peles de si, peles de outro, peles de outrora: a...
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Ano 2 | Nº 7 | Nov 2013
ISSN 2316-8102
PELES DE SI, PELES DE OUTRO, PELES DE OUTRORA: A
FIGURAÇÃO DO ARTISTA ENFERMO EM "O HOMEM
VERMELHO", DE MARCELO BRAGA por André Masseno
Cena de O homem vermelho de Marcelo Braga. Foto: Renato Mangolin
No thing is found.
All in cell has been
Shaken down.
Paul Mariah
Représenter la maladie, c’est figurer à la fois un fragment de vie qui résiste et un fragment de mort, cette mort
qui annonce par là, dans une apparition spectrale quoique sans équivoque, son irrépressible emprise sur le
vivant.
Paul Ardenne
Um artista adoece. Assim como qualquer outro sujeito, e dependendo da enfermidade,
o artista sente-se impedido de produzir: a dor não lhe deixa manter a sua criação em
constância. O corpo envolve-se com a experiência dolorosa de tal forma que pode ocorrer um
hiato, uma parada forçada. Surge uma lacuna que, em momentos de convalescença ou de
ausência de dor, o artista tenta superar ao produzir mais, afirmando enfaticamente a sua
condição de vivente por meio de novas obras – ainda que sejam sobre a dor e sua
enfermidade: companheiras indesejadas, porém presentes, e com quem, a partir de então, o
artista enfermo precisará aprender a prosseguir.
O tempo acaba por se dividir em dois: um antes e depois do surgimento da
enfermidade; um antes e depois da dor. Além disso, apresentam-se duas imagens polarizadas
de si: o sujeito saudável frente a frente com o sujeito enfermo. O artista encontra-se em um
acerto de contas consigo mesmo, deparando-se com suas (novas) possibilidades e (novas)
limitações. E, para isso, terá que continuar a ser producente, sobretudo, para si mesmo. A
experiência dolorosa transmuta-se em vivência e jogo artísticos. O espaço privado (da dor) do
artista é redimensionado no espaço público da obra de arte.
Com muita dor. Sinto os olhos como se estivessem saltando da minha cabeça. Os músculos do pescoço estão tão tensos que estão me estrangulando. E minhas têmporas e testas batendo como um tambor. Vicodin não ajuda muito. Se eu pudesse tomar algo mais forte, um Demerol. É difícil trabalhar com este desconforto. Que espécie de trabalho eu faria sob o efeito de Demerol? Quem se importa? (FLANAGAN, 2000: 62)
A passagem acima evidencia a luta de um artista entre os efeitos de sua enfermidade e
o desejo de produzir. A citação pertence ao livro The pain journal [Diário da dor], de Bob
Flanagan, artista performático e escritor norte-americano que manteve um diário sobre a sua
enfermidade durante seus últimos dias de vida, de novembro de 1994 até meados de
dezembro do ano seguinte. Portador de fibrose cística, Bob Flanagan conviveu com uma
doença hereditária e incurável, que origina a produção de uma quantidade excessiva de muco,
que se acumula geralmente nos pulmões e obstrui a passagem de ar, tornando a respiração
difícil e ocasionando infecções pulmonares. A maioria das pessoas que sofre dessa doença
morre na infância ou não ultrapassa a faixa etária dos vinte anos. Bob Flanagan, contudo,
viveu até os 42 anos [1].
Bob Flanagan pertence ao vasto rol de artistas do século anterior que transformaram
suas enfermidades em temas de suas obras: Frida Kahlo compôs autorretratos onde apareciam
seus colares ortopédicos; Hannah Wilke elaborou nus fotográficos que registravam a mudança
diária de sua bela aparência física devido aos procedimentos do tratamento quimioterápico
contra o câncer [2]; Hervé Guibert escreveu romances sobre o viver com HIV/AIDS [3],
assim como o coreógrafo Bill T. Jones criou espetáculos em torno dessa condição [4]. Estes
artistas, salvaguardando suas peculiaridades, elaboravam figurações de si que iam contra a
imagem estigmatizada do sujeito enfermo como improdutivo e entregue à dor de sua doença.
Artistas que afirmavam, em contraponto, o poder de continuar (a viver) produzindo, apesar da
convivência dolorosa com suas enfermidades.
A complexidade da relação entre dor, doença e experiência pode ser entrevista na
produção desses artistas, que apresentam criticamente os contextos cultural e biomédico
daquela. Por um lado, suas obras colocam o observador em confronto com o legado de uma
modernidade que exigia dos corpos, por meio de sistemas coercitivos, maior produtividade
dentro de um sistema utilitário que tinha como força-motriz lemas como “no pain, no gain”;
por outro, fazem o observador se deparar com o seu próprio modo de ver a dor, transformada
em tabu contemporâneo, em que a lei é sair ileso das experiências possivelmente dolorosas,
além de ocultar a presença do corpo enfermo na esfera pública. Desde os idos do século XX,
quando os genocídios, as torturas praticadas por regimes totalitários e as epidemias se
tornaram assuntos relevantes no debate mundial, qualquer discurso sobre a dor e a
enfermidade tornou-se um problema ético e político. Os artistas que abordam a presença
dolorosa da doença como temática e experiência em diálogo com o fazer artístico parecem
reivindicar um (re)conhecimento mais arguto sobre quem enuncia tais discursos, de onde e
como é feita esta enunciação na tradicional arena social.
É importante também ressaltar que certas doenças são utilizadas rotineiramente como
metáforas, que, por sua vez, transformam erroneamente os enfermos em portadores de uma
“doença moral” (cf. SONTAG, 2007). Assim foi com a hanseníase e a tuberculose durante o
século XIX; assim continua sendo com as doenças hereditárias e também com o câncer e os
portadores de HIV/AIDS (embora de maneira menos atroz do que durante os últimos decênios
do século XX) [5]. Perante o pensamento paranoico de uma sociedade
higienizadora/higienizada, a aparência e as secreções do artista enfermo ganham, portanto, um
aspecto “ameaçador” no espaço social: a visibilidade da tez do enfermo, a sua fisionomia e
seus fluidos corporais (o suor, a saliva e o sangue) contradizem a meta de uma sociedade
“saudável”, que, para tal expressão de “saúde”, precisa manter os doentes invisíveis e
silenciados – especialmente os portadores de enfermidades que causam modificações físicas,
e que, por conseguinte, marcam a sua presença na esfera pública.
Se, por um lado e em linhas gerais, o ato de metaforizar as doenças é praticamente
inevitável dentro de nossa cultura, que utiliza imagens da enfermidade na linguagem corrente
e na afirmação de um discurso bélico, por outro lado e por meio da arte, é possível colocar em
xeque a produção de tais metáforas, perturbando tanto o senso comum quanto o preconceito
residentes nas metaforizações – gesto este que podemos constatar nas obras dos artistas
citados nos parágrafos anteriores.
No contexto brasileiro, o complexo desmantelamento dos estigmas sobre a
enfermidade é visível na profícua, porém pouco comentada, trajetória de artistas que
elaboraram obras que discutiam as figurações de seu corpo enfermo no espaço social. Um dos
artistas mais emblemáticos nesta investigação temática é o artista visual Leonilson, com seus
bordados e pinturas com rastros autobiográficos, porém esquivando-se de retratar a sua
fisionomia macilenta e magra, recorrente nos pacientes soropositivos durante os primeiros
decênios do surgimento do HIV/AIDS [6].
Dentro deste panorama artístico, situo uma produção contemporânea no âmbito da
dança que aborda questões sobre a enfermidade e suas visibilidades no espaço público: o
espetáculo O homem vermelho, de Marcelo Braga.
I
Natural da cidade de Guarani (MG), Marcelo Braga teve a sua carreira subitamente
interrompida pela descoberta de um raro câncer de pele: linfoma cutâneo de células T. Então,
o artista teve que se afastar dos palcos para enfrentar uma bateria de tratamentos rádio e
quimioterápicos. Durante os três anos de tratamento, Marcelo conviveu com espaços
hospitalares e domésticos, tendo raros contatos com o espaço público. Devido ao linfoma, o
seu corpo ganhou uma cor avermelhada; a textura da pele mudou, além de ser acometida, a
partir de então, por pruridos e escamações. Em agosto de 2011, durante os três meses de
tratamento radioterápico em São Paulo, Marcelo Braga começou a elaborar o espetáculo O
homem vermelho – a sua primeira obra como coreógrafo após 22 anos de atuação como
bailarino –, que teve a sua estreia no Rio de Janeiro, em 2012 [7].
Em O homem vermelho, o pacto inicial de Marcelo Braga com o público dá-se por
intermédio da palavra. Partindo de um texto que remete à adedanha – jogo infantil em que
vence quem disser o maior número de palavras iniciadas por uma letra surgida ao acaso, a
partir da soma dos dedos dos participantes, apontados para o centro de uma roda –, Marcelo
apresenta uma lista quase infindável de objetos, pessoas, cidades, personagens, filmes,
animais, frutas e flores. As associações parecem intermináveis e criam um ritmo textual que
flerta com a musicalidade. Marcelo reconta histórias pessoais no meio de uma enxurrada de
palavras que, por sua vez, reativam memórias familiares, lugares e situações de seu cotidiano.
Citações de personagens e personalidades da indústria cultural vão ganhando
importância no discorrer do texto, principalmente no momento em que Marcelo Braga
promove um jogo associativo entre nomes de familiares e sobrenomes de artistas do universo
cinematográfico: a mãe Marlene [Dietrich], a irmã Claudia [Cardinale], o irmão Ronald
[Reagan] e ele mesmo, Marcelo [Mastroianni] – exceto o do irmão João [do Pulo] e da irmã
adotiva [Nossa Senhora] Aparecida. Esta passagem do texto/espetáculo tanto evidencia a
produção midiática inserindo-se na vida de um sujeito (a ponto de este produzir, através
daquela, memórias), quanto revela uma narrativa biográfica que se apropria dos produtos
culturais (a ponto de o sujeito transformá-los em uma das fatias intrínsecas à sua vida). A
partir de então, o espectador de O homem vermelho passa a ser confrontado com dois trajetos
discursivos, paralelos e interdependentes: de um lado, a produção cultural adquirindo uma
afetividade particular e tornando-se um espaço de pertencimento e de leitura pessoal do
mundo; do outro, uma história de si que, por sua relação com a produção midiática, vai
conquistando uma dimensão pública.
Durante a inter-relação entre jogo infantil e discurso memorial-midiático, algumas
palavras, que remetem a enfermidades e à ambiência hospitalar, são agregadas à narrativa. A
fala lúdica e associativa é fissurada pelo relato da dor e dos procedimentos medicamentosos
relativos ao tratamento de um linfoma, que, por sua vez, é visível pela tonalidade vermelha e
textura escamada de sua derme. Logo, um terceiro trajeto discursivo desponta em O homem
vermelho: o discurso autobiográfico como estratégia para lidar com a dor, para juntar “os
cacos de vida” (durante e após a enfermidade), para falar de si, ainda que temporariamente.
Nos momentos de inserção da temática da dor, ocorre uma interrupção do fluxo
narrativo. O jogo de adedanha, que aparece como ferramenta para o narrador alinhavar uma
possível ordem dos acontecimentos, suscita, entretanto, recordações nem sempre agradáveis –
o que fica evidente pelas palavras que surgem, compondo um abecedário da dor:
[...] artéria biopsia convulsão doutora enfermeira Fundão [...], G de gases, H de hormônio, I de imunidade, J de jaleco, L de linfoma, M de mioma, N de necrose, O de obituário, P de pulsão, Q de quimio[terapia], R de radio[terapia], S seringa, T de traqueia, U de urticária, V de vísceras, X é de Xilocaína, e Z é de Zylium Zylium Zylium.
O jogo infantil está repleto de afetividade para o narrador, que o utilizava tanto como
“passatempo” durante os tratamentos químio e radioterápicos quanto como estratégia para o
esquecimento da ambiência hospitalar. Jogar novamente adedanha é entrar em contato com a
experiência da enfermidade e da dor, que interrompe o fluxo da narrativa e faz desaparecer a
possibilidade de se criar uma fala coerente, lógica e sucinta sobre si. A voz da memória de um
corpo em dor impede qualquer tentativa de alcançar uma discursividade que transmita
plenamente a experiência dolorosa para o interlocutor. Marcelo passa a omitir palavras
durante a sua fala; remonta até mesmo a passagens dolorosas da infância, que não são,
todavia, totalmente elucidadas para o seu espectador ouvinte. As dores do narrador são da
ordem do inconfessável; elas não podem ser (res)suscitadas por completo.
Porém, o narrador arrisca-se na busca por outros modos de aproximação lúdica com o
evento doloroso, para além do jogo da adedanha; ele continua a investir na busca de uma fala
de si, porém afastada da imagem reducionista do enfermo como um sujeito paciente, isto é,
como quem somente sofre e está privado das outras experiências da vida, tais como o prazer e
o divertimento. Sendo assim, Marcelo retoma a sua voz e o seu direito de falar a respeito de
sua experiência, como se entrevê na seguinte passagem do texto:
[...] eu digo o que quero, eu posso dizer o que quero, eu direi o que quero, eu tenho o direito de dizer o que quero, hoje não é hoje, aqui não é aqui, vocês não são vocês (aconteceu algum milagre? a minha pele tá vermelha?), eu sou não sou eu, eu quero ser Marcelo Mastroianni.
Subitamente, Marcelo veste a réplica em máscara do rosto do ator italiano, enquanto a
luz de cena cai bruscamente para, logo em seguida, escutarmos a sua voz preenchendo a
penumbra com o cantarolar de uma música italiana.
II
A partir de então, Marcelo Braga dedica-se à ação de vestir máscaras, enquanto é
projetado, no fundo do palco, um filme de Marcelo Braga durante a sessão de radioterapia.
Compostas por gradações de preto e cinza, as máscaras são vestidas tranquilamente pelo
artista. As máscaras são representações de figuras pertencentes ao universo artístico e da
cultura de massa, tais como desenhos animados (Fred Flintstone) e artistas (Marcelo
Mastroianni, Elza Soares, Coco Chanel, Cartola, Elvis Presley, Francis Bacon, Fred Mercury,
Woody Allen, Frida Kahlo, Zé do Caixão), além de máscaras com imagens da flora e da fauna
(margarida, macaco, zebra, rato, foca). Porém, quem “ganha rosto” dentro desse revelador
jogo de esconde-esconde? Onde está o rosto do artista?
Para isso, coloco esse gesto de Marcelo Braga em diálogo com a estratégia artística de
Leonilson, mais precisamente do seu aparente autorretrato intitulado El Puerto (1992). Esta
obra foi elaborada durante o período em que o corpo de Leonilson já manifestava a sua
soropositividade. Composto de uma pequena moldura vermelha coberta por uma cortina feita
de tecido listrado típico das camas hospitalares, El Puerto não revela o rosto de Leonilson
atrás da cortina, mas sim um espelho que reflete a imagem do próprio espectador. A única
referência que temos do artista são alguns dados biográficos bordados na cortina, que dão
conta respectivamente de seu apelido, idade, peso, altura e nome da obra – “Leo, 35, 60, 179,
El Puerto”.
Não há possibilidade de especulação do observador a respeito da imagem do artista,
que ali não se encontra – o autorretrato do artista é uma diferença ausente de representação,
mas paradoxalmente presente no imaginário do observador, ao se deparar com as inscrições
bordadas na cortina. O rosto de Leonilson não figura na moldura. A ideia do autorretrato
como uma figuração de si, definitiva e lapidar, como um resumo daquilo que seria a essência
da vida do retratado, uma fotografia final antes da hora (cf. MIRANDA, 1992: 36) não condiz
com o gesto de Leonilson, que justamente se esquiva desta pose definitiva de si, ao ausentar o
seu rosto da obra, sendo os bordados na cortina os rastros frágeis de seu nome e corpo.
Na moldura vermelha, Leonilson substitui a sua face pelo espelho, que, entretanto,
ainda tem a superfície coberta pela cortina. Seria a cortina um gesto de autoproteção do artista
para não ver a si mesmo refletido no espelho, já que é pavoroso ver não só o próprio corpo
debilitado em um curto espaço de tempo pelo HIV/AIDS, mas também constatar o peso da
paranoia e da discriminação que recaem sobre tal enfermidade? Segundo Marcelo Secron
Bessa, o gesto de olhar-se no espelho, para o sujeito soropositivo, “não significa ver sua
própria imagem, mas ver a imagem de um ‘aidético’ e aquilo que essa imagem representa”
(BESSA, 1997: 109 – grifos de Bessa). A meu ver, justamente por não querer contribuir com
as conotações pejorativas dadas à imagem dos corpos enfermos é que Leonilson deixa cair o
pano sobre o espelho e retira, por fim, o seu rosto de cena.
III
Conforme assinalado anteriormente, a ação de vestimenta de máscaras em O homem
vermelho é simultânea à exibição de um filme. Neste, aparece Marcelo Braga vestido de
camisola médica, dentro de um ambiente branco e diante da presença de dois profissionais da
saúde.
O filme é embalado pela canção italiana “Dio come ti amo” [8], cantada ao vivo por
Marcelo Braga/Mastroianni e depois substituída pelo zumbido intermitente típico dos
aparelhos de radioterapia. As imagens do filme, dirigido por Walter Carvalho, mostram as
etapas do procedimento radioterapêutico numa velocidade, em alguns momentos, próxima à
do slow motion. (Fig. 1)
Fig. 1: Cena de O homem vermelho de Marcelo Braga. Foto: Renato Mangolin
O médico pinga colírio nos olhos de Marcelo, para, em seguida, lhe colocar um par de
lentes de chumbo sob as pálpebras posteriormente fechadas com fita adesiva. Despido,
Marcelo é posicionado sobre uma plataforma branca e circular, composta por dois mastros,
onde os braços do artista são imobilizados por suspensórios. Marcelo permanece parado
durante o lento banho de luz que o seu corpo avermelhado recebe. Há pouca mudança da
posição corporal durante esse momento, e a permanência em cada posição é longa. O seu
corpo encontra-se ora perfilado, ora com dorso torcido ou de costas, os braços flexionados e
suspensos na altura dos ombros, formando cada braço um ângulo de noventa graus. As pernas
estão afastadas uma da outra. Mais tarde, Marcelo aparece novamente vestido com a camisola
hospitalar e retirando a fita adesiva e o par de lentes de chumbo.
Segundo Paul Ardenne, a figuração do enfermo na arte pictórica do século XX é a de
um corpo sem gesto e melancólico. Opondo-se à ideia de resistência ou de revolta contra a
doença, o corpo enfermo durante este período – sendo, muitas vezes, a autorrepresentação do
corpo do artista [9] – apresenta-se em estado meditativo ou catatônico, em vez de empreender
uma atitude reativa ou desafiadora contra a morte. Para Ardenne, há uma “passividade
clínica” em tais representações que, por sua vez, são uma estratégia artística para alcançar a
realidade (cf. ARDENNE, 2010: 79-81).
No filme de O homem vermelho, entrevejo alguns traços da representação do artista
enfermo do século anterior, tal como argumentada por Paul Ardenne: diante da câmera,
apresenta-se um corpo aparentemente paciente e de poucas ações, exceto quando é necessário
mover-se devido às exigências do procedimento médico, para novamente ficar imóvel e nu,
deixando-se ser banhado pela luz vermelha emitida pelo possante aparelho de radioterapia.
Entretanto, a meu ver, a sua obra aponta um caminho diverso do das obras do século anterior
e consequentemente oposto ao da análise de Ardenne: não é possível afirmar categoricamente
que há traços de catatonia ou de uma “passividade clínica” na figuração do artista enfermo, no
filme de O homem vermelho. Marcelo está concentrado em suas ações, simplesmente presente
na execução de gestos que se tornaram corriqueiros para ele. Em nenhum momento é possível
afirmar que o artista se encontra distante. Entrevejo ser de outra ordem o registro clínico com
que a obra de Marcelo Braga parece dialogar– e isto abordarei em breve. Em relação à
condição de um “estado meditativo”, esta parece ser uma problemática de caráter político e
pertencente menos ao artista do que ao espectador, testemunhando os procedimentos médicos
sobre o corpo de Marcelo. Em outras palavras: deve-se “meditar” ou “reagir” perante as
imagens do corpo enfermo do artista? O olhar do espectador fica no trânsito oscilante entre
aproximar-se e afastar-se daquelas imagens: proximidade e afastamento em relação à
condição extenuante e invasiva do tratamento sobre o corpo do artista; proximidade e
afastamento em relação à condição estética do filme, evidenciando a presença calorosa do
corpo do artista (sim, a cor vermelha de sua derme esquenta) dentro do impessoal ambiente
médico.
O corpo de Marcelo perante a lente da câmera – um corpo imóvel numa pose
extracotidiana dentro de um ambiente asséptico – remete a uma estatuária viva; a sua tez
vermelha impregna e aquece a brancura higiênica das paredes e a cor metálica das
aparelhagens ao seu redor. A presença avermelhada de sua pele tira proveito da assepsia do
espaço hospitalar, transformando-o em uma experiência plástica que me leva a novamente
resgatar o artista plástico Leonilson, e mais precisamente uma das falas a respeito de sua
peregrinação médica: “No dia em que eu estava no hospital, eles me levaram para tirar uma
chapa do pulmão e vi aquela sala como uma exposição” (LAGNADO, 1998: 129). Em O
homem vermelho, o tratamento e o seu local de acontecimento adquirem uma ambiência
estética a partir do corpo do artista em tratamento. A sala de radioterapia torna-se o espaço
para a instalação corporal de Marcelo, que se utiliza da sessão radioterápica para conferir o
registro performativo às suas ações. Corpo e gestos do artista atribuem o estatuto público de
arte aos procedimentos médicos que lhe foram (im)postos entre quatro paredes,
transformando, por conseguinte, ironicamente o espaço médico em lugar de experimentação
estética e artística. Além disso, a enfermidade, envolta de privacidade e de uma convivência
íntima com a doença, adquire visibilidade na esfera pública.
IV
O filme de Walter Carvalho termina juntamente com Marcelo Braga finalizando a
ação com as máscaras. Surge então o artista vestindo um chapéu que remete aos adornos de
Carmen Miranda, tocando um enorme instrumento musical, atrás do qual ele havia
performado o trocar de máscaras. O instrumento de cordas, criado por Michel Groisman, está
ligado a um amplificador que redimensiona o som grave do instrumento, produzido pela
baqueta de metal utilizada por Marcelo. A melodia é repetitiva, subindo gradativamente as
oitavas juntamente com o andamento da música, que se torna mais veloz. O espaço é
preenchido por uma sonoridade abafada e dramática, resultando em um zumbido intermitente
que se propaga do espaço cênico até a plateia. O zumbido ritmado e vibrante, ao afetar
fisicamente tanto a caixa cênica quanto a caixa torácica do espectador, parece encurtar as
distâncias entre artista e audiência.
Marcelo interrompe subitamente a música. O palco fica mais iluminado e o artista sai
de detrás do instrumento musical. Percebe-se que a imagem na tela mudara, passando da
sequência visual-narrativa sobre a radioterapia para um filme composto por uma série de
close-ups da pele do artista. O segundo filme, dirigido por Renato Mangolin, cria a
proximidade da lente da câmera com a pele, captando os mínimos detalhes de sua textura, cor
e movimento, resultando em imagens que remetem àquelas produzidas pelas possantes
câmeras usadas para documentar minuciosamente os movimentos da natureza. O escrutínio do
corpo pela lente da câmera também parece remontar os discursos imagéticos provenientes das
primeiras investigações científicas sobre a biomecânica e o comportamento do corpo humano,
surgidas no início do século anterior e que empregavam os recém-surgidos aparatos técnicos
fotocinematográficos, no intuito de estudar, registrar e catalogar a anatomia humana.
Veem-se a textura escamada, os sulcos e o vermelho de sua cútis. É irreconhecível a
parte do corpo pertencente àquela pele. Só vemos uma derme que, em pequenos movimentos,
se esgarça e se contrai. A pele invade toda a tela, não há espaço sem a ocupação da derme do
artista. (Fig.2)
Fig. 2: Cena de O homem vermelho de Marcelo Braga. Foto: Renato Mangolin
Em vez de partirmos da definição usual da tela cinematográfica como uma superfície
plana e permeável, proponho pensá-la como espaço suscetível ao contato das texturas fílmicas
que sobre ela se justapõem; pensar também que, nesta justaposição de texturas, a tela vai se
transformando, ganhando outros significados, tornando-se outras superfícies. Deste modo, por
que não vislumbrar a pele filmada de Marcelo afetando a tela cinematográfica,
transformando-a em uma pele de vermelhidões, composta por texturas justapostas e pulsantes
no espaço? Sob a pele projetada do artista, a tela transforma-se em um campo de
possibilidades afetivas para o contato ocular do espectador.
A proximidade entre tela cinematográfica e imagem projetada da derme do artista
produz uma tela-pele que provoca na plateia uma experiência tátil, que atravessa a (pele de)
sua retina para percorrer o corpo. Um contato à distância, que não deixa de ser uma tentativa
de aproximação. Se a tela-pele é receptáculo das sensações, então ela também pode ser
afetada pelo olhar do espectador. A afetação passa a ser uma via de mão dupla, onde é
impossível enxergar o ponto exato de partida desta experiência. A tela-pele do artista pode
tornar-se a minha pele, remeter ao meu corpo, que, por sua vez, pode projetar-se, à minha
revelia, na tela-pele que o artista preparou para si mesmo e para mim, o seu observador. A
projeção não é premeditada: quando eu, observador, me dou conta, já estou lá, desdobrando-
me naquelas imagens. A pele-tela do artista não está mais lá e, paradoxalmente, ainda está:
permeada pelo encontro com a pele de seus observadores e seus respectivos corpos de
memórias.
Simultaneamente à exibição do vídeo, Marcelo Braga coloca-se em cena por uma
sequência de movimentos repetitivos, curtos e exaustivos. Marcelo começa com pequenas
ações muscularmente intensas e que são subitamente interrompidas para dar início a outras
ações, e assim sucessivamente: os ombros balançam freneticamente; os braços produzem
movimentos ondulados, espanam o ar ou o golpeiam com pequenos socos; a mão toca o rosto,
enquanto a cabeça gira; as pernas dão passos curtos; o corpo todo treme. A posição de seu
corpo no espaço cênico é geralmente frontal em relação ao público. Marcelo, durante as
ações, fala palavras curtas (“mói, dói, rói”), que são interrompidas e afetadas pelo esforço
físico: a voz fica trêmula e soluçada ou entrecortada, devido à hipertonicidade dos
movimentos. O artista não está mais tentando articular um discurso fluido e textual, tal como
nos primeiros minutos do espetáculo. A meta pela produção de uma discursividade verbal,
coerente e articulada, sai de cena para dar vez à fisicalidade frenética e violentamente
implosiva.
A meu ver, esta fisicalidade é uma estratégia artística de aproximação, a posteriori, da
experiência da enfermidade e da dor. A sua movimentação apresenta-se como o desejo de
traçar um percurso, para a plateia e para si mesmo, destes “cacos de si” – todavia não para
recolhê-los em prol de uma narrativa coerente e unívoca do eu, mas para um fazer um balanço
incerto de si e “em aberto” diante da presença dos olhos alheios, levando em conta as perdas e
ganhos de uma vida assolada pela enfermidade e pela dor.
Além disso, é arriscado afirmar que, neste instante do espetáculo, os movimentos
vigorosos de Marcelo Braga sejam a recuperação de seu sofrimento durante o período de
tratamento do linfoma, pois este acontecimento e suas marcas corporais e psíquicas resistem à
representação. A sua performance não corrobora discursos de (auto)vitimização e tampouco
uma figuração de si autopiedosa ou martirizada. Em O homem vermelho, a memória do corpo
enfermo é resgatada para uma proposta artística que ronda a dor de uma enfermidade,
percorre os seus perímetros – o que não significa que esse percurso seja confortável para o
artista e o espectador, e tampouco que esteja descartada a vontade do artista de ultrapassar tais
limites perimetrais, no intuito de ter um contato cristalino e preciso com a experiência da
enfermidade em cena.
Diante desta análise, é importante recuperar a reflexão de Paul Ardenne acerca do
artista enfermo, citada alguns parágrafos atrás, para contrapô-la à fisicalidade de Marcelo
Braga em O homem vermelho. A movimentação frenética do corpo deste artista distancia-se
do registro da “passividade clínica” verificável, de acordo com Ardenne, na história das
(auto)representações do artista enfermo. Em O homem vermelho, não ocorre a rarefação da
produção de gestos como estratégia de aproximação entre arte e realidade.
Todavia, não se pode esquecer que a análise de Paul Ardenne parte do legado da
representação pictórico-fotográfica e não do das produções performáticas. Deste modo, poder-
se-ia dizer que o registro de inação nas (auto)representações do artista enfermo, entrevista
pelo estudioso francês, estaria mais próximo da presença do artista no filme de Walter
Carvalho: paciente, tranquilo, obediente às normas do tratamento. Porém, no que tange à
presença ao vivo de Marcelo Braga, a sua movimentação corporal é um descontrole
paradoxalmente autocontrolado, uma distorção artisticamente articulada e que parece dialogar
com a noção de clinical , cunhada pelo pintor de corpos informes, o artista irlandês Francis
Bacon, para quem esta noção significa “o realismo mais radical”:
Uma espécie de realismo, não necessariamente frio. Ser “clínico” não é ser frio, é uma atitude, é como decidir alguma coisa. Mas é verdade que em tudo isso há frieza e distância. A priori, não há sentimentos. E, paradoxalmente, pode provocar um enorme sentimento. “Clínico” é estar o mais próximo possível do realismo, no mais recôndito de si. Alguma coisa de exato e afiado. O realismo é uma coisa perturbadora. (MAUBERT, 2000: 22-3)
Depreende-se da citação de Francis Bacon a existência de uma fragilidade positivada
dos limites e do autocontrole quando se está no “mais recôndito de si”. Pode-se ser frio e
distante, porém não passivo e/ou inativo. Embora seja perturbador, é evidente a necessidade
de uma estratégia artística rigorosa para que seja possível a abertura de um caminho em
direção ao “realismo perturbador”, como diria Bacon. Em vez de os sentimentos serem a meta
artística, há uma urgência de produzir incansavelmente e, por conseguinte, dizer sim à vida.
Instaura-se um estado febril/fabril, que impulsiona o artista à produção de gestos. Embora
esse realismo não seja plenamente alcançável, a busca por esse corte afiado na carne do
espaço/no espaço da carne para, por fim, tocar o terreno do Real, já se configura, per si, como
a audaciosa e inevitável meta do fazer artístico. No caso de O homem vermelho, talvez este
realismo esteja na tentativa da produção artística sob o risco de pensar uma fisicalidade em
aberto, que possa visitar, ainda que por décimos de segundo, aquilo que não se ensaia o
sujeito para vivenciar: a experiência da enfermidade e da dor. Como relata o próprio Marcelo
Braga em entrevista: “[...] não é possível ensaiar o que vivi, porque não posso me transformar
em um personagem, porque o trabalho fala de coisas não ensaiáveis” (KATZ, 2013).
Entretanto, cabe lembrar que a memória corporal da enfermidade – com a qual O
homem vermelho joga e tenta resgatar, em diferença e para os olhos do espectador, aquilo que
é inenarrável, irrepresentável e inaudito – não é de todo uma condição do outrora. Não se
perde o contato com a experiência de uma enfermidade como o linfoma durante o passar da
vida. Demarca-se um “antes” e um “depois” da doença, faz-se um traço inapagável no sujeito
tomado por uma enfermidade incurável, cindindo a sua vida e, consequentemente, fraturando
a construção de uma narrativa de si estritamente cronológica e coesa. Segundo Marcelo
Braga, “[a] cada vez que entro na sala de ensaio, preciso primeiro identificar como está o
corpo e vou aprendendo a escutá-lo. Agora mesmo, está bem dolorido, escamando e muito
mais vermelho” (KATZ, 2013). A memória de uma enfermidade traumática e/ou incurável é
um “para sempre passado-presente” no corpo, é um aqui e agora constantemente renovado, e
por meio do qual o sujeito passa a (re)ler acontecimentos pessoais e coletivos, em constante
estado de alerta.
V
Conclui-se que, em O homem vermelho, as múltiplas figurações do sujeito não
coincidem com a sua condição de “enfermo diagnosticado”. Reduzir o enfermo à sua doença,
isto é, à sua condição de “paciente” é, de certa maneira, também diminuir a pluralidade do
sujeito aos procedimentos burocráticos (e algumas vezes, moralizantes) da medicina,
tornando-o mais um número da estatística médica, mais um “ser doente”: passivo, catatônico
e que não pode falar por si e de si mesmo. O trabalho de Marcelo Braga resiste tanto ao
reducionismo médico quanto às estigmatizações que podem recair sobre o corpo do enfermo.
Ao transmutar-se em arte, a sua dor é publicamente particularizada. A dor torna-se partilha
que, paradoxalmente, não é de todo compartilhável, já que o evento doloroso é único e
intransferível, praticamente inacessível ao outro. Entretanto, concordo com o pensamento de
Amelia Jones, que, ao discorrer sobre artistas que abordam ou executam experiências
dolorosas em suas obras, ressalva que “a dor não pode ser compartilhada, mas seus efeitos
podem ser projetados no espectador, a ponto de este tornar-se o lugar do sofrimento”
(JONES, 1995:230 – grifos meus). Deste modo, o espetáculo de Marcelo Braga, ao
transformar a dor em matéria artística, instaura um espaço onde o espectador possa ter uma
reflexão en-carnada de suas próprias dores. A experiência dolorosa do artista torna-se pública,
configurando-se como espaço de reflexão do e no outro.
Representar a dor extrema por intermédio da arte é uma aproximação e uma incerteza,
já que a linguagem artística não a transpõe e tampouco a apreende. “Falar” sobre a dor – seja
em relatos de testemunho [10] ou de procedimentos artísticos – é o ato de se equilibrar entre o
evento capturado e a reticência daquilo que não será rememorado ou enunciado durante a
“fala” (GEOFFREY, 2000: 218). A dor torna-se compartilhável, contudo, pelo gesto em si do
sujeito na tentativa de (re)encenar a dor – (re)encenação também composta por silêncios, ou
seja, por aquilo que sempre ficará do lado de fora da enunciação.
Um sujeito em cena se veste de peles alheias, costura-as simbolicamente sobre o corpo
como estratégia de encontro de novas performances de si. Por este procedimento artístico,
Marcelo Braga rói os resistentes fios de aço de uma possível narrativa estritamente
confessional acerca da experiência das dores psíquica e física. O corpo em dor apresenta-se
como espaço do impronunciável e de uma experiência pessoal, intransponível e resistente à
representação. O homem vermelho opta por um corpo que troca publicamente de pele, de
escamas, de camadas, de modelos e de possibilidades de ser outro, triturando referências
pessoais, borrando os liames do esperado discurso da verdade, que é aparentemente delineado
pelo texto presente nos primeiros minutos do espetáculo. O espetáculo de Marcelo Braga,
portanto, é uma pose dérmica diante dos olhos do espectador.
O homem vermelho faz-nos defrontar com a nossa responsabilidade diante da dor
alheia, de uma dor sem legendas (cf. SONTAG, 2003). Não há como ficar isento deste
confronto, porque os afetos são dérmicos, incham o corpo, intervêm sobre nossa pele. O
homem vermelho é um corpo vibrátil. E o vermelho que tinge, compõe e salta da pele de
Marcelo Braga não é propriamente algo do campo da visualidade, mas sim de um estado
pulsante, uma estratégia sensória para flertar com o Real. Uma tentativa de retirar o par de
lentes de chumbo que bloqueia o olhar do sujeito sob a experiência da dor.
É evidente que esta análise sobre O homem vermelho não é exaustiva e tampouco
pretende abranger a diversidade temática, corporal e cênico-discursiva desta obra, que aponta
para diversas interpretações e pontos de vista. A meu ver, a obra de arte pertence ao terreno
do inapreensível e do aberto, dos jogos poéticos com seus contextos de processo e de
produção que, todavia, podem se projetar para outras temporalidades, podendo flertar com o
futuro no passado e com as suas sombras sobre o presente. Em vez de ser um produto a ser
capturado pela produção crítico-discursiva, O homem vermelho é uma pulsação de obra,
promovendo o desafio poético de pensar por meio de seus pontos de interesse temático,
estético, social e ético. Partindo deste ponto de vista, propus um dos modos possíveis de
entrever o espetáculo de Marcelo Braga, especificamente a partir do que considero ser um dos
pontos de partida de O homem vermelho: a presença performativa do artista e as fissuras
discursivas presentes no jogo da figuração de si enquanto sujeito enfermo diante do olhar do
outro – neste caso, o do espectador, brincando com suas expectativas e modos de enxergar
culturalmente a enfermidade e seus portadores. Permito-me ainda dizer que este artigo
também não deixa de ser acerca de como O homem vermelho dialoga com o olhar deste
pesquisador de arte em questão: um artista interessado em falar sobre outros artistas.
Notas [1] Bob Flanagan também ficou conhecido pelas suas performances alicerçadas em práticas
sadomasoquistas, juntamente com a sua esposa Sheree Rose. Para uma análise mais arguta sobre a as duas
experiências da dor na arte e na vida de Flanagan – uma, indesejada e constante, provocada pela enfermidade, e a
outra, deliberada e prazerosa, oriunda de suas práticas sadomasoquistas –, cf. JONES, 1998, p. 226-35.
[2] Juntamente com Donald Goddard, Hannah Wilke criou a série fotográfica Intra-Venus (1992-1993),
além da videoinstalação Intra-Venus Tapes, 1990-93, composta por 16 monitores, onde eram reproduzidos
momentos de seu cotidiano. Cf. <www.hannahwilke.com >.
[3] Na década de 90, o autor francês teve os seus romances traduzidos no Brasil e publicados pela
editora Rocco: Para o amigo que não me salvou a vida (1995), Protocolo da compaixão (1995) e O homem de
chapéu vermelho (1996).
[4] Principalmente o espetáculo Still/Here, de 1994, embora o artista declare o contrário: “Jamais fiz
um trabalho especificamente sobre a AIDS. Eu fiz trabalho sobre a perda, sobre o sexo, a morte, mas nunca
especificamente sobre a AIDS.” (GERE, 2004, p. 20). Todavia, concordo com a análise do pesquisador David
Gere, que considera de caráter elíptico a presença da temática do HIV/AIDS na produção de Bill T. Jones, a
ponto de a crítica e o público entreverem o tema em suas coreografias do decênio de 1990. Cf. GERE, 2004, p.
20-3.
[5] Cabe lembrar que no próprio seio dos movimentos artísticos, algumas enfermidades também foram
metaforizadas “positivamente” com o status de “doença de artista” – vide, no século XIX, a associação de
doenças respiratórias como a pneumonia e a tuberculose com a imagem do autor literário romântico. Cf.
SONTAG, 2007.
[6] Cf. LAGNADO, 1998 e <www.projetoleonilson.com.br >.
[7] A minha análise de O homem vermelho parte da versão assistida por mim durante a temporada de
estreia, ocorrida no teatro do Espaço Sesc/RJ, em 2012, além de levar em consideração o registro da obra em
DVD. O homem vermelho teve criação, direção, atuação e texto de Marcelo Braga, com a colaboração de
Simone Spoladore (colaboração dramatúrgica), Laura Samy (assistência de criação e direção), Walter Carvalho
(filme O homem vermelho), Renato Mangolin (filme Pele), Domenico Lancellotti (trilha original), entre outros
profissionais.
[8] “Dio come ti amo”, composição de Domenico Modugno que ficou mundialmente famosa na voz da
cantora Gigliola Cinquetti e por ser a canção vencedora do Festival de San Remo, em 1966. No mesmo ano, o
cineasta Miguel Iglesias dirigiu uma produção hispano-italiana com título homônimo, onde a cantora
interpretava a canção-título e outras composições de Modugno.
[9] No subcapítulo “La maladie comme figure du corps souffrant”, de seu livro L’image corps, Paul
Ardenne traça um panorama da representação do artista enfermo no século XX, a partir da análise de
autorretratos e de obras de cunho autobiográfico, tais como os de Frida Kahlo, Felix Gonzalez-Torres, Gerárd
Gasiorowski, entre outros. Cf. ARDENNE, 2010, p. 77-82.
[10] Nos casos das escritas de testemunho, por exemplo, ocorre uma reelaboração do instante da dor.
Segundo Hartman Geoffrey, há no testemunho “um desejo [do sujeito que o profere] de recuperar ou reconstruir
um receptor, uma ‘comunidade afetiva’” (GEOFFREY, 2000: 210) que se envolva com a história de dor narrada,
exigindo do ouvinte um comprometimento com o testemunho que lhe é endereçado. No entanto, escrever sobre a
dor não é garantia de que esta se inscreverá nas letras, pois há uma parcela de irrepresentável na dor que a faz
deslizar da sua apreensão em linguagem. Mesmo que, de acordo com David Morris (1998), a dor seja
intersubjetiva, isto é, constituída por fatores histórico-culturais que a tornam reconhecível para uma época, há
nos casos de tortura e de outros acontecimentos extremos um terreno de vivência cruel que é intransponível,
resistente e inacessível.
Bibliografia ARDENNE, Paul. L’image corps: figures de l’humain dans l’art du XXᵉ siècle. Paris: Éditions du
Regard, 2010.
BESSA, Marcelo Secron. Histórias positivas: a literatura (des)construindo a AIDS. Rio de Janeiro:
Record, 1997.
______. Os perigosos: autobiografias & AIDS. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
CLARK, Philip; GROFF, David (Org.). Persistent voices: poetry by writers lost to AIDS. New York:
Alyson Books, 2009.
FLANAGAN, Bob. The pain journal. Los Angeles: Semiotext(e)/Smart Art Press, 2000.
FOSTER, Hal. The return of the real: the avant-garde at the end of the century. Londres: MIT
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FRANK, Arthur W. The wounded storyteller: body, illness, and ethics. Chigaco; London: University
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GERE, David. How to make dances in an epidemic: tracking choreography in the age of AIDS.
Wisconsin: University of Wisconsin Press, 2004.
GEOFFREY, Hartman. Holocausto, testemunho, arte e trauma. In: NESTROVSKI, Arthur;
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000. p. 207-35.
JONES, Amelia. Body art: performing the subject. Minneapolis; London: University of Minnesota
Press, 1998.
KATZ, Helena. Começar de novo: solo de Marcelo Braga parte de sua vivência durante tratamento
médico. O Estado de S. Paulo. 30 de março de 2013. Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,comecar-de-novo,1014889,0.htm>. Acesso 19 de junho de 2013.
LAGNADO, Lisette. Leonilson: são tantas as verdades. São Paulo: DBA Artes Gráficas; Companhia
Melhoramentos de São Paulo, 1998.
MAUBERT, Franck. Conversas com Francis Bacon: o cheiro do sangue humano não desgruda
seus olhos de mim. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
MIRANDA, Wander Melo. Corpos escritos. São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: UFMG, 1992.
MORRIS, David B. Illness and culture in the postmodern age. Los Angeles: University of California
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SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
______. A doença e suas metáforas; AIDS e suas metáforas. Trad. Rubens Figueiredo e Paulo
Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
André Masseno. Coreógrafo e performer. Mestre e especialista em Literatura Brasileira pela UERJ.
Graduado em Artes Cênicas pela UNIRIO. Autor dos espetáculos solos ana/grama (1999), Explicit Lyrics
(2002), I’m not here ou A morte do cisne (2004), Outdoor Corpo Machine (2008) e O confete da Índia (2012).
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