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Campinas, 8 a 14 de agosto de 2016 6 7 m estudo sobre a representa- ção do maravilhoso – um apa- nhado de seres, povos, ilhas e países fantásticos – no imagi- nário medieval e renascentista, mostra como a visão de mundo pelo homem vai se modificando ao longo do período, vin- do inclusive a se tornar, posteriormente, uma justificativa para o racismo e a escravidão. “Um maravilhoso imaginário” é o título da dissertação de mestrado do historiador Leo- nardo Meliani Velloso, que inclui uma minu- ciosa análise da cartografia medieval como receptáculo deste imaginário. A pesquisa teve a orientação do professor Paulo Celso Miceli, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Leonardo Meliani aborda os chamados livros de maravilha, ou mirabilia (do verbo mirar), do final da Idade Média, que estão inseridos na antiga tradição de descrição de lugares fantásticos localizados nos extremos do mundo conhecido. “Eu analiso especial- mente dois livros, As Viagens de Jean de Man- deville e o Libro del Conosçimiento (ambos do século 14), que trazem conteúdos similares, mas intenções diferentes. O primeiro é um relato de viagens e, o segundo, um livro de geografia, que se propõe a descrever todos os países conhecidos até então, com seus respectivos brasões – esta obra tem servido como referência para estudos em heráldica.” O historiador também procura traçar as origens da representação do maravilhoso conversando com obras da Antiguidade (a exemplo de a História, de Heródoto, e Histó- ria Natural, de Plínio, o Velho) e da alta Idade Média (como as Etimologias de Santo Isidoro de Sevilha). “Os livros de maravilha trazem o blêmio (homem sem cabeça e o rosto no pei- to) de Heródoto, o cinocéfalo (homem com cabeça de cachorro), a Fênix, o grifo (cabe- ça e asas de águia e corpo de leão) e outras criaturas da mitologia grega. Existe uma per- manência deste imaginário que chega até as narrativas de viagem.” Meliani reservou um capítulo para um histórico da cartografia produzida no perío- do, seguindo a divisão em três grupos de mapas proposta pelo historiador português Luís de Albuquerque: as representações es- quemáticas, o mapa T/O e os enciclopédicos (grandes atlas do Renascimento). “Os mapas esquemáticos dividem o mundo por zonas climáticas (os polos, os trópicos e o círculo equinocial). Havia a crença de que era habi- tável apenas a zona temperada do norte, en- tre o círculo equinocial e a região polar, onde estava o mundo conhecido; a zona tempera- da do sul também seria habitável, mas desde que se atravessasse a zona tórrida (do Equa- dor), algo tido como impossível.” O mapa T/O, segundo o pesquisador, também é esquemático e apresenta a Terra dividida nos três continentes então conhe- cidos – Europa, Ásia e África – cortados ao meio pelo Mediterrâneo e os rios que, acre- ditava-se, nasciam no ‘Paraíso Terrestre’ e alcançavam o Mar Oceano. “Os rios, o Me- diterrâneo e o Mar Oceano formam um T e um O. Além disso, o T forma uma cruz, refle- tindo forte representação teológica da Terra, dada por Santo Agostinho e outros teólogos da Idade Média. É comum, também, ver os três continentes com os nomes de Sem, Cam e Jafé, ou seja, o mundo tripartido entre os filhos de Noé.” O autor do estudo segue explicando que os mapas enciclopédicos ainda carregam esta característica esquemática (com o Mar Oce- ano e a representação do T rearranjada na figura de Cristo), mas já procurando repre- Cartografia de maravilhas O historiador Leonardo Meliani Velloso, autor da pesquisa: “Tudo isso que vemos representado nos mapas e na literatura de viagem compõe um imaginário que se propaga ao longo da Idade Média e pelo Renascimento” Dissertação aborda a representação do maravilhoso no imaginário medieval e renascentista sentar tudo o que se conhecia sobre o mun- do. “Vemos representações mais detalhadas da Europa, África, Ásia e de cidades, pessoas famosas, povos, figuras mitológicas e cenas religiosas. É comum encontrar Jerusalém do centro do mapa, devido ao imaginário de que o centro espiritual do mundo, a ‘Terra Prometida’, deveria ser também o centro do mundo físico.” Outra representação comum apontada por Leonardo Meliani é a do “Paraíso Terres- tre”, tanto nos mapas como na literatura de viagem. “Há um debate constante sobre este imaginário: alguns representam o paraíso com as figuras de Adão, Eva e a árvore do fru- to proibido; outros não entendem o paraíso como um lugar maravilhoso e perfeito. A sua localização é mais um motivo de debate: se para a teologia cristã o paraíso está a leste, as tradições pagãs europeias, como a escandina- va, representam este lugar maravilhoso, fértil e de enormes fortunas a oeste – a exemplo do mito da ilha de Hy-Brazil.” Entretanto, com a chegada do homem europeu à América no final do século 15, há um deslocamento do “Paraíso Terrestre” da Ásia para a o novo continente. “O horizonte maravilhoso é deslocado, incluindo outros mitos, como o ‘País das Amazonas’, de quan- do sir Walter Raleigh chegou à Amazônia e registrou em seu diário a visão dos índios de cabelos longos e peles lisas, portando arco e flecha. Da mesma forma, a visão do euro- peu ao chegar à América é de um lugar fértil, rico em frutas, fauna e flora. Tudo isso que vemos representado nos mapas e na litera- tura de viagem compõe um imaginário que se propaga ao longo da Idade Média e pelo Renascimento.” AS CINCO TRADIÇÕES A partir do terceiro capítulo, Meliani pas- sa a cumprir a intenção do seu estudo: mos- trar como este imaginário vai se modificando ao longo do período, com suas permanências e diferenças. “Foco as cinco tradições cul- turais que desenham este imaginário: a tra- dição clássica (greco-romana), germânico- -escandinava, gaélico-bretã, hebraico-cristã e a oriental. Da tradição clássica trabalho com pensadores como Heródoto, Hesíodo e Plí- nio, o Velho. Plínio escreveu a obra História Natural, que foi de grande influência para As Etimologias de Santo Isidoro de Sevilha, um livro lido ao longo de toda a Idade Média, o que significa dizer que este conhecimento da antiguidade se propaga, ainda que existam modificações ao longo do período.” O pesquisador vê os escandinavos, que depois seriam os vikings a invadir a Euro- pa Continental e as Ilhas de Bretanha, e os germânicos do norte da Europa, como povos com similaridades culturais que o levaram a agrupá-los na tradição germânico-escandi- nava. Pelo mesmo motivo, reuniu todos os povos da Gália e da Bretanha na tradição gaé- lico-bretã. “Já a tradição hebraico-cristã é de imensa importância, visto que a teologia cris- tã marca todo o imaginário do período. Por último, temos a tradição oriental, agrupando povos do Oriente Médio e Extremo Oriente. Poucas obras do mundo oriental chegaram à Europa, mas mais relevantes são as ima- gens que os ocidentais faziam do Oriente: seja do sarraceno ou árabe como inimigo da cristandade, seja do Extremo Oriente como horizonte onde se encontrariam tesouros e o paraíso terrestre.” De seu apanhado de representações do maravilhoso nestas tradições culturais, o autor da dissertação destaca a figura do gi- gante, que habita o imaginário do homem do período. “Vamos encontrar o gigante nas mitologias escandinava e grega, nos livros de viagem do final da Idade Média e do Re- nascimento e mesmo em obras de literatu- ra como Gargântua e Pantagruel, de François Rabelais. Também vemos os homens com particularidades físicas: além do blêmio e do cinocéfalo, podemos encontrar um homem de orelhas muito grandes, outro com o pé enorme que o protege do sol, o hermafrodi- ta, a sereia. E os animais fantásticos: o grifo, o dragão, a serpente marinha e a quimera (mistura de animais diversos).” Meliani abordou ainda os lugares fabu- losos como o País das Amazonas e a Hiper- bórea – país setentrional onde as pessoas viveriam centenas de anos. “Exemplo inte- ressante é o reino de Preste João, um país cristão no meio do mundo muçulmano. Durante a Idade Média, uma carta de Preste João chega a alguns reis europeus, deixan- do-os fascinados, especialmente os portu- gueses, que enviam diversas expedições, to- das mal sucedidas, para encontrar um reino que seria riquíssimo, onde o trono do rei era em ouro maciço e cravejado de joias – a idealização do reino cristão perfeito.” O PORQUÊ DA REPRESENTAÇÃO Ao procurar entender o porquê da re- presentação destes lugares fabulosos, o historiador conclui que, para o imaginário LUIZ SUGIMOTO [email protected] Foto: Antonio Scarpinetti Imagens: Divulgação Publicação Dissertação: “Um maravilhoso ima- ginário” Autor: Leonardo Meliani Velloso Orientador: Paulo Celso Miceli Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) medieval, não existia diferença entre o que hoje sabemos ser real e o fantasioso. “O ma- ravilhoso era tudo aquilo que fascinava. Não se diferenciava a Fênix da águia, eram duas aves; o grifo era um animal tão fantástico quanto o elefante; Prestes João era tão im- pressionante quando o imperador Khan de Catai – hoje sabemos que os Khan da China existiram, ainda que não fossem como des- critos por Marco Polo. Importava que fos- sem figuras maravilhosas.” Voltando aos seus dois documentos principais, As Viagens de Jean de Mandeville e o Libro del Conosçimiento, Leonardo Meliani divide as descrições em três partes: homens e mulheres, animais e plantas, e cenários. “Em relação aos povos, descreve-se o que era diferente. Jean de Mandeville, ao chegar à Núbia, escreve que ‘os núbios são cristãos, porém negros’; não precisava descrever a religião dos núbios, pois seu leitor era um cristão igual, o diferente estava na pele. Da mesma forma, ao descrever os gregos, ele não vai se ater à fisionomia, mas ao cristia- nismo ortodoxo e seus rituais diferentes. Em lugares onde as pessoas andavam nuas, destacava-se a nudez.” O pesquisador vê na descrição do que é diferente uma questão de alteridade, sus- tentando-se no conceito de François Hartog sobre as duas formas de descrever o outro: a inversão ou a diferenciação. “No caso, o outro é o oposto de mim (anti-A) ou o dife- rente de mim (A e B). Percebe-se ainda uma gradação. Jean de Mandeville, ao descrever povos similares, começa pelos ‘cristãos im- perfeitos’ como os gregos, que celebravam a missa de forma diferente. Em seguida, o exemplo dos sarracenos, que eram de outra religião e a seguiam com retidão, podendo ser convertidos em bons cristãos. E, no úl- timo grau de descrição positiva, o Khan de Catai, que apesar de não ser cristão, era ad- mirável e um exemplo a ser seguido pelos cristãos.” Por outro lado, outros povos não me- reciam a empatia de Jean de Mandeville, o que leva Leonardo Meliani a recorrer a um conceito de Todorov, sobre ‘o outro’ posi- tivo e ‘o outro’ negativo. “Mandeville des- creve alguns povos muçulmanos, como os beduínos, enquanto bárbaros em quem não se podia confiar; os povos antropófagos já caem no monstruoso e não são tratados como homens, ficando ao nível dos blêmios e dos cinocéfalos. Colombo, quando chega à América, vê o índio bom, possível de ser ca- tequizado, e o índio mau, a ser escravizado. Se o negro era tão diferente, um ser inferior, para os europeus era justificável escravizá- -lo. Esses discursos de negatividade e mons- truosidade vão ser utilizados para justificar outros discursos que se propagam para mui- to além do imaginário, como a escravidão e o racismo. A ideia do meu estudo é justa- mente entender como este imaginário está representado e o que ele acarreta.” O historiador Leonardo Meliani sustenta que embora os livros de maravilha fossem lidos por uma elite intelectual da corte e do clero, o imaginário ali descrito também afetava a população de forma geral. “Em O Queijo e os Vermes, famoso livro de micro-história, Carlo Guinzburg conta sobre Menocchio, um moleiro perseguido pela Inquisição, que possuía vários livros, entre eles As Viagens de Jean de Man- deville. Menocchio trabalhava em um moinho, o que atesta que os livros de maravilha circula- vam entre a população comum.” Foram registradas aproximadamente 250 cópias do livro de Mandeville espalhadas pela Europa, em latim, inglês, francês, espanhol, italiano e, com o advento da imprensa, a obra se tornou ainda mais frequente. “É verdade que havia poucas pessoas letradas, mas te- mos a questão da oralidade, que é bastante forte na Idade Média. O próprio Marco Polo ditou as suas viagens para um escriba. O via- jante voltava e simplesmente contava sobre os lugares que visitou, descrevendo suas maravi- lhas, como fazemos hoje.” Meliani pôde confirmar a importância da oralidade medieval nos próprios livros de maravilha, sendo que a descrição do autor era tomada como autoridade, sem contestação. “Chegando à ilha de Lango, Mandeville afirma que ali está um dragão, a filha de Hipócrates, convertida na criatura mitológica: ‘Assim me disseram, pois eu não vi’, acrescenta. Não se contestava a oralidade do outro: ele não pre- cisava ver o dragão, simplesmente porque lhe disseram que estava ali. Da mesma forma, descreveu a Fênix conforme os sacerdotes lhe contaram: que a ave fabulosa surgia de 500 em 500 anos e se deixava arder em bra- seiro, para em seguida renascer das próprias cinzas.” A propósito, o pesquisador explica que há um debate se Jean de Mandeville percorreu tantos lugares, sendo quase unânime que não, e que sua própria identidade é debatida, com a hipótese de que ele seria o alter ego de outro escritor, François de Bourgogne. “Mandeville se apresenta como um cavalheiro inglês e como tal era lido. Já no primeiro capítulo de As Via- gens..., afirma que descreverá o caminho para Jerusalém: sai da Inglaterra, atravessa a Eu- ropa, descreve o Oriente Médio e segue além da Terra Santa, chegando à China e a ilhas do Extremo Oriente – é uma viagem praticamente impossível para a época.” Segundo Leonardo Meliani, era comum que os autores de livros de viagem descrevessem o que realmente viram e, também, fizessem compilações de outras obras. “Durante a Idade Média, eram práticas comuns se apropriar de outros textos ou utilizar o nome de autores já reconhecidos para valorizar o que se escrevia. O Khan de Catai de Jean de Mandeville é prati- camente uma cópia do imperador descrito por Marcolo Polo. O Libro del Conosçimiento tem intenção enciclopédica, descrevendo cada ci- dade com seu brasão do lado, mas os países são os mesmos e ambos os livros mencionam o reino de Preste João e Khan da China, assim como povos e monstros parecidos. O autor do Libro é anônimo, mas a escrita arcaica e as có- pias limitadas confirmam a hipótese de que se trata de um monge espanhol.” Livros circulavam entre os iletrados Na sequência, os mapas de Ebstorf, Hereford e T/O (acima): estudo apresenta um histórico da cartografia À esquerda, cinocéfalo, blêmio, homem de pé gigante e homem de orelhas imensas; acima, Fênix Imagens: Divulgação

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Page 1: Campinas, 8 a 14 de agosto de 2016 Cartografia de maravilhas · registrou em seu diário a visão dos índios de cabelos longos e peles lisas, portando arco e flecha. Da mesma forma,

Campinas, 8 a 14 de agosto de 2016Campinas, 8 a 14 de agosto de 2016

6Campinas, 8 a 14 de agosto de 2016Campinas, 8 a 14 de agosto de 2016

7

m estudo sobre a representa-ção do maravilhoso – um apa-nhado de seres, povos, ilhas e países fantásticos – no imagi-nário medieval e renascentista,

mostra como a visão de mundo pelo homem vai se modificando ao longo do período, vin-do inclusive a se tornar, posteriormente, uma justificativa para o racismo e a escravidão. “Um maravilhoso imaginário” é o título da dissertação de mestrado do historiador Leo- nardo Meliani Velloso, que inclui uma minu-ciosa análise da cartografia medieval como receptáculo deste imaginário. A pesquisa teve a orientação do professor Paulo Celso Miceli, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

Leonardo Meliani aborda os chamados livros de maravilha, ou mirabilia (do verbo mirar), do final da Idade Média, que estão inseridos na antiga tradição de descrição de lugares fantásticos localizados nos extremos do mundo conhecido. “Eu analiso especial-mente dois livros, As Viagens de Jean de Man-deville e o Libro del Conosçimiento (ambos do século 14), que trazem conteúdos similares, mas intenções diferentes. O primeiro é um relato de viagens e, o segundo, um livro de geografia, que se propõe a descrever todos os países conhecidos até então, com seus respectivos brasões – esta obra tem servido como referência para estudos em heráldica.”

O historiador também procura traçar as origens da representação do maravilhoso conversando com obras da Antiguidade (a exemplo de a História, de Heródoto, e Histó-ria Natural, de Plínio, o Velho) e da alta Idade Média (como as Etimologias de Santo Isidoro de Sevilha). “Os livros de maravilha trazem o blêmio (homem sem cabeça e o rosto no pei-to) de Heródoto, o cinocéfalo (homem com cabeça de cachorro), a Fênix, o grifo (cabe-ça e asas de águia e corpo de leão) e outras criaturas da mitologia grega. Existe uma per-manência deste imaginário que chega até as narrativas de viagem.”

Meliani reservou um capítulo para um histórico da cartografia produzida no perío- do, seguindo a divisão em três grupos de mapas proposta pelo historiador português Luís de Albuquerque: as representações es-quemáticas, o mapa T/O e os enciclopédicos (grandes atlas do Renascimento). “Os mapas esquemáticos dividem o mundo por zonas climáticas (os polos, os trópicos e o círculo equinocial). Havia a crença de que era habi-tável apenas a zona temperada do norte, en-tre o círculo equinocial e a região polar, onde estava o mundo conhecido; a zona tempera-da do sul também seria habitável, mas desde que se atravessasse a zona tórrida (do Equa-dor), algo tido como impossível.”

O mapa T/O, segundo o pesquisador, também é esquemático e apresenta a Terra dividida nos três continentes então conhe-cidos – Europa, Ásia e África – cortados ao meio pelo Mediterrâneo e os rios que, acre-ditava-se, nasciam no ‘Paraíso Terrestre’ e alcançavam o Mar Oceano. “Os rios, o Me-diterrâneo e o Mar Oceano formam um T e um O. Além disso, o T forma uma cruz, refle-tindo forte representação teológica da Terra, dada por Santo Agostinho e outros teólogos da Idade Média. É comum, também, ver os três continentes com os nomes de Sem, Cam e Jafé, ou seja, o mundo tripartido entre os filhos de Noé.”

O autor do estudo segue explicando que os mapas enciclopédicos ainda carregam esta característica esquemática (com o Mar Oce-ano e a representação do T rearranjada na figura de Cristo), mas já procurando repre-

Cartografia de maravilhas

O historiador Leonardo Meliani Velloso, autorda pesquisa: “Tudo issoque vemos representadonos mapas e na literaturade viagem compõeum imaginário que sepropaga ao longo da Idade Média e pelo Renascimento”

Dissertação aborda a representação do maravilhoso no imaginário medieval e renascentista

sentar tudo o que se conhecia sobre o mun-do. “Vemos representações mais detalhadas da Europa, África, Ásia e de cidades, pessoas famosas, povos, figuras mitológicas e cenas religiosas. É comum encontrar Jerusalém do centro do mapa, devido ao imaginário de que o centro espiritual do mundo, a ‘Terra Prometida’, deveria ser também o centro do mundo físico.”

Outra representação comum apontada por Leonardo Meliani é a do “Paraíso Terres-tre”, tanto nos mapas como na literatura de viagem. “Há um debate constante sobre este imaginário: alguns representam o paraíso com as figuras de Adão, Eva e a árvore do fru-to proibido; outros não entendem o paraíso como um lugar maravilhoso e perfeito. A sua localização é mais um motivo de debate: se para a teologia cristã o paraíso está a leste, as tradições pagãs europeias, como a escandina-va, representam este lugar maravilhoso, fértil e de enormes fortunas a oeste – a exemplo do mito da ilha de Hy-Brazil.”

Entretanto, com a chegada do homem europeu à América no final do século 15, há um deslocamento do “Paraíso Terrestre” da Ásia para a o novo continente. “O horizonte maravilhoso é deslocado, incluindo outros mitos, como o ‘País das Amazonas’, de quan-

do sir Walter Raleigh chegou à Amazônia e registrou em seu diário a visão dos índios de cabelos longos e peles lisas, portando arco e flecha. Da mesma forma, a visão do euro-peu ao chegar à América é de um lugar fértil, rico em frutas, fauna e flora. Tudo isso que vemos representado nos mapas e na litera-tura de viagem compõe um imaginário que se propaga ao longo da Idade Média e pelo Renascimento.”

AS CINCO TRADIÇÕESA partir do terceiro capítulo, Meliani pas-

sa a cumprir a intenção do seu estudo: mos-trar como este imaginário vai se modificando ao longo do período, com suas permanências e diferenças. “Foco as cinco tradições cul-turais que desenham este imaginário: a tra-dição clássica (greco-romana), germânico--escandinava, gaélico-bretã, hebraico-cristã e a oriental. Da tradição clássica trabalho com pensadores como Heródoto, Hesíodo e Plí-nio, o Velho. Plínio escreveu a obra História Natural, que foi de grande influência para As Etimologias de Santo Isidoro de Sevilha, um livro lido ao longo de toda a Idade Média, o que significa dizer que este conhecimento da antiguidade se propaga, ainda que existam modificações ao longo do período.”

O pesquisador vê os escandinavos, que depois seriam os vikings a invadir a Euro-pa Continental e as Ilhas de Bretanha, e os germânicos do norte da Europa, como povos com similaridades culturais que o levaram a agrupá-los na tradição germânico-escandi-nava. Pelo mesmo motivo, reuniu todos os povos da Gália e da Bretanha na tradição gaé- lico-bretã. “Já a tradição hebraico-cristã é de imensa importância, visto que a teologia cris-tã marca todo o imaginário do período. Por último, temos a tradição oriental, agrupando povos do Oriente Médio e Extremo Oriente. Poucas obras do mundo oriental chegaram à Europa, mas mais relevantes são as ima-gens que os ocidentais faziam do Oriente: seja do sarraceno ou árabe como inimigo da cristandade, seja do Extremo Oriente como horizonte onde se encontrariam tesouros e o paraíso terrestre.”

De seu apanhado de representações do maravilhoso nestas tradições culturais, o autor da dissertação destaca a figura do gi-gante, que habita o imaginário do homem do período. “Vamos encontrar o gigante nas mitologias escandinava e grega, nos livros de viagem do final da Idade Média e do Re-nascimento e mesmo em obras de literatu-ra como Gargântua e Pantagruel, de François

Rabelais. Também vemos os homens com particularidades físicas: além do blêmio e do cinocéfalo, podemos encontrar um homem de orelhas muito grandes, outro com o pé enorme que o protege do sol, o hermafrodi-ta, a sereia. E os animais fantásticos: o grifo, o dragão, a serpente marinha e a quimera (mistura de animais diversos).”

Meliani abordou ainda os lugares fabu-losos como o País das Amazonas e a Hiper-bórea – país setentrional onde as pessoas viveriam centenas de anos. “Exemplo inte-ressante é o reino de Preste João, um país cristão no meio do mundo muçulmano. Durante a Idade Média, uma carta de Preste João chega a alguns reis europeus, deixan-do-os fascinados, especialmente os portu-gueses, que enviam diversas expedições, to-das mal sucedidas, para encontrar um reino que seria riquíssimo, onde o trono do rei era em ouro maciço e cravejado de joias – a idealização do reino cristão perfeito.”

O PORQUÊDA REPRESENTAÇÃOAo procurar entender o porquê da re-

presentação destes lugares fabulosos, o historiador conclui que, para o imaginário

LUIZ [email protected]

Foto: Antonio Scarpinetti

Imagens: Divulgação

Publicação

Dissertação: “Um maravilhoso ima-ginário”Autor: Leonardo Meliani VellosoOrientador: Paulo Celso MiceliUnidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)

medieval, não existia diferença entre o que hoje sabemos ser real e o fantasioso. “O ma-ravilhoso era tudo aquilo que fascinava. Não se diferenciava a Fênix da águia, eram duas aves; o grifo era um animal tão fantástico quanto o elefante; Prestes João era tão im-pressionante quando o imperador Khan de Catai – hoje sabemos que os Khan da China existiram, ainda que não fossem como des-critos por Marco Polo. Importava que fos-sem figuras maravilhosas.”

Voltando aos seus dois documentos principais, As Viagens de Jean de Mandeville e o Libro del Conosçimiento, Leonardo Meliani divide as descrições em três partes: homens e mulheres, animais e plantas, e cenários. “Em relação aos povos, descreve-se o que era diferente. Jean de Mandeville, ao chegar à Núbia, escreve que ‘os núbios são cristãos, porém negros’; não precisava descrever a religião dos núbios, pois seu leitor era um cristão igual, o diferente estava na pele. Da mesma forma, ao descrever os gregos, ele não vai se ater à fisionomia, mas ao cristia-nismo ortodoxo e seus rituais diferentes. Em lugares onde as pessoas andavam nuas, destacava-se a nudez.”

O pesquisador vê na descrição do que é diferente uma questão de alteridade, sus-tentando-se no conceito de François Hartog sobre as duas formas de descrever o outro: a inversão ou a diferenciação. “No caso, o outro é o oposto de mim (anti-A) ou o dife-rente de mim (A e B). Percebe-se ainda uma gradação. Jean de Mandeville, ao descrever povos similares, começa pelos ‘cristãos im-perfeitos’ como os gregos, que celebravam a missa de forma diferente. Em seguida, o exemplo dos sarracenos, que eram de outra religião e a seguiam com retidão, podendo ser convertidos em bons cristãos. E, no úl-timo grau de descrição positiva, o Khan de Catai, que apesar de não ser cristão, era ad-mirável e um exemplo a ser seguido pelos cristãos.”

Por outro lado, outros povos não me-reciam a empatia de Jean de Mandeville, o que leva Leonardo Meliani a recorrer a um conceito de Todorov, sobre ‘o outro’ posi-tivo e ‘o outro’ negativo. “Mandeville des-creve alguns povos muçulmanos, como os beduínos, enquanto bárbaros em quem não se podia confiar; os povos antropófagos já caem no monstruoso e não são tratados como homens, ficando ao nível dos blêmios e dos cinocéfalos. Colombo, quando chega à América, vê o índio bom, possível de ser ca-tequizado, e o índio mau, a ser escravizado. Se o negro era tão diferente, um ser inferior, para os europeus era justificável escravizá--lo. Esses discursos de negatividade e mons-truosidade vão ser utilizados para justificar outros discursos que se propagam para mui-to além do imaginário, como a escravidão e o racismo. A ideia do meu estudo é justa-mente entender como este imaginário está representado e o que ele acarreta.”

O historiador Leonardo Meliani sustenta que embora os livros de maravilha fossem lidos por uma elite intelectual da corte e do clero, o imaginário ali descrito também afetava a população de forma geral. “Em O Queijo e os Vermes, famoso livro de micro-história, Carlo Guinzburg conta sobre Menocchio, um moleiro perseguido pela Inquisição, que possuía vários livros, entre eles As Viagens de Jean de Man-deville. Menocchio trabalhava em um moinho, o que atesta que os livros de maravilha circula-vam entre a população comum.”

Foram registradas aproximadamente 250 cópias do livro de Mandeville espalhadas pela Europa, em latim, inglês, francês, espanhol, italiano e, com o advento da imprensa, a obra se tornou ainda mais frequente. “É verdade que havia poucas pessoas letradas, mas te-mos a questão da oralidade, que é bastante forte na Idade Média. O próprio Marco Polo ditou as suas viagens para um escriba. O via-jante voltava e simplesmente contava sobre os lugares que visitou, descrevendo suas maravi-lhas, como fazemos hoje.”

Meliani pôde confirmar a importância da oralidade medieval nos próprios livros de maravilha, sendo que a descrição do autor era tomada como autoridade, sem contestação. “Chegando à ilha de Lango, Mandeville afirma que ali está um dragão, a filha de Hipócrates, convertida na criatura mitológica: ‘Assim me disseram, pois eu não vi’, acrescenta. Não se contestava a oralidade do outro: ele não pre-cisava ver o dragão, simplesmente porque lhe disseram que estava ali. Da mesma forma, descreveu a Fênix conforme os sacerdotes

lhe contaram: que a ave fabulosa surgia de 500 em 500 anos e se deixava arder em bra-seiro, para em seguida renascer das próprias cinzas.”

A propósito, o pesquisador explica que há um debate se Jean de Mandeville percorreu tantos lugares, sendo quase unânime que não, e que sua própria identidade é debatida, com a hipótese de que ele seria o alter ego de outro escritor, François de Bourgogne. “Mandeville se apresenta como um cavalheiro inglês e como tal era lido. Já no primeiro capítulo de As Via-gens..., afirma que descreverá o caminho para Jerusalém: sai da Inglaterra, atravessa a Eu-ropa, descreve o Oriente Médio e segue além da Terra Santa, chegando à China e a ilhas do Extremo Oriente – é uma viagem praticamente impossível para a época.”

Segundo Leonardo Meliani, era comum que os autores de livros de viagem descrevessem o que realmente viram e, também, fizessem compilações de outras obras. “Durante a Idade Média, eram práticas comuns se apropriar de outros textos ou utilizar o nome de autores já reconhecidos para valorizar o que se escrevia. O Khan de Catai de Jean de Mandeville é prati-camente uma cópia do imperador descrito por Marcolo Polo. O Libro del Conosçimiento tem intenção enciclopédica, descrevendo cada ci-dade com seu brasão do lado, mas os países são os mesmos e ambos os livros mencionam o reino de Preste João e Khan da China, assim como povos e monstros parecidos. O autor do Libro é anônimo, mas a escrita arcaica e as có-pias limitadas confirmam a hipótese de que se trata de um monge espanhol.”

Livros circulavam entre os iletrados

Na sequência, os mapas de Ebstorf, Hereford e T/O (acima): estudo apresenta um históricoda cartografi a

À esquerda, cinocéfalo, blêmio, homem de pé gigante e homem de orelhas imensas; acima, Fênix

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