caixeta de queiros, rubem - politica, estetica e etica no projeto video nas aldeias

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Política, estética e ética no projeto Vídeo nas Aldeias - RUBEN CAIXETA DE QUEIROZ RUBEN CAIXETA DE QUEIROZ Professor Adjunto de Antropologia da UFMG, co-diretor do festival Forumdoc.BH. Abril 2004. Em 1987 nascia na cidade de São Paulo o Projeto Vídeo nas Aldeias como um desdobramento das atividades do Centro de Trabalho Indigenista. Tal projeto tinha a finalidade de incentivar os índios a realizarem e a observarem sua própria imagem além de buscar a formação de uma rede de troca de experiências entre os diversos grupos indígenas. Estas se inseriam particularmente no campo da política, ou seja, no processo de organização e luta dos índios em busca de seus direitos territoriais, em busca de seu reconhecimento étnico face à sociedade hegemônica e aos interesses colonizadores circunscritos no âmbito de uma política integracionista do Estado nacional. Ora, num país no qual tanto a esquerda quanto a direita creditam a uma grande rede de televisão uma contribuição essencial na formação desta identidade nacional – emissora de TV que, através de seus programas veiculados nos quatro cantos do país, leva o sotaque e os problemas existenciais de uma classe média-alta paulistana ou carioca aos olhos e ouvidos daqueles que habitam até mesmo uma aldeia no meio da floresta amazônica –, não deixa de ser digno de destaque um Projeto voltado, num primeiro momento, para criar as condições necessárias à expressão de modos particulares de vida através do uso da imagem e do som, e, num segundo momento, para a formação de realizadores indígenas. Contudo, nunca foram fáceis a execução desta proposta e a sua aceitação pelo público. De um lado, temia-se que os índios (mais uma vez) não fossem capazes de dominar a linguagem audiovisual e oferecessem um produto de baixa “qualidade” e, de outro lado, temia-se que o vídeo (a imagem, a televisão) introduzido no seio das comunidades indígenas funcionasse como um vírus desintegrador de uma tradição cultural original. Na verdade, os dois temores escondiam e escondem um velho preconceito sempre presente na sociedade ocidental, no caso, a sociedade brasileira, que, ao mesmo tempo, alega a incapacidade “natural” dos índios (para o pensamento e as artes) e afirma como universal os valores e a estética do homem branco.(1) Em 1997, dez anos depois da criação do Projeto Vídeo nas Aldeias, acontecia na cidade de Belo Horizonte a primeira edição do FORUMDOC.BH (Festival do Filme Documentário e Etnográfico). Nada mais justo que imaginar este evento apresentando uma retrospectiva dos trabalhos realizados por aquele Projeto, debater com Vincent Carelli e Dominique Gallois as idéias e as práticas desta proposta inovadora no Brasil de uso do vídeo pelas comunidades indígenas como instrumento para a valorização da identidade étnica e como recurso na conquista de seus direitos. Num dos debates que seguiram à projeção dos vídeos, lembramos que um dos espectadores colocou exatamente a questão da legitimidade de levar para os índios um instrumental técnico e ideológico do mundo ocidental e se isto não significaria corromper as suas formas tradicionais de comunicação baseadas na oralidade. A resposta de Vincent Carelli seguiu no sentido de demonstrar que, pelo bem ou pelo mal, muito mais pelo mal, uma infinidade de “produtos” e micróbios tinham sido levados pelos brancos para os índios, a começar pelo machado de ferro e a passar pelas epidemias, sendo que, é verdade, o instrumental videográfico seria apenas mais um deles, e não era o dos piores. Ao contrário, tinha-se a intenção de que ele pudesse ser uma arma na mão dos índios contra a ameaça de sua destruição física e cultural que sempre pairou no ar desde o primeiro contato com o homem branco. Uma segunda questão, esta mais indignada, foi apresentada por outro espectador a propósito de Segredos da Mata (1998): ele via neste vídeo produzido pelos índios Waiãpi um pastiche de obras como o filme Alien. É verdade, os Waiãpi tinham visto este filme, como respondeu Dominique Gallois, e o tinham muito apreciado, assim como, não só os Waiãpi, outros grupos indígenas são fissurados nos filmes encenados em torno das lutas marciais do tipo Kung Fu ou Bruce Lee. Nas duas questões, o mesmo temor estava presente: os índios não devem ser corrompidos por nossas tecnologias e concepções estéticas e, ao mesmo tempo, devem ser mostrados ou devem mostrar aquilo que imaginamos ser a essência deles: portadores de penas, arcos e flechas, caminhando de forma integrada na selva, ou, guerreiros, para não dizer preguiçosos e traiçoeiros. É como se nós pudéssemos tudo copiar dos outros, enquanto aos índios estivesse reservado o lugar da repetição daquilo que sempre foram ou, pior, daquilo que sempre imaginamos que foram. (2) Porém, evidente é que este tipo de inquietação nunca teve lugar no âmbito do Vídeo nas Aldeias, pois, como cito alhures (Gallois e Carelli apud Queiroz, 1998: 44-45), este Projeto, afetado pela perspectiva de uma certa antropologia hermenêutica ou dialógica, “parte da premissa de que as identidades indígenas são, hoje, mais disseminadas que exclusivas, construídas a partir de tradições fragmentadas e, sobretudo, a partir de influências transculturais. Por outro lado, a antropologia dos movimentos étnicos evidenciou que a forma mais eficiente de fortalecer a autonomia de um grupo é permitir que se reconheça, demarcando-se dos outros, numa identidade coletiva. Neste processo dinâmico, a revisão da própria imagem e a seleção dos componentes culturais que a compõem resultam de um trabalho de adaptação constante. A cultura – que não é feita apenas de tradições – só existe como movimento, alimentado pelo contato com a alteridade.” http://www.videonasaldeias.org.br/2009/biblioteca.php?c=20 1 de 4 11/10/13 22:58

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Política, estética e ética no projeto Vídeo nas Aldeias -RUBEN CAIXETA DE QUEIROZRUBEN CAIXETA DE QUEIROZProfessor Adjunto de Antropologia da UFMG, co-diretor do festival Forumdoc.BH. Abril 2004.

Em 1987 nascia na cidade de São Paulo o Projeto Vídeo nas Aldeias como um desdobramento das atividades do Centrode Trabalho Indigenista. Tal projeto tinha a finalidade de incentivar os índios a realizarem e a observarem sua própriaimagem além de buscar a formação de uma rede de troca de experiências entre os diversos grupos indígenas. Estas seinseriam particularmente no campo da política, ou seja, no processo de organização e luta dos índios em busca de seusdireitos territoriais, em busca de seu reconhecimento étnico face à sociedade hegemônica e aos interesses colonizadorescircunscritos no âmbito de uma política integracionista do Estado nacional.

Ora, num país no qual tanto a esquerda quanto a direita creditam a uma grande rede de televisão uma contribuiçãoessencial na formação desta identidade nacional – emissora de TV que, através de seus programas veiculados nosquatro cantos do país, leva o sotaque e os problemas existenciais de uma classe média-alta paulistana ou carioca aosolhos e ouvidos daqueles que habitam até mesmo uma aldeia no meio da floresta amazônica –, não deixa de ser dignode destaque um Projeto voltado, num primeiro momento, para criar as condições necessárias à expressão de modosparticulares de vida através do uso da imagem e do som, e, num segundo momento, para a formação de realizadoresindígenas.

Contudo, nunca foram fáceis a execução desta proposta e a sua aceitação pelo público. De um lado, temia-se que osíndios (mais uma vez) não fossem capazes de dominar a linguagem audiovisual e oferecessem um produto de baixa“qualidade” e, de outro lado, temia-se que o vídeo (a imagem, a televisão) introduzido no seio das comunidadesindígenas funcionasse como um vírus desintegrador de uma tradição cultural original. Na verdade, os dois temoresescondiam e escondem um velho preconceito sempre presente na sociedade ocidental, no caso, a sociedade brasileira,que, ao mesmo tempo, alega a incapacidade “natural” dos índios (para o pensamento e as artes) e afirma como universalos valores e a estética do homem branco.(1)

Em 1997, dez anos depois da criação do Projeto Vídeo nas Aldeias, acontecia na cidade de Belo Horizonte a primeiraedição do FORUMDOC.BH (Festival do Filme Documentário e Etnográfico). Nada mais justo que imaginar este eventoapresentando uma retrospectiva dos trabalhos realizados por aquele Projeto, debater com Vincent Carelli e DominiqueGallois as idéias e as práticas desta proposta inovadora no Brasil de uso do vídeo pelas comunidades indígenas comoinstrumento para a valorização da identidade étnica e como recurso na conquista de seus direitos. Num dos debates queseguiram à projeção dos vídeos, lembramos que um dos espectadores colocou exatamente a questão da legitimidade delevar para os índios um instrumental técnico e ideológico do mundo ocidental e se isto não significaria corromper as suasformas tradicionais de comunicação baseadas na oralidade. A resposta de Vincent Carelli seguiu no sentido dedemonstrar que, pelo bem ou pelo mal, muito mais pelo mal, uma infinidade de “produtos” e micróbios tinham sidolevados pelos brancos para os índios, a começar pelo machado de ferro e a passar pelas epidemias, sendo que, éverdade, o instrumental videográfico seria apenas mais um deles, e não era o dos piores. Ao contrário, tinha-se aintenção de que ele pudesse ser uma arma na mão dos índios contra a ameaça de sua destruição física e cultural quesempre pairou no ar desde o primeiro contato com o homem branco. Uma segunda questão, esta mais indignada, foiapresentada por outro espectador a propósito de Segredos da Mata (1998): ele via neste vídeo produzido pelos índiosWaiãpi um pastiche de obras como o filme Alien. É verdade, os Waiãpi tinham visto este filme, como respondeuDominique Gallois, e o tinham muito apreciado, assim como, não só os Waiãpi, outros grupos indígenas são fissuradosnos filmes encenados em torno das lutas marciais do tipo Kung Fu ou Bruce Lee. Nas duas questões, o mesmo temorestava presente: os índios não devem ser corrompidos por nossas tecnologias e concepções estéticas e, ao mesmotempo, devem ser mostrados ou devem mostrar aquilo que imaginamos ser a essência deles: portadores de penas, arcose flechas, caminhando de forma integrada na selva, ou, guerreiros, para não dizer preguiçosos e traiçoeiros. É como senós pudéssemos tudo copiar dos outros, enquanto aos índios estivesse reservado o lugar da repetição daquilo quesempre foram ou, pior, daquilo que sempre imaginamos que foram. (2)

Porém, evidente é que este tipo de inquietação nunca teve lugar no âmbito do Vídeo nas Aldeias, pois, como cito alhures(Gallois e Carelli apud Queiroz, 1998: 44-45), este Projeto, afetado pela perspectiva de uma certa antropologiahermenêutica ou dialógica, “parte da premissa de que as identidades indígenas são, hoje, mais disseminadas queexclusivas, construídas a partir de tradições fragmentadas e, sobretudo, a partir de influências transculturais. Por outrolado, a antropologia dos movimentos étnicos evidenciou que a forma mais eficiente de fortalecer a autonomia de umgrupo é permitir que se reconheça, demarcando-se dos outros, numa identidade coletiva. Neste processo dinâmico, arevisão da própria imagem e a seleção dos componentes culturais que a compõem resultam de um trabalho deadaptação constante. A cultura – que não é feita apenas de tradições – só existe como movimento, alimentado pelocontato com a alteridade.”

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Ao ver os filmes e ao ler os textos produzidos no contexto do Vídeo nas Aldeias, constatamos uma crítica explícita a doistipos de pensamento: um “arquivista”, o outro “relativista”. No primeiro caso, é questionada aquela forma de registro deimagens e coleta de informações com a finalidade de as “conservar” em bibliotecas e museus. Ao contrário, édemonstrado, os saberes indígenas são respeitados e multiplicados na medida em que são colocados em ação e emconstrução permanente de tal forma que a “tradição” é vista como um processo criativo e adaptativo.

No segundo caso, ao criticar o relativismo radical, coloca- se em risco uma posição cômoda que protege o etnólogo e ocineasta por trás de seu caderno de campo ou da sua câmera. De forma diferente, menos que observar, busca-se nesteProjeto construir um processo comunicativo no qual, cabe sim ao antropólogo ou cineasta recolher as práticas e sistemasde pensamento dos índios e os transmitir à sociedade hegemônica, mas também cabe-lhes o desafio de oferecer aosíndios as informações sobre a sociedade ocidental, responder às suas demandas de intervenção, introduzir em suasaldeias as técnicas modernas que sejam úteis aos seus projetos. Ou seja, mais que observador, nesta nova perspectiva,é atribuído ao antropólogo-cineasta o papel de tradutor intercultural.

Parece-nos evidente que uma preocupação política se encontra na raiz deste Projeto, que não poderia ser consideradocomo um mero tipo de registro videográfico. Longe de nós querermos separar a estética da política. Porém, podemosdizer que esta dupla combinação se apresenta em dosagens distintas nos “vídeos nas aldeias”: num primeiro conjuntodeles a dimensão política e ética se sobressai em relação à dimensão estética e êmica, enquanto num segundo conjuntose passa o inverso. Citaríamos como exemplo do primeiro tipo de vídeo os títulos Eu já fui o seu Irmão (1993), Placa nãofala (1996) e Ou vai ou racha (1998). Durante um processo de afirmação étnica ou numa situação de conflito pela posseda terra, onde se verifica uma luta desigual entre brancos e índios, onde uma parte dos primeiros é detentora do controlesobre os meios de comunicação e do sistema de governo do país, onde uma parte dos últimos mal fala o português,quando por eles solicitados, antropólogos ou cineastas, têm o dever de colocar sua influência e seu instrumental técnicoa favor da parte mais fraca, a favor dos índios. Neste contexto, o “Vídeo nas Aldeias” é um projeto militante, necessário,que se insere de forma clara dentro de um movimento do cinema militante largamente presente na história dodocumentário.

Contudo, uma “opção política pelos mais fracos” não é suficiente para resolver todos os problemas éticos envolvidos numtipo de projeto pautado no emprego dos recursos audiovisuais junto às populações indígenas. No processo de filmagemsempre aparecem dilemas quase intransponíveis: O quê mostrar e o quê não mostrar para os brancos? O quê dissimulare o quê não esconder? Como simplificar para se dar a entender o que é dito ou encenado? Como dar prosseguimento aestas experiências particulares e como elas afetarão as comunidades indígenas tratadas (filmadas), tanto na suacomposição interna quanto na sua relação com o mundo exterior, seja este mundo o dos brancos ou aquele de outrascomunidades indígenas? Tais questões surgiram, por exemplo, nas produções levadas a cabo entre os Xavante de MatoGrosso e os Waiãpi do Amapá. Por isso mesmo é que, num ensaio, Vincent Carelli (1995: 50), ao constatar aincompatibilidade entre o “olhar” (a linguagem, a estética) dos índios e o “olhar” do público ocidental, justifica assim aconcepção de dois produtos: um destinado aos indígenas e outro ao grande público. No entanto, se nos parecem óbviasas especificidades lingüísticas, culturais e estéticas do lado dos índios, como nos parece justa a tentativa de produzir algoque atenda a este universo, nos parece muito mais difícil e questionável concretizar uma realização videográfica queatenda ao gosto do grande público a partir das narrativas e linguagens indígenas. Na tentativa de satisfazer o gosto destepúblico, os vídeos da primeira fase do Projeto estão recheados de uma boa dose de ingredientes do cinema clássico (3).Aliás, o próprio Vincent Carelli (1995: 50) comenta: “Eu sempre tive a preocupação de produzir algo de atrativo para opúblico: isto é, uma bela fotografia, cortes no movimento, uma montagem acelerada para um público habituado a umacultura visual elaborada no estilo televisual. Um toque de humor é sempre fundamental.”

Em desacordo com esta opção dos trabalhos da primeira fase dos “Vídeos nas Aldeias”, argumentávamos num artigoaqui já citado (Queiroz, 1998: 48) que não devíamos buscar a acomodação da estética indígena naquela da sociedadeocidental, mas, ao contrário, devíamos buscar uma confrontação entre estas diferentes estéticas, entre os diferentespontos de vista, que era necessário forçar o mundo ocidental ao reconhecimento de que há outras maneiras de ver omundo, de viver e de pensar, e, em decorrência, há uma outra maneira de realizar filmes para além daqueles tão lugarcomum da televisão, da descrição científica, da reportagem, da colagem e da fusão dos vídeo-clipes, da publicidade e davídeo-arte.

Diante desta crítica parcial, vimos com satisfação o surgimento de uma segunda fase no Vídeo nas Aldeias, na qualaquela preocupação excessiva em atrair o público foi deixada de lado, ou seja, a função espetacular deixa de existircomo eixo norteador da sua produção. Nesta nova safra de vídeos destacamos obras-primas como No Tempo dasChuvas (2000) e Shomõtsi (2001) (4). Aqui, sem exagero, reencontramos alguns traços, planos e espaços de cineastascomo Antonioni ou Ozu. Ou seja, filmar o tempo de espera e o espaço vazio torna-se tão ou mais importante que filmar aação. E eis que os realizadores indígenas reencontram o ocidente e o oriente, mas não mais no cinema clássico e simnaquele muito mais reflexivo, no cinema moderno. Arriscaria a dizer que esta mudança de estrutura narrativa econcepção cinematográfica tenha sido resultado do ingresso no Projeto de Mari Corrêa, uma documentarista formada na

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França sob a influência do cinemamoderno e de cineastas como Jean Rouch (5). No entanto, há uma outra razão para osurgimento de uma nova fase no Projeto: a maior parte dos vídeos passa a ser realizada pelos próprios indígenasformados em oficinas de capacitação do Projeto. Ou seja, os índios absorvem as informações a respeito de uma técnicae de uma cultura do cinema e as empregam no seu contexto local para construir obras que são portadoras não só deuma voz interna, mas, diria, de um corpo em movimento, de um pensamento indígena.

Não sabemos se estes vídeos realizados pelos índios empolgam o grande público. De qualquer forma, penso, a funçãodeles seria menos divertir e informar do que traduzir um mundo (outro) vivido, portanto possível, e também imaginar ummundo. É verdade que mesmo o “cinema moderno” nunca caiu nas graças do grande público, muito menos da televisão,mas, pelo menos (seria isto um consolo?), ele nos faz pensar e não trata o público como medíocre. De fato, na maioriadas vezes, como lembra Jean-Louis Comolli, o espectador é imaginado como um ser infantil, “a quem se oferece claquesvisuais e sonoras, que é pego pela mão para ser guiado, que é desprezado seja por excessos de explicaçõesredundantes, seja por dissimulação de causalidades e de complexidades... Digamos que se trata então de espetáculo enão de cinema. O espectador que nós supomos, ao contrário, [...] é um espectador perfeitamente apto a ver, a sentir, acompreender, que é capaz de fazer alguma coisa com o que vê. Um espectador que seja também um cidadão,responsável, tendo consciência de sua responsabilidade (6).” Na guinada do Projeto, ao levar o espectador a sério, e,conseqüentemente, ao levar o sistema de pensamento indígena a sério, observamos que os “vídeos nas aldeias”deixaram de lado o espetáculo em favor do risco do real.

Ao colocar o espetacular em segundo plano, são as situações do cotidiano e o tempo fraco que tomam a cena. Em KinjaIakaha, um dia na aldeia (2003), Das crianças Ikpeng para o mundo (2001), Shomõtsi (2001) e No tempo das chuvas(2000), verificamos o abandono de um projeto político ou estético pré-determinado, de tal forma que nestes vídeos, comodiria Jean-Louis Comolli (2001), as mulheres e os homens que aceitam a entrar na situação e na relação estabelecidaspelo filme, nelas interferem e para elas transferem, com singularidade, “tudo o que carregam consigo de determinações ede dificuldades, de pesado e de graça, de sua sombra”. O que o realizador indígena filma, tal como todo bomdocumentarista, é “também algo que não é visível, filmável, não é feito para o filme, não está ao nosso alcance, mas quese encontra lá com o resto, dissimulado pela própria luz ou cegado por ela, ao lado do visível, sob ele, fora do campo,fora da imagem, mas presente nos corpos e entre eles, nas palavras e entre elas, em todo o tecido que trama a máquinacinematográfica. Filmar os homens reais no mundo real representa estar tomado pela desordem dos modos de vida, peloindivisível do mundo, aquilo que do real se obstina a enganar as previsões” (Comolli, 2001: 105-107). Impossibilidade doroteiro. Necessidade dos realizadores indígenas do Vídeo nas Aldeias, que trazem ao espectador não só um outro olhar,não só a parte minoritária de um mundo, a parte maldita, mas também uma outra ontologia. É necessário tão somentelhes dar boas câmeras de vídeo e lhes preparar minimamente para manipular este instrumental técnico, que eles nosrevelam um outro mundo possível, talvez invisível para o ocidente, mas imaginável pelo espectador reflexivo e que quercolocar em dúvida seus valores e seus corpos diante de outros valores e de outros corpos.

O espectador dos “vídeos nas aldeias” realizados pelos indígenas, bem como aquele do cinema moderno, nunca deveesperar um personagem “destinado” e um mundo acabado, único, pois, para citar o sociólogo Pierre Bourdieu (1998:11-12), ali as imagens simplistas e unilaterais são substituídas por uma representação complexa e múltipla, fundada naexpressão das mesmas realidades em discursos diferentes e às vezes inconciliáveis; e à maneira de romancistas comoFaulkner, Joyce ou Virgínia Wolf, é necessário abandonar o ponto de vista único, central, dominante, em suma, quasedivino, no qual se situa geralmente o observador e também o leitor (o cineasta e também o espectador), em proveito dapluralidade dos pontos de vista coexistentes e “às vezes diretamente concorrentes”.

Como disse Ismail Xavier a propósito do cinema de Eduardo Coutinho, mas o que valeria também para os “vídeos nasaldeias” da última safra, especialmente Shomõtsi (2001) e No Tempo das Chuvas (2000), “a duração é a condição paraque se possa compor um olhar e uma escuta capazes de satisfazer às demandas de uma descrição fenomenológica,com uma abertura para o acontecimento e uma compreensão não escorada em categorias predefinidas” (Xavier, 2003:59). Na mais importante obra sobre o documentário brasileiro, Jean-ClaudeBernardet (2003: 282) disse que no Brasil ocinema direto trouxe à tona um universo verbal até então desconhecido na tela, que à fala dos locutores, aos diálogosescritos dos personagens de ficção, vinha se contrapor um português múltiplo falado fora do domínio da norma culta,onde o espectador podia, enfim perceber a diversidade de sotaques, de prosódias, de sintaxes. Neste instante, o críticoainda não tinha em mãos os novos filmes produzidos pelos realizadores indígenas, pois neles não só as falas (sotaques)são outras, mas o mundo é outro, não é mais aquela ficção dos poderosos, como diria Deleuze a propósito dos filmesPour la suite du monde de Pierre Perrault e Moi – un noir de Jean Rouch. Se o Brasil de hoje está impregnado da “toda-ficção de tudo” das telenovelas e dos reality shows, nele ainda há lugar para a imaginação fabuladora dos personagens edocumentaristas como aqueles do Vídeo nas Aldeias.

No ano de 2004, quando perdemos um dos nossos ancestrais totêmicos, Jean Rouch, como ele mesmo gostava de falara propósito de Vertov e Flaherty, veremos, como recompensa, a mostra de realizadores indígenas no Rio de Janeiro, poisfoi o próprio Jean Rouch (1979) quem declarou: “Amanhã será o tempo do vídeo colorido autônomo, das montagensvideográficas, da restituição instantânea da imagem registrada, ou seja, do sonho conjunto de Vertov e Flaherty, de uma

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câmera tão ‘participante’ que ela passará automaticamente para as mãos daqueles que até aqui estavam na frente dela.Assim, o antropólogo não terá mais o monopólio da observação, ele mesmo será observado, gravado, ele e sua cultura.”

Notas de Rodapé(1) Façamos justiça, entre os “brancos”, sempre encontramos aqueles que afirmaram, como o poeta Rimbaud Eu é umoutro ou o cineasta Jean Rouch, Moi, un noir e, assim, fizeram dos outros a essência da sua arte. Vale lembrar tambémque certos intelectuais e artistas ocidentais deixaram de lado o padrão estético macho-europeu-ocidental e a “qualidade”em favor do ruído, do imponderável, do desmedido, do defeito, como diz o artista James Ensor num banquete em suahomenagem promovido pela La Flandre Litéraire em 1923: “Sim, os defeitos são as qualidades, e o defeito é superior àqualidade. Qualidade significa uniformidade no esforço para atingir certas perfeições comuns, acessíveis a todos. Odefeito escapa às perfeições uniformes e banais. O defeito é, pois, o múltiplo; ele é a vida e reflete a personalidade, ocaráter do artista; humano, o defeito é tudo e há de salvar a obra.”

(2) Isso nos faz lembrar de uma anedota segundo a qual alguns funcionários da FUNAI, no seu digno trabalho junto aos“índios isolados”, de tempos em tempos, passam nas suas aldeias recolhendo certos objetos como panelas de alumínioque os indígenas conseguiram obter no contato não permanente com o mundo dos brancos. Entre a cruz e a espada, nãoé incomum que estes mesmos índios sejam assediados por missionários evangélicos propagando-lhes a “palavra deDeus” e os conclamando a abandonar os seus “costumes bárbaros”.

(3) Este é especialmente o caso dos vídeos A arca dos Zo’é (1993), Yãkwa,o banquete dos espíritos (1995), Morayngava(1997) e Segredos da mata(1998).

(4) Estes e outros vídeos realizados pelos índios foram premiados em importantes festivais de cinema documentário. Arazão disso, acreditamos, não se deve a nenhum critério estabelecido pelo corpo de jurados que fosse pautado napolítica de afirmação étnica, mas no simples mérito em termos de beleza estética e de conteúdo.

(5) Cabe esclarecer que antes de 1999 a edição da maior parte dos “vídeos nas aldeias” era assinada por Tutu Nunes,enquanto Mari Corrêa assina a edição dos trabalhos mais recentes.

(6) Esta citação, traduzida por nós, é uma fala de Jean-Louis Comolli publicada numa coletânea organizada por MarieJosé Mondzain (2002) em homenagem ao filósofo francês Jean-Toussaint Desanti, falecido recentemente, quedesenvolveu para as artes e as ciências o rico conceito de Voir Ensemble.

REFÊRENCIA BIBLIOGRÁFICABERNARDET, Jean-Claude. 2003. Cineastas e Imagens do Povo. São Paulo, Editora Companhia das Letras.BOURDIEU, Pierre. 1997. A Miséria do Mundo. Petrópolis, Editora Vozes.CARELLI, Vincent. 1995. “O programa e os documentários: duas dimensõesdistintas e complementares do projeto Vídeonas Aldeias.” Mimeo.COMOLLI, Jean-Louis. 2001. “Sob o risco do real”. In Catálogo do Forumdoc.bh.2001 – 5o Festival do FilmeDocumentário e Etnográfico.Belo Horizonte.MONDZAIN, Marie José. 2002. Voir ensemble. Autour de Jean-Toussaint Desanti. Paris, Gallimard.QUEIROZ, Ruben Caixeta de. 1998. “Comunicação intercultural: Vídeo nas aldeias”. In Geraes. Revista de ComunicaçãoSocial. N. 49. pp. 44-49.ROUCH, Jean. “La caméra et les hommes”. In FRANCE, Claudine. Pour une anthropologie Visuelle. Paris-La Haye-NewYork.XAVIER, Ismail. 2003. “Indagações em torno de Eduardo Coutinho e seu diálogo com a tradição moderna.” In Catálogodo Forumdoc.bh.2001 – 5o Festival do Filme Documentário e Etnográfico. Belo Horizonte.

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