entrevista bartolomeu campos de queiros

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Bartolomeu Campos de Q encontra o diálogo” • A palavra ao leitor O grande patrimônio que te sonhamos. E a literatura é e literatura, esse mundo sonh dá voz ao leitor. Quando e final. Quando você lê para tem pai e mãe. Para outra c tem colchão. Eu não sei o literatura para mim é també dá a palavra ao leitor. O te que há de mais importante p • Formação de leitor Nasci em uma cidade pequ cidade que tinha três ruas. A já chegou lá, e a rua de c Juscelino Kubitschek; e a o que o povo criou e põe o independentemente da cult cinco mil habitantes. Meu grande leitora e dona de c Talvez ele tenha me alfabe Papagaio, ganhou a sorte g preguiça absoluta. Levantav Todo mundo que passava f isso. O dia inteiro. Tudo o Quem morreu, quem matou meu avô. Eu perguntava qu palavra com carvão, repetia somente ele podia escrever. Queirós: “A literatura é esse espaço onde o emos é a memória. A memória guarda o que esse espaço onde o que sonhamos encontra o hado consegue falar. O texto literário é um te escrevo, por exemplo: “A casa é bonita”, co uma criança “A casa é bonita”, para ela pode criança, “casa bonita” é a que tem comida. P o que é casa bonita, quem sabe é o leitor. A ém acreditar que o cidadão possui a palavra. exto literário convida o leitor a se dizer dian para mim na literatura. uenininha [Formiga] no interior de Minas G A rua de cima, a de baixo e a do meio. Hoje cima agora se chama Visconde do Rio Bran outra, Benedito Valadares. O poder público en o nome que ele inventa, pois precisa home tura daquela gente. Quando nasci [em 1944 u pai era caminhoneiro e minha mãe era u casa. Devo o meu gosto pela palavra també etizado. Meu avô morava em Pitangui, uma grande na loteria e nunca mais trabalhou. E va pela manhã, vestia terno, gravata e se debr falava: “Ô, seu Queirós!”. Ele falava: “Tem o que acontecia na cidade, ele escrevia nas p u, quem visitou, quem viajou. Fui alfabetizado ue palavra é essa, que palavra é aquela. Eu esc a. Ele ia lá para ver se estava certo. Na pare . Eu só podia escrever no muro. Esse meu avô o que sonhamos vivemos e o que o diálogo. Com a exto que também oloco um ponto- e significar a que Para outra, a que A importância da O texto literário nte dele. Isso é o Gerais. Era uma e o poder público nco. A do meio, entra e tira aquilo enagear alguém, 4], devia ter uns uma leitora, uma ém ao meu avô. cidade perto de Ele cultivou uma ruçava na janela. m dó de nós”. Só paredes de casa. o nas paredes do crevia no muro a ede da casa dele, ô tinha um gosto

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  • Bartolomeu Campos de Queirs: Aencontra o dilogo

    A palavra ao leitor

    O grande patrimnio que temos a memria. A memria guarda o que vivemos e o que sonhamos. E a literatura esse espao onde o que literatura, esse mundo sonhado consegue falar. O texto literrio um texto que tambm d voz ao leitor. Quando escrevo, por exemplo: A casa bonita, coloco um pfinal. Quando voc l para uma criana A casa bontem pai e me. Para outra criana, casa bonita a que tem comida. Para outra, a que tem colcho. Eu no sei o que casa bonita, quem sabe o leitor. A importncia literatura para mim tambm acreditar que o cidd a palavra ao leitor. O texto literrio convida o leitor a se dizer diante dele. Isso o que h de mais importante para mim na literatura.

    Formao de leitor

    Nasci em uma cidade pequenininha cidade que tinha trs ruas. A rua de cima, a de baixo e a do meio. Hoje o poder pblico j chegou l, e a rua de cima agora se chama Visconde do Rio Branco. A do meio, Juscelino Kubitschek; e a outra, Benedito Valadareque o povo criou e pe o nome que ele inventa, pois precisa homenagear algum, independentemente da cultura daquela gente. Quando nasci cinco mil habitantes. Meu pai era caminhoneiro e minha mgrande leitora e dona de casa. Devo o meu gosto pela palavra tambm ao meu av. Talvez ele tenha me alfabetizado. Meu av morava em Pitangui, uma cidade perto de Papagaio, ganhou a sorte grande na loteria e nunca mais trabalhou. Elepreguia absoluta. Levantava pela manh, vestia terno, gravata e se debruava na janela. Todo mundo que passava falava: , seu Queirs!. Ele falava: Tem d de ns. S isso. O dia inteiro. Tudo o que acontecia na cidade, ele escrevia nas pQuem morreu, quem matou, quem visitou, quem viajou. Fui alfabetizado nas paredes do meu av. Eu perguntava que palavra essa, que palavra aquela. Eu escrevia no muro a palavra com carvo, repetia. Ele ia l para ver se estava certo. Na p

    somente ele podia escrever. Eu s podia escrever no muro. Esse meu av tinha um gosto

    Bartolomeu Campos de Queirs: A literatura esse espao onde o que sonhamos

    O grande patrimnio que temos a memria. A memria guarda o que vivemos e o que sonhamos. E a literatura esse espao onde o que sonhamos encontra o dilogo. Com a literatura, esse mundo sonhado consegue falar. O texto literrio um texto que tambm d voz ao leitor. Quando escrevo, por exemplo: A casa bonita, coloco um pfinal. Quando voc l para uma criana A casa bonita, para ela pode significar a que tem pai e me. Para outra criana, casa bonita a que tem comida. Para outra, a que tem colcho. Eu no sei o que casa bonita, quem sabe o leitor. A importncia

    para mim tambm acreditar que o cidado possui a palavra. O texto literrio d a palavra ao leitor. O texto literrio convida o leitor a se dizer diante dele. Isso o que h de mais importante para mim na literatura.

    Nasci em uma cidade pequenininha [Formiga] no interior de Minas Gerais. Era uma cidade que tinha trs ruas. A rua de cima, a de baixo e a do meio. Hoje o poder pblico j chegou l, e a rua de cima agora se chama Visconde do Rio Branco. A do meio, Juscelino Kubitschek; e a outra, Benedito Valadares. O poder pblico entra e tira aquilo que o povo criou e pe o nome que ele inventa, pois precisa homenagear algum, independentemente da cultura daquela gente. Quando nasci [em 1944cinco mil habitantes. Meu pai era caminhoneiro e minha me era uma leitora, uma grande leitora e dona de casa. Devo o meu gosto pela palavra tambm ao meu av. Talvez ele tenha me alfabetizado. Meu av morava em Pitangui, uma cidade perto de Papagaio, ganhou a sorte grande na loteria e nunca mais trabalhou. Elepreguia absoluta. Levantava pela manh, vestia terno, gravata e se debruava na janela. Todo mundo que passava falava: , seu Queirs!. Ele falava: Tem d de ns. S isso. O dia inteiro. Tudo o que acontecia na cidade, ele escrevia nas pQuem morreu, quem matou, quem visitou, quem viajou. Fui alfabetizado nas paredes do meu av. Eu perguntava que palavra essa, que palavra aquela. Eu escrevia no muro a palavra com carvo, repetia. Ele ia l para ver se estava certo. Na parede da casa dele, somente ele podia escrever. Eu s podia escrever no muro. Esse meu av tinha um gosto

    literatura esse espao onde o que sonhamos

    O grande patrimnio que temos a memria. A memria guarda o que vivemos e o que sonhamos encontra o dilogo. Com a

    literatura, esse mundo sonhado consegue falar. O texto literrio um texto que tambm d voz ao leitor. Quando escrevo, por exemplo: A casa bonita, coloco um ponto-

    ita, para ela pode significar a que tem pai e me. Para outra criana, casa bonita a que tem comida. Para outra, a que tem colcho. Eu no sei o que casa bonita, quem sabe o leitor. A importncia da

    ado possui a palavra. O texto literrio d a palavra ao leitor. O texto literrio convida o leitor a se dizer diante dele. Isso o

    no interior de Minas Gerais. Era uma cidade que tinha trs ruas. A rua de cima, a de baixo e a do meio. Hoje o poder pblico j chegou l, e a rua de cima agora se chama Visconde do Rio Branco. A do meio,

    s. O poder pblico entra e tira aquilo que o povo criou e pe o nome que ele inventa, pois precisa homenagear algum,

    em 1944], devia ter uns e era uma leitora, uma

    grande leitora e dona de casa. Devo o meu gosto pela palavra tambm ao meu av. Talvez ele tenha me alfabetizado. Meu av morava em Pitangui, uma cidade perto de Papagaio, ganhou a sorte grande na loteria e nunca mais trabalhou. Ele cultivou uma preguia absoluta. Levantava pela manh, vestia terno, gravata e se debruava na janela. Todo mundo que passava falava: , seu Queirs!. Ele falava: Tem d de ns. S isso. O dia inteiro. Tudo o que acontecia na cidade, ele escrevia nas paredes de casa. Quem morreu, quem matou, quem visitou, quem viajou. Fui alfabetizado nas paredes do meu av. Eu perguntava que palavra essa, que palavra aquela. Eu escrevia no muro a

    arede da casa dele, somente ele podia escrever. Eu s podia escrever no muro. Esse meu av tinha um gosto

  • absoluto pela palavra e era muito irreverente. Eu era o grande amigo dele. Ele falava algumas coisas comigo, ele tinha umas coisas interessantes e que

    casa dele moravam trs moas solteiras. Maria da F, Maria da Esperana e Maria da Caridade. Eu sabia quando elas passavam na rua porque o meu av falava trs vezes: Tem d de ns, tem d de ns, tem d de ns. A Esperana morreu e falou: Quem disse que a Esperana a ltima que morre?. Quando o cinema foi inaugurado, era um galpo muito grande, com um lenol no meio. Quem era alfabetizado via o filme de frente porque no podia botar o lenol no fundo do barraco, pois desfocava a imagem. O lenol ficava no meio. Os alfabetizados ficavam na frente e liam. Os analfabetos ficavam atrs do lenol e pagavam meio ingresso. Viam o filme ao contrrio, mas a legenda no era problema. Ningum lia. E o meu av falava: Na terra de cego quem abre cinema doido.

    Criado com a metfora

    Meu av tinha um encantamento com as palavras. Eu fui aprendendo com ele a cultivar esse encantamento. Lembro que na casa dele tinha uma copa muito grande. Ele ficava sentado na ponta da mesa fazencrucificado na parede. De vez em quando, ele levantava a cabea e falava para mim: Sofreu, n? Sofreu demais. Sofreu tanto. Mas morreu gordo, voc no acha?. Era toda uma trama que me deslocava. J fui cricom as metforas. Outra coisa que me ajuda na literatura ter nascido de sete meses. Fui sempre muito fraquinho. Era mido, fraco, tratado com cuidado. Quando adoecia, a me chamava o mdico por via de dvida. Me, por via de dvida, acendia uma vela; e por via de dvida, me dava um ch e eu, ento, melhorava por via de dvida. Depois, cheguei a uma concluso: Quem sabe as coisas faz livro didtico e quem no sabe faz literatura. Se voc tem uma coisa a afirmar, voc no tem que fazer literatura. Literatura uma conversa sobre as dvidas. uma conversa sobre as delicadezas, sobre as faltas. No uma conversa crua como desejam as cincias exatas. A literatura mais delicada. Ela trabalha com a dvida, com as incertezas, com as inseguranas, com as faltas, que so coisas que nos unem. Tive uma

    infncia rica. Tive um av e uma experincia muito boa com ele. A minha me era uma leitora. No havia em casa literatura infantil. Eu lia os livros que a minha me lia:

    toutinegra do moinho (Emlio Richebourg),

    absoluto pela palavra e era muito irreverente. Eu era o grande amigo dele. Ele falava algumas coisas comigo, ele tinha umas coisas interessantes e que ficaram. Em frente

    casa dele moravam trs moas solteiras. Maria da F, Maria da Esperana e Maria da Caridade. Eu sabia quando elas passavam na rua porque o meu av falava trs vezes: Tem d de ns, tem d de ns, tem d de ns. A Esperana morreu e falou: Quem disse que a Esperana a ltima que morre?. Quando o cinema foi inaugurado, era um galpo muito grande, com um lenol no meio. Quem era alfabetizado via o filme de frente porque no podia botar o lenol no fundo do barraco,

    s desfocava a imagem. O lenol ficava no meio. Os alfabetizados ficavam na frente e liam. Os analfabetos ficavam atrs do lenol e pagavam meio ingresso. Viam o filme ao contrrio, mas a legenda no era problema. Ningum lia. E o meu av falava: Na terra de cego quem abre cinema doido.

    Meu av tinha um encantamento com as palavras. Eu fui aprendendo com ele a cultivar esse encantamento. Lembro que na casa dele tinha uma copa muito grande. Ele ficava sentado na ponta da mesa fazendo cigarros para o dia seguinte. Havia um Cristo crucificado na parede. De vez em quando, ele levantava a cabea e falava para mim:

    n? Sofreu demais. Sofreu tanto. Mas morreu gordo, voc no acha?. Era toda uma trama que me deslocava. J fui criado com a metfora. Tive uma infncia junto com as metforas. Outra coisa que me ajuda na literatura ter nascido de sete meses. Fui sempre muito fraquinho. Era mido, fraco, tratado com cuidado. Quando adoecia, a me chamava o mdico por via de dvida. Mas, por via de dvida, ela mandava benzer;

    por via de dvida, acendia uma vela; e por via de dvida, me dava um ch e eu, ento, melhorava por via de dvida. Depois, cheguei a uma concluso: Quem sabe as coisas

    livro didtico e quem no sabe faz literatura. Se voc tem uma coisa a afirmar, voc no tem que fazer literatura. Literatura uma conversa sobre as dvidas. uma conversa sobre as delicadezas, sobre as faltas. No uma conversa crua como desejam

    ncias exatas. A literatura mais delicada. Ela trabalha com a dvida, com as incertezas, com as inseguranas, com as faltas, que so coisas que nos unem. Tive uma

    infncia rica. Tive um av e uma experincia muito boa com ele. A minha me era uma . No havia em casa literatura infantil. Eu lia os livros que a minha me lia:

    (Emlio Richebourg), As mulheres de bronze

    absoluto pela palavra e era muito irreverente. Eu era o grande amigo dele. Ele falava ficaram. Em frente

    casa dele moravam trs moas solteiras. Maria da F, Maria da Esperana e Maria da Caridade. Eu sabia quando elas passavam na rua porque o meu av falava trs vezes: Tem d de ns, tem d de ns, tem d de ns. A Esperana morreu e o meu av me falou: Quem disse que a Esperana a ltima que morre?. Quando o cinema foi inaugurado, era um galpo muito grande, com um lenol no meio. Quem era alfabetizado via o filme de frente porque no podia botar o lenol no fundo do barraco,

    s desfocava a imagem. O lenol ficava no meio. Os alfabetizados ficavam na frente e liam. Os analfabetos ficavam atrs do lenol e pagavam meio ingresso. Viam o filme ao contrrio, mas a legenda no era problema. Ningum lia. E o meu av falava: Na terra

    Meu av tinha um encantamento com as palavras. Eu fui aprendendo com ele a cultivar esse encantamento. Lembro que na casa dele tinha uma copa muito grande. Ele ficava

    do cigarros para o dia seguinte. Havia um Cristo crucificado na parede. De vez em quando, ele levantava a cabea e falava para mim:

    n? Sofreu demais. Sofreu tanto. Mas morreu gordo, voc no acha?. Era toda ado com a metfora. Tive uma infncia junto

    com as metforas. Outra coisa que me ajuda na literatura ter nascido de sete meses. Fui sempre muito fraquinho. Era mido, fraco, tratado com cuidado. Quando adoecia, a

    por via de dvida, ela mandava benzer; por via de dvida, acendia uma vela; e por via de dvida, me dava um ch e eu, ento,

    melhorava por via de dvida. Depois, cheguei a uma concluso: Quem sabe as coisas livro didtico e quem no sabe faz literatura. Se voc tem uma coisa a afirmar, voc

    no tem que fazer literatura. Literatura uma conversa sobre as dvidas. uma conversa sobre as delicadezas, sobre as faltas. No uma conversa crua como desejam

    ncias exatas. A literatura mais delicada. Ela trabalha com a dvida, com as incertezas, com as inseguranas, com as faltas, que so coisas que nos unem. Tive uma

    infncia rica. Tive um av e uma experincia muito boa com ele. A minha me era uma . No havia em casa literatura infantil. Eu lia os livros que a minha me lia: A

    As mulheres de bronze (Xavier de

  • Montpin). Tambm ficou uma coisa que hoje conto sem problemas. Quando a minha me morreu, eu tinha seis para sete anos. Ela ficou doente por muitos anos. Eu sempre a conheci um pouco doente. Minha me cantava muito bonito, ela era soprano. Quando a dor era muito forte, quando a dor pesava muito, sabamos que a morfina no era suficiente, a minha me can

    dela atravessava a casa e o quintal. Ento, a gente sabia que ela estava com muita dor. Outro dia, estava pensando que eu tambm, quando di muito, escrevo. a mesma coisa. Quando pesa muito, eu escreMas fico o tempo todo em frente ao na janela.

    A literatura tem uma capacidade to grande de nos renovar que o texto que escreviontem no me serve para o hoj

    Construir o mundo com letras

    O meu av brincava muito comigo usando as palavras. Ele escrevia azul e me pedia para escrever outra palavra na frente. Eu escrevia preto. Ele falava: O azul hoje quase preto. Ele fazia uma fr

    ele, com toda palavra, dava conta de fazer uma frase. Com duas palavras, construa uma orao. A metfora muito interessante para o escritor. A metfora onde o escritor se esconde e pe asas no lei

    Montpin). Tambm ficou uma coisa que hoje conto sem problemas. Quando a minha seis para sete anos. Ela ficou doente por muitos anos. Eu sempre a

    conheci um pouco doente. Minha me cantava muito bonito, ela era soprano. Quando a dor era muito forte, quando a dor pesava muito, sabamos que a morfina no era suficiente, a minha me cantava. Ela cantava umas cantigas de Carlos Gomes. A voz dela atravessava a casa e o quintal. Ento, a gente sabia que ela estava com muita dor. Outro dia, estava pensando que eu tambm, quando di muito, escrevo. a mesma coisa. Quando pesa muito, eu escrevo. Hoje, no fico na janela como meu av ficava. Mas fico o tempo todo em frente ao Windows. Trocamos os lugares, mas continuamos

    A literatura tem uma capacidade to grande de nos renovar que o texto que escreviontem no me serve para o hoje. Foto: Matheus Dias

    Construir o mundo com letras

    O meu av brincava muito comigo usando as palavras. Ele escrevia azul e me pedia para escrever outra palavra na frente. Eu escrevia preto. Ele falava: O azul hoje quase preto. Ele fazia uma frase usando as duas palavras. Eu ficava incomodado como ele, com toda palavra, dava conta de fazer uma frase. Com duas palavras, construa uma orao. A metfora muito interessante para o escritor. A metfora onde o escritor se esconde e pe asas no leitor. Pela metfora, eu me escondo, mas ao mesmo tempo

    Montpin). Tambm ficou uma coisa que hoje conto sem problemas. Quando a minha seis para sete anos. Ela ficou doente por muitos anos. Eu sempre a

    conheci um pouco doente. Minha me cantava muito bonito, ela era soprano. Quando a dor era muito forte, quando a dor pesava muito, sabamos que a morfina no era

    tava. Ela cantava umas cantigas de Carlos Gomes. A voz dela atravessava a casa e o quintal. Ento, a gente sabia que ela estava com muita dor. Outro dia, estava pensando que eu tambm, quando di muito, escrevo. a mesma

    vo. Hoje, no fico na janela como meu av ficava. Trocamos os lugares, mas continuamos

    A literatura tem uma capacidade to grande de nos renovar que o texto que escrevi

    O meu av brincava muito comigo usando as palavras. Ele escrevia azul e me pedia para escrever outra palavra na frente. Eu escrevia preto. Ele falava: O azul hoje

    ase usando as duas palavras. Eu ficava incomodado como ele, com toda palavra, dava conta de fazer uma frase. Com duas palavras, construa uma orao. A metfora muito interessante para o escritor. A metfora onde o escritor se

    tor. Pela metfora, eu me escondo, mas ao mesmo tempo

  • ponho asas no leitor. Vai aonde voc quiser. Voc est livre para romper com tudo. Acho que o leitor to criador quanto o escritor. O leitor cria muito. o que o Umberto Eco fala a estrutura ausente na obra. Voc gosta de uma obra no pelo que est escrito, mas pelo lugar que ela o levou a pensar. Isso muito interessante. Michel Foucault fala que o que lemos no a frase que est escrita. Lemos o silncio que existe

    entre as palavras. ali que a literatura se faz. Vou falar bem francamente. Hoje, chego concluso de que escrevo porque quero dizer umas coisas e acho a palavra oral muito perigosa. Escrever mais fcil do que falar. Quando escrevo e no gosto do texto, eu o rasgo. Jogo fora, apago, deletono recolho a palavra nunca mais. Isso me incomoda muito. Sou extremamente silencioso em minha natureza. Tenho muito medo da palavra oral. Sinto muitas vezes que as palavras me ferem ou eu firo algum com essa palavra. No recolho nunca mais essa palavra que cai no ouvido do outro. Talvez escreva por medo da fala.

    Literatura afetiva

    Quando terminei o curso primrio, fui estudar como interno em Divinpolis. L, com onze ou doze anos, encontro o professor de literatura Jos Dias Lara. Ele me introduz na literatura. Com ele, comeo a ler Machado de Assis, Jos Lins do Rego, Jos de Alencar. Com uma orientao maravilhosa, devo a esse professor o meu gosto pela literatura. Sempre fui um bom leitor. Tive uma professora muito interessante. Quando entrei na escola, j sabia ler e escrever tanta vontade que a dona Maria Campos mim, que resolvi esquecer tudo. E aprendi tudo outra vez. Ela ficava to feliz comigo aprendendo tudo o tempo inteiro, rpido. E tudo o que queria na vida era que ela gostasse de mim, mais nada. Quando dava aula para professores em especializao, brincava com eles. Acho que a cprestar concurso, vestibular, nada disso. Ela aprende para ser amada por aquele que sabe. E o professor aquele que sabe e ela quer ser amada por aquele que sabe. Acho que a aprendizagem no incio da no d. Aprendi com Merleauaula a do olhar do professor. H pessoas que quando nos olham nos afastam. Outras, quando nos olham, nos acariciamprofessor no deixa. H criana que no usa a liberdade porque tem medo do olhar do

    ponho asas no leitor. Vai aonde voc quiser. Voc est livre para romper com tudo. Acho que o leitor to criador quanto o escritor. O leitor cria muito. o que o Umberto

    a estrutura ausente na obra. Voc gosta de uma obra no pelo que est escrito, mas pelo lugar que ela o levou a pensar. Isso muito interessante. Michel Foucault fala que o que lemos no a frase que est escrita. Lemos o silncio que existe

    lavras. ali que a literatura se faz. Vou falar bem francamente. Hoje, chego concluso de que escrevo porque quero dizer umas coisas e acho a palavra oral muito perigosa. Escrever mais fcil do que falar. Quando escrevo e no gosto do texto, eu o

    deleto, sumo com aquilo. Mas quando falo uma coisa errada, no recolho a palavra nunca mais. Isso me incomoda muito. Sou extremamente silencioso em minha natureza. Tenho muito medo da palavra oral. Sinto muitas vezes

    me ferem ou eu firo algum com essa palavra. No recolho nunca mais essa palavra que cai no ouvido do outro. Talvez escreva por medo da fala.

    Quando terminei o curso primrio, fui estudar como interno em Divinpolis. L, com ze anos, encontro o professor de literatura Jos Dias Lara. Ele me introduz na

    literatura. Com ele, comeo a ler Machado de Assis, Jos Lins do Rego, Jos de Alencar. Com uma orientao maravilhosa, devo a esse professor o meu gosto pela

    fui um bom leitor. Tive uma professora muito interessante. Quando entrei na escola, j sabia ler e escrever o meu av j havia me ensinado. Mas tinha tanta vontade que a dona Maria Campos minha primeira professora

    er tudo. E aprendi tudo outra vez. Ela ficava to feliz comigo aprendendo tudo o tempo inteiro, rpido. E tudo o que queria na vida era que ela gostasse de mim, mais nada. Quando dava aula para professores em especializao, brincava com eles. Acho que a criana, quando entra na escola, no aprende porque vai prestar concurso, vestibular, nada disso. Ela aprende para ser amada por aquele que sabe. E o professor aquele que sabe e ela quer ser amada por aquele que sabe. Acho que a aprendizagem no incio da infncia est puramente na ordem do afetivo. Sem isso no d. Aprendi com Merleau Ponty que a primeira leitura que a criana faz na sala de aula a do olhar do professor. H pessoas que quando nos olham nos afastam. Outras, quando nos olham, nos acariciam. H crianas que no aprendem porque o olhar do professor no deixa. H criana que no usa a liberdade porque tem medo do olhar do

    ponho asas no leitor. Vai aonde voc quiser. Voc est livre para romper com tudo. Acho que o leitor to criador quanto o escritor. O leitor cria muito. o que o Umberto

    a estrutura ausente na obra. Voc gosta de uma obra no pelo que est escrito, mas pelo lugar que ela o levou a pensar. Isso muito interessante. Michel Foucault fala que o que lemos no a frase que est escrita. Lemos o silncio que existe

    lavras. ali que a literatura se faz. Vou falar bem francamente. Hoje, chego concluso de que escrevo porque quero dizer umas coisas e acho a palavra oral muito perigosa. Escrever mais fcil do que falar. Quando escrevo e no gosto do texto, eu o

    , sumo com aquilo. Mas quando falo uma coisa errada, no recolho a palavra nunca mais. Isso me incomoda muito. Sou extremamente silencioso em minha natureza. Tenho muito medo da palavra oral. Sinto muitas vezes

    me ferem ou eu firo algum com essa palavra. No recolho nunca mais essa palavra que cai no ouvido do outro. Talvez escreva por medo da fala.

    Quando terminei o curso primrio, fui estudar como interno em Divinpolis. L, com ze anos, encontro o professor de literatura Jos Dias Lara. Ele me introduz na

    literatura. Com ele, comeo a ler Machado de Assis, Jos Lins do Rego, Jos de Alencar. Com uma orientao maravilhosa, devo a esse professor o meu gosto pela

    fui um bom leitor. Tive uma professora muito interessante. Quando o meu av j havia me ensinado. Mas tinha

    minha primeira professora gostasse de er tudo. E aprendi tudo outra vez. Ela ficava to feliz comigo

    aprendendo tudo o tempo inteiro, rpido. E tudo o que queria na vida era que ela gostasse de mim, mais nada. Quando dava aula para professores em especializao,

    quando entra na escola, no aprende porque vai prestar concurso, vestibular, nada disso. Ela aprende para ser amada por aquele que sabe. E o professor aquele que sabe e ela quer ser amada por aquele que sabe. Acho

    na ordem do afetivo. Sem isso Ponty que a primeira leitura que a criana faz na sala de

    aula a do olhar do professor. H pessoas que quando nos olham nos afastam. Outras, . H crianas que no aprendem porque o olhar do

    professor no deixa. H criana que no usa a liberdade porque tem medo do olhar do

  • professor. O olhar do professor imobiliza. Muitas vezes, jogamos nas costas dos mtodos a no aprendizagem da criana, quaninterditada pelo olhar do professor, que a primeira leitura que ela faz. Merleaudescobriu uma coisa fundamental. Um dia, ele olha muito tempo para o sol e descobre que olhar di. Ele comea, ento, a fazerque ouvir uma msica to bonita s vezes pode arrepiar o corpo. Ento, ouvir tambm ttil. No gosto, posso acordar a memria. Ento, o homem uma coisa inteira, no dividida em apenas cinco sentidos. Quandpoliciarmos sobre o olhar que destinamos ao outro e que muitas vezes interdita o outro. No permite que a liberdade se faa ali. As crianas precisam muito de ns, adultos. Elas precisam muito de ns para crescefazermos essa leitura.

    Formao do professor

    Estou muito afastado dos processos educacionais. O homem o nico animal que pode ser educado. Todos os outros animais podem ser adestrados. Educar pressupe deixar o outro ser dono do seu prprio destino. A educao se faz pela liberdade. Liberdade que voc d ao outro para que ele escolha o seu destino. Vejo que os processos de educao, o que chamamos de escola, no deixam de ser processos de adestramento. No uma educao plena, um processo de adestramento. uma criana sujeita ao desejo do professor. E o professor sujeito ao desejo do poder poltico. Ento, a criana sem autonomia. Ela deveria ser o senhor da coisa. No entanto, o objeto. A escola no forma o leitor de literatura. A escola s ensina. Isso da prpria histria da educao brasileira, quando, nos anos 1960americanos para a escola brasileira. Na revoluo de 64, Jarbas Passarinho oficializa a reforma da educao e comea a dizer que a escola s pode ensinar aquilo que pode ser medido, s o que mensurvel. Tirano mensurvel. Voc pode medir muitas crianas, mas no pode medir qual delas a mais feliz. A escola brasileira, da dcada de 1960 para c, ficou unicamente tentandoensinar s o que mensurvel. Entrou no regime da economia, dos nmeros. H coisas na educao que no podem ser mensurveis, so intuitivas, esto no campo da percepo, do afeto. Isso foi tudo jogado fora. De 1964 para c, quando os americanos comearam a dar as normas para a educao brasileira, no se pode falar de honestidade

    professor. O olhar do professor imobiliza. Muitas vezes, jogamos nas costas dos mtodos a no aprendizagem da criana, quando, s vezes, a aprendizagem da criana interditada pelo olhar do professor, que a primeira leitura que ela faz. Merleaudescobriu uma coisa fundamental. Um dia, ele olha muito tempo para o sol e descobre que olhar di. Ele comea, ento, a fazer uma anlise dessas coisas. Comea a perceber que ouvir uma msica to bonita s vezes pode arrepiar o corpo. Ento, ouvir tambm ttil. No gosto, posso acordar a memria. Ento, o homem uma coisa inteira, no dividida em apenas cinco sentidos. Quando se trabalha com a infncia muito bom nos policiarmos sobre o olhar que destinamos ao outro e que muitas vezes interdita o outro. No permite que a liberdade se faa ali. As crianas precisam muito de ns, adultos. Elas precisam muito de ns para crescer e elas sabem disso. importante e bom

    Estou muito afastado dos processos educacionais. O homem o nico animal que pode ser educado. Todos os outros animais podem ser adestrados. Educar pressupe deixar o outro ser dono do seu prprio destino. A educao se faz pela liberdade. Liberdade que

    oc d ao outro para que ele escolha o seu destino. Vejo que os processos de educao, o que chamamos de escola, no deixam de ser processos de adestramento. No uma educao plena, um processo de adestramento. uma criana sujeita ao desejo do

    sor. E o professor sujeito ao desejo do poder poltico. Ento, a criana sem autonomia. Ela deveria ser o senhor da coisa. No entanto, o objeto. A escola no forma o leitor de literatura. A escola s ensina. Isso da prpria histria da educao

    nos anos 1960, o MEC-Usaidi chega ao Brasil e traz os mtodos americanos para a escola brasileira. Na revoluo de 64, Jarbas Passarinho oficializa a reforma da educao e comea a dizer que a escola s pode ensinar aquilo que pode ser

    ido, s o que mensurvel. Tira-se todo ensino afetivo da escola, pois a afetividade no mensurvel. Voc pode medir muitas crianas, mas no pode medir qual delas a mais feliz. A escola brasileira, da dcada de 1960 para c, ficou unicamente tentandoensinar s o que mensurvel. Entrou no regime da economia, dos nmeros. H coisas na educao que no podem ser mensurveis, so intuitivas, esto no campo da percepo, do afeto. Isso foi tudo jogado fora. De 1964 para c, quando os americanos

    m a dar as normas para a educao brasileira, no se pode falar de honestidade

    professor. O olhar do professor imobiliza. Muitas vezes, jogamos nas costas dos do, s vezes, a aprendizagem da criana

    interditada pelo olhar do professor, que a primeira leitura que ela faz. Merleau Ponty descobriu uma coisa fundamental. Um dia, ele olha muito tempo para o sol e descobre

    uma anlise dessas coisas. Comea a perceber que ouvir uma msica to bonita s vezes pode arrepiar o corpo. Ento, ouvir tambm ttil. No gosto, posso acordar a memria. Ento, o homem uma coisa inteira, no

    o se trabalha com a infncia muito bom nos policiarmos sobre o olhar que destinamos ao outro e que muitas vezes interdita o outro. No permite que a liberdade se faa ali. As crianas precisam muito de ns, adultos.

    r e elas sabem disso. importante e bom

    Estou muito afastado dos processos educacionais. O homem o nico animal que pode ser educado. Todos os outros animais podem ser adestrados. Educar pressupe deixar o outro ser dono do seu prprio destino. A educao se faz pela liberdade. Liberdade que

    oc d ao outro para que ele escolha o seu destino. Vejo que os processos de educao, o que chamamos de escola, no deixam de ser processos de adestramento. No uma educao plena, um processo de adestramento. uma criana sujeita ao desejo do

    sor. E o professor sujeito ao desejo do poder poltico. Ento, a criana sem autonomia. Ela deveria ser o senhor da coisa. No entanto, o objeto. A escola no forma o leitor de literatura. A escola s ensina. Isso da prpria histria da educao

    chega ao Brasil e traz os mtodos americanos para a escola brasileira. Na revoluo de 64, Jarbas Passarinho oficializa a reforma da educao e comea a dizer que a escola s pode ensinar aquilo que pode ser

    se todo ensino afetivo da escola, pois a afetividade no mensurvel. Voc pode medir muitas crianas, mas no pode medir qual delas a mais feliz. A escola brasileira, da dcada de 1960 para c, ficou unicamente tentando ensinar s o que mensurvel. Entrou no regime da economia, dos nmeros. H coisas na educao que no podem ser mensurveis, so intuitivas, esto no campo da percepo, do afeto. Isso foi tudo jogado fora. De 1964 para c, quando os americanos

    m a dar as normas para a educao brasileira, no se pode falar de honestidade

  • porque no mensurvel; no se pode falar de fraternidade e amor, pois no so mensurveis. Quando o professor entra na sala de aula, tem que esquecer a vida dele do lado de fora. Ali dentro, ele no tem vida prpria, um facilitador da aprendizagem. Fomos trazendo isso at os dias de hoje e perdemos. A literatura, como no mensurvel, perde totalmente o sentido. muito interessante porqueditadura, a literatura se torna muito importante. Todas as escolas liam uma histria considerada literatura. Era uma histria de um passarinho que estava preso em uma gaiola e todo o dia de manh a criana levantava, trocava o alpiste, a aguinha e o passarinho cantava, cantava. Um dia, o menino esqueceu a porta aberta e o passarinho voou e foi para cima de uma rvore. A, cai uma chuva forte e ele precisa se esconder em uma calha do telhado, vem um gato e avana. Ele corre para o esgoto e vem um rato. At que o passarinho no agcontinua cantando muito feliz. isso que a ditadura quis falar que era literatura. Isso circulou no Brasil de cabo a rabo. Era a grande obra literria.

    preciso deixar a criana viver suas tristezas, suas fantasias.

    Encantar o outro

    A literatura comea a fazer isso com as crianas. Qual o personagem principal? Qual o pedacinho de que voc mais gostou? E mesmo que o menino goste do demnio, tem de

    porque no mensurvel; no se pode falar de fraternidade e amor, pois no so mensurveis. Quando o professor entra na sala de aula, tem que esquecer a vida dele do

    ra. Ali dentro, ele no tem vida prpria, um facilitador da aprendizagem. Fomos trazendo isso at os dias de hoje e perdemos. A literatura, como no mensurvel, perde totalmente o sentido. muito interessante porque, quando comea a

    tura se torna muito importante. Todas as escolas liam uma histria considerada literatura. Era uma histria de um passarinho que estava preso em uma gaiola e todo o dia de manh a criana levantava, trocava o alpiste, a aguinha e o

    ava. Um dia, o menino esqueceu a porta aberta e o passarinho voou e foi para cima de uma rvore. A, cai uma chuva forte e ele precisa se esconder em uma calha do telhado, vem um gato e avana. Ele corre para o esgoto e vem um rato.

    o aguenta essa liberdade e volta para a gaiola, fecha a portinha e continua cantando muito feliz. isso que a ditadura quis falar que era literatura. Isso circulou no Brasil de cabo a rabo. Era a grande obra literria.

    preciso deixar a criana viver a sua infncia, com suas inseguranas, seus medos, suas tristezas, suas fantasias. Foto: Matheus Dias

    A literatura comea a fazer isso com as crianas. Qual o personagem principal? Qual o pedacinho de que voc mais gostou? E mesmo que o menino goste do demnio, tem de

    porque no mensurvel; no se pode falar de fraternidade e amor, pois no so mensurveis. Quando o professor entra na sala de aula, tem que esquecer a vida dele do

    ra. Ali dentro, ele no tem vida prpria, um facilitador da aprendizagem. Fomos trazendo isso at os dias de hoje e perdemos. A literatura, como no

    quando comea a tura se torna muito importante. Todas as escolas liam uma histria

    considerada literatura. Era uma histria de um passarinho que estava preso em uma gaiola e todo o dia de manh a criana levantava, trocava o alpiste, a aguinha e o

    ava. Um dia, o menino esqueceu a porta aberta e o passarinho voou e foi para cima de uma rvore. A, cai uma chuva forte e ele precisa se esconder em uma calha do telhado, vem um gato e avana. Ele corre para o esgoto e vem um rato.

    enta essa liberdade e volta para a gaiola, fecha a portinha e continua cantando muito feliz. isso que a ditadura quis falar que era literatura. Isso

    a sua infncia, com suas inseguranas, seus medos,

    A literatura comea a fazer isso com as crianas. Qual o personagem principal? Qual o pedacinho de que voc mais gostou? E mesmo que o menino goste do demnio, tem de

  • falar que gostou do anjo, pois a escola no admite que se goste do demnio. Mesmo que goste da bruxa, tem de dizer que gosta da fada. A escola no d conta dessa liberdade que ns temos. Essa simpatia que carregamos pela bruxa, pela sacanagem do demnio. Mas na escola no pode, a escola tempera isso. Tem escola servil. A literatura no servil. A literatura no serve a nada e a escola foi feita para servir algum, ou a um partido poltico, a um ideal, enquanto a literatura foi feita apenas para encantar o outro. A literatura feita de fantasia. Tudo o que penso, posso escrever. Nada intertudo posso dizer, desde que com uma forma elegante, bem organizada. Posso at dizer os livro, os peixe nada. Posso at dizer, mas propositadamente, conhecendo uma gramtica profundamente. A, posso dizer qualquer coisa que quero. S rompemos quando dominamos. Caso contrrio no h rompimento. preciso uma tradio para romper. A literatura essa coisa exagerada de fantasia. A gente s fantasia o que no temos. No fantasiamos o que temos. Ento, a literatura feita de falta. O que escrevo o que me falta. isso que a literatura faz. A literatura o lugar da falta. Para a escola muito difcil cuidar da liberdade. A liberdade muito fascinante, muito boa. A liberdade uma coisa extremamente exagerada, bonita, clara. E a escola no d contescola para conter. Criana educada criana contida. A escola de hoje acha que esse menino educado porque, perna cruzada, porque ele come com a boca fechada. Todo contido educexpansivo mal-educado.

    Ser escritor

    Estava estudando fora do Brasil Frana, era bolsista e comecei a sentir saudade do Brasil. Morava perto de um jardim que tinha um lago. No fim de semana, sentavado Brasil, de comer feijoada, de dormir na cama com lenNunca pensei em ser escritor. Um dia, pensei: por que voc no pensa em uma coisa que nunca pensou? E tinha o lago e sempre vinha um peixe e botava a cabea do lado de fora. Havia vrias gaivotas que mergulhavam no lago e tornolhar aquilo e a pensar que cada coisa tinha um lugar. Se o peixe sasse fora da gua, morreria afogado no ar. Mas se a gaivota ficasse dentro da gua, morreria afogada. Comecei a olhar os dois elementos da natureza e descobri uma cotanto o peixe quanto o pssaro no deixa rastro por onde passa. No ficam caminhos.

    falar que gostou do anjo, pois a escola no admite que se goste do demnio. Mesmo que oste da bruxa, tem de dizer que gosta da fada. A escola no d conta dessa liberdade

    que ns temos. Essa simpatia que carregamos pela bruxa, pela sacanagem do demnio. Mas na escola no pode, a escola tempera isso. Tem escola servil. A literatura no

    vil. A literatura no serve a nada e a escola foi feita para servir algum, ou a um partido poltico, a um ideal, enquanto a literatura foi feita apenas para encantar o outro. A literatura feita de fantasia. Tudo o que penso, posso escrever. Nada intertudo posso dizer, desde que com uma forma elegante, bem organizada. Posso at dizer os livro, os peixe nada. Posso at dizer, mas propositadamente, conhecendo uma gramtica profundamente. A, posso dizer qualquer coisa que quero. S rompemos

    ando dominamos. Caso contrrio no h rompimento. preciso uma tradio para romper. A literatura essa coisa exagerada de fantasia. A gente s fantasia o que no temos. No fantasiamos o que temos. Ento, a literatura feita de falta. O que escrevo

    que me falta. isso que a literatura faz. A literatura o lugar da falta. Para a escola muito difcil cuidar da liberdade. A liberdade muito fascinante, muito boa. A liberdade uma coisa extremamente exagerada, bonita, clara. E a escola no d contescola para conter. Criana educada criana contida. A escola de hoje acha que esse

    antes de responder, ele conta at dez, porque ele senta com a perna cruzada, porque ele come com a boca fechada. Todo contido educ

    Estava estudando fora do Brasil [incio da dcada de 1970], no Instituto Pedaggico da Frana, era bolsista e comecei a sentir saudade do Brasil. Morava perto de um jardim que tinha um lago. No fim de semana, sentava-me neste jardim para ler e sentia saudade do Brasil, de comer feijoada, de dormir na cama com lenol passado, dos meus amigos. Nunca pensei em ser escritor. Um dia, pensei: por que voc no pensa em uma coisa que nunca pensou? E tinha o lago e sempre vinha um peixe e botava a cabea do lado de fora. Havia vrias gaivotas que mergulhavam no lago e tornavam a sair. Comecei a olhar aquilo e a pensar que cada coisa tinha um lugar. Se o peixe sasse fora da gua, morreria afogado no ar. Mas se a gaivota ficasse dentro da gua, morreria afogada. Comecei a olhar os dois elementos da natureza e descobri uma coisa que achei bonita: tanto o peixe quanto o pssaro no deixa rastro por onde passa. No ficam caminhos.

    falar que gostou do anjo, pois a escola no admite que se goste do demnio. Mesmo que oste da bruxa, tem de dizer que gosta da fada. A escola no d conta dessa liberdade

    que ns temos. Essa simpatia que carregamos pela bruxa, pela sacanagem do demnio. Mas na escola no pode, a escola tempera isso. Tem escola servil. A literatura no

    vil. A literatura no serve a nada e a escola foi feita para servir algum, ou a um partido poltico, a um ideal, enquanto a literatura foi feita apenas para encantar o outro. A literatura feita de fantasia. Tudo o que penso, posso escrever. Nada interditado, tudo posso dizer, desde que com uma forma elegante, bem organizada. Posso at dizer os livro, os peixe nada. Posso at dizer, mas propositadamente, conhecendo uma gramtica profundamente. A, posso dizer qualquer coisa que quero. S rompemos

    ando dominamos. Caso contrrio no h rompimento. preciso uma tradio para romper. A literatura essa coisa exagerada de fantasia. A gente s fantasia o que no temos. No fantasiamos o que temos. Ento, a literatura feita de falta. O que escrevo

    que me falta. isso que a literatura faz. A literatura o lugar da falta. Para a escola muito difcil cuidar da liberdade. A liberdade muito fascinante, muito boa. A liberdade uma coisa extremamente exagerada, bonita, clara. E a escola no d conta disso. A escola para conter. Criana educada criana contida. A escola de hoje acha que esse

    antes de responder, ele conta at dez, porque ele senta com a perna cruzada, porque ele come com a boca fechada. Todo contido educado. Todo

    , no Instituto Pedaggico da Frana, era bolsista e comecei a sentir saudade do Brasil. Morava perto de um jardim

    me neste jardim para ler e sentia saudade ol passado, dos meus amigos.

    Nunca pensei em ser escritor. Um dia, pensei: por que voc no pensa em uma coisa que nunca pensou? E tinha o lago e sempre vinha um peixe e botava a cabea do lado de

    avam a sair. Comecei a olhar aquilo e a pensar que cada coisa tinha um lugar. Se o peixe sasse fora da gua, morreria afogado no ar. Mas se a gaivota ficasse dentro da gua, morreria afogada.

    isa que achei bonita: tanto o peixe quanto o pssaro no deixa rastro por onde passa. No ficam caminhos.

  • Ele chega, se instala naquele lugar e todo vazio caminho. E toda a gua caminho. Fiquei encantado com o peixe e o pssaro por no deixarem rastro.texto O peixe e o pssaro em um concurso a primeira edio do prmio Joo de Barro, da Prefeitura de Belo Horizonte. Mandei meu texto e ganhei o prmio. No sabia que era escriprmio e fiquei feliz, pois tinha um dinheiro. Fiquei mais feliz ainda porque um dos jurados era a Enriqueta Lisboa, que me telefonou para dar a notcia. Ela quis me conhecer e ficamos muito amigos. Havia um crtico literrio no chamava Dom Marcos Barbosa. Ele leu aconselhando o Carlos Drummond de Andrade a ler o meu livro, pois era uma receita para viver no mosteiro. Esse foi um texto que escrevi para mim mesmo. Para me fazer

    carinho naquela solido que sentia em Paris. Hoje, brinco muito ao afirmar que escrevemos para fazer carinho na gente. Tem horas que a nica coisa que posso fazer

    por mim escrever. Fazer um pouco de carinho em mim.

    No ler depois de impresso

    Tem coisas que no me perdCiganos. Quando escrevi Ciganoscom o sul da Espanha. O livro tinha acabado de sair no Brasil. Entrei em um acampamento de ciganos espanhis e uma cigana veio e me perguntou: Queres ver a tua sina?. Eu pensei: escrevi o

    um arrependimento de me matar. Como que voc escreve um texto sobre os ciganos e no coloca a palavra sina

    impresso. No leio nada porque vou querer eliteratura tem uma capacidade to grande de nos renovar que o texto que escrevi ontem no me serve para o hoje.

    Preocupao com o pblico

    No tenho preocupao com o pblico. Vocs j assistiram ao filme isso, ela foi para a cozinha e fez o melhor que ela podia. S isso. Vou para o escritrio e fao o melhor que posso. quela hora no tem destinatrio. Se tiver destinatrio, no mais literrio. Se entrar no escritrio e pensar: vou escrever um

    distancio dela. J me coloco no lugar de adulto, me distancio da infncia. Tenho muito

    Ele chega, se instala naquele lugar e todo vazio caminho. E toda a gua caminho. Fiquei encantado com o peixe e o pssaro por no deixarem rastro. Ento, escrevi o

    para aliviar a minha saudade. Quando volto ao Brasil, entro a primeira edio do prmio Joo de Barro, da Prefeitura de Belo

    Horizonte. Mandei meu texto e ganhei o prmio. No sabia que era escriprmio e fiquei feliz, pois tinha um dinheiro. Fiquei mais feliz ainda porque um dos jurados era a Enriqueta Lisboa, que me telefonou para dar a notcia. Ela quis me conhecer e ficamos muito amigos. Havia um crtico literrio no Jornal do Brachamava Dom Marcos Barbosa. Ele leu O peixe e o pssaro e escreveu uma crnica, aconselhando o Carlos Drummond de Andrade a ler o meu livro, pois era uma receita para viver no mosteiro. Esse foi um texto que escrevi para mim mesmo. Para me fazer

    carinho naquela solido que sentia em Paris. Hoje, brinco muito ao afirmar que escrevemos para fazer carinho na gente. Tem horas que a nica coisa que posso fazer

    por mim escrever. Fazer um pouco de carinho em mim.

    No ler depois de impresso

    s que no me perdoo. Ganhei o prmio Jabuti com um livro chamado Ciganos, viajei para a Europa e estava no norte de Portugal

    com o sul da Espanha. O livro tinha acabado de sair no Brasil. Entrei em um acampamento de ciganos espanhis e uma cigana veio e me perguntou: Queres ver a tua sina?. Eu pensei: escrevi o Ciganos e no usei uma nica vez a palavra sina. Tive um arrependimento de me matar. Como que voc escreve um texto sobre os ciganos e

    ? A, fiz um propsito de nunca mais ler nada meu depois de impresso. No leio nada porque vou querer escrever de novo, porque j sou outro. A literatura tem uma capacidade to grande de nos renovar que o texto que escrevi ontem

    Preocupao com o pblico

    No tenho preocupao com o pblico. Vocs j assistiram ao filme A festa de isso, ela foi para a cozinha e fez o melhor que ela podia. S isso. Vou para o escritrio e fao o melhor que posso. quela hora no tem destinatrio. Se tiver destinatrio, no mais literrio. Se entrar no escritrio e pensar: vou escrever um texto para criana, j me distancio dela. J me coloco no lugar de adulto, me distancio da infncia. Tenho muito

    Ele chega, se instala naquele lugar e todo vazio caminho. E toda a gua caminho. Ento, escrevi o

    para aliviar a minha saudade. Quando volto ao Brasil, entro a primeira edio do prmio Joo de Barro, da Prefeitura de Belo

    Horizonte. Mandei meu texto e ganhei o prmio. No sabia que era escritor. Ganhei o prmio e fiquei feliz, pois tinha um dinheiro. Fiquei mais feliz ainda porque um dos jurados era a Enriqueta Lisboa, que me telefonou para dar a notcia. Ela quis me

    Jornal do Brasil que se e escreveu uma crnica,

    aconselhando o Carlos Drummond de Andrade a ler o meu livro, pois era uma receita para viver no mosteiro. Esse foi um texto que escrevi para mim mesmo. Para me fazer

    carinho naquela solido que sentia em Paris. Hoje, brinco muito ao afirmar que escrevemos para fazer carinho na gente. Tem horas que a nica coisa que posso fazer

    o. Ganhei o prmio Jabuti com um livro chamado , viajei para a Europa e estava no norte de Portugal

    com o sul da Espanha. O livro tinha acabado de sair no Brasil. Entrei em um acampamento de ciganos espanhis e uma cigana veio e me perguntou: Queres ver a

    usei uma nica vez a palavra sina. Tive um arrependimento de me matar. Como que voc escreve um texto sobre os ciganos e

    ? A, fiz um propsito de nunca mais ler nada meu depois de screver de novo, porque j sou outro. A

    literatura tem uma capacidade to grande de nos renovar que o texto que escrevi ontem

    A festa de Babete? isso, ela foi para a cozinha e fez o melhor que ela podia. S isso. Vou para o escritrio e fao o melhor que posso. quela hora no tem destinatrio. Se tiver destinatrio, no

    texto para criana, j me distancio dela. J me coloco no lugar de adulto, me distancio da infncia. Tenho muito

  • medo do escrever para criana. Parece que estou em um lugar muito legal, que estou bem feliz, bem disposto, alegre e vou ensinar esses coitem que estou. Eu tenho horror disso. Quero mostrar para a criana que tambm cresci, mas tenho muita insegurana, muita tristeza, muita alegria, muita saudade. Na minha obra, falo de morte, falo de tudo. Quando escrevo e queruma frase mais curta, uma ordem mais direta, um pargrafo menor, porque o flego da criana pequeno. Quando escrevo, preciso ler o texto em voz alta para saber se ele cabe na minha respirao. s vezes, ao ler o texto etransformar uma frase em duas, colocar um pontolonga. Quando a emoo muito forte, tenho que mudar de folha. Fao muito isso, mas quase que protegendo o leitor. O contedo, no. As muito mais fortes do que ns. Quando se chega idade coisa interessantssima: a vida no um processo de soma, um processo de subtrao. Viver um dia ter menos um dia. Hoje tenho muittem muito mais para viver do que eu. Ela muito mais intensa do que eu. Ela tem muito mais pela frente do que eu. O meu pela frente pouco. perigoso quando a gente pensa que vai escrever para a criana porque a inf

    no ser pela fantasia. E a criana est l em realidade. s vezes, os adultos, os pais, os professores ou os escritores, se sentem to ameaados porque a criana est em um lugar que indiscutivelmente j perdi, irEnto, comeamos a querer trazer essa criana o mais depressa possvel para o lugar onde estou. A, voc comea a assaltar a infncia da criana. Tenho muito medo desse assalto. Hoje, muita escola considerada boacedo. Que aquele professor muito bom porque rouba a infncia da criana muito cedo. Eu vejo isso com muita clareza. preciso deixar a criana viver a sua infncia, com suas inseguranas, seus medos, suas tristez

    Espantado com a vida

    Voc no sabe que est em coma. Se tivesse morrido, no teria sabido. Quando voltei, soube que havia ficado em coma sessenta e nove dias. Viver, para mim, um espanto muito grande. Depois desse perodo, fiquei muato extremamente arbitrrio. No fui consultado se queria nascer e isso me pesa muito. Ningum me perguntou se eu queria nascer, depois no escolhi nem me nem pai. No

    medo do escrever para criana. Parece que estou em um lugar muito legal, que estou bem feliz, bem disposto, alegre e vou ensinar esses coitadinhos a chegar em que estou. Eu tenho horror disso. Quero mostrar para a criana que tambm cresci, mas tenho muita insegurana, muita tristeza, muita alegria, muita saudade. Na minha obra, falo de morte, falo de tudo. Quando escrevo e quero que a criana seja leitora, fao uma frase mais curta, uma ordem mais direta, um pargrafo menor, porque o flego da criana pequeno. Quando escrevo, preciso ler o texto em voz alta para saber se ele cabe na minha respirao. s vezes, ao ler o texto em voz alta, percebo que preciso

    frase em duas, colocar um ponto-final, dar um jeito porque est muito longa. Quando a emoo muito forte, tenho que mudar de folha. Fao muito isso, mas quase que protegendo o leitor. O contedo, no. As crianas do conta. As crianas so muito mais fortes do que ns. Quando se chega idade a que cheguei, descobrecoisa interessantssima: a vida no um processo de soma, um processo de subtrao. Viver um dia ter menos um dia. Hoje tenho muito menos dias para subtrair. A criana tem muito mais para viver do que eu. Ela muito mais intensa do que eu. Ela tem muito mais pela frente do que eu. O meu pela frente pouco. perigoso quando a gente pensa que vai escrever para a criana porque a infncia o lugar que jamais poderei estar a no ser pela fantasia. E a criana est l em realidade. s vezes, os adultos, os pais, os professores ou os escritores, se sentem to ameaados porque a criana est em um lugar que indiscutivelmente j perdi, irremediavelmente nunca mais poderei estar. Ento, comeamos a querer trazer essa criana o mais depressa possvel para o lugar onde estou. A, voc comea a assaltar a infncia da criana. Tenho muito medo desse assalto. Hoje, muita escola considerada boa porque rouba a infncia da criana muito cedo. Que aquele professor muito bom porque rouba a infncia da criana muito cedo. Eu vejo isso com muita clareza. preciso deixar a criana viver a sua infncia, com suas inseguranas, seus medos, suas tristezas, suas fantasias.

    Voc no sabe que est em coma. Se tivesse morrido, no teria sabido. Quando voltei, soube que havia ficado em coma sessenta e nove dias. Viver, para mim, um espanto muito grande. Depois desse perodo, fiquei muito espantado com a vida. Nascer um ato extremamente arbitrrio. No fui consultado se queria nascer e isso me pesa muito. Ningum me perguntou se eu queria nascer, depois no escolhi nem me nem pai. No

    medo do escrever para criana. Parece que estou em um lugar muito legal, que estou adinhos a chegar a esse lugar

    em que estou. Eu tenho horror disso. Quero mostrar para a criana que tambm cresci, mas tenho muita insegurana, muita tristeza, muita alegria, muita saudade. Na minha

    o que a criana seja leitora, fao uma frase mais curta, uma ordem mais direta, um pargrafo menor, porque o flego da criana pequeno. Quando escrevo, preciso ler o texto em voz alta para saber se ele

    m voz alta, percebo que preciso final, dar um jeito porque est muito

    longa. Quando a emoo muito forte, tenho que mudar de folha. Fao muito isso, mas crianas do conta. As crianas so

    que cheguei, descobre-se uma coisa interessantssima: a vida no um processo de soma, um processo de subtrao.

    o menos dias para subtrair. A criana tem muito mais para viver do que eu. Ela muito mais intensa do que eu. Ela tem muito mais pela frente do que eu. O meu pela frente pouco. perigoso quando a gente pensa

    ncia o lugar que jamais poderei estar a no ser pela fantasia. E a criana est l em realidade. s vezes, os adultos, os pais, os professores ou os escritores, se sentem to ameaados porque a criana est em um

    remediavelmente nunca mais poderei estar. Ento, comeamos a querer trazer essa criana o mais depressa possvel para o lugar onde estou. A, voc comea a assaltar a infncia da criana. Tenho muito medo desse

    porque rouba a infncia da criana muito cedo. Que aquele professor muito bom porque rouba a infncia da criana muito cedo. Eu vejo isso com muita clareza. preciso deixar a criana viver a sua infncia, com

    Voc no sabe que est em coma. Se tivesse morrido, no teria sabido. Quando voltei, soube que havia ficado em coma sessenta e nove dias. Viver, para mim, um espanto

    ito espantado com a vida. Nascer um ato extremamente arbitrrio. No fui consultado se queria nascer e isso me pesa muito. Ningum me perguntou se eu queria nascer, depois no escolhi nem me nem pai. No

  • escolhi o pas, nem o idioma que queria falar, neperguntou nada. um dos fatos mais arbitrrios do mundo. Escrevo neste livro [Vermelho amargo] que a dor do parto tambm de quem nasce. Outra coisa arbitrria morrer, porque voc no pediu para nascer. E quando v a luz do mundo, a cor, a alegria do mundo, algum fala que voc vai morrer. Morrer outra coisa arbitrria. Saber que uma experincia individual. S posso nascer do meu parto e s posso morrer da minha morte. Por mais que ame o outro, so coisas que no posso fazer no lugar dele. No poder morrer no lugar de nineducao que no trabalha com isso educao que no tem esse cuidado, que nascer ganhar o abandono. Nascer ser expulso do paraso, andar com acom os prprios ouvidos. Nascer o abandooutro. A compaixo surge com a conscincia desse abandono, com o medo da morte. a que criamos uma paixo pelo outro. Essa compaixo surge dessa nossa fragilidade, que absoluta. E ns no falamos mais nisso. Afala disso. Tenho um livro espanta tanto que no queremos nem pensar. Mas o que nos segura.

    A literatura pode ser um espao bonito do reencontro, da outras confidncias. Foto: Matheus Dias

    escolhi o pas, nem o idioma que queria falar, nem a cor que queria ter. Ningum me perguntou nada. um dos fatos mais arbitrrios do mundo. Escrevo neste livro

    que a dor do parto tambm de quem nasce. Outra coisa arbitrria morrer, porque voc no pediu para nascer. E quando v a luz do mundo, a cor, a alegria do mundo, algum fala que voc vai morrer. Morrer outra coisa arbitrria.

    ncia individual. S posso nascer do meu parto e s posso morrer da minha morte. Por mais que ame o outro, so coisas que no posso fazer no lugar dele. No poder morrer no lugar de ningum uma coisa to arbitrria!educao que no trabalha com isso passa ao largo. Perde o cuidado com a vida. A educao que no tem esse cuidado, que nascer ganhar o abandono. Nascer ser expulso do paraso, andar com as prprias pernas, falar com a prpria boca, ouvir

    . Nascer o abandono e isso que nos faz ter compaixo pelo outro. A compaixo surge com a conscincia desse abandono, com o medo da morte. a que criamos uma paixo pelo outro. Essa compaixo surge dessa nossa fragilidade, que absoluta. E ns no falamos mais nisso. A literatura para criana, s vezes, no fala disso. Tenho um livro At passarinho passa que fala da morte. A morte nos espanta tanto que no queremos nem pensar. Mas o que nos segura.

    A literatura pode ser um espao bonito do reencontro, da conversa, do deslFoto: Matheus Dias

    m a cor que queria ter. Ningum me

    perguntou nada. um dos fatos mais arbitrrios do mundo. Escrevo neste livro que a dor do parto tambm de quem nasce. Outra coisa arbitrria

    morrer, porque voc no pediu para nascer. E quando v a luz do mundo, a cor, a alegria do mundo, algum fala que voc vai morrer. Morrer outra coisa arbitrria.

    ncia individual. S posso nascer do meu parto e s posso morrer da minha morte. Por mais que ame o outro, so coisas que no posso fazer no

    gum uma coisa to arbitrria! Uma passa ao largo. Perde o cuidado com a vida. A

    educao que no tem esse cuidado, que nascer ganhar o abandono. Nascer ser , falar com a prpria boca, ouvir

    no e isso que nos faz ter compaixo pelo outro. A compaixo surge com a conscincia desse abandono, com o medo da morte. a que criamos uma paixo pelo outro. Essa compaixo surge dessa nossa fragilidade,

    literatura para criana, s vezes, no

    que fala da morte. A morte nos

    conversa, do deslanchar para

  • A palavra desestabiliza

    Um dia estava trabalhando em casa e deitei no cho. Tenho s vezes uma dor na coluna. Deitei no cho do escritrio. Tinha feito muita coisa naquele dia. De formiguinha descendo depressa a parede branca do escritrio. Olhando para ela, fiquei to abismado! Eu sabia fazer tanta coisa, mas no sabia quem botou o desejo do acar no corao da formiga. A, a literatura no d conta. Os pequenos gestos da natureza me encabulam muito. Sei que a palavra no d conta. Mesmo sabendo que a palavra que organiza o caos. No Gnesispalavra que organizou o caos. Voc vai ao psicanalista porque est em desordem e acredita que a palavra ir te organizar. A palavra cura. De repente essa palavra no d conta de dizer muita coisa. Ao mesmo tempo a palavra desestabiliza. A palavra uma coisa muito pesada. Nossa Senhora ficou grvida da palavra do anjo. O anjo chegou, disse que ela seria me e ela acreditou. A palavra tem esse poder transformador.

    Movimento por um Brasil Literrio

    Andei pensando muito antes de fazer o muito com o pessoal da Fundao Nacional do Livro sobre como a escola no pode ser a nica responsvel pela formao do leitor. A escola no pode nem d concriana chega em casa e no encontra nem o pai, nem a me, nem av lendo, como que a escola quer que ela leia? Ela no v isso acontecendo na vida. Achei que era preciso mobilizar toda uma sociedade em funo da leitura literria. No deixexclusivamente na mo da escola uma tarefa que no pode ser somente dela. Precisamos de uma sociedade inteira envolvida nesse trabalho de formao de leitor. No quis chamar de plano de leitura, projeto de leitura. Eu queria um movimento de leitura, compessoas que acreditam que a literatura boa, faz bem, com quem possa ajudar, indicar um livro, fazer um grupo de leitura. Quem pode fazer isso pode entrar no nosso movimento, pode entrar no informando o que est acontecendo. todo mundo que acredita nisso. No h cobrana nem avaliao. No quis nada disso, quis um movimento livre. O movimento uma coisa organizada, tem uma organizao interna, um fluxo. Todo mundo que estiver embalado nessa confiana na literatura, que a literatura pode fazer uma sociedade mais

    Um dia estava trabalhando em casa e deitei no cho. Tenho s vezes uma dor na coluna. Deitei no cho do escritrio. Tinha feito muita coisa naquele dia. De formiguinha descendo depressa a parede branca do escritrio. Olhando para ela, fiquei

    Eu sabia fazer tanta coisa, mas no sabia quem botou o desejo do acar no corao da formiga. A, a literatura no d conta. Os pequenos gestos da natureza me encabulam muito. Sei que a palavra no d conta. Mesmo sabendo que a palavra que

    Gnesis, Ele veio e disse: Faa-se a luz!. E a luz se fez. Foi a palavra que organizou o caos. Voc vai ao psicanalista porque est em desordem e acredita que a palavra ir te organizar. A palavra cura. De repente essa palavra no d

    er muita coisa. Ao mesmo tempo a palavra desestabiliza. A palavra uma coisa muito pesada. Nossa Senhora ficou grvida da palavra do anjo. O anjo chegou, disse que ela seria me e ela acreditou. A palavra tem esse poder transformador.

    rasil Literrio

    Andei pensando muito antes de fazer o Movimento por um Brasil Literriomuito com o pessoal da Fundao Nacional do Livro sobre como a escola no pode ser a nica responsvel pela formao do leitor. A escola no pode nem d concriana chega em casa e no encontra nem o pai, nem a me, nem av lendo, como que a escola quer que ela leia? Ela no v isso acontecendo na vida. Achei que era preciso mobilizar toda uma sociedade em funo da leitura literria. No deixexclusivamente na mo da escola uma tarefa que no pode ser somente dela. Precisamos de uma sociedade inteira envolvida nesse trabalho de formao de leitor. No quis chamar de plano de leitura, projeto de leitura. Eu queria um movimento de leitura, compessoas que acreditam que a literatura boa, faz bem, com quem possa ajudar, indicar um livro, fazer um grupo de leitura. Quem pode fazer isso pode entrar no nosso movimento, pode entrar no site [www.brasilliterario.org.br]. Temos contatos que vo

    ando o que est acontecendo. todo mundo que acredita nisso. No h cobrana nem avaliao. No quis nada disso, quis um movimento livre. O movimento uma coisa organizada, tem uma organizao interna, um fluxo. Todo mundo que estiver

    iana na literatura, que a literatura pode fazer uma sociedade mais

    Um dia estava trabalhando em casa e deitei no cho. Tenho s vezes uma dor na coluna. Deitei no cho do escritrio. Tinha feito muita coisa naquele dia. De repente, vi uma formiguinha descendo depressa a parede branca do escritrio. Olhando para ela, fiquei

    Eu sabia fazer tanta coisa, mas no sabia quem botou o desejo do acar no corao da formiga. A, a literatura no d conta. Os pequenos gestos da natureza me encabulam muito. Sei que a palavra no d conta. Mesmo sabendo que a palavra que

    se a luz!. E a luz se fez. Foi a

    palavra que organizou o caos. Voc vai ao psicanalista porque est em desordem e acredita que a palavra ir te organizar. A palavra cura. De repente essa palavra no d

    er muita coisa. Ao mesmo tempo a palavra desestabiliza. A palavra uma coisa muito pesada. Nossa Senhora ficou grvida da palavra do anjo. O anjo chegou, disse que ela seria me e ela acreditou. A palavra tem esse poder transformador.

    Movimento por um Brasil Literrio. Conversava muito com o pessoal da Fundao Nacional do Livro sobre como a escola no pode ser a nica responsvel pela formao do leitor. A escola no pode nem d conta disso. Se a criana chega em casa e no encontra nem o pai, nem a me, nem av lendo, como que a escola quer que ela leia? Ela no v isso acontecendo na vida. Achei que era preciso mobilizar toda uma sociedade em funo da leitura literria. No deixar exclusivamente na mo da escola uma tarefa que no pode ser somente dela. Precisamos de uma sociedade inteira envolvida nesse trabalho de formao de leitor. No quis chamar de plano de leitura, projeto de leitura. Eu queria um movimento de leitura, com pessoas que acreditam que a literatura boa, faz bem, com quem possa ajudar, indicar um livro, fazer um grupo de leitura. Quem pode fazer isso pode entrar no nosso

    . Temos contatos que vo

    ando o que est acontecendo. todo mundo que acredita nisso. No h cobrana nem avaliao. No quis nada disso, quis um movimento livre. O movimento uma coisa organizada, tem uma organizao interna, um fluxo. Todo mundo que estiver

    iana na literatura, que a literatura pode fazer uma sociedade mais

  • bonita, menos corrupta, mais reflexiva, mais crtica. Pode fazer uma sociedade mais cheia de compaixo, de respeito mtuo. Acho que a literatura tem a funo de tornar a sensibilidade mais aguada. As pessoas mais intuitivas, mais prontas para as mincias, para os retalhos, como diz o Manoel de Barros, para os restos, para as pequenas coisas. A literatura pode nos ajudar muito.

    Nem luz prpria

    Hoje estamos vivendo em um Brasil feio. No gBrasil que s fala de nmeros. O Brasil vai bem porque a economia vai bem. Mas e ns, o povo? Ns estamos bem? Estamos seguros, respeitados? Estamos dignamente humanos? Temos uma escola boa, uma sade boa? Temos uma seguvai bem porque a economia vai bem. Mas e eu no conto? Sou apenas um nmero? Estudei na fsica que o planeta no tem nem luz prpria. Olha que coisa terrvel morar em um planeta que no tem nem luz prpria. Estamos em uma periferia do cter o dia e a noite voc nem precisa de uma estrela de primeira grandeza. Uma estrela de quinta grandeza, como o Sol, serve. Resolve isso numa boa. E ainda temos alguma verdade para dizer? s a dvida que nos une, que nos aproxima. s disso precisamos. Precisamos de amparo com a nossa dvida. E a literatura nos ampara. Tenho muito medo da verdade. No acredito que haja nada verdadeiro. Tive um professor de filosofia, o padre Henrique Vaz, para quem eu perguntei o que era a f. Ele me respondeu que a f a dvida. Tem dias que voc tem muita, tem dias que tem pouca, tem dias que no tem nenhuma. Isso se chama f, porque nos possvel somente a dvida. Hoje, estamos com muita gente encontrando a verdade. Quando uma pessoa encontra a verdade, a nica coisa que ela adquire a impossibilidade de escutar o outro. Ela s fala, no escuta mais. Quem encontra a verdade s fala.

    Verdade mais profunda

    A memria o nosso grande lugar. Na memria tem tanto o que vivi quanto o que sonhei ter vivido. No acredito em memria pura. Toda memria ficcional. um pedao da memria com mais um pedao da fantasia. A fantasia o que temos de mais real dentro de ns. A fantasia a minha verdade mais profunda. A fantasia aquilo que no conto para ningum, s para as pessoas que amo muito. Ela to verdadeira que quando vou contar essa fantasia, fao uma metfora para proteg

    bonita, menos corrupta, mais reflexiva, mais crtica. Pode fazer uma sociedade mais cheia de compaixo, de respeito mtuo. Acho que a literatura tem a funo de tornar a

    aguada. As pessoas mais intuitivas, mais prontas para as mincias, para os retalhos, como diz o Manoel de Barros, para os restos, para as pequenas coisas. A literatura pode nos ajudar muito.

    Hoje estamos vivendo em um Brasil feio. No gosto do Brasil em que vivo hoje. Um Brasil que s fala de nmeros. O Brasil vai bem porque a economia vai bem. Mas e ns, o povo? Ns estamos bem? Estamos seguros, respeitados? Estamos dignamente humanos? Temos uma escola boa, uma sade boa? Temos uma segurana boa? O Brasil vai bem porque a economia vai bem. Mas e eu no conto? Sou apenas um nmero? Estudei na fsica que o planeta no tem nem luz prpria. Olha que coisa terrvel morar em um planeta que no tem nem luz prpria. Estamos em uma periferia do cter o dia e a noite voc nem precisa de uma estrela de primeira grandeza. Uma estrela de quinta grandeza, como o Sol, serve. Resolve isso numa boa. E ainda temos alguma verdade para dizer? s a dvida que nos une, que nos aproxima. s disso precisamos. Precisamos de amparo com a nossa dvida. E a literatura nos ampara. Tenho muito medo da verdade. No acredito que haja nada verdadeiro. Tive um professor de filosofia, o padre Henrique Vaz, para quem eu perguntei o que era a f. Ele

    ondeu que a f a dvida. Tem dias que voc tem muita, tem dias que tem pouca, tem dias que no tem nenhuma. Isso se chama f, porque nos possvel somente a dvida. Hoje, estamos com muita gente encontrando a verdade. Quando uma pessoa

    e, a nica coisa que ela adquire a impossibilidade de escutar o outro. Ela s fala, no escuta mais. Quem encontra a verdade s fala.

    A memria o nosso grande lugar. Na memria tem tanto o que vivi quanto o que . No acredito em memria pura. Toda memria ficcional. um

    pedao da memria com mais um pedao da fantasia. A fantasia o que temos de mais real dentro de ns. A fantasia a minha verdade mais profunda. A fantasia aquilo que

    , s para as pessoas que amo muito. Ela to verdadeira que quando vou contar essa fantasia, fao uma metfora para proteg-la. Pois a fantasia o

    bonita, menos corrupta, mais reflexiva, mais crtica. Pode fazer uma sociedade mais cheia de compaixo, de respeito mtuo. Acho que a literatura tem a funo de tornar a

    aguada. As pessoas mais intuitivas, mais prontas para as mincias, para os retalhos, como diz o Manoel de Barros, para os restos, para as pequenas coisas.

    osto do Brasil em que vivo hoje. Um Brasil que s fala de nmeros. O Brasil vai bem porque a economia vai bem. Mas e ns, o povo? Ns estamos bem? Estamos seguros, respeitados? Estamos dignamente

    rana boa? O Brasil vai bem porque a economia vai bem. Mas e eu no conto? Sou apenas um nmero? Estudei na fsica que o planeta no tem nem luz prpria. Olha que coisa terrvel morar em um planeta que no tem nem luz prpria. Estamos em uma periferia do co. E para ter o dia e a noite voc nem precisa de uma estrela de primeira grandeza. Uma estrela de quinta grandeza, como o Sol, serve. Resolve isso numa boa. E ainda temos alguma verdade para dizer? s a dvida que nos une, que nos aproxima. s disso que precisamos. Precisamos de amparo com a nossa dvida. E a literatura nos ampara. Tenho muito medo da verdade. No acredito que haja nada verdadeiro. Tive um professor de filosofia, o padre Henrique Vaz, para quem eu perguntei o que era a f. Ele

    ondeu que a f a dvida. Tem dias que voc tem muita, tem dias que tem pouca, tem dias que no tem nenhuma. Isso se chama f, porque nos possvel somente a dvida. Hoje, estamos com muita gente encontrando a verdade. Quando uma pessoa

    e, a nica coisa que ela adquire a impossibilidade de escutar o outro.

    A memria o nosso grande lugar. Na memria tem tanto o que vivi quanto o que . No acredito em memria pura. Toda memria ficcional. um

    pedao da memria com mais um pedao da fantasia. A fantasia o que temos de mais real dentro de ns. A fantasia a minha verdade mais profunda. A fantasia aquilo que

    , s para as pessoas que amo muito. Ela to verdadeira que la. Pois a fantasia o

  • que tenho de mais profundo dentro de mim. o meu real mais absoluto. No existe uma memria pura, toda memria ficcional. Precisamos tomar posse da fantasia. Todo real uma fantasia que ganhou corpo. O que pe o novo no mundo a fantasia. Uma escola nova uma escola que cultiva a fantasia. Se ela ficar s na tradio, ela s fica na repetio. Ela no instala o novo. a fantasia que inaugura o novo no mundo. H cem anos, voar era uma fantasia do Santos Dumont. preciso saber se quero uma sociedade nova. Preciso de uma escola fantasiosa e convidar a criana para deixar a fantasia vir tona.

    Escrever para criana

    Quando escrevi O peixe e o pssarosbia. Que a natureza tem o tempo de florir, o tempo de dar o fruto, o tempo da colheita. Tem o tempo das cheias, das vazantes. A natureza tem as quatro estaes, muito sbia. E a natureza to sbia que no sentiu nadultos e outro para crianas. A natureza, com essa sabedoria dela, nunca fez um rio para adulto e outro para criana. E que no era inteligente fazer uma literatura para adulto e outra para criana. Ou literatura Quando escrevo, gosto de me perguntar se o texto escrito fica em p sem nenhuma ilustrao. Se precisar de ilustrao ou uma muleta qualquer, no vale a pena. O texto tem que valer como texto sozinho. Quando se ptem destinatrio, a gratuidade da literatura se perde. A pergunta que coloco : por que a criana pequena gosta tanto de livro, v de frente para trs, de cabea para baixo, inventa histria, folheia aquilo, leva para c

    quando entra para a escola? porque a escola vai cobrar. Muitas vezes, a literatura serve de elo. A criana vira para o adulto e pede para ele contar uma histria. O adulto diz que no sabe e ela pede para ele seguinte, o pedido se repete. Ela no quer saber da histria, ela est pedindo para voc parar e ficar um tiquinho com ela. A

    pai com o filho. Qualquer histrifazer da literatura esse local de encontro. to bonito quando voc diz venha c que vou te contar uma histria. porque voc sabe essa histria de cor. E saber de cor saber de corao. A literaturadeslanchar para outras coisas, para outras confidncias.

    que tenho de mais profundo dentro de mim. o meu real mais absoluto. No existe uma ria ficcional. Precisamos tomar posse da fantasia. Todo real

    uma fantasia que ganhou corpo. O que pe o novo no mundo a fantasia. Uma escola nova uma escola que cultiva a fantasia. Se ela ficar s na tradio, ela s fica na

    tala o novo. a fantasia que inaugura o novo no mundo. H cem anos, voar era uma fantasia do Santos Dumont. preciso saber se quero uma sociedade nova. Preciso de uma escola fantasiosa e convidar a criana para deixar a fantasia vir

    peixe e o pssaro, a Enriqueta Lisboa disse que a natureza muito sbia. Que a natureza tem o tempo de florir, o tempo de dar o fruto, o tempo da colheita. Tem o tempo das cheias, das vazantes. A natureza tem as quatro estaes, muito sbia. E a natureza to sbia que no sentiu nenhuma necessidade de fazer um sol para adultos e outro para crianas. A natureza, com essa sabedoria dela, nunca fez um rio para adulto e outro para criana. E que no era inteligente fazer uma literatura para adulto e outra para criana. Ou literatura ou no literatura. Isso me marcou muito. Quando escrevo, gosto de me perguntar se o texto escrito fica em p sem nenhuma ilustrao. Se precisar de ilustrao ou uma muleta qualquer, no vale a pena. O texto tem que valer como texto sozinho. Quando se pe o carimbo para crianas, quando tem destinatrio, a gratuidade da literatura se perde. A pergunta que coloco : por que a criana pequena gosta tanto de livro, v de frente para trs, de cabea para baixo, inventa histria, folheia aquilo, leva para cama?. E por que passa a no gostar de livro quando entra para a escola? porque a escola vai cobrar. Muitas vezes, a literatura serve de elo. A criana vira para o adulto e pede para ele contar uma histria. O adulto diz que no sabe e ela pede para ele contar a que contou na noite anterior. No dia seguinte, o pedido se repete. Ela no quer saber da histria, ela est pedindo para voc parar e ficar um tiquinho com ela. A literatura se torna um pretexto para o encontro do pai com o filho. Qualquer histria serve. Ela est pedindo a sua presena. preciso fazer da literatura esse local de encontro. to bonito quando voc diz venha c que vou te contar uma histria. porque voc sabe essa histria de cor. E saber de cor saber de corao. A literatura pode ser um espao bonito do reencontro, da conversa, do deslanchar para outras coisas, para outras confidncias.

    que tenho de mais profundo dentro de mim. o meu real mais absoluto. No existe uma ria ficcional. Precisamos tomar posse da fantasia. Todo real

    uma fantasia que ganhou corpo. O que pe o novo no mundo a fantasia. Uma escola nova uma escola que cultiva a fantasia. Se ela ficar s na tradio, ela s fica na

    tala o novo. a fantasia que inaugura o novo no mundo. H cem anos, voar era uma fantasia do Santos Dumont. preciso saber se quero uma sociedade nova. Preciso de uma escola fantasiosa e convidar a criana para deixar a fantasia vir

    Lisboa disse que a natureza muito sbia. Que a natureza tem o tempo de florir, o tempo de dar o fruto, o tempo da colheita. Tem o tempo das cheias, das vazantes. A natureza tem as quatro estaes, muito sbia.

    enhuma necessidade de fazer um sol para adultos e outro para crianas. A natureza, com essa sabedoria dela, nunca fez um rio para adulto e outro para criana. E que no era inteligente fazer uma literatura para

    ou no literatura. Isso me marcou muito.

    Quando escrevo, gosto de me perguntar se o texto escrito fica em p sem nenhuma ilustrao. Se precisar de ilustrao ou uma muleta qualquer, no vale a pena. O texto

    e o carimbo para crianas, quando tem destinatrio, a gratuidade da literatura se perde. A pergunta que coloco : por que a criana pequena gosta tanto de livro, v de frente para trs, de cabea para baixo,

    ama?. E por que passa a no gostar de livro quando entra para a escola? porque a escola vai cobrar. Muitas vezes, a literatura serve de elo. A criana vira para o adulto e pede para ele contar uma histria. O adulto

    contar a que contou na noite anterior. No dia seguinte, o pedido se repete. Ela no quer saber da histria, ela est pedindo para voc

    literatura se torna um pretexto para o encontro do a serve. Ela est pedindo a sua presena. preciso

    fazer da literatura esse local de encontro. to bonito quando voc diz venha c que vou te contar uma histria. porque voc sabe essa histria de cor. E saber de cor

    pode ser um espao bonito do reencontro, da conversa, do

  • Sociedade falante

    Quando uma sociedade e seus valores ficam muito perdidos, elautoajuda. uma sociedade que procura o que fazer, como viver. Precisa muito de receita. O melhor dilogo que travamos na vida com o silncio. Conversar com o silncio fascinante. Vivemos em uma sociedade em que o silncio est interditado. As pessoas falam o tempo inteiro. Voc entra no aeroporto e a tev est ligada o tempo inteiro. No hotel, a tev est ligada o tempo inteiro. Tem uma msica tocando no elevador, tem algum falando no celular. Tem pessoas com trs celulares. um mundo que fala o tempo inteiro. No conversamos com o silncio. E quando escutamos o silncio, temos muitas respostas. Estamos ficando cada dia mais interditados do silncio. Tem um objeto que me preocupa muitocontra. s vezes, tem umas novelasbloco e outro, existe uma coisa chamada comercial, que mostra tudo o que no temos. Voc no tem esse carto de crdito, no tem esse tnis, no fez essa viagem. Voc no tem esse carro, no usa esse pr

    casa, muito bem vestidas, s trs horas da tarde, me pedindo para participar de abaixoassinado que elas iriam mandar para o Roberto Marinho. O abaixoa Globo estava passando programasEu as levei at o escritrio, no tenho tev na sala, e disse para elas: Olha, vou dizer para a senhora que a minha televiso maravilhosa. Ela tem um boto que quando no quero assistir, eu desligo. Temda senhora no tem, mandar instalar. As pessoas esto sem autonomia at para desligar uma televiso. Compram aquilo, ligam de manh e dormem com aquilo ligado a noite inteira. uma coisa que fala

    Livro digital

    Um dia, conversando com a Annecasada com o historiador Roger Chartierlocadora porque no tive tempo de ver o filme. A, levo para casa o filme que quero ver. A, tenho que ter um aparelho para enfiar aquele filme, mas antes tenho que ver se ele

    est bem conectado na televiso. Depois, para poder ligar e assistir ao filme. Quando fao tudo isso e no consigo, preciso

    Quando uma sociedade e seus valores ficam muito perdidos, ela d muita fora para a ajuda. uma sociedade que procura o que fazer, como viver. Precisa muito de

    receita. O melhor dilogo que travamos na vida com o silncio. Conversar com o silncio fascinante. Vivemos em uma sociedade em que o silncio est interditado. As

    am o tempo inteiro. Voc entra no aeroporto e a tev est ligada o tempo inteiro. No hotel, a tev est ligada o tempo inteiro. Tem uma msica tocando no elevador, tem algum falando no celular. Tem pessoas com trs celulares. um mundo

    nteiro. No conversamos com o silncio. E quando escutamos o silncio, temos muitas respostas. Estamos ficando cada dia mais interditados do silncio. Tem um objeto que me preocupa muito, chamado televiso. No tenho nada contra. s vezes, tem umas novelas boas que a gente descansa ao assistir. Masbloco e outro, existe uma coisa chamada comercial, que mostra tudo o que no temos. Voc no tem esse carto de crdito, no tem esse tnis, no fez essa viagem. Voc no tem esse carro, no usa esse produto Certa vez, umas senhoras apareceram na minha casa, muito bem vestidas, s trs horas da tarde, me pedindo para participar de abaixoassinado que elas iriam mandar para o Roberto Marinho. O abaixo-assinado era porque a Globo estava passando programas naquele horrio que no eram bons para os jovens. Eu as levei at o escritrio, no tenho tev na sala, e disse para elas: Olha, vou dizer para a senhora que a minha televiso maravilhosa. Ela tem um boto que quando no quero assistir, eu desligo. Tem que instalar na da senhora. uma coisa fascinante. Se a da senhora no tem, mandar instalar. As pessoas esto sem autonomia at para desligar uma televiso. Compram aquilo, ligam de manh e dormem com aquilo ligado a noite inteira. uma coisa que fala no ouvido da gente o tempo inteiro.

    Um dia, conversando com a Anne-Marie Chartier [pesquisadora francesa em educao, casada com o historiador Roger Chartier], ela falou mais ou menos assim: Vou locadora porque no tive tempo de ver o filme. A, levo para casa o filme que quero ver. A, tenho que ter um aparelho para enfiar aquele filme, mas antes tenho que ver se ele

    est bem conectado na televiso. Depois, preciso ver se o controle remoto tem pilhas para poder ligar e assistir ao filme. Quando fao tudo isso e no consigo, preciso

    a d muita fora para a ajuda. uma sociedade que procura o que fazer, como viver. Precisa muito de

    receita. O melhor dilogo que travamos na vida com o silncio. Conversar com o silncio fascinante. Vivemos em uma sociedade em que o silncio est interditado. As

    am o tempo inteiro. Voc entra no aeroporto e a tev est ligada o tempo inteiro. No hotel, a tev est ligada o tempo inteiro. Tem uma msica tocando no elevador, tem algum falando no celular. Tem pessoas com trs celulares. um mundo

    nteiro. No conversamos com o silncio. E quando escutamos o silncio, temos muitas respostas. Estamos ficando cada dia mais interditados do

    chamado televiso. No tenho nada boas que a gente descansa ao assistir. Mas, entre um

    bloco e outro, existe uma coisa chamada comercial, que mostra tudo o que no temos. Voc no tem esse carto de crdito, no tem esse tnis, no fez essa viagem. Voc no

    oduto Certa vez, umas senhoras apareceram na minha casa, muito bem vestidas, s trs horas da tarde, me pedindo para participar de abaixo-

    assinado era porque naquele horrio que no eram bons para os jovens.

    Eu as levei at o escritrio, no tenho tev na sala, e disse para elas: Olha, vou dizer para a senhora que a minha televiso maravilhosa. Ela tem um boto que quando no

    que instalar na da senhora. uma coisa fascinante. Se a da senhora no tem, mandar instalar. As pessoas esto sem autonomia at para desligar uma televiso. Compram aquilo, ligam de manh e dormem com aquilo ligado a noite

    pesquisadora francesa em educao, ela falou mais ou menos assim: Vou

    locadora porque no tive tempo de ver o filme. A, levo para casa o filme que quero ver. A, tenho que ter um aparelho para enfiar aquele filme, mas antes tenho que ver se ele

    preciso ver se o controle remoto tem pilhas

    para poder ligar e assistir ao filme. Quando fao tudo isso e no consigo, preciso

  • telefonar para o tcnico que me diz que daqui a trs dias vem para ver qual o problema. E acho que estou maravilhosamente bem sestou. O livro uma coisa to fascinante. No tem pilha, no tem fio, no tem tcnico,

    no tem nada. Ela falou comigo, o livro ainda ser inventado de to maravilhoso que ele . Ainda ser inventado porque a coisa mais prttoda precisa de pilha de eletricidade. O livro no tem nada disso, pe debaixo do brao e leva para onde quiser. No tem que anotar em que parte parou, basta dobrar o cantinho e j sabe. bonito no livro quando voc risca o que li e vejo onde risquei e penso j no sei mais por que marquei isso. Que coisa boa! Naquele dia, aquilo teve uma funo. Hoje, j no sei mais qual . Ento, respondo com a fala da Anne-Marie Chartier: O livro ainda vai chegar o tempo dele.

    i Srie de acordos produzidos, nos anos 1960, entre o Ministrio da Educao brasileiro (MEC) e a United SAgency for International Development (Usaid). Visavam estabelecer convnios de assistncia tcnica e cooperao financeira educao brasileira. Inseriamcomo pressuposto do desenvolvimento econmico.

    telefonar para o tcnico que me diz que daqui a trs dias vem para ver qual o problema. E acho que estou maravilhosamente bem servida com a tecnologia. No estou. O livro uma coisa to fascinante. No tem pilha, no tem fio, no tem tcnico,

    no tem nada. Ela falou comigo, o livro ainda ser inventado de to maravilhoso que ele . Ainda ser inventado porque a coisa mais prtica que tenho. Essa tecnologia toda precisa de pilha de eletricidade. O livro no tem nada disso, pe debaixo do brao e leva para onde quiser. No tem que anotar em que parte parou, basta dobrar o cantinho e j sabe. bonito no livro quando voc risca o que l. Acho bonito quando pego livros que li e vejo onde risquei e penso j no sei mais por que marquei isso. Que coisa boa! Naquele dia, aquilo teve uma funo. Hoje, j no sei mais qual . Ento, respondo

    Marie Chartier: O livro ainda vai ser inventado. ainda vai chegar o tempo dele.

    Srie de acordos produzidos, nos anos 1960, entre o Ministrio da Educao brasileiro (MEC) e a United SAgency for International Development (Usaid). Visavam estabelecer convnios de assistncia tcnica e cooperao financeira educao brasileira. Inseriam-se num contexto histrico fortemente marcado pela concepo de educao

    envolvimento econmico.

    telefonar para o tcnico que me diz que daqui a trs dias vem para ver qual o ervida com a tecnologia. No

    estou. O livro uma coisa to fascinante. No tem pilha, no tem fio, no tem tcnico,

    no tem nada. Ela falou comigo, o livro ainda ser inventado de to maravilhoso que ica que tenho. Essa tecnologia

    toda precisa de pilha de eletricidade. O livro no tem nada disso, pe debaixo do brao e leva para onde quiser. No tem que anotar em que parte parou, basta dobrar o cantinho e

    que l. Acho bonito quando pego livros que li e vejo onde risquei e penso j no sei mais por que marquei isso. Que coisa boa! Naquele dia, aquilo teve uma funo. Hoje, j no sei mais qual . Ento, respondo

    ainda vai ser inventado. to bom que

    Srie de acordos produzidos, nos anos 1960, entre o Ministrio da Educao brasileiro (MEC) e a United States Agency for International Development (Usaid). Visavam estabelecer convnios de assistncia tcnica e cooperao

    se num contexto histrico fortemente marcado pela concepo de educao