peles de si, peles de outro, peles de outrora: a...

18
Ano 2 | Nº 7 | Nov 2013 ISSN 2316-8102 PELES DE SI, PELES DE OUTRO, PELES DE OUTRORA: A FIGURAÇÃO DO ARTISTA ENFERMO EM "O HOMEM VERMELHO", DE MARCELO BRAGA por André Masseno Cena de O homem vermelho de Marcelo Braga. Foto: Renato Mangolin No thing is found. All in cell has been Shaken down. Paul Mariah Représenter la maladie, c’est figurer à la fois un fragment de vie qui résiste et un fragment de mort, cette mort qui annonce par là, dans une apparition spectrale quoique sans équivoque, son irrépressible emprise sur le vivant. Paul Ardenne

Upload: dodan

Post on 10-Nov-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

 

   

Ano 2 | Nº 7 | Nov 2013

ISSN 2316-8102

PELES DE SI, PELES DE OUTRO, PELES DE OUTRORA: A

FIGURAÇÃO DO ARTISTA ENFERMO EM "O HOMEM

VERMELHO", DE MARCELO BRAGA por André Masseno

Cena de O homem vermelho de Marcelo Braga. Foto: Renato Mangolin

No thing is found.

All in cell has been

Shaken down.

Paul Mariah

Représenter la maladie, c’est figurer à la fois un fragment de vie qui résiste et un fragment de mort, cette mort

qui annonce par là, dans une apparition spectrale quoique sans équivoque, son irrépressible emprise sur le

vivant.

Paul Ardenne

 

   

Um artista adoece. Assim como qualquer outro sujeito, e dependendo da enfermidade,

o artista sente-se impedido de produzir: a dor não lhe deixa manter a sua criação em

constância. O corpo envolve-se com a experiência dolorosa de tal forma que pode ocorrer um

hiato, uma parada forçada. Surge uma lacuna que, em momentos de convalescença ou de

ausência de dor, o artista tenta superar ao produzir mais, afirmando enfaticamente a sua

condição de vivente por meio de novas obras – ainda que sejam sobre a dor e sua

enfermidade: companheiras indesejadas, porém presentes, e com quem, a partir de então, o

artista enfermo precisará aprender a prosseguir.

O tempo acaba por se dividir em dois: um antes e depois do surgimento da

enfermidade; um antes e depois da dor. Além disso, apresentam-se duas imagens polarizadas

de si: o sujeito saudável frente a frente com o sujeito enfermo. O artista encontra-se em um

acerto de contas consigo mesmo, deparando-se com suas (novas) possibilidades e (novas)

limitações. E, para isso, terá que continuar a ser producente, sobretudo, para si mesmo. A

experiência dolorosa transmuta-se em vivência e jogo artísticos. O espaço privado (da dor) do

artista é redimensionado no espaço público da obra de arte.

Com muita dor. Sinto os olhos como se estivessem saltando da minha cabeça. Os músculos do pescoço estão tão tensos que estão me estrangulando. E minhas têmporas e testas batendo como um tambor. Vicodin não ajuda muito. Se eu pudesse tomar algo mais forte, um Demerol. É difícil trabalhar com este desconforto. Que espécie de trabalho eu faria sob o efeito de Demerol? Quem se importa? (FLANAGAN, 2000: 62)

A passagem acima evidencia a luta de um artista entre os efeitos de sua enfermidade e

o desejo de produzir. A citação pertence ao livro The pain journal [Diário da dor], de Bob

Flanagan, artista performático e escritor norte-americano que manteve um diário sobre a sua

enfermidade durante seus últimos dias de vida, de novembro de 1994 até meados de

dezembro do ano seguinte. Portador de fibrose cística, Bob Flanagan conviveu com uma

doença hereditária e incurável, que origina a produção de uma quantidade excessiva de muco,

que se acumula geralmente nos pulmões e obstrui a passagem de ar, tornando a respiração

difícil e ocasionando infecções pulmonares. A maioria das pessoas que sofre dessa doença

morre na infância ou não ultrapassa a faixa etária dos vinte anos. Bob Flanagan, contudo,

viveu até os 42 anos [1].

Bob Flanagan pertence ao vasto rol de artistas do século anterior que transformaram

suas enfermidades em temas de suas obras: Frida Kahlo compôs autorretratos onde apareciam

 

   

seus colares ortopédicos; Hannah Wilke elaborou nus fotográficos que registravam a mudança

diária de sua bela aparência física devido aos procedimentos do tratamento quimioterápico

contra o câncer [2]; Hervé Guibert escreveu romances sobre o viver com HIV/AIDS [3],

assim como o coreógrafo Bill T. Jones criou espetáculos em torno dessa condição [4]. Estes

artistas, salvaguardando suas peculiaridades, elaboravam figurações de si que iam contra a

imagem estigmatizada do sujeito enfermo como improdutivo e entregue à dor de sua doença.

Artistas que afirmavam, em contraponto, o poder de continuar (a viver) produzindo, apesar da

convivência dolorosa com suas enfermidades.

A complexidade da relação entre dor, doença e experiência pode ser entrevista na

produção desses artistas, que apresentam criticamente os contextos cultural e biomédico

daquela. Por um lado, suas obras colocam o observador em confronto com o legado de uma

modernidade que exigia dos corpos, por meio de sistemas coercitivos, maior produtividade

dentro de um sistema utilitário que tinha como força-motriz lemas como “no pain, no gain”;

por outro, fazem o observador se deparar com o seu próprio modo de ver a dor, transformada

em tabu contemporâneo, em que a lei é sair ileso das experiências possivelmente dolorosas,

além de ocultar a presença do corpo enfermo na esfera pública. Desde os idos do século XX,

quando os genocídios, as torturas praticadas por regimes totalitários e as epidemias se

tornaram assuntos relevantes no debate mundial, qualquer discurso sobre a dor e a

enfermidade tornou-se um problema ético e político. Os artistas que abordam a presença

dolorosa da doença como temática e experiência em diálogo com o fazer artístico parecem

reivindicar um (re)conhecimento mais arguto sobre quem enuncia tais discursos, de onde e

como é feita esta enunciação na tradicional arena social.

É importante também ressaltar que certas doenças são utilizadas rotineiramente como

metáforas, que, por sua vez, transformam erroneamente os enfermos em portadores de uma

“doença moral” (cf. SONTAG, 2007). Assim foi com a hanseníase e a tuberculose durante o

século XIX; assim continua sendo com as doenças hereditárias e também com o câncer e os

portadores de HIV/AIDS (embora de maneira menos atroz do que durante os últimos decênios

do século XX) [5]. Perante o pensamento paranoico de uma sociedade

higienizadora/higienizada, a aparência e as secreções do artista enfermo ganham, portanto, um

aspecto “ameaçador” no espaço social: a visibilidade da tez do enfermo, a sua fisionomia e

seus fluidos corporais (o suor, a saliva e o sangue) contradizem a meta de uma sociedade

“saudável”, que, para tal expressão de “saúde”, precisa manter os doentes invisíveis e

silenciados – especialmente os portadores de enfermidades que causam modificações físicas,

e que, por conseguinte, marcam a sua presença na esfera pública.

 

   

Se, por um lado e em linhas gerais, o ato de metaforizar as doenças é praticamente

inevitável dentro de nossa cultura, que utiliza imagens da enfermidade na linguagem corrente

e na afirmação de um discurso bélico, por outro lado e por meio da arte, é possível colocar em

xeque a produção de tais metáforas, perturbando tanto o senso comum quanto o preconceito

residentes nas metaforizações – gesto este que podemos constatar nas obras dos artistas

citados nos parágrafos anteriores.

No contexto brasileiro, o complexo desmantelamento dos estigmas sobre a

enfermidade é visível na profícua, porém pouco comentada, trajetória de artistas que

elaboraram obras que discutiam as figurações de seu corpo enfermo no espaço social. Um dos

artistas mais emblemáticos nesta investigação temática é o artista visual Leonilson, com seus

bordados e pinturas com rastros autobiográficos, porém esquivando-se de retratar a sua

fisionomia macilenta e magra, recorrente nos pacientes soropositivos durante os primeiros

decênios do surgimento do HIV/AIDS [6].

Dentro deste panorama artístico, situo uma produção contemporânea no âmbito da

dança que aborda questões sobre a enfermidade e suas visibilidades no espaço público: o

espetáculo O homem vermelho, de Marcelo Braga.

I

Natural da cidade de Guarani (MG), Marcelo Braga teve a sua carreira subitamente

interrompida pela descoberta de um raro câncer de pele: linfoma cutâneo de células T. Então,

o artista teve que se afastar dos palcos para enfrentar uma bateria de tratamentos rádio e

quimioterápicos. Durante os três anos de tratamento, Marcelo conviveu com espaços

hospitalares e domésticos, tendo raros contatos com o espaço público. Devido ao linfoma, o

seu corpo ganhou uma cor avermelhada; a textura da pele mudou, além de ser acometida, a

partir de então, por pruridos e escamações. Em agosto de 2011, durante os três meses de

tratamento radioterápico em São Paulo, Marcelo Braga começou a elaborar o espetáculo O

homem vermelho – a sua primeira obra como coreógrafo após 22 anos de atuação como

bailarino –, que teve a sua estreia no Rio de Janeiro, em 2012 [7].

Em O homem vermelho, o pacto inicial de Marcelo Braga com o público dá-se por

intermédio da palavra. Partindo de um texto que remete à adedanha – jogo infantil em que

vence quem disser o maior número de palavras iniciadas por uma letra surgida ao acaso, a

partir da soma dos dedos dos participantes, apontados para o centro de uma roda –, Marcelo

apresenta uma lista quase infindável de objetos, pessoas, cidades, personagens, filmes,

animais, frutas e flores. As associações parecem intermináveis e criam um ritmo textual que

 

   

flerta com a musicalidade. Marcelo reconta histórias pessoais no meio de uma enxurrada de

palavras que, por sua vez, reativam memórias familiares, lugares e situações de seu cotidiano.

Citações de personagens e personalidades da indústria cultural vão ganhando

importância no discorrer do texto, principalmente no momento em que Marcelo Braga

promove um jogo associativo entre nomes de familiares e sobrenomes de artistas do universo

cinematográfico: a mãe Marlene [Dietrich], a irmã Claudia [Cardinale], o irmão Ronald

[Reagan] e ele mesmo, Marcelo [Mastroianni] – exceto o do irmão João [do Pulo] e da irmã

adotiva [Nossa Senhora] Aparecida. Esta passagem do texto/espetáculo tanto evidencia a

produção midiática inserindo-se na vida de um sujeito (a ponto de este produzir, através

daquela, memórias), quanto revela uma narrativa biográfica que se apropria dos produtos

culturais (a ponto de o sujeito transformá-los em uma das fatias intrínsecas à sua vida). A

partir de então, o espectador de O homem vermelho passa a ser confrontado com dois trajetos

discursivos, paralelos e interdependentes: de um lado, a produção cultural adquirindo uma

afetividade particular e tornando-se um espaço de pertencimento e de leitura pessoal do

mundo; do outro, uma história de si que, por sua relação com a produção midiática, vai

conquistando uma dimensão pública.

Durante a inter-relação entre jogo infantil e discurso memorial-midiático, algumas

palavras, que remetem a enfermidades e à ambiência hospitalar, são agregadas à narrativa. A

fala lúdica e associativa é fissurada pelo relato da dor e dos procedimentos medicamentosos

relativos ao tratamento de um linfoma, que, por sua vez, é visível pela tonalidade vermelha e

textura escamada de sua derme. Logo, um terceiro trajeto discursivo desponta em O homem

vermelho: o discurso autobiográfico como estratégia para lidar com a dor, para juntar “os

cacos de vida” (durante e após a enfermidade), para falar de si, ainda que temporariamente.

Nos momentos de inserção da temática da dor, ocorre uma interrupção do fluxo

narrativo. O jogo de adedanha, que aparece como ferramenta para o narrador alinhavar uma

possível ordem dos acontecimentos, suscita, entretanto, recordações nem sempre agradáveis –

o que fica evidente pelas palavras que surgem, compondo um abecedário da dor:

[...] artéria biopsia convulsão doutora enfermeira Fundão [...], G de gases, H de hormônio, I de imunidade, J de jaleco, L de linfoma, M de mioma, N de necrose, O de obituário, P de pulsão, Q de quimio[terapia], R de radio[terapia], S seringa, T de traqueia, U de urticária, V de vísceras, X é de Xilocaína, e Z é de Zylium Zylium Zylium.

O jogo infantil está repleto de afetividade para o narrador, que o utilizava tanto como

“passatempo” durante os tratamentos químio e radioterápicos quanto como estratégia para o

 

   

esquecimento da ambiência hospitalar. Jogar novamente adedanha é entrar em contato com a

experiência da enfermidade e da dor, que interrompe o fluxo da narrativa e faz desaparecer a

possibilidade de se criar uma fala coerente, lógica e sucinta sobre si. A voz da memória de um

corpo em dor impede qualquer tentativa de alcançar uma discursividade que transmita

plenamente a experiência dolorosa para o interlocutor. Marcelo passa a omitir palavras

durante a sua fala; remonta até mesmo a passagens dolorosas da infância, que não são,

todavia, totalmente elucidadas para o seu espectador ouvinte. As dores do narrador são da

ordem do inconfessável; elas não podem ser (res)suscitadas por completo.

Porém, o narrador arrisca-se na busca por outros modos de aproximação lúdica com o

evento doloroso, para além do jogo da adedanha; ele continua a investir na busca de uma fala

de si, porém afastada da imagem reducionista do enfermo como um sujeito paciente, isto é,

como quem somente sofre e está privado das outras experiências da vida, tais como o prazer e

o divertimento. Sendo assim, Marcelo retoma a sua voz e o seu direito de falar a respeito de

sua experiência, como se entrevê na seguinte passagem do texto:

[...] eu digo o que quero, eu posso dizer o que quero, eu direi o que quero, eu tenho o direito de dizer o que quero, hoje não é hoje, aqui não é aqui, vocês não são vocês (aconteceu algum milagre? a minha pele tá vermelha?), eu sou não sou eu, eu quero ser Marcelo Mastroianni.

Subitamente, Marcelo veste a réplica em máscara do rosto do ator italiano, enquanto a

luz de cena cai bruscamente para, logo em seguida, escutarmos a sua voz preenchendo a

penumbra com o cantarolar de uma música italiana.

II

A partir de então, Marcelo Braga dedica-se à ação de vestir máscaras, enquanto é

projetado, no fundo do palco, um filme de Marcelo Braga durante a sessão de radioterapia.

Compostas por gradações de preto e cinza, as máscaras são vestidas tranquilamente pelo

artista. As máscaras são representações de figuras pertencentes ao universo artístico e da

cultura de massa, tais como desenhos animados (Fred Flintstone) e artistas (Marcelo

Mastroianni, Elza Soares, Coco Chanel, Cartola, Elvis Presley, Francis Bacon, Fred Mercury,

Woody Allen, Frida Kahlo, Zé do Caixão), além de máscaras com imagens da flora e da fauna

(margarida, macaco, zebra, rato, foca). Porém, quem “ganha rosto” dentro desse revelador

jogo de esconde-esconde? Onde está o rosto do artista?

 

   

Para isso, coloco esse gesto de Marcelo Braga em diálogo com a estratégia artística de

Leonilson, mais precisamente do seu aparente autorretrato intitulado El Puerto (1992). Esta

obra foi elaborada durante o período em que o corpo de Leonilson já manifestava a sua

soropositividade. Composto de uma pequena moldura vermelha coberta por uma cortina feita

de tecido listrado típico das camas hospitalares, El Puerto não revela o rosto de Leonilson

atrás da cortina, mas sim um espelho que reflete a imagem do próprio espectador. A única

referência que temos do artista são alguns dados biográficos bordados na cortina, que dão

conta respectivamente de seu apelido, idade, peso, altura e nome da obra – “Leo, 35, 60, 179,

El Puerto”.

Não há possibilidade de especulação do observador a respeito da imagem do artista,

que ali não se encontra – o autorretrato do artista é uma diferença ausente de representação,

mas paradoxalmente presente no imaginário do observador, ao se deparar com as inscrições

bordadas na cortina. O rosto de Leonilson não figura na moldura. A ideia do autorretrato

como uma figuração de si, definitiva e lapidar, como um resumo daquilo que seria a essência

da vida do retratado, uma fotografia final antes da hora (cf. MIRANDA, 1992: 36) não condiz

com o gesto de Leonilson, que justamente se esquiva desta pose definitiva de si, ao ausentar o

seu rosto da obra, sendo os bordados na cortina os rastros frágeis de seu nome e corpo.

Na moldura vermelha, Leonilson substitui a sua face pelo espelho, que, entretanto,

ainda tem a superfície coberta pela cortina. Seria a cortina um gesto de autoproteção do artista

para não ver a si mesmo refletido no espelho, já que é pavoroso ver não só o próprio corpo

debilitado em um curto espaço de tempo pelo HIV/AIDS, mas também constatar o peso da

paranoia e da discriminação que recaem sobre tal enfermidade? Segundo Marcelo Secron

Bessa, o gesto de olhar-se no espelho, para o sujeito soropositivo, “não significa ver sua

própria imagem, mas ver a imagem de um ‘aidético’ e aquilo que essa imagem representa”

(BESSA, 1997: 109 – grifos de Bessa). A meu ver, justamente por não querer contribuir com

as conotações pejorativas dadas à imagem dos corpos enfermos é que Leonilson deixa cair o

pano sobre o espelho e retira, por fim, o seu rosto de cena.

III

Conforme assinalado anteriormente, a ação de vestimenta de máscaras em O homem

vermelho é simultânea à exibição de um filme. Neste, aparece Marcelo Braga vestido de

camisola médica, dentro de um ambiente branco e diante da presença de dois profissionais da

saúde.

 

   

O filme é embalado pela canção italiana “Dio come ti amo” [8], cantada ao vivo por

Marcelo Braga/Mastroianni e depois substituída pelo zumbido intermitente típico dos

aparelhos de radioterapia. As imagens do filme, dirigido por Walter Carvalho, mostram as

etapas do procedimento radioterapêutico numa velocidade, em alguns momentos, próxima à

do slow motion. (Fig. 1)

Fig. 1: Cena de O homem vermelho de Marcelo Braga. Foto: Renato Mangolin

O médico pinga colírio nos olhos de Marcelo, para, em seguida, lhe colocar um par de

lentes de chumbo sob as pálpebras posteriormente fechadas com fita adesiva. Despido,

Marcelo é posicionado sobre uma plataforma branca e circular, composta por dois mastros,

onde os braços do artista são imobilizados por suspensórios. Marcelo permanece parado

durante o lento banho de luz que o seu corpo avermelhado recebe. Há pouca mudança da

posição corporal durante esse momento, e a permanência em cada posição é longa. O seu

corpo encontra-se ora perfilado, ora com dorso torcido ou de costas, os braços flexionados e

suspensos na altura dos ombros, formando cada braço um ângulo de noventa graus. As pernas

estão afastadas uma da outra. Mais tarde, Marcelo aparece novamente vestido com a camisola

hospitalar e retirando a fita adesiva e o par de lentes de chumbo.

 

   

Segundo Paul Ardenne, a figuração do enfermo na arte pictórica do século XX é a de

um corpo sem gesto e melancólico. Opondo-se à ideia de resistência ou de revolta contra a

doença, o corpo enfermo durante este período – sendo, muitas vezes, a autorrepresentação do

corpo do artista [9] – apresenta-se em estado meditativo ou catatônico, em vez de empreender

uma atitude reativa ou desafiadora contra a morte. Para Ardenne, há uma “passividade

clínica” em tais representações que, por sua vez, são uma estratégia artística para alcançar a

realidade (cf. ARDENNE, 2010: 79-81).

No filme de O homem vermelho, entrevejo alguns traços da representação do artista

enfermo do século anterior, tal como argumentada por Paul Ardenne: diante da câmera,

apresenta-se um corpo aparentemente paciente e de poucas ações, exceto quando é necessário

mover-se devido às exigências do procedimento médico, para novamente ficar imóvel e nu,

deixando-se ser banhado pela luz vermelha emitida pelo possante aparelho de radioterapia.

Entretanto, a meu ver, a sua obra aponta um caminho diverso do das obras do século anterior

e consequentemente oposto ao da análise de Ardenne: não é possível afirmar categoricamente

que há traços de catatonia ou de uma “passividade clínica” na figuração do artista enfermo, no

filme de O homem vermelho. Marcelo está concentrado em suas ações, simplesmente presente

na execução de gestos que se tornaram corriqueiros para ele. Em nenhum momento é possível

afirmar que o artista se encontra distante. Entrevejo ser de outra ordem o registro clínico com

que a obra de Marcelo Braga parece dialogar– e isto abordarei em breve. Em relação à

condição de um “estado meditativo”, esta parece ser uma problemática de caráter político e

pertencente menos ao artista do que ao espectador, testemunhando os procedimentos médicos

sobre o corpo de Marcelo. Em outras palavras: deve-se “meditar” ou “reagir” perante as

imagens do corpo enfermo do artista? O olhar do espectador fica no trânsito oscilante entre

aproximar-se e afastar-se daquelas imagens: proximidade e afastamento em relação à

condição extenuante e invasiva do tratamento sobre o corpo do artista; proximidade e

afastamento em relação à condição estética do filme, evidenciando a presença calorosa do

corpo do artista (sim, a cor vermelha de sua derme esquenta) dentro do impessoal ambiente

médico.

O corpo de Marcelo perante a lente da câmera – um corpo imóvel numa pose

extracotidiana dentro de um ambiente asséptico – remete a uma estatuária viva; a sua tez

vermelha impregna e aquece a brancura higiênica das paredes e a cor metálica das

aparelhagens ao seu redor. A presença avermelhada de sua pele tira proveito da assepsia do

espaço hospitalar, transformando-o em uma experiência plástica que me leva a novamente

resgatar o artista plástico Leonilson, e mais precisamente uma das falas a respeito de sua

 

   

peregrinação médica: “No dia em que eu estava no hospital, eles me levaram para tirar uma

chapa do pulmão e vi aquela sala como uma exposição” (LAGNADO, 1998: 129). Em O

homem vermelho, o tratamento e o seu local de acontecimento adquirem uma ambiência

estética a partir do corpo do artista em tratamento. A sala de radioterapia torna-se o espaço

para a instalação corporal de Marcelo, que se utiliza da sessão radioterápica para conferir o

registro performativo às suas ações. Corpo e gestos do artista atribuem o estatuto público de

arte aos procedimentos médicos que lhe foram (im)postos entre quatro paredes,

transformando, por conseguinte, ironicamente o espaço médico em lugar de experimentação

estética e artística. Além disso, a enfermidade, envolta de privacidade e de uma convivência

íntima com a doença, adquire visibilidade na esfera pública.

IV

O filme de Walter Carvalho termina juntamente com Marcelo Braga finalizando a

ação com as máscaras. Surge então o artista vestindo um chapéu que remete aos adornos de

Carmen Miranda, tocando um enorme instrumento musical, atrás do qual ele havia

performado o trocar de máscaras. O instrumento de cordas, criado por Michel Groisman, está

ligado a um amplificador que redimensiona o som grave do instrumento, produzido pela

baqueta de metal utilizada por Marcelo. A melodia é repetitiva, subindo gradativamente as

oitavas juntamente com o andamento da música, que se torna mais veloz. O espaço é

preenchido por uma sonoridade abafada e dramática, resultando em um zumbido intermitente

que se propaga do espaço cênico até a plateia. O zumbido ritmado e vibrante, ao afetar

fisicamente tanto a caixa cênica quanto a caixa torácica do espectador, parece encurtar as

distâncias entre artista e audiência.

Marcelo interrompe subitamente a música. O palco fica mais iluminado e o artista sai

de detrás do instrumento musical. Percebe-se que a imagem na tela mudara, passando da

sequência visual-narrativa sobre a radioterapia para um filme composto por uma série de

close-ups da pele do artista. O segundo filme, dirigido por Renato Mangolin, cria a

proximidade da lente da câmera com a pele, captando os mínimos detalhes de sua textura, cor

e movimento, resultando em imagens que remetem àquelas produzidas pelas possantes

câmeras usadas para documentar minuciosamente os movimentos da natureza. O escrutínio do

corpo pela lente da câmera também parece remontar os discursos imagéticos provenientes das

primeiras investigações científicas sobre a biomecânica e o comportamento do corpo humano,

surgidas no início do século anterior e que empregavam os recém-surgidos aparatos técnicos

fotocinematográficos, no intuito de estudar, registrar e catalogar a anatomia humana.

 

   

Veem-se a textura escamada, os sulcos e o vermelho de sua cútis. É irreconhecível a

parte do corpo pertencente àquela pele. Só vemos uma derme que, em pequenos movimentos,

se esgarça e se contrai. A pele invade toda a tela, não há espaço sem a ocupação da derme do

artista. (Fig.2)

Fig. 2: Cena de O homem vermelho de Marcelo Braga. Foto: Renato Mangolin

Em vez de partirmos da definição usual da tela cinematográfica como uma superfície

plana e permeável, proponho pensá-la como espaço suscetível ao contato das texturas fílmicas

que sobre ela se justapõem; pensar também que, nesta justaposição de texturas, a tela vai se

transformando, ganhando outros significados, tornando-se outras superfícies. Deste modo, por

que não vislumbrar a pele filmada de Marcelo afetando a tela cinematográfica,

transformando-a em uma pele de vermelhidões, composta por texturas justapostas e pulsantes

no espaço? Sob a pele projetada do artista, a tela transforma-se em um campo de

possibilidades afetivas para o contato ocular do espectador.

A proximidade entre tela cinematográfica e imagem projetada da derme do artista

produz uma tela-pele que provoca na plateia uma experiência tátil, que atravessa a (pele de)

sua retina para percorrer o corpo. Um contato à distância, que não deixa de ser uma tentativa

de aproximação. Se a tela-pele é receptáculo das sensações, então ela também pode ser

afetada pelo olhar do espectador. A afetação passa a ser uma via de mão dupla, onde é

impossível enxergar o ponto exato de partida desta experiência. A tela-pele do artista pode

 

   

tornar-se a minha pele, remeter ao meu corpo, que, por sua vez, pode projetar-se, à minha

revelia, na tela-pele que o artista preparou para si mesmo e para mim, o seu observador. A

projeção não é premeditada: quando eu, observador, me dou conta, já estou lá, desdobrando-

me naquelas imagens. A pele-tela do artista não está mais lá e, paradoxalmente, ainda está:

permeada pelo encontro com a pele de seus observadores e seus respectivos corpos de

memórias.

Simultaneamente à exibição do vídeo, Marcelo Braga coloca-se em cena por uma

sequência de movimentos repetitivos, curtos e exaustivos. Marcelo começa com pequenas

ações muscularmente intensas e que são subitamente interrompidas para dar início a outras

ações, e assim sucessivamente: os ombros balançam freneticamente; os braços produzem

movimentos ondulados, espanam o ar ou o golpeiam com pequenos socos; a mão toca o rosto,

enquanto a cabeça gira; as pernas dão passos curtos; o corpo todo treme. A posição de seu

corpo no espaço cênico é geralmente frontal em relação ao público. Marcelo, durante as

ações, fala palavras curtas (“mói, dói, rói”), que são interrompidas e afetadas pelo esforço

físico: a voz fica trêmula e soluçada ou entrecortada, devido à hipertonicidade dos

movimentos. O artista não está mais tentando articular um discurso fluido e textual, tal como

nos primeiros minutos do espetáculo. A meta pela produção de uma discursividade verbal,

coerente e articulada, sai de cena para dar vez à fisicalidade frenética e violentamente

implosiva.

A meu ver, esta fisicalidade é uma estratégia artística de aproximação, a posteriori, da

experiência da enfermidade e da dor. A sua movimentação apresenta-se como o desejo de

traçar um percurso, para a plateia e para si mesmo, destes “cacos de si” – todavia não para

recolhê-los em prol de uma narrativa coerente e unívoca do eu, mas para um fazer um balanço

incerto de si e “em aberto” diante da presença dos olhos alheios, levando em conta as perdas e

ganhos de uma vida assolada pela enfermidade e pela dor.

Além disso, é arriscado afirmar que, neste instante do espetáculo, os movimentos

vigorosos de Marcelo Braga sejam a recuperação de seu sofrimento durante o período de

tratamento do linfoma, pois este acontecimento e suas marcas corporais e psíquicas resistem à

representação. A sua performance não corrobora discursos de (auto)vitimização e tampouco

uma figuração de si autopiedosa ou martirizada. Em O homem vermelho, a memória do corpo

enfermo é resgatada para uma proposta artística que ronda a dor de uma enfermidade,

percorre os seus perímetros – o que não significa que esse percurso seja confortável para o

artista e o espectador, e tampouco que esteja descartada a vontade do artista de ultrapassar tais

 

   

limites perimetrais, no intuito de ter um contato cristalino e preciso com a experiência da

enfermidade em cena.

Diante desta análise, é importante recuperar a reflexão de Paul Ardenne acerca do

artista enfermo, citada alguns parágrafos atrás, para contrapô-la à fisicalidade de Marcelo

Braga em O homem vermelho. A movimentação frenética do corpo deste artista distancia-se

do registro da “passividade clínica” verificável, de acordo com Ardenne, na história das

(auto)representações do artista enfermo. Em O homem vermelho, não ocorre a rarefação da

produção de gestos como estratégia de aproximação entre arte e realidade.

Todavia, não se pode esquecer que a análise de Paul Ardenne parte do legado da

representação pictórico-fotográfica e não do das produções performáticas. Deste modo, poder-

se-ia dizer que o registro de inação nas (auto)representações do artista enfermo, entrevista

pelo estudioso francês, estaria mais próximo da presença do artista no filme de Walter

Carvalho: paciente, tranquilo, obediente às normas do tratamento. Porém, no que tange à

presença ao vivo de Marcelo Braga, a sua movimentação corporal é um descontrole

paradoxalmente autocontrolado, uma distorção artisticamente articulada e que parece dialogar

com a noção de clinical , cunhada pelo pintor de corpos informes, o artista irlandês Francis

Bacon, para quem esta noção significa “o realismo mais radical”:

Uma espécie de realismo, não necessariamente frio. Ser “clínico” não é ser frio, é uma atitude, é como decidir alguma coisa. Mas é verdade que em tudo isso há frieza e distância. A priori, não há sentimentos. E, paradoxalmente, pode provocar um enorme sentimento. “Clínico” é estar o mais próximo possível do realismo, no mais recôndito de si. Alguma coisa de exato e afiado. O realismo é uma coisa perturbadora. (MAUBERT, 2000: 22-3)

Depreende-se da citação de Francis Bacon a existência de uma fragilidade positivada

dos limites e do autocontrole quando se está no “mais recôndito de si”. Pode-se ser frio e

distante, porém não passivo e/ou inativo. Embora seja perturbador, é evidente a necessidade

de uma estratégia artística rigorosa para que seja possível a abertura de um caminho em

direção ao “realismo perturbador”, como diria Bacon. Em vez de os sentimentos serem a meta

artística, há uma urgência de produzir incansavelmente e, por conseguinte, dizer sim à vida.

Instaura-se um estado febril/fabril, que impulsiona o artista à produção de gestos. Embora

esse realismo não seja plenamente alcançável, a busca por esse corte afiado na carne do

espaço/no espaço da carne para, por fim, tocar o terreno do Real, já se configura, per si, como

a audaciosa e inevitável meta do fazer artístico. No caso de O homem vermelho, talvez este

realismo esteja na tentativa da produção artística sob o risco de pensar uma fisicalidade em

 

   

aberto, que possa visitar, ainda que por décimos de segundo, aquilo que não se ensaia o

sujeito para vivenciar: a experiência da enfermidade e da dor. Como relata o próprio Marcelo

Braga em entrevista: “[...] não é possível ensaiar o que vivi, porque não posso me transformar

em um personagem, porque o trabalho fala de coisas não ensaiáveis” (KATZ, 2013).

Entretanto, cabe lembrar que a memória corporal da enfermidade – com a qual O

homem vermelho joga e tenta resgatar, em diferença e para os olhos do espectador, aquilo que

é inenarrável, irrepresentável e inaudito – não é de todo uma condição do outrora. Não se

perde o contato com a experiência de uma enfermidade como o linfoma durante o passar da

vida. Demarca-se um “antes” e um “depois” da doença, faz-se um traço inapagável no sujeito

tomado por uma enfermidade incurável, cindindo a sua vida e, consequentemente, fraturando

a construção de uma narrativa de si estritamente cronológica e coesa. Segundo Marcelo

Braga, “[a] cada vez que entro na sala de ensaio, preciso primeiro identificar como está o

corpo e vou aprendendo a escutá-lo. Agora mesmo, está bem dolorido, escamando e muito

mais vermelho” (KATZ, 2013). A memória de uma enfermidade traumática e/ou incurável é

um “para sempre passado-presente” no corpo, é um aqui e agora constantemente renovado, e

por meio do qual o sujeito passa a (re)ler acontecimentos pessoais e coletivos, em constante

estado de alerta.

V

Conclui-se que, em O homem vermelho, as múltiplas figurações do sujeito não

coincidem com a sua condição de “enfermo diagnosticado”. Reduzir o enfermo à sua doença,

isto é, à sua condição de “paciente” é, de certa maneira, também diminuir a pluralidade do

sujeito aos procedimentos burocráticos (e algumas vezes, moralizantes) da medicina,

tornando-o mais um número da estatística médica, mais um “ser doente”: passivo, catatônico

e que não pode falar por si e de si mesmo. O trabalho de Marcelo Braga resiste tanto ao

reducionismo médico quanto às estigmatizações que podem recair sobre o corpo do enfermo.

Ao transmutar-se em arte, a sua dor é publicamente particularizada. A dor torna-se partilha

que, paradoxalmente, não é de todo compartilhável, já que o evento doloroso é único e

intransferível, praticamente inacessível ao outro. Entretanto, concordo com o pensamento de

Amelia Jones, que, ao discorrer sobre artistas que abordam ou executam experiências

dolorosas em suas obras, ressalva que “a dor não pode ser compartilhada, mas seus efeitos

podem ser projetados no espectador, a ponto de este tornar-se o lugar do sofrimento”

(JONES, 1995:230 – grifos meus). Deste modo, o espetáculo de Marcelo Braga, ao

transformar a dor em matéria artística, instaura um espaço onde o espectador possa ter uma

 

   

reflexão en-carnada de suas próprias dores. A experiência dolorosa do artista torna-se pública,

configurando-se como espaço de reflexão do e no outro.

Representar a dor extrema por intermédio da arte é uma aproximação e uma incerteza,

já que a linguagem artística não a transpõe e tampouco a apreende. “Falar” sobre a dor – seja

em relatos de testemunho [10] ou de procedimentos artísticos – é o ato de se equilibrar entre o

evento capturado e a reticência daquilo que não será rememorado ou enunciado durante a

“fala” (GEOFFREY, 2000: 218). A dor torna-se compartilhável, contudo, pelo gesto em si do

sujeito na tentativa de (re)encenar a dor – (re)encenação também composta por silêncios, ou

seja, por aquilo que sempre ficará do lado de fora da enunciação.

Um sujeito em cena se veste de peles alheias, costura-as simbolicamente sobre o corpo

como estratégia de encontro de novas performances de si. Por este procedimento artístico,

Marcelo Braga rói os resistentes fios de aço de uma possível narrativa estritamente

confessional acerca da experiência das dores psíquica e física. O corpo em dor apresenta-se

como espaço do impronunciável e de uma experiência pessoal, intransponível e resistente à

representação. O homem vermelho opta por um corpo que troca publicamente de pele, de

escamas, de camadas, de modelos e de possibilidades de ser outro, triturando referências

pessoais, borrando os liames do esperado discurso da verdade, que é aparentemente delineado

pelo texto presente nos primeiros minutos do espetáculo. O espetáculo de Marcelo Braga,

portanto, é uma pose dérmica diante dos olhos do espectador.

O homem vermelho faz-nos defrontar com a nossa responsabilidade diante da dor

alheia, de uma dor sem legendas (cf. SONTAG, 2003). Não há como ficar isento deste

confronto, porque os afetos são dérmicos, incham o corpo, intervêm sobre nossa pele. O

homem vermelho é um corpo vibrátil. E o vermelho que tinge, compõe e salta da pele de

Marcelo Braga não é propriamente algo do campo da visualidade, mas sim de um estado

pulsante, uma estratégia sensória para flertar com o Real. Uma tentativa de retirar o par de

lentes de chumbo que bloqueia o olhar do sujeito sob a experiência da dor.

É evidente que esta análise sobre O homem vermelho não é exaustiva e tampouco

pretende abranger a diversidade temática, corporal e cênico-discursiva desta obra, que aponta

para diversas interpretações e pontos de vista. A meu ver, a obra de arte pertence ao terreno

do inapreensível e do aberto, dos jogos poéticos com seus contextos de processo e de

produção que, todavia, podem se projetar para outras temporalidades, podendo flertar com o

futuro no passado e com as suas sombras sobre o presente. Em vez de ser um produto a ser

capturado pela produção crítico-discursiva, O homem vermelho é uma pulsação de obra,

promovendo o desafio poético de pensar por meio de seus pontos de interesse temático,

 

   

estético, social e ético. Partindo deste ponto de vista, propus um dos modos possíveis de

entrever o espetáculo de Marcelo Braga, especificamente a partir do que considero ser um dos

pontos de partida de O homem vermelho: a presença performativa do artista e as fissuras

discursivas presentes no jogo da figuração de si enquanto sujeito enfermo diante do olhar do

outro – neste caso, o do espectador, brincando com suas expectativas e modos de enxergar

culturalmente a enfermidade e seus portadores. Permito-me ainda dizer que este artigo

também não deixa de ser acerca de como O homem vermelho dialoga com o olhar deste

pesquisador de arte em questão: um artista interessado em falar sobre outros artistas.

Notas [1] Bob Flanagan também ficou conhecido pelas suas performances alicerçadas em práticas

sadomasoquistas, juntamente com a sua esposa Sheree Rose. Para uma análise mais arguta sobre a as duas

experiências da dor na arte e na vida de Flanagan – uma, indesejada e constante, provocada pela enfermidade, e a

outra, deliberada e prazerosa, oriunda de suas práticas sadomasoquistas –, cf. JONES, 1998, p. 226-35.

[2] Juntamente com Donald Goddard, Hannah Wilke criou a série fotográfica Intra-Venus (1992-1993),

além da videoinstalação Intra-Venus Tapes, 1990-93, composta por 16 monitores, onde eram reproduzidos

momentos de seu cotidiano. Cf. <www.hannahwilke.com >.

[3] Na década de 90, o autor francês teve os seus romances traduzidos no Brasil e publicados pela

editora Rocco: Para o amigo que não me salvou a vida (1995), Protocolo da compaixão (1995) e O homem de

chapéu vermelho (1996).

[4] Principalmente o espetáculo Still/Here, de 1994, embora o artista declare o contrário: “Jamais fiz

um trabalho especificamente sobre a AIDS. Eu fiz trabalho sobre a perda, sobre o sexo, a morte, mas nunca

especificamente sobre a AIDS.” (GERE, 2004, p. 20). Todavia, concordo com a análise do pesquisador David

Gere, que considera de caráter elíptico a presença da temática do HIV/AIDS na produção de Bill T. Jones, a

ponto de a crítica e o público entreverem o tema em suas coreografias do decênio de 1990. Cf. GERE, 2004, p.

20-3.

[5] Cabe lembrar que no próprio seio dos movimentos artísticos, algumas enfermidades também foram

metaforizadas “positivamente” com o status de “doença de artista” – vide, no século XIX, a associação de

doenças respiratórias como a pneumonia e a tuberculose com a imagem do autor literário romântico. Cf.

SONTAG, 2007.

[6] Cf. LAGNADO, 1998 e <www.projetoleonilson.com.br >.

[7] A minha análise de O homem vermelho parte da versão assistida por mim durante a temporada de

estreia, ocorrida no teatro do Espaço Sesc/RJ, em 2012, além de levar em consideração o registro da obra em

DVD. O homem vermelho teve criação, direção, atuação e texto de Marcelo Braga, com a colaboração de

Simone Spoladore (colaboração dramatúrgica), Laura Samy (assistência de criação e direção), Walter Carvalho

(filme O homem vermelho), Renato Mangolin (filme Pele), Domenico Lancellotti (trilha original), entre outros

profissionais.

 

   

[8] “Dio come ti amo”, composição de Domenico Modugno que ficou mundialmente famosa na voz da

cantora Gigliola Cinquetti e por ser a canção vencedora do Festival de San Remo, em 1966. No mesmo ano, o

cineasta Miguel Iglesias dirigiu uma produção hispano-italiana com título homônimo, onde a cantora

interpretava a canção-título e outras composições de Modugno.

[9] No subcapítulo “La maladie comme figure du corps souffrant”, de seu livro L’image corps, Paul

Ardenne traça um panorama da representação do artista enfermo no século XX, a partir da análise de

autorretratos e de obras de cunho autobiográfico, tais como os de Frida Kahlo, Felix Gonzalez-Torres, Gerárd

Gasiorowski, entre outros. Cf. ARDENNE, 2010, p. 77-82.

[10] Nos casos das escritas de testemunho, por exemplo, ocorre uma reelaboração do instante da dor.

Segundo Hartman Geoffrey, há no testemunho “um desejo [do sujeito que o profere] de recuperar ou reconstruir

um receptor, uma ‘comunidade afetiva’” (GEOFFREY, 2000: 210) que se envolva com a história de dor narrada,

exigindo do ouvinte um comprometimento com o testemunho que lhe é endereçado. No entanto, escrever sobre a

dor não é garantia de que esta se inscreverá nas letras, pois há uma parcela de irrepresentável na dor que a faz

deslizar da sua apreensão em linguagem. Mesmo que, de acordo com David Morris (1998), a dor seja

intersubjetiva, isto é, constituída por fatores histórico-culturais que a tornam reconhecível para uma época, há

nos casos de tortura e de outros acontecimentos extremos um terreno de vivência cruel que é intransponível,

resistente e inacessível.

Bibliografia ARDENNE, Paul. L’image corps: figures de l’humain dans l’art du XXᵉ siècle. Paris: Éditions du

Regard, 2010.

BESSA, Marcelo Secron. Histórias positivas: a literatura (des)construindo a AIDS. Rio de Janeiro:

Record, 1997.

______. Os perigosos: autobiografias & AIDS. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.

CLARK, Philip; GROFF, David (Org.). Persistent voices: poetry by writers lost to AIDS. New York:

Alyson Books, 2009.

FLANAGAN, Bob. The pain journal. Los Angeles: Semiotext(e)/Smart Art Press, 2000.

FOSTER, Hal. The return of the real: the avant-garde at the end of the century. Londres: MIT

Press, 1996.

FRANK, Arthur W. The wounded storyteller: body, illness, and ethics. Chigaco; London: University

of Chicago Press, 1995.

GERE, David. How to make dances in an epidemic: tracking choreography in the age of AIDS.

Wisconsin: University of Wisconsin Press, 2004.

GEOFFREY, Hartman. Holocausto, testemunho, arte e trauma. In: NESTROVSKI, Arthur;

SELIGMANN-SILVA, Márcio. Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000. p. 207-35.

JONES, Amelia. Body art: performing the subject. Minneapolis; London: University of Minnesota

Press, 1998.

 

   

KATZ, Helena. Começar de novo: solo de Marcelo Braga parte de sua vivência durante tratamento

médico. O Estado de S. Paulo. 30 de março de 2013. Disponível em:

<http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,comecar-de-novo,1014889,0.htm>. Acesso 19 de junho de 2013.

LAGNADO, Lisette. Leonilson: são tantas as verdades. São Paulo: DBA Artes Gráficas; Companhia

Melhoramentos de São Paulo, 1998.

MAUBERT, Franck. Conversas com Francis Bacon: o cheiro do sangue humano não desgruda

seus olhos de mim. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.

MIRANDA, Wander Melo. Corpos escritos. São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: UFMG, 1992.

MORRIS, David B. Illness and culture in the postmodern age. Los Angeles: University of California

Press, 1998.

SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das

Letras, 2003.

______. A doença e suas metáforas; AIDS e suas metáforas. Trad. Rubens Figueiredo e Paulo

Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

André Masseno. Coreógrafo e performer. Mestre e especialista em Literatura Brasileira pela UERJ.

Graduado em Artes Cênicas pela UNIRIO. Autor dos espetáculos solos ana/grama (1999), Explicit Lyrics

(2002), I’m not here ou A morte do cisne (2004), Outdoor Corpo Machine (2008) e O confete da Índia (2012).

© 2013 eRevista Performatus e o autor