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5 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 25 a 31 de agosto de 2008 Sidney Chalhoub io de Janeiro, 5 de abril de 1888. Imagi- ne um rapagão catita, a flanar pela rua do Ouvidor. Postura em- pertigada, olhar à di- reita, à esquerda, a cumprimentar ou- tros que tais, conhecidos de vista e de chapéu. Mais adiante, um garoto anun- cia aos gritos a Gazeta de Notícias, 40 réis, com as últimas novidades sobre o projeto do governo a respeito da abo- lição da escravidão, assunto do mo- mento. O guapo apalpa os bolsos do paletó, resgata dois vinténs, compra o jornal e enfia Confeitaria Paschoal adentro, não sem antes lançar um olhar furtivo aos pezinhos da dama que des- cia do carro logo à sua frente. Se pre- ferir, figure um trabalhador negro em mangas de camisa, a começar a cami- nhada no Campo de Santana, depois rua Visconde do Rio Branco em dire- ção à Praça da Constituição, para que- brar à direita na rua do Lavradio, em meio ao ir e vir de carregadores, cai- xeiros, marinheiros, meganhas. Veja- o entrar no botequim quase à esquina, sentar, pedir ao caixeiro português uma branquinha, porque depois de um dia a cavoucar é preciso relaxar, para en- tão soletrar em voz alta a Gazeta de Notícias, ouvidos espichados todos à volta, escravidão, abolição, liberdade, indenização, fuga em massa de escra- vos das fazendas... À segunda página, nossos dois lei- tores imaginários encontrariam o “Bons Dias!”, primeira crônica de uma série de Machado de Assis, mas não saberiam que era dele o texto, mesmo que se importassem com isso, pois a peça vinha sem assinatura, cortês na saída como na entrada, “Boas Noites”. Seu autor fictício apresentava-se como um ex-relojoeiro, que abandonara o ofício “cansado de ver que os relógios deste mundo não marcam a mesma hora”. Se o relógio atrasa, não adianta, dizia-se jocosamente àquele tempo. Anunciava a intenção de aparecer “uma vez por semana, com o meu chapéu na mão, e os bons dias na boca”. Chama- va-se Policarpo, descobrir-se-ia algu- mas crônicas depois, era um tanto brin- calhão, dizendo-se às vezes distraído, mas sempre empenhado em arrancar “aos fatos uma significação, e, depois, uma opinião”. Estão aí, em síntese, os elementos que permitiriam a Macha- do de Assis acompanhar em detalhe, nas semanas seguintes, por meio de textos de crítica social densa e humor cortante, a crise terminal da instituição da escravidão, assim como refletir so- bre as suas possíveis conseqüências quanto ao futuro da sociedade brasi- leira. Policarpo dialogava com os lei- tores e, ao fazê-lo, mostrava comparti- lhar com eles as incertezas do tempo. O relojoeiro tornado cronista esfor- çava-se para entender os diferentes pontos de vista à baila sobre o proble- ma da abolição. Relógios não podiam discrepar, pois a “única explicação dos relógios era serem iguaizinhos”. Quan- to aos assuntos políticos, ao contrário, se parecia natural que houvesse opini- ões divergentes, tinha de existir uma explicação razoável para cada perspec- tiva. Policarpo esforçava-se por mos- trar identidade com os modos de ver dos senhores de escravos, pois deviam ser também os seus. Numa crônica em que se gabava de sua boa educação em “terra de malcriados”, dizia ter sido criado por Florinda, “uma ama, escra- va”, e “apesar de escrava e ama, nunca lhe pus a boca no seio para mamar, que não pedisse licença”. Pedia com “um gesto dos olhos”. Em suma, o hábito da polidez lhe era natural, assim como o era a existência de uma ama escrava para lhe servir. Além disso, Policarpo possuía um escravo, o “molecote” Pancrácio, de “seus dezoito anos, mais ou menos”. Todavia, não parecia fácil dar sen- tido aos acontecimentos em meio ao turbilhão daqueles dias. Se os escra- vos lutavam pela liberdade, os senho- res de escravos defendiam a sua pro- priedade, ou ao menos queriam ser indenizados caso a perdessem. Poli- carpo matutava: “Lá que eu gosto da liberdade, é certo; mas o princípio da propriedade não é menos legítimo. Qual deles escolheria? Vivia assim, como uma peteca (salvo seja), entre as duas opiniões”. Lera no próprio jornal sobre uma reunião de acionistas do Banco Predial para tratar do problema dos escravos hipotecados. Em meio aos discursos proferidos, houve um tal Vilela que considerou a discussão toda sem sentido, “porque já não existem mais escravos”. Policarpo nem tivera tempo de ficar alegre com a notícia, pois recebera em seguida uma mensa- gem assinada por cerca de 600 mil pes- soas, que solicitavam a correção do que dissera o tal acionista: “Há escravos, eles próprios o são”. Os cativos signa- tários da carta observavam que “As palavras do Sr. Fernando Vilela podem ser entendidas de dois modos, confor- me o ouvinte ou o leitor trouxer uma enxada às costas, ou um guarda-chuva debaixo do braço. Vendo as coisas, de R A Abolição em crônicas guarda-chuva, fica-se com uma im- pressão; de enxada, a impressão é di- ferente”. Por cima dos ombros de Policarpo, numa tirada de humor cáus- tico, Machado de Assis lembrava que o que estava em jogo naqueles dias era o destino de centenas de milhares de pessoas que permaneciam escravizadas e que tinham a sua própria maneira de interpretar os debates políticos em cur- so sobre o assunto. Quiçá o principal tema de Macha- do de Assis nesses textos tenha sido a continuação da resistência escravocrata na undécima hora, além da dificulda- de de amplos setores daquela socieda- de em imaginar o mundo sem escravi- dão. A luta de escravos e abolicionistas trouxera balbúrdia completa às hostes escravocratas, nas quais passara a pre- dominar o mote do salve-se quem pu- der. Na crônica de 11 de maio de 1888, Policarpo mostra-se perplexo com as notícias de que em Campos e Ouro Preto havia fazendeiros dispostos a contratar escravos fugidos de outros proprietários, pagando-lhes salário, “e parece que bom salário”. Ora, “desde que os interessados rompiam assim a solidariedade do direito comum, é que a questão passava a ser de simples luta pela vida, e eu, em todas as lutas, estou sem- pre do lado do vencedor”. Mas como ser um vencedor, numa hora dessas, sen- do também proprietário de escravos? Os jornais daqueles dias estavam cheios de notícias de “alforrias incon- dicionais, que vêm cair como estrelas no meio da discussão da lei da aboli- ção”, reparava Policarpo. Com a abo- lição cousa decidida, aguardando-se apenas a lei que viria dias depois, tais alforrias consistiam em esforço deses- perado e patético de alguns proprietá- rios de escravos para deter a fuga em massa de seus cativos, já que não po- diam mais controlá-los. A esperança era que os escravos libertados pela ini- ciativa senhorial aceitassem ficar nas fazendas para trabalhar na colheita da- quele ano, agradecidos aos proprietá- rios por sua generosidade. É este momento de desorganização das relações entre senhores e escravos, descrito por Ferreira de Araújo, o dono da Gazeta de Notícias, como caracte- rizado pelo fato de os senhores já pen- sarem mais em “libertar-se dos escra- vos, do que em libertar escravos”, o assunto da crônica hilariante de 19 de maio de 1888. Nela, Policarpo conta que, antecipando-se à lei de abolição de 13 de maio, concedera liberdade ao seu “molecote” Pancrácio já no dia 7, pois que “os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se an- tecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpe- gos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu”. Policarpo, assim como os fazendeiros dos quais tanto se falava naqueles dias, tinha a esperança de que, agradecido, Pancrácio continuasse a trabalhar para ele em troca de um pequeno ordenado. A crônica inteira é escrita no mote da auto-ilusão senhorial, que imaginava ainda poder influir no rumo dos acon- tecimentos no momento em que mais estava ao reboque deles. Impressiona também, no modo sar- cástico como Machado de Assis repre- senta o ponto de vista escravocrata, a ênfase dos senhores na defesa do di- reito de propriedade. Como Machado sabia tão bem, até pelo motivo de ter lidado com isto ano após ano, em sua condição de chefe de repartição no ministério da Agricultura, o liberalis- mo era a última trincheira de defesa da escravidão na sociedade brasileira oitocentista. Para muita gente graúda no século XIX brasileiro, escravidão e liberalismo eram as duas faces da mes- ma moeda, doutrina que manteve os escravocratas aguerridos mesmo após o 13 de maio, pois insistiam em seu direito constitucional de indenização pela propriedade perdida. Na expectativa de que a indeniza- ção fosse afinal aprovada pelo gover- no, Policarpo expõe uma idéia ori- ginalíssima na crônica de 26 de junho de 1888. Ele se propunha a comprar quinhentos libertos. O truque era sim- ples. Aproximar-se-ia de fazendeiros que tivessem ex-escravos contratados. Acordaria com eles a obtenção de es- crituras de compra dos trabalhadores datadas de 29 de abril de 1888, por- tanto antes da lei de abolição. O preço que constaria da escritura seria o vi- gente desde a lei de 1885. O preço real pago por cada trabalhador seria bem inferior, dez mil-réis cada. Depois, “fi- cava esperando”. “Esperando o quê? Esperando a indenização, com todos os diabos! Quinhentos libertos, a trezen- tos mil-réis, termo médio, eram cento e cinqüenta contos”. Bastaria apresen- tar as escrituras ao poder público, tudo sem o inconveniente de lidar com os trabalhadores, transformados em pa- péis a resgatar junto ao Tesouro Naci- onal. Ao ridicularizar a pretensão de indenizar proprietários de escravos, Machado de Assis buscava intervir nas lutas políticas do seu tempo, deixando ver também que a luta contra as injusti- ças do legado escravocrata jaziam à frente, quiçá continuem à nossa frente. A principal fonte para a elaboração deste artigo foi Bons Dias! Machado de Assis, introdução e notas de John Gledson, Campinas, Editora da Unicamp, 2008 (3 a . edição). Sidney Chalhoub é professor titular no departamento de história da Unicamp, onde leciona desde 1985. Suas publicações mais relevantes para o tema deste artigo são: Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte (Companhia das Letras, 1990); Machado de Assis, historiador (Companhia das Letras, 2003) e, em colaboração com Leonardo Pereira e Margarida Neves, a coletânea intitulada História em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil (Editora da Unicamp, 2005). Quem é Quem é Fotos: Marc Ferrez/ Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles Foto: Editora da Unicamp Foto: Editora da Unicamp Acima, vendedoras no mercado, no Rio, em foto de 1875; abaixo, charges da Revista Ilustrada sobre a Abolição (à esq.) e Ferreira de Araújo, o dono da Gazeta de Notícias

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5JORNAL DA UNICAMPCampinas, 25 a 31 de agosto de 2008

Sidney Chalhoub

io de Janeiro, 5 deabril de 1888. Imagi-ne um rapagão catita,a flanar pela rua doOuvidor. Postura em-pertigada, olhar à di-

reita, à esquerda, a cumprimentar ou-tros que tais, conhecidos de vista e dechapéu. Mais adiante, um garoto anun-cia aos gritos a Gazeta de Notícias, 40réis, com as últimas novidades sobre oprojeto do governo a respeito da abo-lição da escravidão, assunto do mo-mento. O guapo apalpa os bolsos dopaletó, resgata dois vinténs, compra ojornal e enfia Confeitaria Paschoaladentro, não sem antes lançar um olharfurtivo aos pezinhos da dama que des-cia do carro logo à sua frente. Se pre-ferir, figure um trabalhador negro emmangas de camisa, a começar a cami-nhada no Campo de Santana, depoisrua Visconde do Rio Branco em dire-ção à Praça da Constituição, para que-brar à direita na rua do Lavradio, emmeio ao ir e vir de carregadores, cai-xeiros, marinheiros, meganhas. Veja-o entrar no botequim quase à esquina,sentar, pedir ao caixeiro português umabranquinha, porque depois de um diaa cavoucar é preciso relaxar, para en-tão soletrar em voz alta a Gazeta deNotícias, ouvidos espichados todos àvolta, escravidão, abolição, liberdade,indenização, fuga em massa de escra-vos das fazendas...

À segunda página, nossos dois lei-tores imaginários encontrariam o“Bons Dias!”, primeira crônica de umasérie de Machado de Assis, mas nãosaberiam que era dele o texto, mesmoque se importassem com isso, pois apeça vinha sem assinatura, cortês nasaída como na entrada, “Boas Noites”.Seu autor fictício apresentava-se comoum ex-relojoeiro, que abandonara oofício “cansado de ver que os relógiosdeste mundo não marcam a mesmahora”. Se o relógio atrasa, não adianta,dizia-se jocosamente àquele tempo.Anunciava a intenção de aparecer “umavez por semana, com o meu chapéu namão, e os bons dias na boca”. Chama-va-se Policarpo, descobrir-se-ia algu-mas crônicas depois, era um tanto brin-calhão, dizendo-se às vezes distraído,mas sempre empenhado em arrancar“aos fatos uma significação, e, depois,uma opinião”. Estão aí, em síntese, oselementos que permitiriam a Macha-do de Assis acompanhar em detalhe,nas semanas seguintes, por meio detextos de crítica social densa e humorcortante, a crise terminal da instituiçãoda escravidão, assim como refletir so-bre as suas possíveis conseqüênciasquanto ao futuro da sociedade brasi-leira. Policarpo dialogava com os lei-tores e, ao fazê-lo, mostrava comparti-lhar com eles as incertezas do tempo.

O relojoeiro tornado cronista esfor-çava-se para entender os diferentespontos de vista à baila sobre o proble-ma da abolição. Relógios não podiamdiscrepar, pois a “única explicação dosrelógios era serem iguaizinhos”. Quan-to aos assuntos políticos, ao contrário,se parecia natural que houvesse opini-ões divergentes, tinha de existir umaexplicação razoável para cada perspec-tiva. Policarpo esforçava-se por mos-trar identidade com os modos de verdos senhores de escravos, pois deviamser também os seus. Numa crônica emque se gabava de sua boa educação em“terra de malcriados”, dizia ter sidocriado por Florinda, “uma ama, escra-va”, e “apesar de escrava e ama, nuncalhe pus a boca no seio para mamar, quenão pedisse licença”. Pedia com “umgesto dos olhos”. Em suma, o hábitoda polidez lhe era natural, assim comoo era a existência de uma ama escravapara lhe servir. Além disso, Policarpopossuía um escravo, o “molecote”Pancrácio, de “seus dezoito anos, maisou menos”.

Todavia, não parecia fácil dar sen-tido aos acontecimentos em meio aoturbilhão daqueles dias. Se os escra-vos lutavam pela liberdade, os senho-res de escravos defendiam a sua pro-priedade, ou ao menos queriam serindenizados caso a perdessem. Poli-carpo matutava: “Lá que eu gosto daliberdade, é certo; mas o princípio dapropriedade não é menos legítimo.

Qual deles escolheria? Vivia assim,como uma peteca (salvo seja), entre asduas opiniões”. Lera no próprio jornalsobre uma reunião de acionistas doBanco Predial para tratar do problemados escravos hipotecados. Em meio aosdiscursos proferidos, houve um talVilela que considerou a discussão todasem sentido, “porque já não existemmais escravos”. Policarpo nem tiveratempo de ficar alegre com a notícia,pois recebera em seguida uma mensa-gem assinada por cerca de 600 mil pes-soas, que solicitavam a correção do quedissera o tal acionista: “Há escravos,eles próprios o são”. Os cativos signa-tários da carta observavam que “Aspalavras do Sr. Fernando Vilela podemser entendidas de dois modos, confor-me o ouvinte ou o leitor trouxer umaenxada às costas, ou um guarda-chuvadebaixo do braço. Vendo as coisas, de

RA Abolição em crônicas

guarda-chuva, fica-se com uma im-pressão; de enxada, a impressão é di-ferente”. Por cima dos ombros dePolicarpo, numa tirada de humor cáus-tico, Machado de Assis lembrava queo que estava em jogo naqueles dias erao destino de centenas de milhares depessoas que permaneciam escravizadase que tinham a sua própria maneira deinterpretar os debates políticos em cur-so sobre o assunto.

Quiçá o principal tema de Macha-do de Assis nesses textos tenha sido acontinuação da resistência escravocratana undécima hora, além da dificulda-de de amplos setores daquela socieda-de em imaginar o mundo sem escravi-dão. A luta de escravos e abolicionistastrouxera balbúrdia completa às hostesescravocratas, nas quais passara a pre-dominar o mote do salve-se quem pu-der. Na crônica de 11 de maio de 1888,Policarpo mostra-se perplexo com asnotícias de que em Campos e OuroPreto havia fazendeiros dispostos acontratar escravos fugidos de outrosproprietários, pagando-lhes salário, “eparece que bom salário”. Ora, “desdeque os interessados rompiam assim asolidariedade do direito comum, é que aquestão passava a ser de simples luta pelavida, e eu, em todas as lutas, estou sem-pre do lado do vencedor”. Mas como serum vencedor, numa hora dessas, sen-do também proprietário de escravos?

Os jornais daqueles dias estavamcheios de notícias de “alforrias incon-dicionais, que vêm cair como estrelasno meio da discussão da lei da aboli-ção”, reparava Policarpo. Com a abo-

lição cousa decidida, aguardando-seapenas a lei que viria dias depois, taisalforrias consistiam em esforço deses-perado e patético de alguns proprietá-rios de escravos para deter a fuga emmassa de seus cativos, já que não po-diam mais controlá-los. A esperançaera que os escravos libertados pela ini-ciativa senhorial aceitassem ficar nasfazendas para trabalhar na colheita da-quele ano, agradecidos aos proprietá-rios por sua generosidade.

É este momento de desorganizaçãodas relações entre senhores e escravos,descrito por Ferreira de Araújo, o donoda Gazeta de Notícias, como caracte-rizado pelo fato de os senhores já pen-sarem mais em “libertar-se dos escra-vos, do que em libertar escravos”, oassunto da crônica hilariante de 19 demaio de 1888. Nela, Policarpo contaque, antecipando-se à lei de aboliçãode 13 de maio, concedera liberdade aoseu “molecote” Pancrácio já no dia 7,pois que “os homens puros, grandes everdadeiramente políticos, não são osque obedecem à lei, mas os que se an-tecipam a ela, dizendo ao escravo: éslivre, antes que o digam os poderespúblicos, sempre retardatários, trôpe-gos e incapazes de restaurar a justiçana terra, para satisfação do céu”.Policarpo, assim como os fazendeirosdos quais tanto se falava naqueles dias,tinha a esperança de que, agradecido,Pancrácio continuasse a trabalhar paraele em troca de um pequeno ordenado.A crônica inteira é escrita no mote daauto-ilusão senhorial, que imaginavaainda poder influir no rumo dos acon-tecimentos no momento em que maisestava ao reboque deles.

Impressiona também, no modo sar-cástico como Machado de Assis repre-senta o ponto de vista escravocrata, aênfase dos senhores na defesa do di-reito de propriedade. Como Machadosabia tão bem, até pelo motivo de terlidado com isto ano após ano, em suacondição de chefe de repartição noministério da Agricultura, o liberalis-mo era a última trincheira de defesa daescravidão na sociedade brasileiraoitocentista. Para muita gente graúdano século XIX brasileiro, escravidão eliberalismo eram as duas faces da mes-ma moeda, doutrina que manteve osescravocratas aguerridos mesmo apóso 13 de maio, pois insistiam em seudireito constitucional de indenização

pela propriedade perdida.Na expectativa de que a indeniza-

ção fosse afinal aprovada pelo gover-no, Policarpo expõe uma idéia ori-ginalíssima na crônica de 26 de junhode 1888. Ele se propunha a comprarquinhentos libertos. O truque era sim-ples. Aproximar-se-ia de fazendeirosque tivessem ex-escravos contratados.Acordaria com eles a obtenção de es-crituras de compra dos trabalhadoresdatadas de 29 de abril de 1888, por-tanto antes da lei de abolição. O preçoque constaria da escritura seria o vi-gente desde a lei de 1885. O preço realpago por cada trabalhador seria beminferior, dez mil-réis cada. Depois, “fi-cava esperando”. “Esperando o quê?Esperando a indenização, com todos osdiabos! Quinhentos libertos, a trezen-tos mil-réis, termo médio, eram centoe cinqüenta contos”. Bastaria apresen-tar as escrituras ao poder público, tudosem o inconveniente de lidar com ostrabalhadores, transformados em pa-péis a resgatar junto ao Tesouro Naci-onal. Ao ridicularizar a pretensão deindenizar proprietários de escravos,Machado de Assis buscava intervir naslutas políticas do seu tempo, deixandover também que a luta contra as injusti-ças do legado escravocrata jaziam àfrente, quiçá continuem à nossa frente.

A principal fonte para a elaboração deste artigofoi Bons Dias! Machado de Assis, introdução enotas de John Gledson, Campinas, Editora da

Unicamp, 2008 (3a. edição).

Sidney Chalhoubé professor titular nodepartamento de história daUnicamp, onde leciona desde1985. Suas publicações maisrelevantes para o tema desteartigo são: Visões da liberdade:uma história das últimas décadasda escravidão na Corte(Companhia das Letras, 1990);Machado de Assis, historiador(Companhia das Letras, 2003) e,em colaboração com LeonardoPereira e Margarida Neves, acoletânea intitulada História emcousas miúdas: capítulos dehistória social da crônica no Brasil(Editora da Unicamp, 2005).

Quem éQuem é

Fotos: Marc Ferrez/ Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles

Foto: Editora da Unicamp Foto: Editora da Unicamp

Acima, vendedoras no mercado, no Rio, em foto de 1875; abaixo, charges da Revista Ilustrada sobre a Abolição (à esq.) e Ferreira de Araújo, o dono da Gazeta de Notícias