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  • 7/25/2019 CAMENIETZKI, Carlos Ziller_ MEIRELLES, Rejane Da Conceio. Frgeis Damas e Mulheres Fortes - A Representa

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    Frgeis damas e mulheres fortes:a representao feminina na Restaurao de

    Portugal (1640-1668)*

    Carlos Ziller Camenietzki**

    Rejane da Conceio Meirelles***

    Resumo

    Os escritores de Portugal no se furtaram a representar asmulheres portuguesas durante a Guerra da Restaurao (1640-1668). Essas imagens, baseadas em escritos de poca, seapresentavam aos leitores com um sentido bastante especfico eligado aos objetivos dos diferentes partidrios do golperestaurador. Com o passar do tempo, elas mudam de significado eacabam se integrando na pauta prpria dos debates de cadapoca especfica. Assim, para o tempo de agora, cumpre destacaro papel da combatente feminina desta guerra personalizado emIsabel Pereira, mulher de Ouguela.

    Palavras-chave: Restaurao de Portugal, Guerra contra Castela,Mulheres Combatentes, Fidalgas e Patriotas.

    * Recebido para publicao em maio de 2007, aceito em janeiro de 2008.**Doutor pela Universit de Paris IV-Sorbonne, Professor de Histria Modernada UFRJ. [email protected].

    *** Mestranda em Histria pelo Programa de Ps-Graduao em Histria Socialda UFRJ. [email protected].

    cadernos pagu(30),janeiro-junho de2008:373-394.

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    Frgeis damas e mulheres fortes

    Fragile Ladies and Strong Women:the Feminine Representation in the Restoration of Portugal (1640-1668)

    Abstract

    Representing the different views opposing each other during theRestoration War (1640-1668), Portuguese writers were also talkingabout the women in their country. As time goes by, the meaningsof these images of women change, and they are finally made apart of the specific historical agenda of this period. For our owntime, the distinguished makings of the fighter Isabel Pereira, awoman from Ouguela, is discussed here.

    Key Words: Restoration in Portugal, War against Castile, WomenFighters, Nobles and Patriots.

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    Muitas vezes, em funo de problemas e tenses dopresente, atentamos a temas do passado em busca de argumentosque fortaleam nossos pleitos. Com isso, ao escolhermos nessenebuloso tempo pretrito a imagem mais adequada, trazemos comela elementos secundrios que no parecem ter efeito imediato nadisputa de agora, mas que acabam por consolidar uma idia dopassado francamente contraditria com os testemunhos e osresduos deixados por aqueles tempos.

    Em trinta de maio de 1840, encenou-se em Lisboa umapea que viria a se tornar clebre: Philippa de Vilhena (Almeida

    Garrett, 1846:30-105). Obra ambientada s vsperas do golpe querestaurou a independncia portuguesa diante da MonarquiaCatlica de Castela, em primeiro de dezembro de 1640, elacontribuiu significativamente para a formao da imagem damulher portuguesa durante a guerra que se seguiu entre o reinorecm-liberto e seus anteriores governantes. certo que D.Philippa de Vilhena, na verso de Almeida Garrett autor dotexto no foi a nica verso, talvez nem mesmo a maisimportante sobre o feminino portugus e sobre seu empenho nadefesa da ptria (sempre bom lembrar que neste tempo haviacerca de trinta anos das invases napolenicas em Portugal).Porm, trata-se de pea de largo sucesso, encenada e editada

    diversas vezes, adotada nas escolas e celebrada em exposies emostras sobre a Restaurao do reino. Por essa razo, cabe detidareflexo sobre ela, sobre a imagem feminina que busca consolidare sobre seu confronto a documentos de poca, tratando dasmulheres portuguesas durante os vinte e oito anos dos combates.

    A passagem tida como momento sntese da pea a fala deD. Philippa enquanto arma seus dois filhos na madrugada doprimeiro de dezembro de 1640.

    Meus amigos e meus parentes, eu sou uma pobre viva aquem Deus privou de toda a fora e amparo neste mundo(...) A ptria precisa de todos, tudo. Aqui esto meus filhos.

    No tenho mais nada... Meus filhos! Ajoelhai. Aqui esto

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    no altar de Deus e da ptria... Vtimas inocentes e puras!Aceitai-as, meu Deus!... e dai-nos a vitria! Vo banhadascom algumas lgrimas, que se no podem conter nocorao ... perdoai-mas, Senhor. Sou me, e estes someus filhos. Senhores, uma espada na mo de umamulher que mal pode com ela. (...) Ajoelhai, meus filhos.Vossos avs foram armados cavaleiros nos campos debatalha por braos de reis com as espadas de grandescapites. Vs, criancinhas, vossa me, que ainda ontemvos acalentava, vossa me que lhe treme o brao, que lherebenta o choro nos olhos, que aqui est sustida duma

    fora sobrenatural que ela mesma no compreende...Arma-vos vossa me, filhos, e sereis to bons cavaleiroscomo os que vos precederam, porque eu tenho f, porquechamo por Deus em cujo nome vos dou estas armas, e vosdigo D. Jernymo de Atade, D. Francisco Coutinho, emnome de Deus e de vossos avs, eu vos armo cavaleiros.Tomai esta espada e no vos sirvais della seno paradefender a religio, a ptria, a liberdade do povo e osvossos legtimos reis.1

    O trecho, que compe uma obra de fico teatro feita

    com fins comemorativos da Restaurao da independnciapoltica, efetivamente muito emotivo, forte, e demonstra acapacidade criativa de seu autor. Certamente, Almeida Garrettsabia perfeitamente que uma cena dessas nunca poderia ter lugarem Portugal de tempo algum. Armar cavaleiros apoiando aespada a seus ombros um mote importante da IdadeMdia, vista pela literatura romntica do sculo XIX, mas coisaque em terras lusas no faz o menor sentido, sobretudo paraacontecimentos do tempo da Restaurao. D. Philippa, que nestetempo contava j seus quase sessenta anos, apresentada aquicomo uma jovem e frgil senhora, ela que nada tinha dedesprotegida: era viva do Conde de Atouguia, mulher fidalga.

    1 Cena VI, Segundo ato (pp.77-9 da edio que utilizamos). A pea foiencenada pela primeira vez em 30 de maio de 1840 no teatro Salitre de Lisboa.

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    Seus filhos, D. Jernymo de Atade e D. Francisco Coutinho, oscavaleiros na pea, representados como crianas intrpidas,contavam j com mais de vinte anos em dezembro de 1640; eramhomens feitos e experimentados.

    Mas o problema relevante nessa passagem no aidentificao das impossibilidades histricas ou de uma hipotticafidelidade ao passado. Neste ensaio, interessa identificar o modelofeminino que Almeida Garrett buscou fixar com esse trecho. Aqui,a personagem imagem da fidalga que o romantismo portugusdesejou cultuar: mulher frgil, porm decidida; me delicada, mas

    vigorosa e comprometida com os ideais da nobreza, capaz delanar seus rebentos numa operao perigosa pela liberdade daptria; algum que mal pode segurar uma espada sem o concursoda Divina Providncia.

    O autor do texto certamente contou com o apoio decisivodo mais afamado historiador portugus da Restaurao, D. Lusde Menezes, Conde da Ericeira, autor da conhecida Histria dePortugal Restaurado, publicada pela primeira vez em 1679. Nestaobra, Ericeira relata uma curta passagem sobre D. Philippa deVilhena e seus filhos na madrugada do primeiro de dezembro. Ostermos so os seguintes:

    Preveniram-se e armaram-se todos, e foi muito para louvaro valor de D. Philippa de Vilhena, condessa de Atouguia,porque, fiando-se da sua prudncia o segredo destenegcio, ajudou a armar seus dois filhos D. Jernimo deAtade e D. Francisco Coutinho, e os exortou a conseguir avalorosa ao que empreendiam (Menezes, 1945:119).

    Comparando a narrativa de um contemporneo dosacontecimentos com o texto da pea do sculo XIX, no difcilimaginar que a expresso ajudou a armar transformou-se emarmou cavaleiro, na apreenso do escritor romntico. Tambmno impossvel supor que o tema da Restaurao restaurar,

    recompor o que se desfez tenha ajudado a inspirao de

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    Almeida Garrett a retroceder a um tempo supostamente medieval,para compor sua imagem da Condessa de Atouguia, emborasaibamos que esses rituais de sagrao de cavaleiros em nadacombinam com a conquistadora Idade Mdia portuguesa.

    Mas o acontecido ganhou notoriedade. A passagem daHistria do Conde da Ericeira teve foro de testemunhoprivilegiado dos feitos da guerra e da poltica do reino durante osquase trinta anos do conflito. O ponto-de-vista de D. Lus deMenezes sobressaiu dentre os demais de seu tempo e a histriafidalga da Restaurao acabou por suplantar suas concorrentes.2

    verdade que, no que respeita passagem relativa a D. Philippa, ostestemunhos no andavam muito diferentes, conforme pode servisto no livro de Giovanni Battista Birago, escrito por instncia deD. Vasco Lus da Gama, Marqus de Niza e ento embaixador deD. Joo IV na Frana.3 Outro testemunho do sculo XVII, deAlessandro Brandano, tambm escritor fidalgo, este a servio deD. Pedro II, aproveita para lembrar a incapacidade do sexofeminino em sua narrativa dos acontecimentos daquelamadrugada.4 Um tanto mais generoso, o Abade Vertot, em sua

    2 A restaurao da independncia portuguesa foi objeto de inmeras obrashistricas do sculo XVII. De fato, um acontecimento poltico europeu de tanta

    importncia, j tido como marco do declnio espanhol no tenso equilbrio docontinente, no poderia deixar de atrair as atenes. No apenas por isso, masas reviravoltas do governo portugus durante o reinado de D. Afonso VI e assuas inmeras peripcias diplomticas tambm foram objeto de forte interesse ede intensa disputa.3 Em cuja glria entram as mesmas damas to animosas que armaram seusprprios filhos e irmos, para que fossem libertar a ptria. Tal foi D. Philippa deVilhena, Condessa de Atouguia, que na mesma manh que devia seguir aaclamao, armou com suas prprias mos o Conde D. Jernimo e D FranciscoCoutinho, seus filhos animando-os a ir e realizar conforme convinha ao seunascimento, lamentando no poder acompanh-los naquela ocasio com ocorpo como os acompanhava com a vontade. (Birago, 1647:185-6).4 Foi coisa bastante notvel e digna de ser eternamente guardada pela memriados vindouros que na noite que precedeu a um to maravilhoso acontecimento,as principais damas e matronas partcipes da planejada revoluo animaram,contra o costume da imbecilidade daquele sexo, com eficazes emulaes os

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    primeira obra, caracteriza a participao de D. Philippa de Vilhenade modo mais dramatizado, incluindo uma hipottica fala dacondessa a seus filhos.5

    Antnio de Sousa de Macedo, secretrio da embaixada Inglaterra nos primeiros tempos do governo de D. Joo IV,empenhado escritor poltico da Restaurao, futuro Secretrio deEstado no governo de Castelo Melhor, sob Afonso VI, tambmdeixou registro da ao de D. Phelippa. Seu livro foi publicado emLondres ainda em 1645 e Sousa de Macedo trata do empenhofeminino na madrugada do primeiro de dezembro em termos

    pouco dramatizados, porm no menos entusiasmados.6

    Porm, areferncia que mais importa aqui citar aquela de Joo PintoRibeiro, importante organizador do golpe restaurador e importantepoltico dos primeiros anos da independncia recuperada. Diz ele:

    Mais que muito, pois aquele generoso esprito de DonaPhilippa de Vilhena, ilustre Condessa de Atouguia, armoupor suas mos, naquela manh a seus filhos, o Conde D.Jernimo de Atade, & D. Francisco Coutinho, animando-os a obrarem como quem ero, em servio de sua ptria, &

    maridos e os filhos realizao da empreitada, ajudando-os a vestir as armas que

    deveriam empregar para a comum libertao da sua Ptria. (Brandano,1689:53).5 Diversas mulheres quiseram participar da glria desta jornada. A Histriaconserva a memria de D. Philippa de Vilhena, que armou com suas prpriasmos seus dois filhos; e aps lhes ter dado suas couraas: 'ide meus filhos, lhesdisse ela, acabar com a tirania, e nos vingar de nossos inimigos e estejais segurosque se o desfecho no corresponder a nossas esperanas, vossa me nosobreviver um s instante ao sofrimento de tantas pessoas de bem' (Vertot,sd:88-9). A obra foi editada pela primeira vez em 1689 com o ttulo de Histoiredes Conjurations du Portugal.6 Dignssimo de memria o que fizeram D. Philippa de Vilhena, Condessa deAtouguia, e D. Antnia da Silva, filha de D. Anto d'Almada que armaram comsuas prprias mos seus filhos; aquela o Conde D. Jernimo e D. Francisco, estaD. Lus da Cunha; e armados foram conclamados generosamente a lutar pela

    liberdade: a vida mais miservel bem pode se transformar na morte mais digna(Macedo, 1645:561-2).

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    da liberdade de todos, sentida & invejosa de os no poderacompanhar naquele ato, como os acompanhava navontade e no valor (Ribeiro, 1730:31).7

    Conforme se pode ver facilmente, a imagem da mulher

    fidalga portuguesa de Almeida Garrett em nada se parece comaquela deixada pelos seus contemporneos e pelos historiadoresdo sculo XVII.8

    Contudo, a fidalguia apenas parte do problema que nosocupa. Bem mais interessante que o ato da Condessa encorajandoseus filhos e as interpretaes dos tempos posteriores sobre esteacontecido so os testemunhos da ao efetiva das portuguesasnas vilas e nas cidades em que o conflito militar realmenteocorreu. Aqui, claro, trata-se de outro tipo de mulher: nenhumamulher fidalga participou de qualquer combate na fronteira, nohouve Jeanne DArc nas zonas do conflito luso-castelhano de1640-1668, no houve comandante militar feminino que tenhasido registrado pelos testemunhos que nos restaram. Porm, cabe-nos lembrar que nem s de fidalgos so feitas as crnicas ehistrias da Restaurao e nem s de fidalgas so feitos osregistros do passado. Aldes, camponesas, burguesas, freiras emuito mais estiveram presentes no conflito e certamente o registro

    de seus feitos ainda que poucos pode revelar elementosimportantes da condio feminina na guerra, nesta guerra.

    * * *

    7 A primeira edio deste livro data de 1642. O trecho de Birago, citado acima, praticamente uma traduo desta passagem de Joo Pinto Ribeiro.8 Outros escritores da Restaurao tambm tratam do feito de D. Philippapraticamente nos mesmos termos que os citados, e por isso dispensam refernciadireta no presente texto. Chamo a ateno apenas para a obra de Passarelli(1684) por sua difuso no norte da Europa. Contudo, importante lembrar quenem todos os publicistas da Restaurao registraram o feito de D. Philippa, veja-

    se a ausncia eloqente de qualquer referncia a ela no texto de Maia deAzevedo(1641).

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    A Guerra da Restaurao da independncia de Portugalfoi travada no terreno blico propriamente dito, tal e qualtoda guerra, com enfrentamentos militares na fronteira, etc.,mas tambm no publicismo, no debate jurdico e na diplomacia.Inmeros escritores de Portugal se lanaram em manifestos,histrias e em relatos sobre a evoluo do conflito; os castelhanos, claro, tambm fizeram o mesmo e ambos mobilizaram escritoresde diversos pases da Europa. A Restaurao de Portugal foi, defato, um dos grandes acontecimentos do Velho Mundo no sculoXVII.

    Para o que interessa no momento dentre todo esse materialimpresso, as relaes de guerra so capazes de ajudar acompreender a condio feminina neste processo. Eram estasrelaes textos curtos que narravam acontecimentos doconfronto. Seus autores, na imensa maioria no identificados,eram homens que acompanhavam as tropas militares,secretrios, encarregados, etc. e registravam as proezas dosportugueses nas fronteiras, ou escritores do governo quereelaboravam o material relatado na frente de combate. Dada aquantidade de relaes e sua distribuio ao longo dos quasetrinta anos do conflito, podemos dizer que formam um conjuntobastante expressivo daquilo que se desejava fazer crer sobre os

    combates e sobre a atitude dos portugueses. Afinal, esses textoseram escritos a partir de registros da fronteira e impressos paracirculao e leitura nas cidades e nas vilas do reino.

    As relaes foram publicadas durante todo o perodo daguerra, mas elas so mais abundantes no incio do confronto(1641-1645) e, nesta fase, as aes das mulheres aparecem commaior freqncia. H, nessas primeiras publicaes, uma fortepreocupao por parte de seus autores em expressar a galhardia ea determinao de todo o povo portugus, incluindo as mulheres,na luta pela restaurao da independncia poltica; note-setambm que elas buscam enaltecer a ao dos capites e dos mais

    novos chefes militares que agiam nas escaramuas e nos conflitos.

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    Ao passo que, nas ltimas, o relato fica bem mais restrito aodesempenho dos soldados e dos grandes chefes militares.

    No momento, interessa a peculiaridade da ao dasmulheres e o modo de sua participao nas batalhas. Percebe-sefacilmente que aquelas que esto presentes nos acontecimentosno so passivas nem fracas, tampouco apenas encorajam oshomens; ao contrrio, elas so retratadas exercendo um papelimportante e ativo nos campos de batalha. Mulheres destemidas,dotadas de conscincia do dever patritico e da coragemcomumente conferida apenas aos homens so caractersticas

    detectadas sem muito esforo nas relaes. So-nos oferecidas,pelas penas dos autores, descries de enfrentamentos em quebravas e corajosas mulheres ofereciam a vida pela independnciade Portugal. Em uma das relaes encontra-se a seguintepassagem sobre uma mulher, que bem ilustra isso:

    Achou-se nesta ocasio em Ouguella uma mulher tovaronil, que saiu com um chuo s trincheiras e entre osnossos soldados ajudou a resistir ao inimigo, comoqualquer entre eles, e afirma-se, que dos que mataramforam alguns por sua mo, feriram-na na cabea equerendo os nossos recolh-la para se curar, o noconsentiu, antes perseverou animosa, pelejando com maisirritado valor.9

    9Relaam dos gloriosos sucessos, que as armas de Sua Magestade El Rey D.Joam IV N. S. tivero nas terras de Castella, neste anno de 1644 at amemorvel Victoria de Montijo. Anno 1644. Lisboa, Antnio Alvarez, 1644, p. 7e 8. O folheto encontra-se na Coleo Diogo Barbosa Machado, Notcias dossucessos militares, Tomo II, 1643-1653. Dada a natureza desses impressos, sualocalizao nas bibliotecas de Portugal muito difcil. Contudo, o biblifiloBarbosa Machado recolheu uma grande quantidade delas e as organizou emcinco grossos volumes de sua coleo. Seguimos a numerao das pginas desta

    coleo e assinalamos ao final da referncia o volume em que se encontra otexto.

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    Alm do j citado louvor atitude de uma mulher nocombate, chama a ateno o inaudito modo como ela adentrou nouniverso blico: de sua prpria iniciativa. Tornam-se soldados asmulheres por um ato corajoso, inesperado e, sobretudo, voluntrio.E mais do que isso, soldado valoroso que matou alguns inimigoscom sua arma10 e, mesmo ferida, ainda mais vigorosamentecombateu e mostrou seu valor. curioso reter ainda que o nomeda mulher no apresentado: uma annima inesperada invade acena e, com sua fria, chama a ateno do leitor.

    Mas os escritores das relaes, neste particular, no se

    limitaram descrio de proezas femininas durante a peleja nemao registro de sua curiosa insero por iniciativa prpria. Alm deabundantes narrativas hericas sobre as mulheres no front, hrelaes em que os autores buscam enaltecer o procedimentodiferenciado de suas compatriotas por intermdio de refernciashistrico-literrias, buscando em antigas crnicas romanas eportuguesas uma ilustrao do valor das mulheres portuguesas. Opassado confirma a ao herica das mulheres de Portugal.Especificamente nessa relao, busca-se na literatura histrica alembrana de mulheres que voluntariamente se tornaramelementos eficazes nas batalhas de outrora, tendo como elementofundamental a atitude herica de cada uma delas:

    Aqui vemos renovadas as faanhas no s dos homens,mas ainda das mulheres Portuguesas, de que fazemmeno as Crnicas Romanas e as nossas. Porqueaqui andaram as mulheres no meio do conflito ajudandoaos maridos e carregando-lhes os arcabuzes, para osdescarregarem no Castelhano, a que fizeram retirar,deixando s nossas vistas duzentos infantes mortos. No foimenor o zelo de uma mulher do mesmo lugar, que vendo

    10Embora a palavra chuo ainda esteja em uso, seu significado mudou muitonos ltimos quatro sculos. Raphael Bluteau, no seu vocabulrio, assegura que se

    tratava de arma corrente nos combates do sculo XVII uma espcie de lana(Bluteau, 1712:304).

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    entre os inimigos um tio seu, que daquele lugar se passarafugitivo para Castela, e tornava contra sua ptria, lhe atiroucom uma pedra, de que o matou, mostrando que quemnegava sua ptria, os mesmos parentes por honra sua lhedeviam dar a morte.11

    A passagem mostra que a mulher em questo agiu seguindo

    uma hierarquia de valores bastante especfica e surpreendentequando se considera que o episdio teria ocorrido em meados dosculo XVII, em plena ascenso do que chamado de AntigoRegime. A ptria situa-se no topo da hierarquia com o valor

    mximo, sobrepondo-se inclusive estrutura familiar e aoparentesco mesmo nas situaes mais delicadas. Diante daescolha entre imolar a vida de um ente familiar e cumprir umdever patritico, ou proteger um parente e compactuar com atraio ptria, a primeira opo a que deve ser tomada, e aquela que foi adotada pela annima mulher da fronteira deAlmeida. Quer o escritor convencer seus leitores, em 1642, de quea prpria famlia pode ser sacrificada em virtude do bem-estar epromoo da ptria; e mais, de que o agente deste sacrifcio uma mulher!

    O ideal romano de ptria, descrito por Ccero e certamente

    muito conhecido dos autores lusos do sculo XVII, parece relevar-se nesta situao: prefira-se a salvao da Ptria conservaodo pai (Caneca, 2001:90). Tambm Tito Lvio, outro autorbastante cultuado em toda a Europa daquele tempo, parece terseu mote confirmado pelas lusas da Restaurao: o cidadovirtuoso tem a Repblica em maior preo do que os parentescosparticulares (Id. ib.). Essa reflexo, expoente da firme posio noque tange ao amor ptria, ultrapassou tempos e mares. At nosculo XIX, essas citaes romanas foram empregadas por Frei

    11Facoens venturosas que tivero na fronteira de Almeida o General FernoTelles de Menezes, & o Mestre de Campo D. Sancho Manoel, contra o inimigo

    castelhano, em 2. & 4. deste mes de Novembro do anno presente 1642 . Lisboa,Domingos Lopes Rosa, 1642, p. 8. Barbosa Machado, op. cit.,Tomo I:352.

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    Caneca, em meio s discusses relacionadas com as disputaspolticas entre os governos provinciais e o governo central noimprio brasileiro. certo que a ptria da portuguesa dafronteira e aquela do escritor da relao no a mesma de Cceroou de Tito Lvio, ou ainda aquela de Frei Caneca e dos escritoresdo sculo XIX, contudo, firma-se o parmetro, e sua projeo emtodo o Ocidente contemporneo e moderno claramenteperceptvel: ptria tudo.

    A participao feminina nas guerras do sculo XVII no serestringia costumeira condio de vtima preferencial da

    ferocidade dos vencedores ou de fonte de insegurana dos seuscombatentes. Durante a investida galega de 1658no Minho, nortede Portugal, uma pequena passagem do Conde da Ericeira sobreo cerco de Lapela nos evidencia esse ltimo papel reservado smulheres: o terror incutido nos soldados pela viso dos cadverese pela aflio das mulheres e das crianas provoca a rendioindevida do governador portugus.12

    Alm dessas participaes, diversas mulheresacompanhavam os conflitos em condies variadas: seguiam astropas guardando os frutos dos saques, cuidando dos filhos e domaterial de seus companheiros; para os soldados profissionaisnas guerras prolongadas, cozinhavam e preparavam o material

    blico, carregavam as armas de fogo ligeiras (arcabuzes, etc.) erealimentavam combatentes, cuidavam dos feridos. Em batalhasde defesa, como a maior parte daquelas retratadas nas relaesque estudamos, participavam dos feitos como resistentes

    12Governava Lapela Gaspar Lobato de Lanis, soldado de valor, porm, maiscarregado de anos que de experincias, o que logo se comeou a verificar,admitindo no castelo muitas mulheres e meninos que costumam ser incentivos dapouca constncia dos soldados na defesa das praas... mais adiante, Ericeiraconfirma seu parecer... Gaspar Lobato, perturbado do clamor das mulheres emeninos, e assombrado do horror dos mortos e ameao dos galegos, fezchamada e se rendeu com cento e cinquenta soldados, trs peas de artilharia,

    quantidade de munies e bastimentos com que pudera defender o castelomuitos dias (Menezes, 1945 [1679]:168-9).

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    defensoras de suas cidades e aldeias e, na menos marcante dasatuaes, guardavam e protegiam as crianas.

    Do modo tratado no presente estudo, diante do testemunhoquente dos combates, no possvel considerar o feito blicoapenas como proeza daqueles que se enfrentaram com as armasem punho, buscando uma vitria de grande significado. Por maisque queiramos, no nos possvel ver uma guerra prolongadaapenas como arranjo de fidalgos em busca de promoo. E, nessaguerra lenta e combatida mais em escaramuas que em grandes eretumbantes batalhas, diversas mulheres se apresentam como

    valorosos e vigorosos soldados.No cerco de Mono, efetuado pelas foras de Castela entreoutubro de 1658 e fevereiro de 1659, o empenho feminino nadefesa da cidade ganhou destaque na obra do conde da Ericeira.Referindo-se aos momentos finais do cerco, pouco antes da suarendio aos galegos, diz ele:

    ...sendo tantos os mortos e os feridos, que faltava quemguarnecesse os postos mais importantes, e at nas mulheresfaziam lastimoso emprego. Governava as trinta que ficaramna praa, Helena Peres, mulher que havia sido de JooFilgueira, com um chapu na cabea e um chuo nas mos

    conduzia as outras aos maiores conflitos, sem se conhecerem alguma delas o menor indcio de temor (Id. ib.:238).

    O conde certamente no dissimula suas expectativas quantoao desempenho militar das mulheres e menos ainda aquilo queconsiderava ser seu lugar efetivo numa frente de combate.Contudo, o registro da ao blica das trinta mulheres de Monochegou at ns e ele tambm colocou seus feitos na seqnciahistrica lembrando que ... timbre de todas as mulheres deMono imitarem Deusadeu Martins..., lendria figura dasguerras passadas entre portugueses e castelhanos na regio. Comesse registro, Ericeira tambm contribuiu para consolidar mitos

    regionais lusitanos sobre as mulheres minhotas, ativos ainda hoje,no sculo XXI.

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    Tambm no passou despercebida ao conde da Ericeira acolaborao da condessa de Castelo Melhor nos combates de seumarido, governador das armas do Minho e pai de LusVasconcelos e Sousa, futuro Escrivo da Puridade poucos anosdepois. D. Mariana de Lencastre teria enviado cento e cinqentasoldados em socorro do conde, contudo ...foram sentidos edesbaratados mostrando o varonil esprito da condessa, que atnas desgraas da guerra acompanhava fielmente a seu marido(Id. ib.:169). Claro fica, ainda, que o historiador apreciava bempouco o Conde de Castelo Melhor e menos ainda seu filho, com

    quem viveu difcil confronto nos anos seguintes.Em algumas ocasies, a mulher chega a ocupar o papelprincipal no teatro das operaes. No combate, elas eramsoldados impvidos, causando baixas ao inimigo mesmo diantedos reveses mais inesperados. Na logstica, eram ajudanteseficientes. Na ptria, smbolo de coragem:

    E sobre todos se realou o feito da outra mulher, que namesma vila matou por detrs de uma porta com umacachaporra sete castelhanos, imitao da celebre forneirade Aljubarrota, mas menos venturosa no sucesso, pois comdois piloros a mataram por cima de um telhado. E depois

    de morta foi achada com uma criana de peito mamando-lhe nos seus. Fazem meno destas faanhas, porque seveja que com as ocasies ressuscitam os brios nosPortugueses, e que com razo disseram os Castelhanosnesta ocasio, que quatro sebosos Portugueses haviamburlado de toda Castela.13

    Arma comum nos combates daquele tempo: o porrete. Delese serviu uma mulher com tal eficcia que deu morte a setecastelhanos. Defendia sua aldeia esta mulher que teve por pagado seu feito a morte por balas inimigas. Imagem forte ainda maisreforada com a notcia de ter sido achada morta com uma

    13Facoens venturosas... op. cit.:8.

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    criana mamando-lhe os peitos. Mais feminino que isso, difcilencontrar.

    Contudo, no se trata aqui de verossimilhana, ademais,depois de baleada com dois pelouros, no de se crer que possaestar em condies de amamentar, ainda que ela tivesse filhopequeno. Trata-se de uma imagem oferecida ao pblico vivo eafastado da frente de combate, aos leitores de Lisboa, deCoimbra, de vora e das demais cidades distantes dos combates:o herosmo desta mulher, que aps participar com sucesso doenfrentamento, morre nutrindo uma criana aos peitos.

    Novamente mulher sem nome, cuja marca de distino aprpria morte, mulher portuguesa, grosseira, que combate comum cacete e que cria eficcia com seu vigor e empenho. Narraresse episdio cumprir o programa anunciado logo a seguir namesma citao: fazer renascer o brio portugus, fazer engajar naguerra de Restaurao todo o povo de Portugal. Aparentemente,nada impedia os escritores no seu firme labor pela independnciapoltica do reino.

    * * *

    Bastante freqente, o recurso aos feitos das portuguesas do

    passado remete o leitor origem da inquietao portuguesa noconflito ibrico: restaurar. Afinal, os inssurretos de primeiro dedezembro e seus seguidores queriam repor um passado gloriosoem presente, no seu presente. Ento, relatar essas hericasparticipaes femininas no confronto pela independnciaaproxima e relembra os feitos celebrados em textos histricos,muito difundidos em Portugal daqueles anos. Para ficarmosapenas em uma obra histrica citada diversas vezes nos textos daRestaurao, tomemos a sia de Joo de Barros e de Diogo doCouto. Como sabemos, essa obra clssica da literatura portuguesafoi escrita a mando real por historiadores escolhidos entre oshumanistas de maior renome na poca. Trata-se de obra vultosaorganizada em dcadas, segundo o modelo do romano Tito Lvio.

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    Pretendeu-se com esse trabalho registrar e celebrar as glrias dasconquistas portuguesas no Oriente. Sua leitura no incio do sculoXVII no podia deixar de trabalhar os espritos mais vivos nosentido de exaltar a condio perdida com a incorporao doreino coroa de Castela, em 1580.

    As relaes da guerra da Restaurao tambm utilizaram asDcadas de Diogo do Couto para lembrar e fortalecer a galhardiada mulher portuguesa nas lutas do reino. Em 1641, quando de umdos diversos cercos de Olivena, o escritor da relao aproveita-sedo material histrico da quinta dcada para enaltecer o valor das

    mulheres durante um ataque inimigo:No merecendo menos as mulheres, que com grande animoocupavam as trincheiras, asssoviando-lhe pelos ouvidosespessas nuvens de pelouros, as no podiam lanar fora,pedindo licena para com sombreiros guarnecerem astrincheiras mais faltas de gente, renovando a memria dasantigas Portuguezas Anna Fernandes, & Isabel da Veiga, queno primeiro Cerco de Dio sustentado pelo grande Antonio daSilveira, obraram as maravilhas que Diogo Do Coutto na suaquinta Decada relata.14

    O episdio em questo, da sia (Couto, 1979:405), est

    exposto quando o autor relata o primeiro cerco de Diu, de 1538. uma passagem um tanto pitoresca em que uma mulher confundeum soldado portugus desfigurado por queimaduras e feridogravemente, com um turco prisioneiro. Ela tenta bater na cabeacom uma gamela e, sendo impedida, vai protestar veementementecom o comandante pedindo-lhe que a deixe agredi-lo. Suareao, no texto de Diogo do Couto, tpica de quem no hesitaem cumprir o dever de eliminar aqueles que obram contra osangue portugus. Ela teria dito ao capito:

    14Relaam verdadeira da milagrosa vitctoria que alcanaro os Portugueses, que

    assistem na Fronteira de Olivena, a 17 de Setembro de 1641 . Lisboa, JorgeRodrigues, 1641, p. 7. Barbosa Machado, Tomo I:58.

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    Como mandais vs, senhor, dar vida a uns inimigos quetanto tm trabalhado para nos beber o sangue? Se tal verdade, eu, e estas minhas companheiras que neste cercotemos tamanho quinho, como todos os homens, o nohavemos de consentir, antes os havemos de espedaar comnossas mos, por isso mandai que no-los entreguem (Couto,1779:405).

    Bravura incontida da moradora da cidade cercada pelosinimigos, empenhada na sua defesa, tal e qual os homens, mascujo excesso produz certa comicidade. Diogo do Couto registra a

    passagem dessa mulher no sem relatar diversos outros episdiosem que as mulheres portuguesas de Diu mostram seu valor e suaeficcia durante os combates. Bem mais do que relatar umocorrido, esse apelo histrico encaixa-se perfeitamente noprograma restaurador, buscando revolver o brio portugus, umtanto abalado pelos quase sessenta anos de domnio castelhanosobre o reino.

    Nunca demasiado lembrar que durante um bom tempo daguerra, Portugal foi governado por uma mulher, alis, castelhana.Com a morte de D. Joo IVem 1656e com a menoridade de D.Afonso, D. Lusa de Gusmo, rainha e esposa de D. Joo,assumiu a regncia do reino e dirigiu o governo lusitano duranteseis anos, inclusive durante momentos cruciais do conflito: perdade Olivena, batalha de Elvas, etc. A rainha era natural daAndaluzia, irm do Duque de Medina Sidnia.

    O fato de se viver sob o comando de uma mulher,aparentemente, no interferiu de modo substantivo no desenrolardos acontecimentos na fronteira, ao menos pelo que registram asrelaes de guerra deste perodo. Contudo, os relatos nodeixaram passar em brancas nuvens o comando feminino dasarmas de Portugal. Em Aronches, quando de uma investidainimiga que aprisionou mais de vinte portugueses, os castelhanosprovocavam os portugueses cantando os versos seguintes: o

    nosso rei he hum cravo, a rainha huma rosa, se no fora

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    castelhana, inda fora mais fermosa.15Desnecessrio dizer que acrnica registra o desbaratamento da tropa pelos portugueses: osinimigos pagaram sua ousadia com o prprio sangue.

    Imbudas de determinados sentimentos e ideais que tmpor objetivo a defesa do reino, as mulheres dos relatos de guerraso to capazes de realizar feitos hericos quanto os homens.Nesse processo, mesmo que tambm aparea uma refernciagenrica a uma fragilidade feminina, ela fica eclipsada pelapujana patritica, o prprio relato a contradiz. A suposta, ouesperada, fraqueza da mulher quase sempre aparece pela sua

    negao, apoiada nos feitos considerados pelos autoressuficientemente importantes para serem registrados nas narrativase retidos pelos seus leitores. O trecho que se segue, retirado deuma relao sobre os feitos portugueses no cerco de Ouguela em1644, demonstra bem esse fato, j apresentado em outra citaomais acima:

    Mataram mais um soldado Portugus, feriram dois, e umamulher por nome Isabel Pereira, que far esquecer o valordas formosas Portuguesas, que nos insignes Cercos de Dio,& Mazago fizeram feitos de imortal memria, porquedesmentindo esta a fragilidade do sexo feminino, fez

    notveis demonstraes de valor, assim pelejando nastrincheiras, como repartindo plvora, e balas aos soldados,e retirada ao castelo ficou desacordada por algum espaocom a ferida que lhe deram, at que tornando em si, evendo que no era perigosa, prosseguiu a peleja commaiores brios at o fim. 16

    15Relaam de hum successo notavel, que teve huma companhia nossa decavallos junto a villa de Aronches pelejando com o inimigo em 29 de dezembrode 643. Lisboa, Paulo Craesbeck, 1644:sn.16Relaam da famosa resistencia, e sinalada vitoria, que os Portuguesesalcanaro dos Castelhanos em Ouguela, este Anno de 1644 a 9 de Abril

    governando esta Praa o Capito Pascoal da Costa. Lisboa, Paulo Craesbeck,1644, p. 6. Barbosa Machado, Tomo II:125.

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    Aqui, a mulher em questo tem nome, Isabel Pereira, e notem marido, e suas proezas nas trincheiras e na preparao edistribuio do material de combate aparecem como feitoscomuns a todos os soldados em qualquer batalha. Aqui no setrata mais de uma mulher valorosa e excepcional que realizaproezas extraordinrias: mata diversos inimigos com um porrete,ameaa com uma gamela, ou ainda que atira pedras. Isabelcombate pela sua cidade, pela independncia de seu reino, tal equal os demais moradores de Ouguela. Sua entrada na Histriadas guerras da Restaurao vem somar aos feitos masculinos, num

    terreno predominantemente masculino, o empenho presumidodas mulheres de Portugal na defesa do reino recm-liberto dodomnio poltico da mais poderosa monarquia daqueles anos.

    Com isso, e sem desejar acumular mais referncias e notas,cumpre refletir sobre o feminino nesta guerra que consumiu boaparte das energias e das riquezas ibricas.

    * * *

    Contudo, seguindo a tenso entre os modelos de mulherpropostos pelos escritores aqui rapidamente escolhidos, cumpredestacar que no faltaram mulheres nos relatos da guerra daRestaurao. Para o escritor romntico do sculo XIX, Almeida

    Garrett, a mulher portuguesa que importa destacar encontra seumodelo na D. Philippa de Vilhena, condessa de Atouguia. Suaescolha, conforme vimos, tem amparo nos mais destacadosescritores da poca barroca que se dedicaram ao problema daconquista da independncia de Portugal. A atitude do autor dafamosa pea denuncia claramente aquilo que ele buscavamodelar, no para a sociedade portuguesa do sculo XVII, maspara o seu prprio tempo vivido: D. Philippa, mulher fidalga.

    Nada nos impede, embora sem o brilhantismo de Garrett,de tentar um outro modelo feminino para as mulheresportuguesas daquele tempo: Isabel Pereira. Esta mulher quecombate efetivamente nas trincheiras, que reparte a plvora,distribui alimentos etc. Ela no aparece apenas no incio do

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    esforo libertador, Isabel defende sua terra, sua gente e sua ptriacontra aqueles que a querem ver submissa. Ferida, ela se reerguee continua seu combate at o final. Sua participao se estendepor toda a fronteira e se apresenta em todos os anos doenfrentamento, em todos os combates. D. Pereira no frgil eno faz valer suas capacidades nos palcios da Capital, no serealiza pelos atos de seus filhos; alis, pouco importa se tem filhos,se viva. Ela empunha a arma que est a seu alcance (porrete,pedra, espada, espingarda etc.), e tem foras para isso. Ela o fazsem o auxlio da Divina Providncia.

    Escolher entre D. Philippa de Vilhena e Isabel Pereira omodelo feminino da Restaurao: eis o problema!Na primeira, encontramos apoio num texto forte de um dos

    escritores de maior prestgio de Portugal em meados do sculoXIX, autor comprometido com os valores da fidalguia de seutempo. Com ela se vai construindo uma mulher num tempolongnquo que apenas mostra sua eficcia para as mulheres vivasde hoje: a tradio nos d uma mulher frgil e nobre, mepatritica e zelosa de seus filhos, capaz de desempenhar asfunes masculinas, que no lhe so prprias, com a ajuda daDivina Providncia, se a ocasio assim o exigir. A condessa deAtouguia, modelo feminino de Almeida Garrett, nos lega, assim, a

    imagem cmoda de um inimigo fcil de abater na construo daigualdade entre os gneros. Inimigo to frgil quanto opersonagem do teatro, embora determinado e renitente, elapersiste no cenrio das discusses sobre o feminino tal e qualpersiste o fidalgo entre ns, os vivos do sculo XXI.

    Isabel Pereira, modelo de mulher igualitria, foiabandonada pelas letras de lngua portuguesa. Mais parece quetemos medo do passado vivenciado por ela, tamanhoesquecimento lhe legamos. Mas isso fomos ns que o fizemos, nsa abandonamos. Ns a trocamos por uma imagem mais cmodade celebrar e de combater.

    Mais firmemente ancorada na literatura, sua oposta lhevenceu todos os combates de que no participou e Isabel perdeu

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    todos aqueles travados sem a sua presena, trs sculos ou maisdepois de sua morte.

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