargos dos tribunais se faz mediante promoção (ou seja, excluídos os provimentos originários pelo critério do quinto constitucional e outros: supra, rln. 176).

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A Constituição imprime critérios tão objetivos quanto possível às promoções, exatamente para a efetividade das garantias de independência que pretende instituir. Preceitua que (a) as listas de indicação por merecimento só podem incluir juízes com pelo menos dois anos de exercício na entrância, (b) é preciso que o juiz integre a primeira quinta-parte na lista de Antigüidade dos juízes da entrância em que está, (c) a aferição do merecimento deve orientar-se por certas qualidades do juiz no exercício das funções, que a própria Constituição especifica (presteza, segurança, assiduidade, grau de aproveitamento em cursos) e (d) é obrigatória a promoção do juiz que figure em lista por três vezes consecutivas ou cinco vezes alternadas. Só pelo quorum qualificado de dois-terços de seus membros o tribunal pode recusar a promoção do juiz mais antigo entre os inscritos, fazendo-o fundamentamente e conforme procedimento próprio (Const., art. 93, inc. 11).

NOTAS:

1. Que no jargão local são tradicionalmente designados por pingüins - sem qualquer conotação pejorativa. A condição de pingüim é o pingüinato.

Para efetividade da garantia constitucional da inamovibilidade (Const., art. 95, me. 11) só podem considerar-se habilitados à promoção os juízes que se inscreverem. Elaborada a lista, cabe ao Presidente do Tribunal a escolha entre os figurantes desta, sem outra vinculação além daquela decorrente do número de indicações consecutivas que um juiz haja obtido (art. 93, inc. 11, letras a e c - v. logo acima).zNa Justiça Federal, em que inexistem entrâncias, as regras acima aplicam-se às duas promoções possíveis, ou seja: de juiz federal substituto a juiz federal e desse cargo ao de juiz do Tribunal Regional Federal. Na Justiça do Trabalho, à qual se aplicam todas essas regras, ocorrem promoções - sempre por esses critérios - do cargo de juiz do trabalho substituto ao de juiz do trabalho e deste ao de juiz do Tribunal Regional do Trabalho (Const., art. 115, par., inc. 1- LOMN, art. 80, § 2-).

179. remoções

Remoção é a passagem de um a outro cargo da mesma classe, dentro da mesma carreira - portanto, em movimento horizontal e não vertical como nas promoções. É modo de provimento derivado de cargos públicos, mesmo quando se refere aos cargos iniciais da carreira.Excluídas as remoções por interesse público (infra, n. 183), nas Justiças comuns o juiz é removido mediante requerimento e por ato do Presidente do Tribunal, que fará sua escolha na lista tríplice elaborada pelo Plenário ou pelo órgão Especial.3 As remoções terão preferência sobre o provimento originário dos cargos iniciais e sobre a promoção de juizes ocupantes de cargos imediatamente inferiores (LOMN, art. 81, caput).4

NOTAS:

2. Antes, as promoções e remoções eram feitas por ato do Chefe do Poder Executivo, mas nessa parte o art. 81, § 14, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 (art. 96, inc. 1, letra c). Agora, ao Tribunal é outorgada competência para prover os cargos de carreira.

180. garantias dos juízes

A Constituição reforça seu empenho em oferecer condições máximas para a imparcialidade das pessoas que exercem a jurisdição, ao reiterar a tríplice e tradicional garantia endereçada aos juizes individualmente, ou seja, as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos (art. 95, caput). Ao lado destas - e sempre para que os agentes estatais encarregados da jurisdição a exerçam necessariamente com a marca da impessoalidade - a

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Constituição impõe-lhes certos impedimentos (art. 95, par.). A independência do juiz é absolutamente indispensável para que atue de modo impessoal e, conseqüentemente, para que possa ser imparcial em seus julgamentos (supra, nn. 80, 81 e 130).A imparcialidade do juiz, como vem sendo dito, é favorecida por normas de diversas ordens, sempre em plano constitucional, a saber: a) pelas que asseguram a independência do Poder Judiciário perante os demais Poderes do Estado, (b) pelas que dão independência a cada um dos tribunais, mesmo em relação aos tribunais de nível mais elevado, (c) pelas que estruturam a Magistratura por critérios tão objetivos quanto possível e disciplinam as carreiras judiciárias e (d) pelas que outorgam garantias individuais aos juizes (supra, n. 81).

NOTAS:

3. A locução sempre que possível é inserida na lei (LOMN, art. 81, § 1=) com o objetivo de ressalvar os casos em que não haja candidatos inscritos e em condições de obter a remoção, em número suficiente para compor a lista tríplice. Tal dispositivo foi recepcionado pela Constituição, embora situado no mesmo parágrafo que em parte não o foi (supra, nota 2).4. Esse dispositivo da Lei Orgânica da Magistratura Nacional nada tem de incompatível com o estatuto constitucional da Magistratura e, portanto, foi objeto de recepção e está vigente.

181. a tríplice garantia, sua legitimidade democrática e sua relatividade

Pelo que está nos incisos do art. 95 do texto constitucional, o juiz goza das garantias da vitaliciedade, pela qual em princípio pode permanecer no cargo ou na carreira desde a primeira investidura e até à morte; da inamovibilidade, que significa imunidade a transferências de um cargo a outro contra a vontade, mesmo por promoção; e da irredutibilidade de vencimentos, que o põe a salvo de quaisquer alterações substancialmente capazes de lhe diminuir a capacidade de adquirir bens.Visando a oferecer tranqüilidade e segurança aos juizes e portanto sua independência perante os poderosos de todos os setores do Estado, essas garantias não são privilégios ou favorecimentos a uma casta de preferidos mas, como sempre vem sendo enfatizado, meios de oferecer à população um serviço público realizado por agentes imparciais. Sem o temor de perder o emprego ou o cargo, ou de passar a perceber menos e assim pôr-se em dificuldades pessoais, é mais provável que o juiz deixe de ser reverente e portanto julgue melhor. É preciso, em resumo, pôr o juiz a salvo de ameaças, humilhações, represálias e mesmo de solicitações de favores. Essa é a razão que legitima a oferta de garantias individuais a eles mas que, de outro lado, impõe certas ressalvas a elas próprias e exige a compensação equilibrada mediante a imposição de impedimentos e deveres (infra, nn. 185-186). De um lado, seria verdadeiro privilégio uma garantia que não fosse delimitada segundo parâmetros de interesse público - o que conduz à relativização de todas as garantias oferecidas ao juiz. De outro, para que o juiz esteja livre de influências externas não basta fortalecê-lo objetivamente com garantias: é preciso também que ele próprio se acautele e deixe de expor-se a certos riscos de perda de imparcialidade - e daí os impedimentos.Dos impedimentos, ao menos um deixa de ter relação exclusiva com a exigência de imparcialidade e está preordenado também à melhor aplicação do juiz ao seu oficio, que é o de exercer outros cargos ou funções (art. 95, par., inc. 1). Esse impedimento associa-se aos deveres do magistrado (esp. art. 93, inc. VII - LOMN, art. 35 etc.) (infra, nn. 185-186).

182. vitaliciedade

A garantia constitucional de vitaliciedade consiste em assegurar ao juiz a permanência na Magistratura enquanto quiser, observadas as ressalvas contidas na própria Constituição. Ela é mais do que a mera estabilidade, que favorece de modo geral todos os servidores públicos nomeados por concurso mas não exclui sua demissão por ato da própria Administração, em processo realizado com as garantias que a Constituição oferece (art. 41, § 14). A vitaliciedade

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garante que, contra sua própria vontade, o juiz só poderá ser excluído da Magistratura por força de sentença judicial passada em julgado (art. 95, inc. I) - condenação criminal ou sentença civil proferida em processo com pedido de desconstituição da relação funcional entre o Estado e o juiz.A Lei Orgânica da Magistratura Nacional contém um dispositivo que autoriza a demissão do juiz por ato administrativo e com base em processo realizado pela própria Administração (art. 26, inc. II). Tal dispositivo colide com o art. 95, inc. I, da Constituição e, portanto, não prevalece. Quem entender que ele era compatível com a Constituição anterior dirá que não foi recebido pela vigente. Quem entender que ele já era inconstitucional (José Raimundo Gomes da Cruz) continuará afirmando sua inconstitucionalidade.A garantia da vitaliciedade não impede que, por invalidez efetiva (incapacitação física ou mental) ou presumida (setenta anos de idade), o juiz seja aposentado contra sua vontade (aposentadoria compulsória: Const., art. 93, inc. VI). Nem impede a aposentadoria ou disponibilidade por interesse público, a ser imposta mediante decisão fundamentada de dois terços do tribunal a que pertence ou ao qual esteja sujeito, em processo administrativo cercado das garantias constitucionais (art. 93, inc. VIII) e sempre sujeita ao controle jurisdicional (art. 59, inc. XXXV).Por outro lado, nem todos os juizes são amparados por essa garantia.Em primeiro lugar, dispõe a própria Constituição Federal que, em relação aos cargos iniciais de carreira, a vitaliciedade só se obterá após dois anos de exercício: durante o estágio probatório o juiz poderá perder o cargo por deliberação majoritária do tribunal a que estiver sujeito, mediante processo regular e decisão fundamentada (art. 95, inc. I), sempre sujeita ao controle jurisdicional (art. 5-, me. XXXV).Essa restrição aplica-se somente aos ocupantes de cargos iniciais de carreira. Os juizes nomeados pelo critério do quinto constitucional tornam-se vitalícios logo que empossados.Também carecem de vitaliciedade os juízes dos tribunais eleitorais, que são temporários, assegurando-lhes a Constituição a investidura mínima por dois anos e autorizando uma recondução (art. 121, § 2s).

183. inamovibilidade

Enquanto a garantia da vitaliciedade assegura a permanência do juiz no quadro da Magistratura, a de inamovibilidade resolve-se na certeza de não ser privado do cargo, ainda que para permanecer no quadro a que pertence. Contra a vontade, em princípio não pode ser aposentado, disponibilizado, removido e sequer promovido. Também essa garantia, como todas, é relativa - quer do ponto-de-vista objetivo, quer subjetivo.Ela é desde logo ressalvada, no próprio texto que a institui (art. 95, inc. II), pela possibilidade de o juiz ser removido, aposentado ou disponibilizado por interesse público. Tais medidas, que não são necessariamente tomadas em razão de infrações disciplinares (infra, n. 187), devem contar, no mínimo, com o voto do quorum qualificado de duas terças-partes do tribunal, sendo fundamentadas e precedidas de processo cercado das garantias constitucionais de estilo (art. 93, inc. VIII). As remoções compulsórias só podem importar, como é óbvio, transferência para outro cargo do mesmo nível na mesma Justiça, ou seja, cargo integrante do mesmo quadro a que pertença o juiz removido.É de duvidosa utilidade a disposição constitucional (referente à Justiça Eleitoral) estabelecendo que "os membros dos tribunais, os juízes de direito e os integrantes das juntas eleitorais, no exercício de suas funções e no que lhes for- aplicável, gozarão de plenas garantias e serão inamovíveis" (Const., art. 121, § 2Q). A inamovibilidade dos membros do Poder Judiciário estadual em exercício na Justiça Eleitoral é predicado de seu cargo efetivo mas, tanto quanto os advogados investidos em cargos eleitorais, ali eles são temporários (art. 121, § 22) e os membros das juntas eleitorais também o são porque elas mesmas são efêmeras por sua própria natureza. Sem vitaliciedade nos cargos, pouco resta de garantia a oferecer a seus ocupantes. Durante a investidura, o membro de uma junta não pode ser transferido para outra, nem o de um Tribunal Regional Eleitoral a outro. É difícil conceber outra dimensão dessa inamovibilidade.

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184. irredutibilidade de vencimentos

Expor os juízes a medidas que lhes reduzissem os vencimentos teria o significado político de expor o próprio Poder Judiciário a ameaças, humilhações ou represálias oriundas de outros Poderes. Daí a garantia da irredutibilidade de seus vencimentos, nos termos do art. 95, inc.111, da Constituição Federal. Para ser efetiva e real, em tempos de inflação essa garantia deveria impedir a corrosão do poder aquisitivo dos vencimentos, não sendo substancialmente suficiente a manutenção nominal do valor destes em moeda nacional. Essa tese, no entanto, jamais foi aceita integralmente, de modo que os magistrados viviam constantemente postulando reajustes e nem sempre obtendo-os à altura dos desgastes sofridos. De todo modo, a redução nominal sempre foi vedada.Visando a evitar interpretações que no passado ganharam corpo, a Constituição ressalva que a garantia de irredutibilidade de vencimentos dos magistrados não os libera das vinculações e regras de proporcionalidade com os vencimentos dos ocupantes de outros cargos (art. 37, incs. XI-XII), nem da incidência de impostos gerais (art. 150, inc. 11; art. 153, me. 111 e § 22, inc. 1).

185. impedimentos dos juízes (imparcialidade)

Realisticamente, o constituinte e o legislador reconhecem a necessidade de impedir que o juiz se exponha a tentações tais, que fossem capazes de pôr em xeque sua capacidade de resistir e manter-se imparcial. Daí a imposição de certos impedimentos destinados a manter o juiz distante dos centros de poder e de possíveis envolvimentos em interesses sobre os quais poderá depois ser chamado a julgar (Const., esp. art. 95, par.); e daí também a complementação desses cuidados, na lei processual, mediante vedações ao exercício da jurisdição por magistrado que se encontre em alguma dessas posições. Como se vê, são duas ordens de impedimentos, que operam em sentidos opostos, a saber: a) os impedimentos referentes a certas atividades, que o juiz não deve exercer para que possa exercer bem a jurisdição e (b) os impedimentos para o exercício da jurisdição em relação a certas causas, quando de algum modo a lei o considera indesejavelmente envolvido (CPC, art. 134: parentesco próximo, patrocínio da causa etc. - infra, nn. 506-508).A lei processual discrimina casos de suspeição do juiz (CPC, art. 134), ao lado dos casos de seu impedimento (art. 135). As duas categorias compõem-se de situações de risco de parcialidade, sendo que os casos de mera suspeição, por serem menos graves, recebem tratamento menos severo, a saber: a) o juiz não é obrigado a escusar-se de prosseguir no processo quando apenas suspeito e não impedido; b) a parte dispõe de tempo certo para alegar a suspeição, ocorrendo preclusão da faculdade de fazê-lo se o prazo se escoar in albis; c) a suspeição do juiz de primeiro grau não pode ser declarada de-oficio em grau de recurso, enquanto que o impedimento pode; d) só o impedimento constitui fundamento para a ação rescisória e a suspeição, não; etc.Em primeiro lugar, ao juiz é vedado exercer indiscriminadamente outros cargos ou funções (Const., art. 95, par., inc. 1). Ele é rigorosamente proibido de ocupar cargos em outros Poderes do Estado, o que seria fator de dependência e provável quebra da imparcialidade. Mas, precisamente porque isso não implica vinculações indesejáveis, não é impedido de ocupar um cargo de magistério - quer superior ou não, no ensino público ou privado, mas exclusivamente para a docência ou para a direção de escolas em geral (sempre, art. 95, par., inc.1).É de duvidosa constitucionalidade o disposto na Lei Orgânica da Magistratura Nacional, ao proibir que o juiz exerça cargos de qualquer natureza (pública ou privada) e incluir nessa vedação cargos técnicos de fundações, sociedades civis ou associações (ressalvadas as entidades de sua própria categoria e sem remuneração) (LOMN, art. 36, incs.l-ll). Tais limitações não constam com tanto rigor na Constituição (art. 95, par.) e entre as atividades proibidas pela Lei Orgânica da Magistratura há algumas sem tanta potencialidade de prejudicar o bom exercício da jurisdição.A proibição absoluta de receber custas ou qualquer espécie de participação em qualquer processo, a qualquer título (art. 95, par., inc. II), é o repúdio a certas remunerações que o juiz recebia em um passado não muito remoto - especialmente o juiz estadual, quando no exercício

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de competências federais (execuções fiscais da União: infra, n. 230). Esse poderia ser um fator de tentação do juiz a dar preferência aos processos que de alguma forma lhe proporcionassem vantagens imediatas.Proíbe-se também afiliação político-partidária do juiz (art. 95, par. inc. III), muito embora, obviamente, não se lhe possa impedir a vinculação ideológica a linhas políticas adotadas por algum partido ou filosofia política (Const., art. 54, inc. VIII). O que esse veto quer evitar é o comprometimento com programas partidários e com as pessoas que integram ao partido, o qual poderia chegar ao ponto de pôr o juiz num dilema entre cumprira lei e ser fiel aos compromissos assumidos com os correligionários.A Lei Orgânica da Magistratura Nacional proíbe ainda os juízes de se manifestarem, fora do processo, sobre causas pendentes ou de emitirem opiniões a respeito de atos de outro juiz - salvo, naturalmente, quando no exercício da jurisdição mesma ou em sede doutrinária ou docente (art. 36, inc. III). Manifestações inadequadas como essas, em sede inadequada, tangenciam a falta de compostura e expõem o juiz a contestações e polêmicas perniciosas à serenidade que se espera no exercício da função jurisdicional.Tal proibição não chega ao ponto de impor ao juiz um mutismo no processo mesmo, com a obsessão de evitar toda e qualquer manifestação da qual pudessem as partes inferir um possível prejulgamento da causa (o dever de diálogo entre juiz e partes no curso do processo: supra, n. 88).

186. deveres do juiz

Além de normas destinadas a preservar a imparcialidade do juiz, a Constituição Federal e a Lei Orgânica da Magistratura Nacional instituem outras com o objetivo de chama-lo à necessária aplicação ao seu oficio, para melhor eficiência. Tal é outra razão que legitima o prudente veto ao exercício indiscriminado de outros cargos ou funções (Const., art. 95, par., inc. I - supra, n. 185) uma vez que o juiz empenhado em misteres excessivos poderia não dispor de tempo material para judicar. Tal é também o significado e legitimação das exigências de observar e fazer observar prazos (LOMN, art. 35, incs. II-III), de residir na comarca (inc. V), de pontualidade e cumprimento do expediente (inc. VI), de policiar a conduta de seus funcionários e a sua própria (incs. VII-VIII) etc.Além disso, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional quer também o trato respeitoso entre juiz e demais sujeitos do processo, como são as partes, seus advogados, os membros do Ministério Público, testemunhas e auxiliares da Justiça (art. 35, inc. IV).Possíveis inconstitucionalidades à parte, a Lei Orgânica da Magistratura tem sido alvo de críticas pelos magistrados, mercê do acúmulo de impedimentos que relaciona e explicitude de deveres elementares (ou até exagerados). Espera-se que o Estatuto da Magistratura, em preparação à luz da Constituição vigente, venha a desbastar o inconstitucional e o supérfluo.

187. síntese das garantias, impedimentos e deveres

O mais elevado objetivo das disposições integrantes de um verdadeiro estatuto constitucional da Magistratura, em associação com aquelas que conferem independência ao próprio Poder Judiciário, é a oferta de condições para que o juiz, sentindo-se independente, seja fortemente motivado a atuar com imparcialidade. É verdade que, bem pensado, a imparcialidade e a serenidade para conduzir o processo e julgar a causa são predicados inerentes ao caráter de cada um, sendo ingênuo crer que elas pudessem ser asseguradas por normas de direito (Roger Perrot).Assim como existem homens dotados de extraordinários graus de dignidade e portanto extremamente resistentes às tentações a serem facciosos, também outros há que jamais mereceriam ser juízes, porque portadores de caráter, sentimentos e intenções incompatíveis com a missão de julgar.Conscientes desse quadro e das tentações a que todo ser humano está sujeito, a Constituição e a lei dispõem para o homo medius, ou seja, para aquele que nem é tão forte a ponto de resistir a

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todas as tentações; nem tão mísero e mesquinho, que os impedimentos constitucionais e legais sejam quanto a ele inoperantes. Além de estabelecer garantias e impedimentos visando a minimizar as tentações e fraquezas humanas, a ordem jurídica procura meios de, no recrutamento de juizes, ter-se presente o comportamento pregresso dos candidatos, sua conduta social e moral etc. - tudo de modo a evitar que ao Poder Judiciário tenham acesso pessoas portadoras de caráter inconveniente.Como isso nãó é possível obter de modo absoluto e sempre, quanto a esses juízes inconvenientes restam os processos e sanções disciplinares predispostos pelas leis de organização judiciária a partir dos padrões fornecidos pela própria Constituição e pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional (arts. 42 ss. - infra, n. 189).Nesse quadro, as disposições constitucionais e os rigores da Lei Orgânica da Magistratura Nacional devem ser interpretados harmoniosamente e sempre em vista do objetivo comum que é o fundamental fator legitimante de todos, a saber, a imparcialidade do juiz.

188. a independência funcional do juiz

No exercício da função jurisdicional, o juiz não está vinculado a ordens ou exigências superiores, capazes de determinar-lhe o teor dos julgamentos ou modo de conduzir processos. A própria jurisprudência, como sucessão reiterada de julgamentos coincidentes pelos tribunais, não exerce mais que mera influência intelectual nos juízes de todos os graus, os quais são sempre livres para contrariá-la. Assim livre, o juiz está sujeito exclusivamente à sua consciência e à lei. Por lei entendem-se os atos normativos em geral, que vão da Constituição da República aos simples regulamentos. Observar a lei é cumprir e fazer cumprir as normas contidas nela, que o juiz descobrirá mediante o trabalho de interpretação, partindo sempre do entendimento gramatical das palavras do texto e inserindo-as no contexto dos objetivos a atingir (supra, nn. 21, 31, 40, 51 etc.). Assumido que um dos objetivos preestabelecidos é o culto ao valor do justo, o juiz não cumpre a lei porque lei mas porque e na medida em que os textos legais apontem para soluções justas.O princípio de legalidade, penhor da liberdade, remonta à máxima legum servi omnes sumus ut liberi esse possumus. Mas, como os critérios de julgamento não residem exclusivamente no direito posto, cumprir a lei significa cumprir a ordem jurídica como um todo, levando também em conta os princípios gerais de direito, os usos-e-costumes, o contrato etc. - em suma, todas as fontes do direito acatadas no sistema (LICC, arts. 411 e 5g). Se vier a ser implantado o sistema de súmulas vinculantes, as máximas que estas enunciarem estarão inseridas no direito positivo brasileiro e, integrando o conceito amplo de lei (tanto quanto os decretos, resoluções etc), sua observância não comprometerá a independência funcional do juiz.

189. o controle da Justiça e da Magistratura

A consciência da tutela constitucional da organização judiciária (supra, n. 149) e dos valores éticos em que se legitima facilita o correto enquadramento da seríssima questão política do controle das instituições judiciárias e dos juizes. Como sucede com tantas coisas ao longo da História, a séculos de descaso ou de menor atenção sucede o risco de exageros passionais que não conduzem a bons resultados. Por conta de séculos de irresponsabilidade dos juizes, ou de sua imperfeita responsabilidade, vem sendo ultimamente proposto um regime de invasão do Poder Judiciário brasileiro mediante a intromissão de sujeitos estranhos a ele, supostamente com o objetivo de corrigir-lhe conhecidas mazelas. A boa solução não reside nisso, contudo. Não se desconhece que há setores da Justiça brasileira em que a atuação de seus membros tem estado muito abaixo dos padrões desejáveis, seja pelo aspecto da eficiência profissional, seja em razão de comprometimentos incompatíveis com a dignidade do cargo, seja ainda por conta de imprudentes aproximações com litigantes notórios e aceitação de favores espúrios. Sabe-se ainda da relativa impunidade que, mercê da insuficiência dos mecanismos atuais de controle, atavicamente prepondera justamente onde mais seria necessária a repressão. São também conhecidas, por outro lado, as técnicas de controle inter-órgãos dos Poderes do Estado, que

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fazem parte das fórmulas de equilíbrio entre eles mas não podem chegar ao ponto de comprometer a independência dos agentes da jurisdição em face dos demais Poderes (Karl Lõwenstein). Com esses dados e desde que com eles concorra a vontade política de mudar e mudar sem passionalismos, é possível chegar a bons resultados. O importante é, eliminando-se a impunidade, criar clima de responsabilidade para o cumprimento do dever e repúdio aos atos indignos.Para tanto, é preciso o concurso de providências dos três Poderes do Estado, especialmente do Legislativo. Dele se espera o diálogo intenso com os juizes, com o Ministério Público e com entidades representativas da população e da comunidade dos advogados, especialmente a Ordem dos Advogados do Brasil, o Instituto dos Advogados Brasileiros, o Instituto Brasileiro de Direito Processual, a Escola Nacional da Magistratura etc., na busca de soluções adequadas, que necessariamente se situarão em quatro planos distintos: a) definição realista e rigorosa dos deveres e impedimentos do magistrado, em face das exigências de âmbito nacional e peculiaridades locais, volume de serviço etc.; b) disposições severas e adequadas de direito substancial disciplinar, com definição de infrações e cominação de penalidades; c) normas de um processo disciplinar a ser instaurado por iniciativa do Poder Judiciário mesmo ou de entidades idôneas e representativas, como as Casas do Legislativo, o Ministério Público, a Ordem dos Advogados do Brasil, sindicatos etc. e realizado com publicidade geral a fim de que a opinião pública tenha acesso ao que nele se faz; d) uma estrutura de órgãoscensórios, localizados nos tribunais de todas as Justiças, cada qual competente para julgamento dos juízes que lhe são sujeitos - todos encimados por um órgão de cúpula, composto de ministros do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores da União, com competência recursal e poder de avocação de qualquer processo disciplinar.O ponto polêmico é o da composição dos órgãos disciplinares. Sabe-se que em países como a Itália e França existem os Conselhos Superiores da Magistratura, de formação extremamente heterogênea e presidida pelo Presidente da República. Na França, todo o sistema judiciário reporta-se ao Ministério da Justiça, não desfrutando a Justiça da condição de Poder.O Conseil supérieur de la magistrature tem doze componentes, entre os quais o Presidente da República, o Ministro da Justiça (que de fato exerce a presidência), seis representantes dos magistrados, um conselheiro do Estado e três personalidades externas (estranhas ao Parlamento e à ordem judiciária) (Const., art. 65, al. 3 e 4). Na Itália, integram o Consiglio superiore della Magistratura o Presidente da República, o Primeiro Presidente e o Procurador-Geral da Corte de Cassação (membros natos), vinte membros eleitos por toda a categoria dos magistrados ordinários e outros dez pelo Parlamento, entre professores universitários de direito e advogados com mais de quinze anos de exercício (Const. it., art. 104).Tais sistemas não têm produzido bons resultados e a opinião generalizada é de que eles acabaram por ser uma amarga decepção (Luiz Flávio Gomes). Os conselhos acabam por ser verdadeiros órgãos do Governo dentro da Magistratura, influenciando indevidamente no recrutamento e promoção de juizes, desfigurando julgamentos em matéria disciplinar segundo conveniências espúrias, impondo soluções de modo arbitrário e que não consultam aos interesses da Justiça etc. No Brasil, um órgão heterogêneo como esses seria um verdadeiro cavalo de Tróia, a levar para dentro do Poder Judiciário, com poder de decisão e intimidação, pessoas sem a formação ética preponderante entre juizes, escolhidos sem uma necessária depuração e possivelmente dotados de habilidade e malícia suficientes a inquinar de corrupção os organismos cuja lisura eles supostamente viriam a controlar. É notória a corrupção dos mais notórios críticos do Poder Judiciário na atualidade brasileira. Daí a conveniência de que os órgãos censórios da Magistratura sejam compostos exclusivamente por membros do próprio Poder Judiciário. Falta ainda muito em nossa experiência, para que se possa com honestidade afirmar a falência do autocontrole e necessidade de inserir outras pessoas. Ao Legislativo compete elaborar leis capazes de impor um controle interno muito severo e marcado pela publicidade - fator capaz de assegurar um contínuo controle pela opinião pública, com a colaboração da imprensa. Tal é a participação que desse Poder se espera, democraticamente legítima e compatível com a independência entre os Poderes do Estado.

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190. escolas da Magistratura

O bom exemplo haurido de experiências já desenvolvidas em outros países - notádamente o da Ecole Nationale de Ia Magistrature - levou o constituinte de 1988 a inserir no estatuto constitucional da Magistratura a exigência de implantação de "cursos oficiais de preparação e aperfeiçoamento de magistrados, como requisitos para ingresso e promoção na carreira " (art. 96, inc. IV). Já existe em funcionamento a Escola Nacional da Magistratura e em alguns Estados as escolas são uma realidade - merecendo especiais louvores a do Estado do Rio de Janeiro, implantada pelo Tribunal de Justiça e conduzida com abnegação e eficiência por magistrados idealistas. Mas nem todos os Estados se vêm dedicando com empenho a essa idéia mais que salutar. Ainda não está implantado um sistema nacional de escolas da Magistratura e aquela disposição constitucional pouco mais é do que motivo para boas esperanças de depuração seletiva e de aperfeiçoamento de magistrados.55. O projeto de lei complementar enviado ao Congresso Nacional no ano de 1992 com vista à edição do Estatuto da Magistratura Nacional, propõe a instituição de um Centro Nacional de Estudos Judiciários, ao qual competiria, por sua vez, a institucionalização da Escola Nacional da Magistratura (arts. 76-77).

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