caio mário teoria geral das obrigações

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CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA Professor Emérito na Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Universidade Federal de Minas Gerais INSTITUIÇÕES DE DIREITO CIVIL Volume II TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES 1ª edição eletrônica De acordo com o Código Civil de 2002 Revista e atualizada por Luiz Roldão de Freitas Gomes Colaboradores: Júlia Sá Carvalho da Silva e José Luiz Nogueira Rio de Janeiro 2003

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CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRAProfessor Emérito na Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Universidade Federal

de Minas Gerais

INSTITUIÇÕES DE DIREITO CIVIL

Volume II

TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES

1ª edição eletrônicaDe acordo com o Código Civil de 2002

Revista e atualizada por Luiz Roldão de Freitas Gomes

Colaboradores: Júlia Sá Carvalho da Silva e José Luiz Nogueira

Rio de Janeiro2003

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PREFÁCIO

Às vésperas de completar 90 anos, tenho a alegria de entregar a uma equipe dedestacados juristas os "manuscritos" que desenvolvi desde a versão original do Projetodo Código Civil de 1975, aprovado pela Câmara dos Deputados em 1984 e pelo SenadoFederal em 1998.

A exemplo dos mais modernos compêndios de direito, com o apoio daqueles queescolhi pela competência e dedicação ao Direito Civil, sinto-me realizado ao verprosseguir no tempo as minhas idéias, mantidas as diretrizes que impus às Instituições.

Retomo, nesse momento, algumas reflexões, pretendendo que as mesmas sejamincorporadas à obra, como testemunho de uma concepção abrangente e consciente dasmudanças irreversíveis: a História, também no campo do Direito, jamais se repete.

Considerando que inexiste atividade que não seja "juridicamente qualificada", perpetua-se a palavra de DEL VECCHIO, grande jusfilósofo por mim tantas vezes invocado, aoassinalar que "todo Direito é, em verdade, um complexo sistema de valores" e, maisespecificamente, ao assegurar que o sistema jurídico vigente representa uma conciliaçãoentre "os valores da ordem e os valores da liberdade".1

Em meus recentes estudos sobre "alguns aspectos da evolução do Direito Civil"2 alerteios estudiosos do perigo em se desprezar os motivos de ordem global que legitimam odireito positivo, e da importância de se ter atenção às "necessidades sociais" a que, já hámuito, fez referência Jean DABIN.3

Eu fugiria da realidade social se permanecesse no plano puramente ideal dos conceitosabstratos, ou se abandonasse o solo concreto "do que é", e volteasse pelas áreasexclusivas do "dever ser". Labutando nesta área por mais de sessenta anos, lutando nodia-a-dia das competições e dos conflitos humanos, reafirmo minhas convicções nosentido de que o Direito deve ser encarado no concretismo instrumental que realiza, outenta realizar, o objetivo contido na expressão multimilenar de Ulpiano, isto é, como oveículo apto a permitir que se dê a cada um aquilo que lhe deve caber - suum cuiquetribuere. E se é verdade que viceja na sociedade a tal ponto que ubi societas ibi ius,também é certo que não se pode abstraí-lo da sociedade onde floresce: ubi ius, ibisocietas.

Visualizando o Direito como norma de conduta, como regra de comportamento, eesquivando-me dos excessos do positivismo jurídico, sempre conclamei o estudioso abuscar conciliá-lo com as exigências da realidade, equilibrando-a com o necessário graude moralidade e animando-a com o anseio natural de justiça - este dom inato ao serhumano.

Não se pode, em verdade, ignorar o direito positivo, o direito legislado, a norma dotadade poder cogente. Ele é necessário. Reprime os abusos, corrige as falhas, pune astransgressões, traça os limites à liberdade de cada um, impedindo a penetração indevidana órbita das liberdades alheias. Não é aceitável, porém, que o Direito se esgote namanifestação do poder estatal. Para desempenhar a sua função básica de "adequar ohomem à vida social", como eu o defini,4 há de ser permanentemente revitalizado por

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um mínimo de idealismo, contribuindo para o equilíbrio de forças e a harmonia dascompetições.

Assiste-se, por outro lado, à evolução do direito legislado, na expressão morfológica desua elaboração, como tendente a perder cada vez mais o exagerado tecnicismo de umalinguagem esotérica, posta exclusivamente ao alcance dos iniciados. Sem se desvestir deuma linguagem vernácula, há de expressar-se de tal modo que seja compreendido sem oauxílio do misticismo hermenêutico dos especialistas.

Tomado como ponto de partida o Código Civil de 1916, sua preceituação e a suafilosofia, percebe-se que o Direito Civil seguiu por décadas rumo bem definido.Acompanhando o desenvolvimento de cada instituto, vê-se que, embora estanques, ossegmentos constituíram uma unidade orgânica, obediente no seu conjunto a umaseqüência evolutiva uniforme.

No entanto, as últimas décadas, marcadas pela redemocratização do País e pela entradaem vigor da nova Constituição, deflagraram mudanças profundas em nosso sistemajurídico, atingindo especialmente o Direito Privado.

Diante de tantas transformações, passei a rever a efetiva função dos Códigos, não maislhes reconhecendo a missão tradicional de assegurar a manutenção dos poderesadquiridos, nem tampouco seu valor histórico de "Direito Comum". Se eles uma vezrepresentaram a "consagração da previsibilidade",5 hoje exercem, diante da novarealidade legislativa, um papel residual.

Como ressalvei no primeiro volume de minhas Instituições, buscando subsídios emLúcio BITTENCOURT,6 "a lei contém na verdade o que o intérprete nela enxerga, oudela extrai, afina em essência com o conceito valorativo da disposição e conduz odireito no rumo evolutivo que permite conservar, vivificar e atualizar preceitos ditadoshá anos, há décadas, há séculos, e que hoje subsistem somente em função doentendimento moderno dos seus termos".

O legislador exprime-se por palavras e é no sentido real destas que o intérprete investigaa verdade e busca o sentido vivo do preceito. Cabe a ele preencher lacunas e omissões econstruir permanentemente o Direito, não deixando que as leis envelheçam, apesar dotempo decorrido.

Fiel a estas premissas hermenêuticas, sempre considerei a atuação de duas forças numareforma do Código Civil: a imposição das novas contribuições trazidas pelo progressoincessante das idéias e o respeito às tradições do passado jurídico. Reformar o Direitonão significa amontoar todo um conjunto normativo como criação de preceitos aptos areformular a ordem jurídica constituída.

Em meus ensinamentos sobre a "interpretação sistemática", conclamei o investigador aextrair de um complexo legislativo as idéias gerais inspiradoras da legislação emconjunto, ou de uma província jurídica inteira, e à sua luz pesquisar o conteúdo daqueladisposição. "Deve o intérprete investigar qual a tendência dominante nas várias leisexistentes sobre matérias correlatas e adotá-la como premissa implícita daquela que é oobjeto das perquirições".7

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Estou convencido de que, no atual sistema jurídico, existe espaço significativo para umainterpretação teleológica, que encontra na Lei de Introdução ao Código Civil sua regrabásica, prevista no art. 5º: "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a queela se dirige e às exigências do bem comum".

Na hermenêutica do novo Código Civil destacam-se hoje os princípios constitucionais eos direitos fundamentais, os quais se impõem às relações interprivadas, aos interessesparticulares, de modo a fazer prevalecer uma verdadeira "constitucionalização" doDireito Privado.

Com a entrada em vigor da Carta Magna de 1988, conclamei o intérprete a um trabalhode hermenêutica "informado por uma visão diferente da que preside a interpretação dasleis ordinárias".8

Ao mesmo tempo, alertei-o acerca do que exprimi como o "princípio da continuidade daordem jurídica", mantendo a supremacia da Constituição sobre a legislatura: "Aplica-seincontinenti, porém voltada para o futuro. Disciplina toda a vida institucional ex nunc, apartir de ‘agora’, de quando começou a vigorar".9 Não obstante o seu caráter imperativoe a instantaneidade de sua vigência, "não poderia ela destruir toda a sistemáticalegislativa do passado".10

Diante do "princípio da hierarquia das leis" não se dirá que a Constituição "revoga" asleis vigentes uma vez que, na conformidade do princípio da continuidade da ordemjurídica, a norma de direito objetivo perde a eficácia em razão de uma força contrária àsua vigência. "As leis anteriores apenas deixaram de existir no plano do ordenamentojurídico estatal por haverem perdido seu fundamento de validade".11 Diante de umanova ordem constitucional, a "ratio" que sustentava as leis vigentes cessa. Cessando arazão constitucional da lei em vigor, perde eficácia a própria lei.

Naquela mesma oportunidade, adverti no sentido de que a nova Constituição não tem oefeito de substituir, com um só gesto, toda a ordem jurídica existente. "O passado viveno presente e no futuro, seja no efeito das situações jurídicas já consolidadas, seja emrazão de se elaborar preceituação nova que, pela sua natureza ou pela necessidade decomplementação, reclama instrumentalização legislativa".12

Cabe, portanto, ao intérprete evidenciar a subordinação da norma de direito positivo aum conjunto de disposições com maior grau de generalização, isto é, a princípios evalores dos quais não pode ou não deve mais ser dissociada.

Destaco, a este propósito, o trabalho de Maria Celina BODIN DE MORAES queassume uma concepção moderna do Direito Civil.13 Analisando a evolução do DireitoCivil após a Carta Magna de 1988 a autora afirma: "Afastou-se do campo do DireitoCivil a defesa da posição do indivíduo frente ao Estado, hoje matéria constitucional".

Ao traçar o novo perfil do Direito Privado e a tendência voltada à "publicização" - aconviver, simultaneamente, com uma certa "privatização do Direito Público" - a ilustrecivilista defende a superação da clássica dicotomia "Direito Público-Direito Privado" econclama a que se construa uma "unidade hierarquicamente sistematizada doordenamento jurídico". Esta unidade parte do pressuposto de que "os valores

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propugnados pela Constituição estão presentes em todos os recantos do tecidonormativo, resultando, em conseqüência, inaceitável a rígida contraposição".14

A autora ressalta a supremacia axiológica da Constituição "que passou a se constituircomo centro de integração do sistema jurídico de direito privado",15 abrindo-se então ocaminho para a formulação de um "Direito Civil Constitucional", hoje definitivamentereconhecido, na Doutrina e nos Tribunais.

Reporto-me, especialmente, aos estudos de Pietro PERLINGIERI, ao afirmar que oCódigo Civil perdeu a centralidade de outrora e que "o papel unificador do sistema,tanto em seus aspectos mais tradicionalmente civilísticos quanto naqueles de relevânciapublicista é desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo TextoConstitucional".16

Diante da primazia da Constituição Federal, os "direitos fundamentais" passaram a serdotados da mesma força cogente nas relações públicas e nas relações privadas e não seconfundem com outros direitos assegurados ou protegidos.

Em minha obra sempre salientei o papel exercido pelos "princípios gerais de direito", aque se refere expressamente o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil como fontesubsidiária de direito. Embora de difícil utilização, os princípios impõem aos intérpreteso manuseio de instrumentos mais abstratos e complexos e requerem um trato com idéiasde maior teor cultural do que os preceitos singelos de aplicação quotidiana.17

Devo reconhecer que, na atualidade, os princípios constitucionais se sobrepõem àposição anteriormente ocupada pelos princípios gerais de direito. Na Doutrina brasileira,cabe destacar, acerca dessa evolução, os estudos de Paulo BONAVIDES sobre os"princípios gerais de direito" e os "princípios constitucionais".18

Depois de longa análise doutrinária e evolutiva, o ilustre constitucionalista reafirma anormatividade dos princípios.19 Reporta-se a Vezio CRISAFULLI20 ao asseverar que"um princípio, seja ele expresso numa formulação legislativa ou, ao contrário, implícitoou latente num ordenamento, constitui norma, aplicável como regra de determinadoscomportamentos públicos ou privados".

BONAVIDES identifica duas fases na constitucionalização dos princípios: a faseprogramática e a fase não programática, de concepção objetiva.21 "Nesta última, anormatividade constitucional dos princípios ocupa um espaço onde releva de imediato asua dimensão objetiva e concretizadora, a positividade de sua aplicação direta eimediata".

Conclui o conceituado autor que "desde a constitucionalização dos princípios,fundamento de toda a revolução ‘principial’, os princípios constitucionais outra coisanão representam senão os princípios gerais de direito, ao darem estes o passo decisivode sua peregrinação normativa, que, inaugurada nos Códigos, acaba nasConstituições".22

No âmbito do debate que envolve a constitucionalização do Direito Civil, mencione-seainda o § 1º do art. 5º do Texto Constitucional, que declara que as normas definidorasdos direitos e das garantias fundamentais têm aplicação imediata. Considero, no

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entanto, que não obstante preceito tão enfaticamente estabelecido, ainda assim, algumasdaquelas normas exigem a elaboração de instrumentos adequados à sua fielefetivação.23

Rememorando meus ensinamentos sobre "direito subjetivo" e a centralidade da"facultas agendi" ressalvadas, é claro, as tantas controvérsias e divergências queenvolvem o tema, destaco na conceituação do instituto o poder de ação, posto àdisposição de seu titular e que não dependerá do exercício por parte deste último. Poressa razão, o indivíduo capaz e conhecedor do seu direito poderá conservar-se inerte,sem realizar o poder da vontade e, ainda assim, ser portador de tal poder.

Ainda a respeito do direito subjetivo, sempre ressaltei a presença do fator teleológico,ou seja, "o direito subjetivo como faculdade de querer, porém dirigida a determinadofim. O poder de ação abstrato é incompleto, desfigurado. Corporifica-se no instante emque o elemento volitivo encontra uma finalidade prática de atuação. Esta finalidade é ointeresse de agir".24

Mais uma vez refiro-me aos estudos de Maria Celina BODIN DE MORAES, que,apoiando-se em Michele GIORGIANNI, esclarece: a força do direito subjetivo não é ado titular do direito e sim "a força do ordenamento jurídico que o sujeito pode usar emdefesa de seus interesses", concluindo que "esta força existe somente quando o interesseé juridicamente reconhecido e protegido"(...)

No âmbito dos direitos subjetivos, destaca-se o princípio constitucional da tutela dadignidade humana, como princípio ético-jurídico capaz de atribuir unidade valorativa esistemática ao Direito Civil, ao contemplar espaços de liberdade no respeito àsolidariedade social. É neste contexto que Maria Celina BODIN DE MORAES insere atarefa do intérprete, chamado a proceder à ponderação, em cada caso, entre liberdade esolidariedade. Esta ponderação é essencial, já que, do contrário, os valores da liberdadee da solidariedade se excluiriam reciprocamente, "todavia, quando ponderados, seusconteúdos se tornam complementares: regulamenta-se a liberdade em prol dasolidariedade social, isto é, da relação de cada um, com o interesse geral, o que,reduzindo a desigualdade, possibilita o livre desenvolvimento da personalidade de cadaum dos membros da comunidade".25

Nessas minhas reflexões não poderia me omitir quanto às propostas de João de MatosANTUNES VARELA, as quais ajudaram a consolidar minhas convicções, jáamplamente conhecidas, no sentido da descodificação do Direito.

Numa análise histórica, o insigne civilista português demonstra que o Código Civil semanteve na condição de "diploma básico de toda a ordem jurídica", atribuindo aoDireito Civil a definição dos direitos fundamentais do indivíduo. Desde os primórdiosdas codificações nunca se conseguiu, no entanto, estancar a atividade das assembléiaslegislativas no que concerne à "legislação especial", a qual se formava por preceitos que"constituíam meros corolários da disciplina básica dos atos jurídicos e procuravam,deliberadamente, respeitar os princípios fundamentais definidos no Código Civil".

O mencionado autor apresenta efetivos indicadores para o movimento dedescodificação: o Código Civil deixou de constituir-se o centro geométrico da ordemjurídica, já que tal papel foi transferido para a Constituição; o aumento em quantidade e

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qualidade da legislação especial; a nova legislação especial passou a caracterizar-se poruma significativa alteração no quadro dos seus destinatários: "As leis deixaram emgrande parte de constituir verdadeiras normas gerais para constituírem ‘estatutosprivilegiados’ de certas classes profissionais ou de determinados grupos políticos".26

Refere-se, ainda, aos "microssistemas" como "satélites autônomos que procuram regiõespróprias na órbita incontrolada da ordem jurídica (...)" e "reivindicam áreas privativas eexclusivas de jurisdição e que tendem a reger-se por princípios diferentes dos queinspiram a restante legislação".27

Conclui VARELA que a Constituição não pode hoje limitar-se a definir os direitospolíticos e as liberdades fundamentais do cidadão e a traçar a organização do Estadocapaz de garantir a livre iniciativa dos indivíduos. "Acima da função de árbitro nosconflitos de interesses individuais ou de acidental interventor supletivo nodesenvolvimento econômico do país, o Estado social moderno chamou,justificadamente, a si duas funções primordiais: a de promotor ativo do bem comum e degarante da justiça social".28

Como ANTUNES VARELA, considero a necessidade de serem preservadas as leisespeciais vigentes, salvo a total incompatibilidade com normas expressas do novoCódigo Civil, quando estaremos enfrentando a sua revogação ou ab-rogação. Alerte-se,no entanto, para a cessação da vigência da lei por força do desaparecimento dascircunstâncias que ditaram a sua elaboração. Invoca-se, a propósito, a parêmia cessanteratione legis, cessat et ipsa lex.

Entre as causas especiais de cessação da eficácia das leis, não se pode deslembrar aresultante da declaração judicial de sua inconstitucionalidade. Por decisão definitiva doSupremo Tribunal Federal cabe ao Senado Federal suspender a sua execução, no todoou em parte (CF, art. 52, X). Portanto, não compete ao Poder Judiciário revogar a lei,mas recusar a sua aplicação quando apura a afronta a princípios fixados no Texto Maior.

Destaque-se, ainda, a Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, que dispõesobre a "elaboração, a redação, alteração e a consolidação das leis", declarando no art.9º que "a cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis oudisposições legais revogadas".

Outrossim, devemos ser cautelosos ao interpretar o art. art. 2º, § 2º, da Lei deIntrodução ao Código Civil, segundo o qual "a lei nova, que estabeleça disposiçõesgerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior". Damesma forma advertiu Marco Aurélio S. VIANNA ao considerar que "a generalidade deprincípios numa lei geral não cria incompatibilidade com regra de caráter especial. Adisposição especial disciplina o caso especial, sem afrontar a norma genérica da lei geralque, em harmonia, vigorarão simultaneamente".29

A adequação do Código Civil ao nosso "status" de desenvolvimento representa umefetivo desafio aos juristas neste renovado contexto legislativo. A minha geração foisacrificada no altar estadonovista. Quando atingiu a idade adulta e chegou o momentode aparelhar-se para competir nos prélios políticos, as liberdades públicas foramsuprimidas e o restabelecimento custou inevitável garroteamento entre os antigos queforcejavam por ficar e os mais novos que chegaram depois e ambicionavam vencer. A

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geração atual, que conviveu com as diversas versões do novo Código, busca assimilar aslições realistas do mundo contemporâneo.

Nova diretriz deverá ser considerada para o jurista deste milênio que se inicia. SANTIAGO DANTAS pregava, de forma visionária, a universalidade do comando jurídico,conduzindo à interdisciplinaridade entre os vários ramos jurídicos. Considero, noentanto, que o Direito deve buscar também nas outras ciências, sobretudo naquelassociais e humanas, o apoio e a parceria para afirmar seus princípios, reorganizandometodologicamente seus estudos e pesquisas. As relações humanas não podem sertratadas pelo sistema jurídico como se fossem apenas determinadas pelo mundo dosfatos e da objetividade. A filosofia, a psicologia, a sociologia, a medicina e outrasciências indicam novos rumos ao Direito.

Convivendo com um sistema normativo que sempre se contentou com a pacificação dosconflitos, cabe aos juristas, intérpretes e operadores do Direito, assumi-lo com a "funçãopromocional" apregoada por Norberto BOBBIO desde a década de setenta. O Código deDefesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de Diretrizes eBases da Educação representam estrutura legislativa que se projetará como modelo dosdiplomas legislativos, nos quais há de prevalecer, acima de tudo, o respeito aos direitosfundamentais.

Devemos, portanto, assumir a realidade contemporânea: os Códigos exercem hoje umpapel menor, residual, no mundo jurídico e no contexto sócio-político. Os"microssistemas", que decorrem das leis especiais, constituem pólos autônomos,dotados de princípios próprios, unificados somente pelos valores e princípiosconstitucionais, impondo-se assim o reconhecimento da inovadora técnicainterpretativa.

No que tange ao 2º volume das Instituições contei com o apoio do jurista Luiz Roldãode Freitas Gomes, magistrado, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Riode Janeiro e Presidente da 7ª Câmara Cível. O atualizador também é professor titular deDireito Civil na Universidade Federal Fluminense, coordenador do Curso deEspecialização em Direito Privado (pós-graduação lato sensu) e Doutor em DireitoPrivado pela UFRJ.

Agradeço o empenho e o desvelo, que tanto engrandeceram a obra. Graças ao seutrabalho, este volume foi acrescido não apenas de meus próprios comentários, comotambém de referências a outras teses doutrinárias, nacionais e estrangeiras, cuja seleçãorevela a pesquisa realizada em prol da cuidadosa atualização.

Diante do Código Civil de 2002, espero que minha obra, já agora atualizada, possaprosseguir no tempo orientando os operadores do Direito, os juristas e os acadêmicos donovo milênio, cabendo-lhes, sob a perspectiva da globalização das instituições, odesafio de conciliar critérios de interpretação que resultem na prevalência do bomsenso, da criatividade e, por vezes, de muita imaginação.

Caio Mário da Silva Pereira

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Capítulo XXV - Noção Geral de Obrigação

Sumário: 126. Conceito de obrigação. 127. Evolução histórica daobrigação. 128. Elementos essenciais da obrigação. 129. Obrigação civile obrigação natural. 130. Fontes da obrigação. 131. Obrigaçãopropriamente dita. Obrigação real. Obrigação propter rem.

Bibliografia: Clóvis Beviláqua, Direito das Obrigações, §§ 1º e segs.;Ludovico Barassi, La Teoria Generale delle Obbligazioni; cap. I;Ruggiero e Maroi, Istituzioni di Diritto Privato, II, §§ 125 e segs.; M. I.Carvalho de Mendonça, Doutrina e Prática das Obrigações, aumentada eatualizada por José de Aguiar Dias, nos 1 a 44; Orosimbo Nonato, Cursode Obrigações, I, págs. 53 e segs.; Emilio Betti, Teoria Generale delleObbligazioni, vol. II; Silvio Perozzi, "La Distinzione fra Debito edObbligazione", in Scritti Giuridici, pág. 555; Giovanni Pacchioni,Obbligazioni e Contratti; Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, II, cap. I;Ludovico Barassi, Istituzioni di Diritto Civile, ed. 1948, págs. 379 esegs.; Mazeaud e Mazeaud, Leçons de Droit Civil, II, nos 2 e segs.;Enneccerus, Kipp e Wolff, Tratado de Derecho Civil, tomo II, vol. I; DePage, Traité Élémentaire de Droit Civil, II, nos 437 e segs.; Saleilles,Étude sur la Théorie Générale de l’Obligation, 1 e segs.; Planiol, Riperte Boulanger, Traité Élémentaire de Droit Civil, II; Andreas von Tuhr,Tratado de las Obligaciones, I, cap. I; Karl Larenz, Derecho deObligaciones, I, págs. 13 a 65; Hedemann, Tratado de Derecho Civil,Derecho de Obligaciones, vol. III, págs. 9 e segs.; Gianturco, Teoriadelle Obbligazioni; J. Pellet, Théorie Dualiste de l’Obligation;Larombière, Théorie des Obligations; Hector Lafaille, Obligaciones;Scuto, Teoria delle Obbligazioni; Lomonaco, Delle Obbligazioni e deiContratti en Genere; Savigny, Obbligazioni; Perez Vives, TeoríaGeneral de las Obligaciones.

126. Conceito de obrigação

Se bem que numerosíssimas as definições de obrigação, a bem dizer cada escritorapresentando a sua, não é difícil formular-lhe o conceito.

O ordenamento social é referto de deveres: do cidadão para com a sua Pátria, na órbitapolítica; do indivíduo para com o grupo, na ordem social; de um para com os outros,dentro do organismo familiar; de uma pessoa para com outra pessoa, na vida civil. Nãoimporta onde esteja, o homem acha-se rodeado de experiências, das quais lhe resultamsituações que traduzem imposições, deveres ou obrigações. Algumas não chegammesmo a penetrar os limites do jurídico, permanecendo, como deveres morais,espirituais ou de cortesia; outras adentram na órbita do direito e assumem ora o sentidopositivo de compromisso de natureza patrimonial, ora negativa de respeito aos bensjurídicos alheios, atinentes a sua integridade física, moral ou econômica. Falando de taisdeveres, não destoaríamos da boa linguagem por apelidá-los de obrigações.1 Mas não énesta acepção que aqui pretendemos fixar um conceito. A palavra obrigação tem paranós, agora, um sentido técnico e restrito, que se cultiva desde as origens daespecialização jurídica, guardado nos tratados e conservado nas legislações. Não alude oCódigo a deveres outros, ainda que juridicamente exigíveis. Tem em vista uma

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ocupação própria e específica, devendo o hermeneuta reportar-se, mais do que emoutros setores, ao Direito Romano. Quando, pois, cogitamos de definir aqui obrigação, éeste o propósito que nos anima. E ao desenvolvermos a sua dogmática não nos podemosesquecer daquela observação de Saleilles, a propósito desta parte do projeto de CódigoCivil alemão, e que sempre calha bem em qualquer obra sobre o assunto: de todo oDireito Civil são as obrigações que maior cunho guardam de elaboração científica, emaior expressão ideal da lógica jurídica apresentam no direito moderno, prestandomaior fidelidade ao Direito romano, pois foi o direito obrigacional, em decorrência deseu caráter especulativo, a obra-prima da legislação romana.2

O recurso à etimologia é bom subsídio: obrigação, do latim ob + ligatio, contém umaidéia de vinculação, de liame3 de cerceamento da liberdade de ação, em benefício depessoa determinada ou determinável. Sem cogitar, por enquanto, de sua fonte ou de suacausa genitrix, vislumbramos na obrigação uma norma de submissão, que tanto podeser autodeterminada, quando é o próprio agente que escolhe dada conduta, como podeprovir de uma heterodeterminação, quando o agente a sofre em conseqüência ou comoefeito de uma norma que a dita. Num ou noutro caso, uma pessoa denominada sujeitopassivo ou devedor está adstrita a uma prestação positiva ou negativa em favor de outrapessoa que se diz sujeito ativo ou credor, a qual adquire a faculdade de exigir o seucumprimento.

A noção fundamental de obrigação aí reside, mais ou menos a mesma nos diversossistemas jurídicos, e em variadas épocas. É certo que fatores diferentes têm atuado nasua etiologia, sem contudo alterar-lhe a essência. Se focalizarmos o excessivo rigorindividualista do Direito romano, o notório pendor espiritualista medieval, ou ainfluência socialista marcante do direito moderno, e analisarmos, às respectivas luzes, aestruturação dogmática da obrigação, não encontramos diversidade essencial. Podemvariar os efeitos ou a intensidade do vínculo, a sua pessoalidade ou a sua projeçãoeconômica. Mas as características fundamentais não passaram por metamorfose radical.É por isso que Carvalho de Mendonça, civilista, prelecionou que a definição romana,suficientemente modificada, contém o conceito moderno do instituto,4 e aqui e alhuresos especialistas sempre assinalam na sua conceituação hodierna a predominância danoção dada pelo codificador do século VI, que sua na verdade não era, porém, resultadode compilação fragmentária.5

É certo que alguns se insurgem contra o laço ou o vínculo, ali referido, preferindosubstituir-lhe "relação ou situação jurídica".6 Inevitável retorno faz, entretanto, sentir naobrigação a idéia de vinculação, acentuada nas Institutas: "Obligatio est iuris vinculumquo necessitate adstringimur, alicuius solvendae rei, secundum nostrae civitalis iura",7que seria na nossa língua: obrigação é o vínculo jurídico ao qual nos submetemoscoercitivamente, sujeitando-nos a uma prestação, segundo o direito de nossa cidade.Ponha-se de lado a última cláusula (secundum nostrae civitatis iura), que guarda umtotal ressaibo quiritário, e a redação justinianéia revive na atualidade. Perfeita naverdade não é, como se tem acentuado, pois que nela predomina o lado passivo, além denão oferecer uma diferença nítida da obrigação em sentido técnico de qualquer outrodever juridicamente exigível.8 Podada, porém, a definição das demasias peculiaresàquele sistema,9 a idéia contida na definição justinianéia não pode receber a repulsa dojurista de hoje. A predominância do vinculum juris é inevitável. Cremos mesmo que astentativas de substituí-lo pela idéia de relação não passam de anfibologia, já que naprópria relação obrigacional ele revive. Por mais que o civilista pretenda evitá-lo,

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jamais logrará afastar a insinuação de que em toda obrigação há um liame, um laçoentre os sujeitos,10 vínculo que o Prof. Serpa Lopes assinala não ser de subordinação,porém de coordenação, porque respeita a essência da liberdade humana,11 e que noentanto sempre encadeia as partes em função do solutio que se espera. Despreocupadode dar uma definição, o jurisconsulto Paulo cuidou antes de salientar a sua ausência eassim se exprimiu: "Obligationum substantia non neo consistit, ut aliquod corpusnostrum, aut servitutem nostram faciat; sed ut alium nobis obstringat ad dandumaliquid, vel faciendum vel praestandum":12 consiste a substância da obrigação não emsujeitar a própria pessoa do devedor ou fazê-lo servo do credor; mas em constrangê-lo auma prestação abrangente de um dar ou de um fazer.

Regressando ao direito de nosso tempo, e examinando as definições que fizeramcarreira, nelas vemos com efeito vibrar a constância de certas tônicas, aliás nãodissonantes dos conceitos clássicos.

Savigny, por exemplo, minucioso e frio, ensina: "A obrigação consiste na dominaçãosobre uma pessoa estranha, não sobre toda a pessoa (pois que isto importaria emabsorção da personalidade), mas sobre atos isolados, que seriam considerados comorestrição à sua personalidade, ou sujeição à nossa vontade."13

Mais sucinto é Vittorio Polacco, quando diz da obrigação: "Relação jurídica patrimonialem virtude da qual o devedor é vinculado a uma prestação de índole positiva ounegativa para como credor."14

Mais analítico é Giorgi: "Um vínculo jurídico entre duas ou mais pessoas determinadas,em virtude do qual uma ou mais delas (devedor ou devedores) são sujeitas à outra ou àsoutras (credor ou credores) a fazer ou não fazer qualquer coisa."15

Muito extenso, Clóvis Beviláqua define: "Relação transitória de direito, que nosconstrange a dar, fazer ou não fazer alguma coisa, em regra economicamente apreciável,em proveito de alguém que, por ato nosso ou de alguém conosco juridicamenterelacionado, ou em virtude da lei, adquiriu o direito de exigir de nós esta ação ouomissão."16

Deste, aproximado é o Prof. Washington de Barros Monteiro: "Obrigação é a relaçãojurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor, e cujo objetoconsiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiroao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através de seu patrimônio.17

Já o nosso Coelho da Rocha definia-a como "o vínculo jurídico pelo qual alguém estáadstrito a dar, fazer ou não fazer alguma coisa",18 que Lacerda de Almeida observa serquase ipsis litteris a definição das Institutas.19

Mais longe leváramos a pesquisa, e sempre, em termos analíticos ou sintéticos, aobligationum substantia de Paulo estará presente no conceito de hoje; a definiçãojustinianéia revive na palavra do jurista do século XX, ainda quando se afasta dafórmula ou da linguagem do codificador do século VI.

Também nós, procurando um meio sucinto, definimo-la, sem pretensão deoriginalidade, sem talvez elegância do estilo e sem ficarmos a cavaleiro das críticas:

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obrigação é o vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa pode exigir de outraprestação economicamente apreciável.

A nossa definição não repete, é óbvio, a noção justinianéia, nem podia fazê-lo, pois queatende às emendas sugeridas pelos doutos. Nela, contudo, salienta-se o clássico iurisvinculum, de que não pode fugir nenhum escritor que disserta das obrigações, aindaquando se encaminha para a relação de direito. Nela estão os seus elementos subjetivos,o credor e o devedor, o sujeito ativo e o sujeito passivo, a pessoa que pode exigir e a quedeve cumprir a prestação. Nela está caracterizado o requisito objetivo, a prestação, que anosso ver há de ser dotada de patrimonialidade. E nela ainda é de vislumbrar-se adualidade de aspectos, o débito e a responsabilidade, que na concepção moderna lhe sãopeculiares. Todos estes requisitos, que lhe são elementares, hão de receber o devidoexame no nº 128, infra.

127. Evolução histórica da obrigação

No curso de sua evolução, a obrigação tem percorrido toda uma gama de estágios, deque se podem destacar três momentos fundamentais.

Numa primeira concepção, que abraça um lapso de tempo, enfeixamos a idéia deobrigação na fase pré-romana; depois vem o conceito romano; e, após, a sua noçãomoderna. Esta tríplice divisão não quer dizer que tenha havido três tipos de obrigação,nem que se tenha conservado uniforme e inalterada em cada um destes três momentos,senão que predominam, em cada um, idéias e influências que permitem distinguir odireito obrigacional peculiar a tal ou qual.20

Primitivamente não havia um direito obrigacional. Numa fase primeira da civilização,campeavam a hostilidade e a desconfiança de um a outro grupo, impedindo amistosasrelações recíprocas, pois que freqüentemente tomavam conhecimento uns dos outros emrazão apenas dos movimentos bélicos que os inimizavam. E, no interior de cada grupo,a falta de reconhecimento de direitos individuais obstava à constituição de relaçõesjurídico-obrigacionais entre seus membros. O surgimento da idéia de obrigação deve terocorrido com caráter coletivo, quando todo um grupo empreendia negociações eestabelecia um comércio, se bem que rudimentar, com outro grupo. Esta seriaprovavelmente a gênese da idéia obrigacional, que atua na formação do vínculo, e nasanção, comprometendo o grupo inteiro, ainda que os participantes da negociação nãofossem mais que uma parte ou uma delegação da tribo ou do clã, mas tambémconvocando todos os elementos válidos à guerra, contra o grupo infrator da convenção.

Especialmente este sentido punitivo que sancionava a fé contratual é importanteassinalar-se, porque mais tarde, quando se individualiza o nexo obrigacional, e sepersonaliza, e pouco a pouco se alarga a prática da estipulação sem a marca dacoletividade, sobrevive a punição do infrator, dirigida ao seu próprio corpo. Mas nãoexiste um momento, à feição de um divisor de águas cronologicamente considerado, emque tenha ocorrido a individualização da obrigação. Ao revés, as duas formas de obrigarcoexistiram por largo tempo, e só paulatinamente ganhou prestígio a obrigaçãoindividual, ao mesmo tempo que perdia terreno a obrigação coletiva. Também de um aoutro povo os sistemas variam, assinalando-se que, enquanto uns nitidamentemarchavam para a mais franca individualização, outros praticavam ambas asmodalidades, e outros se mantinham ainda no terreno coletivista. Mas foi sem dúvida

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um largo passo, amplo e decisivo, na evolução da compreensão obrigacional, apercepção de que o indivíduo pessoalmente respondia pelo pacto jurado ou pelo danocausado, o que sobremodo é de acentuar-se, pois que na origem a fonte delitualantecedeu à convencional, e, mesmo depois que esta surgiu, aquela exerceu funçãomuito mais marcante do que a outra, como elemento gerador. Na passagem, então, daobrigação coletiva para a individual conservou-se ainda o sentido criminal ou maistecnicamente delitual da responsabilidade e pôde-se fixar que o homem, subordinado aum compromisso, era adstrito a honrá-lo, não porque já estivesse elaborada a convicçãode que a palavra empenhada gerava uma obrigação, porém em razão de se movimentaro aparelhamento coator contra o que faltava ao prometido, de forma a sujeitá-lo àobservância da obrigação, ou puni-lo pessoalmente por causa do inadimplemento, já queo devedor era em pessoa vinculado ao credor pela obrigação.

Longe iríamos nas pesquisas, que a natureza desta obra não permite, se fôssemosrastrear entre os povos orientais, os da bacia mediterrânea e os norte-europeus, asincidências várias do princípio da responsabilidade individual pela inexecução doobrigado.

Desenvolveu-se, também, ao lado das modalidades de obrigações geradas pelas figurasdelituais, a concepção de contrato, a começar da troca como figuração mais simples ecorrentia.

Focalizando o Direito romano, já encontramos o conceito de obrigação bastante apuradomesmo nos primeiros tempos, e logo nitidamente formulado, desde que lhe foi possíveldistinguir o direito de crédito dos direitos reais, como um iuris vinculum hábil a prenderum devedor a um credor. Mas não é da primeira hora, senão do período clássico, oenunciado de que se situa a substância da obrigação em aliquid dando, vel faciendo, velpraestando. No princípio, em razão da pessoalidade do vínculo, o devedor se achavacomprometido e respondia com o próprio corpo pelo seu cumprimento, estabelecendo-se o poder do credor sobre ele (nexum), compatível com a redução do obrigado àescravidão (manus iniectio), se faltava o resgate da dívida. Estas idéias eram tãonaturalmente recebidas que não repugnava impor sobre o devedor insolvente ummacabro concurso creditório,21 levando-o além do Tibre, onde se lhe tirava a vida edividia-se o seu corpo pelos credores, o que, aliás, está na Tábula III: "Tertiis nundinispartis secanto; si plus minusve secuerunt se fraude esto."22

Outro aspecto do direito obrigacional romano dos primeiros tempos é o extremoformalismo, que imprimia às cerimônias sacramentais predominância completa sobre amanifestação da vontade, cuidando-se menos de indagar qual era o querer do estipulantedo que a expressão material da emissão volitiva; mais valia o rito prescrito para aestipulação e a apuração de sua observância do que propriamente o seu conteúdo. Sempoder dizer-se que o romano em tempo nenhum se desvencilhou da sacramentalidadeexterior dos atos, é corrente em todos os romanistas esclarecer que chegou a declaraçãode vontade a projetar-se como elemento gerador de direitos e de obrigações,preponderando sobre a forma exterior.

Com a Lex Poetelia Papiria, de 428 a.C., foi abolida a execução sobre a pessoa dodevedor, projetando-se a responsabilidade sobre os seus bens (pecuniae creditae bonadebitoris, non corpus obnoxium esse), o que constituiu verdadeira revolução no conceitoobrigacional.23 Por outro lado, o formalismo primitivo foi cedendo terreno à declaração

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de vontade, ao mesmo passo que ganhou corpo a impessoalidade da obrigação, ou,quando menos, desprestigiou-se aquela excessiva personalização do vínculoobrigacional.24

Custou séculos, é certo, este deslocamento. Mas, quando se chega ao século VI de nossaera, já pode o Corpus Iuris Civilis consagrar uma definição que apresenta a obrigaçãocomo provinda da vontade, sujeitando o devedor a uma prestação, um dare, um facereou um praestare, e não uma sujeição do corpo ou da pessoa do obrigado, o que temlevado escritores romanistas (Arangio Ruiz) a subdividir a evolução histórica daobligatio, e apontar uma fase que se inicia a partir dos fins da República.

O Direito medieval, conservando embora a concepção obrigacional da época clássica,introduziu-lhe maior teor de espiritualidade, confundindo na idéia mesma de peccatum afalta de execução da obrigação, que era equiparada à mentira, e condenada toda quebrada fé jurada. E, pelo amor à palavra empenhada, instituíram os teólogos e canonistas orespeito aos compromissos (pacta sunt servanda), que lhe instilaram maior conteúdo demoralidade com a investigação da causa.25

O Direito moderno retoma, sem grandes modificações, a noção romana. Pothierreproduz a definição da Institutas,26 e o Código Napoleão, art. 1.101, nela se inspiroupara definir o contrato.27 É de assinalar-se, entretanto, que se atribui à vontade plenaforça geradora do vínculo, ao mesmo tempo que se aceita, sem qualquerconstrangimento, a impessoalidade da obrigação. Neste passo, é necessário frisar queuma distância muito grande se abre entre a concepção romana e a moderna,precisamente no que diz respeito a esta impessoalidade do vínculo. Escritores,notadamente os mais recentes, num movimento que parece inspirado na repulsa à noçãoquiritária, de tanto repudiarem a personalização da obrigação, acabaram por atingir oexagero de aceitá-la como relação que se estabelece entre o credor e o patrimônio dodevedor;28 e, mais extremadamente ainda, chegou-se a defini-la como relação entredois patrimônios.29 Há, evidentemente, um excesso neste modo de ver30, pois que arelação jurídica se estabelece entre pessoas, e não entre pessoa e bens, e menos aindaentre acervos bonitários. O que impressionou os defensores dessa moderna concepçãofoi o fato de, ao contrário do conceito primitivo, o vínculo repercutir sempre nopatrimônio. Mas, se isto é certo, não menos certo é que a obrigação se cria entrepessoas, e somente na execução atinge o patrimônio, como garantia geral decumprimento. Seu objeto é uma prestação, que tanto pode traduzir-se na entrega de umacoisa quanto na realização de uma ação humana específica. Às vezes, somente odevedor e ninguém mais tem a possibilidade de executar a prestação. Outras vezes, odare e o facere podem ser efetivados pelo debitor, tão bem como por outrem, mas, nodescumprimento, é o patrimônio que suporta os efeitos e responde. Não obstante omoderno da concepção, e mesmo correndo aquele risco que Ripert tomouconscientemente, de ser acusado de retornar sempre às velhas idéias,31 preferimospautar-nos pela concepção subjetivista do vínculo obrigacional, encarando-o por istomesmo como uma relação entre pessoas, e não entre dois patrimônios, ainda queadmitamos, e ninguém pode negá-lo, a sua repercussão patrimonial. É uma atuaçãohumana o seu objeto, e, se reflete no patrimônio em termos de execução, nem por issose deve desfigurá-lo, já que, salienta-o Barassi, a atividade pessoal ocupa o centro ativodo patrimônio mesmo.32

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Sob outros aspectos, o direito obrigacional moderno, especialmente em meados doséculo XX e início deste século XXI, já inova sobre as concepções dominantesanteriormente encaminhando-se no sentido de sofrear a autonomia da vontade, que noséculo XIX tão longe fora, e, com o dirigismo, assegurar a predominância do princípioda ordem pública. Cresce a intervenção do Estado em detrimento da liberdade de açãodo indivíduo. E, como o fenômeno é marcante no direito do contrato, dele cogitaremosdevidamente no momento em que a este nos dedicarmos (v. nº 186, infra, vol. III).

Se confrontarmos, pois, a noção moderna com as várias fases da vida da obrigação nocurso de sua evolução histórica, encontramos modificações salutares nas idéiasprimordiais, embora não tão profundas nem tão extensas que autorizem admitir-se umatomada de posição extremamente diversa. E nisto ponderando, voltamos à nossadefinição, e dizemos que a obrigação é um vínculo jurídico em virtude do qual umapessoa pode exigir de outra uma prestação economicamente apreciável. Aí estão oselementos essenciais. A existência de um vínculo jurídico é fundamental. Qualquer queseja seu objeto e natureza, há sempre a presença de uma relação necessária ligando umapessoa a outra pessoa. Não sendo total a subordinação, sob pena de aniquilar apersonalidade do devedor, o objeto da obrigação é uma prestação, caracterizada em umfato humano, que vai consistir, em derradeira análise, em entrega de uma coisa (aliquiddare), ou em fazer ou prestar algo (facere vel praestare), como o jurisconsulto Paulus jáassinalava na essência de toda obrigação (obligationum substantia). Encarece aeconomicidade do objeto. Posto controvertida, entendemos que a patrimonialidade daprestação lhe é ínsita, seja quando ostensivamente vem manifestada, seja quando estáimplícita no seu objeto. Dá-se uma vinculação entre pessoas, perseguindo umaprestação. A relação institui-se entre uma pessoa e outra pessoa, com repercussão nopatrimônio do devedor, onde, aliás, repousa a idéia de garantia ou de responsabilidade.Da análise a que procederemos, em seguida, dissecando-lhe os elementos essenciais,melhor se infere a justeza do conceito.

128. Elementos essenciais da obrigação

A obrigação decompõe-se em três elementos: sujeito, objeto e vínculo jurídico.

A. O elemento subjetivo da obrigação oferece a peculiaridade de ser duplo: um sujeitoativo ou credor; um sujeito passivo ou devedor. Um sujeito ativo ou credor (reuscredendi) que tem o direito de exigir a prestação; um sujeito passivo ou devedor (reusdebendi) que tem o dever de prestar. A determinação subjetiva pode ocorrer desde omomento em que nasce, ou vir a se estabelecer ulteriormente. Mas é indispensável queocorra até a fase executória.

No Direito romano, como visto no nº 127, supra, vigorava a personalidade oupessoalidade da obrigação, significando que esta se constituía intuitu personarum, ecom este caráter devia cumprir-se. O devedor o era para com o credor; guardada aidentidade física de um e de outro, por tal arte que não se dava alteridade na execução, eo devedor não se podia fazer substituir por outrem a prestar, nem o credor podia passara alguém o direito criado pelo vínculo obrigacional. Ali mesmo, entretanto, já seadmitiram, embora através de soluções indiretas, como a in iure cessio, casos em que aobrigação se executava em favor de pessoa diferente do reus stipulandi, como aindaoutros em que respondia pelos seus efeitos pessoa diversa do reus debendi. Casos raros,é certo, e notoriamente excepcionais.

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O Direito moderno não cultiva tal preconceito. Muito ao revés, aceita em regra atransmissibilidade plena, tanto da qualidade creditória (cessão de crédito, pagamentocom sub-rogação) quanto da debitória (assunção de débito, sub-rogação passiva).33 Dáentretanto a maior importância à questão da determinação subjetiva. Os sujeitosprecisam de determinar-se, para que fique certo a quem o devedor há de prestar ou dequem o credor tem de receber. Isto não quer, entretanto, dizer que seja necessária, desdea criação da relação obrigacional, a individualização precisa dos sujeitos. Pode,momentaneamente, ser indeterminado um deles, mas nesse caso é de mister suadeterminabilidade. Indeterminado no instante de se constituir a obrigação;determinável, ulteriormente, pena de se não formar o vínculo.34 Um sujeito passivocerto pode obrigar-se para com um sujeito ativo indeterminado, e, vice-versa, um sujeitoativo certo poderá ter o direito de exigir a prestação de um devedor que se tenha tornadoincerto. Mas, em qualquer hipótese, a indeterminação subjetiva, embora duradoura nosentido de que é uma situação que não cessa prontamente, será obviamente transitóriana acepção de que não permanecerá por todo o ciclo existencial da obrigação, pois écerto que no momento da solutio já devem estar determinados o credor e o devedor, e sea incerteza perdurar para a outra parte, providências tomar-se-ão, como é o caso dodevedor que não sabe a quem prestar e que pode consignar em juízo a res debita, paraque o juiz decida quem tem o direito de levantá-la.35 Caso muito freqüente deindeterminação do credor é o das ofertas ao público, em que uma pessoa, medianteanúncios, se obriga a uma prestação em benefício de quem se apresentar sob condiçõespreestabelecidas: o devedor é certo, mas o credor indeterminado, muito embora aobrigação exista desde logo e seja exigível desde o momento em que se individue ocredor, tão organicamente suscetível de solução, perfeita e exigível, quanto outraqualquer que desde o início se tenha constituído íntegra. Igualmente freqüente é o casodo título ao portador ou do título à ordem: no primeiro, o reus debendi é obrigado apagar a quem lhe apresentar o instrumento; no segundo, a obrigação constitui-se embenefício de um credor determinado, porém substituível por quem quer que receba oinstrumento transferido por operação simples.

A indeterminação do devedor é menos comum, mas não é de todo rara, e em geraldecorre de obrigação acessoriamente estabelecida, ou de direitos reais que acompanhama coisa em poder de quem quer que venha estar: o adquirente de um imóvel hipotecadoresponde com ele pelo solução da dívida garantida, apesar de não ter originariamenteassumido a obrigação, e, neste caso, o credor que o era de um certo devedor tornar-se-áapto a receber de qualquer um a quem venha tocar a coisa gravada.

Determinadas ou determináveis, é imprescindível assentar que somente pessoas(naturais ou jurídicas) hão de ser sujeito da obrigação, e, mais, ainda, que toda pessoa,qualquer pessoa, poderá sê-lo. Necessário contudo acrescentar, e ao assunto jáaludimos, é peculiaridade da relação obrigacional a duplicidade subjetiva - um sujeitoativo e outro sujeito passivo, pois que a confusão de ambas em uma só pessoa leva àextinção do próprio vínculo,36 o que veremos em minúncia mais adiante, nº 165, infra.

Cumpre distinguir, entretanto, esta exigência, natural em toda obrigação, da pluralidadede sujeitos em um, em outro ou em ambos os extremos. Na obrigação podem aparecervários sujeitos ativos, quer originariamente quer subseqüentemente, como resulta,exempli gratia, da transmissão hereditária, que conhece a multiplicação dos credores,todos com direito contra um só devedor; ou, ao revés, é possível que um só credor tenha

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direito de exigir a obrigação de vários sujeitos passivos; ou, ainda, que vários credores osejam de vários devedores. A pluralidade subjetiva, comporta, portanto, váriashipóteses, que geram outras tantas modalidades de obrigações, as quais serão estudadasoportunamente. Assim, é possível que um credor tenha contra vários devedores afaculdade de receber integralmente de qualquer deles (obrigação solidária) ou, aocontrário, cada devedor tenha o direito de liberar-se, prestando uma quota-parte; épossível que, não obstante a faculdade de liberar-se o devedor pro rata, reste ao credoro poder de exigir a prestação integral e não fracionariamente, se a obrigação forindivisível, e assim, por diante, em desenvolvimento de princípios que são peculiares acada tipo e que examinaremos nos nos 137 e 140, infra.

B. Toda obrigação há de ter um objeto, que é a prestação do devedor. Não é deconfundir-se o objeto da obrigação com a coisa em que a prestação se especializa, eseria errôneo dizer que o objeto da obrigação decorrente de um título cambial seria odinheiro expresso no mesmo. Como já acima dissemos, o objeto da obrigação é umaprestação, e esta sempre constitui um fato humano, uma atividade do homem, umaatuação do sujeito passivo.37 Às vezes este fato do homem se concretiza ou sematerializa numa coisa. Mas, ainda assim, não é de confundir-se o objeto da obrigaçãocom a coisa sobre a qual incide. Quando a prestação é um facere, esta nítido o ato dodevedor: a ação humana como seu objeto, consistente na realização de um trabalho, naconfecção de uma coisa, na emissão de uma declaração de vontade etc., tudo envolvidona expressão genérica - prestação de um fato - e, como no facere se contém igualmenteo non facere, o mesmo sentido de atividade humana está abrangido na omissão ou naabstenção, tal qual se apresenta na ação. Quando a obrigação é de dar ou de entregar,seu objeto não é a coisa a ser entregue, porém a atividade que se impôs ao sujeitopassivo, de efetuar a entrega daquele bem; o credor tem o direito a uma prestação, eesta consiste exatamente na ação de entregar, correlata ao direito reconhecido ao sujeitoativo de exigir que lhe seja efetuada a entrega.

O objeto da obrigação pode variar de categoria, dizendo-se que é positivo, e a obrigaçãose diz também positiva quando se cumpre por um dare ou um facere; ou negativo e sefala que há obrigação negativa, quando implica uma abstenção. Pode caracterizar-seconforme a especificação da atividade seja ou não uma ação pura e simples ou naprojeção dela sobre a entrega de uma coisa, porém de tal modo que o devedor estásubordinado a uma prestação sem escolha: o sujeito passivo deve efetuar a entrega deuma dada coisa (obligatio dandi) ou há de realizar o ato para o credor (obligatiofaciendi); pode, ao revés, oscilar a prestação de um a outro bem, ou de um a outro fato,e a obrigação será alternativa.

Deixando o exame de todos esses aspectos para o Capítulo XXVI, aqui nos limitamos amencionar os caracteres que são comuns ao objeto, nele sempre presentes, e são apossibilidade, a liceidade, a determinabilidade e a patrimonialidade, e que lheconstituem mesmo requisitos, que os escritores mais reputados (Ludovico Barassi,Orosimbo Nonato, Eduardo Espínola) consideram essenciais a ele, e portanto ligados àprópria integração jurídica da obligatio.

O objeto da obrigação há de ser, em primeiro lugar, possível, pois do contrário não ésuscetível de cumprimento, como já se enunciava na parêmia ad impossibilia nemotenetur. Distingue-se da impossibilidade material a jurídica, sendo a primeiracondizente com a faculdade de realização do objeto em si mesmo, e a segunda dizendo

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respeito à sua consecução na conformidade com a ordem jurídica. A impossibilidadematerial é o que está sob foco de observação neste momento, pois que a impossibilidadejurídica confina e vai mesmo confundir-se com a iliceidade, já que entram na mesmalinha de insubordinação aos preceitos a obrigação cujo objeto não é possível diante daregra jurídica e aquela que se define como um ilícito.

Cuidando tão-somente da impossibilidade material agora, observamos que, se ela o é, aobrigação é frustra, é nada, já que se desenha notória a incompatibilidade entre aexistência e eficácia do vínculo pelo qual alguém seja constrangido a uma prestação, e ainexeqüibilidade da mesma prestação. Os conceitos de prestação e de impossível sãoantinômicos, no sentido de que onde este ocorre está ipso facto negado o outro. Se osujeito passivo deve o que não é possível, em verdade nada deve, por não haver sobreque incida o cumprimento da obrigação. É o próprio vínculo que se destrói. É nula aobrigação.

O requisito da possibilidade está presente em toda prestação, positiva ou negativa,conducente a um dare ou a um facere, pois é intuitivo que, em qualquer caso, se, sujeitoo devedor a uma ação ou a uma omissão, a nada estará obrigado, se for a prestaçãoinsuscetível em si mesma.

Mas esse efeito é o da impossibilidade concomitante à constituição do vínculo, caso emque este se não forma. Se é superveniente, os efeitos variarão, como teremos ensejo deestudar no nº 133, infra, mas não ocorrem a negação do vínculo e a ineficácia daobrigação. É que, enquanto a impossibilidade simultânea à constituição da obrigaçãoobsta a que validamente se forme, e, pois, leva à sua nulidade, a impossibilidadesuperveniente não embaraça a criação da relação obrigacional, porém, atém-se ao seucumprimento e torna a obrigação inexeqüível,38 com as conseqüências liberatórias se seimpossibilitar a prestação por força maior ou caso fortuito, ou carregando naresponsabilidade daquele que para isto houver concorrido, na falta desta escusativa.

A impossibilidade de que aqui se cogita é absoluta, isto é, aquela que não comportavariação de efeitos. Se o objeto é possível para outrem e impossível para o reus debendi(impossibilidade relativa), não se dirá que a obrigação seja sem objeto, nem que esteseja insuscetível de verificação, e por isto mesmo não se poderá sustentar a suanulidade, pois que o vínculo tem sobre que incidir. A obrigação poderia, em tese,cumprir-se, e só não se executa na hipótese pela razão de se não solver a parte debitoris.Neste caso, não haverá nulidade, porque o sujeito ativo poderá perseguir a prestaçãoexecutada pelo próprio devedor, como obtê-la por via diferente, o que não fere osprincípios, já que em nosso direito, ao contrário do romano, nada impede que aprestação se realize por outrem que não o sujeito passivo, a não ser naqueles casosespeciais de personalidade do vínculo (v. nº 135, infra). Também a impossibilidadesuperveniente pode ser relativa, e então não se dirá que a obrigação é inexeqüível,quando o reus credendi puder obtê-la por outros meios.

Em segundo lugar, o objeto da obrigação há de ser lícito, qualidade e requisito que têmassento na própria essência dos direitos, como ainda, quando se tratar de obrigaçãovoluntária, na incidência dos caracteres do ato negocial.39 Aqui se tem em vista tanto aque a lei proíbe como o que repugna à moral e aos bons costumes, como ainda o que sedesconformiza do ordenamento jurídico, e, por isso, a iliceidade e a impossibilidadejurídica alinham-se na atração dos mesmos princípios. O caso mais franco de iliceidade

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de objeto é o da contravenção a disposição legal expressa. Mas igualmente ilícito é oque envolve contrariedade indireta a norma de ordem pública, pois que não se podejamais obter por linha travessa aquilo que às escâncaras não pode ser obtido. E nempode a lei ser minuciosa e casuística, ao ponto de minudenciar a enumeração de tudoque é proibido ou do que é permitido. Dever-se-á apurar, conseguintemente, se o objetoda obrigação afronta diretamente a lei, ou contraria os princípios que compõem aconduta social pautada pelas normas da moral e dos bons costumes. Caberá entãoapreciar in concreto as espécies, a ver se o objeto, por uma ou outra razão, é lícito.40

Em terceiro lugar, o objeto da obrigação há de ser determinável. Por via de regra édeterminado pelo gênero, pela espécie, pela quantidade, pelos caracteres individuais.Mas, quando não o for, será de mister que possa determinar-se, ou por ato dos sujeitosou pela escolha de um deles (obrigação alternativa), ou por terceiro (como se dá compreço na compra e venda, cuja fixação pode ser deixada ao arbítrio de um terceiro), ouainda por fato impessoal (preço deixado à oscilação da Bolsa ou do mercado). O quenão é possível, sob pena de equiparar-se à falta de objeto e, pois, à ineficácia daobrigação, é a indeterminação definitiva,41 que importa na própria negação do vínculo,por ausência de objetivação. Quando o objeto é indeterminável, ou pela próprianatureza, ou porque circunstâncias especiais obstam à determinação, não há obrigaçãoválida.

Finalmente, o objeto há de ter caráter patrimonial. Via de regra e na grande maioria doscasos, a prestação apresenta-se francamente revestida de cunho pecuniário, seja porconter em si mesma um dado valor, seja por estipularem as partes uma penaconvencional para o caso de descumprimento.42 E, como tal pena traduz porantecipação a estimativa das perdas e danos, a natureza econômica do objeto configura-se indiretamente ou por via de conseqüência. Poderá, entretanto, acontecer que apatrimonialidade não se ostente na obrigação mesma, por falta de uma estimaçãopecuniária que os interessados, direta ou indiretamente, lhe tenham atribuído. E nestahipótese ressurge a indagação se, ainda assim, deve a prestação ter caráter patrimonial.O Direito romano vislumbrou a solução, embora os romanistas não sejam acordes nahermenêutica das passagens, como esta, do Digesto: "Ea enim in obligatione consisterequae pecunia lui praestarique possunt".43 A controvérsia medra entre os juristasmodernos, sustentando-se com igual riqueza de argumentação ambas as posições, o quedificulta uma definição, já que o recurso à autoridade é igualmente ineficaz, bastandolembrar que na cidadela da patrimonialidade essencial se inscreve Savigny, a quemaderem Dernburg Kohler, Brinz, Endemann, Oser, Giorgi, Ruggiero, Salvat, Mazeaud,Beviláqua, Orosimbo Nonato, e mais tantos; enquanto na trincheira oposta pelejamWindscheid, Von Jhering, Demogue, Ferrara, Alfredo Colmo, Barassi, Saleilles,Eduardo Espínola, e muitos mais.

Em prol da patrimonialidade da prestação, atemo-nos a duas ordens de argumentos. Oprimeiro é que, ainda no caso de se não fixar um valor para o objeto, a lei o admiteimplícito, tanto que converte em equivalente pecuniário aquele a que o devedorculposamente falta, ainda que não tenham as partes cogitado do seu caráter econômicooriginário, e isto tanto nas obrigações de dar44 como nas de fazer,45 demonstrando quea patrimonialidade do objeto é ínsita em toda obrigação. Costuma-se, como argumentoem contrário, invocar a questão relativa à reparação do dano moral e raciocinar que se oDireito moderno a admite é porque reconhece a desnecessidade do caráter pecuniário doobjeto. A nós, parece-nos que nada tem a ver com o problema a interferência da

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indenização do dano moral. Esta leva em conta a existência de um ilícito que não fere opatrimônio da vítima, mas nem por isso lhe deve ser indiferente o direito, que destarteimpõe ao agente o dever de ressarcimento pecuniário, sem se preocupar com aequivalência entre o valor da prestação e a qualidade do bem jurídico ofendido. Antesda fixação da prestação não existia um fato econômico, da mesma forma que antes dacriação voluntária de uma relação obrigacional podia não existir. Como o fato humanovoluntário gera a obrigação de prestação patrimonial, também o fato humano delituosocria o dever de prestar pecuniariamente, sem que se possa afirmar a presença de umaobrigação (em sentido técnico) de objeto patrimonial, senão que preexistia o devernegativo de respeitar a integridade jurídica alheia.

Por outro lado, e numa segunda ordem de idéias, a vida social conhece numerosos atoscuja realização é indiferente ao direito. Se a obrigação pudesse ter por objeto prestaçãonão econômica, faltaria uma nítida distinção entre ela e aqueles atos indiferentes, e éprecisamente a pecuniariedade que extrema a obrigação em sentido técnico daquelesdeveres que o direito institui, numa órbita diferente, como, exempli gratia, a fidelidaderecíproca dos cônjuges, imposta pela lei, porém exorbitante da noção de obrigação.46

Diante da controvérsia armada, entendeu, e a nosso ver bem andou, o novo Código Civilitaliano (art. 1.174) de proclamar a economicidade da prestação, com os aplausos decivilistas como Pacchioni,47 patrimonialidade que, entretanto, tem merecido aobservação de não significar que prestação deva ter sempre um valor de troca ou umsignificado econômico intrínseco. Às vezes falta, originariamente, esta economicidadedo objeto, e no entanto subsiste a juridicidade da obrigação, porque o conceito deinteresse se estende até o ponto de envolver, dentro de limites razoáveis, o valor deafeição - pretium affectionis - e, aí, recebe o objeto um caráter patrimonial infreqüente,mas nem por isto inábil a permitir a configuração da obligatio.48 A razão está em que ointeresse do credor pode ser apatrimonial, mas a prestação deve ser suscetível deavaliação em dinheiro, tal como salientou o relator Giaquinto, na Comissão daAssembléia Legislativa, quando da elaboração do Código italiano de 1942.49

Em síntese, tem-se que o segundo elemento, objetivo, reside na prestação que é sempreum fato humano, que se cumpre mediante a tradição de uma coisa ou a realização deuma ação ou omissão do devedor. Além da economicidade, salienta-se adeterminabilidade do objeto, que pode ser simultânea à formação ou estabelecer-se até omomento em que se dará o cumprimento. É também caráter do objeto a possibilidade. Oobjeto absolutamente impossível impede o nascimento da obrigação, enquanto que aimpossibilidade superveniente conduz à sua resolução.

C. O terceiro elemento da obrigação é o vínculo jurídico. É o elemento nobre, que asdefinições tradicionais encarecem, e que se mostra presente e vivo, mesmo para aquelesque a conceituam como relação jurídica. É no vinculum iuris que reside a essênciaabstrata da obrigação, o poder criador de um liame por cujo desate o indivíduorespondia outrora com a sua pessoa e hoje com seu patrimônio. É ele que traduz o poderque o sujeito ativo tem de impor ao outro uma ação positiva ou negativa, e exprime umasujeição que pode variar largamente, dentro porém de dois extremos, que são os seuslimites externos: a seriedade da prestação e a liberdade individual. Se se reduzir aquelaa menos de um grau razoável, perde a substância, e não justifica a mobilização doaparelhamento jurídico por uma insignificância, como seria o fato de alguém ajustarcom outrem cumprimentá-lo com um aceno de mão, ao passar à sua porta. Embora haja

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nisto uma ação humana, é vazia de um mínimo de conteúdo a que o direito sejasensível; falta-lhe então seriedade. Mas se o sujeito passivo conferisse ao outro oassenhoreamento total de sua atividade, abdicaria da reserva fundamental da liberdadehumana e investiria a outra parte de todo o poder sobre a sua pessoa, como aconteciacom a escravidão, que também é um regime jurídico, mas já superado. O iuris vinculum,refletindo a sujeição da vontade ou da atividade do devedor ao credor, somente serápossível porque se limita a uma atividade certa (Savigny) e importa em uma restrição,sem dúvida, da liberdade do obrigado, mas nunca na sua perda total. Há diminuição daliberdade, porque o sujeito passivo da obrigação é constrito a fazer ou deixar de fazeraquilo que o credor tem o poder de exigir, mas não pode estender-se até a abolição dela,porque o devedor há de conservar o domínio da própria vontade, para tudo mais.50Assim, o vínculo jurídico, analisado em suas últimas conseqüências, revela umarestrição à liberdade do devedor, em relação ao objeto.

Há, pois, na obrigação, e já o afirmamos, no n>], supra, uma relação entre pessoa epessoa, com projeção no patrimônio do devedor. O vínculo jurídico estabelece estasujeição. Observando-o, tradicionalmente se afirmava que ele traduzia uma idéia derelação e de sujeição, que a definição clássica de Savigny bem evidencia (v. nº 126,supra).

Os escritores modernos, contudo, insurgem-se contra esta concepção unitária eenunciam a noção dualista, procedendo a uma análise do vínculo obrigacional, quedecompõem em dois fatores: o débito e a responsabilidade. Vogando nas águas deBrinz, cuja doutrina Savigny longamente expõe e critica,51 o qual a princípio nãoencontrou senão opositores, e que só mais tarde logrou a compreensão de Isay, Bekker,Perozzi, Carnelutti, irmãos Mazeaud, Serpa Lopes, Orosimbo Nonato, Pellet (e muitosmais), a doutrina moderna enxerga na obrigação um débito (Schuld) e uma garantia(Haftung). O primeiro é o dever de prestar, que facilmente se identifica, mas que nãodeve ser confundido com o objetivo da obrigação. Este debitum (Schuld) mora na suaessência mesma, e exprime o dever que tem o sujeito passivo da relação obrigacional deprestar, isto é, de realizar uma certa atividade em benefício do credor, seja ela um dare,um facere ou um non facere. Fundamentalmente traduz o dever jurídico que impõe aodevedor um pagamento, e que se extingue se esta prestação é executadaespontaneamente.

Em contraposição, o sujeito ativo tem a faculdade de reclamar do reus debendi aprestação daquela atividade ou de exigir o pagamento e mobilizar as forças cogentes doEstado no sentido de assegurar o cumprimento da obrigação. Nesta existe, portanto, umprincípio de responsabilidade que o integra (Haftung) e permite ao credor carrear umasanção sobre o devedor, sanção que outrora ameaçava a sua pessoa e hoje tem sentidopuramente patrimonial, já que não é lícito impor a alguém a prestação específica de umfato (nemo ad factum precise cogi potest). Embora os dois elementos Schuld e Haftungcoexistam na obrigação normalmente, o segundo (Haftung) habitualmente aparece noseu inadimplemento: deixando de cumpri-la o sujeito passivo, pode o credor valer-se doprincípio da responsabilidade. Observando que vastas vezes a obrigação se executaespontaneamente, atiram alguns contra a teoria dualista o argumento de que, nesse caso,não haveria o segundo elemento. Da explicação de Betti vem, muito sensível, a réplica,pois ensina ele que a responsabilidade é um estado potencial, continente de duplafunção: a primeira, preventiva, cria uma situação de coerção ou procedepsicologicamente, e atua sobre a vontade do devedor, induzindo-o ao implemento; a

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segunda, no caso de a primeira falhar, é a garantia, que assegura efetivamente asatisfação do credor.

Freqüentemente, os dois fatores andam juntos, um ao lado do outro, um correlato dooutro, pois que é pelo fato de haver débito que o credor tem a faculdade de provocar aexecução forçada. Aliás, não falta a observação (Pacchioni) de que pelo Direitomoderno o mesmo fato gerador do débito produz contemporaneamente aresponsabilidade,52 ao que acrescentamos que é normalmente, já que eventualmentepode a responsabilidade (obligatum esse) surgir com autonomia, como se diria nogarantir alguém uma dívida preexistente, de terceiro. Mas, se normalmente andam deparelha - e aqui se situa o argumento dos que se opõem ao dualismo dogmático daobrigação, dizendo que se estão juntos constituem uma unidade -, às vezes podem estarseparados, como no caso da fiança, em que a Haftung é do fiador, enquanto que odebitum é do afiançado. Não se explica o fenômeno com a idéia de obrigaçõesparalelas, porque há um ponto de conjunção que é o credor, o qual se não receber aprestação espontânea do devedor principal, pode exercer a execução compulsória contrao fiador. Outro caso de separação é o de alguém que, sem ser obrigado, oferece bens emcaução ou hipoteca a dívida alheia: o debere está dissociado do obligatum esse, pois quena falha da realização da atividade em benefício do credor (Schuld) se concretiza afaculdade de perseguir aqueles bens pertencentes a terceiros (Haftung). Embora,repetimos, andem normalmente juntos, debere e obligatum esse, às vezes se dissociam,para repousarem em elementos subjetivos diferentes, e força é reconhecer que, se deprincípio o entendimento desta idéia dualista exige uma atenção mais apurada e umpoder maior de abstração, certo é, também, que a noção fundamental de obrigação maisse aclara após esta análise e a percepção do iuris vinculum mais nítida se desenha: aobrigação impõe ao devedor uma prestação, e concede ao credor o poder de exigi-la. Seeste poder fosse despido de sanção, a obrigação seria incompatível com a exigibilidadeque é efetiva, precisamente em razão de o credor sentir a garantia sobre o patrimônio dodevedor, e tanto assim é que não tem faltado quem explique a obrigação natural comoum "débito sem responsabilidade" (Pacchioni). Aqueles conceitos de debere eobligatum esse não são apenas os aspectos negativo e positivo de um mesmo fenômeno,embora se salientem melhor através de sua análise. São mais que isto, pois que mostramo poder do credor sobre o patrimônio (Haftung), em conseqüência de não ter o devedorefetuado a prestação (Schuld).53

A teoria dualista, apesar do rigor de sua lógica e da clareza de sua exposição, não temlogrado êxito, havendo escritores que lhe votam silencioso desprezo e outros que acombatem (Ruggiero, Buzaid, Washington de Barros Monteiro). Não falta mesmo quem(Mazeaud e Mazeaud) pense em um terceiro elemento (coação), e nem é de olvidar-se aescola dos processualistas (Carnelutti, Brunetti, Liebman) que identifica a Haftungcomo o elemento publicístico, não integrante do direito subjetivo por traduzir-se nodireito à prestação jurisdicional do Estado.54

Mas, não obstante a condenação que lhe votam tantos e a incursão que no terrenocivilístico fazem os processualistas para raptar uma noção que é de direito material, ateoria dualista permite destacar os elementos fundamentais do vínculo obrigacional, e,quando definimos a obrigação no nº 126, supra, não a perdemos de vista.

129. Obrigação civil e obrigação natural

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Procedemos à análise da obrigação (nº 128, supra), nos seus três elementos - sujeito,objeto e vínculo jurídico. Normalmente, estão todos presentes. E a obrigação, assimintegrada de seus fatores fundamentais, classifica-se de civil: um sujeito ativo, credor, eum sujeito passivo, devedor; objeto, a prestação; e estabelecendo o liame entre ossujeitos, ao mesmo tempo que contém o tegumento de garantia, o vínculo jurídico, quefaculta ao reus credendi mobilizar o aparelho do Estado, para perseguir a prestação,com projeção no patrimônio de reus debendi.

Os juristas de todos os tempos têm sido atenazados pela indagação: quid iuris se faltareste poder de garantia? Que acontecerá se houver duplo sujeito, se houver objeto, masfaltar a responsabilidade do devedor?

Para responder à questão, foi engendrada uma categoria especial de obrigação, quetradicionalmente se denomina obrigação natural (obligatio naturalis), e maismodernamente na técnica dos escritores alemães obrigação imperfeita, e foi construídaa sua teoria. A imaginação romana criou uma dogmática que pôde penetrar o direitomoderno sem perder as suas linhas estruturais, embora restrita na sua extensão, e nonúmero das hipóteses que abrange.

A obrigação sem garantia, ou a obrigação sem sanção, sem ação para se fazer exigível,existe. E existe no campo do direito. Na vida em sociedade, o indivíduo está vinculadopor obrigações perfeitas, por cujo cumprimento responde com seus bens, e são asobrigações civis. A todo momento as assume, por ato voluntário, ou a elas se vê jungidopor imposição legal. Acha-se, igualmente, determinado por numerosos deveres, que nãochegam a tomar corpo de obrigações juridicamente consideráveis, desde as queconsistem em mera modelação de conduta, até as que se infiltram no seu patrimônio,embora desacompanhadas de um teor de exigibilidade, como se dá com aqueles deveresque a solidariedade humana institui, e que, sem perderem o senso de economicidade,permanecem no terreno moral, sem o poder de conversão em figura jurídica.

A obrigação natural é um tertium genus, entidade intermediária entre o mero dever deconsciência e a obrigação juridicamente exigível, e por isso mesmo plantam-na alguns(Planiol, Ripert e Boulanger) a meio caminho entre a moral e o direito. É mais do queum dever moral, e menos do que uma obrigação civil. Ostenta elementos externossubjetivos e objetivos desta, e tem às vezes uma aparência do iuris vinculum. Poderevestir, até, a materialidade formal de um título ou instrumento. Mas falta-lhe oconteúdo, o elemento intrínseco; falta-lhe o poder de exigibilidade, o que lhe esmaece ovínculo, desvirtuando-o de sua qualidade essencial, que é o poder de garantia.55

No Direito romano já ocupava a naturalis obligatio esta posição intermédia. E aliencontrava razões explicativas muito mais lógicas do que no Direito moderno, porque oromano focalizava em primeiro plano a actio, e por via de conseqüência o ius. Indagavada ação, para definir o direito. Quando encaravam, então, a obligatio naturalis, tinha amaior facilidade de compreendê-la, porque partia da inexistência da actio, comoelemento que a distinguia da obrigação civil. E tão relevante era este fator, que de todoo intrincado conceitual da naturalis obligatio no Direito romano, Serpa Lopes frisa queo assunto ainda permanece confuso, dele podendo extrair-se, entretanto, que de segurohá apenas conceituá-la como uma obrigação não protegida pela actio.56 Seria, portanto,uma obligatio revestida de todas as características da obrigação perfeita, menos uma, aação. O credor seria credor; o devedor, devedor; existiria o objeto; mas faltava a ação, e

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por isto o sujeito ativo não tinha o poder de tornar efetiva a prestação. Negava-se-lhe afaculdade de proceder diretamente, mas não se lhe recusava um meio indireto, pois que,na ausência da actio, instituía-se a exceptio, técnica de defesa, com que o reus credendidaquela obrigação paralisava uma ação contrária, a ele movida pelo reus debendi, ouobtinha o reconhecimento da eficácia do pagamento efetuado espontaneamente por este.O devedor, reus promittendi, não podia ser compelido ao pagamento. Mas se o realizavaespontaneamente, o credor, reus stipulandi, tinha em seu benefício a soluti retentio, quelhe assegurava a conservação da coisa recebida, como se se tratasse da prestação normalde uma obrigação civil. O traço de distinção mais característico entre a civilis obligatioe a obligatio naturalis era a actio, presente na primeira e ausente na segunda, e isto lheretirava a qualidade de vínculo jurídico, deslocando-a para um plano em que somenteuma inspiração da eqüidade a mantinha: solo vinculo aequitatis sustinetur.

Muito embora a teoria da obrigação natural no Direito Romano seja uma terra devastadapelas discussões sem fim, os romanistas procuram estabelecer uma sistematização doscasos considerados nas fontes, procurando assim reconstituir uma classificação. Dizem,conseqüentemente, que a figura da obligatio naturalis abrangia aquelas que nasciamperfeitas, e que, em razão de uma causa superveniente, vinham a perder a actio,convertendo-se de civil em natural, e neste caso, era uma obrigação civil degenerada.De outro lado, havia outras que nunca haviam surgido no mundo do direito comodotadas de ação, e que já nasciam com a característica que as enquadrava nesta classe.Eram as que não podiam atingir o caráter de obrigações civis, por faltar um elementohábil a gerar, desde o seu nascimento, a ação.

Cumpre, desde já, notar que a mesma idéia sobrevive no direito moderno, repartindo-seas obrigações naturais em dois grupos: o das que sempre existiram como obrigaçõesnaturais e o das obrigações civis degeneradas, por terem perdido sua força cogente.57

Sua principal fonte geradora, em Direito Romano, era a capitis deminutio, sob diversosaspectos. Assim, dizia-se que o escravo, em razão de faltar-lhe o status libertatis, nãopodia obrigar-se nem para com o seu dominus nem para com um terceiro; mas, se ofazia, embora despida de ação, a obligatio originava-se, naturalis tantum. Assim,também, o empréstimo feito ao filius familias, inexigível por força do senatus consultomacedoniano, gerava um pagamento espontâneo válido. Além desta causa, outra éindicada, sem pacificidade embora, argumentando-se que a obrigação civil que perdia aactio se convertia em natural, e por isso era válido o pagamento realizado. Os pactos,distinguindo-se dos contratos, não geravam ações - ex nudo pacto actio non nascitur - epor isso diz-se que a obrigação deles oriunda era natural e não civil.

Muito debatem os doutores em torno dos vários aspectos da obligatio naturalis noDireito romano, não permitindo a natureza desta obra que os acompanhemos.

O Direito moderno retoma o assunto, e não é menos controverso. Uns sustentam(Beviláqua) a desnecessidade desta figura, cuja fluidez lhes parece manifesta. E,cogitando da soluti retentio, que era seu principal efeito, estranham que uma obrigaçãose caracterize pela retenção do pagamento, deduzindo que ela só se afirma na hora daexecução. Como o pagamento é causa extintiva e não geradora de obrigações, negam-lhe consistência, raciocinando que nascem com o pagamento. Há, contudo, um desviode perspectiva neste parecer. Se a obrigação imperfeita nascesse com o pagamento,nunca se teria formado, e mais se assemelhava a um ato de liberdade. Ela há de

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preexistir, sob pena de se caracterizar o maior ilogismo. O débito está contraído(Schuld), apenas o credor não tem o poder de efetivar a responsabilidade do devedor(Haftung), mas se o sujeito passivo solve espontaneamente, o outro é protegido pelasoluti retentio, que não dá origem à obrigação, porém consolida o seu efeito.Observando esta conseqüência, não falta quem lhe reconheça um vínculo menos intensoe a caracterize por não poder o credor forçar o devedor a executá-la.58

Não há, por outro lado, confundir a obrigação natural com o dever de consciência.Quem dá uma esmola, e da mesma forma o que solve dívida prescrita, assim procedeporque quer. Mas o fundamento difere, já que a caridade assenta num impulso desolidariedade humana enquanto que a solução de uma dívida prescrita pressupõe aexistência anterior de um débito, que não podia ser exigido pelo credor, mas que nempor isso deixava de ter corpo. Forçoso é, pois, reconhecer a impropriedade de expressão,na doutrina e na jurisprudência, em referência a casos típicos de dever de consciência,como se fosse obrigação natural. A sua confusão com o dever moral é antiga, pois járessaltava do pensamento de Pothier, e ainda subsiste até hoje.59

Dentro da sistemática brasileira, o problema da obrigação natural tem sido tratado emtermos objetivos. Dedicando-lhe um dispositivo, o Código de 1916 autorizava,entretanto, admiti-lo como uma tomada de posição, e reconhecimento do efeito retentordo pagamento.60 Compreendendo que tanto em Direito Romano quanto em DireitoCivil debate-se a equiparação da dívida prescrita à obrigação natural, o inciso asdestacou, embora as envolva no reconhecimento do mesmo efeito (soluti retentio).Trata-se, contudo, de uma figura inconfundível com o dever moral, e que as suas linhasetiológicas análogas à configuração das obrigações imperfeitas da técnica alemã: é umaobrigação sem sanção e sem ação, um verdadeiro crédito, apenas despido de execuçãoforçada.61

Não minudenciou as hipóteses de obrigação natural, permitindo assim que a doutrinaaponte os casos reconhecidos como tais. O mais freqüentemente lembrado é a dívida dejogo, que não obriga a pagamento; mas, efetuado este, não pode o solvente recobrar oque voluntariamente pagou, salvo dolo, ou se o perdente for menor ou interdito. Adívida não é acompanhada do poder de garantia, mas dela toma conhecimento a lei, tão-somente para proteger o credor contra a repetição de pagamento, assegurando-lhe asoluti retentio. Outro caso, previsto no art. 1.262 do Código Civil de 1916 era o depagamento de juros não convencionados. De acordo com o antigo diploma, os juros deempréstimos de dinheiro ou de coisas fungíveis não eram devidos se não fossemexpressamente fixados; mas se o mutuário pagasse os não estipulados, era impedido dereavê-los ou imputá-los no capital; a obrigação pelos interesses era inexigível, mas ocumprimento era protegido pela retenção de pagamento.

Conforme dispõe o art. 591 do Código Civil de 2002, quaisquer contratos de mútuodestinados a fins econômicos presumem-se onerosos, ficando a taxa de juroscompensatórios limitados aos disposto no art. 406, com capitalização anual.

Há ainda outras hipóteses, bastante discutidas, como a que se refere à indagação se aobrigação nula se converte em natural no mesmo instante em que morre; outra é se háobrigação natural no cumprimento de legado, instituído em testamento nulo ou nasubsistência da adoção sem ato autêntico.62

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O nosso Anteprojeto de Código de Obrigações, inspirado em razões de ordem prática,preferiu não aludir à obligatio naturalis. Quando reconhece validade ao pagamentoespontâneo, negando repetição ao solvens nos casos em que falta o ligamento protetor,alude a obrigações judicialmente inexigíveis (art. 907).

E o Projeto revisto pela Comissão, e encaminhado ao Congresso Nacional de 1965,aceitou a nossa orientação (Projeto, art. 894), conforme salientamos no Relatório, que éa sua Exposição de Motivos. O de 1975 seguiu a nossa orientação (Projeto 634-B). OCódigo Civil de 2002, por fim, consagrou esta posição.

130. Fontes da obrigação

A variedade de tratamento desta matéria nos diversos sistemas legislativos reflete asmúltiplas concepções doutrinárias. Na verdade, a classificação das fontes geradoras deobrigações (tomado o vocábulo fonte não no sentido de título, como algumas vezes éusado, porém, no de elemento gerador ou causa, tal qual faziam os romanos, ou no defato que lhe dá nascimento, como preferem Mazeaud e Mazeaud) encontra entre osautores a maior divergência. Alguns, e aqui ficamos somente com os nacionais, indicamseis (Clóvis Beviláqua), enquanto outros as reduzam a uma única (Tito Fulgêncio). Nãoobstante campear controvérsia, o assunto deve ser tratado em termos da maior singeleza.Uma ligeira incursão pelo Direito romano auxilia o entendimento. Depois que se aceitouo poder jurígeno da vontade, os textos mencionam que a obrigação vel ex contractunascitur, vel ex delicto,63 significando a dualidade de origens: ou deriva do acordo devontade ou do ato ilícito.

Este esquema, se traz o mérito da simplicidade, não dilucida analiticamente todos osseus aspectos, especialmente se se levar em conta que nem todo acordo de vontades eracontrato. Admitiu-se, então, que poderia ocorrer alguma situação que não fossenitidamente contratual, porém merecedora de tratamento análogo à contratual, ou que seapresentasse como se fosse um contrato (quasi ex contractu). Por uma simetria detratamento, entendeu-se útil admitir também que outras causas poderiam mencionar-seanálogas ao delito, já que situações ocorriam em que não havia as figuras precisasdelituais, porém suscetíveis de tratamento como se de delito se tratasse (quasi exdelicto). Daí lermos na codificação justinianéia a quádrupla: obligationes aut excontractu sunt aut quasi ex contractu, aut ex maleficio, aut quasi ex maleficio.64 A umatal distribuição aludiu Gaio em sua obra, a que se reporta o Digesto, acrescentando umaoutra hipótese, mais vaga, imprecisa e geral, e sentenciou: "Obligationes aut excontractu nascuntur aut ex maleficio, aut proprio quondam iure ex varlis causarumfiguris",65 e, assim, a referência compreende as de origem contratual e delitual, comooutras.66

Desta maneira o Direito romano encarou o assunto, e assim o direito moderno o herdou.Através de Pothier, que era essencialmente romanista, o Código Napoleão distribuiu asfontes obrigacionais sob esta mesma orientação, e dali se irradiou pela doutrinafrancesa, permitindo-lhe dizer que a obrigação nasce do contrato e quase-contrato, dodelito e quase-delito. A nomenclatura é bastante eloqüente no apregoar a fonte romana -quasi ex contractu, quasi ex delicto.

O Código francês inspirou outros sistemas, de que convém destacar o italiano de 1865,pela riqueza de sua doutrina; ali, a técnica francesa vigorou, acrescentando-se, porém, às

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quatro fontes uma quinta, a lei, e perdurou até o advento do novo Código, de 1942, cujoart. 1.173 usa linguagem bem mais genérica, quase reminiscente daquela cláusula deGaio, ex variis causarum figuris, quando alude ao contrato, ao fato ilícito e a "qualqueroutro ato ou fato idôneo a produzi-lo na conformidade do ordenamento jurídico", o que,aliás, mereceu de Pacchioni o comentário elogioso, no sentido de que o novo Código seinscreveu por aí na corrente moderna da ciência civilista.67

Com efeito, a classificação justinianéia como a gaiana têm sido muito debatidas e jáhoje relegadas. Uns autores ainda conservam preferência pela distribuição analítica, eapontam como fontes: contrato, vontade unilateral, ato ilícito, enriquecimento semcausa e lei;68 outros as reduzem a quatro: ato jurídico, ato ilícito, enriquecimento semcausa e lei.69 Alguns as constringem em limites mais angustos, fazendo ressurgiraquela concepção dualista romana, contrato e ato ilícito, se bem que alguns Códigos,como nota Von Tuhr, acrescentem-lhe o enriquecimento injusto;70 no mesmo campodualista contenta-se alguém com o contrato e a lei.71 Na doutrina alemã predomina amenção de duas fontes obrigacionais, e assim o BGB as considerou: o negócio jurídico,gerador de todas as obrigações voluntárias; e a lei, criadora daquelas derivadas defenômenos jurídicos não contratuais, entre as quais as que provêm do ilícito.72

Quando foi elaborado o Código Civil Brasileiro, havia de se definir por uma destasorientações. Não tendo um artigo, como o 1.173 do novo Código italiano, que contenhaa menção sistemática das fontes geradoras das obrigações, foi preciso atentar para o seusistema, a ver onde se enquadra. De princípio, cancela-se logo a sua inscrição nasistemática napoleônica, pois não encontramos lugar para o contrato, quase-contrato,delito, quase-delito, que Clóvis Beviláqua ainda menciona, acrescentando-lhe a vontadeunilateral e a lei. Com efeito, lugar não existe para aquelas figuras do quase-delito e doquase-contrato, que os nossos escritores do século XIX ainda cultivavam. Mas nãodevemos simplificar o assunto naquela preocupação de síntese do Prof. Tito Fulgêncio,que as reduz apenas à lei.

Remotamente, é verdade, todas as obrigações nascem da lei, pois que é esta a fonteprimária dos direitos; mesmo no campo contratual, não haveria a força jurígena damanifestação volitiva se não fosse o poder obrigatório que a lei lhe reconhece.

Mas, em contraposição, e um outro sentido, toda obrigação envolve um fato humano, jáque a lei define tão-somente a responsabilidade abstrata, e esta não é convertida emobrigação juridicamente exigível, senão quando interfere um procedimento ou umaconduta, uma atuação qualquer do agente, em termos que a lei considera suscetíveis decriar uma relação obrigacional, mediante a instituição de um iuris vinculum. Foicertamente atendendo a essa procedência prática que o novo Código italiano aludiu,além do contrato e do fato ilícito, "qualquer outro ato ou fato idôneo a produzi-lo naconformidade do ordenamento jurídico", onde há bem franca a conjugação da ordemlegal com o fato do homem.73

Atentemos, mais de perto, no assunto. Há obrigações que decorrem exclusivamente dalei, como são os deveres políticos (ser eleitor), ou as determinadas para com o Estado(pagar tributos), ou ainda as pecuniárias na órbita familiar (alimentar os filhos). Mastodos elas não podem inscrever-se como obrigações em sentido técnico estrito, aquiconsiderado. São, antes, deveres jurídicos.

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Considerando, porém, obrigação em sentido preciso, vemos que, em qualquer hipótese,há uma participação do homem, ou um fato humano: assim, o contrato ou a declaraçãounilateral de vontade gera obrigações como emanação do fato volitivo. Também o atoilícito, que não cria direitos para o agente, porém deveres, origina uma obrigação emfunção de um comportamento (mau) do agente. Seja, pois, no campo do lícito, seja doilícito, há sempre a participação do fato humano na etiologia da obligatio.

Diante destas considerações, podemos mencionar duas fontes obrigacionais, tendo emvista a preponderância de um ou de outro fator: uma, em que a força geratriz imediata éa vontade; outra, em que é a lei. Não seria certo dizer que existem obrigações quenascem somente da lei, nem que as há oriundas só da vontade. Em ambas trabalha o fatohumano, em ambas atua o ordenamento jurídico, e, se de nada valeria a emissão volitivasem a lei, também de nada importaria esta sem uma participação humana, para a criaçãodo vínculo obrigacional. Quando, pois, nos referimos à lei como fonte, pretendemosmencionar aquelas a que o reus debendi é subordinado, independentemente de haver,neste sentido, feito uma declaração de vontade: são obrigações em que procede a lei, emconjugação com o fato humano, porém fato humano não volitivo. Quando, ao revés,falamos na vontade como fonte, e discorremos de obrigações que provêm da vontade,não queremos significar a soberania desta ou sua independência da ordem legal, senãoque há obrigações, em que o vínculo jurídico busca mediatamente sua explicação na lei,nas quais, entretanto, a razão próxima, imediata ou direta é a declaração de vontade.

Dizemos, pois, haver duas fontes para as obrigações. A primeira é a vontade humana,que as cria espontaneamente, por uma ação ou omissão oriunda do querer do agente,efetuado na conformidade do ordenamento jurídico. A segunda é a lei, que estabeleceobrigação para o indivíduo, em face de comportamento seu, independentemente demanifestação volitiva.

O art. 1º do Anteprojeto de Código de Obrigações fez profissão de fé dualista, aosalientar que a obrigação resulta da declaração de vontade, e bem assim de fatos que alei erige em fontes geradoras, doutrina que prevaleceu em nosso Projeto (art. 1º), e veiofixada no nosso Relatório, que o precedeu.

Não podemos encerrar este parágrafo sobre as fontes das obrigações sem uma palavrade referência à sentença, que vem ultimamente indicada como fonte obrigacional.Numerosos escritores a isto não aludem (Demogue, Salvat, Enneccerus, Washington deBarros Monteiro). Mencionam-na outros, para exumar do pó dos séculos a enterradaactio iudicati. Não nos parece mereça as honras de um debate o problema, já que, emlinha de singelo raciocínio, a sentença promove a declaração ou reconhecimento de umasituação jurídica. É a esta que a obrigação se prende, ainda que aparentemente se arrimeà sentença, como no caso da ação de recuperação de título ao portador, no qual odebitum parece vincular-se à palavra jurisdicional. Mera aparência, contudo, pois que asentença, como em outra hipótese qualquer, não cria a relação obrigacional. Esta lheantecede sempre.74

Não vemos, pois, razão para modificar a nossa concepção dualista, acima exposta.

131. Obrigação propriamente dita. Obrigação real. Obrigação propter rem

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Embora sem descermos às minúcias que as controvérsias a respeito têm suscitado,porém, cogitando apenas de mencionar as várias categorias dos direitos subjetivos,aludimos no nº 7, supra (vol. I), aos direitos reais (iura in re), em contraposição aosdireitos obrigacionais ou de crédito, impropriamente denominados direitos pessoais.

Aqui voltamos ao assunto, a fim de extremarmos, respectivamente, as obrigações reaise as obrigações propriamente ditas, que impropriamente são chamadas às vezesobrigações pessoais.

Intrincada questão, a daquelas categorias de direitos, não permite que se ponham deacordo os doutores. E os há em todas as direções. Uns, como Demogue, negam umadiferenciação fundamental entre direitos de crédito e direitos reais, afirmando ser umasó a natureza de todos os direitos, os quais se distinguem apenas pela intensidade(direitos fracos e direitos fortes), ou, como Thon e Schlossman, entendem que adiversificação é artificial, de vez que não existem propriamente direitos reais, os quaisnão passam de um processo técnico utilizado pelo direito positivo ao instituir certasrestrições de conduta em benefício de determinada pessoa. Outros, vinculados àcorrente clássica (Vittorio Polacco), enxergam nos direitos reais uma relação desubordinação da coisa mesma ao seu titular, com o que traduzem o assenhoreamento oudominação, sem intermediários entre a primeira e o segundo, como diz OrosimboNonato.75 Alguns, como Windscheid e Marcel Planiol, situam a diferenciaçãorespectiva na noção de relatividade dos direitos de créditos e absolutismo dos direitosreais.

Aproximando-nos da teoria personalista, situamos o elemento diferencial nacaracterização do sujeito passivo: o direito de crédito implica uma relação que seestabelece entre um sujeito ativo e um sujeito passivo, criando a faculdade para aquelede exigir deste uma prestação positiva ou negativa; noutros termos, o direito de créditopermite ao sujeito ativo exigir especificamente uma prestação de determinada pessoa.Ao revés, o direito real, com um sujeito ativo determinado, tem por sujeito passivo ageneralidade anônima dos indivíduos. A situação jurídico-creditória é oponível a umdevedor, a situação jurídico-real é oponível erga omnes. O direito de crédito realiza-semediante a exigibilidade de um fato, a que o devedor é obrigado; o direito real efetiva-se mediante a imposição de uma abstenção, a que todos se subordinam. O objeto darelação creditória é um fato; o da relação real, uma coisa.

Ao extremar as obrigações, como ora convém, naturalmente verificamos que as mesmasdúvidas ressurgem. Uns, como Teixeira de Freitas, não querem que haja obrigaçõesreais. Este nosso eminente civilista critica acremente o Código francês, justamente coma doutrina que admite as obrigações reais, que são a seu ver fruto de uma desordem deidéias; já que declara peremptoriamente que não há obrigação que corresponda aosdireitos reais.76 Outros, como Rigaud, aceitam a apuração específica de prestaçãodeterminada em algumas obrigações reais, e admitem a figura da obrigação real infaciendo.77

Definindo-os, aceitamos a existência da obrigação correlata do ius in re, de igual que háuma obligatio co-respectiva do ius in personam. Partindo, pois, da idéia de que ius etobligatio correlata sunt, forçoso é, na verdade, reconhecer que ao direito de crédito,aquele direito que tem por objeto uma prestação em espécie, um dare ou um facere,positivo ou negativo, corresponde a obrigação stricto sensu ou obrigação propriamente

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dita. Ao outro, ao direito real, que se caracteriza por um dever negativo de todos paracom o sujeito, ou se desenha num pati, corresponde uma obligatio que se insere nodever de todos, mas que, nem por isto, deixa de ser de cada um, de respeito àsfaculdades do sujeito. É neste sentido, precisamente, que aceitamos a distinção que aepígrafe deste parágrafo enuncia.

Entre os juristas medievais, notadamente os canonistas (conforme assinala Rigaud),medrou uma terceira categoria, a da chamada obligatio propter rem, que não era umaobligatio, e nem ius in re. Sua origem foi mais uma preocupação de simetria, ao criar-sea correspondência entre o ius ad rem e a obligatio ob rem.

Desenvolveu-se a planta nova com os pós-glosadores, estendeu-se até os modernos, e,quando, no século XIX, generalizou-se o gosto pelos estudos sistematizados, reapareceentre os escritores que assentam suas obras no Código Napoleão (não obstante esteCódigo não a haver perfilhado), tanto nos comentaristas quanto nos expositoressistemáticos (Zacchariae, Toulier, Demolombe, Aubry e Rau). E veio a eclodir emnosso direito também, onde a versaram San Tiago Dantas, Orosimbo Nonato, SerpaLopes, Espínola, Tito Fulgêncio, Sá Pereira, Filadelfo Azevedo, Lacerda de Almeida,tomando, contudo, posições diversas. Enquanto uns, como Tito Fulgêncio, reduzem aobrigações stricto sensu os casos de obrigações propter rem lembradas pelos outros,San Tiago Dantas as caracteriza como figura transacional de direitos reais atípicos, eoutros, como Serpa Lopes, lhe apontam, como traço característico, sua vinculação a umdireito real, do qual decorrem.

Sem penetrarmos nas disputas de escolas, situamos a obligatio propter rem no plano deuma obrigação acessória mista. Quando a um direito real acede uma faculdade dereclamar prestações certas de uma pessoa determinada, surge para esta a chamadaobrigação propter rem. É fácil em tese, mas às vezes difícil naquelas espécies quecompõem a zona fronteiriça, precisar o seu tipo. Se se trata, puramente, de exigirprestação em espécie, com caráter autônomo, o direito é creditório, e a obrigaçãocorrelata o é stricto sensu; se a relação traduz um dever geral negativo, é um ius in re, ea obrigação de cada um, no puro sentido de abster-se de molestar o sujeito, podeapelidar-se de obrigação real.

Mas, se há uma relação jurídico-real, em que se insere, adjeto à faculdade de não sermolestado, o direito a uma prestação específica, este direito pode dizer-se ad rem, e aobrigação correspondente é propter rem.

Não falta quem lhe pretenda atribuir autonomia. Mas parece-nos em vão, pois que odireito que visa a uma prestação certa é de crédito, e a obrigação respectiva é estrita. Aobligatio propter rem somente encorpa-se quando é acessória a uma relação jurídico-real ou se objetiva numa prestação devida ao titular do direito real, nesta qualidade(ambulat cum domino). E o equívoco dos que pretendem definir a obrigação propterrem como pessoal é o mesmo dos que lhe negam a existência, absorvendo-a na real. Elaé uma obrigação de caráter misto, pelo fato de ter como a obligatio in personam objetoconsistente em uma prestação específica; e como a obligatio in re estar sempreincrustada no direito real.78

Capítulo XXVI - Classificação das Obrigações Quanto ao Objeto: Positivas eNegativas

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Sumário: 132. Classificação das obrigações em geral. 133. Obrigaçõesde dar e de restituir coisa certa. 134. Obrigação de dar coisa incerta. 135.Obrigação de fazer. 136. Obrigação de não fazer.

Bibliografia: Clóvis Beviláquia, Obrigações, cap. III; Tito Fulgêncio,Do Direito das Obrigações (atualizada por Aguiar Dias), nºs 37 e segs.,Orosimbo Nonato, Curso de Obrigações, I, págs. 207 e segs.,Washington de Barros Monteiro, Curso, IV, págs. 55 e segs.; Ruggiero eMaroi, Istituizioni di Diritto Privato, II, § 126; Giorgio Giorgi, Teoriadelle Obbligazioni, I, nºs 225 e segs.; Serpa Lopes, Curso, II, nºs 28 esegs.; De Page, Traité Élémentaire, II, nºs 439 e segs.; M. I. Carvalho deMendonça, Doutrina e Prática das Obrigações (atualizada por AguiarDias), nºs 45 e segs.; Andreas von Tuhr, Obligaciones, I, págs. 33 e segs.;Alfredo Colmo, De las Obligaciones en General, nºs 47 e segs., Scutu,Obbligazioni, nºs 35 e segs.

132. Classificação das obrigações em geral

Há sempre uma necessidade de classificar, reduzindo a categorias lógicas o que aelaboração quotidiana produz de maneira vaga e indeterminada.

As obrigações, que o comércio social engendra, são numerosas, e se têm definidoatravés dos tempos de modo vário. Algumas das modalidades ainda hoje freqüentesforam criadas e ordenadas pelos romanos; outras de elaboração ulterior, e outras aindade criação mais recente. Mas todas elas utilizadas diuturnamente. Há, mesmo, umaobservação que se pode fazer em abono da imaginação criadora da dogmática romana: éque, em plena atualidade, as figuras obrigacionais em vigor, na sua sede de disciplina,procuram inspiração no Direito romano, verificando-se poucas inovações em seuscontornos, muito embora a complexidade da vida moderna seja notória em todos ossentidos, e o desenvolvimento dos negócios sujeitos à influência das idéiascontemporâneas.

Sem embargo da variedade de situações, podem as obrigações ser classificadas em trêsgrupos maiores. É evidente que as linhas fundamentais são uniformes, pois que delas éque promana a noção obrigacional comum. É certo, também, que as diversas categoriasse interpenetram e entrecruzam, de sorte que uns tipos interferem em outros,diversificando-se pelas minudências de estruturação.

Mas é irrecusável o interesse da classificação. Reduzindo-se todas as modalidades detipo obrigacionais a uns poucos grupos, consegue-se ter à mão, para qualquereventualidade, jogos de princípios que simplificam a solução das questões em torno decada uma.

Não tem, pois, sentido de pura abstração este trabalho classificador. Muito ao revés, háum indisfarçável conteúdo prático na sua base: quem tem de enfrentar um problema noarraial da obrigação deverá logo distinguir o tipo a que esta pertence, enquadrá-la emuma categoria conhecida, e aí encontrará os preceitos aplicáveis à espécie.

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No direito brasileiro, a classificação das categorias obrigacionais não é mera elaboraçãoda doutrina, já que o Código Civil a perfilhou, e instituiu a sua normação em razão dasclasses ou dos grupos a que as reduziu. De maneira geral, a distribuição das obrigaçõespor seções obedece a duas influências essenciais. Em primeiro lugar, atenta-se para aprestação, e daí provém a classificação objetiva. Quando se diferencia a obrigação dedar da de fazer, tem-se em vista a qualidade da prestação. Esta distinção, aliás, temrecebido crítica de alguns obrigacionistas que preferem colocar o problema em outrostermos, dizendo melhor destacá-las, quando objetivamente consideradas, em positivas enegativas, já que as primeiras, quer tenham por objeto um dare, quer um facere,contemplam prestações de rumo direcional idêntico, contraponíveis às segundas,negativas, que envolvem uma abstenção, ou um non facere.1 Não obstante os reparos aoseu conteúdo científico, conservamos aqui estas categorias ou figuras de obrigaçõesseparadamente, um tanto por haver a lei guardado fidelidade a tais distinções herdadasdo Direito romano, como ainda por conservar em nosso direito perfeita extremaçãotemática a obligatio dandi da obligatio faciendi, à vista de guardar ele a mesmasistemática romana, recusando efeito translatício do domínio ao contrato, diretamente,em contraposição à orientação francesa e italiana. E, se é certo que em toda obrigaçãode dar há um facere,2 é certo também que pelo nosso direito alguns efeitos específicossão destacados em uma e outra. Enquanto, pois, conservarmos esse sistema em direitopositivo, é necessário manter a diferenciação como doutrina.

O que se precisa observar, já que adotamos esta diferenciação tradicional, é que nemsempre é fácil distinguir a obrigação de dar da de fazer, e assim procedeu VittorioPolacco, como entre nós Tito Fulgêncio. Os casos extremos não padecem dúvida, poisque uma envolve uma traditio ou entrega, e outra uma ação pura. Mas numa zona gríseaexistem prestações que reclamam acurada atenção, como, no exemplo clássico, o casodo artesão que manufatura a coisa para o credor, ou, em termos de direito positivobrasileiro, a empreitada, em que existe o facere no ato de confeccionar e um dare no deentregar a coisa elaborada, sendo ambos os momentos integrantes da prestação. Masserá faciendi a obrigação, quando a operação de entregar pressupõe o facere, ou, nanomenclatura de Von Tuhr3 analogicamente aplicável, embora com uma terminologiaque pode gerar confusões, de um lado há uma "obrigação de prestação real", porque vaiter na retirada de uma coisa do patrimônio do devedor, e, de outro lado a "obrigação deprestação pessoal", que se realiza pondo o reus debendi as suas energias físicas oumentais como objeto.

O segundo ramo da classificação está na sua distribuição subordinada a um critériosubjetivo, estabelecendo-se, pois, agrupamentos tendo em vista os sujeitos da relaçãocriada, a forma como suportam ou recebem o impacto do vínculo. Quando se mencionaa obrigação solidária ou quando se extrema a divisível da indivisível, não se perde devista o objeto, mas atende-se à maneira de desenvolvimento da relação obrigacional, emfunção dos sujeitos.

Além dos elementos essenciais da obrigação, que destarte criam classificaçõespeculiares, caberá ainda admitir a extremação de obrigações quanto a fatores acidentais,como seriam as modalidades que assumem (obrigações condicionais ou a termo), ou avariedade da prestação para o credor ou o devedor (alternativas) ou ainda uma emrelação às outras (principais e acessórias) etc.

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Atendendo, então, à necessidade de uma boa exposição sistemática, trataremos dasclassificações das obrigações em três capítulos.

Neste primeiro, cuidaremos das obrigações sob o aspecto positivo ou negativo daprestação, ou classificação das obrigações quanto ao seu objeto. Nos dois subseqüentes,faremos a sua exposição em relação ao sujeito e quanto a elementos acidentais,respectivamente.

Sem lhe dedicar um parágrafo especial, não podemos omitir uma classificação quemodernamente procura contrastar as obrigações de meio das obrigações de resultado,critério este que é devido a Demogue4 tendo em vista a definição das responsabilidadesdo devedor, que ele imaginou em função de certa analogia com os delitos formais e osdelitos materiais. Nas obrigações de resultado, a execução considera-se atingida quandoo devedor cumpre o objetivo final; nas de meio, a inexecução caracteriza-se pelo desviode certa conduta ou omissão de certas precauções, a que alguém se comprometeu, semse cogitar do resultado final. Não se trata, portanto, senão de agrupar obrigaçõestradicionalmente classificadas em certos planos, à vista do problema da apuração daresponsabilidade civil. E, se neste particular tem utilidade, como encarecem os irmãosMazeaud, razão não vemos para se construir uma classificação genérica sobre esta base.

Não cogitamos de uma classificação geral das obrigações em civis e comerciais, porquenão acreditamos na existência de obrigação que seja ontologicamente civil emdiversidade de outra que o seja mercantil. Uma obrigação alternativa, por exemplo,assim deve entender-se, e ser tratada como alternativa, independentemente de ser civilou comercial. E, se há peculiaridades observáveis, como no reforço da solidariedade emmatéria comercial, nem por isto existe uma separação categórica ou estrutural. O quealguns apontam como fatores particulares das obrigações mercantis, e pelos quais têmpretendido distingui-las das civis, não passa de minúcias que permanecem à superfíciede uma noção, sem contudo penetrar na sua essência.5

Embora seja aceita a persistência de institutos puramente mercantis (v. nº 4, no vol. I),na unidade orgânica do direito obrigacional sobressai a declaração da uniformidadeontológica da obrigação, que já invadiu o campo legislativo com o Código FederalSuíço das Obrigações e o Código Civil Italiano de 1942, e entre nós com o Anteprojetode Código de Obrigações, que elaboramos, difundido em 1964. O Projeto enviado aoCongresso em 1965 obedeceu a esta orientação, e o de 1975 seguiu a nossa orientação.

133. Obrigações de dar e de restituir coisa certa

Entre obrigações positivas, cuida-se, em primeiro plano, das obrigações de dar, queocupam praça relevante e são de freqüente incidência na vida de todos os dias.Consistem na entrega de uma coisa, seja a tradição realizada pelo devedor ao credor emfase de execução, seja a tradição constitutiva de direito, seja a restituição de coisa alheiaa seu dono. Com efeito, obligatio dandi está presente, e os escritores o repetem, comomeio técnico de constituir direito real (exempli gratia, penhor), como para a perfeiçãode um contrato real (exempli gratia, mútuo), como ainda na transferência de posse paracriar faculdade de uso (exempli gratia, locação), como também na execução doscontratos translatícios de domínio (exempli gratia, compra e venda), já que pelo nossodireito somente se efetiva a transferência inter vivos da propriedade como a tradição dacoisa móvel ou a inscrição da imóvel (equiparável esta última a uma tradição solene).

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Na sua modalidade de restituição, ocorre a obrigação de dar em todos os casos em que odetentor deve recambiar ao dono a coisa móvel ou imóvel, temporariamente em seupoder, como se dá na devolução da coisa locada pelo locatário; da coisa apenhada pelocredor pignoratício etc.

Abrindo o Título das Modalidades das Obrigações, o Código põe no primeiro plano, talcomo se dava com o Código Civil de 1916, a obrigação de dar coisa certa. Esta secaracteriza por gênero, qualidade e quantidade. É o exemplo típico da obrigaçãopositiva. Giorgi ensina ser a determinada, o certum corpus distinto das outras coisas edos outros indivíduos, e que se diferencia da coisa incerta ou da dívida de gênero, emque falta a menção dos caracteres individuais, restando apenas a determinabilidade pelogênero e pela quantidade.6

O princípio cardeal das obligationes dandi (Código Civil de 2002, art. 313)7 é o daidentidade da coisa devida: o devedor não se desobriga com a entrega de coisa diversa,ainda que seja mais valiosa, porque o credor não é obrigado a recebê-la. O enunciado doart. 313 do Código Civil brasileiro evita dúvidas. Este princípio, que, segundo observaTito Fulgêncio, se assemelha à regra do art. 242 do BGB, é uma disposição de valoressencialmente objetivo, a indicar que toda obrigação deve ser estritamente cumprida,qualquer que seja a sua natureza e a sua fonte.8 E nem o infirma reconhecer e regular alei o instituto da dação em pagamento, porque (e a observação já foi feita por Carvalhode Mendonça, civilista) na datio in solutum é a vontade das partes que substitui o objetoda obrigação e altera a convenção anterior.9 Ou seja, se na dação em pagamento asolução consiste em dar uma coisa por outra (aluid pro alio), tal somente é lícitomediante o acordo do credor.10 Fora daí, prevalece o princípio da identidade da resdebita. Como acessorium sequitur principale, na prestação de dar coisa certa estãoabrangidos os seus acessórios, independentemente de se acharem mencionados nocontexto. A regra não é, contudo, absoluta. Podem ser excluídas expressamente, ou dascircunstâncias do caso resultar a sua não-inclusão. Se a obrigação é de restituir, maispositivamente se afirma a regra de que o credor não pode ser compelido a receber aliudpro alio, isto é, uma coisa no lugar da outra.

O Código faz referência à tradição, como elemento determinante de normasdisciplinares das obrigações de dar. Estas se executam pela tradição, que, pelo DireitoBrasileiro, dá origem ao direito real (ius in re). Ao contrário de outros sistemas, o nossomantém a prevalência romana. Naquele Direito era assente que a propriedade não setransferia pelo contrato, porém pela tradição e usucapião: traditionibus et usucapionibusnon nudis pactis domini rerum transferuntur. Também no Direito Brasileiro, apropriedade não se transfere pelo contrato, exigindo-se a tradição para as coisas móveise a inscrição do título no Registro, para as imóveis. A tradição consiste na entrega dacoisa. E se diz tradição real, quando se realiza materialmente; ou simbólica ou ficta,quando a coisa não passa de mão a mão (de manu in manum), porém é representada poralgo que a simbolize ou se presume.

O que maior atenção merece neste tipo obrigacional é a teoria dos riscos. Chama-se"risco" aquilo a que a coisa se acha exposta de deterioração e perda. O credor de coisacerta não é obrigado a recebê-la deteriorada. Assegura-lhe a lei a alternativa de resolvera obrigação pura e simplesmente; ou, se mesmo assim ela lhe for prestadia, poderárecebê-la no estado em que se acha. A perda ou deteriorização da coisa devida suscitaum rol de princípios, que variam de um para outro caso, conforme esteja o devedor de

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boa ou de má-fé, ou, mais exatamente, conforme tenha ou não concorrido para o danoou o perecimento, com a sua malícia ou negligência. Estando o devedor de boa-fé,poderá reclamar seja abatido ao seu preço, quantia correspondente ao que perdeu com adeterioração. Se for o devedor culpado, subsiste alternativa, entre o recebimento noestado e o equivalente pecuniário, porém agravado com o ressarcimento das perdas edanos. O conceito de perda, para o direito, é lato, e tanto abrange o seu desaparecimentototal (interitus rei), quanto ainda o deixar de ter as suas qualidades essenciais, ou detornar indisponível, ou situar-se em lugar que se tornou inatingível, ou ainda deconfundir-se com outra.11 Logo, as regras devem ter em vista a deterioraçãoponderável, não sendo curial a rejeição da coisa por danificação insignificante. Aapreciação da ressalva é de se fazer em face das circunstâncias.

O art. 234 do Código Civil de 200212 tem em vista a obrigação de coisa certa (certumcorpus). A tradição da coisa móvel é que importa transmissão da propriedade (art.1.267). Sendo imóvel, com a inscrição do título no Registro Imobiliário (art. 1.283). Atéentão, ela pertence ao devedor (art. 237), que suporta todos os riscos a que esteja sujeita.

Perdendo-se, pois, a coisa antes da tradição, ou pendente condição suspensiva,13 torna-se impossível a execução em espécie: se não houver culpa do devedor, resolve-se aobrigação, sem que qualquer das partes deva nada à outra; mas, se houver ele agidoculposamente, responderá pelo equivalente da coisa perdida e indenizará ainda as perdase danos resultantes. Somente a boa-fé absolve o devedor. Em se perdendo por culpadeste, estará sujeito a transferir ao credor o equivalente pecuniário dela, correspondentea uma coisa do mesmo valor, salvo se se tratar de obrigação facultativa. O credor temdireito a uma quantia equivalente. E, ainda, deve-lhe o devedor ressarcir-lhe as perdas edanos, segundo o disposto no art. 402 do Código Civil de 2002. Este equivalente que olegislador pátrio menciona, como faz também o francês, há de ser a sua estimativapecuniária, e não a substituição da res debita por outra semelhante, pois que o dinheiroé a moeda universal das sub-rogações, e as coisas certas nunca têm equivalente precisoem outras coisas.14 A isto é de acrescentar-se que a regra aliud pro alio invito creditorisolvi non potest é dúplice: se o credor não pode ser obrigado a receber coisa diversa dadevida, ainda que mais valiosa, o devedor também não pode ser compelido a entregarobjeto diferente, ainda que de menor preço.15

Sendo de restituir a obrigação, vigoram os mesmos princípios, já que o perecimento semculpa aniquila o vínculo por falta do objeto (res perit domino); ocorrendo culpa, odevedor é sujeito a pagar o equivalente pecuniário da coisa extinta e mais perdas edanos (Código Civil de 2002, arts. 238 e 239).16

Se, em vez de perda, houver deterioração, sofre-a igualmente o credor. A conseqüênciavaria conforme esteja o devedor de boa ou má-fé. Pela deterioração sem culpa, abre-seao credor uma alternativa, de considerar resolvida a obrigação, pois que não pode sercompelido a receber coisa deteriorada ou diferente da devida; ou aceitá-la no estado emque se acha, com abatimento de parte do preço correspondente ao valor que perdeu coma danificação. Deteriorando-se por culpa do devedor, poderá o credor exigir o seuequivalente em dinheiro ou aceitá-la no estado em que se acha, com direito ainda areclamar a composição das perdas e danos. Acrescenta a doutrina que há de serponderável a deterioração, pois não seria curial pudesse enjeitá-la o credor por umadanificação de pouca monta.17

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Sendo de restituir a obrigação, a deterioração sem culpa importa apenas em ser obrigadoo credor a receber a coisa no estado em que se acha, já que não é possível, dada aprópria natureza da obrigação, admitir-se a alternativa instituída para evento idêntico naobligatio dandi. Se, porém, houver, o devedor procedido culposamente, poderá o credorexigir o equivalente da coisa danificada ou recebê-la, mesmo deteriorada, embolsandoainda, num ou noutro caso, a indenização por perdas e danos.

Em vez de deterioração, pode a coisa receber melhoramentos e acréscimos, antes datradição ou restituição. Se tal acontecer, e a obrigação for de dar, tem o devedor, utdominus, direito a exigir aumento de preço, correspondente aos melhoramentos eacrescidos. Se o credor não anuir, fica o devedor com a faculdade de resolver aobrigação (Código Civil de 2002, art. 237 18). Seria, contudo, incentivo à má-fé se aregra legal fosse levada às últimas conseqüências e por ela o devedor pudesse furtar-seao cumprimento da obrigação, sob fundamento de que melhorou a coisa após o contrato.Daí haver Alfredo Colmo procedentemente intercalado em regra análoga do Códigoargentino uma cláusula e dito que o preceito se aplica quando ocorre melhoria nãoarbitrária em relação ao devedor ou quando este faz despesas necessárias ou deconservação da coisa,19 acrescentando Orosimbo Nonato que a aplicação desta regradeve merecer exame atento e acurado do juiz, em todo caso de acessão artificial.20Noutros termos, deve discernir-se a boa ou má-fé do devedor ao realizar omelhoramento ou dispêndio, para se lhe reconhecer direito ao ressarcimento tão-somente no primeiro caso.21 O nosso Projeto de Código de Obrigações aceitou estadoutrina no art. 96, e aditava ao princípio o direito do devedor às benfeitoriasnecessárias, que são despesas na coisa, com a finalidade de conservá-la.

Sendo de restituir, o credor lucra o incremento, sem a obrigação de pagar qualquerindenização, no caso do aumento, ou a melhoria de se ter verificado sem trabalho oudispêndio do devedor. Se este houver realizado, é indenizável, aplicando-se as normasdisciplinares das benfeitorias necessárias, úteis ou voluptuárias,22 já expostas no nº 74,supra (vol. I).

Se a coisa é frugífera, cabem ao devedor os frutos percebidos até o momento da tradiçãoe ao credor os pendentes, estando aquele de boa-fé. Na de restituir, aplicam-se osprincípios disciplinadores do direito aos frutos (nº 74, supra, vol. I). Ao credor devemcaber os frutos colhidos com antecipação, bem como a indenização pelos que deixou odevedor de perceber desde que se tornou de má-fé.

O problema ligado aos efeitos da obligatio dandi é de solução variável em razão dadiversidade conceitual dominante em um ou outro sistema jurídico. Reportando-nos aoDireito romano, ali vemos que trationibus et usucapionibus non nudis pactis dominiarerum transferuntur, o que vem em vernáculo significa não ser possível a transmissãodominial das coisas solo consensu. No direito moderno, duas correntes de idéiasinformam as legislações. De um lado a tradição romana, vigente no sistema brasileiro,como no alemão, segundo a qual a propriedade se não transfere pelo contrato, porémexige, além deste, a tradição para as coisas móveis, ou a inscrição para as imóveis. Deoutro lado a sistemática francesa, a que se prendem outros códigos, mesmo modernoscomo o italiano de 1942, atribuindo ao contrato o efeito translatício do domínio.

Para o Direito brasileiro, portanto, a obrigação de dar executa-se pela traditio, esomente com esta nasce o ius in re, distinguindo-se portanto o direito real do ius ad

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rem, originário diretamente do contrato. No sistema francês há uma simplificaçãodessas operações, pelo fato de o contrato, por si só, ter o efeito de criar o direito real.23

134. Obrigação de dar coisa incerta

Cogitando dos requisitos objetivos da obrigação, assentamos a determinação ou aomenos a determinabilidade da prestação (v. nº 128, supra). Pode a obrigação recairsobre coisa incerta (dívida de gênero), desde que seja indicada ao menos pelo gênero epela quantidade (Código Civil de 2002, art. 243 24). Não é possível que seja alguémdevedor de coisas genericamente mencionadas, pois que isso tiraria à obligatio todaobjetividade. Mas se as coisas são indicadas pelo gênero e pela quantidade, a obrigaçãoé útil e eficaz, embora falte a individuação da res debita. É que a sua determinação far-se-á por circunstâncias ou elementos de fato, como ainda por outras eventuais,intrínsecas ou extrínsecas.25 O estado de indeterminação é transitório, sob pena defaltar objeto à obrigação. O devedor não pode ser compelido à prestação genérica. Até omomento da execução, o obrigação de gênero deverá converter-se em entrega de coisacerta. Cessará, pois, com a escolha, a qual se verifica e se reputa consumada, tanto nomomento em que o devedor efetiva a entrega real da coisa, como ainda quandodiligencia praticar o necessário à prestação.26

O estado de indeterminação cessa com a escolha. Como a individuação é que caracterizao objeto, e sendo o devedor sujeito à prestação, o Código lhe defere a faculdade deescolher, dentre as do mesmo gênero, aquela a ser entregue, na quantidade estabelecida.O título estabelece a quem compete a escolha. Também esta poderá resultar dascircunstâncias que envolvem a obrigação. No silêncio do primeiro, e na falta deindicação oriunda das outras, cabe ao devedor fazê-la. Em qualquer hipótese, salvoestipulação expressa, a prestação versará objeto que não será o pior nem o melhordentre as coisas de seu gênero. O título poderia especificar um ou outro. No seusilêncio, presume-se que as partes tiveram em vista coisas que se situem no meio termo(Código Civil de 2002, art. 244 27). Nem se diga que o credor presumir-se-ia optandopela melhor, porque, ao constituir-se a obrigação, poderia ter assim fixado a prestação.Cumpre-se, portanto, a obrigação de dar coisa incerta mediante prestação cujo objetoguarde as qualidades médias das coisas de seu gênero. Pelo fato da indeterminação doobjeto se não segue que o devedor possa entregar o pior ou o credor optar pelo melhor,pois a isto se opõe o princípio da boa-fé, que é a alma dos negócios, ainda quando nãoerigido em norma de direito positivo, com fez com a regra Treu und Glauben o BGB e onosso Projeto de Código de Obrigações, art. 23.

Para melhor entendimento da matéria, cumpre ainda alterar que se não confundem aobrigação de dar coisa incerta com a obrigação alternativa, a qual, como serádesenvolvido no nº 144, infra, recai sobre duas coisas, uma das quais é objeto deescolha, enquanto que a obrigação de dar coisa incerta tem por objeto uma só, emboradesignada apenas pelo gênero e pela qualidade, o que sugere a sua especialização.28Assim, enquanto a primeira é obrigação de gênero, aquela versa mais de uma coisaindividuada, liberando-se o devedor mediante a prestação de um delas.

É da maior simplicidade a teoria dos riscos (Código Civil de 2002, art. 246 29), naobrigação de dar coisa incerta, já que a indeterminação é incompatível com adeterioração ou o perecimento: genus nunquam perit. Daí ser vedada ao devedor aalegação de perda ou danificação da coisa, ainda que por força maior ou caso fortuito,

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seja para eximir-se da prestação, seja para compelir o credor a receber espécimesdanificados. Também descabe a escusativa da impossibilidade da prestação enquantosubsiste a possibilidade de ser encontrado um só exemplar da coisa devida, pois só porexceção desapareceria completamente todo um gênero.30 A Teoria dos Riscos naobrigação de dar coisa incerta compreende duas fases distintas. Até que se efetive aescolha, pela notificação ou pela oferta, a obrigação é de gênero, e não versa objetoindividuado. Indicada a coisa apenas pelo gênero, não comporta excusativa deperecimento ou deterioração, pois que o devedor tem de prestar uma coisa, dentro dogênero mencionado. A obrigação subsiste, enquanto houver possibilidade de serencontrado exemplar da res debita, na quantidade estipulada. Só por exceçãodesapareceria todo o gênero. Daí ter o Código Civil de 2002, aditando cláusula aomodelo de 1916, admitido a alegação de perda ou deterioração, se o objeto versargênero restrito, tornando-se inviável e inexequível por falta de coisas da espéciecomponente do gênero devido. Uma vez efetuada a escolha, e só a partir de então, surgeobrigação de dar coisa certa. Neste caso, cabe a excusativa. Mas esta somente éaceitável, se se determina que a perda ou deterioração ocorreu após a escolha.

Feita a escolha, ou pelo credor (quando a este é atribuída no título) ou pelo devedor (nafalta dessa menção), perde a prestação o caráter de indeterminação (que era relativa eprovisória), passando então a considerar-se como de dar coisa certa (Código Civil de2002, art. 245 31). Esta transmutação de categoria ocorre num instante, o da escolha, e acoisa, que indeteriorável e imperecível, por aquele fato se torna suscetível de dano ouperda.32 O momento da escolha pode constar do título. Ou será caracterizadasimultaneamente à execução, com a respectiva entrega. Na falta de outra indicação, ocredor deverá ser notificado da escolha, por via judicial ou extrajudicial. Mas deve estarpositivada de maneira inequívoca, porque é a partir de então que a obrigação de gênerose torna de corpo certo. Modalidade correta consiste na oferta ao credor, porém concretae efetiva, e não puramente simbólica.

135. Obrigação de fazer

O outro tipo de obrigação positiva é a de fazer, que se concretiza genericamente em umato do devedor. Muito freqüentemente a obligatio faciendi reduz-se a uma prestação detrabalho (Clóvis Beviláqua). Mas não sempre, pois às vezes a res debita não é o esforçomaterial por que se executa, porém uma operação complexa. É obrigação de fazeraquela que tem por objeto o podar as árvores de um pomar, de realização singela eexecução material, por um esforço físico. Mas é também obligatio faciendi a promessade contratar, cuja prestação não consiste apenas em apor a firma em um instrumento;seu objeto é a realização de um negócio jurídico, a conclusão de um contrato (Savigny),em toda a sua complexidade, e com todos os seus efeitos.

A obrigação de fazer pode constituir-se intuitu personae debitor, levando em conta ascondições pessoais do devedor, seja por se tratar de um técnico, seja por ser ele titularde qualidades reputadas essenciais para o negócio e neste caso ela se diz"personalíssima". São inúmeros os casos desta espécie. Quando alguém encomenda umquadro a um artista de nomeada, não pretende adquirir uma tela qualquer, mas otrabalho executado por aquele artista, cujo nome, prestígio e valor pessoal foramparticularmente ponderados. Se, pois, foi convencionado que só o devedor execute aprestação, não é o credor obrigado a aceitá-la de terceiro. É o que se denominaobrigação de prestação infungível, transpondo-se a idéia de fungibilidade, que é própria

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das coisas, para o plano obrigacional. Pode, ao revés, admitir-se que o objetivo docredor tenha sido obter a prestação em si, sem qualquer consideração quanto àsqualidades pessoais do devedor, e, nesse caso, a obrigação cumpre-se desde que este,por si ou por outrem, realize o ato a que se obrigara.33 O exame das normas autorizaafirmar que a regra é a fungibilidade da prestação, e a infungibilidade a exceção, queocorre quando o título o estabeleça, ou se induza das circunstâncias. Normalmente, ocredor visa à prestação em si mesma. O Código Civil de 1916, no art. 878, era claroquando dizia que o credor não era obrigado a aceitar de terceiro a prestação, "quandofor convencionado que o devedor a faça pessoalmente". Isto permite a todas as luzesuma interpretação a contrário: que, não havendo tal ajuste, há de contentar-se o reuscredendi com a prestação executada anonimamente. Mas não é imune à observação deque a regra deve ser dilatada à vista dos bons princípios, para todos os casos em que nãohavendo embora convenção expressa, permitam as circunstâncias inferir apersonalidade da prestação. Eis por que Orosimbo Nonato sugere a substituição dacláusula final do artigo por estoutra: "Quando resultar do título que o devedor a cumprapessoalmente."34 Eis porque nos animamos a sugerir uma, dotada de maior elastério eliberalidade: "Quando resultar das circunstâncias que o devedor a cumprapessoalmente", pois que assim é armado o juiz de mais amplo critério de apreciação, aomesmo passo que se atende ao que muito normalmente acontece, quando o devedor éprocurado em atenção aos seus requisitos pessoais, muito embora não haja meio deapurar-se uma tal eventualidade de um qualquer título. Ao elaborarmos o Anteprojetode Código de Obrigações velejamos neste sentido e admitimos a fungibilidade daprestação na obrigação de fazer no caso de resultar do título ou das circunstâncias(Projeto, art. 102). O Código Civil de 2002 não reproduziu o dispositivo, deixando parao hermeneuta a tarefa de verificar se a infungibilidade resulta das circunstâncias.

O art. 247 do Código Civil de 2002 35 parte do princípio do respeito à liberdadehumana, adotado pelo nosso Projeto de Código de Obrigações de 1965. Estabelece quea obrigação de fazer ou de não fazer é inexigível se contraída com cerceamento abusivoda liberdade. Desprezando, embora, a norma genérica, o Código Civil de 2002 conservaa sua conseqüência, repetindo simplesmente o modelo de 1916. O devedor tem a seucargo a prestação, e, obviamente, cabe-lhe executá-la. Diversamente do que se dá com aobligatio dandi, que em princípio comporta execução específica, o credor não podeimpor ao reus debendi a prestação de fato, sem prejuízo do respeito à sua personalidade.Se a obrigação for personalíssima, converte-se a recusa na composição das perdas edanos. Não sendo lícito ao credor obter um comando judicial imperativo, pois queninguém pode ser compelido à prática de uma ato especificamente (nemo ad factumprecise cogi poteste), e não se comprazendo a ordem jurídica com o descumprimentovoluntário da obrigação, o artigo estabelece a transformação da prestação noressarcimento do prejuízo (id quod interest) sobre que passa a incidir o dever de prestar.Ressarcimento, para ser completo, obedecerá ao disposto no art. 402 do Código Civil de2002. Se a obrigação puder ser cumprida por outrem, aplica-se o art. 249 do mesmodiploma. Observa-se que não reconhece o art. 247, na recusa do devedor, a criação deuma obrigação alternativa Não fica ele com a faculdade de cumprir, ou recusar. Eledeve a prestação em espécie. Sua recusa gera a indenização. Para assegurá-la, o direitofrancês criou a figura da "astreinte", com a imposição de multa rotativa, de que somentese livrará com a execução do obrigado. Nosso direito admite, em certos casos, a açãocom pedido cominatório (Código de Processo Civil, arts. 287, 461, 461-A, 632 a 641,643 e 645), com a condenação de pena pecuniária ao devedor inadimplente, para o casode descumprimento da sentença.

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Impossibilitando-se a prestação sem culpa do devedor resolve-se a obrigação, não há oque prestar, ou não há meio de prestar, já que ninguém pode ser compelido a realizar oimpossível: ad impossibila nemo tenetur.

Mas, se o devedor der causa a isto e for culpa sua que a impossibilidade sobrevenha, ocredor não pode exigir o fato e responde então o devedor pelas perdas e danos (CódigoCivil de 2002, art. 248).36

Na obligatio faciendi, é importante fixar os efeitos da recusa do devedor à prestação aque está sujeito. Como princípio geral é assente que não pode o credor compeli-lo aocumprimento em espécie, já que em nosso direito, ao contrário do sistema inglês, temvigorado a velha parêmia nemo ad factum precise cogi potest (Código Civil de 1916,art. 879/Código Civil de 2002, art. 248), e é por isto que prospera a regra segundo a qualo inadimplemento da obrigação de fazer converte a prestação no seu equivalentepecuniário. Naquelas obrigações em que somente o devedor pode realizar a prestação,sua recusa terá como conseqüência sujeitá-lo a indenizar ao credor perdas e danos. Nasdemais, de prestação fungível, regra é que ou o credor é autorizado a mandá-la executara expensas do devedor ou fica sub-rogado nas perdas e danos. E tão insistentesaparecem estas que se costuma dizer que, na recusa ou na impossibilidade culposa deimplemento, o devedor vê convertida a prestação devida, nas perdas e danos, a símile doque vigora no Código francês, art. 1.142. O princípio deve, no entanto, ser entendidocom o temperamento que a doutrina boa lhe dá, sob pena de conduzir-se a equiparaçãoda obligatio faciendi a uma alternativa a benefício do devedor, o que seria inexato, e jásalientou Tito Fulgêncio. A lei é de entender-se de molde a que a conversão daprestação nas perdas e danos se dê somente quando importe em violência física àliberdade do devedor compeli-lo ao cumprimento específico.37 Afora isto, convenienteserá buscar sempre a execução direta. E, neste passo, deve registrar-se a inovaçãoimportante em nosso direito, através de uma técnica que faz lembrar, a distância, aelaboração jurídica romana, da precedência da ação sobre o direito: os arts. 639 a 641do Código de Processo Civil de 1973, a pretexto de regular a execução das obrigaçõesde fazer e de não fazer, assentou norma jurídico-material, mais que formal, quandoatinente com o próprio conteúdo da prestação. Com efeito, a norma processual declaraque, condenado o devedor a emitir declaração de vontade, será esta havida porenunciada logo que a sentença de condenação passe em julgado. É a própria obligatiofaciendi que se acha em jogo. E quando o facere é um negócio jurídico supre-se aemissão coletiva do reus debendi pela vontade jurisdicional e sub-roga-se a sentença nolugar do ato devido. Não há substituição da res debita (aliud pro alio), de vez que oobjetivo perseguido pelo credor é obtido em espécie. Mas há uma alteração de técnicade obtenção do resultado: não podendo o reus redendi compelir o devedor a praticarmanu militari o ato, obtém do juiz uma declaração de vontade, que encerra o efeitodaquela devida e que era a prestação mesma.38 O nosso Anteprojeto do Código deObrigações fixou a regra geral da execução específica, a menos que importe emconstrangimento à pessoa do devedor, o que foi mantido no Projeto (art. 103).

O credor tem direito ao fato em si, independentemente da pessoa do devedor. Frente àrecusa deste, ou demora na execução do obrigado, fica com a liberdade de dar comoresolvida a obrigação, ou executar o fato, por si mesmo ou por terceiro. Na vigência doartigo 881 do Código Civil de 1916, dúvida foi levantada, se era lícito ao credorproceder por si mesmo ou se a disposição legal lhe abria as portas da justiça, para obter

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uma sentença, autorizando-o a proceder assim. E a doutrina fixou-se neste sentido,baseada em que ninguém pode fazer justiça com suas próprias mãos. O novo Códigopoderia ter afastado toda a polêmica se tivesse adotado a redação do artigo 105 doProjeto de Código de Obrigações de 1965, segundo o qual "pode o credor ser autorizadopor sentença a executar a prestação às expensas do devedor". É, porém, certo que, narecusa do devedor, a prestação do fato ou o desfazimento do ato somente pode serobtida pela via judicial.

O parágrafo único do artigo 249 do Código Civil de 2002, que vem transposto domesmo artigo 105 do Projeto de Código de Obrigações de 1965, confirma ainterpretação do caput do artigo, no sentido de que a expressão "será livre ao credor"tem a acepção de assegurar-lhe um direito de ação. Somente em caso de urgência,quando não houver tempo de obter a sentença sem prejuízo manifesto, é que o credorprocede ex propria auctoritate, e promove a execução do fato por si mesmo ou porterceiro. Assim procedendo, fica-lhe, contudo, reservado o direito de pleitear oressarcimento dos prejuízos, ulteriormente.

Optando o credor por uma ou outra (perdas e danos ou execução por terceiro a expensasdo devedor), não tem o juiz o poder de substituir uma por outra, porque a linguagem doCódigo é peremptória ("será livre ao credor"). Não colheria, portanto, a inovação dadoutrina francesa, onde alguns escritores a admitem, de vez que o art. 1.144 do Códigofrancês, referindo-se a que o credor "pode ser autorizado" a executar a prestação, tolerasolução diferente da brasileira.

A execução direta é irrealizável no caso de impossibilidade material ou de fungibilidadeda prestação. Pode, ainda, aparecer no de impossibilidade moral, quando é realizável ocumprimento em espécie, mas não aconselhável à vista da situação escandalosa quecriaria; a prestação seria juridicamente suscetível de obtenção, mas socialmenteinconveniente.39

136. Obrigação de não fazer

Obrigação de não fazer é a negativa típica. O devedor obriga-se a uma abstenção,conservando-se em uma situação omissiva. A sua prestação é o non facere, sejamediante uma contraprestação, seja independentemente dela. Precisamente por isto,salienta-se a diferença entre a obligatio non faciendi e as positivas: de um lado, oanimus solvendi do devedor é menos aparente na negativa, de vez que ela se cumpreexatamente por não agir; e de outro lado as positivas comportam purgação de mora,enquanto que a outra não a admite, já que (v. nº 173, infra) o fazer constitui por si sócontravenção do obrigado, que assim acarreta de pleno direito a mora, e sem remédio.40

A obrigação negativa tem um objeto, tal qual as positivas. Estas colimam uma açãohumana, que se pode cumprir por um ato em si (obligatio faciendi), ou pela traditio deuma coisa (obligatio dandi), mas sempre por uma ação do devedor. Na obrigaçãonegativa esta ação humana aparece por omissão, pois que o devedor é sujeito a nonfacere. Enquanto assim se mantiver, a obrigação é cumprida, e nem às vezes se percebeque existe. Por esta razão é que Trabucchi lhe aponta como característica fundamentalser posta em evidência a submissão ao devedor pelo inadimplemento.41 Desde que odevedor pratica o que deve omitir, é inadimplente. Seu cumprimento está na constânciaou sucessividade da abstenção, que se explica, por dizer que o sujeito passivo deve

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omitir o ato em todas as ocasiões em que poderia realizá-lo.42 Esta permanenteabstenção não quer, porém, dizer eterna omissão, pois não há incompatibilidade entre aobligatio non faciendi e uma limitação no tempo (não construir durante dez anos), e, emcasos semelhantes, a sucessividade vigora dentro nos limites temporais. Éinadimplemento da obrigação o facere dentro do tempo em que o devedor é obrigado anon facere. Escoado o prazo, o devedor recuperará a liberdade.

Quando se impossibilita a abstenção do fato, sem culpa do devedor, a obrigaçãoextingue-se. Se por uma força maior o devedor é compelido a realizar o ato, o vínculoextingue-se, sem direito a reclamação, ad instar do que se dá com as obrigaçõespositivas. Se eventualmente o credor tiver feito algum adiantamento ao devedor, cabe aeste restituí-lo,43 não como indenização, mas porque a resolução da obligatio repõe aspartes no status quo ante, sem o que haveria locupletamento indevido do devedor(Código Civil de 2002, art. 250 44).

Em simetria com o disposto no artigo 249 do Código Civil de 2002 quanto à obrigaçãode fazer, o Código, no art. 251,45 assegura ao credor da obrigação negativa a viajudiciária, para obter sentença que imponha ao devedor o desfazimento daquilo a cujaabstenção se obrigara, ou a autorização para que desfaça por si ou por outrem, àsexpensas do devedor. Somente havendo urgência manifesta, é livre ao credor procederao desfazimento sem a precedente autorização judicial. Em qualquer caso, do devedorinadimplente é sujeito a ressarcir ao credor as perdas e danos. Obviando o inconvenientede se converter a obrigação de não fazer em alienação da liberdade ou abdicação defaculdades legais, afirma-se que é inexigível quando implique cerceamento abusivo daliberdade, tal como fizemos consignar no Projeto de Código de Obrigações de 1965,artigo 107.

Se não for mais possível desfazer o ato, ou se não for mais oportuno, dá-se a sub-rogação da dívida no id quodo interest, isto é, o devedor sujeita-se à reparação doprejuízo.

Capítulo XXVII - Classificação das Obrigações Quanto ao Sujeito: Indivisibilidadee Solidariedade

Sumário: 137. Conceito de indivisibilidade. 138. Efeitos daindivisibilidade: pluralidade de devedores e de credores. 139. Perda daindivisibilidade. Distinção da solidariedade. 140. Conceito desolidariedade. 141. Solidariedade ativa. 142. Solidariedade passiva. 143.Extinção da solidariedade.

Bibliografia: Enneccerus, Kipp e Wolff, Tratado, Derecho deObligaciones, II, pág. I, §§ 90 e 96; Clóvis Beviláqua, Obrigações, §§ 22e 23; Alberto Trabucchi, Istituzioni di Diritto Civile, nos 218 e 219;Ruggiero et Maroi, Istituzioni di Diritto Privato, §§ 126 e 128; Savigny,Obbligazioni, §§ 29 e segs.; Rodière, La Solidarité et l’Indivisibilité;Serpa Lopes, Curso, II, nos 77 e segs.; Washington de Barros Monteiro,Curso, IV, págs. 140 e segs.; Ludovico Barassi, Teoria Generale delleObbligazioni, I, nos 53 e segs.; Lacerda de Almeida, Obrigações, § 24;M. I. Carvalho de Mendonça, Doutrina e Prática das Obrigações(atualizada por José de Aguiar Dias), I, nos 133 e segs.; Giorgio Giorgi,

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Teoria delle Obbligazioni, I, nos 123 e segs.; Tito Fulgêncio, Do Direitodas Obrigações (atualizada por José de Aguiar Dias), nos 180 e segs.;Ludovico Barassi, Istituzioni di Diritto Civile, pág. 381; Alfredo Colmo,De las Obligaciones en General, nos 451 e segs.; Orosimbo Nonato,Curso de Obrigações, II, nos 1 e segs.; De Page, Traité Élémentaire deDroit Civil, nos 292 e segs.; Andreas von Tuhr, Tratado de lasObligaciones, II, nos 88 e segs.; Karl Larenz, Derecho de Obligaciones, I,§§ 32 e segs.; Gaudemet, Théorie Générale des Obligations, págs. 441 esegs.; Giovanni Pacchioni, Obbligazioni e Contratti, páginas 46 e segs.;Saleilles, Théorie de l’Obligation, páginas 109 e segs.; Orlando Gomes,Obrigações, nos 17 e segs.; Scuto, Teoria Generale delle Obbligazioni, n°49; Cicala, Concetto di Divisibilità e Indivisibilità dell’Obbligazioni; M.Jean Vincent, "L’Extension en Jurisprudence de la notion de SolidaritéPassive", in Rev. Trim. de Droit Civil, 1939, pág. 601; Molitor,Obligations, II, n° 1.155; Salvat, Obligaciones, nos 877 e segs.

137. Conceito de indivisibilidade

A classificação das obrigações em divisíveis e indivisíveis não tem em vista o objeto,porém este em atenção aos sujeitos, ou um deles, já que seu interesse somente semanifesta quando ocorre pluralidade subjetiva (Clóvis Beviláqua, Hudelot et Metmann).Pode-se, em linhas gerais, dizer que são divisíveis as obrigações suscetíveis decumprimento fracionado, e indivisíveis as que somente podem cumprir-se na suaintegralidade. Em verdade, o que é divisível ou indivisível não é a obrigação, mas aprestação.1 Por metonímia, contudo, fala-se em divisibilidade ou indivisibilidade daobrigação.

À vista da noção assim dada, o assunto parece claro, e não revela as obscuridades que orondam. Recebendo-o dos romanos, os escritores já da idade moderna do direitoeriçaram-se de sutilezas e distinções, que o perturbaram para sempre. Dumoulin, comuma distinção sibilina de três graus de indivisibilidade (absoluta, de obrigação, desolução), obscureceu a matéria, muito embora anuncie o título de sua obra o propósitode clarear (Extricatio labyrinthi divisi et indivisi), e tão emburilhadamente o fez, que secostuma entender, como desenganadamente o proclama de Page, este assunto depoisdele ficou tradicional e definitivamente obscuro.2 Nem Pothier, ordinariamente tãoclaro, conseguiu iluminá-lo, precisamente por ter baseado sua exposição na Extricatiode Dumoulin.3 Não se desprendendo das distinções artificiais e intrincadas deDumoulin, não obstante haver quase literalmente copiado Pothier, o Código CivilFrancês (art. 1.217) estabelecer ser a obrigação divisível ou indivisível "conforme tenhapor objeto uma coisa, que na sua entrega, ou um fato, que na sua execução é ou nãosuscetível de divisão, seja material, seja intelectual". Além da redação, algo descosida, olegislador francês destacou duas categorias de indivisibilidade, e em torno disto adoutrina prosseguiu engendrando controvérsias intermináveis,4 que desbordaram dodireito francês e foram atingir outros sistemas, como o italiano.5

Os Códigos brasileiros de 1916 e de 2002, na esteira de outros que não se abalançaram auma divisão, e aproximando-se da fonte romana, adotaram critério mais simples, eperfilharam doutrina mais escorreita.

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Para bem o compreendermos, devemos distinguir a indivisibilidade material e aindivisibilidade jurídica, não obstante a opinião contrária de Colmo, para quem todaindivisibilidade é material.6 Se considerarmos o fracionamento dos corpos,começaremos por assentar que tudo é divisível. Desde os macroorganismos que sedeslocam na esfera celeste, até o átomo infinitamente pequeno, sobre o qual osprocessos técnicos atuaram rompendo a sua unidade. Fazendo incidir esta possibilidadematerial de seccionamento sobre o objeto da relação obrigacional, concluímos que,sendo tudo fracionável, não haveria cogitar da divisibilidade como critério declassificação das obrigações.

Mas, em verdade, o jurista tem de abstrair-se da qualidade séctil da matéria, paraencarar a prestação como objeto de uma relação obrigacional. Às vezes importa, eoutras não importa, que o objeto possa fracionar-se. Mas, sempre, há verificar se éadmissível, juridicamente, o seu parcelamento. Normalmente e com freqüência, guardaa divisibilidade jurídica paralelo com o fracionamento que o objeto pode materialmentesofrer. Mas dele desgarra, para atentar na projeção econômica, e, levando-se em conta apersistência das qualidades da coisa inteira, diz-se que a prestação é divisível, e ipsofacto a obrigação, quando as partes em que se fracione não perdem as característicasessenciais do todo nem sofrem depreciação acentuada; e indivisível, em caso contrário.7

A utilidade do critério oferece a inegável vantagem de ser aplicável a toda espécie deprestação, e, pois, a qualquer tipo de obrigação, o que se verifica, em resumo embora,passando-se em revista, à luz da divisibilidade, as obrigações em geral, positivas enegativas.

Assim, na obrigação de dar,8 focalizemos a prestação, que consiste na entrega de umacoisa. Divisível será, quando cada uma das parcelas, em que se seccione, guardar ascaracterísticas essenciais do todo. Se o devedor tem de entregar um conjunto deunidades autônomas, a prestação será divisível, pois cada uma, considerada como fraçãodo todo, conserva os requisitos que a erigem em objeto economicamente útil. Ao revés,se a res debita é corpo certo e determinado, seja móvel (um animal, um diamante), sejaimóvel (um apartamento, um terreno), não se poderá cogitar de divisibilidade, pois que,mesmo se for admissível o fracionamento como corpo material, é insuscetível deparcelamento como prestação, já que a obligatio não comporta pagamento de uma parte,porção ou pedaço da coisa devida. É preciso, então, atentar para a circunstância de quenão se apura a indivisibilidade tão-somente no caso em que a fracionamento traduza adeterioração ou o perecimento da coisa. Indivisível será esta, igualmente, quando oparcelamento gera frações economicamente depreciadas, ou se estas perdem ascaracterísticas essenciais do todo. Os terrenos são, normalmente, divisíveis, material ejuridicamente, pois de hábito seu parcelamento dá lugar ao aparecimento de glebas,inferiores em área, mas análogas em qualidade ao todo, cujas características essenciaisconservam. Tal seja o imóvel, entretanto, a indivisibilidade jurídica é manifesta: um lotede terreno urbano, onde exista fixação de área mínima para construção, pode não serdivisível se as porções a que venha a ser reduzido forem inábeis a receber edificação.Ter-se-ia aí indivisibilidade jurídica, não obstante a divisibilidade material, resultanteda impropriedade da coisa ao preenchimento de sua finalidade natural e sua destinaçãoeconômica.

O art. 258 9 do Código Civil de 2002 acha-se mal situado. A noção de indivisibilidadedeveria abrir o capítulo sobre as obrigações divisíveis e indivisíveis. Além disso, é

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simplesmente doutrinária, e não é de boa técnica legislativa que o Código ofereçadefinições, salvo naqueles casos em que há necessidade de afirmar uma posição. Não setrata disso, uma vez que os conceitos, aqui, são bem extremados.

A obrigação de restituir é, em regra, indivisível, já que o credor não pode ser compelidoa receber pro parte a coisa que se achava na posse alheia, salvo se nisto consentir.10

Também a obrigação de fazer pode ser divisível ou indivisível, dentro do mesmocritério jurídico.11 Quando consiste na realização de trabalho por si mesmo fracionável,seja por se ter ajustado em razão do tempo, seja por se ter contratado em função deunidades produzidas, é patente a divisibilidade da prestação. Quando, ao revés, importana realização de obra considerada como coisa certa e determinada, não pode partir-se,por faltarem à quota de prestação produzida as características essenciais de todo (se oartífice contrata encadernar o livro, não pode dividir a prestação). Também é indivisívela obligatio faciendi quando têm por objeto uma ação humana considerada comoentidade econômica, pouco importando que se componha de atos que se executemseparadamente (Clóvis Beviláqua).

A obrigação de não fazer é, via de regra, indivisível (Tito Fulgêncio, Clóvis Beviláqua),pois que o devedor, sendo obrigado a uma abstenção, deve-a por inteiro, insuscetível deprestação parcelada, já que a prática, mesmo parcial, do ato que o devedor secomprometeu a não executar constituirá inadimplemento. Mas é admissível adivisibilidade da prestação negativa, e conseguintemente da obligatio non faciendi,quando o objeto consiste em um conjunto de omissões que não guardem entre si relaçãoorgânica. Se alguém se compromete a não edificar, obriga-se a uma prestaçãoindivisível. Mas se o objeto da abstenção é caçar e pescar, a obrigação é divisível, pordecomponível em duas omissões independentes.12

Finalmente, é lícita a convenção no sentido da indivisibilidade quando a prestaçãojuridicamente divisível se torne indivisível em virtude de uma declaração de vontade. Éa indivisibilidade convencional (que Barassi denomina teleológica), respeitada pelodireito, e em que é decisiva a intenção.13 Ajustada uma constituição de rendaindivisível, em benefício de marido e mulher, com a cláusula de permanecer íntegra aprestação, em caso de morte de qualquer dos beneficiários, ela é indivisível, como o éipso facto a obrigação, muito embora a prestação pecuniária seja materialmentedivisível. Mesmo tacitamente pode ocorrer a indivisibilidade convencional, quando ascircunstâncias convencem de que as partes tiveram em vista uma execuçãoindivisível.14

138. Efeitos da indivisibilidade: pluralidade de devedores e de credores

A classificação das obrigações divisíveis não oferece interesse senão quando hápluralidade de devedores ou de credores. Se o sujeito passivo é um, e o sujeito ativosingular também, a regra é a indivisibilidade da prestação (ou princípio da unidade daprestação), conforme disposto no art. 314 do Código Civil de 2002,15 segundo o qual ocredor não pode ser obrigado a receber, nem o devedor a pagar, por parte, ainda quedivisível a obrigação, salvo estipulação em contrário. Afora a hipótese de convenção, ocredor tem direito à res debita íntegra, e não fracionariamente,16 seja a obrigaçãopositiva ou negativa.

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Se há, todavia, pluralidade de sujeitos, ativa ou passivamente, decompõe-se a obrigaçãoem tantas outras, iguais e distintas, quantos os credores ou os devedores, se a obrigaçãofor divisível (Código Civil de 2002, art. 257 17), a que nosso Projeto de Código deObrigações acrescenta o caso de não haver estipulação em contrário.

Os princípios cardeais são, pois, bastante nítidos: na unidade de devedor e de credor, aprestação é realizada na sua integralidade, a não ser que as partes tenham ajustado ocontrário. Na pluralidade de sujeitos, a prestação reparte-se pro numero virorum,criando obrigações distintas, e recebendo cada credor do devedor comum, ou pagandocada devedor ao credor comum, a sua quota-parte - concursu partes fiunt.Conseqüência, ainda, é que cada devedor tem o direito de oferecer e de consignar a suaparte na dívida, não podendo o credor recusar. Exceções a esta regra são duas: aprimeira reside na convenção: se se estipulou que o pagamento é integral, assim se fará,ainda que divisível a prestação. A segunda é, na solidariedade, submetida a princípiosque lhe são próprios. Se, contudo, a prestação for indivisível, o mesmo não ocorre, nempode ocorrer.

O interesse de se conceituar a indivisibilidade surge a toda evidência nesta hipótese,porque, operando-se o fracionamento quando a obrigação é divisível, cada devedor seexonera, pagando a sua parte, e vice-versa, cada credor a mais não tem direito, desdeque venha a receber sua parcela no objeto da obrigação.18 Se, ao contrário, a prestaçãoé insuscetível de fracionamento, não tem qualquer devedor o direito de solver pro parte.Qualquer credor tem o poder de demandar o devedor pela totalidade da dívida; cada umdos devedores está obrigado à prestação na sua totalidade.19 É preciso ficar bem claroque, abstratamente, cada sujeito passivo deve uma quota-parte da coisa, mas, por seresta indivisível, e cabendo ao credor o direito de recebê-la por inteiro, cada um dosdevedores é obrigado por toda a dívida. Noutros termos, cada devedor é sujeito àprestação por inteiro, não porque deva toda ela, mas pela necessidade de cumpri-laassim, já que é insuscetível de solução parcelada: in obligatione individua, totumdebetur ex necessitate, sed non totaliter. Esta regra prevalece assim no caso daindivisibilidade decorrente da lei ou da natureza do objeto, quanto naquele em que forestipulada a indivisibilidade (indivisibilidade convencional).

Para restabelecer o princípio de justiça que a solutio integral desequilibrou, o devedorsolvente fica sub-rogado no direito do credor, em relação aos demais coobrigados. Afórmula de partilhar entre eles a responsabilidade é a prescrita no título, e no silênciodeste mediante divisão em partes iguais (Código Civil de 2002, art. 259).20

Tendo em vista a divisibilidade ou indivisibilidade da obrigação, a insolvência de um oumais dos co-devedores sugere tratamentos diferentes: sendo divisível, o credor perde aquota-parte do insolvente, porque, sendo cada um deles devedor pro parte, não pode tera situação agravada, pela mudança no estado econômico do outro. Mas, se indivisível aobrigação, o credor tem a faculdade de demandar de qualquer dos devedores a prestaçãointeira (Enneccerus) e, então, não é prejudicado pela insolvência de algum destes, poisque receberá, do que for escolhido, a dívida toda.

Tratamento análogo requer a prescrição: interrompida contra um dos sujeitos passivos,se a obrigação for divisível, não são prejudicados os demais, e, portanto, o credor perdeo direito de demandar aquele ou aqueles a quem a prescrição beneficiar, podendoacionar os demais, contra quem fê-la interromper, para haver as respectivas quotas-

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partes; se indivisível, a interrupção tirada contra qualquer dos devedores atinge ouprejudica os demais, pois, não sendo o credor obrigado a receber pro parte, resta-lhe afaculdade de demandar o cumprimento por inteiro da prestação.21 Em síntese, sendodivisível a obrigação, cada credor pode interromper a prescrição em relação à sua parte,não beneficiando com isto os co-credores. Sendo indivisível, favorece a todos.Reversamente, na obrigação divisível, interrompida quanto a um dos devedores, nãoprejudica os demais. Sendo indivisível, atinge os co-devedores, porque o credor nãoperde a faculdade de receber por inteiro. Mesmo sendo indivisível, se a obrigação seconverter nas perdas e danos, converte-se em divisível, porque esta é a natureza daprestação pecuniária.

Sendo plurais os credores, e a obrigação indivisível, qualquer deles pode demandar odevedor pela dívida inteira, e, recebendo a prestação, torna-se a seu turno devedor aosdemais credores, pela quota-parte de cada um, obedecendo no rateio ao que o títuloestabeleceu, ou ao silêncio deste, mediante divisão em partes iguais (Código Civil de2002, art. 261 22). A disposição vige em simetria com a sub-rogação do devedor quepaga, por inteiro, ao credor (art. 259). Como o acipiente recebe por inteiro, não se podelocupletar em detrimento dos demais co-credores. Se ocorrer o pagamento a todos emconjunto, ou ao que prestar caução de ratificação, presume-se que num e noutro casofiquem definidos os direitos de cada um. Tal não ocorrendo, o credor acipiente deve aosoutros o valor, em dinheiro, da quota-parte de cada um.

O devedor, por seu lado, desobriga-se pagando a todos conjuntamente, ou a um só,desde que dê caução de ratificação dos demais (Código Civil de 2002, art. 260 23).Claro, então, que, na falta de caução, o devedor não pagará a um só dos sujeitospassivos. E, interessado em desobrigar-se, oferecerá a res debita a todos,conjuntamente. Nesta hipótese, e à vista da linguagem mesma da lei, a recusa de um sóque seja fará com que todos incorram em mora accipiendi, tal como no direito alemãopreleciona Enneccerus.24 Tem o mesmo efeito da caução o documento em que osdemais credores investem o acipiente do poder de receber.

O Projeto de Código de Obrigações de 1965 aditava às medidas defensivas mais uma: ada prevenção judicial. Solveria validamente o devedor que pagasse ao credor quereclamasse em juízo, livrando-o dos percalços da demanda, e reconhecendo ao credorpostulante o direito à coisa. Os demais não seriam prejudicados, uma vez que sempreteriam contra aquele a faculdade de receber a sua quota parte, em dinheiro. Opagamento fora das hipóteses previstas não desobriga o devedor solvente em relação aosdemais credores.

Além do pagamento, pode a dívida extinguir-se pelo perdão ou remissão, que faça ocredor, como, ainda, por transação, novação, compensação ou confusão (v. nos 162 esegs., infra). Estas formas extintivas, quando ocorrem na obrigação divisível, nãooferecem problema, porque, limitado o direito do credor a receber pro rata, a extinçãoopera apenas quanto a cada quota-parte, subsistindo em relação aos demais. Sendoindivisível a obrigação e vários os credores, a relação obrigacional não se extingue pelaremissão feita por um deles,25 e os demais credores têm o direito de exigir opagamento, restituindo, porém, em dinheiro, ao devedor a cota correspondente ao credorremitente (Código Civil de 2002, art. 262 26). O mesmo será observado nos demaiscasos de extinção.

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Na pluralidade de credores, a interrupção da prescrição, tirada por um, a todosaproveita; da mesma forma, as causas suspensivas, que vigoram em favor de um,beneficiam aos demais.27

139. Perda da indivisibilidade. Distinção da solidariedade

A indivisibilidade não é, como visto antes, um fenômeno regular. Ao contrário, taissituações cria e tantas cautelas reclama que, bem se vê, é excepcional e inconveniente.Muito mais simples e muito menos geradora de conflitos é a divisibilidade, que reparteos encargos e distribui as responsabilidades, de sorte que cada devedor garante a suaprópria cota, e cada credor recebe a sua parte na coisa devida. Somente em função danatureza da prestação, e enquanto perdura um tal estado, é que a indivisibilidadesubsiste. Uma vez que venha a desaparecer a causa, ela não mais sobrevive. Poderáentão cessar por motivos diferentes, conforme, por seu turno, se trate da convencional,da material ou da jurídica.

A indivisibilidade convencional pode terminar pela convenção contrária, pois é evidenteque a mesma vontade que a instituiu poderá destruí-la.

Quando os devedores estão sujeitos a uma prestação indivisível (de dar ou de fazer), aobrigação tornar-se-á divisível, e cada um passará a dever a sua quota-parte, no caso devir ela a converter-se no seu equivalente pecuniário,28 pois é claro que perde aqualidade indivisível a prestação que o era, mas resolveu-se em perdas e danos (CódigoCivil de 1916, art. 895/Código Civil de 2002, art. 263), uma vez que a prestação dedinheiro sub-rogou-se no lugar da de coisa ou de serviço indivisível, e é da sua naturezamesma a sua divisibilidade.

A conversão do débito nas perdas e danos poderá ocorrer por culpa de todos oscoobrigados ou de um deles. No primeiro caso, todos são responsáveis, dividindo-se prorata a quantia devida, se a obrigação for divisível, ou sujeitando-se cada um aopagamento, solidariamente, se indivisível. Mas, no segundo, apenas o devedor culpadoresponde pelo dano causado, e somente dele poderá ser demandada a reparação, emrazão do princípio segundo o qual a pena atinge apenas o infrator: unuscuique sua culpanocet.

O Projeto de Código de Obrigações de 1965 adotava princípio de melhor justiça. Se aculpa é de todos, o credor se coloca em situação de inferioridade, tendo de demandar acada qual a sua quota viril. Daí o art. 261 ter considerado que todos respondemsolidariamente, substituindo a prestação individual por uma prestação solidária. OCódigo atual preferiu, no entanto, manter a regra do Código de 1916, mais onerosa aocredor, e sujeitando-o a enfrentar a insolvência eventual de algum dos devedores.

Além da conversão em perdas e danos, pode cessar a indivisibilidade por outras causas,que variam segundo seja ela convencional, material ou jurídica. A indivisibilidade quenasce da declaração de vontade pode terminar por força de uma convenção contrária. Sejurídica, ocorrendo uma causa que permita passar cada devedor a responder pela sua. Acessação da indivisibilidade material é mais rara, porém admissível. Em qualquer doscasos, não mais sobrevive a indivisibilidade, que somente subsiste em função danatureza da prestação.

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A indivisibilidade reside naquelas situações em que cada devedor pode ser demandadopela parte dos coobrigados, ou cada credor está apto a receber, além da sua, as cotas deseus consortes. Neste ponto, há uma analogia deste conceito com o da solidariedade, etão íntima que códigos modernos os têm aproximado, pela atração de normas aplicáveis,como fizera o art. 431 do BGB, e mais recentemente o italiano de 1942, ao mandar este(art. 1.317) que à indivisibilidade se apliquem os princípios da solidariedade. Não sãopoucos os escritores que expõem a dogmática de uma e de outra sob a epígrafe genéricade obrigações coletivas.

Substancialmente, entretanto, muito diferem,29 a par desta exteriorização comum, poisque numa e noutra a solutio pro parte não pode fazer-se, mas a prestação da dívidainteira; intimamente diversificam-se: 1º) a causa da solidariedade é o título, e a daindivisibilidade é (normalmente) a natureza da prestação; 2º) na solidariedade cadadevedor paga por inteiro, porque deve por inteiro, enquanto que na indivisibilidadesolve a totalidade, em razão da impossibilidade jurídica de repartir em cotas a coisadevida; 3º) a solidariedade é uma relação subjetiva, e a indivisibilidade objetiva,30 emrazão de que, enquanto a indivisibilidade assegura a unidade da prestação, asolidariedade visa a facilitar a exação do crédito e o pagamento do débito;31 4º) aindivisibilidade justifica-se, às vezes, com a própria natureza da prestação, quando oobjeto é em si mesmo insuscetível de fracionamento, enquanto a solidariedade é semprede origem técnica, resultando ou da lei ou da vontade das partes, porém nunca um dadoreal;32 5º) a solidariedade cessa com a morte dos devedores, mas a indivisibilidadesubsiste enquanto a prestação a suportar; 6º) a indivisibilidade termina quando aobrigação se converte em perdas e danos, enquanto que a solidariedade conserva esteatributo.33

140. Conceito de solidariedade

O Código atual seguiu a orientação do de 1916, dando uma definição de solidariedade.Pode-se dizer que há solidariedade quando, na mesma obrigação, concorre pluralidadede credores, cada um com direito à dívida toda, ou pluralidade de devedores, cada umobrigado a ela por inteiro (Código Civil de 2002, arts. 264 e 265 34). Inscreve-se, assim,o nosso direito no quadro dos sistemas que perfilham a noção tradicional, divulgadapelos mais autorizados mestres.

Nela podemos salientar os pontos fundamentais que a análise indica. Em primeiro lugar,a pluralidade subjetiva: se há um só devedor e um só credor, a obrigação é singular, esimples, na sua estrutura e nos seus efeitos, pois que o sujeito passivo deve a prestaçãopor inteiro ao sujeito ativo. Para que se possa vislumbrar a solidariedade é de mister quehaja a concorrência de mais de um credor, ou de mais de um devedor, ou de várioscredores e vários devedores simultaneamente. Em segundo lugar, aponta-se a unidadeobjetiva: se cada um dos devedores estiver obrigado a uma prestação autônoma ou auma fração da res debita, ou vice versa, se cada um dos credores tiver direito a umaquota-parte da coisa devida, não há solidariedade, que sempre foi incompatível com ofracionamento do objeto. Pluralidade subjetiva e unidade objetiva: é da essência dasolidariedade que numa obrigação em que concorram vários sujeitos ativos ou váriossujeitos passivos haja unidade de prestação, isto é, cada um dos credores tem o poder dereceber a dívida inteira, e cada um dos devedores tem a obrigação de solvê-laintegralmente.

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A unidade objetiva, na obrigação solidária, difere da que se dá na indivisível. Nesta, emrazão da natureza da própria res debita, que não pode ser cindida no momento dasolução, por uma causa material ou jurídica. Na obrigação solidária, não obstante anatureza da prestação compatibilizar-se com o fracionamento, impera a unidade doobjeto, por um motivo de ordem técnica. Assim é, porque assim a lei estabelece.

Não há cogitar da distinção entre solidariedade perfeita e solidariedade imperfeita,porque o Código não cogitou dela. A matéria é puramente teórica, e é objeto apenas deexposição doutrinária (ver n° 140, infra, vol. II).

Embora incindível a prestação, pode a obrigação solidária ser pura e simples em relaçãoa alguns dos sujeitos e, sem perder ainda este caráter, sujeitar-se a uma condição outermo em relação a outro (Código Civil de 2002, art. 266 35). Nada impede, emverdade, que um dos devedores deva de pronto, enquanto outro goze do benefício de umprazo; ou que, enquanto para um credor o débito seja puro e simples, para outro venhasubordinado a uma condição. Tais modalidades são acidentais, e solidariedade haverádesde que, no momento da solutio, o credor se não satisfaça com o recebimentoparcelado, ou o devedor se não libere com a prestação pro rata. Já o Direito romanoconstruíra a dogmática da obrigação coletiva sobre a regra da divisão, e ainda hoje, naobrigação plúrima, cada um dos credores ou devedores o é normalmente pro parte,cindindo-se a obrigação em tantas frações quantos são os sujeitos: concursu partes fiunt(v. nº 138, supra). Uma exceção, e já estudada, está na indivisibilidade do objeto.

Embora contendo princípio da maior simplicidade, a disposição suscitou dúvidas noimpério do Código revogado. Mas sem razão. O que caracteriza a solidariedade é apluralidade subjetiva e a unidade objetiva. As modalidades (condição e termo) como olugar da solutio não alteram a sua natureza. São puramente acidentais. Se na mesmaobrigação concorre mais de um devedor obrigado à dívida toda, é indiferente que umtenha de pagar desde logo e outro a prazo; ou que a prestação de um esteja subordinadaa evento futuro e incerto, e outra não. O novo Código acrescentou ao art. 897 do antigodiploma a hipótese de serem as prestações devidas em lugares diversos, como ficouconsignado no Projeto de Código de Obrigações de 1965. A razão é a mesma. O fato deser exigível em lugares diferentes não repele a solidariedade, desde que subsistam aunidade objetiva e a pluralidade subjetiva.

De caráter excepcional é também a solidariedade. Excepcional e anormal, acrescenta-se.36 Mas, como visto no nº 139, supra, a indivisibilidade é relativa à prestação, que seopõe ao parcelamento da solutio, enquanto que a solidariedade não decorre ex re, nãoprovém da incindibilidade do objeto, mas se apresenta como de origem puramentetécnica.37 Por isso mesmo precisa, em regra, ser imposta pela lei ou convencionadaentre as partes. Por ser uma exceção ao princípio concursu partes fiunt, no Código Civilde 2002, arts. 264 e 265, não se presume: a solidariedade convencional tem de serexpressamente ajustada.38 Ao contrário, pois, do novo Código Civil italiano, como doalemão, cujo art. 427 institui a presunção de solidariedade nas dívidas comuns, parasegurança do credor e solução da obrigação;39 a solidariedade é convencional ou legal.A primeira, somente por pacto expresso. A segunda, por texto explícito, podendo sercitadas como hipóteses de imposição legal de solidariedade a que vigora entrecoobrigados cambiais, a que preside às relações entre fiador e afiançado se não forestipulado o contrário, a dos comodatários simultâneos da mesma coisa, a dos

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mandantes conjuntos, a dos co-autores de ato ilícito, como em outros casos, todos,porém, diretamente definidos.40

O Projeto de Código de Obrigações de Caio Mário desvencilhou-se deste preconceito,seguindo orientação mais condizente com a vida moderna. Admitia a solidariedadepresumida, sempre que diversos devedores, em um só instrumento, se obrigam para como mesmo credor, salvo se o contrário resultar da lei ou do contrato. Atendendo ao quenormalmente acontece, na pluralidade de devedores, para com um credor, no mesmoinstrumento, a regra seria a solidariedade, tal como prescreve o BGB (art. 427) eestabelece o Código Italiano de 1942, art. 1294. No Código atual, que unificou o DireitoObrigacional, não deveria vigorar a necessidade de ser pactuada a solidariedade passiva.

Alguns sistemas, notadamente o francês e o belga, admitem uma extensão dasolidariedade afora os casos legalmente previstos, a qual recebeu a denominaçãoanfibológica de solidariedade jurisprudencial ou costumeira.41 Não pode acharacolhida em nosso direito, à vista dos termos peremptórios do art. 265 do Código Civilde 2002.42

A todos os obrigacionistas, nossos e alheios, ocorre conceituar a solidariedade, tal comofizemos ao abrir este parágrafo, como a obrigação em que há pluralidade de sujeitos eunidade de prestação. O mecanismo da solidariedade, na maneira como se apresenta nassuas relações externas e nas internas, se bem que padeça já de si de dúvidas econtrovérsias que dela fizeram, no dizer de Lacerda de Almeida, uma teoria difícil ecomplicada,43 foi ainda como que emburilhada de propósito. Tem sido lugar comumdas disputas a sua conceituação íntima e a sua fundamentação. Quando se diz que o co-devedor solidário, que paga, extingue a dívida tanto em relação a si mesmo quanto emrelação aos demais co-devedores; ou quando se fala que o credor tem a faculdade deexigir a totalidade da coisa devida de qualquer dos co rei debendi, e, recebendo opagamento de um destes, libera-os a todos - afirma-se uma verdade que encontraaceitação tranqüila, e aparentemente singela.

Mas, quando se indaga o porquê, avizinha-se a tormenta e eriça-se a resposta das maisnegras discussões. Construída a teoria das obrigações solidárias pelos romanos, orecurso às fontes não presta grande auxílio, porque alguns textos foram interpolados(segundo as demonstrações de Eisele e de Ascoli), inspirando nos romanistas dúvidas edistinções que, longe de clarear, obscureceram a matéria, com reflexo nas doutrinascivilistas. Sem utilidade prática, imaginou-se uma distinção entre solidariedade perfeitaou correalidade e solidariedade propriamente dita ou imperfeita, baseada na idéiaoriginal de Ribbentrop (Zur Lehre von den Correalobligationem) e de Keller, a queWindscheid emprestou o prestígio de sua autoridade e a vulgarização de sua obra e queentre nós mereceu a adoção de Lacerda de Almeida, na nota final citada acima.

Empreendendo deduzir, aqui, a natureza jurídica da solidariedade, começaremos poreliminar este obstáculo, despretensiosamente, expondo-lhe a essência, não sem antesregistrar uma palavra de aplauso ao nosso legislador de 1916, que fixou no Código Civilos princípios da solidariedade com uma clareza que permite assentar a construçãodogmática do instituto em linhas de maior precisão do que outros monumentosadiantados,44 à qual procuramos guardar fidelidade em nosso Anteprojeto de Código deObrigações, que o Projeto revisto pela douta Comissão conservou e o Código Civil de2002 consagrou.

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O Direito romano, em verdade, não conheceu a distinção. Jogando, entretanto, comtextos interpolados quando da codificação do século VI, dizem que a correalidadeconsistiria na existência de uma só obrigação (una eademque abligatio), que osdevedores têm de solver sine beneficio divisionis, porque se a solutio pudesse realizar-sepro parte estaria cindida a própria relação obrigacional; na solidariedade imperfeitahaveria multiplicidade de obrigações autônomas, todas com objeto igual, e, como ocredor tem direito e este, pode exigi-lo, somente extinguindo-se todas as obrigaçõescom a efetiva solução. Levando mais longe a análise, dizem ainda que a correalidade seorigina da convenção ou da estipulação da unidade obrigacional, enquanto asolidariedade legal é normalmente, imperfeita, porque a causa, no ato ilícito porexemplo, gera tantas obrigações quantos os co-responsáveis, todas porém com ummesmo objeto que é a reparação do dano causado.

Originária da lei ou da convenção, para nós a solidariedade tem uma só natureza: umaobrigação com unidade objetiva (una eademque res), e, pois, não pode haver soluçãosem integridade de prestação, já que não pode o credor ser compelido a cindir a resdebita, nem pode o devedor fracioná-la. Em qualquer caso, se há mais de um devedorcom a obrigação de pagar a coisa devida por inteiro (totum et totaliter), ou se há várioscredores com a faculdade de demandar a qualquer deles a prestação inteira e sempartilha, existe solidariedade, sem qualificações distintivas; o credor o é in solidum; odevedor o é in solidum. As expressões solidariedade e correalidade não exprimem,pois, diversas naturezas de relação obrigacional, porém, aspectos da mesma figura:encarando-se a categoria obrigacional objetivamente, chama-se solidariedade porquecada devedor deve a coisa in solidum, como cada credor a pode receber; focalizando-asubjetivamente, pode apelidar-se correalidade, porque existe uma pluralidade desujeitos ativos (co rei credendi) ou de sujeitos passivos (co rei debendi) defronte deuma unidade de prestação. A natureza jurídica da obrigação solidária é, pois, uma só. Adoutrina de Ribbentrop e Keller, sem embargo da auréola de que a envolveu o aplausode Windscheid, de Vangerow, de De Page, de Lacerda, de Almeida, de Savigny, deMolitor, de Demangeat, de Enneccerus, e de mais tantos e numerosos romanistas ecivilistas, enfrentou a oposição de não menos conspícuos juristas como Pacchioni,Bonfante, Contardo Ferrini, Giorgi, Salvat, Lafaille, Orosimbo Nonato, Serpa Lopes,von Tuhr.45

Vencido, portanto, este primeiro recontro e abolida a diversificação conceitual entrecorrealidade ou solidariedade perfeita, de um lado, e solidariedade stricto sensu ouimperfeita de outro lado, enfrentemos agora a vexata quaestio da relação obrigacional, asaber: se na obrigação solidária há unidade de vínculos jurídicos ou pluralidade deles; sehá um só vínculo jurídico prendendo vários sujeitos diante da unidade da prestação, ouse, não obstante esta unidade objetiva, existem tantos vínculos quantos são os sujeitosativos ou passivos.

A matéria não é simples, e para obscurecê-la muito trabalham os doutores. Cogitando desituações particulares, procuram uns, que aliás são muitos, formular uma distinção queSalvat resumiu,46 a dizer que na solidariedade existe: a) unidade de prestação, e nestepasso não vinga discussão; b) pluralidade de vínculos, sendo distinto ou independente oque liga o credor a cada um dos devedores, e vice-versa. Daí partindo, vem a tormentada explicação dos efeitos, quando se indaga em virtude de que fenômeno o devedorsolvente libera os seus consortes ou o credor acipiente alforria o réu em relação aos

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demais co-credores. Sustenta a preferência a teoria da representação, que EdmundoLins abraçou e longamente explanou,47 e que encontra os aplausos de Brinz, Ricci,Mourlon, Baudry, Lafaille, Aubry et Rau, Orosimbo Nonato, Enneccerus, Mazeaud etMazeaud e mais quantos. Em suma estreita, a teoria da representação afirma que asolidariedade gera uma espécie de sociedade, constituindo-se cada devedor mandatáriodos demais, de tal maneira que, ao agir, procede em benefício de todos. A mesmarepresentação vigoraria entre os co-credores, atuando cada qual no interesse de todos.Mas, não admitindo o mandato tácito senão os atos úteis ao grupo, pois não secompreenderia uma presunção de mandato contra os interesses do mandante, algunsautores atenuaram a concepção societária, e, formulando a teoria da representaçãolimitada, disseram que ela não vigora para os atos nocivos.48

A idéia da limitação, que mostra a falta de convicção da teoria, já inspira ataques, comoo de Barassi, a argumentar que se houvesse a representação ela vigoraria sempre49 e, sefosse pela representação que a solidariedade pudesse explicar-se, os sujeitos daobrigação procederiam em todos os casos na qualidade de mandatários.

Procura-se, então, substituí-la pela chamada função de garantia, constitutiva da teoriafidejussória, para a qual cada devedor é garante da prestação para com o credor, e é emrazão desta função fidejussória que o credor tem o direito de exigir a prestação porinteiro; de revés, pagando o devedor a um dos credores solidários, liberta-se dos outros,porque em favor de todos e de cada um institui-se como garantia de solução.50

Em oposição às doutrinas pluralistas, que defendem a trincheira da multiplicidade devínculos, levanta-se a unitária, e diz: na obrigação solidária viceja um só vínculoobrigacional, a ligar o devedor a todos os credores ou todos os devedores ao credor. Nãohá qualquer incompatibilidade entre a pluralidade subjetiva e a unidade essencial, poisque se trata de uma relação obrigacional anormal ou excepcional, em que se cria umvínculo jurídico abrangente de vários sujeitos, de um lado ou de outro todos presos àidéia fundamental da unicidade de solução, fundando-se a união das relaçõesobrigacionais na unidade de fins. E, se grande é a autoridade dos doutores pluralistas,não menor é a dos modernos unitaristas, entre os quais se inscrevem Larenz, Oertmann,Gierke, Saleilles, Pacchioni, Ruggiero, Beviláqua, João Luís Alves, Tito Fulgêncio,Serpa Lopes. Ante a teoria unitarista arrefecem os ataques, pois que, sendo um só ovínculo, apesar da pluralidade de relações subjetivas, o devedor que solve libera a todosos seus consortes, porque o seu pagamento opera a extinção do vínculo, que é um, só eúnico; igualmente, o credor acipiente exonera o devedor para com os demais credoressolidários, porque o recebimento por ele efetuado põe termo ao vínculo obrigacional eextingue a própria obligatio.

Daí resumirmos as noções, dizendo que na obrigação solidária há uma só relaçãoobrigacional, com pluralidade de sujeitos; esta unidade de vínculo concentra-se em umobjeto, que é devido e exigível, só e uno, independentemente da pluralidadesubjetiva.51

Finalmente, como observação geral, salienta-se que a solidariedade é compatível comtodo gênero de obrigações, pela natureza ou pelo objeto.52

141. Solidariedade ativa

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Quando existem credores solidários, diz-se que a solidariedade é da parte dos sujeitosativos, ou simplesmente solidariedade ativa. Não é muito usual. Inexistindo no Códigoqualquer texto que a institua, só resta a vontade como fonte geradora, e, mesmoconvencional, são pouco freqüentes as hipóteses de sua ocorrência. Não nos parece,entretanto, tenha razão Carvalho de Mendonça, quando a considera um institutoextinto.53 É rara, sem dúvida.

A Lei nº 6.449, de 1979, art. 1º, § 5º, criou um caso de solidariedade ativa legal, quandoestabeleceu que, havendo mais de um locador ou mais de um locatário do mesmoimóvel, presume-se a solidariedade. Posteriormente, a Lei nº 8.245, de 1991, queexpressamente revogou aquela lei, dispôs sobre essa solidariedade em seu art. 2°.

A sua construção dogmática atende a duas ordens de relações: a dos credores solidáriosem oposição ao devedor comum e a dos credores solidários entre si.

O princípio fundamental é o da integridade da solutio, sendo conseqüência imediata doque vem expresso no art. 262 do Código Civil de 2002. Se concorrem na mesmaobrigação dois ou mais credores, cada um com direito à dívida toda, qualquer delespode demandar o pagamento, todo e por inteiro - totum et totaliter. A isto se denominarelação externa da solidariedade, isto é, relação entre os credores e o devedor. Asrelações internas são as que se passam entre os co-credores entre si. Por efeito dorecebimento, ou das outras causas extintivas da obrigação.

O direito ao recebimento da prestação por inteiro é de todos os credores. Se, em razãoda solidariedade não prospera a credibilidade da prestação - beneficium divisionis -, nãoé lícito a um credor receber uma parte da coisa devida, ainda que a título de sua quotaparte, que em verdade inexiste enquanto perdurar o vínculo solidário.

Inversamente, o devedor demandado tem de solver a obrigação, muito embora oimplemento lhe seja reclamado por um e não por todos os credores solidários. É aconseqüência da própria natureza da solidariedade, incompatível com o fracionamentoda prestação ou da pretensão do devedor a um beneficium divisionis.54

Uma vez iniciada a demanda, opera-se o que se denomina prevenção judicial: o devedorsomente se libera pagando ao credor que o acionou; não tem mais a faculdade de pagarsenão a ele, ao contrário do que ocorria até o momento da instauração da instância,quando era lícito prestar a qualquer (Código Civil de 2002, art. 268 55). Falando-se emdemanda, exclui-se toda medida preventiva ou preparatória de ação, como hábil a gerara prevenção judicial.56 Assim, o pagamento feito a qualquer credor, antes da prevençãojudicial, tem poder liberatório, ainda que efetuado após ter recebido de um delescobrança extrajudicial, ou notificação em juízo, ou após a tirada de protesto. A razãodeste efeito está na própria essência da solidariedade, em que o pagamento feito aqualquer credor extingue o vínculo obrigatório. A prevenção judicial tem sentido deexceção, e sendo esta strictae interpretationis, não pode ser ampliada para fora doâmbito literal do dispositivo. Aliás, a idéia da prevenção não é, ao menos, pacífica, querem doutrina, quer em legislação: se no rumo do Direito brasileiro milita o CódigoFederal suíço das Obrigações (art. 150, inc. 3º), ou o italiano de 1942 (art. 1.185), comojá antes vigorava o francês (artigo 1.198), no sentido oposto vigora o BGB (art. 428); seobrigacionistas como Alfredo Colmo preferem a solução alemã, outros como Salvat,Lafaille, Tito Fulgêncio, Orosimbo Nonato, Hudelot et Metmann aderem à tradicional

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prevenção, que é lógica e justa: já que os direitos de todos os credores são iguais,merece a preferência aquele que tomou a iniciativa de perseguir a solutio. Perdura aprevenção judicial enquanto permanecem os efeitos jurídicos da demanda ajuizada.57Se, pois, o réu for absolvido da instância, ou anular-se o processo, ou cessar a relaçãoprocessual, sem que o débito se extinga, devolve-se a qualquer outro credor o poder dereceber e reclamar.

Não sendo o pagamento a única forma de extinção das obrigações, cumpre apurar se àsdemais é extensivo o efeito liberatório. Ou, precisamente, se a remissão da dívida, feitapor um dos credores, opera a sua extinção ou apenas a reduz da quota-parte relativa aocredor remitente; como também se a novação e a compensação têm efeito extintivo,quando realizada com um apenas dos credores solidários. A questão encontra respostadiferente em um noutro sistema legislativo: de um lado estão os que recusam o efeitoliberatório, do outro os que atribuem efeito extintivo à novação, à compensação, àremissão.

Nesta segunda corrente inscreveu-se o Código Civil de 2002, art. 269,58 que destarteguarda estreita fidelidade ao conceito puro de solidariedade. Constitui umdesvirtuamento conceitual admitir que o devedor fica forro quando recebe a quitação deum dos credores, sem a audiência dos demais, mas não se liberta do vínculo se recebe operdão, pois que as outras causas extintivas têm o mesmo poder liberatório dopagamento e devem produzir igual efeito. Se a forma ordinária ou direta de extinção(pagamento) tem essa conseqüência, a especial ou indireta guarda-a também.59

O art. 900, parágrafo único, do Código Civil de 1916 dirimia uma dúvida que imperavana doutrina, e estendia o mesmo efeito do pagamento à remissão, novação ecompensação. O Projeto de Código de Obrigações de 1965 mantinha a doutrina legal,aludindo à quitação, como forma genérica de liberação do devedor. Não pode, comefeito, medrar controvérsia. Sendo a remissão, a compensação e a novação, modalidadesextintivas do vínculo obrigacional, equiparáveis nos seus efeitos à solução da dívida,razão não existe para diversificação das consequências. Recebendo um credor a dívida,perdoando-a, ou ocorrendo novação ou compensação, o devedor é liberado. Destacandoo art. 272 do Código Civil de 2002 a remissão, não exclui as outras modalidadesextintivas.

A boa doutrina amplia ainda à dação em pagamento o mesmo efeito liberatório. Nãoobstante as dúvidas milenares, pois já em Roma disputavam a respeito sabinianos eproculeianos, por direito nosso a datio in solutum constitui meio extintivo da obrigação,desde que regularmente feita, e não é o fato de ser entregue coisa diversa da devida(aliud pro alio) que o altera, pois que o vínculo obrigacional não subsistindo a umaconduta liberatória a conseqüência é ser forro o devedor.60

Não nos parecem vingar os argumentos em contrário: se o devedor pode mancomunar-se com o credor, para dele obter a extinção indireta, igualmente o fará simulando umpagamento, e em uma e outras hipóteses terá igual quitação. E, se os direitos de todos oscredores são iguais, para efeito de um não ser compelido a receber do solvens uma parteem coisa diversa da res debita, iguais são ainda para efeito de tolerar que qualquerdeles, em oposição ao devedor, tenha a faculdade de quitar por qualquer meio.

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Da mesma forma opera a medida defensiva, sendo lícito ao credor receber, podepromover as medidas cautelares relativamente ao crédito, independentemente docomparecimento ou anuência dos demais. Se um dos credores solidários interrompe aprescrição, contra o devedor comum, a todos beneficia.61 O mesmo, entretanto, se nãodá com as causas suspensivas, que são de ordem pessoal, não tendo efeito quanto aosdemais co-credores,62 a não ser que a obrigação seja indivisível.63 O nosso Projeto deCódigo de Obrigações foi fiel a estes princípios.

Se a obrigação vem a converter-se no id quod interest, substituindo-se a res debita pelasperdas e danos, não sofre modificações a natureza solidária da obligatio. Os credores,que o eram solidariamente quanto à prestação originária, continuam assim quanto àsperdas e danos em que se sub-rogam, as quais, destarte, podem ser demandadas totum ettotaliter por qualquer credor (Código Civil de 2002, art. 271 64). A conversão daprestação em perdas e danos é conseqüência de fato imputável ao devedor. Sua situaçãofrente aos credores não se altera. Devedor que era de uma prestação (de dar ou de fazer)devedor continua do objeto em que ela se sub-roga. Deve, então, o equivalente e mais oressarcimento do prejuízo. Em favor de cada um dos credores correm os juros de mora,bem como a cláusula penal.

Constituído o devedor em mora, todos os credores são beneficiados, e os respectivosjuros são devidos, seja ela imposta por iniciativa de algum credor, sejaautomaticamente. Mas, ao revés, se um credor solidário é constituído em moraaccipiendi, prejudica esta a todos os demais.65

Nas relações internas vigora o princípio da comunidade de interesses. Criando aobrigação um benefício a favor de todos, o recebimento que um deles faça não contradizos direitos de todos. O vínculo da solidariedade, excluindo a solução pro rata, conservaestes efeitos apenas externamente, ou seja, nas relações do devedor para com oscredores. Nas internas, destes entre si, entende-se que tem um interesse comum noobjeto da obrigação, salvo estipulação em contrário. A prestação, paga por inteiro pelodevedor comum, deve ser partilhada, entre todos os credores, por aquele que a tiverrecebido, criada desta sorte a responsabilidade do credor acipiente pelas quotas-partesdos demais. Em razão do princípio, o recebimento converte o credor em devedor aos co-credores, relativamente à parte de cada um na coisa devida, para cujo cumprimento têmestes ação. Igualmente há de se dar com a extinção especial, seja ela a remissão, seja anovação, a compensação, a dação em pagamento. A matéria é inflada de dúvidas emoutros sistemas, procurando os escritores solução e justificativa, às vezes em pura perda,seja por não lhes socorrer o Direito Romano,66 seja por faltar texto claro no direitopositivo. Legem Habemus (Código Civil de 2002, art. 272 67), e boa, pois que a soluçãoassim dada é de lídima eqüidade e obstaculiza o enriquecimento indevido do credoracipiente.68 Em Roma discutiu-se, e fartamente, qual a actio cabível (pro socio, demandato, a do negotiorum gestor). Na prata da casa não se instala o problema, pois queno direito de ação é assegurado a qualquer credor reclamar a sua quota-parte o quehouver quitado o devedor comum.

A disposição do art. 274 do Código Civil de 2002 não se continha no Código de 1916.Foi transportada do Projeto de Código de Obrigações de 1965. É um efeito natural dasolidariedade. Ferindo-se litígio entre um dos credores e o devedor comum, sofre ele asconsequências da sentença, no caso desta lhe ser desfavorável, a não ser que a matériado julgado diga respeito a todos, como a nulidade do contrato e a prescrição da dívida.

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Obtendo decisão favorável, seja no tocante à validade da própria dívida ou de seusacessórios, aproveita a todos, a menos que obtenha o credor, com fundamento a direitoque seja pessoal, dele próprio, e não de todos.

142. Solidariedade passiva

Ao contrário da solidariedade ativa, a solidariedade passiva é muito freqüente.Freqüentíssima, como observam todos os escritores. E tanto que ganha foros deaceitação o princípio que admite a presunção de solidariedade, pois que em algunssistemas se dispensa a convenção expressa nas dívidas comuns (alemão), ou quando nãoresulte o contrário do título (italiano).

Seu cânon fundamental, ou sua tônica, na expressão de Orosimbo Nonato, é que cadaum dos devedores está obrigado à prestação na sua integralidade, totum et totaliter,como se em verdade houvesse contraído, sozinho, a obrigação inteira.69

Nosso Projeto de Código de Obrigações instituiu a presunção de solidariedade sediversos devedores se obrigam para com o mesmo credor, presunção que se ilide se ocontrário resultar da lei ou do contrato. A regra é a solidariedade.

Na sua disciplina jurídica, a solidariedade passiva tem de ser encarada externa einternamente, isto é; nas relações dos devedores com o credor e nas dos devedores entresi. Começaremos por aquelas.

Da noção mesma de solidariedade resulta o princípio geral dominante nesta matéria,segundo o qual o credor tem a faculdade de receber de qualquer dos coobrigados a coisadevida, total ou parcialmente. Este princípio integra-se de tal modo na essência doinstituto que sua inserção no Código Civil de 2002, art. 275,70 foi criticada porcivilistas nossos, como redundância, embora justificada pelo propósito de afastar asdúvidas quanto à inexistência de um beneficium divisionisi.71 Se a solutio alcança atotalidade da dívida, extingue-se a obrigação relativamente aos demais coobrigados; se éapenas parcial, todos os devedores continuam obrigados pelo remanescente, acrescendoque o vínculo continua com as mesmas características, isto é, subsiste a solidariedadeentre todos os devedores pelo saldo devedor. Daí a conseqüência imediata: efetuandoum dos devedores pagamento parcial, ficam os demais exonerados até a concorrência daquantia paga, e solidariamente devedores do restante.72 Se em vez de pagar a coisadevida dá outra in solutum, a dação em pagamento beneficia a todos, porque extingue aobrigação.73

A remissão, obtida por um dos devedores, prevalece na extensão em que foi concedida,aproveitando aos demais co-devedores, até a concorrência da quantia relevada (CódigoCivil de 2002, art. 277 74). Há, pois, diferença nos efeitos da remissão, na solidariedadeativa e na passiva,75 pois que, se naquela a que concede qualquer credor extingue aobrigação, nesta opera a extinção até a concorrência da quantia remitida, ou seja, naparte correspondente ao devedor perdoado.76 Por isso é que a doutrina aconselha umaressalva: em se tratando de remissão pessoal, isto é, o perdão dado pelo credor a umdeterminado devedor, somente este se exonera da obrigação, e nada mais deve, cabendotão-somente abater, na totalidade da dívida, a parte correspondente ao devedor forro.77Pode ser, no entanto, que a remissão, pelos seus próprios termos ou pelas circunstâncias,não atenda a considerações pessoais e tenha caráter absoluto, caso em que extingue toda

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a dívida e beneficia a todos os co-devedores,78 tal como se dá com a remissão real, oua tácita, resultante da entrega do título a um dos co rei debendi.

Se o credor houver perdoado toda a dívida, extingue-se a obrigação, e é oponível atodos os co-obrigados. Sendo a remissão dada a um dos co-devedores, fica esteliberado, mas a faculdade de demandar o pagamento aos demais co-obrigados estásubordinada à dedução da parte relevada. Se o credor exigir de qualquer delas a soluçãoda obrigação, o devedor demandado pode opor ao credor a remissão, somente até àconcorrência da parte remetida, pois quanto ao remanescente a solidariedade sobrevive.O mesmo que ocorre com a remissão estende-se a qualquer outra modalidade de soluçãoda obrigação. O Projeto de Código de Obrigações de 1965 foi mais preciso quandoaludiu, no art. 133, ao pagamento parcial, "direto ou indireto".

A segunda conseqüência do princípio da solidariedade passiva é a faculdadereconhecida ao credor de acionar um, alguns, ou todos os devedores, sem que, emnenhuma das hipóteses, se possa induzir renúncia à qualidade creditória contra os co-devedores solidários.79 Mesmo depois de ajuizar demanda contra qualquer deles,poderá, ainda, recuar e propô-la contra qualquer dos outros, não sendo incivil que inicieações experimentalmente, até encontrar um que ofereça melhores condições desolvência.

O parágrafo único do art. 275 do Código Civil de 2002, na rigidez dos princípios, seriadesnecessário. Sua inserção no Código justifica-se, todavia, em face de ter havido umaou outra decisão sustentando o contrário. A faculdade de intentar ação contra qualquerum dos devedores pertence ao credor, descabendo ao demandado alegar o benefício deordem, que inexiste na solidariedade.

Ainda que a proponha o credor contra um ou alguns dos coobrigados, deixando de parteoutros, não se eximem estes dos juros de mora, respondendo, porém, o culpado pelogravame que a sua negligência imponha aos demais (Código Civil de 2002, art. 280 80).Isto quanto aos juros moratórios legais. Se outros houver, resultantes do pacto novo,não alcançam senão aqueles dos devedores que o firmarem, deixando de fora osdemais.81 Observa Tito Fulgêncio que, se a obrigação, embora solidária, é a termo paraalgum dos devedores, não responde ele pelos juros moratórios, porque a exigibilidadeda obrigação está suspensa a seu favor.82

O Código prevê a incidência de juros no caso de ação contra o devedor. Eles corremmediante a constituição em mora. É óbvio que, num ou noutro caso, todos os devedorespor eles respondem, sendo, como são, conseqüência da falta de pagamento oportuno. Oprincípio encontra justificativa em que os juros moratórios seriam evitados se qualquerdos devedores efetuasse o pagamento. E, mesmo no caso de demanda judicial, poderiamevitar sua incidência. Sujeitos aos juros de mora por não ter pago a dívida, todos osdevem. Mas aquele, cuja culpa agravou a situação dos demais, responde perante elespelo que foi acrescido na dívida. Embora não o diga, aos demais efeitos da sucumbênciaaplica-se a mesma regra. Ressalva-se a hipótese de um dos devedores ser obrigado atermo ou sob condição.83 Neste caso, a responsabilidade pelos juros moratórios nãopode ser imposta ao devedor beneficiado pela condição ou pelo termo.

No caso de perecimento do objeto ou em geral de impossibilidade da prestação, semculpa, extingue-se pura e simplesmente a obrigação.84 Se por culpa de todos, subsistirá

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a solidariedade na sua conversão em perdas e danos, com todas as conseqüências. Masse culpado for um apenas dos coobrigados, continuam todos sujeitos a pagarsolidariamente o equivalente da res debita, mas pelas perdas e danos somente respondeo culpado (Código Civil de 2002, art. 279 85), em razão de não ser jurídico que alguémse torne responsável pela culpa alheia, sendo certo que cada um responde pela em queincorrer: unuscuique sua culpa nocet. Se não perecer o objeto e houver impossibilidade,tão-somente relativa a algum dos devedores, a solidariedade remanesce para os outros,que nem sofrem agravamento da situação, pois que as perdas e danos são devidasapenas pelo culpado.86

Demandado, o devedor cuidará da defesa e três hipóteses se lhe apresentam: oposiçãode exceções que são pessoais, exceções comuns a todos, exceções pessoais a algum dosco-devedores não chamado a juízo (Código Civil de 2002, art. 281 87). Na terminologiaprocessual, o vocábulo exceção é usado em acepção restrita, compreendendo a deincompetência ou declinatoria fori, a de litispendência, a de coisa julgada, a deimpedimento, a de suspeição. O art. 281 do novo Código alude, entretanto, a todaespécie de defesa, hábil a ilidir a pretensão do credor. Cumpre-lhe alegar os meios dedefesa comuns a todos, como seria a nulidade do ato, por defeito de forma, por vício doconsentimento, por falta de liceidade de objeto; a prescrição do direito creditório; opagamento; a irregularidade da via escolhida etc. Tem, mesmo, o dever de levantá-las,sob pena de responder aos coobrigados por perdas e danos, alcançam a relaçãoobrigacional, e podem ter por efeito reduzir ou extinguir as responsabilidades, tal comopreceitua o Código Federal suíço das Obrigações.88 Pode e há aqui uma faculdade, nãoum dever, opor as exceções que lhe sejam pessoais (compensação, confusão, remissão).Mas não tem o direito de invocar exceções pessoais pertinentes a outro devedor (comosejam a existência de termo ou condição, os defeitos relativos do negócio jurídico, aconfusão da obrigação etc.), porque somente a este interessa, e não atingem o seu deverde prestar.89

O Código de 2002 limita-se a reproduzir o preceito contido no art. 911 do Códigorevogado. Seria, entretanto, oportuno que se estabelecesse o dever de invocar asexceções comuns a todos, tal como ocorre no Código Federal Suíço das Obrigações, art.145. A razão, desenvolvida na doutrina, assenta em que a omissão do devedordemandado traz dano aos co-devedores por negligência ou dolo, pelos quais deveresponder. Não obstante o silêncio a respeito, aos co-obrigados que sejam prejudicadosserá lícito responsabilizar o consorte omisso, seja em ação direta, seja pela recusa decompartilhar no ressarcimento.

A interrupção da prescrição, aberta contra um dos devedores solidários, atinge a todos,bem como os seus herdeiros,90 mas, se for tirada contra um só dos herdeiros, nãoprejudica nem aos outros herdeiros nem aos demais devedores solidários.91 Já a causasuspensiva, sendo, de regra, pessoal, não pode ter o mesmo alcance, e, pois, nãobeneficia os demais devedores.92

Nas suas relações internas, tudo se passa como se dominado pela inspiração deprincípio oposto à solidariedade, partilhando-se a responsabilidade pro rata, e devendocada um a sua quota-parte.

Exprime-se então o princípio cardeal, dizendo-se que, se um dos coobrigados solidáriossolver o compromisso, espontânea ou compulsoriamente, tem o direito de haver de cada

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um dos consortes a respectiva quota-parte, e esta se medirá pelo que tiver sidoestipulado, e, na falta de acordo, dividindo-se a obrigação em partes iguais. O devedorque solve sub-roga-se no crédito, mas a solidariedade não passa para o sub-rogado, queassim tem o poder de demandar dos demais as partes em que a obrigação se fraciona,restaurando-se o princípio da normalidade (concursu partes fiunt), mesmo porque - é aobservação de Giorgi - se pudesse haver de qualquer dos coobrigados totum et totaliter,este teria o mesmo poder, instituindo-se um círculo vicioso indefinido e perpétuo. É deacrescentar-se, ainda, que a faculdade de reembolsar-se tanto existe no pagamento totalquanto no parcial, já que a mesma ratio decidendi prevalece em um como em outro.93

Se ao tempo do pagamento algum dos devedores era insolvente, a sua quota-parte édividida entre todos por igual, de forma a que não fique o devedor que pagou nodesembolso do que despendeu sem possibilidade de se reembolsar (Código Civil de2002, art. 283 94). Mas se a insolvência é posterior ao pagamento, podem os demais co-devedores recusar-se a suportar pro rata a quota-parte do insolvente, de vez que teria ademora no pleitear o reembolso impossibilitado a divisão entre todos, e, então, a simesmo se impute a falta de recuperação do despendido, não aos consortes, que destartese exoneram de concorrer na formação daquele quinhão. Como esta obrigação decorredas relações internas entre os co-devedores e não das externas, com o credor, aparticipação no rateio, pela parte que na dívida incumbia ao insolvente, estende-semesmo àquele dos co-devedores que o credor haja exonerado da solidariedade.

Também uma conseqüência da distinção entre as relações internas e as relações externasna solidariedade passiva é esta: independentemente de ser a dívida solidária do interessede um só dos devedores, o credor pode havê-la de qualquer deles. Mas, internamente, sefor do interesse exclusivo de um só, responderá este toda ela para com aquele quehouver pago (Código Civil de 2002, art. 285 95). Neste ponto, abre o Código exceção àregra do art. 283. Ao aludir à dívida que interessar exclusivamente a um dos devedores,o Código refere-se ao fato de, pelo título, ou pelas circunstâncias, um dos devedores foro obrigado principal. É o que ocorre com a solidariedade decorrente de fiança ou aval,em que a dívida interessa ao devedor principal. Solvida a obrigação pelo fiador ouavalista, tem o direito de ser reembolsado, na sua totalidade, contra o afiançado ouavalizado. Corolário deste princípio é que, se a obrigação for solvida pelo devedorprincipal, não tem direito a agir contra os fiadores ou avalistas para deles haver suaquota na dívida, embora esta, em relação ao credor, seja comum a todos os sujeitos aovínculo da solidariedade.

143. Extinção da solidariedade

Seja a solidariedade legal, seja a convencional, pode extinguir-se, desaparecendo emconseqüência a particularidade de cada um dos devedores ou credores pagar ou recebertotum et totaliter.

No que diz respeito à solidariedade ativa, os credores poderão abrir mão dela, e, damesma forma que a convenção a criou (já que é rara a solidariedade ativa ex vi legis),também a convenção a extingue, estabelecendo-se que a solutio se fará pro rata; cadaum dos credores que, em virtude da solidariedade, tinha direito à dívida inteira, passaráa tê-lo apenas quanto à sua quota-parte, que recebe e de que dá quitação, continuando odevedor sujeito ao pagamento das respectivas cotas aos demais credores,individualmente.

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Prevê, entretanto, a lei uma hipótese em que arrefece o vínculo da solidariedade, emborase não possa dizer que haja desaparecido de todo:96 quando morre um dos credoressolidários, o crédito passa aos seus herdeiros sem aquela peculiaridade, assegurando-sea cada um o direito de receber e reclamar a sua cota hereditária (Código Civil de 2002,art. 270 97). Em tal hipótese, a solidariedade apenas arrefece sem extinguir-se, porquesubsiste sem qualquer alteração quando aos credores sobrevivos, e, no tocante aosherdeiros do desaparecido, formam eles um grupo que representa o defunto. Mas,encarada a situação de cada um, somente quanto a esses herdeiros se fraciona o crédito.Assim, qualquer credor sobrevivo pode exigir e receber totum et totaliter; os herdeirosdo falecido, enquanto em conjunto, podem; mas, individualmente, cada herdeiro só tema faculdade de receber a sua quota-parte, salvo se a coisa for indivisível. Neste últimocaso, ocorrerá solutio da dívida por inteiro, não em virtude da solidariedade, mas emrazão da impossibilidade de seu fracionamento.

A solidariedade passiva, mais rica de situações especiais, oferece dois aspectos deextinção merecedores de estudo.

O primeiro é o da morte de um dos devedores solidários: extingue-se a solidariedaderelativamente aos seus herdeiros, sobrevivendo quanto aos demais. Se se focalizar aposição especial deles, verifica-se que não são responsáveis senão pelas respectivasquotas-partes na dívida (concursu partes fiunt). Mas, no seu conjunto, serãoconsiderados como um devedor solidário, em relação ao credor e aos demais devedores(Código Civil de 2002, art. 276 98). Proposta ação enquanto a herança estiver indivisa,o monte responderá por toda a dívida, em razão de os herdeiros formarem um grupoque, em conjunto, pode ser demandado por todo o débito.99 Ajuizada a ação após apartilha, o credor poderá haver apenas a quota-parte de cada um, e, em havendo alguminsolvente, não podem os co-herdeiros ser compelidos a compor toda a res debita.

A morte do credor não altera a situação dos devedores, que solidariamente continuamobrigados para com os herdeiros do de cujus, que, reunidos, o representam.100

A solidariedade passiva instituiu-se em benefício do credor. É um direito de que elepode abdicar. A renúncia é um dos modos pelos quais extingue-se a solidariedade. Podefavorecer a todos os devedores ou a alguns deles. E o tratamento legal varia numa ounoutra hipótese.

Renunciando a solidariedade em relação a todos os devedores, a dívida recai na situaçãode uma obrigação comum, sujeita à regra do art. 257: divide-se em tantas obrigaçõesiguais e distintas quantos forem os devedores, cada um deles respondendo ao credorpela sua quota parte: concursu partes fiunt.

Renunciando em favor de um ou de alguns dos devedores, altera-se a situação de todosos coobrigados, em situação análoga a do credor que recebe pagamento parcial de umdos devedores, ou lhe remite parte da dívida.

Exonerado da solidariedade um ou mais devedores, subsiste ela quanto aos demais. Aredação do parágrafo único do art. 282 do Código Civil de 2002 não foi feliz.Reproduzindo sempre, quase literalmente, o velho Código, deixou uma dúvida que eleafastava. Dizia, então, que ao credor renunciante somente era lícito acionar os demais,

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abatendo no crédito a parte correspondente ao devedor remitido. Embora não o digaexpressamente, outro não deve ser o entendimento do parágrafo. Se ao credor,renunciando à solidariedade em favor de um dos co-devedores, fosse lícito reclamar adívida toda contra qualquer dos outros, estaria realizando uma renúncia apenas nominal,sem efeito prático. Demais disso, beneficiando um credor com a renúncia, estariaagravando a situação dos demais, contra o disposto no art. 278 do novo Diploma.

O conceito de renúncia é o mesmo que advém do art. 114 do Código Civil de 2002.Pode ser expressa, quando o credor declara, sem reservas, que abre mão dasolidariedade e restitui aos devedores a faculdade de solver por partes. É tácita quandoresulta de uma atitude ou comportamento do credor, incompatível com a solidariedade.Lembram os autores, como casos de renúncia tácita: a) receber o credor a quota parte deum devedor, dando-lhe quitação; b) demandar judicialmente um dos devedores, pela suaparte na dívida: não se confunde a situação com a do credor que ajuiza ação contra umdevedor pela dívida toda; c) receber o credor, habitualmente, a partir de um dosdevedores nos juros e frutos. Essas e outras hipóteses ocorrentes deixam, entretanto, deconstituir renúncia à solidariedade, se o credor ressalvar o direito de manter o vínculoda solidariedade (Código Civil de 2002, art. 282 101).

Ocorrendo rateio entre os co-devedores, para reembolsar aquele que tenha solvido aobrigação, quanto à quota-parte do insolvente, contribuirão todos, inclusive os quetenham sido exonerados da solidariedade pelo credor, porque se este tem o poder deabrir mão de um benefício que lhe pertence falta-lhe qualidade para alterar as relaçõesentre os coobrigados, mormente em se tratando do agravamento de sua situação (CódigoCivil de 2002, art. 284 102). O Código destacou o que fizemos constar do art. 140,parágrafo único, do Projeto de Código de Obrigações de 1965. O devedor, exonerado dasolidariedade pelo credor recebe uma remissão nas suas relações com ele (relaçõesexternas da solidariedade). Sendo a exoneração uma forma de renúncia, deve receberinterpretação estrita. O credor pode renunciar o seu direito contra um dos devedoressolidários. Não tem, no entanto, a faculdade de estender a exoneração ao direito dereembolso, que não lhe pertence, porém ao devedor que pagou a dívida comum.

Capítulo XXVIII - Classificação das Obrigações Quanto aos Elementos nãoFundamentais

Sumário: 144. Obrigação alternativa. Direito de escolha. Impossibilidadeda prestação. 145. Obrigação condicional e a termo. 146. Obrigaçãoprincipal e acessória. 147. Prestação de juros. 148. Prestação pecuniária.

Bibliografia: Clóvis Beviláqua, Obrigações, §§ 18, 24, 25; Ruggiero eMaroi, Istituzioni di Diritto Privato, II § 126; Alberto Trabucchi,Istituzioni di Diritto Civile, nº 215; Karl Larenz, Derecho deObligaciones, § 12, pág. 167; Tito Fulgêncio, Do Direito de Obrigações(atualizado por José de Aguiar Dias), nos 137 e segs.; Orosimbo Nonato,Curso de Obrigações, I, págs. 323 e segs.; Giorgio Giorgi, Teoria delleObbligazioni, IV, nos 419 e segs.; Enneccerus, Kipp e Wolff, Tratado,Derecho de Obligaciones, I, §§ 17 e segs.; Alfredo Colmo, De lasObligaciones en General, nos 380 e segs.; Serpa Lopes, Curso, III, nos 58e segs.; Mazeaud e Mazeaud, Leçons, II, 1.048; De Page, Traité

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Élémentaire, III, nos 273 e segs.; Ludovico Barassi, Teoria General delleObbligazioni, I, págs. 206 e segs.; Scuto, Obbligazioni, nos 399 e segs.

144. Obrigação alternativa. Direito de escolha. Impossibilidade da prestação

Definindo as características do objeto, na relação obrigacional, dissemos que ele deveser determinado, ou ao menos determinável. Encarada quanto ao modo de pagamento,classifica-se como alternativa a obrigação, que é de início relativamente indeterminada,mas que se determina antes da execução ou simultaneamente com esta, e conceitua-secomo tipo obrigacional em que existem unidade de vínculo e pluralidade de prestações,liberando-se contudo o devedor mediante o pagamento de uma só delas. Difere, assim,desde logo da cumulativa, em que há pluralidade objetiva também, mas tanto naobrigação quanto na solução, isto é, o devedor somente se libera pagando todas ascoisas.1

É uma figura obrigacional peculiar, na qual o vínculo abrange um conjunto de objetos,dos quais um só tem de ser prestado: plures res sunt in obligatione, una autem insolutione. Não é despiciendo frisar que ela não compreende obrigações distintas, cadauma com um objeto, mas uma e só obligatio, com pagamento indivisível, emboraofereça ao devedor ou ao credor o poder de livrar-se ou receber, mediante prestação deuma das coisas.2 A doutrina tradicional se não compadece, porém, com estepreciosismo, e prefere conservar a noção de que o objeto na alternativa é plúrimo e nãouno, pois que são devidas duas ou mais coisas (in obligatione), das quais o devedorpagará uma, libertando-se (una autem in solutione) e extinguindo o vínculo.3

Mas, quando se diz que duas ou mais coisas são devidas, usa-se a expressão no sentidogenérico, abrangente de qualquer prestação, tanto positiva quanto negativa, e tão bempode estar in obligatione a entrega de uma coisa material como a prestação de um fato,como uma abstenção.4

Em doutrina, distingue-se esta figura obrigacional da chamada obrigação facultativa, oufaculdade alternativa, em que existem um só vínculo e uma só prestação, com cláusulapermissiva ao devedor de se exonerar mediante o pagamento de prestação diferente, ou,como diziam os escolásticos: una res in obligatione, plures autem in facultatesolutionis. Distingue-se também da obrigação genérica, em que na alternativa existeuma escolha entre duas ou mais coisas em si conhecidas e individuadas, vigendo arelativa indeterminação sobre qual delas será prestada, ao passo que a obrigação degênero envolve indeterminação das coisas devidas desde o início.5 Se o réu deve ocavalo Relâmpago ou o cavalo Trovão, é alternativa a obligatio; mas, se deve um cavalode sua coudelaria, é genérica. Adotando um critério ontológico, Barassi distingue aalternativa da genérica, explicando que a primeira tem por objeto uma pluralidade debens reciprocamente heterogêneos e acidentalmente reunidos pelo contrato, enquantoque na de genus a pluralidade é estruturalmente homogênea, embora sinteticamentedesignada, e da qual só uma parte é prestada.6

Distingue-se, ainda, a alternativa da condicional (v. nº 145, infra), em que esta se achana dependência de um acontecimento futuro e incerto, enquanto que naquela o objeto ésempre certo, ficando a solução apenas dependente da escolha. A obrigação alternativatambém não se confunde com a obrigação acompanhada de cláusula penal (nº 149,infra).

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Como visto, a obrigação alternativa é mais vizinha da facultativa, e tanto que, às vezes,se tocam,7 embora esquematicamente se diferenciem, pois se alguém deve um cavaloou um boi, a unidade obrigacional abraça uma pluralidade de objetos e extingue-se pelaunidade da prestação. A obrigação facultativa é, porém, simples: o devedor temobrigação de entregar um cavalo -; esta a res debita, mas guarda a faculdade de entregarum boi, quitando-se da obrigação de pagar o cavalo. O efeito prático da distinção égrande e merece ser esclarecido, tanto no que se atém ao poder do credor limitado aexigir a res debita, e não uma das duas coisas, como ainda no que diz respeito àimpossibilidade da prestação estudada na parte final deste parágrafo.

O legislador brasileiro cogitou exclusivamente da obrigação alternativa, reservando aosescritores os recursos doutrinários para os lineamentos dogmáticos da facultativa.

O ponto fundamental de focalização das obrigações alternativas está no que se chama a"concentração" da prestação, que de plúrima e indeterminada passa a simples edeterminada, posto que como em todas as obrigações, a indeterminação não pode serabsoluta, nem perpétua. Substancial a todas as luzes, de vez que a solutio deverá operar-se mediante uma só prestação. Imprescindível que se concentre para a execução, osautores todos põem nas alturas o fenômeno da escolha, a qual, se na sua qualificaçãodivide os escritores, que ora nela vêem um poder ou direito subjetivo (Barassi), ora umdever (Rubino), apazigua-os no que se refere a encarecer sua relevância.8

Disputam, ainda, os doutores se a escolha constitui direito ou dever. Inclinamo-nos pelacaracterização como direito ou poder, já que é transmissível aos herdeiros do devedorou do credor, e transfere-se ao cessionário com a obrigação a que acede.9

Implica a concentração uma escolha, dissemos, a qual poderá normalmente ser feita oupelo credor ou pelo devedor. Se as partes não tiverem fixado a quem compete, defere-seex vi legis ao devedor (Código Civil de 2002, art. 252 10), pois que ambiguitas contrastipulatorem est. Ocorrendo a pluralidade subjetiva, cabendo a vários credores ou váriosdevedores o direito de escolha, esta deve ser feita por unanimidade. Não chegando aacordo, a outra parte requererá lhes seja assinado prazo, findo o qual, sem umadefinição, o juiz decidirá. Ao juiz, igualmente, é deferida a opção, se as parteshouverem estipulado que a escolha cabe a um terceiro11 e este não puder ou não quiser,desenganadamente, assumir o encargo.

Regra é, e imponente, que pela concentração uma das coisas, precisamente, fica insolutione. Daí não poder o credor ser compelido a receber parte em uma, parte em outra,nem o devedor a pagar desta maneira. É da essência da alternativa a possibilidade deconcentração, e de tal monta que, se várias forem as prestações, mas a escolha já estiverevidentemente predeterminada, não haverá na verdade obrigação desta espécie.

A escolha é, por outro lado, definitiva e irrevogável. Uma vez realizada, concentra-se aobrigação, como se desde o início já fosse simples (Enneccerus, Barassi), salvo se aspartes houverem pactuado a retratação - pactum de variatione. Sendo, entretanto, aobrigação de prestações periódicas (como se estabeleceu no Projeto de Código deObrigações de 1965, art. 108), devolve-se o direito de escolha para cada período (ano,semestre, mês etc.).

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Afora esta exceção, outras ainda admitem os doutores, como a que consta de um pactumde variatione, se se estipula a faculdade de retratação dela; ou quando as circunstânciasautorizam a conclusão de sua não-definitividade,12 porém de modo irretorquível.

Também na falta de estipulação em contrário, não perde suas características se o direitode escolha for deferido para o momento da execução, pois que, então, a solutio coincidecom a concentração ou a ela se segue in continenti. Mas, se o devedor é condenado auma prestação alternativa e deixa escoar o prazo, sem que a realize, devolve-se aocredor, pela mesma razão que, se pertence ao credor e este não a exercita no termofixado, passa ao devedor.13

Basta, à escolha, uma declaração de vontade daquele a quem é reconhecida.14 Nãoexiste requisito formal para a escolha. Pode ela ser feita mediante comunicação escritaou notificação judicial, ou até pela simples entrega de uma das coisas, se competir aodevedor. Também, na falta de estipulação em contrário, a opção poderá ocorrersimultaneamente à execução. Não falta, porém, quem distinga e sustente que, se aescolha é do devedor, não é suficiente a simples declaração de vontade, exigindo-se aoferta real,15 o que entretanto não é expresso na lei, e se desfaz à observação de que emtoda dívida quérable não é o devedor compelido a levar a prestação ao credor.Admitimo-la como uma forma de escolha, tão-somente. O nosso Projeto de Código deObrigações explicitamente contentava-se com a mera comunicação de uma à outra parte(art. 110).

Uma vez operada a concentração, pela declaração de vontade ou pela oferta, produz aescolha o efeito de converter a obligatio alternativa numa obrigação simples, sujeita àsregras gerais a esta pertinentes. Aquela natureza alternativa, que perdura por toda a vidada obrigação, até o momento da concentração, desaparece com esta.

Cumpre observar, contudo, que, se no momento da formação uma das coisas já eraimpossível, a obrigação era aparentemente alternativa, e em tal caso não caberá falar emconcentração, desde o início afastada (Ruggiero). Mas, se compreendia várias coisas,das quais uma impossível originariamente, não se anula o negócio jurídico, que é válidoquanto às demais (Larenz), e, ainda mais, perdura a alternativa da obrigação.

A impossibilidade originária ou superveniente encontra tratamento específico, variávelsegundo a incidência das hipóteses que venham a ocorrer.

Deve-se, em primeiro lugar, atentar para o caso em que uma das prestações não possaser objeto da obrigação ou se torne inexeqüível sem culpa do devedor: a obrigaçãosubsiste quanto à outra (Código Civil de 2002, art. 253 16). A bem dizer, há umaconcentração automática, ou ex re ipsa, de vez que independe da vontade de qualquerdas partes. Decorre da própria natureza das coisas, ou, como se expressa Tito Fulgêncio,o fortuito torna simples a obrigação.17 Se, originariamente, a obrigação já era pura esimples, ou, por motivo superveniente, se tornou inexeqüível sem culpa do devedor, nãohá cogitar de escolha porque esta já se encontra realizada. Duas observações sugerem oprincípio. A primeira é quanto à inexeqüibilidade. Se a escolha for do credor e uma dasprestações se impossibilita por culpa do devedor, caso é de se aplicar o art. 255 doCódigo Civil de 2002.18 A segunda diz respeito à impossibilidade jurídica: uma dascoisas não pode ser objeto de obrigação, por iliceidade do objeto, anula-se a obrigação,

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uma vez que o atentado contra a ordem jurídica reside na própria alternatividade. Ahipótese de serem mais de duas as coisas não altera a aplicação do princípio.

Mas se a inexeqüibilidade é atribuída à culpa do devedor, variará a conseqüênciaconforme caiba a este a escolha, ou ao credor. Sendo do devedor, pode-se traduzir seuprocedimento como uma espécie particular de concentração: o devedor, a quemcompete a escolha, concentra a obrigação na prestação remanescente, e, pois, deve-acomo pura e simples (Código Civil de 2002, art. 254 19).

Se a escolha competir ao devedor, e, por sua culpa, todas as prestações seimpossibilitarem, a obrigação se concentra na que por último pereceu, cabendo a eledevedor pagar o seu valor, mais as perdas e danos. Razão de pura lógica. Se todasperecessem, menos uma, e a escolha cabe ao devedor, é como se esta operasse aconcentração nela. E vindo a se impossibilitar por culpa sua, o devedor está sujeito apagar o seu valor mais perdas e danos, como se fosse ela pura e simples. Se a escolhacompetir ao devedor, e a impossibilidade dever-se à culpa do credor, libera-se aquele,equivalendo a inexeqüibilidade culposa a incidência da opção sobre a prestação quepereceu.

Sendo, porém, a escolha do credor, o devedor, tornando impossível a opção, converte aalternativa em outra: o credor tem a faculdade de exigir a prestação subsistente ou ovalor da outra acrescido das perdas e danos.

No caso de todas as prestações se tornarem inexeqüíveis, sem culpa do devedor, aobrigação se extinguirá por falta de objeto. O Código Civil de 2002, no art. 256,20consagra um truísmo, tal como fizera o art. 888 do Código Civil de 1916. Se todas asprestações se tornam inexeqüíveis sucessivamente, concentra-se a obrigação na última.Perecendo esta, extingue-se a obrigação. Desde que não intercorra culpa de qualquer daspartes, extingue-se o vínculo. O mesmo ocorre, se a impossibilidade ocorreusimultaneamente. Se a última vier a impossibilitar-se por culpa do devedor, deve ele oseu valor e mais as perdas e danos (Código Civil de 2002, art. 255 21). Costuma-seressalvar a hipótese de mora de uma das partes. Sem razão, porém, porque nela já éínsita a própria culpa, respondendo o moroso pelos riscos da coisa, ainda no caso deforça maior ou caso fortuito.

Mas, se todas se impossibilitarem, menos uma, ocorre a concentração na última.

Se houver culpa do devedor, pelo perecimento simultâneo de todas e a escolha couberao credor, poderá este reclamar o valor de qualquer das prestações, mais perdas e danos,num símile com a obrigação simples: o credor tem o direito de converter a prestação noid quod interest. E, como lhe cabia escolher uma das prestações, exerce a opção sobre orespectivo valor, a que se faz acrescer o pagamento das perdas e danos, que o casodeterminar.22

Não cabendo ao credor a escolha, o devedor tem de pagar o valor da que por último seextinguiu, porque nesta se concentrou a obrigação, e indenizará ainda o credor pelasperdas e danos a que sua culpa der causa.

Se couber ao devedor a escolha, e uma das prestações impossibilitar-se por culpa docredor, fica o devedor liberado, a não ser que prefira satisfazer a outra, exigindo que o

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credor lhe indenize a que pereceu; se ambas se impossibilitarem por culpa ainda docredor, o devedor a quem competia o direito de escolha pode pleitear o equivalente dequalquer delas, e mais as perdas e danos.23

Se a obrigação for facultativa, em vez de alternativa, a solução é em princípio diversa,pois que somente existe uma coisa devida (una res in obligatione), perfeitamentedeterminada. Perecendo sem culpa, extingue-se a obrigação, ainda que remanesça aoutra, já que esta não é devida, mas acha-se in facultate solutionis, isto é, está no poderdo devedor desobrigar-se, substituindo-a à outra. Concorrendo, entretanto, a culpa dodevedor para o perecimento, não pode este beneficiar-se com a própria malícia, e, então,permite-se ao credor exigir o equivalente da obrigação principal com perdas e danos ouo cumprimento específico da obrigação supletória.24 Por outro lado, a impossibilidadeoriginária anula a obrigação, desvalendo argüir-se a possibilidade da supletória, poisque esta não é a res debita.25

Ocorrendo o perecimento da supletória, nenhum efeito terá sobre a obrigação, que éinicialmente determinada, e, pois, a coisa continua sendo devida. Apenas, em talocorrência perde o devedor a faculdade de substituir a res debita por uma outra infacultate solutionis, dado que esta não existe.26

145. Obrigação condicional e a termo

Em razão das modalidades que lhe podem eventualmente ser impostas, a obrigaçãopode ser pura e simples ou sujeita a condição, termo ou encargo (modus), o que, aliás, éaplicável a todo negócio jurídico. A generalidade do princípio não pode ser recebidacomo absoluta, pois que, se é certo que as condições não proibidas são permitidas, certoé, também, que há sortes inteiras de direitos e deveres incompatíveis com a oposição deconditio, como são os da família. Numa especificação certa, o campo de ação dascondições é o dos atos de natureza patrimonial, e, portanto, é aqui no direitoobrigacional, como em matéria de sucessão testamentária, que elas encontram,acolhida.27

Tratamos já com pormenor da teoria dos elementos acidentais do negócio jurídico,cogitando da condição, do termo, do modo, da pressuposição. Seria incorrer emrepetição enfadonha retomarmos o assunto, uma vez que, no particular das obrigações,têm cabida os princípios relativos às modalidades do negócio jurídico, aos quais ora nosreportamos (v. nos 95 e segs., supra, vol. I).

Com o fito de expor apenas as linhas gerais da doutrina, acode-nos recordar, transpondoe adaptando ao assunto aqui versado as noções já assentadas, que a condição é acláusula acessória que subordina a eficácia da obrigação a um acontecimento futuro eincerto. Pode, como toda outra, ser potestativa (quando depende o evento da vontadehumana) ou casual (independente dela), ou ainda mista, simbiose da casualidade e davoluntariedade. E, destacando a condição potestativa pura, que sujeitaria a eficácia daobrigação ao arbítrio exclusivo de uma das partes, recordamos sua invalidade (v. nº 96,supra), por ser defesa no art. 122 do Código Civil de 2002.28

Quando definimos acima a condição, não supusemos que cada obrigação somente sejasuscetível de receber uma condição única. Ao revés, um mesmo contrato, por exemplo,pode ser onerado por mais de uma condição, hipótese em que se forem conjuntas é

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essencial que todas se realizem; mas, se disjuntivas, bastante será o implemento de umasó.29

Das distinções e classificações correntes, a mais importante pelo seu conteúdo prático éa que as extrema em suspensivas e resolutivas. Na pendência da primeira, o efeito dovinculum iuris está suspenso, não adquirindo o sujeito ativo o direito a que visa. Por issomesmo, pendente a condição suspensiva, a obligatio ainda não exprime, nem podeexprimir, um débito - nihil interin debetur -, traduzindo apenas uma expectativa dedireito, sem ação correspondente.30 Mas, uma vez ocorrendo o seu implemento, namesma data deve ser cumprida a obrigação (Código Civil de 2002, art. 332),31 tudo sepassando como se esta estivesse em plena vigência, como se pura fosse, desde omomento de sua constituição. Reversamente, se não ocorrer, a obrigação desaparece,como se não tivesse jamais existido; o devedor não é devedor, como se nunca estivessepreso a compromisso, e o credor nenhum direito tem. Assim sendo, enquanto se nãoverificar a condição, o credor não tem o direito de receber a prestação, e, se o faz, odevedor tem ação de repetição do pagamento, por indevido.32

Sendo resolutiva a condição, a obrigação produz desde logo os seus efeitos, mas perdea eficácia, com o seu implemento, e voltam as partes ao estado anterior. Os direitosadquirem-se na sua pendência, como se se tratasse de obrigação pura e simples.Ocorrendo o acontecimento, atua sobre o vínculo, invalida-o, indo alcançar os terceiros,porque se extinguem todos os direitos a que a condição se opõe.33 Como conseqüência,os frutos percebidos não se restituem.

Indaga-se, com a maior pertinência (Clóvis Beviláqua), quem deve suportar os riscos aque a coisa acaso se sujeite, na pendência da resolutiva. E responde-se que, produzindotodos os efeitos a obrigação, encontra a teoria dos riscos seu princípio fundamentalprecisamente nesta circunstância. Se a coisa, então, perece ou se deteriora, por casofortuito ou força maior, sofre as conseqüências o adquirente, pois res perit domino, e onegócio jurídico produz todos os seus efeitos, como se fosse simples. Verificado oimplemento da condição, não haverá retorno ao estado anterior, por falta de objeto oupor se achar este em situação diferente, causado pela deterioração.34

Qualquer que seja a natureza da condição, não impede que a obrigação se transmita, sejaaos herdeiros por ato causa mortis, seja a terceiros por convenção inter vivos, se bemque com o mesmo caráter condicional.35

Quanto à condição impossível, já assentamos no nº 98, supra, que a impossibilidadefísica invalida a própria condição, deixando o ato produzir todos os seus efeitos comopuro e simples e a impossibilidade jurídica fulmina a eficácia da própria obrigação.

O termo é a modalidade temporal que pode acompanhar a obrigação, estabelecendo omomento em que há de começar ou há de cessar a produção de seus efeitos. Chama-seprazo o tempo que medeia entre o nascimento da obrigação e a superveniência dotermo. Não atua sobre a validade da obligatio, mas sobre os seus efeitos, somente, poisainda quando suspensivo (ex die), e, ao contrário da condição desta espécie, não obsta aque se adquira o direito a que visa. A distinção entre termo e condição acha-se feita (nº99, supra), em torno da ocorrência do evento, que naquele é certa e incerta nesta.

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A oposição de termo tem enorme importância na apuração das conseqüências dainexecução da obrigação, pois que o nosso direito, conforme veremos no nº 173, infra,adotou quanto às obrigações a termo a regra romana da constituição automática dodevedor em mora - dies interpellat pro homine, regra esta que não tem cabida na faltade prazo assinado. No devido lugar (nº 173, infra) estudaremos em minúcia o assunto.Limitamo-nos agora a traduzir o princípio, antecipando que a obrigação constituída paracumprimento em dia certo dispensa da parte do credor notificação ou interpelação, parapositivar-se a mora do devedor, ou vice-versa quanto à mora accipiendi. Mas, se não édeterminada a época do vencimento, o devedor ou o credor não estará em moraenquanto não for feita notificação ou interpelação.

Em princípio, tem o credor o direito de reclamar o cumprimento imediato da obrigação,quando se não lhe apõe termo. Uma vez ajustado ou imposto este, enquanto não éatingido a obrigação não é exigível, com todas as conseqüências da inexigibilidade,como, por exemplo, a insuscetibilidade de compensação.36 Casos haverá, contudo, emque a exigibilidade da obrigação se antecipa ao termo como estes: a) instauração deconcurso creditório sobre os bens do devedor; b) incidência de penhora sobre benshipotecados, empenhados ou dados em anticrese; c) cessação ou insuficiência degarantias do débito, fidejussórias ou reais, e, intimado o devedor, negar-se a reforçá-las;d) convenção de outro fato como autorizador da antecipação de pagamento.

Por ser a obrigação a termo inexigível, não nasce para o credor a pretensão, e, portanto,segundo o deduzido no nº 124, supra, não prescreve.

146. Obrigação principal e acessória

Como das próprias expressões se verifica, diz-se que é principal uma obrigação quandotem existência autônoma, independente de qualquer outra. E é acessória quando, nãotendo existência em si, depende de outra a que adere ou de cuja sorte depende.

O caráter acessório ou principal da obrigação é uma qualidade que lhe pode advir davontade das partes ou da lei. Pode-se configurar desde o momento de sua constituiçãoou aparecer supervenientemente. Podem ambas nascer geminadas ou dissociadas umada outra. Pode a acessoriedade referir-se ao objeto ou pode ocorrer como uma situaçãopuramente subjetiva.

A acessória convencional aparece quando os sujeitos da relação obrigacional, ajustam, apar da obrigação principal, outra que se lhe acosta, ou dela fica dependente, comoadjeta. Assim, se a uma confissão de dívida e compromisso de solvê-la (principal) se fazacrescer uma garantia, seja real (exempli gratia, penhor), seja fidejussória (fiança), aobrigação principal tem existência autônoma, pois que é suscetível de constituir-seindependentemente da outra; esta, que somente encontra sua razão de ser comocaudatária daquela, é acessória, e convencional, porque gerada pela declaração devontade.

Acessória legal não provém diretamente da vontade, mas dimana da própria lei. Ovendedor tem a obrigação de entregar a coisa vendida (principal) e ainda é obrigado aresguardar o comprador contra os riscos da evicção (acessória). São duas obrigaçõesdistintas, porque pode haver compra e venda sem garantia pela evicção, como podeainda, reforçando-a, prestá-la um terceiro pelo vendedor (v. nº 210, infra, vol. III). Em

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qualquer caso a este análogo, se a obrigação acessória se origina ex lege, distingue-se daacessória convencional quanto à constituição, não quanto aos efeitos, que uns e outrossão idênticos.

A relação de dependência estabelecida entre a acessória e a principal tem váriasconseqüências, todas porém subordinadas à regra geral accessorium sequitur principale.Assim, se a obrigação principal se extingue, a acessória automaticamente desaparece. Aprescrição dela implica a desta. A ineficácia da principal por via de regra reflete naacessória; mas nem sempre, pois que se a obrigação principal é nula por incapacidadedo devedor prevalece a fiança (acessória), na forma do art. 824 do Código Civil de2002, salvo se é dada a mútuo contraído por menor,37 em razão do princípio assentadono senatus-consulto macedoniano, sobrevivo no art. 588 do Código Civil de 2002.

Reciprocamente, a sorte da obrigação acessória não afeta a principal. Se vem, exempligratia, a caducar a garantia hipotecária, em razão da destruição da coisa ou resolução dodomínio, perde o credor o poder direto sobre o imóvel onerado, mas não sucumbe a suaqualidade creditória: prevalece, a parte debitoris, a mesma obrigação de pagar, que éprincipal, embora o bem hipotecado não mais exista ou venha a libertar-se (pelaresolução do domínio, no exemplo figurado). A independência da principal, quanto àacessória, é assim flagrante, pois que a sua extinção deixa íntegra a obrigação principal,enquanto que a extinção desta implica a cessação daquela.

A condição de acessoriedade ocorre ainda no que tange à transferência da obrigação,pois que o crédito, passando ao cessionário no estado em que se encontra, faz-seacompanhar de todos os seus acessórios.38

Há, contudo, distinguir "cláusula acessória" de "obrigação acessória", em que a primeirapressupõe um acréscimo, sem a criação de obrigação diversa. Assim, se num contratopreliminar de compra e venda as partes estipulam a sua irretratabilidade, inserem umacláusula que é acessória, por não fazer parte da natureza da promessa aquela qualidade,mas não constitui uma obrigação acessória, porque não implica uma obligatio a mais,aderente ao contrato, à qual o devedor esteja sujeito. Ocorre uma qualificação da mesmaobrigação do promitente-vendedor e do promitente-comprador. A distinção aqui feitanão é meramente acadêmica, pois que a toma, em outro sentido, Alfredo Colmo, paramostrar que as cláusulas acessórias quando ilícitas carreiam a nulidade do direitoprincipal,39 o que não é verdade quanto às obrigações acessórias, cuja ineficácia deixaincólume a principal.

147. Prestação de juros

Dentre as obrigações acessórias, menciona-se a prestação de juros, que se destaca, tantoem razão de merecer tratamento distinto, como ainda pela importância que representa navida dos negócios. Chamam-se juros as coisas fungíveis que o devedor paga ao credor,pela utilização de coisas da mesma espécie a este devidas. Pode, portanto, consistir emqualquer coisa fungível, embora freqüentemente a palavra juro venha mais ligada aodébito de dinheiro, como acessório de uma obrigação principal pecuniária.40 Pressupõeuma obrigação de capital, de que o juro representa o respectivo rendimento,distinguindo-se com toda nitidez das cotas de amortização.41 Na idéia do juro integram-se dois elementos: um que implica a remuneração pelo uso da coisa ou quantia pelodevedor, e outro que é a de cobertura do risco que sofre o credor.42

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Podem os juros ser convencionais ou legais, conforme a obrigação de pagá-los seorigine da convenção ou da lei. No primeiro caso, juntamente com a obrigação principalou subseqüentemente, as partes constituem a obrigação relativa aos juros,acompanhando a outra até a sua extinção. No segundo, é a lei que impõe a obrigaçãoacessória quanto a eles, como, por exemplo, o ressarcimento das perdas e danos nasobrigações em dinheiro.

Podem, ainda, ser moratórios ou compensatórios. Os primeiros são devidos como penaimposta ao devedor em atraso com o cumprimento da obrigação. Normalmente, areferência aos juros de mora vem ligada aos que se devem ex vi legis; mas não é exatoconfundir-se o juro legal com o de mora, pois nada impede, e ao revés a prática dosnegócios o confirma, sejam contratados ou convencionados juros moratórios, como, poroutro lado, a lei prevê também a existência de juros legais compensatórios. Dizem-secompensatórios os juros que se pagam como compensação pelo fato de o credor estarprivado da utilização de seu capital. Comumente, são convencionados. A lei prevê,entretanto, alguns casos em que são devidos juros compensatórios, independentementede ajuste; por exemplo, o mandatário deve-os ao mandante sobre as somas que a estecabia entregar ou dele recebeu, desde o momento em que abusou;43 o mandante deve-os ao mandatário pelas somas que a este adiantou para execução do mandato.44 Ajurisprudência, a seu turno, tem assentado alguns casos de juros compensatórios, como,exempli gratia, os devidos pelo poder desapropriante que se imite na posse do bemexpropriado, desde a data da imissão até a do efetivo pagamento. O que caracteriza adistinção entre um e outro é que do juro compensatório é afastada a idéia de culpa, oque não se dá com o moratório, que assenta no pressuposto do retardamento do devedorno cumprimento da obrigação principal.

Como acessória, a prestação de juros não pode existir senão adjeta a uma principal.Pode acontecer, contudo, que a obrigação relativa aos juros se destaque da principal, aponto de se poder exigir independentemente dela. Em tal hipótese, aparenta o juro ocaráter de obrigação principal, e há mesmo quem o considere assim (Ruggiero). Mas asua natureza acessória persiste, mesmo se houver exigibilidade autônoma. O juro, umavez vencido, pode constituir um débito exigível à parte do principal. Pela natureza, ésempre acessório. Eventualmente pode desprender-se do principal, mas juridicamentenão teria explicação sem ele. Como fruto civil, recebe o tratamento que o direito dá aosfrutos: acessório da coisa principal, segue-a. Nada impede que, tal qual ocorre com osfrutos naturais, venham a volver-se em coisas principais, quando, então, deixam de serfrutos. Assim, o juro pode ser destacado e transformado em obrigação autônoma. E nãoserá mais juro, neste caso, pois perde esta qualidade para traduzir coisa ou quantiaautonomamente.

O juro convencional tem passado por enormes variações através dos tempos, sob ainfluência das idéias dominantes em cada período. A Bíblia registra várias passagens emque ocorre a sua proibição, seja no Antigo Testamento,45 seja no Novo Testamento,onde ressalta a sentença pronunciada no Sermão da Montanha: "... benefacite et mutuumdate, nihilinde sperantes."46 Em Roma, afora a proibição lançada contra o anatocismo(cobrança de juros sobre juros), chegou-se à tarifação das taxas permitidas: 4% para aspersonae ilustres, 8% para os comerciantes e fabricantes, 6% para quaisquer outraspessoas.47 Mas ali também procuraram os inescrupulosos burlar a proibição, medianteinscrição, no instrumento, de quantia maior do que a mutuada, o que sugeriu a criação

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de uma defesa para o devedor - exceptio non numeratae pecuniae - com que este seopunha à pretensão do credor.48 Na Idade Média, a influência da Igreja tendo sidomarcante, generalizou-se a condenação à usura, que Santo Tomás profligava, ao dizerque aquele que recebe interesse, por pacto expresso ou tácito, peccat contra iustitiam.49A Igreja Católica proibiu a cobrança de juros durante séculos (concílios de Arles, 314;Nice, 325; Cartago, 345; Aix, 789; Latrão, 1139). A idade moderna tem controvertido asolução do problema, sendo notória a defesa da liberdade de estipular juros formuladapor Jeremias Bentham, nas famosas Cartas escritas de Grishow.

Não seria demais, portanto, que o nosso direito refletisse este desencontro de opiniões.O Código Civil de 1916 permitiu ajustá-los em qualquer taxa, com ou semcapitalização. Sentindo, porém, o legislador que os abusos especialmente nos períodosde crise são levados ao extremo de asfixiarem toda iniciativa honesta, baixou o Decretonº 22.626, de 7 de abril de 1933. Este diploma começa por criar uma limitação àconvenção usuária, vedando estipular juros maiores de 12% ao ano, suscetíveis somentede elevação de mais 1% pela mora. Cuidando do mútuo hipotecário, restringe aconvenção a 10% para as hipotecas urbanas e 8% para as rurais, e tarifa o financiamentoagrícola no prêmio de 6% ao ano. Estas disposições especiais foram mais tarde abolidaspelo Decreto-Lei nº 182, de 5 de janeiro de 1938, ficando a estipulação de juro tabeladapara qualquer natureza de negócio no limite de 12%. Proibiu ainda aquele decreto aprática do anatocismo, já vedada pelo art. 253 do Código Comercial de 1850, em quenão compreendeu o acúmulo de juros vencidos aos saldos apurados anualmente emconta corrente, tal qual naquele diploma. Regulamentando a prática bancária habitual,conhecida pelo nome de desconto por dentro, o decreto proibiu que a importância dosjuros pagos por antecipação exceda as taxas máximas tarifadas, nas operações a prazosuperior a seis meses. Vedou também a estipulação de multa superior a 10% do valor dadívida, e a reputou estabelecida para atender às despesas judiciais e aos honorários deadvogado, somente exigível em ação judicial. E considerou vedado o recebimento detaxas maiores do que as permitidas na lei, ainda que a título de comissões. Contra oinfrator instituiu penalidades de caráter civil e criminal. As primeiras consistem nanulidade pleno iure do contrato usurário, com direito, ao lesado, de repetição do quepagou a maior. Classificando como delito de usura qualquer manobra tendente a ocultara verdadeira taxa de juro e fraudar a lei, sujeitou o agente à pena de prisão por seismeses a um ano e multa de cinco a cinqüenta mil cruzeiros, agravada no caso de se valero credor da inexperiência ou das paixões do menor, da deficiência ou da doença mentaldo devedor, ou da aflitiva situação em que se ache este ao contratar. Mais tarde, com oDecreto-Lei nº 869, de 18 de novembro de 1938, a usura pecuniária foi definida comocrime contra a economia popular, punível com a pena de seis meses a dois anos deprisão e multa de dois a dez mil cruzeiros, além da nulidade da convenção usurária, queserá pelo juiz ajustada à medida legal, ou restituído o excesso pago, com os juros legaisa contar da data do pagamento. Posteriormente, a Lei nº 1.521, de 26 de dezembro de1951, substituindo-se ao Decreto-Lei nº 869, conservou estas regras.50

Com apoio no art. 9º da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964, o Banco Central doBrasil baixou a Resolução nº 389, de 15 de setembro de 1976, autorizando os bancoscomerciais a operar a taxas de mercado. E a Circular nº 82, de 15 de março de 1967,permitiu a cobrança da "taxa de permanência" nos limites da taxa da operação, para ostítulos que não forem liquidados no vencimento.

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O Supremo Tribunal Federal fixou jurisprudência, considerando que os limites doDecreto nº 22.626 não se aplicam às instituições financeiras, consignando-o na Súmula,Verbete 596.

A Constituição Federal de 1988, em disposição polêmica (art. 190, nº VIII, § 3º),limitou as taxas de juros reais, incluídos neles quaisquer acessórios, a doze por cento, aserem cobrados pelas instituições financeiras, punindo com crime de usura a cobrançaacima desse limite. Sustentamos sua inaplicabilidade imediata em artigo publicado naRevista Forense, vol. 304, pág. 30.

O Código Civil de 1916 estabelecia a taxa de seis por cento ao ano, quando nãoconvencionada. A prática dos negócios, aliada à depreciação da moeda, demonstrou asua insuficiência. O Anteprojeto de Código Civil de 1972, art. 400, estabeleceu critériodemasiadamente impreciso e fluido, reportando-se aos "correntes no lugar dopagamento, segundo a taxa bancária para os empréstimos ordinários". Em face denossas críticas (in Reformulação da Ordem Jurídica e outros temas, pág. 155), aredação foi mudada, resultando este artigo.

A nova norma (Código Civil de 2002, art. 406 51) estabelece uma gradação. Emprimeiro plano está a convenção. As partes podem estipular a taxa de juros moratórios,prevalecendo no seu cálculo a cláusula convencionada. Em segundo lugar, observa-se oque estiver estatuído em lei especial. Na falta de taxa legal ou convencional, ou quandoa obrigação mencionar os juros moratórios sem fixação de taxa, prevalece comoparadigma a taxa estabelecida para mora do pagamento de impostos devidos à FazendaNacional.

É de acrescer que, segundo jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, as instituiçõesfinanceiras não estão adstritas à cobrança das taxas de juros aos outros encargosestabelecidos pelo Decreto 22.626/33, que limita a 12% ao ano, com mais 1% em casode mora, para os empréstimos em dinheiro (Súmula, Verbete n° 596). Com aplicaçãodesta regra, os Tribunais aceitam a imposição de juros moratórios, nesses casos, comsubsistência da taxa estipulada.

Os juros moratórios, em razão de sua finalidade punitiva pelo retardamento daobrigação, são devidos independentemente da prova de prejuízo do credor (CódigoCivil de 2002, art. 407 52). O Código se refere às dívidas de dinheiro e às prestações deoutra natureza, quando lhes seja fixado valor pecuniário. Tal fixação pode vir desentença condenatória em quantia certa; ou sua liquidação obedecendo aos critériosestatuídos no Código de Processo Civil para as execuções ou sentença; ou arbitramentojudicial ou extrajudicial; ou, finalmente, acordo entre as partes. Desde que se trate deobrigação de prestação em dinheiro, quer originária quer por qualquer critério deconversão em espécie monetária, os juros moratórios são devidos. O ponto de partida(dies a quo) no seu cômputo varia conforme a natureza ou liquidez da dívida.

O nosso Projeto de Código de Obrigações fixou em 10% a taxa dos juros legais e a dosconvencionais quando as partes não hajam estipulado diferentemente, e estabeleceu nos12% o limite para qualquer estipulação, salvo o acréscimo de 1% a título de mora, sobpena de nulidade (art. 148).

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A fluência dos juros de mora tem ocupado a atenção do aplicador, especialmente porinexistir no Código Civil uniformidade de regras a respeito. A invocação de disposiçõesesparsas tem levado os nossos escritores a manifestarem opiniões desencontradas, comreflexo lamentável nos pronunciamentos jurisprudenciais. Invocando a velha parêmia iniliquidis non fit mora, discutem uns a sua incidência nas obrigações ilíquidas, ante aindagação se é possível admitir-se corram juros moratórios anteriormente à data dasentença que liquida a obrigação, isto é, que a torna objetivamente determinada eexistencialmente certa. Aparentemente é razoável dizer-se que se o devedor ignoraquantum debetur, não pode ser punido com juros moratórios. Aparentemente apenas,porque, se, ao contrário de diligenciar o cumprimento da obrigação, opõe resistência àpretensão do credor, não pode ser beneficiado com a dilação até o termo do litígio, parapagar os juros moratórios somente após sentença de liquidação. Enfeixando em sistematodas as hipóteses previstas no Código Civil de 1916, Serpa Lopes oferece umadisposição ordenada da matéria,53 em seis alíneas: a) se a obrigação é líquida e certa,com prazo determinado de vencimento, são devidos os juros desde o termo, porque onão-pagamento constitui o devedor em mora pleno iure;54 b) se for positiva e líquida aobrigação, mas sem prazo, os juros fluem da interpelação, por ser ela necessária àconstituição do devedor em mora;55 c) correm juros desde o momento em que odevedor descumpre obrigação negativa, porque incorre de pleno direito em moraquando pratica o ato de que devia abster-se;56 d) se a obrigação provém de um delito,os juros são devidos desde quando foi perpetrado, porque a lei considera automática aincidência da mora;57 e) sendo a prestação não pecuniária, são devidos do momentoem que se lhes fixa o valor;58 f) nas obrigações decorrentes de ato ilícito, se não houvermotivo determinante de sua fluência anterior, correm desde a citação inicial.59 Não é,na verdade, fácil tratar o assunto sem uma discriminação das hipóteses, e toda aconfusão reinante está em tentarem alguns escritores formular regra uniforme ouconfrontarem disposições legais abstratamente.

As regras acima não têm, entretanto, aplicação, quando se tratar de decisão proferidacontra a Fazenda Pública, caso em que os juros de mora somente são devidos a partir dotrânsito em julgado da sentença condenatória se se tratar de quantia líquida, ou daquelaque, em execução, fixar valor se a obrigação era ilíquida.60 O nosso Projeto de Códigode Obrigações assentou uma regra (art. 147), em que estabelecia que, salvo disposiçãolegal ou convenção em contrário, as obrigações líquidas em dinheiro vencem jurosdesde que se tornem exigíveis, e, não havendo prazo, desde a constituição em mora.

Como acima ficou esclarecido, não permite a lei (Decreto nº 22.626) a cobrança dejuros, reprimindo assim o anatocismo. Como, porém, esta lei veio apenas disciplinar ecoibir a convenção usurária, deve entender-se no sentido de que proibiu a estipulação dejuros compostos. Não afetou, entretanto, a hipótese em que são devidos por força delei,61 quando os juros compostos são contados desde a data do crime, na indenização àvítima, assentando, assim, que o juro devido no caso de a obrigação originar-se de umdelito capitaliza-se.62

A Constituição Federal de 5 de outubro de 1988 limitou as taxas de "juros reais" a dozepor cento ao ano. Na falta de definição precisa, entende-se que esta norma (art. 192, §3º) não é auto-executável, dependendo de legislação complementar (Caio Mário daSilva Pereira, in RF, 304/30).

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148. Prestação pecuniária

Não existe uma obrigação que se qualifique e se classifique em especial como dedinheiro. Toda obrigação, qualquer que seja a sua natureza ou a sua origem, pode, numdado momento, ter por objeto prestação pecuniária. Às vezes ela o é desde onascimento, como no mútuo de espécie monetária, em que o mutuário se obriga arestituir ao mutuante o que recebeu em coisas do mesmo gênero, qualidade equantidade;63 outras vezes, era originariamente uma obligatio faciendi ou mesmodandi, que se impossibilita por culpa, e converte-se em valor monetário;64 outras ainda,é o dever de reparação do ilícito que se liquida em prestação pecuniária. Deixando,então, consignado não haver uma obrigação que possa receber a classificação específicade pecuniária, pois que é enorme a escala de variações das que num dado momentodevem solver-se pelo pagamento em dinheiro, cumpre atentar para a circunstânciaprecisa da solutio e examinar a obrigação que tenha por objeto uma prestaçãopecuniária.

O devedor libera-se mediante o pagamento de uma soma de dinheiro. E como este, naexpressão que se vulgarizou, é o denominador comum dos valores, cabe ao devedorefetuar a extinção da obrigação, entregando ao credor a soma devida. Questões,contudo, levantam-se, desafiando a argúcia do jurista, do economista, do financista, ajustificar que se reserve um lugar especial para a matéria. E, se em todo tempo mereceuatenção o assunto, maior a sua atração nas épocas de conjuntura, quando as emissõesinstilam a instabilidade da circulação fiduciária, provocando oscilações quedesarticulam a gama de valores.

Quem deve uma soma de dinheiro extingue a obrigação pagando a expressão monetáriaa ela correspondente. Acontece, porém, que a moeda não é dotada de um mesmo valor,mas, ao revés, apontam-se-lhe três diferentes: a) valor intrínseco, que corresponde aopreço específico de metal fino que ela representa; b) valor extrínseco ou nominal, que éaquele que o Estado impõe, seja à moeda metálica, seja ao papel-moeda; c) valorcomercial ou de curso, que traduz a estimativa da moeda, como mercadoria, nocomércio interno ou externo, e sujeito às oscilações que o fenômeno das trocas lheimpõe.65

Quem deve prestação pecuniária é obrigado a uma quantia, ou seja, uma quantidadenumerária de moedas, e deve solver entregando-a ao credor. Quaestio, entretanto, surgeao indagar-se qual daqueles valores poderá ela ter. E a resposta varia, na conformidadedas exigências do momento e da influência determinante do sistema em vigor. Sem nosaprofundarmos por uma pesquisa pelo tempo remoto, vemos no Código Comercial de1850 princípios atinentes à espécie, consignados no art. 195, a propósito da compra evenda, e no art. 431, que trata do pagamento em geral, ao enunciar que, na falta deestipulação a respeito da qualidade da moeda, entende-se ser a corrente no lugar dopagamento sem ágio nem desconto. Mais de meio século depois, o Código Civil de1916 estatui igualmente que o pagamento em dinheiro, sem determinação da espécie, sefaz em moeda corrente no lugar do cumprimento da obrigação.66 O devedor é obrigadoa uma soma, traduzida em uma cifra, e, desde que não há especificação da espécie(delito di valuta, na técnica italiana), libera-se com a entrega daquela quantia,descabendo ao credor qualquer recusa, sob pretexto de que, entre o momento daconstituição e o da solutio, tenha havido variação no seu valor intrínseco ou no seuvalor comercial.67

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Um e outro dispositivo legal aludem à ausência de estipulação em contrário, e o doCódigo Civil de 1916, ao tempo de sua elaboração, mais moderno e mais minucioso, foiexpresso ao ressalvar a liceidade do ajuste no sentido de que o pagamento se efetuasseem certa e determinada moeda, nacional ou estrangeira.

Os diplomas civil e mercantil, traduzindo as idéias vigentes no seu tempo, e queperduraram por alguns anos, consagravam a concepção liberal ou livre-cambista,prestigiavam a convenção livremente ajustada e aceitavam que a moeda do pagamentofosse escolhida pelas partes, em papel ou em metal, corrente no país ou de importação.Admitia-se, mesmo, que o devedor de determinada espécie monetária era obrigado a darcorpo certo, entendendo-se que seu débito era de coisa e não de quantia. A res debitahavia de ser entregue ao credor tal como estipulado fosse, a não ser que faltassemaquelas moedas, e só então podia exonerar-se o reus debendi com o pagamento do valorem moeda corrente.68

O princípio, pois, geral e vigente, tanto da matéria cível quanto mercantil, dizia que odevedor se libera em regra pelo pagamento da quantia devida, em moeda corrente, peloseu valor nominal, a não ser que interfira ajuste em contrário, por cuja via as partesespecificam a moeda, que constitui assim, e por força do pactuado, a qualificação da resdebita. Era, portanto, o conceito nominalista que se instituía como norma geral, a que aspartes recorreriam como dado informativo da solutio. Este critério integrava o Brasil nacorrente das legislações que conciliavam a adoção da regra legal de solução dasobrigações como princípio da autonomia da vontade, sobrepairante ao direitoobrigacional e em particular ao do contrato. Força é assinalar, e neste ponto situa-se atônica do regime então vigente, que o preceito não constituía ius cogens, sendo portantolícito adotarem os interessados valores diferentes e determinarem a espécie da moeda dopagamento ou a qualificação da dívida como um valor estável, compelido pois odevedor a solver não pela soma numérica originária, mas pelo seu equivalente na moedado dia do pagamento, sujeita às oscilações do mercado, intercorrentes. A regra era oprincípio nominalista, que os interessados, contudo, tinham a faculdade de afastar, aosabor de suas conveniências, mas que não relegavam senão de raro em raro, porque anossa moeda era estável. Ora, se o nominalismo atende a todas as exigências nas épocasde estabilidade financeira, atenta contra a intenção das partes nos períodos deconjuntura,69 além de afrontar o princípio ideal de justiça. Eis por que, nessas quadras,campeiam as técnicas de fugir ao nominalismo e proliferam os recursos à eleição decritérios artificiais de estabilização dos valores (cláusula-ouro, cláusula-mercadoria,cláusula valor-ouro, cláusula de pagamento em moeda estrangeira etc.).

Sentindo a agudeza do problema e a gravidade da situação nacional, e como quepressentindo a crise maior que haveria de eclodir alguns anos depois, o legisladorbrasileiro, 17 anos após a vigência do Código Civil de 1916, subverteu os conceitosliberais até então vigentes. Tal como aconteceu com outros sistemas legislativos - comoo belga pelos decretos reais de 2 de agosto de 1914 e 25 de outubro de 1926,70 ou oalemão pelo Decreto nº 92, do governo militar (KRG-51), contrário às cláusulas deestabilização71 - criamos no Brasil um novo sistema de solução de obrigações deprestação pecuniária, com caráter de ordem pública. E é nisto, também, que consiste atônica do novo regime monetário: ter o sentido de ius cogens. Com o Decreto nº 23.501,de 27 de novembro de 1933, declarou o legislador nula a estipulação de pagamento em

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ouro, ou em determinada espécie monetária, e instituiu o curso forçado do papel-moedacirculante, interdizendo a adoção de qualquer meio tendente a restringi-lo ou recusá-lo.

Para bom desenvolvimento das idéias, cumpre aqui definir e distinguir o que seja cursolegal e curso forçado, conceitos que estão muito distorcidos, e por isto mesmoprovocam sérios desentendimentos. Curso legal é o efeito liberatório nos pagamentos,que a lei atribui a uma ou mais moedas num determinado país. O dólar tem efeitoliberatório ou curso legal nos Estados Unidos, a lira na Itália etc. Em princípio, o cursolegal não é incompatível com o ajuste realizado pelos interessados, quanto àdeterminação da espécie monetária em que se fará o pagamento. Diz-se que a moedatem curso forçado quando a lei determina que um certo padrão monetário dotado decurso legal tem de ser obrigatoriamente aceito pelo credor, não podendo ser recusado oseu poder liberatório pela convenção das partes. Isto, e não a inconversibilidade dobilhete de banco ou da cédula pecuniária, é o que constitui o curso forçado.72 E foi estecurso forçado que o Decreto nº 23.501, após outros que não haviam esboçado,instituiu.73

Mais tarde, sofreu alteração provindas da Lei nº 28, de 15 de fevereiro de 1935; doDecreto-Lei nº 236, de 2 de fevereiro de 1938; do Decreto-Lei nº 1.079, de 27 de janeirode 1939; do Decreto-Lei nº 6.650, de 29 de junho de 1944; e do Decreto-Lei nº 316, de13 de março de 1967. Posteriormente, o Decreto-Lei nº 857, de 11 de setembro de 1969,revogou todos esses diplomas, consolidando os princípios relativos à moeda dopagamento. Em face deste diploma, são nulos de pleno direito todos os títulos eobrigações exeqüíveis no Brasil, que estipulem pagamento em ouro, em moedaestrangeira, ou por qualquer forma restrinjam ou recusem, nos seus efeitos, o curso legalda moeda. Não se aplicam, todavia, estas restrições: I, aos contratos e títulos referentes àimportação ou exportação de mercadorias; II, aos contratos de financiamento ou deprestação de garantias, relativas às operações de exportação de bens de produçãonacional, vendidos a crédito para o exterior; III, aos contratos de compra e venda decâmbio em geral; IV, aos empréstimos e quaisquer outras obrigações, cujo credor oudevedor seja pessoa residente e domiciliada no exterior, executados os contratos delocação de imóveis situados no território nacional; V, aos contratos que tenham porobjeto a cessão, transferência, delegação, assunção ou modificação das obrigaçõesreferidas no item anterior, ainda que ambas as partes contratantes sejam pessoasresidentes ou domiciliadas no País.

Este critério legal instituiu alteração sensível e profunda no liberalismo do Código Civil,cujo art. 947, § 1º,74 permanece suspenso, substituindo-se o regime nominalista pelo decurso forçado.

Indexação. A inflação criou uma enorme disparidade entre o valor nominal da moeda eo seu poder aquisitivo, ensejando ao devedor liberar-se mediante quantia que éexpressão numerária correspondente à obrigação, embora em valor real lhe seja muitoinferior; quem deve 100 e entrega 100 como solutio, em verdade, libera-se da obrigaçãopagando quantia que, em confronto com o valor contemporâneo da constituição dadívida, vale 80, ou vale 50, ou vale 30... O nominalismo monetário não passa, diz JeanNoirel, de uma ficção cômoda quando a moeda é suficientemente estável (Jean Noirel,L’Influence de la Dépréciation Monétaire dans les Contrats de Droit Privé, PaulDurand, L’Influence de la Dépréciation Monétaire sur la vie Juridique, pág. 82).

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Não confina com o ideal de justiça, portanto, a aplicação da teoria nominalista, porqueoferece ao devedor um meio de liberar-se mediante prestação que nominalmente apenasguarda paridade com o valor do débito, mas realmente lhe é inferior. Daí dizer-se que onominalismo é "perfeitamente justo em período de estabilidade monetária, porque,fundado na identidade das qualidades substanciais da moeda, está, ao contrário, emoposição formal com a intenção das partes quando o valor da moeda se modificanotavelmente entre a época do contrato e o dia do pagamento" (George Hubrecht,Stabilisations du Franc et Valorisations des Créances, pág. 15).

Por outro lado, e mormente nas épocas de instabilidade monetária como na inflação, oabandono da teoria nominalista pode criar condições insuportáveis para o devedor,afetar profundamente o comércio jurídico, e desorganizar a economia nacional, gerandoo colapso das fontes produtoras que necessariamente mobilizam crédito.

Como fórmulas amenizadoras dos males nominalistas, imaginam-se técnicas especiaisde prender-se a obrigação a um valor-paradigma, escolhido dentre aqueles quehabitualmente no mercado sofrem menor margem de instabilidade. Defendendo-se darigidez arbitrária da solutio em moeda que não espelha em valor aquisitivo a cifranominal do débito, criam-se as chamadas cláusulas monetárias: uma é a escala móvel(escalator-clause, clause d’échelle mobile), mediante a qual as partes, que contratampara execução sucessiva ou simplesmente diferida, estipulam que a importâncianumérica do pagamento oscilará para mais ou para menos, na razão de um valor-padrãoou de fator determinado, que pode ser o preço de uma certa moeda mais estável ou deuma determinada mercadoria (cláusula-mercadoria), ou simplesmente o índice geralabstrato do custo de vida (cláusula index-number).75

As cláusulas monetárias, em si mesmas, são tecnicamente valiosas e moralmenterecomendáveis: de um lado amparam o credor, quando impedem que o devedor seaproveite do fenômeno inflacionário, para liberar-se mediante a entrega de uma somaaparentemente correlata da res debita, porém intrinsecamente muito inferior a ela; e poroutro lado defendem o devedor, evitando que o credor encareça o valor da prestaçãocomo garantia contra a depreciação monetária. Embora importem no pagamento desoma superior nominalmente à quantia devida, têm o mérito de afrontar o problema comfraqueza e lealdade, em vez de esboçarem uma técnica defensiva por linhas oblíquas,conducente a resultado igualmente inflacionário, como ocorre quando o credor eleva ataxa de juro e o fornecedor sobrecarrega o preço da mercadoria etc., tudo na previsão doaviltamento do poder aquisitivo da moeda, que o reus credendi procura compensarmediante majoração antecipada de custo. É perfeitamente aceitável e não pode encontrarrepulsa judicial a adoção de qualquer dessas cláusulas, em regime de curso legal damoeda, cujo único objetivo é facilitar o pagamento ao devedor, mas que não importa emcompelir imperativamente o credor a aceitar.76

Dentro, porém, do regime nominalista integrado na ordem pública, não há liberdadepara a adoção franca do sistema instituidor das dívidas de valor, como regra geral. Nãopoderão prevalecer as cláusulas monetárias (index-number, escalator-clause, cláusula-mercadoria etc.), ou qualquer meio tendente a vincular a prestação pecuniária a umíndice, se forem convertidos em instrumento pelo qual o credor possa recusar opagamento da soma originariamente devida, em papel-moeda que não seja o corrente,pelo seu valor legal. A adoção da teoria das dívidas de valor, que sobrepõe a estimativada moeda em Bolsa ao seu curso legal, fere as normas legislativas referentes ao tráfico

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monetário, quando implica a técnica de combate ao curso forçado, nos casos em queeste se impõe coercitivamente com integração na ordem pública. À vista do disposto noDecreto-Lei nº 857, e confrontando-o com os princípios informativos do curso forçado,ressalta a regra que a jurisprudência francesa a seu turno assentou,77 segundo a qual ascláusulas monetárias são válidas nos pagamentos internacionais e ineficazes nosnacionais, isto é, naqueles que não repercutem através das fronteiras.

Lícito será todo processo que importar em fórmula pela qual as partes estipulem avariação da prestação pecuniária, em atenção à elevação do valor pecuniário ou do cursoda prestação de uma das partes, ou em decorrência da oscilação de preço de umelemento componente. Visando à correção monetária, naqueles casos em que a ordemjurídica interna pode comportá-los, legislação especializada tem aberto clareiras, econseqüentemente considera-se lícito o reajuste das prestações: nas prestaçõesalimentares; nas pensões devidas em ações de desquite, contencioso ou por mútuoconsentimento; nos contratos de empreitada celebrados entre particulares ou com aadministração pública;78 na incorporação de edifícios coletivos (Lei nº 4.591, de 16 dedezembro de 1964); nos empréstimos para aquisição de imóvel sob financiamento doBanco Nacional da Habitação; nas Obrigações do Tesouro com valor reajustável (Lei nº4.307, de 1964); nos débitos fiscais (Lei nº 4.357, de 1964); nos débitos ao INPS (Lei nº4.357, de 1964); nas indenizações trabalhistas (Decreto-Lei nº 75, de 1966); na locaçãode prédios urbanos (Lei nº 4.494, de 1964; Decreto-Lei nº 6, de 1966; Decreto-Lei nº322, de 1967; Lei nº 5.334, de 1967; Lei nº 5.441; na Lei nº 6.649, de 15.05.1979,modificada pela Lei nº 6.698, de 15.10.1979); nas desapropriações e nas pensõesoriundas de responsabilidade civil.79

Deixando o casuísmo, que serve como ilustração, podemos fixar um conceito queharmoniza o princípio de justiça (na espécie traduzido pelas cláusulas monetárias) coma necessidade de segurança, fundamental no enquadramento do problema relativo àsolução das obrigações de prestação pecuniária. Esta conciliação somente é possívelmediante utilização moderada da cláusula de escala móvel ou outras semelhantes, e estamoderação não é viável, e não terá a eficácia de se conter num plano de equilíbrio, senão for objeto de regulamentação legislativa. Deixadas à livre iniciativa das partes, oumesmo à vacilação incontrolada da jurisprudência, podem, na comparação feliz deMichel Vasseur, equiparar-se à injeção de morfina, cujos efeitos são imprevisíveis.80Esta conveniência da atuação legislativa ocorreu na Alemanha, onde o princípio derevalorização da moeda foi adotado pela jurisprudência após a Primeira GuerraMundial, tendendo a generalizar-se abusivamente, muito embora assentasse no art. 242do BGB, determinante da interpretação segundo a boa-fé. Reconhecendo que o malcausado pelo reajustamento das dívidas pecuniárias (a princípio envolventes tão-só dosempréstimos hipotecários e depois ampliando-se à generalidade das dívidas pecuniárias)punha em perigo a própria moeda, o terceiro Decreto-Lei, de 14 de fevereiro de 1924,declarou em princípio admissível a revalorização das dívidas pecuniárias, mas traçou oslimites de sua redução.81

A finalidade das cláusulas estabilizadoras consiste em proteger o contratante contra osefeitos da inflação conhecidos como fenômeno econômico, mas desconhecidos no seuaspecto quantitativo (Lilian N. Gurfinkel de Wendy, Depreciación Monetaria, pág.157).

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Socialmente, como economicamente, justifica-se a validade das cláusulas monetárias,82e dentro do regime do Código Civil poderiam encontrar a mais aberta adoção.Derrogado este e adotado o critério nominalista com visos de ordem pública, suautilização e seu emprego condicionam-se ao princípio fundamental do curso forçado,contido no Decreto-Lei nº 857, de 11 de setembro de 1969, acima aludido, e suaeficácia, como seu reconhecimento e aplicação pela Justiça dependem de nãotraduzirem a adoção de cláusula-ouro franca ou disfarçada ou de não dissimularemqualquer meio tendente a restringir ou recusar nos seus efeitos o curso forçado damoeda em circulação com curso legal.

Deve-se, pois, manter o princípio que impõe ao credor a recebimento do papel-moedacirculante. Mas não será nefasta a cláusula pela qual as partes se premunam contra asflutuações de seu valor, desde que não envolva repulsa à moeda de curso legal e respeiteo seu poder liberatório pelo valor nominal,83 respeitando índice que se relacione com oobjeto do contrato, ou com as atividades das partes (Jean Noirel, na citada obra de PaulDurand, pág. 132).

Na elaboração do Anteprojeto de Código de Obrigações, assentamos o princípionominalista (art. 45) e a nulidade das estipulações de pagamento em ouro ou em moedaque não seja a corrente, pelo seu valor legal, salvo quanto aos contratos, tendo porobjeto importações de mercadorias.

As cláusulas monetárias, em princípio, são admissíveis, porém sujeitas aos limites queforem estatuídos em lei ou determinados em regulamentos (art. 147). Este, aliás, é osistema germânico acima indicado, pois, se deixarmos à liberdade das partes a fixação,os abusos poderão campear. O tarifamento, porém, os conterá. Esta mesma doutrinamanteve-se no Projeto enviado ao Congresso Nacional, em 1965.

De futuro, e em face de sua aceitação doutrinária, poder-se-á assentar que, enquanto nãofor debelada totalmente a inflação, deverá manter-se o regime de curso forçado,tolerando-se a correção monetária mediante a adoção das cláusulas econômicas emonetárias sempre que a lei expressamente o autorizar, e nos limites que permitir.

O Código Civil de 2002, no art. 318, considera nulas as cláusulas restritivas do cursoforçado, ressalvando, contudo, os casos previstos na legislação especial.

A Lei nº 2.290, com a redação que lhe deu o art. 1º do Decreto-Lei nº 2.232, de 26 defevereiro de 1987, proibiu o reajuste vinculado a variações cambiais ou do saláriomínimo, salvo nos casos que excepcionalmente autoriza.

A Lei nº 6.899, de 8 de abril de 1981, regulamentada pelo Decreto nº 86.649, de 25 denovembro de 1981, determina a aplicação de correção monetária nos débitos oriundosde decisão judicial, incidente sobre qualquer dívida, inclusive contas e honorários deadvogado. Sendo líquida e certa a dívida, a correção calcula-se a partir do vencimento.Nos demais casos, a partir do ajuizamento da ação, sendo que nas ações pendentes nadata dessa lei, a contar do início de sua vigência.

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Capítulo XXIX - Cláusula Penal

Sumário: 149. Natureza e caracteres da cláusula penal. 150. Penaconvencional moratória e compensatória. Cláusula de arrependimento.151. Efeitos da cláusula penal.

Bibliografia: Clóvis Beviláqua, Obrigações, § 20; Ruggiero e Maroi,Istituzioni , II, § 130; Alberto Trabucchi, Istituzioni di Diritto Civile, nº266; Mazeaud e Mazeaud, Leçons de Droit Civil, II, nº 641; Serpa Lopes,Curso, II, nºs 111 e segs.; Tito Fulgêncio, Do Direito das Obrigações, nºs

389 e segs.; Orosimbo Nonato, Curso de Obrigações, II, págs. 303 esegs.; Hector Lafaille, Tratado de las Obligaciones, I, nºs 236 e segs.;Giorgio Giorgi, Obbligazioni¸ IV, nºs 448 e segs.; Ludovico Barassi,Teoria Generale delle Obbligazioni, III, nºs 353 e segs.; Andreas vonTuhr, Obligaciones, II, págs. 235 e segs.; Karl Larenz, Derecho deObligaciones, I, págs. 369 e segs.; M. I. Carvalho de Mendonça,Doutrina e Prática das Obrigações, ed. atualizada por José de AguiarDias, I, nºs 196 e segs.; Lacerda de Almeida, Obrigações, § 44; Hudelot eMetmann, Des Obligations, nºs 364 e segs.; Vittorio Polacco,Obligazioni, nºs 133 e segs.; Alfredo Colmo, De las Obligaciones enGeneral, nºs 163 e segs.; Colin e Capitant, Cours, II, nºs 106 e segs.;Planiol, Ripert e Boulanger, Traité Élémentaire, II, nºs 752 e segs.;Molitor, Obligations, I, nº 169; Mucio Continentino, Da Cláusula Penalno Direito Brasileiro; Scuto, Obbligazioni, nº 61.

149. Natureza e caracteres da cláusula penal

A cláusula penal ou pena convencional - stipulatio penae dos romanos - é uma cláusulaacessória, em que se impõe sanção econômica, em dinheiro ou outro bempecuniariamente estimável, contra a parte infringente de uma obrigação. Pode seravençada conjuntamente com a obrigação principal, e normalmente o é, ou em apartado(Código Civil de 2002, art. 409 1), e constitui uma das mais importantes modalidades depromessa condicionada.2

O Código Civil de 2002, repetindo o modelo de 1916, permite que a cláusula penal seestipule conjuntamente com a obrigação, ou em ato posterior. Incorre, assim, na mesmaimprecisão redacional do artigo. O que pretende o dispositivo estabelecer, tal qual ovelho Código, é que a pena convencional pode ser estipulada no mesmo instrumento daobrigação principal, como uma de suas cláusulas, ou um de seus itens, como pode coma mesma eficácia ser avençada em instrumento à parte, seja simultâneo, seja posteriorao outro. O que se requer é que, se em apartado, possa inequivocamente identificar-secomo sendo acessório, efetivamente, dele.

Discute-se qual a finalidade ontológica da pena convencional: se garantia doimplemento da obrigação, ou se liquidação antecipada das perdas e danos.3 Com oprimeiro destes objetivos, traz consigo um reforço do vínculo obrigacional: o devedor,que já o é em razão da obligatio, reforça o dever de prestar com o ajuste de multa, quelhe pode exigir o credor, se vem a faltar ao cumprimento do obrigado. Simultaneamentecom esta finalidade, a lei admite que a inexecução faculta ao credor a percepção dacláusula penal, que figura conseguintemente como a liquidação antecipada das perdas e

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danos, em que normalmente se converteria o inadimplemento. A finalidade essencial dapena convencional, a nosso ver, é o reforçamento do vínculo obrigacional, e é com estecaráter que mais assiduamente se apõe à obrigação. A pré-liquidação do id quod interestaparece, então, como finalidade subsidiária, pois que nem sempre como tal se configura.Mesmo naqueles casos em que tem este objetivo, não se pode dizer que o seja com todorigor, pois que pode faltar, e efetivamente falta, por via de regra, correspondência exataentre o prejuízo sofrido pelo credor e a cláusula penal. Daí a observação de Trabucchi, adizer que, ainda quando entendida como liquidação prévia de prejuízos, ainda assimimporta em reforço do vínculo, pois que o devedor, conhecendo o valor da sanção, seráestimulado a cumprir o obrigado.4 Vários escritores, antigos e modernos, sustentam queo seu único objetivo é a preestimativa das perdas e danos.5 Em contraposição, algunsjuristas, alemães principalmente, nela enxergam um caráter eminentemente punitivo.Hoje não mais vigora tão acendrado tom polêmico. E, se alguns dão preponderância aosignificado preestimativo dos prejuízos, e secundário ao punitivo,6 e outros, comoTrabucchi no lugar citado, realçam o papel de reforçamento sobre o indenizatório, osjuristas mais modernos sustentam que ela os reúne a ambos sendo ao mesmo tempo aliquidação antecipada das perdas e danos e a punição pelo descumprimento.7

Seja a cláusula penal estipulada juntamente com a obrigação ou em instrumentoseparado, evidentemente deve ser fixada antes do descumprimento, pois o contrário senão compadeceria com a finalidade econômica (liquidação prévia do dano) e menosainda se afinaria com a outra, já que o reforçamento de obrigação descumprida pareceriao que a linguagem popular caracteriza no refrão que alude a "pôr fechadura em portaarrombada". É a pena convencional, sempre, uma cláusula acessória, e tal como ocorrecom todas as obrigações acessórias segue a principal, à qual acompanha nas suasvicissitudes. Assim é que a ineficácia desta acarreta fatalmente a daquela,8 descabendoindagar da razão da nulidade e da ciência que tenham revelado as partes quanto àinvalidez do ato. Assim é que, inoperante este por incapacidade das partes, por falta deobjeto ou por contravenção à ordem pública ou aos bons costumes, perece emconseqüência a penal. Ainda mesmo que os interessados a hajam adotado na ciência deque o contrato é inoperante e a tenham estipulado com o objetivo de reforçá-lo, a sorteda cláusula penal depende da obrigação a que adere, pois do contrário as partes ausariam como instrumento para burlar a lei, e procurar por linhas travessas uma eficáciaque não conseguiriam diretamente, em virtude da contravenção à norma contida no atoreforçado por ela.9 Não há no Direito brasileiro princípio semelhante ao do art. 666 doCódigo Civil argentino, que admite aposição de cláusula penal para assegurar ocumprimento de obrigação que não possa ser judicialmente exigida, contanto que nãoseja reprovado pela lei.10 A recíproca, porém, não é verdadeira, de vez que a ineficáciaque eventualmente atinja o pacto penal não afeta a validade da obrigação a que adere. Éimportante frisá-lo, porque, mesmo no caso de se encontrar na pena convencional umaafronta a lei de ordem pública, a nulidade a ela apenas é adstrita, restando incólume aobrigação.11 No mútuo, por exemplo, em cujo regime a lei de repressão contra a usura(Decreto nº 22.626, de 7 de abril de 1933) estabelece a sua limitação a 10% do montanteda dívida (art. 9º), a obrigação principal não é prejudicada se a multa for ajustada amaior, muito embora tal procedimento se defina como ilícito ao mesmo tempo civil ecriminal.

Nos casos em que a lei admite se resolva a obrigação sem culpa do devedor, como porexemplo pelo perecimento natural ou fortuito do objeto, ou pela impossibilidade daprestação, também se resolve a pena convencional, como conseqüência do mesmo

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caráter acessório desta, que seria incompatível com a sua sobrevivência aodesaparecimento da relação jurídica ou do vínculo obrigatório a que adere.

Toda obrigação, de qualquer espécie, pode receber o reforço de uma cláusula penal.Freqüentemente vem esta adjeta às convencionais, em razão de que a mesma vontadecriadora do vínculo tem o poder de estipulá-la. É originariamente contratual, comocontratual o seu campo de incidência mais freqüente, e mesmo o seu mecanismo. Masseria inexato insulá-la no direito do contrato, como aliás procede Salvat, e antes deleGiorgi,12 pois que é lícito inseri-la no testamento, que é ato unilateral, punindo oherdeiro pela inexecução de legados ou encargos.13 Fora de as obrigações contratuais,também as decorrentes da lei, a par das penalidades que as acompanham por força damesma lei, podem ser igualmente reforçadas de penas convencionalmente determinadas,pois nenhuma incompatibilidade existe entre a natureza legal da obrigação e o caráterconvencional da multa. O assunto, aliás, tem sido objeto de cogitação em outrossistemas jurídicos, como o francês, no qual a jurisprudência anula as cláusulas penaisreferentes à responsabilidade delitual, não obstante militar a doutrina no sentido de suavalidade.14

Passível de discussão tem sido a taxinomia da cláusula penal, que em nosso direitocodificado ocupa lugar entre as modalidades das obrigações, por constituir uma espécieparticular de gerá-la, tal como ocorre no Código Civil alemão, arts. 336 a 345. O nossoLacerda de Almeida, tratando-a como "reforço das obrigações", aproximava-a dasperdas e danos e situava-a na zona destinada à "inexecução das obrigações";15 Lafaille,taxando-a de "obrigação de indenizar", encara-a no capítulo da inexecução.16 OAnteprojeto de Código de Obrigações de 1941 considerou-a no seu aspecto desucedâneo da liquidação de prejuízos, e Orosimbo Nonato o aplaude, por lhe parecermais fiel à lógica da classificação.17 Assim também nosso Projeto de Código deObrigações e o Código Civil de 2002.18

Em suma, pode a cláusula penal aderir a qualquer obrigação, seja esta positiva ounegativa. Em qualquer caso, expressa há de ser, e inequívoca. Não se afeiçoaria bem aosprincípios que resultasse implícita ou presumida, já que traz em si um objetivo penal, enenhuma pena é de aplicar-se por inferência, senão por disposição explícita. Mas não hámister, e todos os escritores o assinalam, seja redigida por forma sacramental eimutável, numa reminiscência descabida da stipulatio penae romana, que, esta sim, eradominada pela exigência formal.19

Quando a obrigação é a prazo, incorre o devedor de pleno direito na multa, desde que severifique o inadimplemento no termo. Mas, se não houver prazo marcado, é necessária aconstituição do devedor em mora, sem o que não pode ser pedida a aplicação da penal(Código Civil de 2002, art. 408 20), pois que, não sendo a obrigação a termo, ainexecução somente se caracteriza como conseqüência da constituição em mora.21

O problema da constituição em mora está contido no art. 397 do Código Civil de 2002,a saber se é mora ex re ou ex persona. Para a incidência da cláusula penal ou penaconvencional, nenhuma providência se requer da parte do credor. Positivado odescumprimento absoluto ou relativo da obrigação (no pressuposto de ocorrer aconstituição em mora), incorre o devedor faltoso pleno iure na cláusula penal.

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As partes, ao estipularem a cláusula penal, podem ter em vista a inexecução completa daobrigação ou apenas reforçar o cumprimento de uma de suas cláusulas, ou então punir amora do devedor. No primeiro caso (garantia do cumprimento total da obrigação), tem ocredor a faculdade de exigir uma ou outra, isto é, a prestação em espécie ou opagamento da pena. Já a pena convencional moratória, ou a que tenha por finalidadereforçar uma cláusula especial da obrigação, não traduz a mesma alternativa, podendoentão ser exigida conjuntamente com o cumprimento da obrigação principal (CódigoCivil de 2002, arts. 409 e 410 22). Pode ainda referir-se à hipótese de execuçãoimperfeita ou não satisfatória da obrigação, que tanto diz respeito ao tempo, e neste casose confunde com a penal moratória, como ainda ao próprio modo de realizar aprestação, que não corresponde à estipulação das partes.23

Aquela alternativa entre a prestação específica e a multa beneficia, é claro, apenas ocredor, e nunca se estende ao devedor inadimplente. Daí assentar-se que não tem odevedor a faculdade de escolher entre a pena convencional e o cumprimento daobrigação. Não tem o direito de prestar ou pagar a multa nem pode considerar-se acláusula penal um meio de romper-se o contrato, oferecendo-a o devedor emsubstituição da prestação.24 Para que se lesse na cláusula penal uma alternativa, serianecessário que o seu pagamento estivesse in obligatione, tal como vimos no nº 144,supra, o que obviamente não ocorre. O devedor o é, em verdade, da prestação, e, se adescumpre, surge para o credor, nesse momento, a faculdade de pedir a res debita oureclamar a multa. Para ele, devedor, a obrigação é uma só: cumprir o que se obrigou(una res in obligatione). Mas, se deixa de prestar, cabe ao credor escolher entre ocumprimento da obrigação e a multa convencionada. Se assim não fosse, e o devedortivesse a opção entre o implemento da obrigação e o pagamento da multa, a cláusulapenal desfiguraria a obrigação, que passaria a facultativa a benefício do devedor (duaeres in solutione) e perderia todo o sentido de reforço do vínculo.

O próprio credor não tem, em virtude da cláusula penal, duplicidade de prestações,alternativamente exigíveis, pois não tem direito a uma de duas soluções, a específica e amulta. Esta somente existe e será exigível depois de caracterizado o inadimplemento.

150. Pena convencional moratória e compensatória. Cláusula de arrependimento

A cláusula penal pode ser estipulada para o caso de deixar o devedor de cumprir atotalidade de sua obrigação, ou então, com caráter mais restrito, e por isto mesmo maisrigoroso, para o de inexecução em prazo dado. Na primeira hipótese o devedor incide napena se deixa de efetuar a prestação, na segunda torna-se devida a multa pelo simplesfato de não ter realizado a tempo, ainda que possa executá-la ulteriormente. Uma, aprimeira, se diz compensatória, e a outra moratória.

O artigo 410 do Código Civil de 2002 define uma cláusula penal nitidamentecompensatória. Estipulada para o caso de inadimplemento total da obrigação, abre aocredor a opção entre a execução da obrigação e a exigibilidade da pena convencional.Como alternativa que é, sobre os efeitos das obrigações desta natureza, realizando aopção, constitui-se uma concentração da obligatio. Não pode pedir o credor,cumulativamente, a obrigação e a penal compensatória, pois que a finalidade desta ésuprir ao credor o que o inadimplemento lhe retirou. Instituída com a finalidadecompensatória, substitui a prestação faltosa.

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A disposição do Código atribui à cláusula penal, para o caso de total inadimplemento daobrigação, o efeito compensatório automático, parecendo estabelecer que umaobrigação não pode conter senão uma ou outra, isto é, a compensatória e a moratória.Não é exato. Lícito será ajustar a penalidade para total inadimplemento, e outra paraassegurar o cumprimento de alguma cláusula isolada e para o caso de mora.

Pode acontecer, e com freqüência ocorre nos períodos inflacionários que a cláusulapenal não supre o descumprimento da obrigação. No rigor do artigo, descabe postular aimposição da pena convencional cumulada com a indenização por perdas e danos. OProjeto de Código de Obrigações de 1965, no art. 152, atentando para o caso, admitiaque ao credor fosse aberta tríplice alternativa: pedir a indenização, exigir ocumprimento da obrigação, ou aplicação da cláusula penal.

Não contendo o artigo uma disposição de ordem pública, é lícito estipular a cláusulapenal para total inadimplemento da obrigação juntamente com a indenização das perdase danos decorrentes da inexecução do obrigado (art. 416, parágrafo único).

Segundo o art. 411 do Código Civil de 2002, ao revés da penal compensatória, ou paratotal inadimplemento da obrigação, pode a pena convencional destinar-se a punir a morado devedor, ou assegurar a execução de uma determinada cláusula da obrigação. Nocaso de mora, será devida pelo atraso do devedor no cumprimento. Várias serão asmodalidades adotadas. Pode a cláusula penal aludir à falta oportuna na execução,punindo-a com uma certa soma fixa ou percentual sobre o valor da prestação faltosa;pode estabelecer punição continuada ou sucessiva, em que incorre o devedor por dia deatraso no cumprimento da obrigação; pode sofrer aumento gradativo, na medida em quea demora se estende; como pode conjugar a mora com a resolução do contrato, se atingirum lapso de tempo determinado. No caso de ser o reforço de determinada obrigação,incorre nela o devedor pelo fato de infringi-la.

A característica desta modalidade de penal é que não estabelece alternativa para ocredor. Ao revés, tem ele direito a pleitear cumulativamente a penal com o desempenhoda obrigação principal. E, caso esta não seja possível, ou lhe não mais convenha, pode ocredor exigir com as perdas e danos a penal moratória, desde que naquelas não ficaremestas embutidas.

Se é livre a estipulação da cláusula penal, livre também é a sua exigibilidade. O credorpode deixar de cobrá-la, como pode expressamente renunciá-la. Cumpre, todavia,interpretar a renúncia em termos estritos.

A distinção prática, se uma cláusula penal é compensatória ou moratória, às vezesoferece dificuldade. É claro que o título, perpetuando a vontade das partes, é o seumelhor intérprete e a ele o juiz deverá recorrer como fonte esclarecedora precípua, poisque a matéria é de hermenêutica da vontade.25 Na sua omissão ou ambigüidade, émister suprir os seus termos, e vem então o perquirir se as partes quiserem ajustar umapena compensatória ou simplesmente moratória. Em qualquer dos casos, sempre haveráum descumprimento, que é a conditio legis da incidência da pena. Mas, se a falta dodevedor, punida com a multa, for simplesmente o retardamento na execução ou noinadimplemento de uma cláusula especial ou determinada da obrigação, ela é moratória;se for a falta integral da execução, é compensatória.26 Em alguns casos, é típica aconceituação. Assim, a penal adjeta a uma obrigação negativa (obligatio non factendi) é

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compensatória, porque, consistindo o inadimplemento em uma ação proibida, o simplesfato de praticar o que estava interdito constitui infração integral, que a penalidadeajustada compensará. O mesmo, por via de regra, dir-se-á da obrigação de fazer,quando é infringida pela recusa do devedor ou quando o fato se impossibilita por culpasua. Não há, porém, incompatibilidade nenhuma entre a penal moratória e a obligatiofaciendi, quando o que se quer punir é a impontualidade da execução. A pena queacompanha a obligatio dandi em qualquer das suas modalidades (dar, entregar, restituir)é, normalmente, moratória, pois que em regra cabe execução específica ou cominaçãode entregar, mesmo que o devedor o não queira fazer, e, então, a penal visa a punir oretardamento na entrega, salvo se houver perecimento culposo do objeto ou recusa decumprir insuprível judicialmente, porque, então, não se pune o atraso, mas compensa-seo dano sofrido pelo credor, em razão de não receber a coisa devida. Este recurso aocasuísmo já é de si a mostra do tropeço na formulação de um princípio genérico. Não éfácil dizer, em tese, ou genericamente, quando é compensatória ou moratória a cláusulapenal. Mandam uns que se confronte o seu valor com o da obrigação principal, e, seressaltar sua patente inferioridade, é moratória,27 mas outros desprestigiam esteprocesso comparativo, para concluir que o critério não é absoluto;28 obviamente, a penase despe de todo caráter compensatório, mesmo eqüivalendo à obrigação principal,quando se estipula (o que é lícito) venha a consistir em prestação a um terceiro, comoseja um estabelecimento beneficente.29 Em conclusão, caberá ao juiz valer-se de todosos meios, a começar da perquirição da vontade, para, das circunstâncias, inferir eproclamar, nos casos duvidosos, a natureza moratória ou compensatória da multa.

E há relevância prática na distinção, uma vez que a compensatória, como indica aprópria denominação, substitui a obrigação principal, indenizando o credor das perdas edanos gerados do inadimplemento do devedor. Em razão desta finalidade, decorre da leia alternativa a benefício daquele, pois que a falta da prestação traz o dano, que apenalidade ajustada visa a corrigir ou compensar. Quando a cláusula penal é moratória,não substitui nem compensa o inadimplemento. Por esta razão, nenhuma alternativasurge, mas, ao revés, há uma conjunção de pedidos que o credor pode formular: ocumprimento da obrigação principal que não for satisfeita oportunamente, e a penalmoratória, devida como punição ao devedor, e indenização ao credor pelo retardamentooriundo da falta daquele.

Nenhuma razão existe, quer em doutrina quer em legislação, para que se repute vedadoo acúmulo de penas convencionais. É lícito, portanto, ajustar uma penalidade para ocaso de total inadimplemento e outra para o de mora ou com a finalidade de assegurar ocumprimento de certa e determinada cláusula.30

Outra distinção que cumpre fazer é a que destaca a cláusula penal a de arrependimentoou multa penitencial - pactum displicentiae dos romanos. Aquela reforça, como vimos,o vínculo obrigatório, estabelecendo que o devedor é obrigado a solver o débito (e esta asua principal finalidade), sob pena de sofrer a pena estipulada. A de arrependimento éuma cláusula acessória, em razão da qual o devedor tem a faculdade de não cumprir,pagando a quantia estipulada. A cláusula de arrependimento se diferencia, então, dacláusula penal pela sua natureza e pelos seus efeitos. Em primeiro lugar, ela autoriza oarrependimento do obrigado, enquanto que a penal reforça o vínculo, de vez que emrazão desta o devedor tem de cumprir, e é punido se não o faz, ao passo que, em razãodaquela, lhe fica facultado faltar à prestação. Na sua conseqüência, a pena convencionalenseja ao credor uma alternativa, entre a exigência da obrigação principal e a cobrança

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da multa. A de arrependimento institui também uma alternativa, mas a benefício dodevedor, que tem a faculdade de cumprir o obrigado ou pagar a quantia fixada. Oimplemento da obrigação acompanhada de cláusula penal é a prestação principal, quesomente o credor tem o poder de substituir pela multa; o da que vem seguida de multapenitencial (pactum displicentiae) é uma outra, ao arbítrio do devedor, que, mesmoquando demandado, tem o direito de se eximir da prestação específica, pagando o queficou estabelecido para o arrependimento. Embora se trate de institutos afins, como já omostrou Alfredo Colmo,31 os escritores de regra salientam estas diferenças que asextremam,32 acrescentando-se que a cláusula penal se estipula contra o devedor quenão cumpre, ou contra o que dê execução inadequada à sua obrigação, enquanto amulcta poenitencialis importa em indenização por uma expectativa não realizada.33

151. Efeitos da cláusula penal

Descumprida a obrigação garantida por cláusula penal, esta entra em funcionamento.Antes, não. Porque, antes, sua exigibilidade é potencial, sujeita ao requisito doinadimplemento. Se a obrigação é a termo, automaticamente incorre o devedor na penaconvencional, que pode desde logo ser exigida. Se a obrigação não tem prazo certo devencimento, o credor tem de constituir o devedor em mora, fazendo-o interpelarjudicialmente, e só então torna-se devida e exigível a multa pactuada.

O efeito fundamental da pena convencional, e que pode ser assinalado comodeterminação cardeal, é a sua exigibilidade pleno iure (Código Civil de 2002, art. 40834), no sentido de que independe da indagação se o credor foi ou não prejudicado pelainexecução do obrigado (Código Civil de 2002, art. 416 35). Daí autorizar a boahermenêutica do princípio a declaração de que o credor não está obrigado a alegar eprovar o prejuízo que do inadimplemento lhe resulte. O que tem a demonstrar, e isto é opressuposto da pena convencional, é a ocorrência da inexecução, pois que a vontade daspartes, neste passo soberana, não pode ser violentada, bastando assim que hajamestatuído uma técnica de libertar-se dos riscos e das delongas de uma apuração dedanos. Nem é jurídico olvidar que, independentemente da verificação do prejuízocausado, os interessados avençaram a penalidade como reforçamento do laçoobrigacional.36 Mesmo que o devedor produza a prova incontroversa da ausência deprejuízo em razão do inadimplemento, mesmo assim a penal é devida, pois que adispensa de demonstrá-lo se erige em praesumptio iuris et de iure, de que a inexecuçãoé em si mesma danosa sempre, o que afasta inteiramente a oportunidade de toda provacontrária.37 Se não merecer a consideração de prefixar perdas e danos, em razão de nãohaver prejuízo, não pode faltar com a sua finalidade assecuratória do adimplemento. Daíficar estatuído que ela é devida pelo só fato do inadimplemento. Moratória oucompensatória a pena, não precisa, pois, o credor de provar o dano. Basta demonstrar oinadimplemento e constituir o devedor em mora.

No regime do Código Civil de 1916, o devedor não se eximia do seu pagamento apretexto de ser excessiva, somente cabendo a redução por equidade, no adimplementoparcial. Estabelecida a redutibilidade por excessiva onerosidade, o que cabe ao devedoré questionar esta circunstância, sem que a alegação possa conduzir à exoneraçãocompleta.

Em doutrina, com repercussão jurisprudencial, questiona-se a hipótese de se verificar ainferioridade da cláusula penal comparativamente ao montante do prejuízo causado pelo

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inadimplemento. Regra é que cabia aos interessados estabelecer a penal ou relegarem-separa as perdas e danos, na forma do direito comum. O parágrafo único veio consagrar atese, ao assentar que não cabe indenização suplementar, salvo se convencionada. Assimdispondo, admite-se ser lícito às partes estipular a acumulação da cláusula penal com aindenização suplementar, caso em que uma não exclui a outra.

Convencionada a pena e a indenização suplementar, a primeira é considerada como aprefixação mínima do prejuízo. Para haver a sua suplementação, cabe ao credordemonstrar que o valor da cláusula penal não traz ressarcimento de prejuízo. Provado oexcedente, o juiz complementará o montante da pena convencionada com a estimaçãodo prejuízo. Ao revés, se o credor não convencer do prejuízo excedente, a satisfação dasperdas e danos fica limitada à cláusula penal.

Em um ou outro caso, entretanto, a cominação imposta não pode exceder o valor daobrigação principal (Código Civil de 2002, art. 412 38). O novo Código mantém umprincípio que no regime de 1916 já não tinha justificativa. E, na sistemática do atual,menos cabimento traz. A manutenção é fruto da pura força da inércia. Uma vez queestava, ficou. Somente as partes são interessadas em reforçar o cumprimento daobrigação com uma pena convencional. E, do mesmo modo que são livres de inseri-laou não, no texto ou em apartado, devem ter o arbítrio de graduá-la nos limites de suasconveniências, estimando-a em cifra mais ou menos elevada. Não é a defesa contra ausura que orienta a sua limitação, porque o mútuo é tratado como contrato típico, e podecomportar normas restritivas, como, aliás, aconteceu com o Decreto n° 22.626, de 7 deabril de 1933, que restringiu a pena convencional, para aquele contrato, no limite de10% do débito. A disposição do art. 412 do Código Civil de 2002 é inócua, tendo emvista que o seguinte permite a redução eqüitativa pelo juiz, e o art. 416 admite sejaestipulada indenização suplementar.

Tal como redigido, o artigo contém disposição de ordem pública, estatuindo a variaçãoda pena em qualquer cifra, desde que não ultrapasse o valor da obrigação a que excede.Restou, porém, uma disposição vazia, já que o Código permite, às partes, sobrecarregara cláusula penal com a indenização suplementar mesmo quando avençada no limitemáximo.

Do jogo dos princípios, que na realidade se apresentam contraditórios, fica o juizmunido de mais amplos poderes para, em face das circunstâncias, usar com sobriedadeo seu arbitrium boni viri, a fim de situar a pena convencional dentro de limitescompatíveis com o jogo dos interesses, no plano da liceidade e do equilíbrio.

Pode lei especial fixar outro limite para a cláusula penal, como aconteceu com oDecreto n° 22.626, de 7 de abril de 1933.

No tocante à redutibilidade da multa, a sua dogmática prevê, em particular, ocumprimento parcial da obrigação: depois de havê-la em parte executado, torna-se odevedor inadimplente, ensejando ao credor pedir a pena convencional. Mas, como estanão pode ser motivo de enriquecimento, recebê-la integralmente o credor importaria emlocupletar-se indevidamente à custa do devedor, que já teria proporcionado ao credor avantagem resultante do cumprimento parcial, e ainda estaria sujeito a pagar-lhe, namulta, um equivalente relativo das perdas e danos, previsto inicialmente para atotalidade da prestação.

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O artigo 413 do Código Civil de 2002 39 alterou fundamentalmente a sistemática dacláusula penal, e consagrou a intervenção judicial na economia do contrato. As partessão o melhor juiz da conveniência de estabelecer a punição para o caso deinadimplemento total ou parcial da obrigação, ou de demora no seu cumprimento. Noregime do Código Civil de 1916, admitia-se que, em razão do cumprimento parcial daobrigação, o juiz poderia reduzir o montante da penalidade, sopesando o valor da partejá executada, em confronto com o valor total da obrigação. Consagrou o novo duashipóteses de redução: cumprimento parcial e excesso de punição.

No tocante à redutibilidade, considera-se a situação daquele que, depois de haver emparte executado a obrigação, torna-se inadimplente. Considerando que a cláusula penalnão deve ser fonte de enriquecimento, o Código revogado concedia ao juiz a faculdadede reduzi-la na proporção do adimplido, confiando-lhe razoável arbítrio que somente eleera senhor de usar ou não. O modelo foi o art. 1.351 do Código Civil Francês. Vem,entretanto, o novo Código e converte em dever um poder, uma vez que o julgador teriao arbítrio de usar, se lhe parecesse que o inadimplente estava sendo sacrificado, oudeixar de utilizar se lhe parecesse que a penalidade era adequada, mesmo que aobrigação já estivesse executada em parte. Impõe a redução da penalidade, como normadirigida ao juiz. Deve ser reduzida pelo julgador, sempre que tiver ocorridoadimplemento parcial, e ainda que as circunstâncias demonstrem não serdesproporcional ao que está para ser cumprido. A redutibilidade da pena excessivaencontra amparo do Código Suíço e no BGB, como também estava no Projeto deCódigo de Obrigações de 1965, porém como uma faculdade. O que fere a autonomia davontade e contraria a natureza da pena convencional é o caráter imperativo da norma.Não sendo, porém, matéria de ordem pública, pode ser ajustada a irredutibilidade.

Reduzida será, ainda, se ao juiz parecer manifestamente excessiva. O juiz considerará anatureza do negócio e a sua finalidade.

O que pode servir de frenação às pretensões abusivas do inadimplente é o arbítrio domagistrado. Quanto à redutibilidade por implemento parcial, o juiz inspira-se noprincípio da equidade, dosando a diminuição da pena, segundo o seu arbítrio e tendo emconta o princípio da boa-fé no confronto com o "homem de negócios real e honesto".No tocante ao excesso da pena, sua redução dar-se-á por manifesto. O julgadorapreciará o valor da penal, confrontando-o com as demais circunstâncias do negócio, esomente o diminuirá se for manifesto, ostensivo, perceptível a todo surto de vista.

Em qualquer caso, o poder do juiz não pode ser levado ao extremo de minguá-la a pontode convertê-la em quantia ínfima - sestercio uno -, desfigurando a pena convencional eretirando-lhe a dupla finalidade, de reforço da obrigação e de liquidação prévia dasperdas e danos.

Sendo, no Código, instituído o princípio com caráter privado, é suscetível de derrogaçãopelas partes, que têm, portanto, a liberdade de ajustar o limite da redutibilidade, ouainda a própria irredutibilidade, tanto mais que a finalidade coagente da penaconvencional poderia frustrar-se com a perspectiva de sua diminuição, e o ajustecontrário a esta restitui-lhe todo o prestígio.40 Mas, se ficar instituída a redução poronerosidade excessiva, caberá ao juiz o poder de decretá-la, ainda contra a estipulaçãoem contrato, desde que se configure esse requisito e o interessado o requeira.

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No caso da penal moratória, como vimos, o que se tem em vista é punir o retardamentona execução do ajuste, ou o reforçamento de determinada cláusula. Em conseqüência, ocredor tem o direito de pedir o cumprimento da obrigação, juntamente com a multa, poisque o primeiro é devido em razão do vínculo principal, e a segunda é de ser paga pornão ter sido a obrigação executada oportunamente. O mesmo se dirá da penal que tempor objeto reforçar o cumprimento de uma dada cláusula, cujo cumprimento tem ocredor o direito de exigir juntamente com a pena estipulada.41

Quando a penalidade é compensatória, o inadimplemento da obrigação opera como umacondição que abre ao credor uma alternativa e lhe oferece dois objetos em solução: ou ocumprimento da obrigação, que pode pedir por via da ação correspondente ao título, oua pena convencional, que tem a finalidade de compensá-la do dano sofrido. Regra é,então, e corolário dos princípios que disciplinam as obrigações alternativas (cf. nº 144,supra), que o credor, optando por uma delas, concentra o vínculo, e não tem maisdireito de recuar, para seguir o outro ramo: electa una via non datur accessus adalteram; é irretratável a escolha e, incidindo sobre a pena, desaparece a obrigaçãoprincipal; mas não fica o credor, evidentemente, privado de haver as despesas que tenhaefetuado para obter o seu pagamento, bem como os honorários de advogado, que adoutrina já entendia devidos42 e hoje são de lei expressa (Código de Processo Civil, art.20).

Discute-se em doutrina se, em simetria com a diminuição proporcional da pena no casode execução parcial, pode pedir o credor a sua majoração, se se verificar a suainsuficiência para cobrir o prejuízo sofrido pelo credor. Exigida a multa e apurada suainferioridade relativamente ao dano resultante do inadimplemento, indaga-se se cabe aocredor o direito de postular a diferença. A jurisprudência reflete estes casos, em que setorna francamente inadequada a cláusula penal à verdadeira compensação do prejuízo,em confronto com a conseqüência da inexecução. Mas, não obstante isto, pelo nossodireito não é possível a complementação. O credor pode pedir ou o cumprimento daobrigação ou a pena convencional. Optando por esta, concentra-se a obrigação, e, se elafor insuficiente, de si mesmo se queixe por tê-la estimado em nível baixo.43

Sendo indivisível a obrigação, todos os devedores, e conseqüentemente seus herdeiros,incorrerão na pena (Código Civil de 2002, art. 414 44), ainda que a falta haja sidocometida por um só. Mas somente do culpado pode ser integralmente postulado,respondendo os demais pelas suas quotas-partes apenas, e, mesmo assim, ressalvar-se-lhes-á ação regressiva para se reembolsarem contra aquele que tiver dado ensejo à suaimposição.

O Código parte do pressuposto de que a indivisibilidade da prestação não subsiste nacláusula penal que, via de regra, é uma quantia em dinheiro. Indivisível a obrigação, temo credor direito ao seu cumprimento integral. Descumprida, absoluta ou relativamente,tem também direito a receber a pena convencional por inteiro. Caindo em falta um dosco-devedores, a cláusula penal atinge a todos. Contra o culpado, pode ser pedida suaaplicação integral, em razão mesma da culpa. Não podendo, ou não convindo, o credorpode exigir que todos os devedores lhe paguem a pena convencional. Neste caso,porém, aplica-se o princípio que impera na obrigação divisível com pluralidade dedevedores - concursu partes fiunt. Cada um responde pela sua quota-parte. Aos não

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culpados, que suportaram uma parte da pena, cabe ação de in rem verso contra aqueleque incidiu em culpa.

Não ocorrendo o que é o pressuposto do artigo 414, isto é, que também a cláusula penalseja indivisível, o credor pode pedi-la por inteiro a qualquer dos devedores, o qual terá,pelo mesmo motivo, ação regressiva contra o culpado.

Estabelecida a solidariedade na pena convencional, aplicam-se os princípios dasolidariedade, cada qual sendo devedor de toda a pena, e por inteiro - totum et totaliter.

A disposição do artigo 414 aplica-se a qualquer caso de obrigação indivisível, ainda quea prestação o não seja por natureza, porém hajam as partes convencionado aindivisibilidade.

Se a obrigação, ao revés, for divisível, a multa convencional só é devida por aquele dosdevedores que lhe tiver dado causa, proporcionalmente à sua parte na obrigação(Código Civil de 2002, art. 415 45), porque o caráter divisível desta permite que ocredor obtenha normalmente dos demais a satisfação do obrigado. O artigo 415 figurano Código apenas em relação simétrica com o anterior (art. 414). Sendo divisível aobrigação, cada um dos devedores somente deve a sua quota-parte no débito. Fraciona-se este em tantas obrigações, iguais e distintas, quantos são os credores, ou devedores(art. 257). Se o credor tem ação para receber de cada devedor a sua parte na obrigação,não pode tê-la para exigir a pena convencional, também divisível, senão a cada qual,uma vez que a pena é acessória da dívida, e, como tal, segue o principal. Da mesmaforma, e pelo mesmo motivo, o herdeiro do devedor de coisa indivisível não respondepara além do que deve o autor da herança. Estipulada solidariedade, ou estabelecida aincidência de pena convencional em coisa indivisível, cabe ao credor exigi-la por inteirode qualquer dos devedores, ressalvada a este ação de regresso contra o culpado. Aresponsabilidade do inadimplente, pela parte proporcional na multa, transmite-se aosherdeiros.

Dentro, ainda, do esquema dos efeitos da cláusula penal, entra a indagação da renúnciaa ela. É de toda evidência, e decorre mesmo do caráter privado da matéria, que o credornunca poderá ser compelido a pleiteá-la, e, menos ainda, a recebê-la, pela mesma razãoque lhe era lícito contratar sem estipulá-la. A renúncia expressa não oferece qualquerflanco a debate, pois que o credor, a quem a lei enseja o poder de reclamá-la, tem odireito de abrir mão dela. O que, entretanto, constitui assunto merecedor de atenção dadoutrina, e que tem sido cuidado pelos civilistas, é o atinente à renúncia tácita, emconseqüência da conduta ou da atitude do credor. Assim é que a aceitação dopagamento, sem reserva quanto à multa, faz presumir que o credor remitiu a penal. Igualpresunção de renúncia ou de remissão vige quando o devedor obtém uma concessão deprazo feita pelo credor, sem ressalva quanto à pena moratória.

Não há, porém, remissão da cláusula penal, por parte do credor que pede a resolução docontrato por inadimplemento a parte debitoris, pois que o devedor inadimplente ésujeito a perdas e danos, e, tendo a pena convencional a prefixação como uma das suasfinalidades, é devida a esse título. Toda a matéria da renúncia deve, contudo, sujeitar-seà observação, que Tito Fulgêncio muito bem realiza,46 de sempre entender-se qualquerrenúncia como de interpretação estrita, e, assim, é de manter-se a penalidade quando ocontexto do instrumento ou a atitude do credor não sugira francamente a sua remissão.

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Capítulo XXX - Pagamento

Sumário: 152. Execução voluntária. Pagamento. 153. Condiçõessubjetivas do pagamento. 154. Condições objetivas do pagamento. 155.Lugar do pagamento. 156. Tempo do pagamento. 157. Prova dopagamento.

Bibliografia: Clóvis Beviláqua, Obrigações, § 31; Ruggiero e Maroi,Istituzioni di Diritto Privato, II, § 130; Ludovico Barassi, Istituzioni diDiritto Civile, n° 203; Alberto Trabucchi, Istituzioni di Diritto Civile, nos

225 e segs.; Ludovico Barassi, Teoria Generale delle Obbligazioni, III,nos 228 e segs.; Karl Larenz, Derecho de Obligaciones, I, § 26; OrosimboNonato, Curso de Obrigações, 2ª parte, I, págs. 9 e segs.; Alfredo Colmo,De las Obligaciones en General, nos 544 e segs.; Giovanni Lomonaco,Delle Obbligazioni, II, 110 e segs.; Hector Lafaille, Derecho Civil,Tratado de las Obligaciones, I, nos 320 e segs.; Giorgio Giorgi, Teoriadelle Obbligazioni, VII, nos 8 e segs.; Andreas von Tuhr, Tratado de lasObligaciones, II, nos 54 e segs.; Hudelot et Metmann, Des Obligations,nos 501 e segs.; Serpa Lopes, Curso, II, nos 130-A e segs.; Gaudemet,Théorie Générale des Obligations, págs. 346 e segs.; Demogue, Traitédes Obligations, VI, págs. 5 e segs.; Mazeaud et Mazeaud, Leçons deDroit Civil, II, nos 731 e segs.; Planiol, Ripert et Boulanger, TraitéÉlémentaire de Droit Civil, II, nos 1.536 e segs.; M. I.Carvalho deMendonça, Doutrina e Prática das Obrigações, atualizada por José deAguiar Dias, nos 222 e segs.; Orlando Gomes, Obrigações, nos 55 e segs.

152. Execução voluntária. Pagamento

O desfecho natural da obrigação é o seu cumprimento. De sua própria noção conceitual,como vínculo jurídico atando temporariamente os dois sujeitos, decorre a existência deuma operação inversa, pela qual os vinculados se desatam. A isto dava-se o nome desolutio, vocábulo que herdamos - solução - e nos dá a idéia de estar o vínculo desfeito eo credor satisfeito. Paralelamente se emprega, com o mesmo sentido de ato liberatório, ecom muito maior freqüência, a palavra pagamento, que no rigor da técnica jurídicasignifica o cumprimento voluntário da obrigação, seja quando o próprio devedor lhetoma a iniciativa, seja quando atende à solicitação do credor, desde que não o façacompelido. É certo que a linguagem comum especializou o vocábulo pagamento para asolução das obrigações pecuniárias, mas nem por isto perdeu ele o seu sentidocientífico. Por mais, contudo, que o técnico se esforce na apuração semântica daspalavras, é sempre vencido pelo seu curso vulgar, ou normal. E, então, depois de muitolutar, acaba cedendo. Neste particular, o jurista, resistindo embora à vulgarização doconceito de pagamento como prestação pecuniária específica, acaba por admitir-lhe aplurivalência e fixar que traduz, em sentido estrito e mais comum, a prestação dedinheiro;1 em senso preciso, a entrega da res debita, qualquer que seja esta; e numaacepção mais geral, qualquer forma de liberação do devedor, com ou sem prestação.2Aqui, tratamos do pagamento como forma de liberação do devedor, mediante aprestação do obrigado, conceito que reúne as preferências dos escritores maismodernos.3

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Como execução voluntária, de obrigação de qualquer espécie, pagamento será a tradiçãoda coisa, na obligatio dandi; pagamento será a prestação do fato na obligatio faciendi;pagamento será ainda a abstenção na obligatio non faciendi. No dizer de Barassi,envolve tanto uma atitude estática como dinâmica do devedor, acompanhada ou não deuma atuação por parte do credor.4 O pagamento será, portanto, o fim normal daobrigação. Mas não o único, porque pode ela cessar: a) pela execução forçada, seja emforma específica, seja pela conversão da coisa devida no seu equivalente; b) pelasatisfação direta ou indireta do credor, por exemplo, na compensação; c) pela extinçãosem caráter satisfatório, como na impossibilidade da prestação sem culpa do devedor,ou na remissão da dívida.5 Deixando consignado que não podem ter os mesmos efeitostodas as modalidades extintivas,6 pois, enquanto umas, como a confusão, operam plenoiure, e outras, como a prescrição, exigem alegação, aqui falaremos do pagamento comomodalidade extintiva voluntária ou normal da obrigação, e no Capítulo XXXI, dasoutras espécies.

Questão que provoca pronunciamento dos doutores é a que se levanta em torno danatureza jurídica do pagamento, a saber se é um fato ou um negócio jurídico. Fortecorrente inclina-se na sustentação de sua natureza fática (Aubry e Rau, Ricci,Larombière, Espínola, Orosimbo Nonato), enquanto que outra é igualmente rica deautorizados nomes no sentido oposto, defendendo seu caráter negocial, sob ofundamento de que, na prestação que realiza o solvens, algo mais existe do que umacontecimento, pois que o acompanha um elemento psíquico - o animus solvendi,7 semo que se confundiria a solução da obrigação com uma liberalidade.

No rigor dos princípios, não se pode dizer, de maneira categórica e formal, nem que éum negócio jurídico nem que não o é, parecendo mais correta a opinião eclética deEnneccerus, Oertmann, Lehmann, entre nós adotada por Serpa Lopes e Orlando Gomes,para os quais às vezes tem todos os característicos de um negócio jurídico quando odireito de crédito objetive uma prestação que tenha caráter negocial (exemplo: aemissão de uma declaração de vontade), mas outras vezes não passa de mero fato,quando o conteúdo da obrigação não tem tal sentido, ou objetive simples abstenções ouprestações de serviços.8 Na verdade, nem sempre se torna necessária, para eficácia dopagamento, a vontade direta de extinguir a obrigação,9 como ocorre no exemplo de vonTuhr: se o devedor realiza o serviço, sem saber se tinha a obrigação de realizá-lo, nãotem importância discutir os efeitos próprios do adimplemento.10

Quando configurado como negócio jurídico, tanto poderá sê-lo bilateral, em vista derequerer a aceitação do accipiens, quanto unilateral, por completar-se com a atividadedo solvens. Freqüentemente é ato unilateral, porque se completa sem nenhumaparticipação volitiva do credor, tanto assim que pode ser feito a este pessoalmente,como pode ser realizado em seu benefício. Às vezes, nem o credor aparece, e às vezesse dá contra a sua vontade (invito creditori), quando o devedor põe a coisa à suadisposição ou consigna-a judicialmente. Casos há de solução, entretanto, que revestemnítida bilateralidade, de vez que o ato se não completa sem a aceitação do acipiente,como naqueles que têm caráter translatício do domínio. Nesses, não colhe objetar,contra a bilateralidade da solutio, com o argumento de que a dupla emissão de vontadese converte em ato contratual, e este se desfiguraria por ser extintivo e não criador dedireitos. E não colhe, de vez que nem somente para criar obrigações há contratos(Ruggiero), senão também para modificá-las e para extingui-las. Genericamenteconsiderado, o pagamento pode, portanto, ser ou não um negócio jurídico; e será

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unilateral ou bilateral, dependendo esta classificação da natureza da prestação, conformepara a solutio contente-se o direito com a emissão volitiva tão-somente do devedor, ouque para ela tenha de concorrer a participação do accipiens.11

Como todo ato jurídico, o pagamento requer a incidência de requisitos, uns essenciais,outros acidentais. Em primeiro lugar, é conditio legis do pagamento a preexistência daobrigação. No plano puramente ideológico, não se conceberia solutio sem a preexistenteobligatio, pois é para liberar desta o devedor que aquela se realiza. Transpondo a noçãoabstrata para o direito positivo, o legislador tem o débito em consideração, comofundamental do pagamento, a tal ponto que sujeita à restituição todo aquele que recebao que lhe não é devido,12 como espécie particular de enriquecimento indevido.

Condições subjetivas e objetivas envolvem-no ainda e chegam a atingir a sua essência epenetrar no plano mesmo de sua eficácia. A primeira diz respeito aos sujeitos (quemdeve pagar, a quem se deve pagar); a segunda refere-se ao objeto do pagamento e suaprova. E, finalmente, ocorre estabelecer as circunstâncias do lugar e do tempo dopagamento. Como são da maior importância, cuidaremos de sua dogmática nosparágrafos seguintes. Duas outras circunstâncias são ponderáveis: o lugar e o tempo desua efetivação, com todos os seus efeitos. Finalmente cabe tratar da prova e dosrequisitos da quitação.

153. Condições subjetivas do pagamento

Antes de descer à análise dos requisitos subjetivos do pagamento, é mister salientar que,quando personalíssima, a obrigação vigora tão-somente entre as partes e extingue-secom elas. Ao revés, se não o é, opera assim entre as partes como entre os seusherdeiros,13 aos quais se transfere, divisa ou indivisa, conforme seja ou não divisível oseu objeto.

Adotando método tradicional, cindiremos este parágrafo em duas seções, e estudaremosa situação do solvens, e em seguida a do accipiens.

A) De quem deve pagar

Quando a obrigação é contraída intuitu personae debitoris - em razão da pessoa dodevedor - somente a este incumbe a solução. O credor não pode ser compelido a aceitarde outrem a prestação, ainda que se lhe apresente melhor do que fora de esperar do verodevedor. A propósito, costuma-se exemplificar com as obrigações de fazer, como tipoobrigacional incompatível com a solução por parte de terceiro. Não pode, contudo, ser oexemplo recebido com visos de generalidade, porque, se é certo que no campo dasobligationes faciendi mais freqüentemente se avençam aquelas que têm em vistafundamentalmente a pessoa do devedor, não se deve afirmar que toda prestação de fatoé insuscetível de realização por outrem. Também neste tipo obrigacional, muita vez temo credor em vista o próprio fato (prestação fungível), que por outrem é executável, e,então, a solução pode operar-se partida de um estranho ao vínculo. Também naobligatio dandi, quando aliada a uma prestação de fato, pode surgir a circunstância denão ser admissível a solução por pessoa diversa da do devedor.

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Afora tais casos, regra é que qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la(Código Civil de 2002, art. 304 14), e não tem o credor o direito de recusar a solutio,partida de um estranho.

Diz-se interessado todo aquele que esteja vinculado à obrigação ou em quem estapercuta. Em primeiro lugar, o devedor, cujo interesse reside em desvincular-se; ou todoaquele que sofre a repercussão do vínculo obrigacional. O credor tem o direito dereceber, mas tem também o dever de fazê-lo. Concordando, o devedor efetua aprestação. Se o credor recusá-la, o interessado tem a seu alcance os meios adequados arealizar a prestação para o credor que não quer receber o pagamento invito creditore.Pode consistir na consignação em pagamento, na colocação da coisa à disposição docredor, ou até na simples abstenção.

Um terceiro não interessado, isto é, uma pessoa que não seja parte na obrigação nem lhesofra os efeitos, pode pagar em nome e por conta do devedor. Situado no recebimento ointeresse do credor, não pode ele recusar a prestação. É vedado, entretanto, ao terceironão interessado pagar em nome e por conta do devedor, quando este se opõe aopagamento. Mas não se pode qualificar o mandatário como um terceiro, porque eleprocede como se fosse o próprio devedor, por força dos poderes recebidos.

Descabe o pagamento por terceiro, nas obrigações personalíssimas, isto é, constituídasem razão da pessoa do devedor - intuitu personae debitoris. Vale dizer: somente cabe opagamento por terceiro quando há fungibilidade da prestação.

O artigo 304 do Código Civil de 2002 não prevê, tal como fizera o Projeto de Código deObrigações de 1965, se a oposição do devedor for injustificada. Nesta hipótese, devereputar-se válido, e revertido dos mesmos efeitos do que se efetua sem a oposição dele.

Se o credor recusar a solutio, o terceiro interessado tem o direito de se valer dos meiosconducentes à exoneração do devedor, como se este próprio fora. O terceiro, a quemfalta interesse para solver a obrigação, poderá proceder de maneira idêntica e compelir ocredor a receber, se estiver agindo em seu nome e por sua própria conta. Este, aliás, oprincípio que o Direito romano nos legou, através da palavra de Gaio: "Solvere proignorante et invito debitore cuique licet" (a qualquer é lícito pagar pelo devedor queignora ou não deseja o pagamento), e acrescenta ainda que é lícito tornar melhor acondição do obrigado, na sua ignorância ou contra a sua vontade.

Se a solutio é realizada por terceiro, por ordem do devedor, dá-se a sua sub-rogação nosdireitos creditórios, ocupando aquele a posição do credor, com todas as qualidades,privilégios e vantagens do crédito solvido. O mesmo se dirá do pagamento efetuado porterceiro interessado. Mas se o ato solutório é praticado em nome do próprio solvente,que paga como terceiro não interessado, fica-lhe o direito de reembolsar-se do que tiverdespendido, pois não se justifica que o devedor se beneficie do pagamento à custa deterceiro, uma vez que este o liberou da obrigação. O princípio deve compreender opagamento sem autorização do devedor, ou se ocorrer oposição injustificada deste, poisnuma ou noutra hipótese ele se beneficiou. O artigo 305 do Código Civil de 2002distingue, todavia, entre o reembolso do despendido, e a sub-rogação nos direitos docredor. A restituição do que pagou é o meio de se cobrir do que beneficiou o devedor. Asub-rogação importa em assumir todos os direitos e vantagens do credor, que não seconcede ao terceiro não interessado que paga em seu próprio nome. Nesta hipótese, não

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há sub-rogação, e não tem o terceiro, contra o devedor, a mesma ação do credor. O quelhe reserva a lei é uma ação própria, para cobrar o que despendeu (Código Civil de2002, art. 305 15), sem os privilégios e as vantagens atribuídos ao crédito solvido. Se oterceiro tiver pago antes do termo, haverá de aguardar o vencimento da obrigação. Estafaculdade de reembolso lhe é reconhecida, mesmo quando o pagamento efetuado porterceiro não interessado assume o aspecto de pura liberalidade, pois não se discute a suavalidade como solutio.16

Pode haver o caso de o devedor desconhecer ou opor-se a que um terceiro pague suadívida. Se, não obstante, efetuar-se o pagamento, pro invito, quer a justiça que odevedor não se locuplete com o prejuízo do solvens, e, então, a este será dadoreembolsar-se, não precisamente do que pagou, senão daquilo em que a solução tiveraproveitado ao devedor (Código Civil de 2002, art. 306 17). Esta a doutrina igualmentevigente em outros sistemas jurídicos, como no argentino (Código Civil argentino, art.728). E é razoável. No pagamento contra a vontade do devedor (pro invito), podeocorrer que este se oponha, com boas razões, convincentes mesmo, da inconveniênciada solutio, e, em tal hipótese, o gesto do terceiro, sobre contrariar a vontade do sujeitopassivo da obrigação, ainda lhe poderá ser danoso, ou quando menos indiferente. E nãoé de justiça que o terceiro, contra a vontade do devedor, adquira um direito a eleoponível, por um fato que lhe não traga benefício ou lhe dê prejuízo. Se, porém, invitodebitore, o pagamento lhe carrear vantagem, é justo e é legal que até o montante destareembolse o terceiro.18 Em qualquer caso, o pagamento feito por terceiro, invito velprohibente debitore, não pode piorar a situação do devedor. É um limite que não há deser transposto nunca.

O devedor pode ter meios para se defender na ação que contra ele venha intentar ocredor. Se o terceiro, com desconhecimento ou oposição do devedor - ignorante velinvito debitore - se lhe antecipa e paga, não lhe assiste o direito de reembolsar-se. Afaculdade de intentar a ação regressiva - de in rem verso - tem por fundamento impedirque o devedor se beneficie injustamente e se locuplete à custa do solvens. Daíestabelecer o Código Civil de 1916, no art. 932,19 que o devedor era obrigado areembolsar o terceiro até a importância em que o pagamento lhe foi proveitoso. Se odevedor dispõe de meios para ilidir a ação, desaparece o proveito da solutio, e, portanto,descabe o reembolso. E o dispositivo tem em vista qualquer que seja a exceção, denatureza pessoal do devedor, ou extintiva da obrigação.

Cabe, ainda, cogitar de pagamento por terceiro, em caso de que a lei não trata, mas quetem provocado os juristas, e não é de todo ermo de incidências concretas: dá-se quandoo devedor e o credor se opõem ao pagamento; dupla negativa; solutio invito debitoreatque creditore. Aqui, atendendo a que o terceiro é um perfeito estranho, a invadirjurisdições alheias, tem-se entendido que falta qualquer razão jurídica para que sejaadmitido o pagamento.20

Quando o pagamento importar em transmissão de domínio (Código Civil de 2002, art.307 21), é necessário, para a sua validade, que, além da genérica para os atos comuns davida civil, tenha o solvente capacidade para alienar, pois o ato é complexo, não selimitando a extinguir uma obrigação, senão, também, envolvendo a transferência aoutrem do direito de propriedade sobre a coisa. O pagamento que então se fizer, porquem não seja, por exemplo, dono do objeto, é ineficaz como qualquer aquisição a nondomino, muito embora não faltem ao devedor os requisitos gerais de capacidade. Mas se

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for dada em pagamento coisa fungível e o credor a tiver consumido, não mais poderá serreclamada deste, que, recebendo-a, e dando-lhe destinação normal, procede como verusdominus, e encontra-se a cobro de repetição, salvo se tiver procedido de má-fé aoreceber, como seria o caso do accipiens que tenha ciência de que a coisa não pertenceao tradens.22

Efetuado um pagamento assim indevido, conserva o prejudicado ação contra o solventepara indenizar-se do dano sofrido, em qualquer dos casos em que venha a prevalecer asolutio, e, conforme o procedimento daquele se caracterize como ilícito criminal, estaráo agente incurso ainda na ação penal que no caso couber.

Se a coisa não estiver ainda consumida, o verus dominus terá ação para persegui-la empoder do accipiens, o qual não lhe pode opor nem a boa-fé com que tiver procedido nema legitimidade do seu crédito, pois o poder de reivindicá-lo é inerente ao domínio, e estenão pode ser afetado pela conduta do tradens, em relação ao qual é como se fosse umato inexistente.

A diferença de tratamento nas duas hipóteses - de ter sido ou de não ter sido consumida- não provém de se graduar o direito do dono, mas da apuração da circunstância materialde sua existência, e em conseqüência da impossibilidade ou possibilidade de reavê-la oproprietário em espécie.

B) Daqueles a quem se deve pagar

O problema do destinatário do pagamento é outro aspecto das condições subjetivasatinentes à sua eficácia, já que o solvens não se limita a cumprir o seu próprio dever,senão que visa ainda a satisfazer ao credor e a desligar-se do vínculo obrigatório. Emlinhas gerais, e segundo a disciplina legal, o pagamento deve ser efetuado ao credorcomo seu destinatário natural, e em princípio não é eficaz quando feito a outrapessoa.23 Às vezes, entretanto, vale e extingue o vínculo, mesmo se realizado em mãosde pessoa diversa da do credor. Outras vezes, ao revés, não vale e não o extingue,quando feito ao próprio credor. O estudo, pois, do lado ativo das condições subjetivasenvolve esta tríplice verificação.

Regra é, então, e cânon fundamental da solutio, que é válido o pagamento efetuado aocredor ou a seu representante (Código Civil de 2002, art. 308 24). Identifica-se o credorno sujeito ativo da relação obrigacional, seja por indicação constante do título, se ela seorigina da convenção, seja independentemente dele, no caso de ter outra fonte.

O representante, que alguns escritores consideram como um terceiro, mas que naverdade não o é pela sua própria condição de alter ego do credor, tanto pode ser omandatário regularmente constituído, com poderes especiais para receber e quitar(representação convencional), como o gestor de negócios (representação oficiosa),como o representante que a lei põe à frente dos interesses do credor (representaçãolegal).

Se o devedor paga a quem oficiosamente faz as vezes do credor (gestor de negócios) éválido o pagamento. Pode ocorrer, ainda, o caso de se estabelecer a representaçãojudicial do credor, na figura processual do depositário, do administrador designado pelojuiz.

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Dentro da representação convencional deve inscrever-se o adiectus solutionis causa,que se acha portador de autorização, revestindo às vezes uma forma sumária demandato não completamente formalizado; como, ainda, a pessoa que se apresenta aodevedor munida de recibo do accipiens (Código Civil de 2002, art. 311 25). Neste caso,o fato material da apresentação do instrumento de quitação induz uma autorizaçãopresumida. Presume-se o portador mandatário, ou autorizado a receber. Comporta,entretanto, dúvida, se as circunstâncias contrariarem a presunção, como na hipótese defurto ou extravio do recibo, ou de notificação ao devedor cancelando a autorização antesdo pagamento. É que se trata de uma praesumptio iuris tantum, que cede a prova emcontrário, a inferir-se do que alinhamos aqui ou de outros fatos similares.

No caso especial de obrigação ao portador ou de eqüivaler a posse do título à qualidadecreditória, a apresentação dele ao credor faz presumir que o portador tem o poder ou aautorização para receber, salvo ao credor verdadeiro demonstrar a má-fé dodesapossamento. Considera-se que a posse do título ao portador traz consigo apresunção de sua propriedade, que justifica o pagamento, até ser o devedor convencidopelas vias ordinárias.26

O artigo 311 do Código Civil de 2002 sugere a comprovação de circunstâncias queconvençam da irregularidade da posse de estado de credor. Cumpre, entretanto, apreciá-las em face da negligência ou má escolha do credor, que terá permitido a pessoainidônea ter em seu poder a quitação ou o título da dívida.

Se o devedor paga a quem as circunstâncias demonstram não ser autorizado a receber,mas fica provada a versão útil, não será caso de compeli-lo a pagar de novo. Nasustentação da validade da solutio é de se invocar o paralelismo com o pagamento aoincapaz: se mesmo neste caso é válido em se provando que reverteu em seu benefício,válido também será o efetuado a quem, posto que não autorizado a receber, gerou aconseqüência benéfica ao credor.

Se falta ao accipiens qualidade de representante do credor, a eficácia do pagamentodepende de sua ratificação, ou aprovação do recebimento. O interessado na validade dasolutio poderá provar que o recebimento por terceiro, embora sem representação,reverteu em benefício do credor, e, por via de conseqüência, é eficaz e liberatório.27

Se feito o pagamento ao antigo credor, que haja cedido seu crédito a terceiro, e não aeste, em razão de ignorar o devedor a transferência, deve ser tratado como válido emrelação ao devedor,28 ressalvada evidentemente ao credor a faculdade de acionar oacipiente, para dele haver o que recebeu.

No caso de pluralidade de credores, há de se considerar a natureza da obrigação, se é ounão solidária, se divisível ou indivisível. Não sendo solidário o crédito, como se dá porexemplo no caso de morte do credor, em que a qualidade creditória se transmite aossucessores, o pagamento terá de ser feito pro rata, na proporção dos respectivosquinhões, pois cada um é dono de uma quota-parte do crédito, e só tem a faculdade deexonerar o devedor dentro das forças de sua expressão creditória.

Ainda, porém, que os créditos sejam individualmente fracionados, se a coisa devida forindivisível, o pagamento feito a um dos credores libera o devedor quanto aos outros,

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uma vez que, em qualquer caso de obrigação indivisível, qualquer dos co-credores tem afaculdade de receber a coisa por inteiro, com observância do art. 892 do Código Civil de1916 e do art. 260 do Código Civil de 2002, e é oponível aos consortes. Sendo eladivisível, cada um dos credores conjuntos tem direito a receber sua quota-parte na resdebita, e portanto seu poder de quitar é limitado ao seu quinhão.

No caso de obrigação solidária, o pagamento feito a qualquer dos credores tem efeitoliberatório, e é oponível aos demais, como da própria natureza da solidariedade ativa (nº141, supra).

Mencionando o título um terceiro como destinatário do pagamento, a qualidadecreditória se corporifica nele, que deve ser tratado como credor que é.

Se não forem observadas as condições subjetivas previstas, da titularidade do crédito ouda representação, o pagamento não é válido, e, portanto, não libera o devedor nemextingue a dívida. A ratificação posterior do credor, tem o efeito de convalidar a soluçãoque era inábil a quitar o devedor. Independentemente de ser ratificado pelo credor, osolvens tem a seu benefício a defesa fundada na versão útil. A lei não se compadececom o locupletamento injusto do credor. Se a solutio reverteu em proveito deste, éválido o pagamento, até o montante em que ele se beneficiou.

Merece atenção especial o pagamento ao credor putativo (Código Civil de 2002, art.309 29). Chama-se credor putativo a pessoa que, estando na posse do títuloobrigacional, passa aos olhos de todos como sendo a verdadeira titular do crédito(credor aparente). A validade do pagamento a ele realizado não depende de que se faça,ulteriormente, a prova de não ser o verdadeiro ou de ser vencido numa ação em que sedispute a propriedade da dívida. A lei condiciona a eficácia da solutio, num caso assim,a dois requisitos: ter o accipiens a aparência de verdadeiro credor, e estar o solvens deboa-fé.

No primeiro caso, credor putativo será o primitivo credor se o devedor não temconhecimento da cessão do crédito; o portador do título de crédito, ainda que dele tenhasido desapossado o credor; o herdeiro aparente; o legatário cujo legado não prevaleceuou caducou. De boa-fé se diz o solvens se ignora que aquele que se lhe apresenta comocredor não tem esta qualidade. Estando o devedor de má-fé, não é válido o pagamentoao credor aparente.

É claro que, se o solvente tem ciência da contestação à qualidade do credor, se foinotificado da demanda, ou se é convencido de conluio, não vale a solutio. Preenchidosos requisitos de validade, não pode o verdadeiro credor, mesmo se vencedor nademanda, agir contra o devedor, invocando a sua qualidade, ainda que evidenciada emjuízo, porque, até o momento em que isto ocorra, o credor putativo passa como sendo osujeito ativo da obrigação. É claro que as circunstâncias peculiares de cada caso devemser ponderadas, pois que não basta a posse do título, embora constitua elemento de valiana verificação da posse de estado de credor.30 Esta, sim, com outras razões, gera asuposição razoável de uma qualidade creditória, que incute no devedor a convicção deque extingue a dívida o pagamento ao accipiens e, se tal convencimento nãocorresponde à realidade, autoriza a afirmativa de um pagamento de boa-fé, que produz,em atenção a esta, os efeitos de um pagamento regularmente efetuado ao sujeitoautêntico da relação jurídica. Outras hipóteses existirão, semelhantes à posse do título,

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em que o que se apresente como credor pode ser considerado tal (credor aparente) eválido será o pagamento.

A lei protege, pois, o solvente de boa-fé e a solutio assim realizada extingue a obrigaçãodo devedor, que não mais poderá ser molestado. Vencedor na contenda, o credor realtem ação contra o credor putativo acipiente, para dele recobrar o montante dorecebimento. A validade do pagamento feito ao credor putativo constitui matéria defato, a ser apreciada, diante das circunstâncias de cada caso, a posse de estado de credor.

Se se tratar de verdadeiro e próprio credor, mas souber o solvens que lhe faltacapacidade para quitar, seja em razão de uma capitis deminutio que o atinja, seja porqueem dado momento lhe falte o poder de extinguir a obrigação, regra é que não vale opagamento, a não ser que se prove ter revertido em seu benefício (Código Civil de 2002,art. 310 31), ou, então, ratificando o credor a quitação depois de cessada a incapacidade.Se o credor é incapaz, falta-lhe a habilitação legal para passar a quitação. Efetuada asolução, neste caso, não tem validade, não extingue a obrigação. Excepcionalmente,entretanto, pode ter eficácia. Em primeiro lugar, exige o artigo 310 do Código Civil de2002 a ciência do devedor, sobre a incapacidade do credor. Pode ele ignorá-la, ou serilaqueado pelo accipiens, que se faça passar por capaz. Em tal caso, a malícia com quese conduziu retira-lhe a exceção da idade - malitia supplet aetatem. Em segundo lugar,se se trata de pessoa relativamente incapaz, poderá confirmar a quitação em vindo acessar a incapacidade, com efeito retroativo à data do pagamento. Em terceiro lugar, aversão útil. Demonstrando o devedor que o pagamento reverteu em benefício doincapaz, não se justifica questionar da sua validade: o instituto de proteção ao incapazvisa a ampará-lo, e não a servir de pretexto para que ele se enriqueça injustamente.

Se, quanto ao relativamente incapaz, o princípio é de aplicação franca, dúvida levanta-se no caso do incapaz absoluto. E, contra os que se opõem à validade da solutio, alinha-se o argumento do proveito do resultado, a contrariar a tese da nulidade do ato, pois que,mesmo absolutamente incapaz, não seria curial destruir-se um pagamento que reverteuem seu benefício, compelindo-se o devedor a efetuá-lo de novo, para empobrecimentopróprio e enriquecimento do accipiens. Se o ato praticado pelo absolutamente incapaz énulo, e portanto despido de conseqüências jurídicas em princípio, a equidade condenaque alguém se locuplete às custas alheias. E de acrescer será que o instituto dasincapacidades tem finalidade protetora, não devendo converter-se em veículo deavantajamento para alguém, em detrimento de outrem.32

Equiparado ao credor incapaz, está o terceiro não autorizado, a quem, pagando, odevedor paga mal, e se sujeita a fazê-lo de novo ao verdadeiro credor. Mas, ainda queefetuado a terceiro não autorizado, libera o devedor e extingue a obrigação se o solventeprova que reverteu o pagamento em benefício do titular do crédito.33 É claro quecomete uma imprudência quem paga a terceiro não autorizado, mas nem por isto deveser compelido a solver de novo, se ficar demonstrado que a solutio foi útil inteiramenteao sujeito da relação creditória (versão útil).

Admite a lei o caso de ter o pagamento sido feito ao credor real, e, mesmo assim, serineficaz: é quando o devedor é intimado da penhora realizada sobre o crédito ou daimpugnação a ele oposta por terceiro. Tanto a penhora como o embargo sobre a dívidaretiram ao credor o poder de receber, pois importam em expropriação,34 retirando-o dopoder do credor, para segurança do juízo. Intimado da penhora, o devedor não mais

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poderá pagar ao credor, cumprindo-lhe, para liberar-se da obrigação, consignar opagamento ou depositá-lo no próprio juízo executório. Se, não obstante a ciência regulardo fato, o devedor paga ao seu credor, estará procedendo, por malícia ou negligência,para fraudar o procedimento judicial, não lhe valendo a excusatória de estar sendodiscutida a validade da penhora ou a liquidez do direito do credor. Na pendência da lide,falta a este a faculdade de receber e quitar. O devedor, se solver a dívida, sujeita-se afazê-lo duas vezes, de vez que em relação ao terceiro exeqüente ou embargante, que setorna interessado, não prevalece a solutio (Código Civil de 2002, art. 312 35).Igualmente inválido é o pagamento efetuado após ser o devedor intimado daimpugnação feita por terceiros, a qual tornou litigioso o crédito. A fim de obstar opagamento é mister se trate de impugnação eficaz, como a que se efetiva pela viajudicial, ou por intermédio do Cartório de Títulos e Documentos.

Ao solvente, entretanto, fica salva ação regressiva contra o credor acipiente, para repetiro que lhe transferiu, pois que, se o terceiro exeqüente ou embargante adquire um direitocontra o devedor, não toleram os princípios que este se sacrifique enriquecendoindevidamente o credor.36 A mesma razão de eqüidade, entretanto, acima invocada paraconvalidar uma solutio defeituosa, há de prevalecer aqui, para atribuir valia e efeitoliberatório ao ato, se foi proveitoso ao credor.37

154. Condições objetivas do pagamento

Como toda obrigação tem em vista uma prestação, e como o efeito essencial dopagamento é extingui-la, regra é que deve guardar perfeita conformidade a solutio como obrigado. O pagamento há de coincidir com a coisa devida. E o devedor libera-se,prestando-a, seja mediante a entrega efetiva e material de uma coisa (obligatio dandi),seja praticando o ato ou abstendo-se do fato (obligatio faciendi vel non faciendi).Quando o objeto da obrigação é complexo, compreendendo uma prestação principal eseus acessórios, ou quando abrange prestações principais plúrimas, ou ainda quando émista de dar e de fazer, o devedor não se desvincula enquanto não cumpre aintegralidade do débito, na sua inteira complexidade. Em todos os casos, o devedorsomente fica forro, de modo pleno, se presta tudo que é devido, na forma devida e notempo devido. Num resumo preciso das qualidades e dos requisitos do objeto dopagamento, deve ele reunir a identidade, a integridade e a indivisibilidade,38 isto é: osolvens tem de prestar o devido, todo o devido, e por inteiro.

A conversão da prestação em perdas e danos importa em substituição da res debita peloseu equivalente monetário. Mas a operação não traduz pagamento, no rigor técnico dapalavra e na normalidade de sua função extintiva da obrigação, por faltar precisamente aidentidade objetiva. A sub-rogação da coisa devida no id quod interest não é pagamentopropriamente dito. O credor tem o direito de haver a coisa devida, e, se não é satisfeito,fica com a faculdade de persegui-la em juízo, figurando a consecução do equivalentecomo um substitutivo da prestação em razão de faltar o devedor com o que o credor temo direito de receber. Já vimos em que casos se dá a conversão do objeto em perdas edanos, tanto na obrigação de dar (nº 133, supra) quanto na de fazer (nº 135, supra), oque nos dispensa de tornar ao assunto.

A questão do pagamento parcial já foi devidamente examinada (v. nº 138, supra).Recordamos, apenas, por amor à sistemática de exposição, que a solução parcial implicadesconformidade entre a res debita e a prestação efetuada, ainda que o conjunto das

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parcelas em que se venha a fracionar o objeto lhe corresponda à totalidade. Ainda assim,a solução por partes não se dará invito creditore, pois que, se este não anuir nela,ninguém pode constrangê-lo a aceitar (Código Civil de 2002, art. 314 39). Somente nocaso de voluntariamente aceder é que ocorrerá. Exceção a esta regra reside nofracionamento da obrigação por vários credores (quer já existam desde a origem dovínculo, quer surjam subseqüentemente por via de sucessão), e o objeto seja divisível,pois que, nestas condições, cabe ao devedor pagar pro rata a todos e a cada um dostitulares do crédito.40 Em todos os casos, contudo, em que se façam pagamentosparciais, autorizados pela convenção entre as partes ou vontade legal, as garantias queeventualmente acompanham a obrigação permanecem inteiras até a final e definitivaextinção da obrigação.41

Tendo o credor direito à coisa devida na sua integralidade, não é obrigado a qualquerencargo para recebê-la.42 Daí presumirem-se a cargo do devedor as despesas com opagamento e a quitação (Código Civil de 2002, art. 325 43), tanto as de natureza fiscalquanto aquelas outras que impliquem a colocação da coisa à disposição do credor, salvose este incorrer em mora, ou mudar de domicílio, ou morrer deixando herdeiros emlugares diferentes, pois que nestas hipóteses, como em quaisquer outras em que ocorraaumento de encargos pelo fato do credor, corre à sua conta a despesa acrescida.Verificada alteração nas condições de execução normal da obrigação, o devedor nãopode ser compelido a suportar a oneração do obrigado. Por isso, a ele não caberá adespesa acrescida, mas ao credor, pois foi o fato deste (mora ou mudança de domicílio)ou a dispersão de seus herdeiros por localidades diversas que a gerou. Não adota,entretanto, a lei uma regra inamovível. Institui uma presunção iuris tantum, que cederálugar à prova que a ilida, e, especialmente, comportará convenção em contrário, dadoque o legislador a instituiu como norma de ordem privada, e não pública.44

O Projeto de Código de Obrigações de 1965 restringia a presunção às despesasextrajudiciais com o pagamento e a quitação. E assim deve ser entendido. O dispositivonão especifica a que despesas se refere. Podem ser com a própria coisa (transporte,verificação etc.) ou de natureza jurídica, inclusive tributárias e fiscais. Também nestecaso a presunção não é iuris et de iure. Cede a convenção em contrário, ou a ocorrênciade disposição especial que inverta o ônus. Pelas despesas acrescidas a que der causa,responde o credor.

Da mesma forma que não pode ser compelido a receber fracionadamente, o credor temo direito de repelir a substituição da res debita por outra, ainda que mais valiosa, pois aentrega de objeto diferente contra a vontade do credor não solve a obrigação: aliud proalio invito creditori solvi non potest (Código Civil de 2002, art. 313).45 Para que, então,se dê a substituição do objeto, com força liberatória, será necessário o acordo do credor,ocorrendo aí uma dação em pagamento (datio in solutum), que será tratada em minúciamais adiante (nº 161, infra). Baste-nos, por ora, fixar que a datio in solutum ou a datiopro soluto tem pleno efeito liberatório, e extingue inteiramente a obrigação. O mesmonão ocorre com a datio pro solvendo, a qual se verifica quando o credor recebe não a resdebita, ou outra em seu lugar, porém um valor creditório, dependente, a seu turno, deresgate, caso em que a liberação de devedor somente será atingida no momento em queo credor efetivamente embolsar o que lhe cabe, e não antes.46

O pagamento de obrigação decorrente de ato ilícito, pela sua própria naturezacompensatória do dano, far-se-á no valor que seja mais favorável ao lesado.47

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Quando o devedor tem de entregar coisa individuada, infungível, não responde pelasdeteriorações supervenientes à constituição do vínculo, salvo se para isto concorrerculpa sua ou retardamento no cumprir. Fungível o objeto, determinado apenas pelogênero e pela quantidade, não é obrigado o solvens a prestar o melhor, como tambémnão se libera prestando o pior, o que significa que, em princípio, tem de entregar coisasde qualidade média.48 Se a prestação a cumprir for objeto que se paga por peso oumedida, e o título silenciar, presume-se que as partes acordaram em que prevaleça ocritério de aferição dominante no lugar da execução (Código Civil de 2002, art. 326 49),caso exista variedade entre este e o da constituição da obrigação.

A disposição tinha mais cabimento no Código de 1916, quando ainda eram de usomedidas e pesos variáveis de lugar a lugar. Com a utilização generalizada do sistemamétrico decimal, perdeu importância. Significa, no entanto, que as partes podemconvencionar a adoção de critérios diferentes de mensuração. Se o tiverem feito,prevalece a estipulação. No seu silêncio, deveria prevalecer o sistema vigente no País. OCódigo, entretanto, preferiu manter a presunção de que as partes escolheram o sistemade peso e de medida vigente no lugar do cumprimento da obrigação. Mais curial seriaque prevalecesse a presunção de que se aplique o sistema métrico decimal. Afastariadúvidas, e dispensaria a prova de que em dado lugar se usa critério diferente, eeliminaria polêmicas e dissídios.

O pagamento em dinheiro, sem determinação da espécie, far-se-á na moeda corrente nolugar do cumprimento da obrigação, o que tem particular interesse nos negócios que seestendem a países diferentes, em razão da diversidade dos valores monetáriosinternacionais. Problema de especial importância é o que diz respeito ao ajuste relativoao pagamento em determinada moeda, nacional ou estrangeira, que o Código Civil de1916, no art. 947, permitia, tendo sido o dispositivo revogado pela Lei nº 10.192/2001.O art. 318 do Código Civil de 2002 mantém a vedação às convenções de pagamento emmoeda estrangeira.

Antes das modificações introduzidas pela Lei nº 10.192/2001, o art. 947 do CódigoCivil de 1916 facultava, entretanto, ao devedor optar entre o pagamento na espéciedesignada no título e o seu equivalente em moeda corrente no lugar da prestação, aocâmbio do dia do vencimento, ou do imediatamente anterior, na falta de cotação naqueledia. Ocorrendo variações de cotação no mesmo dia, prevaleceria o valor médio domercado. Mas, se em mora o devedor, caberia ao credor escolher, na falta de estipulaçãode câmbio fixo, o valor que mais lhe conviesse, dentre as oscilações cambiais, acasoocorrentes entre a data do vencimento da obrigação e a do pagamento.

Conforme desenvolvemos no nº 148, supra, instituído o regime nominalista do papel-moeda (Decreto nº 23.501, de 27 de novembro de 1933), foi proibida a estipulação dopagamento em ouro ou em qualquer outro meio tendente a recusar ou restringir nos seusefeitos o curso forçado da moeda corrente nacional e cominada pena de nulidade para aestipulação do pagamento em moeda que não seja a corrente, e pelo valor legal, emqualquer contrato exeqüível no Brasil, salvo para importação de mercadorias doestrangeiro (Lei nº 28, de 15 de fevereiro de 1935), bem como as obrigações contraídasno exterior, em moeda estrangeira, para serem executadas no Brasil (Decreto-Lei nº857, de 11 de setembro de 1969).50

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O Código Civil de 2002 consagrou a doutrina correta a respeito, cogitando dasobrigações de prestação pecuniária, de cuja disciplina o Projeto de Código deObrigações de 1965 teve a iniciativa. A disposição compreende as dívidas que desde aorigem tenham por objeto o pagamento em dinheiro, e bem assim toda outra que seconverta em prestação pecuniária; equivalente da que se impossibilitou; ressarcimentode perdas e danos; indenização por ato ilícito. Em qualquer desses casos, ou de outrosque se lhes assemelhem, o devedor libera-se mediante o pagamento de uma soma emdinheiro.

Assim, quem deve dinheiro libera-se entregando ao credor a expressão monetáriacorrespondente. Paga em moeda. Não pode, entretanto, compelir o credor a recebercoisa diversa de dinheiro, ainda que dotada de valor econômico. O dinheiro, comodenominador comum dos valores, tem o efeito de extinguir a obrigação. Para istosujeita-se a certas normas, que assentam em conceitos básicos. Chama-se curso legal opoder que tem a moeda de um país, de importar na quitação da dívida e liberação dodevedor. A moeda dotada de curso legal, dá-se também o nome de moeda corrente. É aque circula, dotada pela legislação nacional, do poder liberatório. Diz-se que a moedatem curso forçado, quando a lei determina que um certo padrão monetário, dotado decurso legal, tem de ser aceito pelo credor pelo seu valor nominal, não obstante qualqueroscilação no seu poder de troca, ou valor comercial, entre a data da obrigação e a dopagamento. O Direito Brasileiro, tendo em vista a situação conjuntural por que o Paísvem passando, repeliu o regime livre-cambista e instituiu a teoria nominalista, esboçadaem vários diplomas anteriores, porém estabelecida no Decreto n° 23.501, de 27 denovembro de 1933, alterado por numerosa legislação posterior e consolidada peloDecreto-Lei nº 857, de 11 de setembro de 1969, e pela Lei nº 10.192/2001.

O artigo 315 do Código Civil de 2002 é expressão desta política, e dá seguimento aoregime de curso forçado, vigorante no País. As dívida em dinheiro devem ser pagas namoeda corrente, isto é, na moeda de curso legal (Real), e pelo seu valor nominal, isto é,aquele que o Estado lhe impõe, e que, pelo fato de ser objeto compulsório dospagamentos, é dotado de curso forçado.

Há uma hipótese em que é permitida a revalorização da moeda do pagamento. É a quecorresponde às prestações sucessivas (Código Civil de 2002, art. 316 51). Tendo emvida que a moeda do pagamento perde poder aquisitivo ao longo do tempo, o equilíbrioentre o valor real da dívida e a expressão monetária correspondente só se mantémmediante o aumento progressivo ou percentual das prestações. Por força do disposto naLei nº 6.899/81 e do Decreto nº 86.649/81, ficou estabelecida a correção monetária paratodas as dívidas cobradas judicialmente, independentemente de ter sido estipulada arevalorização da moeda.

O artigo 317 do Código Civil de 2002 é reprodução do artigo 45 do Projeto de Códigode Obrigações de 1965. Contudo, neste, houve a cautela de fazer constar, do seuparágrafo único, que a disposição se aplicaria restritamente aos casos de indenização ealimentos. Considerando que, nestas hipóteses, trata-se de dívida de valor, o Projetoinstituiu o poder revisionista das dívidas de alimentos e do ressarcimento por ato ilícito.A intervenção do juiz na economia da obrigação, em tais casos, justifica-se.

Transposto aquele artigo para o novo Código, porém amputado sem parágrafo único,ficou instituída a correção monetária em todas as dívidas, tanto as de valor quanto as de

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dinheiro, e criou-se uma contradição flagrante entre os artigos 315 e 317. O primeiromantém o curso forçado da moeda corrente. Mas vem o segundo e permite ao juiz, apedido da parte, corrigir o valor da prestação, com fundamento na desvalorização damoeda. Vivendo o País em regime de inflação, resulta que a intervenção judicial caberiasempre, a pretexto de preservar o equilíbrio das prestações.

A conciliação entre os dois dispositivos, para evitar que o Código consagre umaflagrante incongruência, será interpretar o art. 317 em conciliação com o art. 315.

Dentro do mesmo regime de curso forçado, que o art. 315 do Código reflete, ficaproibida a cláusula-ouro, a cláusula-moeda-estrangeira, e bem assim toda convençãoque por qualquer meio restrinja ou recuse, nos seus efeitos, o curso legal da moedanacional. Dentro do regime livre-cambista do Código Civil de 1916, era livre aestipulação de pagamento em qualquer espécie monetária (art. 947 e seus parágrafos).Com o Decreto nº 23.501/33, foi instituída a proibição de tais convenções. Numerosalegislação posterior introduziu-lhe modificações, e o Decreto-Lei nº 857/69 revogou asleis esparsas e consolidou as normas atinentes ao assunto. Mais tarde, a Lei nº10.192/2001 revogou os parágrafos 1° e 2° do art. 947 do Código Civil de 1916, quetratavam da matéria. Por força do Decreto-Lei nº 857/69, ficou estabelecida, para todosos títulos e obrigações exeqüíveis no Brasil, toda estipulação em ouro, em moedaestrangeira, ou restritiva da circulação ou poder liberatório da moeda nacional. Trazia,entretanto, o mesmo diploma legal, as seguintes exceções: I - Contratos e títulosreferentes à importação ou exportação de mercadorias; II - contratos de financiamentoou prestação de garantias, relativas às operações de exportação de bens de produçãonacional, vendidas a crédito para o exterior; III - contratos de compra e venda de câmbioem geral; IV - empréstimos e quaisquer outras obrigações, cujo credor ou devedor sejapessoa residente e domiciliada no exterior, excetuados os contratos de locação deimóveis situados em território nacional; V - contratos que tenham por objeto a cessão,transferência, delegação, assunção ou modificação das obrigações compreendidas nasalíneas anteriores, ainda que ambas as partes contratantes sejam pessoas residentes oudomiciliadas no País. Dentro deste regime, as instituições financeiras foram autorizadaspela Resolução 63, de 21 de agosto de 1967, expedida pelo Banco Central, a repassar aempresas nacionais empréstimos tomados no exterior. O art. 318 do Código Civil de2002 manteve as mesmas proibições, e, ao fazer alusão aos casos previstos em leiespecial, consagrou estas exceções, e outras legalmente admitidas. Entre elas, estão osempréstimos diretos de empresas brasileiras em estabelecimentos bancáriosestrangeiros, regulados pela Lei nº 4.131/62.

Tendo a inflação criado enorme disparidade entre o valor nominal da moeda e o seupoder aquisitivo, fórmulas atenuadoras dos males nominalistas foram imaginadas,destacando-se as cláusulas monetárias e as cláusulas econômicas, aportes aos contratosde execução diferida ou sucessiva. Dentre elas, destacam-se a "cláusula de escalamóvel" - escalator clause, clause d’échelle mobile; a "cláusula-mercadoria" vinculandoa prestação ao valor de determinada mercadoria; a cláusula que subordina o pagamentoà variação geral abstrata do custo de vida - cláusula index-number. Embora moralmenteadmissíveis, por ampararem o credor contra o efeito corrosivo da desvalorizaçãomonetária, não podem ser deixadas ao livre-arbítrio dos contratantes, porque podem tero efeito de agravar ainda mais a inflação, e atingir a economia do devedor. Mantendo oartigo, o policiamento das convenções que tendam a contrabalançar a diferença entre ovalor da moeda nacional e o das moedas estrangeiras, excetuados os casos previstos na

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legislação especial, o que na verdade fez, em conjugação com os artigos 315 e 316, foicoibir a livre estipulação das cláusulas monetárias e das cláusulas econômicas, tal comoconstava do Projeto de Código de Obrigações de 1965 (art. 144), excetuados os casos elimites constantes de lei. Dentre as situações em que cabe a estipulação de reajuste dasprestações, citam-se: os contratos de empreitada, incorporação de edifícios coletivos,financiamento para aquisição de imóvel no Sistema Financeiro de Habitação, locação deprédios urbanos.

155. Lugar do pagamento

O princípio fundamental, aqui, é o respeito à convenção, que permite livremente seajuste onde o devedor tem de cumprir, assentando-se o primado da vontade das partescomo fundamental e decisivo na fixação do lugar em que o pagamento tem de serfeito.52 Na falta de estipulação, presume-se que o devedor deve prestar no seu própriodomicílio, salvo se as circunstâncias ou a lei dispuserem o contrário (Código Civil de2002, art. 327 53). Mas, se houver designação de mais de um lugar, cabe ao credor optarpor qualquer deles. O artigo 327 do Código contraria disposição do Projeto de Códigode Obrigações de 1965, que optava pelo domicílio do devedor, atendendo a que aindecisão ou a menção alternativa no título não deveria agravar a situação do devedor.Tem ainda relevância a resposta à indagação se para evidenciar a adimplência tem odevedor de procurar o credor para solver ou se cabe a este vir em demanda dorecebimento. Pelo Direito brasileiro, a presunção é que o pagamento é quesível, isto é,deve ser procurado pelo credor (dívida quérable ou chiedibile), salvo se tiver ficadoconvencionado o contrário, vale dizer que pelo ajuste cumpre ao devedor oferecer opagamento ao credor (dívida portável, portable ou portabile).54 Ilide-se, também, apresunção, se as circunstâncias inequivocamente autorizarem a conclusão de que odevedor renunciou ao direito de efetuar o pagamento no seu domicílio.55 Já em outrossistemas não vigora idêntico princípio. No italiano, as somas de dinheiro constituemdebiti portabili, enquanto que outros casos, como o de restituição de coisa certa, são dedebiti chiedibili.56

O princípio segundo o qual far-se-á o pagamento no lugar convencionado, ou em faltasua no domicílio do devedor, não tem o rigor de um requisito de validade, senão queexprime um favorecimento ao solvens. Não poderá o credor exigir seja feitodiferentemente. Mas, se for demandado em lugar diverso e consentir o devedor emsolver o obrigado, é irrepetível o pagamento e válido o ato, presumindo-se a renúncia aobenefício ou a alteração da convenção.57

A fixação do lugar do pagamento tem dupla relevância. De um lado, é elementodeterminante da apuração do inadimplemento da obrigação. Se a dívida for quesível, ocredor não pode acusar o devedor de inadimplente sem ter evidenciado os meios dereceber no domicílio dele. Reversamente, a falta de iniciativa do devedor, quando édever seu levar a prestação ao domicílio do devedor, implica elemento de verificação desua inadimplência. De outro lado, convencionado o lugar do pagamento, presume-seque aí se exercerão todos os direitos resultantes da obrigação.

Também suporta brecha aquela regra geral no caso específico em que a natureza daprestação determina o local da solutio: se o pagamento consiste na tradição de umimóvel ou em prestações relativas a imóvel, far-se-á no lugar de sua situação (CódigoCivil de 2002, art. 328 58), acrescentando a doutrina que as prestações relativas a

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imóveis devem compreender aquelas que se realizam diretamente nele, como serviçosem determinado terreno, reparações em edifícios, tradição de uma servidão; mas nãoficam abrangidas outras, como o aluguel, pois nada justifica se pague compulsoriamenteno lugar da situação.59

O artigo 328 do Código Civil de 2002 repete literalmente o seu congênere do Código de1916, não obstante todas as imperfeições que contém. O princípio significa que aobrigação cujo cumprimento consiste na tradição de um imóvel executa-se no lugar desituação dele, pois que em outro lugar ele não se pode achar. A referência às "prestaçõesrelativas a imóvel" no Código revogado fora muito criticada, porque nem toda prestaçãorelativa a imóvel se efetua no lugar de situação dele, exemplificando-se com osaluguéis, que não são obrigatoriamente pagáveis no lugar da situação; somente as que serealizam diretamente nele. Por extensão, o disposto quanto aos imóveis é de se aplicar atraditio de coisa imóvel, que consiste em corpo certo, e é por natureza, ou por força dascircunstâncias, mantida em determinado lugar.

Indiretamente, importa, entretanto, designação do lugar do pagamento a indicaçãodaquele em que deve ser firmada a escritura correspondente.60

Como regra, o pagamento consistindo na entrega de coisa certa far-se-á no lugar em queela se achar, salvo se ocorrer motivo grave para que se efetue em outro, sem prejuízo docredor (Código Civil de 2002, art. 329 61). Evidencia-se, com isso, que as regrasatinentes ao lugar do pagamento não devem ser tidas como absolutas. Podem recebertemperamentos, em razão das circunstâncias de cada caso. Embora a obrigação se devacumprir no lugar determinado, pode ocorrer motivo grave que o impeça, como porexemplo a sua inacessibilidade temporária, a impossibilidade de se locomover odevedor ou o credor no momento da solutio. Justificado o motivo, poderá ser realizadoem lugar diverso, desde que não traga prejuízo o credor, ou não agrave a situação dodevedor.

O maior mérito do sistema brasileiro é a simplicidade, ao estatuir a regra geral perfuradade reduzidas exceções, ao contrário de outros que distinguem a prestação pecuniária dade outras espécies, e mandam, como o italiano, que se observe, naquelas que têm porobjeto a entrega de coisa certa e determinada, o lugar de sua situação no momento daconstituição do vínculo,62 salvo se boas razões militam em sentido contrário.

Para as notas promissórias, prevalece a regra geral acima lembrada, de que a vontadedas partes é livre na escolha do lugar do pagamento, mediante a sua simples menção notítulo. Omitida, porém, considera-se este pagável no domicílio do emitente (Decreto nº2.044, de 31 de dezembro de 1908, art. 54), o que tem importância para a constituiçãodo devedor em mora com a tirada do protesto, bem como para definir a competência doforo em que será o devedor demandado.

O credor de prestação portável pode renunciar ao direito de receber no seu domicílio,seja expressamente, seja tacitamente, presumindo-se esta última da reiteração dopagamento em local diferente.

Obrigado o devedor a pagar no domicílio do credor, ou em outro lugar determinado, aídeve fazê-lo. Se, no entanto, for efetuada iterativamente a solutio em local diverso, semque o credor oponha qualquer ressalva, presume-se que renunciou o direito de receber

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no local convencionado (Código Civil de 2002, art. 330 63). Reversamente, seestabelecido que se faça no domicílio do devedor, se o credor o exigir em lugardiferente, e o devedor se não opuser, considera-se perfeita a solutio, descabendorepetição de pagamento, por se entender que houve, da parte do solvens, renúncia aobenefício.

156. Tempo do pagamento

A questão do tempo, no cumprimento da obrigação, é das mais relevantes, e alia ointeresse teórico à importância de sua repercussão prática. Já o sentira a lógica romana,ao equiparar o retardamento na solução a uma verdadeira inadimplência.64 Claro é queàs partes reserva a lei o principal papel na sua determinação, deixando-lhes o arbítrio defixar o momento em que a obrigação é exigível. Na falta de ajuste e na ausência dedisposição especial na lei, de que resulte o termo decorrente da própria natureza daobrigação, é esta exigível imediatamente (Código Civil de 2002, art. 331 65), pois quodsine die debetur statim debetur. A instantaneidade da exigência ou da exigibilidade nãoconstitui surpresa para o devedor, porque se a ele cabia defender-se com a estipulaçãode um prazo, e não o fez, sibi imputet e não se queixe da falta de intervalo entre aconstituição e a execução do obrigado. Pelo nosso direito anterior, acreditava-sevexatório o imediatismo da exigibilidade e impunha-se ao credor um tempo de esperade dez dias.66 Outros Códigos admitem o decurso de um tempo razoável para aexecução. Pelo Código de 1916 estatui-se a pronta exigibilidade, sempre que a vontadenão a afastar, ou o contrário não resultar de disposição legal. A instantaneidade é, comefeito, arredada pela própria natureza da prestação, quando ocorre incompatibilidadeentre a sua realização e a própria obrigação. Embora sem prazo, ninguém dirá que umtrabalho complexo possa de pronto ser exigido, se a sua execução mesma demandatempo; o que aluga ou empresta uma coisa para determinado fim não pode reclamar asua restituição antes de preenchido; quem encomenda mercadoria a ser entregue empraça diversa não pode tê-la à mão no mesmo instante em que a obrigação se constitui;quem empresta dinheiro ou produtos agrícolas há de esperar o prazo de 30 dias ou até apróxima colheita, respectivamente. Nestas e noutras hipóteses, a ausência dedeterminação do momento da execução impõe, contudo, ao credor um termo suspensivoda exigibilidade da prestação, ao qual se poderia dar o nome de termo moral, que ocredor deve respeitar.

A disposição do Código é favorável ao credor. Se, porém, na falta de termo certo, odevedor tiver interesse em efetuar o pagamento, pode requerer ao juiz a intimaçãodaquele, para que lhe fixe a época do pagamento. Efetuando o devedor o pagamentoantes do termo estabelecido, não tem direito a repeti-lo, presumindo-se que o fezvoluntariamente, mesmo se alegar ignorância do termo instituído a seu favor.

Se a obrigação é condicional, somente poderá demandar-se após o implemento dacondição, cumprindo ao credor a prova de sua ciência pelo devedor (Código Civil de2002, art. 332 67). Quando a obrigação é a termo, não é lícito ao credor reclamar seucumprimento antes do respectivo advento, sob pena de ser classificado seuprocedimento como ilícito, e obrigado a esperar o que faltava para o vencimento, bemcomo descontar os juros correspondentes ao tempo da antecipação e a pagar as custas doprocesso em dobro (Código Civil de 2002, art. 939 68). De grande importância será, naobrigação a prazo, assentar se se trata de termo essencial ou não essencial, pois que, noprimeiro caso, não pode mais o devedor pagar após o decurso do prazo, enquanto que

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no segundo é lícito solver, mesmo depois de sua expiração. Para distinguir um do outro,cumpre indagar se a prestação é querida para um determinado momento ou se foi fixadoo quando da solutio em tais moldes, que as circunstâncias autorizariam o recebimentomesmo depois de escoado. Positivá-lo é relevante para o desate das questões relativas àresolução dos contratos, pois que à essencialidade do termo se liga a rescisão pleno iure,o que se não dá na hipótese reversa.69

Se o devedor é que se antecipa ao vencimento e espontaneamente paga antes do termoinstituído a seu favor, não pode repetir a prestação, porque o benefício do prazo é pornatureza renunciável, não criando para o devedor qualquer direito nem lhe trazendoqualquer vantagem a solutio antes do tempo. Mas, quando o prazo é instituído a favordo credor, o que não é comum, mas pode acontecer, e resultar da convenção ou dascircunstâncias, a antecipação de vencimento não lhe pode ser imposta pelo devedor,que, portanto, carece da faculdade de obrigá-lo a receber antes do dia fixado. De igual, enota-o Orosimbo Nonato, se o termo é instituído em benefício de ambas as partes, nãopode qualquer delas a ele renunciar sem a anuência da outra.70 Mas, se a época dopagamento for deixada ao arbítrio do credor, o devedor que tenha interesse na solutiopoderá requerer ao juiz a intimação para que o reus credendi lhe fixe o termo.

Atingido o termo, tem o credor o direito de ver efetivada a prestação e não pode odevedor esquivar-se ao pagamento. Não se permite que o juiz prorrogue a data dovencimento, como em outras legislações se tem consignado. Se a obrigação é a termoincerto, poderá o credor, ao interpelar o devedor, requerer que o juiz fixe o dia documprimento da obrigação, sob pena de incorrer o devedor nos efeitos da mora. Mas, seo título já estabelece o dies ad quem, não pode este ser diferido pela autoridadejudiciária.

Chegado o dia, o pagamento tem de ser feito. Cabe indagar da hora, pois que o diaastronômico tem 24 horas, mas não é curial que aguarde o devedor a calada da noite,para solver a horas mortas. Já que o recurso ao nosso direito positivo não nos socorre, éprestimosa a invocação do Direito Comparado. Assim é que o Código Civil alemão, noart. 358, manda que se faça nas horas habitualmente consagradas aos negócios. Osbancos, por exemplo, têm horário de expediente, e irreal seria que se considerasseextensível o tempo da solução, ulterior ao seu encerramento. O Código Civil de 2002adota a solução do Código Civil alemão.

É válida e irrepetível a solução antecipada, no caso de ignorar o devedor o termoinstituído em seu favor, tal qual o pagamento conscientemente efetuado antes do termo.Mas se é sujeita a obrigação a uma condição suspensiva, a solução antecipada permiteao devedor a repetição do pagamento,71 porque inexiste obrigação exigível enquanto senão verifica a conditio. Até então, não se sabe se se estabelecerá o vínculo obrigacional,e, ipso facto, se a prestação chegará a ser devida. Logo, pode o devedor demandar arestituição do que pagou, se o fez antes do evento, a que a obrigação se subordinava.

O devedor é obrigado ao pagamento no termo, seja este decorrente de lei ou deconvenção, não podendo o credor exigi-lo ante tempus. Se o fizer comete o ilícitoprevisto no art. 939, e é obrigado a esperar o tempo que faltava para o vencimento,descontando os juros correspondentes. Se o termo for instituído a seu favor, poderenunciá-lo, não lhe sendo possível fazê-lo se instituído a benefício do credor, salvoanuência deste.

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Decai o devedor do benefício do termo instituído a seu favor, e tem, portanto, o credor odireito de exigir a solução antes do vencimento, em casos excepcionais, que o artigo 333do Código Civil de 2002 menciona.72 Convém, todavia, ressalvar que a referência ao"concurso de credores" deve ser recebida com a cautela necessária. O Código Civilmantém o instituto de concurso creditório73 e o Código de Processo Civil delecogita,74 ao aludir à entrega do dinheiro. Por outro lado, instituiu a insolvência civil,quando disciplinou a execução por quantia certa contra devedor insolvente.75 Embora aisto se não refira, é um caso de extensão legal de vencimento antecipado das obrigações,análogo às alíneas I e II. A penhora do bem dado em garantia real e a cessação ouinsuficiência de garantias importam em perda ou em redução da segurança do credorquanto ao recebimento, o que só por si justifica não tenha de aguardar o vencimento dadívida para procurar obter a solução da obrigação.

Além dos casos legais de vencimento antecipado da dívida, é lícito estipular outros, emcuja ocorrência tem direito o credor a exigir o seu pagamento antes do termo. Ainexecução no tempo devido implica mora do devedor, e sujeita-o às consequênciasdela.76

Quando a dívida é assegurada por hipoteca, penhor ou anticrese, considera-se vencida sese deteriora, deprecia ou perece a coisa dada em garantia, e, intimado o credor a reforçá-la, não o faz; ou se o devedor falir ou se tornar insolvente; ou se as prestações não forempontualmente pagas, toda vez que o pagamento for estipulado em soluções periódicassucessivas; ou se a coisa dada em segurança da dívida for desapropriada.77

Quando a dívida é garantida por fiador, a falência ou insolvência deste torna-a de prontoexigível, se o devedor não o substitui, restando a plenitude da garantia fidejussória, damesma forma que se se tornarem insuficientes as garantias reais, e o devedor as nãoreforçar, quando intimado a fazê-lo, segundo o afirmado logo acima.

Executado o devedor, a penhora que recaia sobre o bem dado em hipoteca, penhor ouanticrese provoca o vencimento antecipado da obrigação.

A inexecução do obrigado no tempo devido implica a mora, cujos princípiosconstituirão objeto do Capítulo XXXIV.

157. Prova do pagamento

A obrigação do devedor é o pagamento. Enquanto não paga, o devedor está sujeito àsconseqüências da obrigação, e, vencida a dívida sem solução, às do inadimplemento,sejam estas limitadas aos juros moratórios, sejam estendidas a perdas e danos maiscompletas, sejam geradoras da resolução do contrato. Daí a necessidade de provar ocumprimento da obrigação, evidenciando a solutio. Daí, também, o direito de receber docredor quitação regular, podendo mesmo reter o pagamento até que esta lhe seja dada(Código Civil de 2002, art. 319 78). Daí, finalmente, assentar-se que, em princípio, oonus probandi do pagamento compete ao devedor solvente, ou seu representante, valedizer, àquele que alega a solução.79

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O Código não exige forma especial para o instrumento de quitação. Vale, portanto, aque é passada por instrumento público, ou particular, firmada pelo devedor ou seurepresentante. Admite-se, ainda, a quitação presumida, quando a lei assim dispõe.

A quitação poderá consistir na devolução do título da dívida ou na entrega, ao devedor,de um recibo em que o credor, ou quem o represente, mencionará: a) o nome dodevedor ou de quem por este pagar; b) o tempo e o lugar do pagamento; c)especialmente o valor e a espécie da dívida (Código Civil de 2002, art. 320 80).

Assim é que Serpa Lopes aponta como equivalente à designação de valor a menção deser a quitação plena até a data de sua feitura, como por exemplo se diz que recebe osaldo da venda de uma casa; ou se refere a todos os débitos existentes até determinadomomento.81 Se é necessário que designe o nome do devedor, não menos certo é queprevalecerá se a sua indicação fora do contexto for induvidosa.82 Mesmo a falta deassinatura do credor é suprível, quando o recibo for da sua lavra todo inteiro e ascircunstâncias autorizem concluir pelo pagamento (Orosimbo Nonato), como se houverconformidade com o recebimento de um cheque. O lançamento em conta corrente éoutro indício de pagamento, que o art. 432 do Código Comercial registrava, com apoiounânime da doutrina. Também a inutilização do título pelo credor ou a entrega deobjetos comprados a dinheiro nas lojas e nos armazéns.83

Recusando o credor a quitação ou deixando de dá-la na devida forma, poderá o devedorcompeli-lo a isto judicialmente, fazendo citá-lo para este fim, para que seja a finaldeclarado o pagamento por sentença, caso em que valerá esta como quitação,84 poisque servirá de prova da solutio e terá o efeito de extinguir a obrigação dentro das forçasda quantia ou coisa paga.

Naqueles casos, em que a quitação consiste na devolução do título, o devedor não éobrigado a pagar, se o credor se nega a restituí-lo. Há a respeito uma certa vacilação nadoutrina, que, entretanto, deve inclinar-se neste sentido.85 Perdido o título poderá odevedor reter o pagamento e obrigar o credor a firmar declaração que inutilize oinstrumento extraviado (Código Civil de 2002, art. 321 86). Esta providência é,contudo, insuficiente, se se tratar de instrumento negociável por simples endosso,porque, sendo a declaração emanada do credor originário, inoponível ao terceiro de boa-fé, o devedor que paga, recebendo do acipiente mera declaração de quitação, não sepode eximir de pagar de novo ao terceiro cessionário do crédito, que se lhe apresentecomo portador do documento original. No extravio, então, do título poderá o devedorreter o pagamento até que lhe seja restituído, ou, pretendendo liberar-se do vínculo,depositar judicialmente a coisa devida, fazendo citar o credor, e por edital os terceirosinteressados.

O Projeto de Código de Obrigações de 1965 aludia expressamente aos títulos aoportador ou à ordem, admitindo o pagamento contra declaração expressa do credor,inutilizando-o. Se não se tratar de perda do título ou impossibilidade da restituição, nãotem o credor direito ao pagamento sem que o faça. Ressalve-se, contudo, as hipótesesem que o pagamento não extinga totalmente a dívida, ou seria o título de prova de outrodireito; ou nele figurem outros devedores. Em tais casos, considera-se lícita a retençãopelo credor.

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O problema da forma de quitação exige algumas observações. Nas dívidas hipotecárias,a extinção da obrigação prova-se pela certidão extraída do registro imobiliário, de aliestar averbado o recibo da importância devida, ou da última cota se o pagamento foraparcelado. Mas, em linha de princípio, a prova de pagamento mediante recibo do credornão se sujeita à observância de requisito formal específico. Ao contrário do Direitoromano, que exigia para a quitação a mesma forma da obrigação (eo modo quidquamdissolvere quo colligatum est) e do nosso direito anterior, que em princípio oacompanhava,87 muito embora a exigência tenha caído em desuso segundo odepoimento de Teixeira de Freitas, pelo regime do Código Civil o instrumento dequitação adquiriu autonomia formal, relativamente à obrigação, o que é certo, pois quese trata de um ato jurídico independente, com finalidade liberatória. Daí estabelecer-seque o instrumento particular, munido das qualidades que a quitação deve revestir, provao pagamento e extingue a obrigação, tenha esta sido constituída por instrumentoparticular ou por escritura pública. Há conveniência em que se facilite a prova daquitação, seja no interesse do devedor, seja no da paz social, razão por que a lei estámais disposta a facilitar a extinção do que a criação do vínculo: plus favemusliberationibus quam obligationibus. Por isto, vale a quitação, qualquer que seja a suaforma.88

Mas não é sempre que o recibo faz prova da liberação. Constitui, em todos os casos,demonstração de que o devedor cumpriu a obrigação, mas não é em todos os casos quetraduz o reconhecimento, a parte creditoris, de que a prestação recebida sejaefetivamente o cumprimento devido. Embora normalmente o seja, poderá acontecer queas circunstâncias autorizem a reabertura do débito, quando a liberação dependa de umaverificação da res debita que, feita posteriormente ao recibo, demonstra não ter sidoentregue.89

Quando a obrigação for de prestações sucessivas e o pagamento em cotas periódicas, asolução de qualquer delas faz presumir o das anteriores e o da última induz a presunçãode estar extinta a obrigação (Código Civil de 2002, art. 322 90). Não se trata, porém, depreasumptio iuris et de iure, pois que pode ser ilidida por prova contrária, ou mesmoafastada pela declaração no próprio título, quando este tolere a entrega de qualquer dasprestações como débito autônomo, sem ligação umas com as outras,91 ou resultarmesmo das circunstâncias. Cabe ao credor, no caso, a prova contrária, porque apresunção é instituída em benefício do devedor, e, se o credor alega que as prestaçõesanteriores são ainda devidas, a ele incumbe o onus probandi.

O pagamento do capital faz presumir a quitação quanto aos juros, salvo recebimento deum com reserva dos outros (Código Civil de 2002, art. 323 92). Esta presunção é tidacomo irrefragável por numerosos escritores, entre os quais o nosso Beviláqua. Outros onegam, avultando Orosimbo Nonato, que a qualifica de legis tantum, não só porque aspresunções absolutas são excepcionais como também porque não é obrigatório, segundoo art. 59, que o acessório sempre acompanhe o principal.93

O Projeto de Código de Obrigações de 1965 esclarecia o assunto, inclinando-se para arelatividade, por admitir prova em contrário. Nesta, como em tantas outras, seria aoportunidade de o novo Código tomar uma definição. Não o tendo feito, deixou emaberto a questão ao sabor das divergências doutrinárias e das vacilaçõesjurisprudenciais. Mais curial será que se tenha a presunção como relativa, não só porqueas presunções iuris et de iure são excepcionais, como ainda que a regra segundo a qual

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o acessório segue o principal - accessorium sequitur principale - não tem caráterabsoluto.

Quando o título é devolvido ao devedor (Código Civil de 2002, art. 324 94), estabelece-se a presunção de que foi efetuado o pagamento, mas ficará sem efeito a quitação se ocredor, dentro de sessenta dias, provar que não se efetuou.

O novo Código mantém o princípio da quitação presumida, que o de 1916 assentava emdisposição algo controvertida. O que do artigo se infere é que a entrega do título feita,voluntariamente, estabelece em benefício do devedor a praesumptio iuris et de iure deque foi feito o pagamento. Não se verifica em todos os casos, porém naqueles em que aquitação consiste na devolução do título. Assenta a presunção no fato de que o títulonão estaria, razoavelmente, em poder do devedor sem que este solvesse a obrigação.

Para ilidir a presunção decorrente deste fato, cabe ao credor demonstrar que foiilegitimamente desapossado do título, e por esta razão veio ele ter às mãos do devedor.Para oferecer tal prova, tem o credor o prazo de sessenta dias. Trata-se de um caso dedecadência, que deve ser razoavelmente bem compreendido. Cabe ao credor ingressarem juízo com a ação respectiva, e assim assegurar o seu direito, ainda que a produçãoefetiva da prova ocorra após decorridos mais de sessenta dias.

Nos termos do artigo 324, a presunção de pagamento é restrita, aqui, à entrega do títuloda dívida. Dada a quitação por outro meio, por declaração contida em instrumentopúblico ou particular, o credor não está inibido de provar que ela se origina em erro oudolo, nem fica adstrito ao prazo decadencial de sessenta dias.

Capítulo XXXI - Pagamentos Especiais

Sumário: 158. Pagamento por consignação. 159. Pagamento com sub-rogação. 160. Imputação do pagamento. 161. Dação em pagamento

Bibliografia: M. I. Carvalho de Mendonça, Doutrina e Prática dasObrigações, ed. atualizada por José de Aguiar Dias, I, nos 293 e segs.;Clóvis Beviláqua, Obrigações, §§ 38 e segs.; Karl Larenz, Derecho deObligaciones, I, § 24; Ruggiero e Maroi, Istituzioni di Diritto Privato, §§130 e segs.; Serpa Lopes, Curso, II, nos 170 e segs.; Enneccerus, Kipp eWolff, Tratado, Obligaciones, §§ 65 e segs.; Giorgio Giorgi,Obbligazioni, VII, nos 263 e segs.; von Tuhr, Tratado de lasObligaciones, II, nº 65; Alfredo Colmo, De las Obligaciones en General,nos 626 e segs.; Hector Lafaille, Tratado, Obligaciones, I, nos 386 e segs.;De Page, Traité, III, 2ª parte, nos 491 e segs.; Ludovico Barassi,Obbligazioni, I, nº 93; Planiol, Ripert e Boulanger, Traité, II, nos 1.741 esegs.; Mazeaud e Mazeaud, Leçons de Droit Civil, II, nos 841 e segs.;Gaudemet, Théorie Générale des Obligations, pág. 461; Lacerda deAlmeida, Obrigações, §§ 74 e segs.; Machado Guimarães, Comentáriosao Cód. Proc. Civil, ed. Revista Forense, VIII, págs. 289 e segs.

158. Pagamento por consignação

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Sendo pagamento a forma normal de extinção das obrigações e sujeitando-se o devedor,que não efetua, às conseqüências respectivas (v. nº 157, supra), pode-se dizer que,paralelamente ao direito que tem o credor de receber o devido, há um interesse, emesmo, em certos casos, um direito do devedor, de desvencilhar-se da obrigação elibertar-se do vínculo, para que se forre de suas conseqüências. Principal interessado nocumprimento é sem dúvida o sujeito ativo da obrigação, a quem a lei oferece todosaqueles meios de realizar a sua faculdade creditória. Mas não pode ser deixado odevedor à mercê do credor malicioso ou displicente, nem sujeito ao capricho ou arbítriodeste, quer no sentido da eternização do vínculo, quer na subordinação dos seus efeitosà vontade exclusiva daquele.

Para isso, criou-se a modalidade especial do pagamento por consignação, que consisteno depósito judicial ou em estabelecimento bancário da quantia ou coisa devida. Desdelogo se vê, nem toda obrigação é compatível com esta modalidade de solutio. Excluem-se, prima facie, as obrigações negativas, pois é óbvio que o seu cumprimentoconsistindo em uma abstenção a sua execução dispensa a participação do sujeito ativo.1Também as obrigações faciendi, quando se esgotam apenas com a ação ou a atuação dodevedor, não comportam consignação, a qual é, todavia, admitida, se ao facere se seguirum dare, isto é, quando a obrigação de fazer tiver de executar-se mediante a entrega doresultado da atividade do devedor ou estiver articulada com uma obrigação de dar.2

A consignação em pagamento, também chamada oferta real, há de consistir no efetivooferecimento da res debita. Não basta a promessa ou a declaração de que a coisa ousoma devida se encontra à disposição do credor.

Pelo nosso direito, tem eficácia a consignação judicial, não prevalecendo aquelas regrasque outros sistemas jurídicos estatuem, encarregando os notários e alguns oficiaispúblicos de promoverem a oferta (Código Civil de 2002, art. 334 3). Mas não se devededuzir que se trate de matéria só pertinente ao direito processual e estranha ao CódigoCivil, como ao tempo da discussão deste foi defendido.4 O direito civil estabelece emque consiste, menciona os casos em que tem lugar, e define o poder liberatório ouextintivo da obrigação, que é o seu efeito. O direito processual civil desenvolve asregras procedimentais a serem seguidas, a partir do momento em que o devedor ingressaem juízo.5 A partir do advento da Lei nº 8.951/94, tratando-se de obrigação emdinheiro, restam para o devedor duas possibilidades: o depósito judicial antes da citaçãodo réu, na forma prevista no artigo 893 do Código de Processo Civil, ou o depósitoextrajudicial da quantia devida, em estabelecimento bancário oficial. O Código Civil de2002, alterando o texto do seu antecessor, incluiu o depósito em estabelecimentobancário como forma de extinção da obrigação pelo pagamento, tomado este em sentidogenérico.

Tal qual no Direito romano, o pagamento por consignação judicial envolve duas fases:uma primeira, que ainda não é propriamente contenciosa, em que o devedor requer aojuiz a intimação do credor para que venha, em determinado momento, receber a quantiaou coisa devida6 (Código de Processo Civil, art. 890). Este oferecimento deve serefetivo - oferta real - e não meramente simbólico, com dinheiro à vista mostrado, comofalavam os nossos maiores7 e ainda os modernos.8 Se o citado recebe, encerra-se aquestão, e o devedor está exonerado. Mas, se não comparece ou recusa, a coisa ofertadaé depositada em juízo, onde se decidirá se tem cabimento e se o pedido do devedorprocede. Em caso afirmativo, vale a sentença com prova do pagamento e quitação. É,

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desta sorte e neste caso, um meio liberatório do devedor, e extintivo da obrigação. Ocaráter formal, acima lembrado, está patente na necessidade de se observarem todos ostrâmites. Feito, por exemplo, o oferecimento, sem que se lhe siga o depósito da coisa ouquantia devida, não produz os efeitos de consignação, e o devedor pode ser constituídoem mora, ao mesmo passo que, e ao revés, não começa ela a correr contra o credor.9

A primeira indagação, portanto, envolve a apuração de quando tem lugar o depósitojudicial da coisa devida. O Código de 2002, a exemplo do anterior, oferece toda umagama de situações em que o devedor se liberta da obrigação, por via do depósito da resdebita. A lei o define: a) A hipótese mais freqüente de pagamento por consignação é serecusa o credor receber ou dar quitação na devida forma. O credor tem direito àprestação, mas tem também o dever de recebê-la. Se, sem justa causa, recusa opagamento, ou não dá ao devedor quitação da dívida, cabe o depósito judicial.Equivalente à recusa é o fato de o devedor se esquivar, ou deixar de ser encontrado, ouprocrastinar o recebimento ou a quitação. Claro que somente a recusa injusta enseja estamodalidade especial de pagamento, pois, se tiver ele razões legítimas de se esquivar,não pode ser forçado a receber. Via de regra, somente no curso da lide apurar-se-á se éjusta ou injusta a recusa. Mas a palavra recusa deve ser tomada em sentido amplo, querpara traduzir a oposição do credor à solução do devedor, quer para significar a falta deaceitação, mesmo quando abrangida na ausência ou no silêncio do credor.10 b)Equivalente à recusa é a demora do credor, que não vai ou não manda receber a coisanas condições em que devia fazê-lo (dívida quesível), e, com sua mora, pode trazer aodevedor o dano genérico conseqüente à persistência do vínculo ou o prejuízo específicoda continuidade dos riscos. Para de um ou de outro defender-se, o depósito judicialisenta o devedor das conseqüências respectivas, e ao mesmo tempo transfere para ocredor a responsabilidade do que venha a acontecer. c) Quando for incapaz de receber,desconhecido o credor, ou estiver em lugar ignorado ou de difícil acesso, o devedoroutro meio não tem senão este, porque precisa de receber quitação e libertar-se dovínculo, e somente a sentença suprirá a falta da declaração. Sendo o credor incapaz dereceber, cabe o depósito se se não conhecer seu representante, ou este embaraçar orecebimento. d) Outras vezes, pode ocorrer dúvida sobre quem tem a qualidadecreditória, e, em tal caso, depositada a res debita, resolverá o juiz quem é o credor,valendo quitação a sentença então proferida. e) Se é litigioso o próprio objeto daobrigação, libera-se o devedor consignando-o em juízo. O litígio pode versar sobre oobjeto do pagamento em si mesmo, ou se mais de uma pessoa estiver sobre elediscutindo em juízo. Litígio existe, ainda, se o devedor é intimado por terceiro para nãopagar ao credor. No inciso V do art. 335, cabe a hipótese de disputarem concurso depreferência sobre a coisa devida (Código Civil de 2002, 335 11).

Pode lei expressa mencionar situações em que o pagamento por consignação temcabimento. Exemplifica-se com a penhora de crédito, ou com a preferência docondômino em coisa indivisa para adquirir a parte de seu consorte, alienada aestranho.12 A consignação em pagamento é meio judicial liberatório da obrigação, etem finalidade estrita. Descabe trazer para ela toda outra discussão, que não sejacompreendida nos seus limites e termos específicos. Se couber ao devedor exigircontraprestação que ao credor caiba efetuar, pode subordinar ao cumprimento desta arealização do depósito. Neste caso, o credor não tem o direito de levantar a coisadepositada, sem que efetue a prestação que lhe cabe, ou dê garantia bastante de que acumprirá.

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Reunindo numa fórmula sucinta as várias hipóteses previstas no Código Civil argentino,ao mesmo passo que critica o seu casuísmo, Alfredo Colmo apresenta uma geral quetem o mérito de coordenar o pensamento dominante nas diversas alíneas acimadeduzidas: há de ser cabível o recurso à consignação toda vez que o devedor não possaefetuar um pagamento válido.13

Para que tenha o depósito força de pagamento, é necessário reúna as condiçõessubjetivas e objetivas de validade deste (Código Civil de 2002, art. 336 14), isto é: temde ser oferecido pelo devedor capaz de pagar, ou por quem tenha legítimo interesse, ouainda por terceiro não interessado, ao credor de receber; deve compreender a totalidadeda dívida: ser feito no lugar do pagamento e em tempo oportuno (v. nº 152, supra). Aconsignação há de versar a coisa ou quantia devida, e não outra, análoga, ainda que maisvaliosa.

No tocante à integridade do depósito, cumpre salientar que é indispensável tratar-se deobrigação líquida e certa. Se não está apurado o quantum, não cabe o depósito. Nesteparticular, já se diz que a consignação em pagamento é uma execução invertida. Damesma forma que o credor, para valer-se da ação executiva, tem de fazer citar o devedorpara pagar uma soma precisa, pois, se não é líquida e certa a obrigação, é mister seacerte e liquide pelas vias ordinárias, também o devedor, para que tenha o direito depromover a execução da obrigação, por via da oferta real, terá de convocar o credor como oferecimento de uma quantia que seja a devida, sem necessidade de prévioacertamento, o qual somente teria cabida nas vias ordinárias. Se não for líquida e certa adívida, descabe a consignação em pagamento, havendo mister da prévia promoção daação de acertamento.15 Depositando o devedor quantia para quitação de dívida incerta,com o protesto de apurar-se no curso da ação, e completar ele o que faltar, ou levantar oexcesso, não cabe a consignação, que é processo de limites estreitos, sem margens paraoperar a apuração da coisa ou da quantia devida. E não cabe, pela falta do requisitoobjetivo de validade do pagamento.

Não se pode, porém, tratar a regra com extremo rigor. Se, pois, o devedor verifica aexistência de erro de cálculo, pode retificá-lo com ofertas supletivas; ou se, existindodúvida sobre o montante exato da dívida, faz oferta a maior e protesta pela repetição doexcedente, não pode o credor rejeitá-lo.16

O depósito ou consignação da coisa deve ser requerido no lugar do pagamento (CódigoCivil de 2002, art. 337 17). Nem o credor pode ser compelido a vir receber em localdiferente nem o devedor tem a obrigação de deslocar-se para solver. Daí acordarem osautores em que competente para a ação de consignação é o foro do pagamento.18

Deposita a res debita, livra-se o devedor dos juros da dívida, porque a consignação temefeito equivalente ao próprio pagamento, e, desta sorte, não correm juros contra ele. Osriscos da coisa devida são suportados pelo devedor até o momento da tradição.Consignada ela, ocorre a inversão dos riscos. A cargo do credor estão a sua deterioraçãoe perecimento. Julgada procedente a ação, o credor terá de promover o levantamento dacoisa, no estado em que estiver, salvo se a deterioração for precedente ao depósito. Sefor julgada improcedente, o devedor estará sujeito aos juros, sofrerá os riscos ocorridosna pendência da lide, e, vinculada que seja a prestação depositada, a qualquer contrato,suportará as consequências da ausência do pagamento.

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Outra circunstância, em torno da qual doctores certant e levantam controvérsia semconta, é a do tempo. O princípio cardeal é que não pode consignar com força depagamento o devedor em mora. Mas, como até o último dia do prazo o credor aindapode receber, sem os inconvenientes da demanda, tem-se entendido ser válida a oferta,quando efetuada no dia imediato ao termo da obrigação, pois que até esse último dia doprazo era admissível o recebimento, não se podendo dizer que teria havido recusa docredor, pelo fato de, até então, não o ter realizado.

A consignação em pagamento compreende duas fases. A primeira é a da oferta. Odevedor faz citar o credor para receber a coisa ou quantia devida, em local e momentodeterminado, ou para vir provar o seu direito, sob pena de se efetuar o depósito. Estaprimeira fase não é propriamente contenciosa. Depositada a coisa, ao credor ainda restaa alternativa de declarar que aceita, ou impugnar.

Antes de declarar o credor se aceita ou rejeita o depósito, pode o devedor requerer o seulevantamento, pagando as respectivas despesas, mas, em tal caso, subsistirá a obrigação(Código Civil de 2002, art. 338 19). Duas serão, contudo, as consequências. Uma decunho meramente processual: pagar as despesas judiciais. A outra, de naturezasubstancial: suportar todas as conseqüências do não-pagamento, uma vez que assume osriscos da coisa, suporta os juros e enfrenta as condições da falta ou mora de pagar. Adívida subsiste com seus acessórios. A consignação em pagamento é adstrita ao devedordepositante e o credor. Os fiadores e os co-devedores, mesmo solidários, não têmlegitimidade para se oporem ao levantamento requerido pelo consignante. Nada impede,todavia, que incida penhora sobre a coisa ou quantia depositada. Impugnado o depósito,a coisa torna-se litigiosa. Aceito o depósito, está efetuado o pagamento. Num caso ounoutro, ao consignante não mais será lícito requerer o seu levantamento.

Com a procedência do depósito, a obrigação fica extinta. O devedor fica liberado, e,com ele seus fiadores e co-devedores. Não mais assiste ao devedor direito a seulevantamento. Acontecendo que o requeira, com assentimento do credor, perde este apreferência e a garantia que lhe competiam relativamente ao objeto do depósito. Suaanuência poderá, portanto, trazer prejuízo aos demais devedores e aos fiadores. Olevantamento do depósito pelo devedor, neste caso, não poderá ser concedido sem oacordo de uns e de outros.

Julgado procedente o depósito, a obrigação fica extinta (Código Civil de 2002, art. 33920). Liberados, em conseqüência, os co-devedores e fiadores, têm legítimo interesse emque prevaleça o julgado. Nestas condições, terão de ser ouvidos sobre o pedido delevantamento, feito pelo devedor. Se anuírem, assumindo as obrigações, continuamresponsáveis. Se não forem ouvidos, ou se o levantamento for deferido contra a suavontade, estão liberados.

Antes mesmo de julgada por sentença a consignação, mas depois de impugnado odepósito e de declarar o credor que o aceita, e o credor aquiescer em que seja levantado,têm os co-devedores e fiadores direito a serem ouvidos. Se não o forem, ou sediscordarem, e o levantamento do depósito ocorrer, ficam desobrigados (Código Civilde 2002, art. 340 21). Nesta hipótese, a obrigação não se extingue, permanecendovinculado o consignante. Mas, em relação ao objeto consignado, perde o credor apreferência e a garantia, cessando a responsabilidade dos coobrigados e fiadores. A

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hipótese difere substancialmente do levantamento do depósito antes de declarada aaceitação ou de contestada a lide. Por isto, os efeitos são também diversos.

Quando a coisa devida é indeterminada, e a escolha compete ao credor, será ele citadopara este fim, sob a cominação de perder este direito e ser a opção devolvida aodevedor. Não comparecendo para exercitar o seu direito, o devedor fará o depósito dacoisa que escolher (Código Civil de 2002, art. 342 22). Se desde o princípio o direito deescolha competir ao devedor, não tem lugar a providência inicial, porém a ofertadaquela que o devedor eleger.

Se a coisa devida for imóvel ou corpo certo, ou porque era o único originariamentedevido, ou por ter o credor perdido o direito de escolha, o devedor antes de consignarfará citar o credor para que venha recebê-la no local em que se encontrar ou naquele queseja o lugar de pagamento, conforme disponha o instrumento (Código Civil de 2002,art. 341).23 Não comparecendo o credor, pessoalmente ou por preposto, seráconsignada a coisa em mãos do depositário público ou de quem suas vezes faça. Aconsignação de corpo certo, ao contrário do que entende von Tuhr,24 não exclui osimóveis, que podem dela ser objeto, fazendo o devedor citar o credor para vir recebê-losou imitir-se na sua posse, ad instar do que prescreve o art. 1.216 do Código Civilitaliano de 1942, ou para que venha receber a escritura respectiva, como para o caso dosterrenos loteados prescrevia o art. 17 do Decreto-Lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937.Neste sentido, acompanhando o entendimento consolidado da doutrina e dajurisprudência, o Código Civil de 2002 também os incluiu.25

A questão das despesas com a consignação exige esclarecimento.26 Depois de efetuadoo depósito, as custas caberão ao credor se o juiz o julga procedente, e ao devedor seimprocedente (Código Civil de 2002, art. 343 27). Mas, na primeira fase da ação, antesde efetuado o depósito, já existem as despesas com o ingresso em juízo, emolumentosdo oficial de justiça encarregado da diligência de citação, taxas etc. Cabe, neste caso,indagar quem por elas responde. Pelo jogo dos princípios, tem o devedor de arcar comeste ônus: primeiro, porque ainda não há uma ação em sentido próprio, porém umoferecimento, e ainda não se positivou a recusa do credor, que é até possível estejasendo molestado por um capricho do devedor; segundo porque tem o credor o direito dereceber o que lhe é devido por inteiro, e, se ficarem a seu cargo as despesas, a prestaçãoserá desfalcada do montante delas; e terceiro, porque as despesas com o pagamento e aquitação se presumem a cargo do devedor, salvo se o credor mudar de domicílio oumorrer, deixando herdeiros em lugares diferentes. O oferecimento da coisa ou somadevida há de ser, então, feito por inteiro, sem o desfalque das custas. Não vindo o credorreceber na data aprazada, e efetuado por isso o depósito, o levantamento deste pelocredor, mesmo que se efetive antes da sentença, sujeita-o às custas, porque eqüivalerá aprocedência do depósito, da mesma forma que o seu levantamento pelo devedor tem oefeito de impor-lhe o ônus das despesas judiciais.

Uma vez efetuado o depósito e consignada a res debita, produz o efeito genérico deconstituir o credor em mora (mora accipiendi), e, por via desta, decorrem aquelasconseqüências que acompanham (nº 173, infra), de que se podem destacar: a cessaçãodo curso de juros; a liberação da responsabilidade pela colheita dos frutos; atransferência dos riscos da coisa para o credor; a liberação dos fiadores e abonadores; aobrigação de ressarcir os danos que a recusa ou o não-recebimento haja imposto aodevedor; o reembolso das despesas feitas na custódia da coisa; e, se se tratar de contrato

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bilateral, o consignante adquire a faculdade de exigir a prestação que compita ao credor,ilidindo desde logo a exceptio inadimpleti contractus.28

O artigo 344 do Código Civil de 2002 29 lança uma certa dúvida, que na realidade nãopode existir. Se houver litígio sobre a coisa, e não estiver esclarecido a quem caiba orecebimento, caso é de consignação. Se não a promover, o devedor assume os riscos daescolha que faça da pessoa a quem pagar. Uma vez consignada a res debita, e citados ospossíveis interessados, desaparece o risco do devedor, cabendo ao juiz decidir quem temdireito à coisa, e, levantada esta na forma da sentença, o devedor está exonerado.

Vencendo-se a dívida, na pendência de litígio entre credores que estejam disputando apreferência, poderão eliminar os riscos de um pagamento eventualmente feito pelodevedor, requerendo a consignação da coisa disputada (Código Civil de 2002, art. 34530).

159. Pagamento com sub-rogação

A natureza estritamente pessoal do vínculo obrigacional no Direito romano não permitiuque se desenvolvesse naquele tempo o instituto da sub-rogação do pagamento.31Primitivamente, era de todo impossível.32 Numa fase ulterior, admitiu-se, através dobeneficium cedendarum actionum, que o devedor opusesse uma exceptio à ação docredor, subordinando assim o pagamento a uma prévia cessão da actio pertinente aocredor, e, operando desta sorte o deslocamento da qualidade creditória, para um terceiroque houvesse embolsado o credor. A faculdade de exigir a prestação passava a outrem,em razão de este tornar-se titular da respectiva actio. Foi, porém, no antigo direitocostumeiro francês, depois de os canonistas haverem trabalhado o assunto, e atéimaginado a designação sub rogatio,33 que se criou o instituto do pagamento com sub-rogação, que o direito moderno desenvolveu e os códigos disciplinaram, um tantodiscordantemente, mas com a segurança de sua generalizada adoção, à medida quedecresce o romanismo no conceito da obrigação, substituído, diz Colmo, por tendênciasmais positivas e utilitárias.34

Tal como estruturado em nossa sistemática, chama-se sub-rogação a transferência daqualidade creditória para aquele que solveu obrigação de outrem ou emprestou onecessário para isto.35 Na palavra mesma que exprime o conceito (do latim sub rogare,sub rogatio) está contida a idéia de substituição, ou seja, o fato de uma pessoa tomar olugar de outra, assumindo a sua posição e a sua situação.36 Embora existam várioscasos de sub-rogação pessoal, aqui somente tratamos da que provém do pagamento.

Há uma positiva aproximação entre o pagamento com sub-rogação e a cessão decrédito,37 uma vez que por ela ocorre uma substituição do credor. A aproximação éflagrante, repitamos, mas não há confundir os dois institutos que se extremam porcaracterísticas peculiares. Antecipando a noção, que será mais detidamente examinadano lugar próprio (v. nº 179, infra), fixemos que a cessão de crédito é uma sucessãoparticular nos direitos do credor, originada de uma declaração de vontade. É a vontadedo cedente que atua como fundamento da transferência do direito, independentementedo pagamento, porque este não é essencial à sua realização nem a gratuidade éincompatível com a sua efetivação. Ao passo que a sub-rogação assenta no pagamento,podendo intervir ou não a emissão de vontade no sentido de operar o deslocamento daqualidade creditória, isto é: pode haver sub-rogação sem que o credor tenha a intenção

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de transferir ao terceiro solvente os seus direitos. Por outro lado, a cessão de créditoefetua-se com a conservação do vínculo obrigacional, enquanto que a sub-rogaçãopressupõe o seu cumprimento nas mãos do credor, por parte de um terceiro, direta ouindiretamente.38

Em doutrina, procura-se explicar de que maneira opera a sub-rogação, pois que, sendo oseu fundamento o pagamento e este o meio de extinguir a obrigação, parece estranhoque, solvido o débito, ao credor originário, subsista não obstante o vínculo obrigacional,com substituição do sujeito ativo. Vêm de longe as tentativas de explicação teórica dopagamento com sub-rogação, convindo mencionar as principais concepçõesdoutrinárias. Fez carreira, e por muito tempo ocupou posição segura, a teoria datransferência do crédito, criada por Dumoulin, para quem não passa de um casoparticular de cessão do direito creditório. Esta idéia sobrevive na doutrinação deGaudemet, e é reeditada por De Page. Mas não nos convence. Se pode ter cabida emalguns casos de sub-rogação convencional, é inadequada a explicar a sub-rogação legal.A teoria do mandato, defendida por Pothier e Merlin, segundo os quais o solvens age naqualidade de mandatário, ou de gestor de negócio do devedor, igualmente não satisfaz,pois que há casos em que o pagamento desatende à vontade do devedor e, em todos elesnão fica a sub-rogação na dependência de sua aprovação. Imaginou-se, então, a teoria daficção, que encontrou larga acolhida entre os intérpretes do Código Napoleão -Zacchariae, Aubry e Rau, Demolombe, Huc, e que ainda sobrevive em alguns modernos- Planiol, Baudry-Lacantinerie, Colin e Capitant, a qual não passa, entretanto, de ummeio cômodo de explicar os fenômenos jurídicos, sem maior aprofundamento de suascausas.39 A explicação mais consentânea com a etiologia da sub-rogação é a queassenta na análise da relação obrigacional, nos seus dois aspectos, ativo e passivo. Como pagamento pelo terceiro, é satisfeito o credor, que não tem mais o poder de exigir dodevedor o cumprimento. Mas, como este não solveu, continua para ele existindo odever-prestar, o qual, agora, é em relação ao terceiro solvente, estranho à relaçãoobrigatória primitiva, até que a solutio de sua parte venha extinguir de todo o vínculo.Na verdade, quando a terceiro solve o crédito de outrem, extingue neste o poder sobre opatrimônio do devedor, mas deixa sobreviver o débito, isto é, a obrigação de prestar,que efetivamente desaparece somente no momento em que o devedor executa o que lhecabe. Na sub-rogação, tal qual se dá na cessão de crédito, dá uma alteração subjetiva daobrigação, e é este, aliás, o ponto de contato entre os dois institutos. Efetuado,entretanto, o pagamento pelo terceiro, o credor é satisfeito, mas nem por isto desapareceo dever de prestar por parte do devedor. E, se o credor perde o direito de agir contraeste, a obrigação de solver continua de pé no sujeito passivo, até que efetue a prestação,não em favor do primitivo sujeito ativo da obrigação, mas em benefício do solvens quetomou o seu lugar.40 Se adotarmos outra explicação, admitindo a extinção total daobrigação, com o surgimento para o solvens de uma ação de in rem verso, ou de umaação de mandato ou de gestão de negócios em favor do terceiro solvente, visando ao seuressarcimento, teremos dificuldades para explicar a sobrevivência dos privilégios e dasgarantias da dívida originária, especialmente no caso de sobrevir alteração na situaçãoeconômica do devedor, rodeado de credores, todos anteriores ao pagamento do terceiro;seriam inoponíveis aos demais credores os privilégios constituídos ulteriormente àconstituição de seus direitos, mas, como o terceiro solvens substitui o credor na mesmarelação obrigacional, guarda as mesmas vantagens atribuídas à prestação que pagou. Senos inclinarmos para a idéia da transferência, não encontraremos justificativa para ocaso em que o solvens simplesmente paga e, não obstante a ausência de qualquerdeclaração do accipiens, passa a substituí-lo na relação obrigacional. Admitindo, ao

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revés, que se trata da mesma relação obrigacional anterior, que é exercida pelo terceirosolvente, nenhum óbice há para que se aceite que ele vigore com as mesmascaracterísticas em relação ao sub-rogatário, as quais são oponíveis aos credoresanteriores à sub-rogação.

Se a etiologia da sub-rogação não encontra unanimidade na doutrina, seus efeitos nãodespertam as mesmas controvérsias: o sub-rogatório fica investido de todos os direitos,ações, privilégios e garantias do primitivo credor, seja contra o devedor principal, sejacontra os seus fiadores (Código Civil de 2002, art. 349 41). Opera, pondo o credor sub-rogado na situação do primitivo, preferindo a qualquer outro credor, anterior à sub-rogação. Seja legal ou convencional, adquire o sub-rogatário o próprio crédito, tal qualé. E, sendo este titular de direitos contra o devedor e contra seus fiadores e garantes, osub-rogatório igualmente os tem. Pela mesma razão, o devedor pode opor ao sub-rogatário as exceções pessoais que tinha contra o credor primitivo. O sub-rogatário,portanto, suporta as exceções que o sub-rogante teria de enfrentar. Na sub-rogaçãoconvencional valem as restrições impostas aos direitos do sub-rogado, como também acláusula que o legitime a reembolsar-se no caso de ser insolvente o devedor. Se,entretanto, a dívida não existir, cabe ação de repetição contra o accipiens.

Duas são as modalidades de sub-rogação: legal e convencional.

Diz-se legal a sub-rogação que decorre da vontade da lei, pura e simplesmente, sem quepara sua verificação seja necessário intervir a vontade das partes, ou o acordo, quer docredor quer do devedor. Como imposição da lei, a sub-rogação legal ocorre mesmocontra a vontade do devedor ou do credor, e nisto residem a maior força e o maiorinteresse deste instituto, e sua afirmação essencial de benefício ao solvens. Pelo direitobrasileiro dá-se a sub-rogação de pleno direito (Código Civil de 2002, art. 346 42):

a) Em favor de credor que paga a dívida do devedor comum. O Código de 1916somente a concedia se o pagamento se destinava a credor a quem competia o direito depreferência. O novo Código, acompanhando o Projeto de Código de Obrigações de1965, eliminou esta restrição, que constituía fonte de dúvida e incertezas. Basta afundamentar a transferência da qualidade creditória, que o solvens solva débito de quemestá vinculado, juntamente com ele, qualquer que seja a natureza da dívida. Efetuando opagamento, assume o lugar do credor, com todos os privilégios e garantias. Há sub-rogação, mesmo que o solvens seja credor quirografário.

b) Sub-rogação legal é, ainda, a que milita em favor de adquirente de imóvelhipotecado, que paga ao credor hipotecário, bem como do terceiro que efetiva opagamento para não ser privado de direito sobre imóvel. Como, em razão do direito deseqüela, o ônus acompanha o imóvel, em poder de quem quer que o tenha, o adquirenteestá sujeito a sofrer a excussão hipotecária, a não ser que redima a coisa pelopagamento, libertando-a do ônus real. Em conseqüência disto, investe-o a lei daqualidade creditória contra o antigo devedor hipotecário, cujo débito solveu. Cessa,entretanto, a garantia real, ficando o solvens com a faculdade de cobrar a dívida sobre osdemais bens do devedor, sem que lhe assista o privilégio, salvo se houver outro, pordiversa causa. Esta sub-rogação, que é pouco prática se se encarar a situação doadquirente em relação ao devedor, pois que, vindo a pertencer àquele o bem que eraobjeto de garantia, seus direitos sofrerão concurso com os demais credores do mesmodevedor quanto aos demais bens componentes de seu acervo patrimonial, passa a ter

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importância no caso de haver uma segunda hipoteca sobre o bem adquirido: oadquirente, que paga a primeira, sub-roga-se no crédito hipotecário solvido, e, assim,sua posição é privilegiada relativamente ao segundo credor hipotecário, parareembolsar-se preferencialmente sobre o produto da venda ou sobre o valor doimóvel.43 Dá-se a sub-rogação em favor de terceiro que, não sendo obrigado, pagadívida alheia para não ser privado de direito sobre imóvel, como seria o caso de esteestar sujeito a ônus de outra natureza, que ponha em risco a situação jurídica do solvens.

c) Opera-se, ainda, sub-rogação legal em benefício do terceiro interessado, que pagadívida pela qual era ou podia ser obrigado, no todo ou em parte. É o caso do co-devedorsolidário, do fiador, do co-responsável, que solve a dívida do seu co-devedor ouafiançado, pela qual podia ser demandado, total ou parcialmente. São ainda hipótesesabrangidas nesta alínea a do co-devedor em obrigação indivisível como o das diversasgarantias do mesmo débito, pois que quem o paga solve sua própria dívida, ao mesmotempo em que a dos outros.44 Não é necessário que o co-devedor ou fiador aguarde oprocedimento do credor. Basta que pague, mesmo espontaneamente, para adquirircontra o obrigado os direitos do credor.

Além destes casos, há ainda sub-rogação legal em favor do segurador que pagaindenização correspondente ao dano sofrido pela coisa relativamente ao segurado;45 dequem paga débito fiscal em nome do devedor; do interveniente voluntário que resgatatítulo cambial;46 do herdeiro que paga, com recursos próprios, dívida da herança; ou,ainda, em qualquer hipótese em que ela se dê por disposição especial.

Quando apenas em parte ocorre a sub-rogação, por ter o terceiro solvido parcialmente adívida, poderá surgir conflito de preferências, envolvendo a indagação a quem competea garantia de se pagar pelos bens do devedor - se ao antigo credor, ou ao sub-rogadoparcial. A resposta somente pode vir em favor daquele, pelo remanescente de seucrédito, pois que o sub-rogatário não tem um direito a ele oponível.47 Mas, satisfeito oantigo credor, com o recebimento do saldo, o terceiro sub-rogado tem os privilégiosrelativos à dívida que solveu na concorrência com os demais credores, mesmoanteriores à sub-rogação, pelo fato de substituir o sub-rogante (Código Civil de 2002,art. 351 48). Como o princípio não é de ordem pública, tem validade a declaração dosolvens, renunciando o direito de receber preferencialmente sobre os bens do devedor.

A sub-rogação não pode constituir uma fonte de lucros ou de vantagens. Por não se darde lucro capiendo, os direitos do sub-rogatário encontram limite na soma que tiverdespendido para desobrigar o devedor, e têm ação contra este os seus fiadores namedida do que tiver efetivamente pago.49 Assim vem disposto no Código Civil de2002, art. 350.50 Logo, ao contrário da sub-rogação convencional, que se equipara àcessão de crédito, a que opera por força de lei difere dela, por transferir ao novo credora dívida tal qual é. O credor sub-rogado não pode auferir vantagem. Fica o seu direitolimitado à quantia que desembolsou para a solução do débito, com os seus acessórios,beneficiando-se, também, dos juros após a sub-rogação.

Diz-se convencional a sub-rogação que se origina da declaração da vontade, seja dodevedor, seja do credor, isto é, o pagamento é acompanhado da declaração no propósitode operar a transferência. A lei prevê dois casos de sub-rogação convencional (CódigoCivil de 2002, arts. 347 e 348 51):

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a) o primeiro, quando o credor, recebendo pagamento de terceiro, lhe transfere todos osseus direitos. Existe, nesta hipótese, uma verdadeira cessão de crédito, aproximando-senitidamente os dois institutos. Para se distinguir de qual deles se trata, mandam osautores que se atente em primeiro lugar para a intenção das partes a ver o quedeliberaram fazer, se foi uma cessão ou pagamento com sub-rogação; falhando esterecurso, as circunstâncias de cada caso devem ser invocadas; e, por último, se dúvidaainda restar, cabe pronunciar-se pela cessão de crédito, que é o que mais comumenteocorre, pretendendo o terceiro, na maioria das vezes, realizar um negócio em vez deuma liberalidade.52 São requisitos desta sub-rogação a concorrência, simultânea, dopagamento e da transferência da qualidade creditória. Mas é bem de ver que, sendoconvencional, tem de figurar expressa a sub-rogação do solvens na situação do credor,muito embora não seja mister atender a requisito de forma.53 Se o terceiro pagar aocredor, sem receber a transferência do crédito e mais tarde esta vier a ser feita, éinoperante. Não vale a sub-rogação porque, pelo pagamento recebido do terceiro, semmenção de se fazer substituir o accipiens pelo solvens, extinta fica a obrigação, e,portanto, a transferência de direitos e ações que venha ulteriormente, é frustra, porquepartida de quem não mais os tem.54

b) A segunda hipótese de sub-rogação convencional é a do terceiro que empresta aodevedor a quantia precisa para solver a dívida, sob a condição de ficar investido nosdireitos do credor satisfeito. Aqui o consentimento é do devedor. Não é ouvido ocredor,55 e nem tem qualidade para opor-se, pois que seu direito é receber o que lhe édevido, sem lhe importar de que maneira o obteve o devedor. Também neste caso sãoextremos da sub-rogação a simultaneidade do mútuo e a declaração expressa de seinvestir o mutuante na qualidade creditória. Mas, se a intenção da lei é favorecer oterceiro que mune o devedor dos meios da solver a obrigação, não deve tambémestimular a fraude contra credores. Daí a necessidade de que o empréstimo se destineefetivamente à quitação da dívida, e que seja expressamente declarada a sub-rogaçãodos direitos do credor no mutuante,56 a que o direito francês acrescenta rigorosascondições formais.57 No direito brasileiro não há exigência relativa à forma, porém é dese estabelecer cuidadosa apuração da simultaneidade, a fim de que uma declaraçãoulterior não vá simular a sub-rogação. Por seu lado, a declaração há de ser expressa,pois é claro que, não concorrendo os requisitos, não existirá sub-rogação, porém doisatos diferentes, um extintivo da obrigação primitiva e outro gerador de obrigação nova.É importante distinguir, porque, se houver a condição expressa da sub-rogação, o novocredor substitui o primitivo, com preferência oponível a outros credores já existentes,mesmo anteriores a ela; se não houver, o novo credor é tratado como qualquer outro,sem as vantagens da sub-rogação, ainda que se prove que a quantia mutuada se destinouà adoção do débito anterior.

Qualquer que seja a sub-rogação - legal ou convencional - adquire o sub-rogado opróprio crédito do sub-rogante, tal qual é.58 Opera, assim, a substituição do credor pelosub-rogatório, que recebe o crédito com todos os seus acessórios, mas seguido tambémdos seus inconvenientes, e das suas falhas e defeitos. Suporta o sub-rogado,evidentemente, todas as exceções que o sub-rogante teria de enfrentar.59 Não temdireito a outros juros, senão os que vencia a dívida solvida, e está sujeito à mesmaprescrição do crédito primitivo.60

Por outro lado, o sub-rogado não tem ação contra o sub-rogante, para reembolsar-se nocaso de ser o devedor insolvente, pois que se não dá uma garantia do credor ao solvens

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(salvo se convencionada, é claro). Mas, se a dívida solvida não existir, cabe ao sub-rogado ação de repetição contra o accipiens, não fundado em princípios de garantia,mas nas regras da repetitio indebiti, deduzidas no nº 169, infra.61

160. Imputação do pagamento

As legislações cuidam de disciplinar a situação do devedor que é obrigado a mais deuma prestação ao mesmo credor, e oferece pagamento que não alcança a solução detodas. Não seguem, porém, orientação uniforme. Ao contrário, notam-se três tendênciasbastante nítidas, que podem ser observadas com precisão, atentando-se: a) para oCódigo Federal suíço das Obrigações de um lado, como expressão da corrente queprefere assegurar a situação do credor; b) para o Código Civil argentino de outro lado,que se define pelo devedor; c) o Código Civil brasileiro de 2002, ao mesmo passo queprocura adaptar-se mais seguramente aos princípios herdados de Direito romano, adotauma linha média, que nem é francamente do lado do devedor nem procura reforçar aposição do credor.62

Imputação do pagamento é a faculdade de escolher, dentre várias prestações de coisafungível, devidas ao mesmo credor, pelo mesmo devedor, qual dos débitos satisfazer.63

É reconhecida primeiramente ao devedor, com as restrições que a lei consagra; se odevedor não usa do direito de indicar a dívida imputável transfere-se ao credor; e senem um nem outro o faz, a lei menciona o critério a ser obedecido.64 Vejamos, pois,como se desenvolvem estes conceitos.

A - Quando a pessoa é obrigada, simultaneamente, por mais de um débito da mesmanatureza, a um só credor, tem o direito de indicar a qual deles oferece pagamento -imputação do devedor (Código Civil de 2002, art. 352 65). Tal faculdade é extensiva aoterceiro que paga, nos casos em que tenha o direito (v. nº 153, supra) de fazê-lo.66 Oprincípio, entretanto, não pode ser entendido de maneira rígida e absoluta, pois que aocredor é reservado recusar a imputação do pagamento na dívida ilíquida ou não vencida.Por isso, é preciso que se apontem os requisitos extremos deste fenômeno jurídico,67segundo as exigências da lei: 1º) a existência de diversos débitos: sem esta pluralidadenão há hipótese de imputar-se pagamento em um deles. Não obstante a lógica daobservação, há quem admita pagamento imputável em unidade de débito.68 O nossoCarvalho de Mendonça qualifica de heterodoxa tal concepção, que não passa daadmissibilidade do pagamento parcial;69 2º) identidade dos sujeitos, pois se não foremos mesmos o devedor e o credor não se configura, materialmente, a imputação; 3º) osdébitos devem ser da mesma natureza, igualmente líquidos e vencidos; 4º) a prestaçãooferecida deve bastar à extinção de qualquer das dívidas, pois é de princípio que ocredor não pode ser compelido a receber pagamento parcial.

Reconhecida, então, a imputação de pagamento ao devedor, não se pode deixar deconceder ao credor certas faculdades. Assim, se o débito for de capital e juros, imputar-se-á o pagamento, primeiramente, nos juros vencidos, e depois no capital, a não ser quehaja estipulação em contrário, a qual será respeitada, como expressão soberana davontade das partes. Mas se o credor passa a quitação por conta do capital, prevalece,porque a imputação nos juros ser-lhe-ia mais favorável, e, se quitou o capital no todo ouem parte, não pode recuar, para onerar o devedor (Código Civil de 2002, art. 354 70).

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A dívida a termo suporta imputação antes do vencimento do prazo, quando este é abenefício do devedor, pois que não se lhe pode recusar a renúncia a um benefícioinstituído a seu favor; mas não se dá na hipótese reversa, de ser o termo a favor docredor, uma vez que não teria, então, o devedor a faculdade de renunciar ao que não lheé concedido. As dívidas condicionais são inimputáveis antes do implemento dacondição.71

B - Efetuando o pagamento sem se valer do direito de opção por qual das dívidasoferece a prestação, sendo todas elas líquidas e vencidas, transfere o devedor ao credor afaculdade de escolha (imputação do credor), e, pois, não tem direito de reclamar contraa que ele realizar (Código Civil de 2002, art. 353 72).

Uma vez feita a escolha, seja pelo devedor, seja pelo credor, e passado o recibo, nãopode mais o devedor arrepender-se da indagação, ou da omissão própria, para reclamarcontra a imputação feita, ainda que a ele danosa. Se deixou de exercer um direito seu, asi mesmo se acuse, e suporte as conseqüências. Cumpre-lhe aceitá-la, salvo provandoque o credor se conduziu maliciosamente, ou cometeu violência, ou procedeu com dolo.

C - Omitindo o devedor a indagação da dívida a que oferece pagamento, e deixando ocredor de mencionar no recibo a imputação, esta far-se-á ex vi legis, já que não háqualquer declaração dos interessados a respeito. É o que se denomina imputação legal,instituída para suprir a vontade das partes e que, por conseguinte, tem cabimentosomente na falta de convenção ou ajuste, os quais sempre terão prevalência sobre adisposição supletiva (Código Civil de 2002, art. 355 73).74

Neste caso, se houver dívidas líquidas e vencidas, e outras que não o sejam, a imputaçãoserá feita em primeiro lugar naquelas, e, somente depois de extintas, nas outras. Setodas, porém, forem líquidas e vencidas ao mesmo tempo, far-se-á nas mais onerosas.Havendo, então, débitos que vençam juros, e outros não, ou sujeitos uns a juros maiselevados do que outros, imputa-se pagamento nos primeiros e depois nos demais. Adívida reforçada com cláusula penal é prioritariamente imputável em relação às que anão têm, e assim por diante, de sorte que sejam relegadas para momento ulterior asmenos onerosas.75 E, finalmente, sendo todas idênticas, isto é, da mesma natureza,igualmente onerosas, e com vencimento simultâneo, já que no nosso direito não ocorre,como no francês,76 a prioridade conseqüente à maior ancianidade, imputar-se-á porigual em todas elas,77 solução que o Código Comercial de 1850 consagrava (art. 433) eque o Direito romano em mais de uma passagem apontava.78 Na elaboração doAnteprojeto de Código de Obrigações de 1965, fixamos estes princípios que sempre nospareceram razoáveis.

Exposta a disciplina da imputação do pagamento, resta-nos uma palavra sobre a suacaracterização jurídica. Os autores discutem se é ato unilateral ou bilateral, entendendouns que resulta da declaração da vontade de um, e outros que de ambos os interessados.Parece-nos que não se submete a solução a uma regra uniforme. Se a naturezaconvencional, defendida por Planiol e Ripert (Traité Pratique), é admissível nos casosem que o devedor aponta o débito imputável e o credor aceita a indicação, pois aíressalta a estrutura bilateral do negócio, não se pode contudo falar de ato convencionalquando o devedor indica e o credor, escudado na lei, recusa, e falta o consensusessencial a tal conceituação. A seu turno, a imputação legal não pode ser classificada

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senão com esta mesma designação (legal), já que não se origina da manifestaçãovolitiva das partes, porém da vontade da lei.

161. Dação em pagamento

Em princípio, o devedor liberta-se mediante da prestação a que se obrigou. É a entregada coisa devida que extingue a obrigação, e não de outra diversa, ainda que maisvaliosa. Assim era no Direito romano, muito mais rigoroso e mais severo que omoderno. Ali, porém, nasceu a datio in solutum.79 Sua evolução não foi, porém,tranqüila, e foi lenta. Admitiu-se, em amenização do princípio, que o consentimento docredor autorizava o devedor a solver o obrigado mediante a entrega de coisa diversa.Mas somente se o credor o quisesse, de vez que sem o seu assentimento não podia odevedor operar a entrega de coisa diferente, com efeito liberatório: aliud pro alio invitocreditori solvi non potest. Quando a civilização jurídica admitiu que o devedor podia,mediante a entrega de uma coisa por outra - aliud pro alio - solver a obrigação, surgiu aquestão de saber se se devia considerar a dação em pagamento uma forma de soluçãodireta, e extintiva da obrigação, ou se operava a liberação do devedor pela instituição deuma exceptio doli em seu favor.80 Na luta entre as duas escolas, a dos proculeianos e ados sabinianos, prevaleceu a opinião destes, como se lê nas Institutas (Livro III, tít. 29,pr.): "Tollitur omnis obligatio solutione eius quod debetur, vel si quis, consentientecreditore, aliud pro alio solverit."

O nosso Direito consagra a datio pro soluto com este caráter, admitindo que o credorconsinta em receber coisa que não seja dinheiro, em substituição da res debita (CódigoCivil de 2002, art. 356 81), o que bem a define como a entrega de uma coisa por outra, enão a substituição de uma obrigação por outra, e pressupõe a imediata transferência dedomínio de bem que é seu objeto.82 Constitui assim um negócio translativo oneroso.83E como, pelo nosso Direito, a aquisição da propriedade se não dá, na falta de inscriçãodo título se a coisa for imóvel ou a tradição dela se for imóvel, segue-se que, paraproduzir seus regulares efeitos, a datio in solutum completa-se com uma ou com outra.

Conseqüência do caráter translatício, associado à substituição convencional da resdebita, a dação em pagamento pressupõe e exige dupla capacidade. Da parte do solvensé preciso que tenha ius disponendi da coisa, pois que, se não puder efetuar atransferência da sua propriedade ao accipiens, dação não haverá; e da parte do credor,como implica a sub-rogação da coisa devida na coisa entregue, com efeito liberatório, oaccipiens tem de ser apto a dar o necessário consentimento. No caso de ser qualquer daspartes representada por procurador, deve este ter poderes bastantes, seja para reconhecero débito e alienar, seja para aceder em receber aliud pro alio.84

Dentro da melhor doutrina, deve-se conceituar a dação em pagamento como acordoliberatório (M. I. Carvalho de Mendonça), em que sobre o consentimento predomina aidéia da extinção da obrigação, como já salientava Gaio: "Qui solvendi animo dat magisdistrahere vult negotium quam contrahere."85

Todos os autores consideram a dação em pagamento figura jurídica autônoma. Para quese verifique, é mister que o devedor faça uma prestação diversa da res debita,extinguindo a dívida. A obrigação de dar uma coisa por outra não constitui datio insolutum, porém novação subjetiva. Distingue-se, também, a dação em pagamento da

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datio pro solvendo. Aquela extingue a obrigação. Esta consiste na entrega de um título,de cuja liquidação fica dependendo a quitação da dívida.

Sendo um acordo extintivo ou liberatório, tem de avençar-se depois de constituída aobrigação, embora nada impeça que se conclua após o seu vencimento.86 E tanto podeconsistir na entrega de uma coisa em lugar de dinheiro - rem pro pecunia - como aindade uma coisa por outra - rem pro re - ou de uma coisa pela prestação de um fato rem profacto etc. Essencial é a substituição do objeto da obrigação por outro diverso - aliud proalio.87

O Código Civil de 1916 enunciava a norma, aludindo especificamente a "coisa que nãoseja dinheiro". A doutrina, entretanto, salientava que a datio in solutum ou datio prosoluto não era restrita às obrigações de prestação pecuniária. Por esta razão, ao elaboraro Projeto de Código de Obrigações de 1965, fizemos constar que a dação em pagamentopode abranger toda modalidade de prestação. Assim, o manteve o novo Código. E, emconseqüência, ficou expresso que a dação em pagamento tem lugar toda vez que odevedor efetua prestação diversa da devida. Cabe a entrega de uma coisa em lugar dedinheiro ou de outra coisa, a prestação de um fato em vez de outro fato ou de uma coisa,e assim em diante.

São requisitos da dação em pagamento: a) a existência de uma dívida; b) o acordo docredor; c) a entrega de coisa diversa da devida, com a intenção de extinguir a obrigação.Quando alguém entrega a outrem uma coisa, sem a preexistência de uma obrigação e oanimus de extingui-la, realiza uma doação, que se caracteriza pelo espírito deliberalidade (animus donandi). Por outro lado, se o devedor, cumprindo uma obrigaçãoalternativa, entrega uma das coisas, não efetua uma dação em pagamento, porque acoisa dada já estava in obligatione (v. nº 144, supra). Mais próxima da datio pro solutoé a entrega de uma coisa que esteja in facultate solutionis, se a obrigação for facultativa(vide nº 144, supra), mas ainda aqui falta elemento caracterizador, porque, embora acoisa entregue não constitua objeto da obrigação, estava previsto que podia sê-lo dopagamento.88

Não é necessário que haja coincidência entre o valor da coisa recebida e o montante dadívida. Pode o credor receber um objeto mais valioso do que esta ou um de menorpreço, em substituição da prestação devida, e por um ou outro quitar. O que é daessência da dação pro solutio é a entrega de coisa que não seja a res debita, empagamento da dívida.

É possível que o credor, recebendo coisa menos valiosa do que a devida, dê ao devedorquitação parcial? Embora a lei silencie, nada impede que assim se faça, pois que, se ocredor pode consentir em receber por conta da coisa ou quantia devida uma prestaçãoparcial, subsistindo a obrigação pelo remanescente, admissível igualmente será que umadatio in solutum alcance apenas uma parte da obrigação, a qual fica assim quitada, esubsista pelo restante, não abrangido pela entrega da coisa.

Também em nada afeta a essência da dação em pagamento que a coisa entregue sejamóvel ou imóvel, corpórea ou incorpórea, um bem jurídico qualquer, uma coisa ou umdireito, como o usufruto.89 É mister, contudo, que seja diferente da devida. Assim, seocorre lançamento em conta corrente bancária, indicada ou aceita pelo credor, não seconfigura uma datio in solutum, porém pagamento normal, porque se lhe proporciona a

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possibilidade de disposição sobre a soma de dinheiro correspondente ao crédito feito.90Pela mesma razão, a entrega de um cheque pelo devedor ou a expedição de uma ordemde pagamento não constitui uma datio pro soluto, porém um meio de pagamento.91 Épreciso, também, que a coisa dada em pagamento tenha existência atual. Se versar sobrecoisa de existência futura, ou se for um compromisso de entregar coisa no futuro,implicará a criação de uma obrigação, sem caráter de pagamento, e terá como efeito oua realização de uma novação, se a primitiva obligatio ficar extinta, ou em umaobrigação paralela, se aquela subsistir até a execução da nova.92 Se for título de créditoa coisa dada em pagamento, a transferência importará em cessão (Código Civil de 2002,art. 358 93), porque ao título de crédito corresponde uma relação jurídica, valendo peloque exprime e para quem o recebe pro soluto é útil na medida da qualidade creditóriatransferida. Por isso é que quando o credor recebe do devedor um título de crédito setorna cessionário deste, e, nesta qualidade, exercitará o direito transferido. Mas se odevedor entregar em vez de um título de crédito constituído a seu favor um outro quetraduza novo débito ao credor, em substituição à obrigação anterior, não há dação empagamento, porém um meio de pagamento,94 ou uma novação, ou uma datio prosolvendo, conforme o caso.

Embora o Código se limite a proclamar a equiparação, a conseqüência é que as normasda cessão devem ser trazidas para regular as relações entre as partes, bem como no quetoca ao devedor da obrigação cedida. O que tem em vista o artigo é o título emitido porterceiro. Se for passado pelo mesmo devedor, não é datio in solutum. Como não é,também, a entrega, ao credor de um valor fiduciário correspondente à dívida.

Determinado que seja o valor da coisa, equipara-se a dação em pagamento à compra evenda, razão por que as relações entre as partes se regulam pelas normas deste contrato(Código Civil de 2002, art. 357 95). Esta equiparação freqüentemente ocorre quando acoisa dada em pagamento é imóvel, cujo valor é estipulado pelas partes no ato. Convém,todavia, não identificar a datio in solutum com a compra e venda, como faziam osromanos (Ulpiano: "dare in solutum est vendere"). Há equiparação; não identidade.Deve-se distingui-la, ainda, da novação, ou de outros atos negociais, pois que a daçãoem pagamento é um negócio jurídico típico, que se caracteriza como peculiarmodalidade de solução, provida de efeito liberatório do devedor.96

A evicção da coisa dada em pagamento suscitava no Direito romano uma diversidade desoluções que vieram repercutir no moderno. Dizia-se, de um lado, que a conseqüênciaseria a repristinação da primitiva obligatio, quer fosse parcial, quer fosse total a evicção:"Si quis aliam rem pro alio volenti solverit et evicta fuerit (res), manet pristinaobligatio."97 Mas de outro lado sustentava-se que a antiga obrigação, extinta pela datio,não se restabelecia, compelindo ao credor evicto uma ação ex empto, pela qual eraindenizado do dano sofrido.98

O Código Civil de 2002, no art. 359,99 pronunciou-se pela primeira das soluções,enquanto que outros sistemas (exempli gratia , Código italiano, art. 1.197; uruguaio, art.1.493; argentino, art. 783; BGB, art. 365) se inclinam pela segunda.100 Para nós, porconseguinte, a evicção da coisa recebida em pagamento anula a quitação dada, e fazcom que se restabeleça com todas as garantias a obrigação primitiva.101 E, como a leinão distingue entre a evicção total e a parcial, em um e outro caso ocorre esta solução, oque aliás é lógico, de vez que a quitação dada pelo credor teve em vista a entrega que odevedor lhe fez, de uma íntegra. Vindo a perder uma parte dela, não pode o credor ser

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compelido a aceitar a parte não evicta como solução parcial. Sendo este o efeito daevicção, nem cabe indagar se voltam a ficar obrigados os fiadores, ou se vigoram aindaas garantias. E não há mister de maiores esclarecimentos, porque se ocorreu a extinçãoda obrigação pela dação em pagamento, com a liberação aos fiadores e odesaparecimento das garantias, restabelecendo-se a obrigação como corolário daevicção, total ou parcial, da coisa entregue, revive aquela, tal como se não tivessehavido a dação, já que a quitação dada ficou sem efeito, e ipso facto ressurgem asgarantias reais ou fidejussórias, que eram acessórias dela, e como tais seguem oprincipal. No Anteprojeto de Código de Obrigações, contudo, não mantivemos estaconseqüência, mas, ao revés, assentamos que os fiadores e coobrigados, que se livrarampela dação em pagamento, não se voltam a vincular com a evicção da coisa, a não serque se tenha ajustado em contrário (art. 248). A Comissão, todavia, eliminou no Projeto(art. 238) a referência às garantias, restringindo o preceito à restauração da obrigaçãoprimitiva. O Código Civil de 2002 conserva o efeito repristinatório da evicção da coisadada em pagamento. A evicção da coisa recebida pelo credor anula a quitação dada,restabelecendo a obrigação. A perda da coisa por sentença opera como se nenhumaquitação fosse dada.

Ao fazer a ressalva quanto aos direitos de terceiros, o Código deixou de esclarecer a suaextensão. Se a obrigação for garantida por hipoteca ou penhor, e o devedor tiveralienado o bem dado em garantia, antes da ação intentada por terceiro, não há dúvida deque descabe o restabelecimento da garantia real. Mas a indagação se as garantiasfidejussórias se restauram é que ficou sem resposta no Código. Parece-nos que não.Com a quitação dada pelo credor, mediante o recebimento de prestação diversa dadevida, a obrigação se extingue, e com ela a garantia prestada por terceiros. Evicta acoisa, a obrigação primitiva se restabelece. Mas o direito de terceiro à liberação ficaressalvado, e não pode ele ser de novo trazido à condição de garante, sem manifestaçãoexpressa de vontade. O devedor tem a obrigação de satisfazer os interesses do credor; oterceiro, entretanto, só mediante nova declaração de vontade.

É preciso, finalmente, distinguir a datio in solutum da datio pro solvendo, que severifica quando o devedor assume junto ao credor uma nova obrigação (emissão de umtítulo cambial, por exemplo, em lugar de pagamento), ficando ajustado (ou presumidodo conjunto de circunstâncias) que a antiga dívida somente ficará extinta em virtude dopagamento da nova. Aqui, a distinção relativamente à datio in solutum é precisa: em vezde sub-rogação de uma na outra, subsistem duas obrigações, e, quando o devedorsatisfizer a segunda (que é a que lhe cumpre solver preferentemente), ficam extintas asduas102 (v. nº 154, supra).

Capítulo XXXII - Extinção das Obrigações sem Pagamento

Sumário: 162. Novação. 163. Compensação. 164. Transação. 165.Confusão. 166. Compromisso. 167. Remissão.

Bibliografia: Alfredo Colmo, De las Obligaciones en General, nos 733 esegs.; von Tuhr, Obligaciones, I, nos 73 e segs.; Clóvis Beviláqua,Obrigações, §§ 42 e segs.; Ruggiero e Maroi, Instituzioni di DirittoPrivato, § 136; Mazeaud et Mazeaud, Leçons, II, n° 1.208; Karl Larenz,Derecho de Obligaciones, I, pág. 345; Hector Lafaille, Tratado,Obligaciones, I, n° 444; Enneccerus, Kipp y Wolff, Tratado,

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Obligaciones, I, § 75; Alberto Trabucchi, Istituzioni di Diritto Civile, n°243; M. I. Carvalho de Mendonça, Doutrina e Prática das Obrigações,ed. atualizada por José de Aguiar Dias, I, nos 340 e segs.; Serpa Lopes,Curso, II, n° 206; Saleilles, Obligations, n° 47; Lacerda de Almeida,Obrigações, n° 85; Planiol, Rippert et Boulanger, Traité Élémentaire, II,n° 1.789; De Page, Traité Élémentaire, III, 2ª parte, n° 565; Molitor,Obligations, II, nos 989 e segs.; Soriano Neto, Compensação; SorianoNeto, Novação; Salvat, Obligaciones, n°s 2.838 e segs.

162. Novação

Neste Capítulo tratamos daquelas modalidades de extinção da obrigação sem que serealize pagamento, quer direta quer indiretamente. São várias, cada uma submetida àsua própria disciplina, e todas sujeitas a uma dogmática peculiar.

A primeira é a novação, que pode ser conceituada como a constituição de umaobrigação nova, em substituição de outra que fica extinta. Já o Direito romano a definiu:"Novatio est prioris debiti in aliam obligationem vel civilem vel naturalem transfusioatque translatio: hoc est cum ex praecedenti causa ita nova constituatur, ut priorperimatur. Novatio enim a novo nomen accepit et a nova obligatione."1 Suas condiçõesformais e seu mecanismo eram muito vivos e complexos. Por muitos séculos a novaçãorealizou a ligação entre o personalismo primitivo do vínculo obrigacional e anegociabilidade de seu conteúdo.2 E precisamente porque se desenvolveu no Direitomoderno o princípio da transmissibilidade, em contrário à rígida concepção romana, quese opunha à mutação de seus elementos,3 atenuou-se o prestígio da novação. Não querdizer que o Direito moderno a tenha abandonado. Deu-lhe menor importância, é certo, oque não impediu que os mais recentes monumentos legislativos a tenham conservado,como o Projeto Franco-Italiano de Obrigações e Contratos, art. 199; o AnteprojetoBrasileiro de Código de Obrigações, de 1941, art. 304; o novo Código Civil Italiano de1942, art. 1.230; o Anteprojeto de Código de Obrigações de 1963, art. 249; o Projeto deCódigo Civil de 1975, art. 358. Desapareceram, evidentemente, no Direito moderno aspeculiaridades do romano, estruturando-se o instituto em termos mais singelos e maispráticos. Em linha de princípio, com a novação o devedor exonera-se sem cumprir aobrigação, e é por isso que se diz que a novação realiza a sua extinção sem pagamento,enquanto que o credor adquire um novo crédito, em substituição ao antigo.

No desenvolvimento deste instituto, partimos da sua caracterização jurídica, e dos seusextremos, para atingirmos afinal as suas espécies e os seus efeitos.

Comecemos por estabelecer que a novação importa em uma obrigação que, ao nascer,extingue outra preexistente, vale dizer: não há, aqui, mera alteração ou modificação dosseus elementos secundários. É mister a sua profundidade, e o seu impacto sobre osessenciais, a ponto de operar a extinção dela e terminação do vínculo existente.4 Se seencarar exclusivamente a obrigação primitiva, tem-se de admitir que ela desaparece, talcomo ocorreria se houvesse pagamento. É por isso que a novação é colocada entre ascausas extintivas da obrigação. No seu mecanismo, difere do pagamento. Enquanto esteé a execução ou o cumprimento, e se realiza pela prestação do obrigado, satisfazendo-seo credor e libertando o devedor, a novação, que se apresenta como extinção sempagamento, opera na verdade o desaparecimento do vínculo preexistente, mas, comonão se efetua a prestação devida, outro vínculo obrigatório nasce em substituição ao

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primeiro, e, por esta razão, pode o mesmo credor continuar credor ou o mesmo devedorcontinuar devedor. Mas não da primitiva, porém de nova obrigação, criada com anovatio. Será então certo dizer que ela é simultaneamente causa extintiva e causageradora de obrigações.

Na configuração da novatio devem concorrer os seguintes requisitos:5

a) O consentimento. Operando pela constituição ou criação de uma obligatio nova,pressupõe a capacidade do agente e a emissão de vontade, para que se corporifique nomundo jurídico o negócio, com força de novar. Este requisito ora suscita a invocaçãodos princípios atinentes à capacidade genérica para todo negócio jurídico, ora aquelesoutros referentes às restrições impostas às partes relativamente a certos atos oucontratos. E se ao agente, embora capaz para os atos da vida civil in genere, faltaaptidão para realizar um dado ato negocial, não tem ele o condão de novar. De regra,ensina Carvalho de Mendonça, pode fazer novação todo aquele que tem aptidão paravalidamente pagar e receber: cui recte solvitur, is etiam novare potest.6

b) A existência da antiga obrigação. Se não houver uma relação obrigacional, dotadados requisitos de validade, que possa ser extinta, e substituída por outra diversa, não hánovação.

Discute-se a hipótese de não ser a obrigação primitiva civil, mas simplesmente natural,e questionar-se da possibilidade de uma novatio. No Direito romano, segundo adefinição acima transcrita, de Ulpiano, era possível. E no moderno nada impede queassim também seja,7 isto é, que a uma obrigação insuscetível de ação se substitua, pornovação, uma outra integrada de todos os seus elementos. Não se pode, com efeito,alinhar em paralelo a obrigação natural e a ineficaz. Esta não se chega a constituirvalidamente, por faltar um dos seus requisitos subjetivos, objetivos ou eventualmenteformais. Ao revés, a obligatio naturalis é o que resulta de um vínculo menos intenso,ostentando os visos de uma obrigação, porém desvestida de sanção ou desprovida deação (v. nº 129, supra.) E, se se pode reconhecer na obrigação natural o efeito deautorizar a retenção do pagamento, não se lhe pode negar o de permitir ou causar anovação, que seria o meio de inseminar-lhe ação e sub-rogá-la em uma obrigação civil.Abolida, como foi, no nosso Anteprojeto, a figura da obrigação natural, acrescentamos,contudo, ser lícito novar obrigação judicialmente inexigível, dotando o sujeito ativo daação respectiva.

Mas não comporta discussão o requisito da eficácia: se é possível que uma obrigaçãoanulável se confirme por novação (Código Civil de 2002, art. 367 8), o que nada tem deestranho, por ser da própria natureza da anulabilidade a sua confirmação ou ratificação,é contudo impossível que uma obrigação nula ou perempta se nove.9

A obrigação anulável pode ser confirmada pelo devedor, como ocorre com qualquer atonegocial portado de defeito sanável. Celebrada novação de obrigação anulável, induz-sea presunção confirmatória, e tem validade, sujeitando-se o devedor ao novo vínculocriado. Não é necessário que as partes declarem o propósito confirmatório. Este decorreda própria novatio.

É que a novatio não tem cabida senão quando se extingue uma obrigação e se cria outraao mesmo tempo, fundada na primeira ou causada por ela, e isto não poderá acontecer

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se a primitiva era nula ou estava perempta, pois que não haveria o que extinguir, e nemtem fundamento ou não tem causa se criada em substituição à que estava eivada deineficácia plena. Não se pode novar o vácuo. Não há novação, por conseguinte, quandoa primitiva é nula ou perempta, nem tem o menor préstimo para o efeito de validá-la; seera nula, não se concretizou no mundo jurídico, e se estava extinta, a novação não temrazão nenhuma.10

Celebrado negócio jurídico, com o objetivo de novar dívida nula ou prescrita, não temefeito, e não obriga o devedor. Sendo, todavia, lícito ao devedor renunciar à prescriçãojá consumada, prevalecerá a novação de dívida prescrita, se dela resultar inequívoca opropósito de renunciar a prescrição.

Subsistente a obrigação antiga, não importa que seja pura e simples, ou sujeita aqualquer modalidade, significa que uma obrigação condicional ou a termo pode sernovada por uma pura e simples, e vice-versa, uma obrigação pura e simples pode novar-se por uma condicional ou a termo.

c) No mesmo momento em que se extingue a anterior, há de nascer a nova obrigação. Etem de ser válida. Se se não chega a constituir, ou se é nula, nem produz o efeito deestabelecer o iuris vincullum essencial à sua própria existência, nem tem a força deoperar a extinção da precedente. E pela mesma razão que não pode ser perseguido o seuobjeto, a obrigação primitiva não se pode considerar extinta. Se for meramente anulávela nova obrigação e vier a ser anulada, o efeito do seu desfazimento será orestabelecimento da primitiva, porque a extinção se funda na criação da nova, e,desfeita, por defeito de formação, a anterior não desaparece, pois que a anulação fazcessar os efeitos do ato e devolve ao credor o vínculo preexistente, restaurado. Quando aobrigação nova é sujeita a condição, somente com o implemento desta é que o vínculo éperfeito, e, portanto, somente então se dá a extinção da antiga. Realizada a conditio, aobrigação nova opera plenamente; mas, se não chega a realizar-se, a obrigação velhasobrevive, porque novação não há. Seja, pois, na hipótese de ser nula pleno iure a novaobrigação, ou de ser anulada, ou de se não dar o implemento da condição, o credor temo direito de exigir o cumprimento da antiga, que perdura.11 Se não fosse assim, odevedor enriquecer-se-ia indevidamente, em detrimento do credor.

A nova pode ser, a sua vez, uma obrigação natural, pois que, se se tolera que esta sejasua causa, nenhuma razão jurídica existe proibindo que seja seu efeito.12 Não é normalque o credor admita novar uma obrigação civil, substituindo-lhe outra despida deexigibilidade in iudicio. Mas não é injurídico. E não lhe afeta a validade. O que não éaceito é que a nova obrigação seja inoperante. Mas isto é outra coisa, e a distinçãofizemo-la linhas acima.

d) O animus novandi completa-a. Regra é (Código Civil de 2002, art. 361 13) que, emnão havendo a intenção de novar, não chega a operar-se a extinção da obrigação, e, emtal caso, a nova obrigação que se constitua tem o mero efeito de confirmar a primeira.Pode vir o animus novandi expressamente deduzido no instrumento, e então tolliturquaestio. Na ausência, porém, de menção específica, deve ser apurado se o conjunto decircunstâncias autoriza afirmar se se configura implicitamente, porém de maneirainequívoca. Quer isto dizer que nunca se presume a novação, pois o contrário dissonariada sua natureza extintiva do vínculo, devendo resultar sempre da vontade das partes. Oque se faculta é, tão-somente, na apuração desta vontade, aceitar-se, a par da declaração

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explícita, a claramente dedutível dos termos da nova. Na prática há dificuldade, àsvezes, no verificar se ocorre efetivamente novação, ou se se verifica a criação de outraobrigação, sem o propósito de novar. Reconhecendo-o, os doutores apontam um critérioaltamente prestimoso, no esclarecimento das dúvidas. E o da incompatibilidade. Hánovação, quando a segunda obrigação é incompatível com a primeira, isto é, quando avontade das partes milita no sentido de que a criação da segunda resultou na extinção daprimeira. Ao contrário, não há se elas podem coexistir, como, igualmente, não nova oterceiro que intervém e assume o débito, reforça o vínculo ou pactua uma garantia real,sem liberação do antigo devedor.14

Em toda novação há um elemento de ordem técnica, que se baliza de algo novo - aliquidnovi -, o qual vai enraizar-se na definição do Digesto, aqui repetida: "Novatio enim anovo nomen accepit." Se faltar este quid novi, ocorre mera confirmação ou reforço daobrigação anterior.15 Pode o elemento novo revestir dois aspectos, ou atingir qualquerdos dois lados da obrigação - o objetivo e o subjetivo.

Diz-se, então, que a novação pode ser objetiva ou subjetiva e a isto se reduzem os trêscasos mencionados na lei (Código Civil de 2002, art. 360 16). É objetiva quando entreas mesmas partes a obligatio sofre uma alteração quantitativa, qualitativa ou causal,modificando-se a prestação, sem substituição dos sujeitos (Código Civil de 2002, art.360, inciso I); é subjetiva quando, sendo o mesmo o objeto, há substituição de um dossujeitos da relação obrigacional (Código Civil de 2002, art. 360, inciso II). Eacrescentamos que, se se conjugam a alteração subjetiva e a objetiva, teremos umafigura de novação subjetivo-objetiva, inteiramente aceitável.17

A novação objetiva, também chamada real, dá-se quando o devedor contrai com ocredor nova dívida, para extinguir e substituir a primeira. Pouco importa que se trate deobrigação de natureza diferente, como no caso de novar o devedor uma obligatiofaciendi com uma de dar; ou se o dever de reparar o dano ex delicto é novado pelaemissão de um título cambial. Sempre que ocorrer a extinção de uma obrigação emvirtude de contrair o devedor outra obrigação para com o mesmo credor, cum animonovandi, há uma novação objetiva, que abrange tanto os casos de substituição de objeto,propriamente, como os de mudança de título ou de causa jurídica, tomando o vocábulocausa, no sentido de fonte, sem as intrincações da fenomenologia causal.18

Alguns autores indagam se lançamento em conta corrente é uma novação objetiva,pressuposto que a inscrição faz desaparecer o antigo débito, e aparecer o novo, fundadona partida da conta. A análise permite concluir que não se opera novação, mas umatransformação dos créditos em meras partidas de conta, que se mantêm em caráterindivisível até o reconhecimento final.19 Não faltam, porém, conspícuos pareceres emcontrário, defendendo o efeito novativo como a conseqüência mais importante (v. nº275, infra, vol. III).

Caso apontado como de novação objetiva, por Regelberger e von Tuhr, deriva oreconhecimento do saldo de conta corrente, ato que importa em afastar a natureza darelação obrigatória e transformá-la em um débito de quantia certa.20 No nosso Direito,o reconhecimento opera a liquidação convencional da obrigação, autorizando o credor ademandar o pagamento por via de procedimento executório, que o Código de 1973 nãoespecificou. Quando o devedor correntista aceita as contas, e reconhece o saldo, emrealidade nova, porque então ocorre a extinção da obrigação que decorre da conta

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corrente, e sua substituição; as mesmas garantias acompanham-na, sejam reais, sejamfidejussórias.21 O credor tem direito de exigir o saldo da conta corrente, e não umasoma em dinheiro como prestação de uma obrigação abstrata. O reconhecimento valecomo operação de acertamento e dispensa que se faça este in iudicio. Em nossoAnteprojeto do Código de Obrigações (art. 251) deixamos consignado em preceito queo simples lançamento em conta corrente, embora contratual, não constitui novação, quesó se verifica com o reconhecimento do saldo.

A novação subjetiva pode ocorrer em duas hipóteses:

a) Quando novo devedor sucede ao antigo, ficando este quite com o credor. Para istonão é necessário o consentimento do devedor anterior (Código Civil de 2002, art. 36222), nos mesmos termos em que seria lícito ao credor receber a prestação de umterceiro. É, porém, evidente que o consentimento do credor é essencial à sua validade, eque se constitua o vínculo obrigacional novatório, sem o que haveria mera indicação depessoa encarregada do pagamento, ou simples preposição. O tipo mais debatido, nogênero, é a chamada delegação, consistente no fato de encarregar o devedor a umterceiro e exonerá-lo junto ao credor, ou a transmissão da dívida antiga ao novodevedor: "Delegare est vice sua aliam rem dare creditori, vel cui iusserif."23 Não basta,contudo, a participação do devedor e do terceiro. É necessário o assentimento do credor,ainda que não seja simultâneo com a declaração de vontade do devedor, mas lhesuceda.24 Se o novo devedor for insolvente, o credor que o aceitou não tem ação contrao primeiro, nem com o fito de restaurar o antigo vínculo nem para indenizar-se doprejuízo, salvo se a substituição tiver provindo de má-fé do sujeito passivo (CódigoCivil de 2002, art. 363 25). Não é requisito de validade da novação a solvência do novodevedor. Cabe ao credor, antes de aceitá-lo, apurar as suas condições de liquidez. Se onão fez, ou se não logrou comprovar, e mesmo assim anuir na novação, procede a seupróprio risco. Novada a dívida, exonera-se o antigo devedor. Vindo a positivar-se oestado de insolvência do novo, a novação subsiste, e com ela a quitação do antigo. Nãotem, pois, o credor ação para chamá-lo a responder pela obrigação que para ele seextinguiu. Procedendo, entretanto, o devedor maliciosamente, de molde a impor umnovo devedor insolvente ao credor, tem este ação de in rem verso contra o antigo, paradele obter o ressarcimento do dano a que o levou.

b) Quando, em virtude de obrigação nova, outro credor é substituído ao antigo, ficandoo devedor quite com este. Não há, nessa hipótese, uma cessão de crédito, embora assituações sejam vizinhas. A relação obrigacional vigente extingue-se com a novação,enquanto que a cessão de crédito implica a transferência dos direitos creditórios, semextinção do vínculo. Nesta modalidade de novação que no Direito romano podiachamar-se também expromissio (expromissão), embora a expressão fosse maisusualmente empregada quando havia substituição do devedor,26 é indispensável adeclaração de vontade do credor, porque há uma obrigação que se extingue, e isto nãopode ocorrer sem a participação do sujeito ativo; e é necessária a manifestação volitivado devedor, para que se constitua a nova obrigação, uma vez que morre a anterior, e anova não pode ter existência legal sem que o sujeito passivo se comprometa.

Os efeitos da novação aparecem como um consectário lógico de sua própria estrutura.Sua função precípua é extinguir automaticamente a obrigação antiga, libertando odevedor daquele vínculo. Daí constituir um acordo liberatório, muito embora não

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chegue a ser um contrato, em sentido técnico.27 Matando a obrigação pelo surgimentode nova, logo de plano outras conseqüências advêm.

Em primeiro lugar, extingue os acessórios e as garantias da dívida (Código Civil de2002, art. 364 28). O fiador, por exemplo, fica exonerado, a não ser que dê o seuconsenso (Código Civil de 2002, art. 366 29). Nem seria, na verdade, de boa deduçãojurídica que prevalecessem os acessórios como tais, depois de perempta a obrigaçãoprincipal. Admite-se, contudo, a derrogação convencional desses efeitos da novação,por não condizerem com a ordem pública, mas serem de interesse privado. Aestipulação terá de receber a placitação de todos aqueles a quem possa opor-se, sob penade não prevalecer30 e, uma vez realizada, aderirão à nova obrigação e passarão agarantias e acessórios dela. Vale, contudo, frisar que ao credor não aproveitará ressalvara hipoteca, anticrese ou penhor que acompanhavam a obrigação novada, se os bensdados em garantia forem pertencentes a terceiro, a não ser que participe este daoperação novatória ou expressamente outorgue a mesma garantia à obrigação nova. Empreceito resumido pode-se assentar que os privilégios e as garantias da obrigaçãoprimitiva podem subsistir na nova, mediante ajuste expresso; mas os que provenham deterceiros dependem da sua participação no ato novatório. A delegação pode ter efeitonovatório quando se cumpre com a extinção da antiga obligatio (delegação perfeita).Caso contrário (delegação imperfeita) a obrigação subsiste, e não há novação.

Em síntese, o que ocorre aqui é uma aplicação da regra acessorium sequitur principale.Extinta a obrigação pela novatio, com ela extinguem-se os seus acessórios e garantias.Não tem o credor direito aos juros pretéritos, nem ação contra os fiadores e garantes.Com a dívida novada, cessam as garantias reais. Poderá, entretanto, o instrumentonovatório ressalvar que prevalecem os acessórios e as garantias. As que consistem empenhor, hipoteca ou anticrese oferecidas pelo devedor, com bens seus, sobrevivem àsimples ressalva do credor. Os privilégios e garantias prestados por terceiros dependemde anuência deste, sem que sejam incluídas na mesma exigência as garantiasfidejussórias, que não prevalecem no silêncio dos que as hajam prestado.

Se a obrigação é solidária, a novação concluída entre o credor e um dos devedoresexonera os demais, subsistindo as preferências e garantias do crédito novado, somentesobre os bens do devedor que contrai a nova (Código Civil de 2002, art. 365 31). Se éela indivisível, o princípio não é o mesmo. Mas, pela impossibilidade da prestaçãoparcial, a novação beneficia os demais devedores de uma solução que os exonera.32

O artigo 365 do Código Civil de 2002 consagra um dos efeitos da solidariedade. E vem,tal como no Código velho, redigido em termos desnecessariamente prolixos ecomplexos. O princípio pode simplificar-se como estava no Projeto de Código deObrigações de 1965: a novação entre o credor e um dos devedores solidários exonera osdemais. Sendo extintiva da obrigação, a novatio põe termo, por inteiro, à relaçãoobrigacional. Não importa a causa da novação, ou o processo de que resulta. Desde queopere a extinção do vínculo, os co-devedores solidários estão liberados.

No caso de novação objetiva, o perecimento do objeto não dá ao credor o direito deperseguir o da antiga. No caso da subjetiva, a insolvência do novo devedor não outorgaao credor a faculdade de regressar contra o antigo, salvo expressa ressalva neste sentido;tudo isto porque a novação opera a extinção da relação anterior, perime o vínculo, e não

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tolera que uma obrigação morta se restaure, para onerar o devedor, se o credor já haviaaceito a sua substituição pela nova.33

As exceções e os vícios da antiga não ressuscitam na nova. Assim, se a dívida anteriorabranger principal e juros, a nova compreende uma soma de dinheiro global, sem aqueladiscriminação. Se a obrigação primitiva se originava de um contrato bilateral, a novaçãolibera o credor da exceptio inadimpleti contractus.34 Perde o credor as ações ligadas àvelha, para ficar somente com as da nova. A anulabilidade oponível à antiga não cabeapós a novação.

O disposto no art. 453, nº I, do Código Comercial suscitava uma dúvida no tocante àprescrição, ao insinuar que a novação é um meio interruptivo da prescrição. Não foifeliz o legislador de 1850, ao expressá-lo. Extinta que fica a antiga obrigação econstituída a nova, a esta se aplicam as regras gerais relativas à prescrição, sem maiscogitar da primitiva, que desaparece. Não há falar em prescrição quanto a ela. Nãoobstante a exatidão do raciocínio, que conduz a que se fale em prazo inicial daprescrição, e não em interrupção desta, autores há, como von Tuhr, que lhe atribuemefeito interruptivo.35

163. Compensação

O Direito romano conheceu o instituto da compensação, fundado no princípio daeqüidade, que se não compadecia com o fato de terem ação, uma contra outra, duaspessoas que fossem ao mesmo tempo credor e devedor reciprocamente. E Modestino adefiniu: "Compensatio est debiti et crediti inter se contributio."36 Mas não vigianaquele direito pacificidade na maneira de sua atuação. No período clássico,especialmente, houve uma certa timidez no estabelecimento de sua extensão, operandoela como o resultado de uma convenção entre as partes, e não como forma de extinçãolegal. Parece que se realizava a extinção da obrigação por via de uma renúncia àsrespectivas ações.37 Foi só na época justinianéia (Girard) que se chegou a encarar acompensatio como um meio extintivo da obrigação, independente das vontades dossujeitos, e prevaleceu em toda extensão a regra que Pompônio formulara: "Ideocompensatio necessaria est quia interest nostra potius non sovere quam solutumrepetere."38 Foi, porém, o próprio Justiniano quem lhe impôs o mecanismo de operarde pleno direito, completando destarte a evolução romana do instituto: "Compensationesex omnibus ipso iure fieri sansimus, nulla differentia in rem, vel personalibusactionibus inter se observanda."39

Desta diversidade de entendimentos resulta que a palavra dos romanistas é poucoesclarecedora, e quem a ela recorre, particularmente aos glosadores e pós-glosadores,em vez de encontrar soluções, esbarra com enigmas, cada vez mais intrincados. Tantoencontra a conceito de uma extinção automática das obrigações como o de umanecessária convenção entre as partes. E, se da origem a compensatio herda tais dúvidas,o Direito moderno não consegue delas desvencilhar-se, antes as agrava por vezes,mencionando autores de larga experiência que existem três espécies de compensação: alegal, a convencional e a judicial. Reflexo de todas as tergiversações é a insegurançadogmática sobre as legislações, tumultuando a estrutura do instituto.

O Código Civil brasileiro teve a facilidade de fixar uma construção singela, apartandoas sombras em torno do assunto. Na sua sistemática filiou-se à escola que se poderia

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dizer francesa, da compensação legal e ipso iure, à qual o nosso Projeto de Código deObrigações guardou fidelidade.

Pode-se, então, definir, com base no texto legal, compensação como a extinção dasobrigações quando duas pessoas forem, reciprocamente, credora e devedora. E, combase na mesma doutrina legal, compor os seus requisitos, que os autores alinham assim:1º) cada um há de ser devedor e credor por obrigação principal; 2º) as obrigações devemter por objeto coisas fungíveis, da mesma espécie e qualidade; 3º) as dívidas devem servencidas, exigíveis e líquidas; 4º) não pode haver direitos de terceiros sobre asprestações.40

O primeiro requisito pressupõe, evidentemente, duas obrigações entre as mesmas partes,ou dois vínculos, independentemente da apuração de suas origens, sejam estas aconvenção (obrigações de natureza contratual) ou a lei (obrigações de fonteextracontratual), porque a compensação atua sobre débitos existentes, isto é, atuais.41Mas é claro que este pressuposto requer a personalidade dos sujeitos: se uma pessoaage como representante (legal ou convencional) de alguém, não pode opor o crédito dorepresentado para compensar débito seu próprio (Código Civil de 2002, art. 376 42).

O novo Código deveria ter corrigido o texto do seu modelo de 1916. O projeto primitivoaludia a quem se obrigava em favor de terceiro, e ensina que é neste sentido que opreceito deve ser entendido. O Projeto de Código de Obrigações de 1965 restaurava aredação correta. Mas o novo Código, que tantas vezes o segue, mantém o teor doCódigo revogado não obstante gerador de incerteza. Quem celebra obrigaçãobeneficiando um terceiro não tem direito a compensar a dívida com o seu crédito com odevedor. Para dizer que não há compensação de débito próprio com crédito de seurepresentado, não havia necessidade de disposição diversa da do art. 368 do novoCódigo.

Não afronta, contudo, o princípio da personalidade a cessão de crédito, razão por que odevedor cedido pode opor ao cessionário o crédito que tem contra o cedente, desde queseja anterior à transferência, e que, antes da cessão, já tenha as qualidades necessárias àcompensação.43 Se, porém, tiver sido notificado e nada opuser, não pode opor aocessionário a compensação que antes teria contra o cedente (Código Civil de 2002, art.377 44).

O disposto no artigo 377, no novo Código, complementa a norma contida no artigo 294do mesmo diploma. O momento oportuno para que oponha a compensação aocessionário é o da notificação da cessão. Não o fazendo, perde direito à compensação.

Existe uma exceção ao princípio da personalidade, no caso do fiador que pode opor seucrédito contra o credor, da mesma forma que pleiteia a compensação do crédito doafiançado. A recíproca não é, todavia, verdadeira: o devedor não pode opor ao seucredor o crédito do fiador.45

O segundo requisito é o da fungibilidade das prestações. Não são apenas as dívidas dedinheiro que se compensam, porém as de coisas fungíveis em geral. Mas não basta quesejam do mesmo gênero, é necessária ainda a identidade de espécie e qualidade, quandoespecificada no contrato (Código Civil de 2002, art. 370 46), de tal forma que possamumas prestações substituir-se às outras, reciprocamente. Numa fórmula sucinta,

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costuma-se ensinar que não é suficiente sejam as prestações fungíveis em si mesmas,porém devem sê-lo também entre si.47 É a isto que se designa como homogeneidade.48Excluem-se, portanto, as obrigações que tenham por prestação coisa certadeterminada.49 Mas se as prestações forem originariamente infungíveis e por alteraçãoposterior sobrevier a fungibilidade, como no caso da obrigação de dar coisa certaconverter-se em prestação pecuniária, caberá compensação.50

Há interminável controvérsia se as obrigações de fazer comportam compensação,quando têm por objeto prestações fungíveis, pois que, se são infungíveis, todos estão deacordo na negativa. Não obstante a sustentação oposta, a melhor doutrina está com osque negam a compensabilidade, fundados não só em que não basta a fungibilidade dasprestações, em si mesmas, porém, é mister que sejam entre si fungíveis, como aindapela razão de se referir o Código Civil à compensação de coisas, o que exclui outrosgêneros de prestações.51

Se o contrato especificar qualidades diferentes de cada uma, compensação não se dará,porque, sem perderem a fungibilidade em si mesmos, os objetos deixarão de serhomogêneos, isto é, não terão fungibilidade recíproca.

É claro que não se impõe a equiparação quantitativa. Se os débitos forem de igual valordesaparecem ambos, e nenhum dos credores tem mais ação, nem é mais obrigado aqualquer prestação. É o que se chama compensação total. Se forem, contudo, de valoresdiferentes, haverá compensação parcial, que extingue a de menor valor, sobrevivendoapenas o saldo na de maior quantidade (Código Civil de 2002, art. 368 52).

No terceiro requisito entra a exigibilidade, o vencimento e a liquidez (Código Civil de2002, art. 369 53). Para que haja compensação, os débitos hão de estar vencidos, poucoimportando que o sejam pelo escoamento do prazo, ou em razão de uma antecipaçãoprevista na lei ou no título. As obrigações a termo, como as subordinadas à condiçãosuspensiva, não sendo exigíveis, são incompensáveis, salvo (Código Civil de 2002, art.372 54) se penderem apenas prazos de favor ou tolerância, consagradas pelo usogeral.55

Para que ocorra compensação, é mister estejam vencidas ambas as dívidas. Se, porém,um dos devedores beneficiar-se com um prazo moratório, concedido graciosamente, nãose pode opor a compensação. O benefício que obteve do credor não impede que estecompense o crédito com o que lhe deve, porque o prazo de favor, ainda quandoconsagrado pelo uso geral, não altera o vencimento da obrigação.

Devendo ser ambas exigíveis, não comporta compensação a obrigação natural (DePage, M. I. Carvalho de Mendonça, Planiol, Ripert e Boulanger, Ruggiero e Maroi),seja em confronto com outra idêntica, seja como uma civil, porque a obligatio naturalisnão dispondo de ação não é exigível.

Controvertem os autores se a obrigação prescrita comporta compensação. Dentro davariedade de opiniões, o que deve prevalecer é a conjugação do requisito daexigibilidade com o efeito automático da compensação. Assim, se a prescrição secompletou antes da coexistência das dívidas, aquele a quem ela beneficia pode opor-se àcompensação, sob o fundamento de que a prescrição extingue a pretensão (Anspruch), e,portanto, falta o requisito da exigibilidade para que aquela se efetue. Mas se os dois

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créditos coexistiram, antes de escoar-se o prazo prescricional, operou a compensaçãoipso iure, e perimiu as obrigações; a prescrição que venha a completar-se ulteriormentenão mais atua sobre os débitos desaparecidos. Uma tal prescrição não tem objeto.56 Onosso Anteprojeto enuncia regra simples (art. 260), dizendo que a prescrição dequalquer das dívidas não impede a compensação, se chegarem a coexistir antes deconsumada.

A liquidez das obrigações não significa a menção de soma precisa nos respectivostítulos, mas que sejam uma e outra certas, isto é, tenham a sua existência positivadaindependentemente de qualquer processo de apuração, e determinado o respectivoquantum. Não importa que, pela alteração de situação econômica de uma das partes, sereduzam as suas condições de solvência. O que é indispensável é a liquidez da dívida.Assim, se sobrevier a abertura da falência de um dos devedores, sujeitando os credores areceber na moeda falimentar, mesmo assim se dá a compensação, até onde chegarem osvalores das prestações. Não colhe indagar se na liquidação dos débitos do falido aprestação sofrerá amesquinhamento, reduzindo-se a um dividendo ínfimo.

Não afeta a liquidez do débito o fato de opor-lhe contestação o devedor, fazendo-olitigioso. A certeza é comprometida se o crédito estiver sujeito a alguma eventualidade,como, por exemplo, um acerto de contas, um levantamento pericial, uma verificação oumedição etc. Uma indenização por perdas e danos, ainda que indubitável o direito járeconhecido do credor, é obrigação ilíquida, enquanto não apurado o respectivoquantum.57 Mas uma dívida sujeita ao cômputo de juros é líquida e certa, porque oresultado é atingido por via de operação aritmética elementar.

Quando as obrigações tiverem por objeto prestação de coisas incertas, somente serãocompensáveis se a escolha competir aos dois devedores. Se, ao revés, couber aos doiscredores, ou a um só deles na qualidade de devedor de uma e credor de outra, não podehaver compensação, por falta de certeza das obrigações, pois se a um só dosinteressados pertence o direito de escolha (como devedor de uma e como credor deoutra), a dívida do outro interessado não apresenta o requisito da certeza decorrente deato seu. No caso de a opção ser atribuída aos credores, a determinação do objeto ficariana dependência de manifestação de vontade da outra parte, e, portanto, os devedores nãotêm meios de apontar a certeza e a liquidez da prestação, o que impede se compensem.

A regra geral da compensação é aplicável quando ambos são credores e devedoresprincipais, porque o devedor só pode compensar com o credor o que este lhe dever(Código Civil de 2002, art. 371 58). É uma conseqüência o atributo das personalidadesdas obrigações, acima apontado como dedução do primeiro requisito da compensação.Aplicação dele é não poder o afiançado compensar com o seu credor o que este deva aofiador. Como exceção, tem este o direito de compensar o seu débito com aquilo que ocredor deva ao afiançado.

O artigo 371 do Código Civil de 2002 refere-se à personalidade das dívidas, e requerque se trate de pessoas que sejam credor e devedor, recíprocos e diretos. Descabecompensação se um deles figurar como sujeito em uma obrigação e representante emoutra. O artigo abre uma exceção, para o fiador, tendo em vista que ele é chamado asolver débito de seu afiançado. Além de lhe ser lícito compensar dívida sua com o quelhe deve o credor, pode também invocar a compensação do débito de seu afiançado aocredor. Não é crédito seu, mas operou a extinção da dívida pela qual é chamado a

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responder. Outra exceção pode ser lembrada: o marido, no regime de comunhão debens, pode compensar a dívida sua com crédito de sua mulher, porque o matrimônio,neste caso, tem o efeito de confundir, num só acervo, os patrimônios dos cônjuges. Aexceção não se estende à faculdade de compensar o devedor seu débito, com o que seucredor deve ao fiador. Falta, neste caso, a personalidade das dívidas: o fiador é sujeitopassivo de uma relação acessória. Não pode seu afiançado beneficiar-se em prejuízo dofiador.

Nas obrigações solidárias, o devedor pode compensar com o credor o que este lhe dever,mas somente pode invocar esta extinção com o que o credor deve ao seu coobrigado, atéo equivalente da parte deste na dívida comum.59

O local de vencimento da obrigação não influi sobre a compensação, que tanto alcançaas vencidas no mesmo lugar quanto em lugares diferentes, mas, neste último caso,devem-se deduzir as despesas necessárias à operação (Código Civil de 2002, art. 37860). A redação do Projeto de Código de Obrigações de 1965 enunciava melhor: se asdívidas não são pagáveis no mesmo lugar, podem compensar-se com abatimento dasdespesas necessárias ao recebimento.

Sem que a diferença de causa ou de origem das obrigações impeça a compensação,conforme visto acima, a lei exclui alguns casos em que esta deixa de caber.

Em primeiro lugar, não sendo, como não é, de ordem pública,61 afasta-se acompensação pela renúncia prévia de um dos devedores ou após a coincidência dasdívidas (Código Civil de 2002, art. 375 62), entendendo-se que a compensação é umbenefício, e de regra invito non datur beneficium. A renúncia pode ser expressa, quandoa compensação é abolida pela declaração do devedor neste sentido. E é tácita quando odevedor, não obstante ser credor de seu credor, efetua espontaneamente o pagamento.63

O devedor tinha o favor da compensação, cujo efeito era a extinção da sua dívida.Preferiu, no entanto, pagar a usá-lo. E, como ele é o senhor de julgar de seus interesses ede suas conveniências, não se lhe pode recusar a faculdade de renunciar à extinção dodébito por encontro de contas, já que lhe pareceu convinhável o pagamento. A hipótesenão se confunde com a do que, podendo compensar, paga por erro, caso em que adoutrina (De Page, M. I. Carvalho de Mendonça, Lafaille) sustenta que o pagamentoacaso feito não se interpreta como renúncia à compensação. Não é a mesma, também, asolução na hipótese de haver, em vez de renúncia prévia, uma renúncia ulterior. Nestecaso, se a compensação operou ipso iure a extinção da obrigação, e o devedor pagou,não obstante isto o seu crédito sobrevive, porém, despido de todas as garantias,privilégios e hipotecas. É o que se dispõe no Código Federal Suíço das Obrigações, art.1.299, onde a doutrina explica que, tendo o crédito ficado, por um instante, perempto,suas garantias não poderiam reviver sem ferir os direitos dos terceiros.64

Em simetria com a derrogação convencional da compensação, é lícito aos interessadospromoverem-na fora dos casos legalmente previstos, como, por exemplo, ajustarem aextinção recíproca de obrigações ilíquidas ou de prestações reciprocamente nãofungíveis etc. É a isto que se pode denominar compensação convencional,historicamente precedente à legal, como vimos, e mais tarde substituída por esta nocomércio jurídico. É lícita, repitamos, porém os seus extremos são outros. Exige acapacidade das partes e o direito de livre disposição da coisa. A operação aproxima-se

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da transação, pela concessão que os sujeitos reciprocamente se fazem; da dação empagamento, em razão da anuência em receber coisa diversa da devida; e da remissão dedívida, recíproca e bilateral, em conseqüência da libertação facultativa. Os seus efeitosnão retroagem à data da coexistência dos débitos, porém se contam de quando foiavençada, dizendo-se ex nunc.65

Não constitui requisito da compensação a identidade de origem ou de causa das dívidas.Seus requisitos são os que decorrem da lei (Código Civil de 2002, art. 362). Contudo,abrem-se algumas exceções (Código Civil de 2002, art. 373 66), considerando-seincompensáveis as dívidas:

A) Se uma delas provier de esbulho, furto ou roubo, porque ninguém pode invocar aprópria conduta antijurídica para dela beneficiar-se, contra o tradicional princípio nemoauditur propriam turpitudinem allegans. A dívida proveniente do ilícito não seconfunde todavia com a obrigação de restituir, nascida de nulidade desta. E, se a que sefunda na conduta antijurídica é insuscetível de compensação, a outra pode ser oposta aocredor.67

B) Se uma delas originar-se de comodato, depósito ou alimentos, a não ser que a outratenha a mesma causa. Aqui ocorre uma extensão da fungibilidade recíproca, além dogênero, e da qualidade, para abraçar também a origem. Na referência ao depósito,contudo, exclui-se o chamado depósito irregular, como, exempli gratia , de dinheiro emestabelecimentos bancários, que do mesmo dispõem, obrigando-se a pagar aodepositante certa soma.68 Um dos requisitos da compensação é a homogeneidade dasdívidas. Se uma dela provier de comodato, depósito ou alimentos, faltará a fungibilidadecom a outra dívida. No tocante aos alimentos, é de acrescer que se destina à subsistênciado alimentando, que não pode estar sujeito aos azares de uma compensação com dívidadiversa.

C) Se uma delas for de coisa não suscetível de penhora, segundo o disposto na leiprocessual.69 Sendo os salários impenhoráveis, e conseguintemente incompensáveis, omesmo não se dirá da indenização pela rescisão do contrato de trabalho, que pode sofrercompensação com débitos que o empregado tenha para com a empresa.

D) Se se tratar de dívida de natureza fiscal, exceto nos casos em que a legislaçãoespecial da Fazenda permita o encontro de contas de devedor para com o Fisco federal,estadual ou municipal (Código Civil de 2002, art. 374,70 e Código Tributário Nacional,art. 156, inciso II).71

E) Se a compensação se fizer em prejuízo de direito de terceiros, não podendo odevedor que se torne credor de seu credor, depois de penhorado o crédito deste, opor aoexeqüente a compensação, de que contra o próprio credor disporia (Código Civil de2002, art. 380 72), porque a incidência da penhora sobre o crédito o tornaincompensável.73 Assim, no propósito de resguardar direito de terceiro, o Códigoconsidera não compensável o crédito posterior à penhora contra o crédito do exeqüente.Ao crédito anterior não se aplica a mesma regra, porque a compensação já o teráextinto, e o procedimento executório do terceiro não o alcança como bem livre dodevedor. Somente a penhora anterior à compensação é que torna o créditoincompensável.

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Em princípio, o nosso direito anterior já consignava esses casos de créditosincompensáveis, como se vê da Ordenação do Livro IV, tít. 78, e seus parágrafos.

Se entre duas pessoas houver pluralidade de débitos compensáveis (Código Civil de2002, art. 379 74), atender-se-á à convenção que sobre o assunto fizerem, ou aosinteresses de ambas. Na falta, a um critério fundado na prioridade dos vencimentos,aplicando-se as regras relativas à imputação de pagamento.75

A compensação no Direito brasileiro opera por força de lei. Na sua sistemática, acompensação é legal. Poderá, isto sim, ser afastada por convenção ou ser estendida acasos que não se compreendem na compensação propriamente dita, o que maiscorrobora ser ela legal, visto como não há mister da declaração de vontade para operar acompensação típica. Quando as partes disputam em torno desta modalidade de extinçãode obrigação, o juiz decide. O pronunciamento positivo não significa compensaçãojudicial (de que falaremos em seguida), porém legal continua sendo, já que a palavrajurisdicional tem por finalidade afirmar na espécie que houve extinção por esta causa e,conseguintemente, a sentença não gera a compensação, mas limita-se a declará-la naconformidade do que determina a lei.76 A função judicial adstringe-se à verificação deum fato. E, por ser legal a compensação, não há cogitar da capacidade das partes. Elanão decorre da declaração de vontade, mas do imperativo da lei. Nada impede, pois, quese dê entre incapazes.77

Apesar de efetuar-se automaticamente - ipso iure - não cabe ao juiz, de ofício, declará-lo, ao contrário do que admite Soriano Neto, mesmo porque é lícito ao devedorrenunciar, até tacitamente, ao benefício. Haverá mister da sua invocação, mediante oque seria uma exceptio compensationis.78

Desnecessário será encarecer a utilidade da compensação. Foi em razão disto que ela secriou, e por motivo dela tem vivido. Sem embargo, podem resumir-se a duas as suasprincipais vantagens: constitui técnica de simplificação de pagamento, evitando osdeslocamentos de fundos, despesas e riscos e, ao mesmo tempo, cria uma garantia derecebimento para o credor.79 A título de ilustração, duas instituições empresariaispodem ser lembradas, ambas da mais alta relevância e do mais lídimo interesse prático,fundadas no princípio da compensação:

a) a conta corrente, mediante a qual são inscritas as partidas de débito e de crédito, afavor e contra cada uma das partes, gerando a contínua e constante extinção recíproca,para, a qualquer tempo, prevalecer o saldo como expressão da posição de débito de umou de outro; se os créditos perdem a sua individualidade, em função do respectivolançamento, o que traduz maior extensão do contrato de conta corrente, e se esta é deconseqüências mais profundas, a compensação está no seu mecanismo e é o seu pontode partida (v. nº 275, infra, vol. III);

b) as câmaras de compensação (clearing houses), também exercendo uma funçãoimportante de controle das disponibilidades bancárias, e de encaixe técnico, têm nacompensação a sua mola essencial; por seu intermédio, evitam os estabelecimentosbancários o pagamento por caixa dos cheques girados na mesma praça, operando-se aliquidação por contabilidade, mediante encontro de contas que facilita os negócios epoupa tempo. No plano internacional, efetua-se a compensação de país a país, paracontrole das operações de câmbio.80

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Além da utilidade prática, a compensação ainda realiza a satisfação da eqüidade, e foiesta, aliás, uma das razões de sua criação. Com efeito, se o devedor pagasse a seucredor, que é também seu devedor, poderia ver comprometida a satisfação de seucrédito, se o outro caísse em estado de insolvência. A compensação previne este risco,extinguindo as dívidas até a concorrente quantia. E, nesta ordem de conseqüências,chega mesmo a constituir um privilégio sem texto, no sentido de que autoriza ao credor-devedor, mediante a sua atuação ipso iure, escapar do concurso, no caso de o devedorfalir ou sobre seus bens instaurar-se um concurso de preferências.81

Ainda na dedução de suas vantagens, é lembrada a economia processual que realiza,evitando o desdobramento das ações de cobrança. Neste terreno, o Direito canônico foio seu grande propulsor, uma vez que defendeu a Igreja sua aplicação como técnica deevadir-se à jurisdição da Coroa.82

Efeitos. A compensação, embora se alinhe entre as modalidades de extinção sempagamento, gera contudo os efeitos deste. A liberação produz-se sem cumprimento daprestação devida, porém mediante o sacrifício dos créditos; cancelam-se as obrigações,e os credores ficam, reciprocamente, satisfeitos.83 Não se pode, está visto, falar queopera sem satisfação do credor, porque, bem analisado no seu mecanismo, ambos ossujeitos, não obstante a ausência de uma tradição da res debita, encontram-se emsituação de não a perseguirem, já que obtêm a equivalência de uma solutio recíproca,que apenas não se efetua materialmente. Se um deve 100 e tem a receber 100, acompensação extingue as obrigações, como se o primeiro os pagasse para depoisreceber. Resulta que, sem pagamento no sentido material, há todavia satisfação docredor, ou de ambos os credores, ao mesmo passo que se obedece ao princípio de justiçae à própria eqüidade, obstando a que maliciosamente proceda um dos sujeitos, a pedir oque tem de restituir, e que já recebia condenação no fragmento de Paulo: "Dolo facit,qui petit quod redditurus est."84

Os autores costumam frisar o imediatismo de seus efeitos, explicando que acompensação se dá de pleno direito no momento mesmo em que ocorre a coexistênciadas dívidas, com os requisitos apontados; e, se os interessados espontaneamente se nãoentendem, forçando por isto um pronunciamento judicial, a sentença produz efeito extunc, operando retroativamente sua declaração de que se extinguiram os débitos.85

Perimindo as obrigações, extinguem-se ipso facto os respectivos acessórios.

Agora, uma última palavra, antes do encerramento deste tema. Já vimos que, por direitonosso, toda compensação é legal. Pode haver, repetimos, a convenção criadora de umaextinção de obrigações por certa espécie de compensação, que não reúne, entretanto, osextremos desta.

Alguns autores (Lacerda de Almeida, Teixeira de Freitas) faziam referência a uma outraespécie de compensação, denominada judicial ou reconvencional, que consiste nacontrademanda do réu, em oposição ao pedido do autor. Quando, no mesmo juízo, nomesmo processo, e dentro do mesmo prazo de defesa, o réu articula a sua postulação,assume a posição do autor - reus reconveniens fit actor - e pede como se o fizesse emdemanda apartada. Se é procedente o pedido reconvencional, a sentença concluirá pelacondenação do autor ou pela redução da pretensão deste.86 Como instituto de Direito

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Processual, existe a reconvenção;87 mas não comportam os seus extremos oenquadramento na dogmática da compensação, bastando lembrar que o só fato depressupor um direito em discussão lhe retira o requisito de liquidez e certeza.88 Demaisdisso, a procedência da reconvenção pode importar em elisão do pedido do autor, oupode envolver encontro de contas, ou podem ainda subsistir as duas pretensões, quedevem ser satisfeitas.

164. Transação

No Código Civil de 1916, a transação era tratada no Título II do Livro III, como Efeitodas Obrigações. No Código Civil de 2002, a mesma vem disciplinada como contratotípico, no Capítulo XIX do Título VI do Livro I, que cuida do Direito das Obrigações.Sendo assim, remetemos o leitor aos comentários do atualizador, contidos no volume IIIdesta obra.

165. Confusão

Pode acontecer que, por força de um fato jurídico estranho à relação obrigacional, asfiguras do devedor e do credor se reúnam na mesma pessoa. O mais freqüente é asucessão causa mortis, em que o herdeiro recebe do seu antecessor o título de créditocontra si mesmo, ou vice-versa. A sucessão a título singular, seja inter vivos (exempligratia, cessão de crédito), seja mortis causa (instituição de legatário), igual situaçãopode gerar. Também com o casamento, quando marido e mulher antes dele eram credore devedor, dá-se a comunicação dos patrimônios, criando situação análoga. Em taiscircunstâncias, surge uma idéia que é a própria negação da relação obrigacional, umavez que esta pressupõe dois sujeitos diferentes, um dos quais adstrito a uma prestaçãopositiva ou negativa em favor do outro. Este conceito de sujeição não poderá subsistirquando os dois patrimônios se confundam inteiramente, ou, por força dascircunstâncias, desaparecem o poder do sujeito ativo e o dever do sujeito passivo, emrazão de estarem reunidos na mesma entidade jurídica.89 O romano o enxergou eproclamou: "Cum in eamdem personam ius stipulantis promittentisque devenit."90 Osautores salientam que a figura da confusão não é apenas do direito obrigacional, e não épeculiar ao Direito Civil. No campo dos direitos reais ocorre, com o nome de confusãoou de consolidação, quando se reúnem em um mesmo titular a propriedade e um ius inre aliena: por exemplo, se o dono do prédio dominante adquire o prédio serviente, casoem que a servidão se extingue, já que nemine res sua servit; no Direito comercial,aparece na figura da cambial de retorno.91

Presos à noção romana,92 que não admitia neste caso a extinção da obrigação, massimplesmente aceitava a liberação do devedor como conseqüência da paralisação daação, alguns escritores93 ainda relutam em inscrever este fenômeno entre as causasextintivas, sustentando a sobrevivência da obrigação, que contudo não pode ser exigida.A idéia é inexata, contra a qual onda não menos prestigiosa e ponderável se levanta.94Certa é, então, a posição do Direito brasileiro, onde dúvida não vinga, porque é expressoo efeito liberatório: quando na mesma pessoa se confundem as qualidades de credor edevedor, extingue-se a obrigação (Código Civil de 2002, art. 381 95), total ouparcialmente, conforme a confusão se verifique a respeito de toda a dívida ou somentede uma parte dela, como no caso de não ser o devedor herdeiro único do credor e vice-versa (Código Civil de 2002, art. 382 96).

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Embora se trate de modalidade peculiar de extinção, não há falar em pagamento,mesmo no sentido genérico, uma vez que o vínculo tipicamente desaparece sem aocorrência de uma prestação.

São requisitos essenciais para que se dê a confusão: a) a unidade da relaçãoobrigacional, que pressupõe a existência do mesmo crédito, da mesma obrigação; b) areunião, na mesma pessoa, das qualidades de credor e devedor, que gera a extinção dovínculo independentemente da vontade, e bem assim da natureza ou da origem daobrigação, pois que real ou pessoal o direito, ou gerada a obligatio pela lei ou pelavontade desaparece ope legis pelo só fato de se anularem os seus dois termos, ativo epassivo, ao se integrarem em uma só pessoa; c) é hoje comum acrescentar-se umterceiro requisito, a ausência de separação dos patrimônios. Embora seus efeitos sejampessoais, no sentido particular de somente atingirem o credor-devedor, a causaetiológica da confusão é objetiva, na acepção de pressupor a reunião daquelasqualidades em uma pessoa só. Somente quando a pretensão e a obrigação concorrem nomesmo titular é que perime o obrigado.97 Enquanto isto não ocorrer subsistem asobrigações. Assim, aberta a sucessão, não se verifica a confusão enquantopermanecerem distintos os patrimônios do de cujus e do herdeiro e não incorporar este ocrédito ao seu patrimônio próprio, em definitivo.98 Por outro lado, sendo pressupostoseu o concurso da qualidade creditória e debitória na mesma pessoa, não a comportamos títulos ao portador, mesmo quando sejam adquiridos pelo emitente, que assim ospode transferir a outrem, sem que a intensidade do vínculo seja atingida.99

A confusão dá-se na relação creditória principal. Por via de conseqüência, já queaccessorium sequitur principale, o fiador fica liberado. Ao revés, se a confusão se derentre o credor e o fiador, extingue-se a fiança, mas subsiste a obrigação principal, porausência daquele primeiro requisito (unidade da relação): a obrigação principal é umaunidade íntegra, e a obrigação acessória (fiança) é outra relação obrigacional cujodesaparecimento não atinge aquela a que acede.100

Se a confusão se passa entre devedor e fiador, nada resulta, porque a título principal ouacessório o obrigado continua a sê-lo, não sofrendo a relação obrigacional senão aredução de garantia.101

Se ocorrer a confusão na pessoa do devedor solidário, a obrigação extingue-se até aconcorrência de sua parte no débito, subsistindo a solidariedade quanto aos demaiscoobrigados, pelo remanescente. Ao revés, se ela ocorrer na pessoa do credor solidário,fica extinta a obrigação até a concorrência de sua parte no crédito, e subsiste asolidariedade quanto aos demais co-credores, pelo saldo (Código Civil de 2002, art. 383102), solução esta que encontra guarida nos Códigos francês (art. 1.301) e argentino(art. 866).

Pode acontecer que o fato gerador se invalide ou não seja de caráter definitivo, vindoentão a cessar a confusão. A conseqüência no nosso Direito, ao contrário de outrossistemas que oferecem solução mais restritiva,103 é o restabelecimento da obrigação(Código Civil de 2002, art. 384 104), tal qual expresso está no Código Federal suíço dasObrigações (art. 139) e no argentino (art. 867). O exemplo clássico da doutrina105 éeste: o devedor é instituído, em testamento, herdeiro de seu credor; confundem-se porforça da sucessão, na sua pessoa, as qualidades de credor e devedor, e, ipso facto,extingue-se a obrigação; mas, ulteriormente, vem o testamento a ser anulado, e logo

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cessa a confusão. A obrigação restaura-se retroativamente, com toda as suasconseqüências, inclusive as garantias, como se nunca tivesse havido confusão.106 Asgarantias, reais ou pessoais, somente haviam deixado de vigorar como acessórios daobrigação que se extinguiu. E revivem com ela, desde o momento em que se invalidou acausa extintiva. É por isso que alguns escritores, embora aceitem o caráter extintivo daobrigação pela confusão, acrescentam que este efeito não é absoluto.107 O Projeto deCódigo de Obrigações de 1965, em seu artigo 259, preferiu consignar a liberação dasgarantias, como efeito automático.

É preciso, contudo, ressalvar que, mesmo no regime do nosso Código Civil de 2002,cujo art. 384 tem a amplitude acima acusada, as garantias reais e os direitos de terceirostêm de ser respeitados, quando constituídas aquelas ou adquiridos estes na pendência doefeito extintivo da confusão. Se, por exemplo, a restauração da garantia hipotecáriadefronta uma nova inscrição, realizada após aquela extinção, não terá sobre elaprioridade, pois que perde o grau de que anteriormente gozava.108

166. Compromisso

Os artigos 1.037 a 1.048 do Código Civil de 1916, que tratavam do Compromisso,foram revogados pela Lei nº 9.307/96. O Código Civil de 2002 cuida do Compromisso,como tipo contratual, nos artigos 851 a 853, a cujos comentários remetemos o leitor(Instituições de Direito Civil, vol. 3).

167. Remissão

Sob a epígrafe da remissão das dívidas, disciplina o Código Civil de 2002 (arts. 385 a388) a liberação graciosa do devedor, emanada do credor. Liberação direta, como opagamento, e não por via de conseqüência, como a novação ou a compensação.109 Éuma particular espécie de renúncia.110 Não é, entretanto, pacífica a caracterização daremissão como ato de renúncia, havendo toda uma corrente de escritores que a definemcom sentido convencional.111

Não há forma especial para a remissão da dívida.112 Depende da natureza da obrigaçãoe das providências que se devam seguir para operar a liberação plena do devedor. Mas,se se contiver em outro negócio jurídico, deve acompanhar os requisitos formais deste.Assim, se se tratar de garantia hipotecária, deve constar de instrumento hábil para ocancelamento da inscrição. Se for feita por testamento, há de obedecer à forma deste,que é nulo sem a sua observância.113

Para sua validade é mister que o remitente seja dotado de aptidão para dispor do direito,e o devedor tenha capacidade para manifestar validamente sua vontade, embora não sedespreze o favorecimento da ordem legal, no sentido de liberar o devedor: favorliberationis.

Pode ser expressa ou tácita. Expressa, quando efetuada por escrito, público ouparticular, pelo qual o credor perdoa a dívida ou renuncia aos seus direitos. Tácita ouimplícita, quando decorre de uma atitude do credor, incompatível com a conservação desua qualidade creditória. Não se presume fora dos casos admitidos ou mencionados emlei. Nem a tolerância ou inatividade do credor permite induzi-la.

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Do perdão expresso há pouco que dizer, pois que é uma declaração de vontade aestender-se estritamente, como todas as de caráter benéfico.

A remissão tácita tem merecido particular atenção da doutrina, porque terá de serinduzida de uma conduta do credor, traduzindo a intenção liberatória.

I. O Código Civil de 2002 (art. 386 114) menciona, como atitude desta espécie, aentrega voluntária do título da obrigação quando por escrito particular. De Pageinsurge-se contra esta técnica, que é a mesma do Código francês, dizendo deverem-sedistinguir a remissão da dívida e a entrega do título, pois enquanto a primeira é ummodo de extinção da obrigação, a segunda é o sinal ou a presunção de um negócio;enquanto aquela libera o devedor, esta faz a prova da precedente liberação.115

Analisado o fenômeno, a observação procede. Mas, se, nos seus efeitos, os doismomentos coincidem, torna-se especiosa a crítica. Dentro da fórmula usada pelolegislador, é evidente que não basta o ato material da detenção do título pelo devedor,para que se tenha por extinta a obrigação. É mister concorram outros fatores e, assim,estejam presentes certos requisitos:116 a) O primeiro é a efetiva traditio doinstrumento. Se a lei declara que a entrega faz prova do perdão, é preciso que ela serealize de fato. Não pode induzi-lo a simples posse do título pelo devedor, senão aresultante de sua entrega, que significa a tomada de posição do credor. Se o títuloestiver com o devedor por outra causa, falta base à remissão, e a obrigação subsiste. b)O segundo é que a entrega seja feita pelo credor em pessoa, ou seu representante. Se éo credor mesmo que passa o título às mãos do devedor, a tradição se realiza pelo donoou titular do direito, mas a legitimidade da remissão exige que o tradens tenha o poderde disposição sobre o crédito. O incapaz de alienar, pelo fato de o ser, não pode remitir,e, portanto, a entrega que faça do título não tem efeito liberatório. O tutor, que podeentregar o título contra pagamento, não o pode em remissão, porque tem aadministração dos bens do pupilo, mas não tem o direito de alienar gratuitamente. Aentrega por um terceiro não faz presumir a liberação.117 Ao procurador somente é lícitoentregar em remissão se for investido de poderes para isto. Se os tem para receber e darquitação, não pode fazer remissão, porque esta é alienação gratuita.118 c) Finalmente, aentrega há de ser voluntária, tanto no sentido da sua espontaneidade quanto no deabrigar a intenção de abdicar da qualidade creditória. Se não reunir esses extremos, aposse do devedor sobre o título não traduz quitação, conforme visto no nº 153, supra.Ocorrendo a entrega do título com tais requisitos, a obrigação extingue-se. E, para aprova deles, todos os meios são hábeis, pois se assim não fosse anular-se-ia o favorliberationis, e de nada adiantaria o legislador criar esta modalidade de perdão tácito. Aorevés, cabe ao credor, a seu turno, demonstrar, por qualquer meio probatório admissível,que a detenção do título pelo devedor não reúne os requisitos extintivos da obrigação, e,portanto, que esta permanece de pé.

Tendo em vista as considerações acima expendidas, vê-se bem que a entrega do título,com a apuração de todos esses requisitos, importa perdão, ainda na ausência de textoexpresso. Por isto mesmo o nosso Anteprojeto dispensou-se de consignar regrasemelhante.

II. A remissão poderá limitar-se à garantia real adjeta à obrigação, deixando que estasobreviva. E, neste caso, aceita a lei que tacitamente se verificará, quando o credor fizerao devedor a entrega do objeto empenhado (Código Civil de 2002, art. 387 119). Aqui

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não há perdão da dívida. Não há extinção da obrigação. Tão-somente ocorre cessação dagarantia, que desaparece, restando a dívida simplesmente quirografária. Embora aremissão seja uma modalidade de renúncia, pode-se perceber a sua distinção aqui, ondea entrega do objeto envolve a renúncia da garantia, sem remissão da obrigação. É, aliás,conceito que se vê em toda nitidez no novo Código Civil italiano, cujo art. 1.236menciona a remissão, enquanto que o 1.238, ao cogitar exatamente da hipótese darestituição do objeto dado em garantia, fala em renúncia e não em remissão. Para quevalha a devolução como abdicação da garantia, hão de rodeá-la os mesmos requisitosque fazem da entrega do título induzir a remissão da dívida.

Pode, ainda, ser total, quando tem por objeto a completa extinção da obrigação, eparcial, quando por via dela concede o credor a redução na dívida, que subsiste emparte e é em parte remetida.120

Em qualquer caso, deve emanar de agente capaz. Não apenas portador de capacidadegenericamente considerada, porém de especial para alienar, porque, envolvendo umarenúncia de direito, é ineficaz se falta ao agente a livre disponibilidade de seus bens.Mais que isto. Sendo a remissão uma quitação graciosa, necessita de capacidade paradispor gratuitamente ao que Giorgi alude ao falar em "capacidade para doação".121

O Direito germânico conhece, ao lado da remissão, e com o mesmo efeito extintivo, ocontrato de reconhecimento de inexistência de obrigação. Este negócio jurídico, se visaao reconhecimento negativo de obrigação preexistente e conhecida, faz as vezes deremissão, e segue as linhas dogmáticas desta. Fora daí, e na sua essência, tem o efeitoespecífico de esclarecer e assegurar a situação jurídica que se presumia existente. Se,porém, foi avençado o contrato, na pressuposição falsa e enganosa de que o débitoinexistia, o credor poderá reconstituí-lo, provando que a dívida existia na realidade eque o reconhecimento se faz na crença errônea do contrário.122

A doutrina debate a natureza do ato remissivo, a saber se é unilateral ou bilateral,indagando e respondendo se se perfaz com a manifestação de vontade do credor ou se émister o acordo do devedor. Dentro desta controvérsia, inclinamo-nos pelaunilateralidade. O credor não precisa da vontade do devedor para abdicar da suaqualidade. Basta que inequivocamente a ela renuncie. É neste sentido, de ato abdicativounilateral, que o novo Código Civil italiano se pronuncia.123 A essência do perdão está,pois, na vontade do credor, a qual, como declaração receptícia,124 deve ser dirigida aodevedor. Nem por isso, entretanto, a validade da renúncia depende de aceitação deste.Basta a não-oposição, que se não confunde com aceitação, para que ela se perfaça. Se,contudo, o devedor tiver razões jurídicas oponíveis à vontade do credor, pode recusar obenefício. Nesta hipótese, a obrigação subsiste, não porque o perdão seja ato bilateral,mas porque tem o devedor legítimo interesse em que a remissão não opere.125 Este é,sem dúvida, o punctum pruriens da remissão. Porque, em verdade, os escritorescontrovertem tanto a sua noção jurídica, que tornam esta matéria intrincada e de difícilexposição (Giorgi, Carvalho de Mendonça). A nosso ver, não prevalece a concepçãoconvencional da remissão, que se realiza e pode perfazer-se sem o concurso dadeclaração de vontade do devedor. É uma renúncia abdicativa, e não translativa. Ocredor, que tem o poder de exigir a prestação, anula esta faculdade por uma emissãovolitiva, expressa ou tácita.126 Toda a alma da controvérsia está na reminiscênciaromana. Porque naquele Direito a remissão se fazia sob forma convencional(acceptitatio et pactum de non petendo), os escritores modernos persistem na

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conservação desta natureza. Mas, se se encara a realidade e se analisa a atitude docredor, por título à ordem, que remite a obrigação inutilizando o instrumento; ou se sepondera na remissão por testamento, somente conhecida após a morte do credor, vê-sebem que não há necessidade de uma convenção para que tenha lugar. É certo que odevedor pode recusar o perdão, como pode rejeitar o legado, sem que num como noutrocaso resulte o argumento da bilateralidade.

Outra corrente sustenta a sua natureza contratual. Foi a esta que aderiu o Anteprojeto deCódigo de Obrigações de 1941, art. 318, que condicionava a extinção da obrigação àaceitação do devedor, seguindo neste passo o Federal suíço das Obrigações, art. 115, e,para ela, o credor não pode liberar o devedor sem o consentimento deste, já que lícitolhe não é sobrepor-se à vontade do devedor de cumprir a obrigação.127 No Direitofrancês ainda vigora mesmo a sua identificação com a doação (muito embora esta nãoseja, ali, um contrato), não faltando escritores modernos que o defendam.128 Há, entreos dois institutos, um ponto comum, que é a gratuidade. Apesar de alguns Códigos,como o suíço, art. 141, assim a conceberem, não nos parece aceitável a identificação,pois que a doação pressupõe deslocamento patrimonial do objeto,129 e isto se não dá naremissão, que, aliás, nunca foi desta sorte considerada em nosso Direito,130 como poroutros sistemas.131

Como negócio jurídico unilateral, a remissão pode ser revogada unilateralmente, desdeque não tenha ainda gerado um direito contrário, que pode aparecer pela atuação dodevedor, pela disposição de garantias, e até pela simples aceitação.132

Outro ponto debatido na doutrina é a indagação se é ato gracioso ou se comportacorrespectivo ou contraprestação. Não obstante argumentos em contrário, entendemosque o perdão da dívida deve ser desacompanhado de prestação por parte do devedor,pois que se assim não for haverá transação ou outra figura jurídica, mas não um atoremissivo propriamente dito. A gratuidade não é só da normalidade da remissão, porémnecessária à sua conceituação jurídica.133

Somente as obrigações patrimoniais de caráter privado comportam perdão ou renúncia.As dívidas que envolvem um interesse de ordem pública são insuscetíveis de remissão.Não é possível, evidentemente, que o pai renuncie ao pátrio poder, ou o filho ao statusrespectivo, ou o credor de alimentos remita a obrigação do devedor.134 Mas é possívela remissão das conseqüências patrimoniais dos direitos irrenunciáveis. Assim, se o filhonão pode renunciar à sua qualidade de filho, pode abrir mão da herança aberta de seupai; ao credor de alimentos é facultado conceder perdão das prestações vencidas. Sendodívida patrimonial de caráter privado, pode ser remitida, independentemente de suaorigem, seja esta uma obrigação contratual, seja de outra espécie.135 A taisconseqüências atinge-se, assim, no caso de mencioná-lo, a lei (Código Civil de 2002,art. 387 136) como no de silenciar o princípio.

Nos seus efeitos, o perdão da dívida opera como se fosse pagamento. Eqüivale àquitação da dívida, porque importa em extinção da obrigação, liberando o devedor eseus co-responsáveis. Neste ponto, o Direito moderno reúne as duas espécies romanas -acceptitatio et pactum de non petendo -, pois que se extingue a dívida, como aacceptitatio, gera para o devedor uma exceção substancial, como o pactum de nonpetendo. Mas, no seu mecanismo, difere do pagamento, porque produz o seu resultadocom a manifestação de vontade contrária à subsistência do vínculo. O credor, que tinha

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a tríplice alternativa de perseguir o obrigado, dispor do crédito a favor do terceiro, ouremiti-lo, opta por esta última, que é uma disposição a benefício do próprio devedor, eque tanto se efetiva pela declaração remissiva, como pelo abandono da razãocreditória.137 Mas não se confunde com a cessão de crédito, porque esta pressupõe umatransferência, ao passo que o perdão extingue a obrigação.138

O perdão concedido ao devedor principal extingue a obrigação dos fiadores e liberta asgarantias reais. Mas a recíproca não é verdadeira: se o credor concede perdão ao fiador,extingue a fiança, mas deixa sobreviver a obrigação principal da mesma forma que aliberação do bem gravado ou a entrega do objeto apenhado prova a renúncia do credor àgarantia, sem afetar a dívida.139

Se vários forem os devedores, a remissão concedida a um deles extingue a obrigação naparte que lhe corresponde, de tal forma que ressalvando embora o credor a solidariedadeque prende os demais coobrigados, não poderá mais acioná-los pela dívida inteira, senãocom dedução da parte remitida (Código Civil de 2002, art. 388 140). E, se vários foremos credores e um deles fizer remissão, a obrigação não ficará extinta em relação aosdemais que entretanto somente poderão exigir o pagamento com desconto da cota docredor remitente.

Sendo indivisível o objeto e um dos credores remitir a dívida, não se extingue aobrigação em relação aos demais credores, que poderão exigir o pagamento, comdesconto da parte relativa ao remitente.141

A remissão pode sujeitar-se a condição ou termo, o que logo de plano se verificacompatível com a liberalidade. A remissão não se desfigura, nem por ser ato gracioso arepele.142

Capítulo XXXIII - Pagamento Indevido

Sumário: 168. Enriquecimento sem causa. 169. Repetição dopagamento. 170. Retenção do pagamento indevido.

Bibliografia: Clóvis Beviláqua, Obrigações, § 37; Vale Ferreira,Enriquecimento sem Causa, passim; Jorge Americano, Ensaio sobre oEnriquecimento sem Causa, passim; Ludovico Barassi, La TeoriaGenerale delle Obbligazioni, II, págs. 639 e segs.; De Page, Traité, III, 2ªparte, nºs 26 e segs.; Orosimbo Nonato, Curso de Obrigações, 2ª parte, II,págs. 83 e segs.; Jean Renard, "L’Action d’Enrichissement sans Causedans le Droit Français Moderne", in Revue Trimestrielle de Droit Civil,1920, pág. 243; Ruggiero e Maroi, Istituzioni di Diritto Privato, II, §§183 e 184; Saleilles, Obligations, págs. 449 e segs.; von Tuhr, Tratado delas Obligaciones, I, nº 51; Jean Dabin, La Teoría de la Causa; Ascoli,"Arrichimento", in Nuovo Digesto Italiano; Rouast, "L’Enrichissementsans Cause", in Revue Trimestrielle de Droit Civil, 1922, pág. 35;Enneccerus, Kipp e Wolff, Tratado, Obligaciones, II, §§ 217 e segs.;Gaudemet, Théorie Générale des Obligations, págs. 283 e segs.; KarlLarenz, Derecho de Obligaciones, II, § 62; Trabucchi, Instituzioni diDiritto Civile, nº 301.

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168. Enriquecimento sem causa

Os Códigos modernos, em face do problema do enriquecimento sem causa, adotamtécnicas diferentes. Vê-se, mesmo, que reina uma certa desorientação a respeito, seja noconceituar, seja no disciplinar, seja ainda no admitir o Direito positivo a teoria doenriquecimento indevido. A razão será, talvez, porque a matéria não tenha encontradono Direito romano o desenvolvimento que fora de desejar. Faltaram-lhe segurança eaquele rigor lógico que os jurisconsultos souberam imprimir aos institutos. Parece,mesmo, que se não chegou a construir um verdadeiro sistema de princípios, limitando-se as fontes a apontar soluções de inspiração na eqüidade, porém, dispersas. O meiotécnico eram as condictiones, por via das quais devia aquele que se locupletasse com acoisa alheia restituí-la a seu dono - "Iure naturae aequum est neminem cum alteriusdetrimento et injuria fieri locupletiorem."1 Todas as hipóteses conhecidas eramenvolvidas na epígrafe ampla das condictiones sine causa, denominação que permitiuaos juristas modernos generalizar, dizendo: quando alguém recebia indevidamentealguma coisa, ou quando cessava a razão justificativa de tê-la recebido ou quando aaquisição provinha de furto ou de um motivo imoral, não tinha o direito de retê-la, porlhe faltar uma causa. Esta, porém, não era elementar na obligatio, que se contraíaindependentemente de seu conceito, porém necessária a que o adquirente conservasse apropriedade ou a posse da coisa recebida.2

Faltando, então, a causa, o adquirente perdia o direito de reter a coisa, e devia restituí-la.A via ou o meio técnico eram as condictiones.

Sobre este alicerce, das condictiones,3 que não receberam na dogmática romana umasistematização perfeita, os modernos construíram a teoria do enriquecimento sem causa.Descabe, portanto, razão aos que sustentam tratar-se aqui de uma construção original denosso tempo. Aos juristas modernos coube o trabalho sem dúvida profícuo de formular-lhes a doutrinação geral. Mas não se pode recusar à ciência jurídica dos romanos a tervislumbrado e enunciado os conceitos fundamentais.4

A sua aplicação legislativa é, contudo, vária. De um lado podemos colocaroriginariamente o BGB (arts. 812 a 822) e o Código Suíço das Obrigações (arts. 62 a67), que generalizaram, numa teoria ampla sob inovação de enriquecimento indevido,todas as hipóteses a que falte ou venha a faltar a causa eficiente da aquisição, instituindocomo conseqüência o dever de restituir. A este grupo aderiu o Código italiano de 1942,com a criação de uma "ação geral de enriquecimento" (arts. 2.041 e 2.042),considerada5 como subsidiária, no sentido de que é cabível somente quando oprejudicado não tem outra, de ressarcimento direto e não exista norma excludenteexpressa.6 Ainda na corrente, da perfilhação legal desta teoria, podem-se apontar oCódigo Civil Português de 1966, arts. 473 a 482, o Direito soviético, o japonês, omexicano, como a ela aderiu, ainda, o famoso projeto do Código Único de Obrigações eContratos Franco-Italiano (art. 73), de onde foi para o projeto de Código Internacionalde Obrigações e Contratos, de Cosentini (art. 178).7

De outro lado, inscrevem-se o Código Civil francês, o italiano de 1865 (hoje revogado),o espanhol, e outros que partem da noção formulada por Justiniano,8 segundo o qual opagamento indevidamente recebido gera uma obrigação de restituir, correlata ousemelhante ao débito que se origina de um contrato - "cui quis per errorem non debitumsolvit, quasi ex contractu debere videtur". Havendo os autores do Código Napoleão

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tomado as palavras quasi ex contractu debere videtur como fundamentais, reduziram ateoria das condictiones sine causa ao recebimento indevido (Clóvis). Não há dúvida,entretanto, de que a idéia do enriquecimento sem causa domina numerosos artigos doCódigo Civil francês. Mas os seus redatores não o mencionam, e, ao revés, parecemesmo que deliberadamente a omitiram.9

Num terceiro grupo, ocupado pelo Código Civil da Áustria (arts. 1.431 e 1.437) e oCódigo português de 1867, não aparece a teoria do enriquecimento sem causadesenvolvida e compreendida como tal, mas assegura-se ao que pagou por erro afaculdade de repetir o pagamento.10

Onde, em qual dos grupos, colocar o Direito Civil brasileiro?

Esboço de Teixeira de Freitas (art. 1.029) enxerga na dívida a causa do pagamento,assentando que ele a pressupõe. E conclui que é repetível por erro essencial o que sepaga quando se não deve. Não disciplinou o mestre o enriquecimento sem causa, comoinstituto autônomo e envolvente dos vários aspectos sob que o considera a doutrinagermânica, nem sistematizou a teoria romana das condictiones. Encarou o problemaapenas por um ângulo, para fixar a dogmática da repetitio indebiti.

Passando pelos vários Projetos, veio, afinal, definir-se no Código Civil de 1916 (arts.964 e 971), sendo adotada também, no Código Civil de 2002 (arts. 876 a 883), a idéiado "pagamento indevido", que o codificador compreendeu em termos de maiorindependência na esteira do Código Civil austríaco e do português, sem contudo dar omerecido desenvolvimento à teoria do enriquecimento sem causa, que o eminenteClóvis Beviláqua entendia não comportar subordinação a um critério hábil a reduzirtodas as hipóteses a uma unidade.11

Daí não se conclua que o legislador brasileiro tenha admitido possa alguém enriquecer-se com a jactura de outrem. Apenas não procedeu, como na sistemática suíço-germânica, à unificação do enriquecimento sem causa, o que não impediu que adoutrina e a jurisprudência realizassem a soldadura das várias incidências, e acabassepor estruturar em termos de generalidades a teoria respectiva.12 Bom é assinalar que omesmo ocorreu no Direito francês, em que o papel unificador da jurisprudência operou-se, criando a dogmática deste instituto e sua elevação a uma regra de direito positivo,13em termos bem mais precisos e sólidos. Os civilistas franceses deduziram os seusrequisitos, os quais por terem sido isolados na seleção casuística apresentam-sedemasiadamente analíticos. Assim é que, segundo a jurisprudência francesa, exigem-secinco condições para que se considere o enriquecimento sem causa fonte de obrigações:1º) o empobrecimento de um e correlativo enriquecimento de outro; 2º) ausência deculpa do empobrecido; 3º) ausência do interesse pessoal do empobrecido; 4º) ausênciada causa; 5º) subsidiariedade da ação de locupletamento (de in rem verso), isto é,ausência de uma outra ação pela qual o empobrecido possa obter o resultadopretendido.14 Embora a doutrina haja acolhido a teoria com grande entusiasmo, outalvez por isto mesmo, alguns aconselham expurgá-lo do lirismo que não deixa deacompanhá-la, erigida em autêntica panacéia escolhida por espíritos menos avisados,como uma técnica de restabelecimento da justiça e da eqüidade. Convém colocar oinstituto, aconselham, nos seus devidos termos, sob pena de convertê-lo em teoriaperigosa.15

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O Código Civil de 1916 destaca o pagamento indevido, colocando-o no capítulo dasolutio entre os efeitos das obrigações. Além disso, também não descurou as outrashipóteses de enriquecimento, e impôs a conseqüente restitutio, como ligada a outrasinstituições. A doa ção porpter nuptias, por exemplo, quando se não seguia ocasamento, o que o Direito romano previa na condictio causa data non secuta, e que seintegra na teoria do enriquecimento sem causa, dispensava-se esta solução técnica noDireito brasileiro, porque, independentemente daquela sistematização, considera-seineficaz se o casamento não se realizar (si nuptiae non fuerint secutae), comoconseqüência natural de sua própria condição legal (casamento), e era resultante dedisposição expressa de lei.16 Da mesma sorte, e não obstante ter omitido asistematização do enriquecimento sem causa, sempre se fulmina o negócio jurídicoatentatório do princípio de moralidade (condictio ob turpem causam) porque a causailícita vai confundir-se com a própria iliceidade do ato, e tem como conseqüência o seudesfazimento. E assim outros exemplos podem ser lembrados.

Muito embora a literatura jurídica nacional reclamasse a sistematização do instituto doenriquecimento sem causa, que alguns confundem com a idéia de ilícito, mas sem razão,porque a dispensa, verdade é que todas as hipóteses previstas pelos construtores dateoria estavam disciplinadas no nosso Direito, em ligação com a instituição que mais selhe avizinhasse. O que nos faltava, conseguintemente, era a construção doenriquecimento sem causa como instituto dotado de autonomia e disciplina legalprópria. No seu desenvolvimento, necessário será exigi-lo sobre requisitos específicos,os quais, ad instar da doutrina alemã, deverão compreender: 1º) a diminuiçãopatrimonial do lesado, seja com o deslocamento, para o patrimônio alheio, de coisa jáincorporada ao seu, seja com a obstação a que nele tenha entrada o objeto cuja aquisiçãoera seguramente prevista; 2º) o enriquecimento do beneficiado sem a existência de umacausa jurídica para a aquisição ou a retenção; e 3º) a relação de imediatidade, isto é, oenriquecimento de um provir diretamente do empobrecimento do outro, de tal maneiraque aquele que cumpre a prestação de auto-empobrecimento possa dirigir-se contra oque se enriqueceu em virtude de uma causa jurídica suposta não existente oudesaparecida, ou, para dizê-lo mais sucintamente: o enriquecimento de um dos sujeitos eo empobrecimento do outro hão de decorrer de uma e mesma circunstância.17 Tambémno Direito italiano, onde o novo Código apadrinha a teoria do enriquecimento semcausa, a doutrina assinala a presença dos requisitos da respectiva ação: 1º) oenriquecimento de uma pessoa mediante um dano emergente ou um lucro cessante; 2º)o prejuízo de uma outra pessoa; 3º) um nexo de causalidade entre o enriquecimento deum e o prejuízo de outro; 4º) a ausência de íntima justificação para o fenômeno.18

O instituto do enriquecimento sem causa entrou em nosso Direito Positivo pela porta doProjeto de Código de Obrigações de 1965, que o disciplinou com caráter autônomo nosartigos 889 e 890. O novo Código, a exemplo dos que cuidaram do tema de maneiragenérica, estabeleceu a regra: quem se enriqueceu à custa alheia fica obrigado a restituiro que indevidamente houver recebido. Apurado o enriquecimento sine causa, obeneficiado tem o dever de restituir o que indevidamente recebeu, com a correçãomonetária dos valores, atualizados na data da restituição (Código Civil de 2002, art.884)19 Sendo objeto do enriquecimento coisa determinada, a restitutio far-se-á emespécie, mediante a devolução da própria coisa. Se, porém, na data em que se efetivar,ela não mais existir, converter-se-á no seu valor pecuniário, pela estimativa que entãofor feita. Em qualquer das hipóteses, e tendo em vista que o enriquecimento indevido

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atenta contra os princípios jurídicos, o lesado terá direito ao ressarcimento das perdas edanos.

Ainda que a redação do artigo 885 do Código Civil de 2002 20 peque pela falta declareza, o legislador pretende estabelecer que o enriquecimento se considera quandofalta a causa no momento em que o beneficiado aufere o proveito (recebimento sinecausa), e bem assim quando a causa para a retenção venha a faltar posteriormente(causa non secuta). O preceito, que acompanha o Projeto de Código de Obrigações de1965, enuncia que cabe a restituição do indébito, posto venha a causa a faltar depois deobtido o proveito. Está o princípio contido na conceituação do enriquecimento semcausa, que abrange a ausência desta quando o beneficiado recebe a coisa, do mesmomodo que existe quando ele deixa de restituir aquilo que já veio para o seu patrimônio,mas que não lhe cabe mais aí conservar, pelo feito de vir a faltar a causa retentionis.

Na sistemática do Código, não obstante haver institucionalizado o enriquecimento semcausa, é estabelecida a obrigação de restituir. Alinhou-se entre os que atribuem à açãode locupletamento um caráter de subsidiariedade. Somente tem cabida a ação direta deenriquecimento, se o lesado não dispuser de outro meio para se ressarcir (Código Civilde 2002, art. 886 21). Não foi a mais feliz esta orientação, pois que se presta, muitoamiúde, de prover o enriquecimento de uma exceção, permitindo-lhe, em julgamentoprejudicial, argüir a impropriedade da pretensão restitutória, sob alegação de existênciade outra via judicial.

169. Repetição do pagamento

O Código Civil brasileiro, a exemplo do austríaco e do português, cogitou em particulardo pagamento indevido, aliás considerado já no Direito Romano a mais típica hipóteseentre os diversos meios do prover a restituição fundada em justificação deficiente.22Muito embora o Código brasileiro de 1916 o haja tratado sem rigor técnico,23 comosolução, entre os efeitos das obrigações, o pagamento indevido é tido, na modernadogmática, como modalidade peculiar de enriquecimento sem causa, admitindo-setodavia que a ação de repetição seja específica, e só na sua falta caiba a de in rem versogenérica.24 A crítica que o nosso Código merece, por ter mal situado o instituto darepetitio indebiti, encontra eco nos nossos modernos obrigacionistas, dentre os quaisdestacamos Orosimbo Nonato.25

O Código Civil brasileiro dá, pois, corpo ao pagamento indevido, cuja repetição pelosolvens vai afinar com a regra da eqüidade,26 enquanto outros defendem esta inspiraçãocontra todo ataque.27 Mas nem por isto se negará tratar-se de modalidade específica deenriquecimento não causado, como se vê da opinião hoje corrente, mesmo entreescritores de sistemas que não disciplinaram com independência o instituto maisamplo.28

Para o Código brasileiro, a regra cardeal reza que todo aquele que tenha recebido o quenão lhe é devido fica obrigado a restituir (Código Civil de 2002, art. 876 29). Trata-se,portanto, de uma obrigação que ao accipiens é imposta por lei, mas nem por isto menosobrigação, a qual se origina do recebimento do indébito, e que somente se extingue coma restituição do indevido. Há, na sua etiologia, algo de peculiar, pois que a sua causageradora é um pagamento: a peculiaridade reside em originar-se o vínculo obrigacionaldaquilo que, na normalidade, é causa extintiva da obrigação; e extinguir-se com o

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retorno ao status quo ante, seja por via de devolução do objeto, seja pelo desfazimentodo ato prestado.30

Cabe a restituição em qualquer caso de pagamento indevido, seja o que se denominaindébito objetivo, isto é, quando inexiste vínculo obrigacional ou é este suscetível deparalisação por via de exceção, seja no chamado indébito subjetivo, quando há vínculo,mas em relação a sujeito diverso. Em qualquer deles, o solvens tem a ação para repetir oindevido, sob fundamento essencial da ausência de causa para o pagamento, que gerou oenriquecimento do accipiens em conseqüência do seu empobrecimento31 ou daanuência de obrigação que o justifique.32

O pagamento indevido, que cria para a accipiens um enriquecimento sem causa, e,portanto, gera para o solvens uma ação de repetição - de in rem verso -, resulta destesrequisitos, segundo o que Saleilles deduz, com base no BGB: 1º) que tenha havido umaprestação; 2º) que esta prestação tenha a caráter de um pagamento; 3º) que não exista adívida.33 Para Gaudemet, os mesmos requisitos ficam resumidos em dois itens: 1º) umaprestação feita a título de pagamento; e 2º) que a dívida não exista, pelo menos nasrelações entre o solvens e o accipiens.34

Enfeixando a sua extremação em linha de esquema, muitos outros escritores lhe fazemaderir o elemento anímico, e supõem então a sua etiologia: 1º) a realização de umpagamento; 2º) a caracterização de um indébito, ou seja, a verificação de que o solvensrealizou-o sem a obrigação preexistente de fazê-lo; e 3º) a ocorrência de erro de suaparte, ou desconhecimento da situação real.35 A esses extremos, os irmãos Mazeaudajuntam a circunstância de não ter o accipiens destruído seu título de crédito,36 o quenão nos parece orçar pelos requisitos conceituais da repetição do indébito, porém,inscreve-se como uma das razões da soluti retentio (v. nº 170, infra). Mais do querequisito, o primeiro pressuposto é um pagamento, tomada a palavra no sentido técnico,porém, amplo, de solução, assunto sobre o qual já nos detivemos no nº 152, supra.

O segundo requisito é a ausência de causa jurídica ou a falta de um vínculo preexistente.Ele será indevido desde que a solutio não seja justificada como tal, e falta então a razãode ter o solvens efetuado a prestação na qualidade de pagamento.

O terceiro é o erro. Este, à sua vez, pressupõe uma distorção: pode dar-se o pagamentovoluntariamente ou não; em ambos os casos há restitutio, pois a eqüidade não tolera queo accipiens retenha o recebido, indebitamente, tanto no caso de ter o solvens procedidosponte sua, quanto no de haver sido a isto compelido. Mas para exigir a restituição doindevido há que cogitar do elemento subjetivo - erro - em conjugação com avoluntariedade da prestação.

Se o pagamento for realizado voluntariamente, deverá o repetens provar que o efetuoupor erro. E, neste passo, o Direito moderno lastreia-se na idéia romana: "Si quisindebitum ignorans solvit, per hanc actionem condicere potest: sed si sciens se nondebere solvit, cessat repetitio." O erro pode referir-se, de primeiro, à existência daobrigação (indébito absoluto). Assim todo aquele que, por um erro de fato ou de direito,julgar-se em débito para com outrem, e em tal estado de espírito realizar a prestação, atítulo de solução, a fim de que possa repetir o que pagou, deverá demonstrar o erro emque incorreu. Nas mesmas condições (indébito objetivo, ainda) igual direito à repetiçãoassiste àquele que se engana quanto à individualização da res debita, e, existindo

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embora a obrigação, civil e exigível, solve-a, erroneamente, dando uma coisa por outra.Demonstrando seu erro, pode pedir a restituição, cujo efeito aqui difere da hipóteseanterior (inexistência do próprio vínculo), pois que, se no caso de erro quanto àexistência da dívida, a restituição opera-se pura e simplesmente, no de solutio, em que oengano incide no objeto - aliud pro alio -, a repetitio tem lugar, mas com restauração dovínculo. É óbvio que o credor não pode reter a coisa recebida, já que não era a devida;mas da repetitio há de renascer a obrigação primitiva, pois do contrário a restituiçãogeraria, à sua vez, uma hipótese reversa de enriquecimento indevido. A repetição deindébito comporta ainda o erro quantitativo quando o devedor paga mais do que deve;ou quando paga por inteiro a um dos co-credores, no caso de a obrigação não sersolidária e ser divisível,37 ou ainda quando, por erro sobre a situação real, paga a dívidajá extinta.38

Cogitando do erro tão-somente no pagamento voluntário, obviamente admite-se acontrario sensu que é dispensada a sua apuração na hipótese da solutio não voluntária:cabe a repetição independentemente do elemento subjetivo do erro. É, aliás, boa adoutrina legal, que consagra, tão amparada que está na communis opinio.39

Caso especial de indébito, e que encontra a mesma solução, é o do pagamento de dívidacondicional, antes do implemento da condição. É de princípio que, subordinando-se oato a condição suspensiva, enquanto esta não se realiza, não terá adquirido o direito aque ele visa (v. nº 145, supra). Ora, condicional a dívida, o credor não tem mais queuma expectativa - spes debitum iri - que se poderá ou não transformar em direito e odevedor não tem uma obrigação efetiva de solver. Se, portanto, este paga antes deverificada a conditio, está na mesma situação daquele que paga em erro, pois que,conforme ocorra ou não a condição, o débito poderá ou não ocorrer. Daí aconseqüência: o que recebe dívida condicional fica obrigado a restituir.

O mesmo não se dirá se a solutio tem por objeto uma obrigação a termo, antes que sejaeste atingido. É que a dívida já existe, e sua exigibilidade não depende de um eventoincerto, porém de um prazo, a que é lícito ao devedor renunciar sem que possa se alegarbeneficie o credor de um enriquecimento indevido.40

Outro caso peculiar, e de incidência freqüente, é o do pagamento do tributo indevido. Acontrovérsia está na indagação de se quem paga deve provar o erro, em que tenhaincidido, como no caso de ter sido voluntariamente realizado, ou se está dispensado,como na hipótese de haver-se efetuado coercitivamente. Embora não haja uniformidadede pareceres a respeito, é mais pura a doutrina que dispensa a prova do erro, porqueaquele que paga para evitar um procedimento judicial age em termos que autorizam arepetição.41 No Direito brasileiro como no alienígena a doutrina inclina-se nestesentido, e a jurisprudência, após vacilações, tem-no seguido. Entende-se que ofundamento do pedido de restituição do imposto indevidamente pago não é o erro dosolvens, mas a ilegalidade ou a inconstitucionalidade da cobrança42 ou em termosgenéricos da falta de causa.43

Todos os casos de indébito objetivo, acima ventilados, são tratados com certa segurançano Direito positivo. Mas é de atender também ao indébito subjetivo: quando o solvenspaga a dívida alheia, na suposição de que é própria, opera um enriquecimento doaccipiens, na medida de seu próprio empobrecimento, sem a existência de uma causa

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para a solutio, e cabe a ação de repetição, cujos extremos são: 1º) o pagamento de débitode outrem; 2º) o erro na sua realização; e 3º) a escusabilidade do erro.44

Os efeitos da repetição do pagamento variam na conformidade do animus do acipiente,bem como da natureza da prestação.

Aquele que, de boa-fé, recebe o indevido, tem de restituir o que recebeu e mais os frutosestantes, e, se não for possível a devolução em espécie, retornará ao solvens a suaestimação, porque a sua posição jurídica é a de um possuidor de boa-fé, que tem direitoaos frutos percebidos, não sujeito, entretanto, a devolver os consumidos. Pela mesmarazão, tem direito de se indenizar pelas benfeitorias necessárias ou úteis que tiverrealizado na coisa, com direito de retenção, e de levantar as voluptuárias, desde que nãoimporte em danificar a coisa (Código Civil de 2002, art. 878 45). Em caso dedeterioração ou perecimento do objeto, não responde se não houver concorrido comculpa sua. Ao revés, o accipiens de má-fé restituirá a coisa com seus frutos e acessões,pelos quais responde civilmente. Somente poderá ressarcir-se das benfeitoriasnecessárias, mas sem direito de retenção; as úteis não são indenizáveis; as voluptuáriasnão as pode levantar. Se a coisa perecer, responde pela sua estimação, ainda que a perdase dê por caso fortuito ou força maior, salvo se demonstrar que o evento ocorrerá,mesmo que não tivesse havido pagamento indébito.46

Quando a coisa indevidamente recebida for um imóvel, o acipiente deve assistir oproprietário na retificação do registro,47 porque a circunstância de ser indevido opagamento subtrai à inscrição do título a presunção instituída em favor daquele que alifigura como sujeito do direito real. Quando o accipiens do imóvel, objeto do pagamentoindevido, o aliena a título oneroso, responde somente pelo preço auferido, se estiver deboa-fé; mas, se de má-fé, é obrigado ainda a perdas e danos. Alienado, porém, a títulogratuito, pode o que pagou por erro reivindicá-lo do beneficiado. Igual solução(reivindicação contra o terceiro adquirente) é a que se impõe quando a alienação se tiverrealizado a título oneroso, mas o terceiro adquirente houver procedido de má-fé (CódigoCivil de 2002, art. 879 48).

170. Retenção do pagamento indevido

Nem sempre, porém, o pagamento indevido é repetível. A lei atende a que a razão deeqüidade é que inspira a restituição. Portanto, onde falta este fundamento descabe arepetitio. Às vezes a eqüidade mesma é que alicerça a obrigação do solvens; outrasvezes é a sua conduta que ressai incompatível, com qualquer proteção, e por isto arepele; outras ainda, é a situação jurídica do accipiens que a desaconselha.

Neste último caso, inscreve-se o recebimento que o credor faz por conta de dívidaverdadeira e, embora seja indevido, inutiliza o credor o título ou deixa prescrever aação, ou abre mão de garantias que asseguravam o seu direito.49 Em tal hipótese arestituição do indébito teria por efeito tirar de um para dar a outro: ao que paga, arepetição serviria como técnica de impedir o enriquecimento indevido, mas em sentidooposto a restitutio importa para o acipiente na perda de uma situação jurídica existente,já que, em conseqüência do recebimento, a inutilização do título ou a prescrição dodireito ou a renúncia às garantias criará um empobrecimento, de que o devedor lucrariaindevidamente, enriquecendo-se. Não há, na verdade, incompatibilidade entre averacidade do débito e o pagamento indevido, de vez que o erro do solvens pode levá-lo

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a efetuar prestação que lhe não caberia, porém, caberia à outra pessoa, e, então, ocorreque o credor, ao receber, quita obrigação existente, ao mesmo passo que o solvens, aopagar, presta o que lhe não teria cabido fazer. A restituição do pagamento seria emdetrimento do credor, que não pode sofrer as conseqüências do procedimentodescuidado daquele que lhe pagou. Inspirada na mesma razão da eqüidade, que afasta arestituição neste caso, a lei isenta o credor de restituir, mas ao que pagou concede açãoregressiva contra o verdadeiro devedor ou seu fiador (Código Civil de 2002, art. 88050). O nosso Anteprojeto declarava que, não logrando a restituição, o solvens ficavasub-rogado nos direitos do credor (art. 906). Destarte, o verdadeiro sujeito passivo daobrigação, que se enriquecerá indevidamente com o pagamento realizado por umterceiro, fica sujeito a ressarcir-lhe o dano, e o verdadeiro credor, que de boa-fé perdeuos meios de exigir o cumprimento da obrigação, como obrigação, como conseqüênciada inutilização do título, retém o objeto do pagamento, apesar de ter sido indevido este.Dentro da mesma linha de raciocínio, e pelos fundamentos, ocorre idêntica solução se,em vez de inutilizá-lo, o credor deixa prescrever o seu direito ou renuncia às garantiasacessórias de seu crédito (Projeto, art. 896).

É também insuscetível de repetição o pagamento quando realizado com finalidadeilícita, imoral ou ilegal (Código Civil de 2002, art. 883 51). As fontes romanasdistinguiam quando o procedimento torpe era apenas do accipiens, do caso em que deleparticipava o solvens. Se apenas o acipiente agia desonestamente, cabia a restitutio,amparada pela conditio ob turpem causam, pois a eqüidade não tolera que alguémretenha o que recebeu em tais condições: "Quod si turpis causa accipientis fuerit, etiamres secuta sit, repeti potest."52 Mas se o solvente também procedia torpemente, e davaalgo com finalidade ilícita ou imoral, não tinha ação de repetição: "Ubi autem et dantiset accipientis turpitudo versatur, non posse repeti diximus; veluti si pecunia detur utmale iudicetur."53 Esta, ainda, a solução do Direito moderno,54 e sob o mesmofundamento, de que a repetição deve ser recusada, por não encontrar o solvente amparona eqüidade, para a sua pretensão de reaver o indébito,55 o que já o nosso Freitasafirmava.56

Ao aditar ao preceito do artigo 882 o que consta do parágrafo único, o Código incidenuma falha injustificável. Movimentada a justiça, para a restituição que alguémentregou para obter fim ilícito, imoral ou proibido em lei, o certo é que o juiz encerre deplano a ação, recusando-se a discutir a pretensão ob turpem causam. E é jurídico que serecuse, como que dizendo: não entro no campo da iliceidade. Com o parágrafo, aindaque traga o propósito primitivo, vai a lei admitir a discussão, a todos os títulosimprópria no procedimento judicial.

Igualmente inspirado em razões de eqüidade, o preceito impõe o dever de indenizaràquele que recebe de outrem, indevidamente, prestação de fazer (Código Civil de 2002,art. 881 57). Não sendo possível a restitutio da coisa, uma vez que a prestação se esgotain faciendo, a situação equipara-se à de quem recebe indevidamente uma coisa, a qualperece em seu poder. Idêntica é a solução do que recebe para eximir-se de obligatio nonfaciendi.

Aquele que solve dívida prescrita não pode repetir o pagamento. O débito é verdadeiro,mas a inércia do credor deixou que ele se desguarnecesse do tegumento protetor, e, porisso, tornou-se inexigível. O devedor, ao solvê-lo, nem incide em erro quanto àexistência da obrigação nem se engana quanto ao seu objeto. A obrigação, juridicamente

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não reclamável, moralmente sobrevive, muito embora a paz social lhe permita recusarsolvê-la. A eqüidade, entretanto, não tolera que seu pagamento seja repetido, uma vezque estaria a própria eqüidade natural a aconselhar ao devedor que efetuasse opagamento. Vem então o direito, e dá corpo ao mandamento da eqüidade, negando aosolvens a repetição do que pagou em solução da dívida prescrita. E, independentemesmo da indagação do princípio de inspiração, falta em verdade a ocorrência de umrequisito da repetitio indeniti, que exige a verificação de obrigação preexistente. Se osolvens pagou, sem alegá-lo, dívida prescrita, jamais poderá sustentar que a solutiovisou à extinção de um indébito.58

O Código de 1916 aludia ao cumprimento de obrigação natural, o que tem levadoautores a trazer para esse terreno a teoria da obligatio naturalis, que tanto espaçoocupou no Direito Romano. Substituindo a expressão por esta outra - obrigaçãojudicialmente inexigível - foi seguido pelo novo Código (Código Civil de 2002, art. 88259). Nesta categoria de obrigações judicialmente inexigíveis compreende o Código asdívidas de jogo, e em especial as que se consistem no cumprimento de dever moral. Amesma razão de eqüidade fundamenta a soluti retentio. Não cabe chamar repetição doque foi pago na execução de deveres morais e sociais.60

Não cabe, também, ação de in rem verso, para haver o que, por obrigação ineficaz, foipago ao portador de uma incapacidade, a não se provar a versão útil, isto é, que emproveito dele reverteu o objeto do pagamento.

Capítulo XXXIV - Mora

Sumário: 171. Conceito de mora. Do devedor e do credor. 172. Purgaçãoe cessação da mora. 173. Constituição em mora.

Bibliografia: Clóvis Beviláqua, Obrigações, § 36; Ruggiero e Maroi,Istituzioni di Diritto Privato, II, § 131; Ludovico Barassi, Istituzioni diDiritto Civile, nº 282; Trabucchi, Istituzioni di Diritto Civile, nº 235;Serpa Lopes, Curso, II, nos 321 e segs.; Alfredo Colmo, Obligaciones, nos

90 e segs.; Lafaille, Obligaciones, I, nos 115 e segs.; Giorgio Giorgi,Obbligazioni, II, nos 42 e segs.; Orosimbo Nonato, Curso de Obrigações,2ª parte, I, pág. 281; Agostinho Alvim, Da Inexecução das Obrigações,págs. 16 e segs.; De Page, Traité Élémentaire de Droit Civil, III, 2ª parte,nos 72 e segs.; Demogue, Obligations, IV, nºs 103 e segs.; M. I. Carvalhode Mendonça, Doutrina e Prática das Obrigações, ed. atualizada porJosé de Aguiar Dias, I, nºs 255 e segs.; Planiol, Ripert e Boulanger, TraitéÉlémentaire de Droit Civil, II, nos 1.512 e segs.; Vittorio Polacco,Obbligazioni, nºs 120 e segs.; von Tuhr, Obligaciones, II, §§ 71 e segs.;Karl Larenz, Obligaciones, I, §§ 22 e 24; Saleilles, Obligations, nos 28 esegs.; Henri Bovay, Essence de la Demeure; Salvat, Obligaciones, nos 85e segs.

171. Conceito de mora. Do devedor e do credor

Uma das circunstâncias que acompanham o pagamento é o tempo. A obrigação deveexecutar-se oportunamente. Quando alguma das partes desatende a este fato, falta aoobrigado ainda quando tal inadimplemento não chegue às raias da inexecução cabal. Há

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um atraso na prestação. Esta não se impossibilitou, mas o destempo só por si traduz umafalha daquele que nisto incorreu. A mora é este retardamento injustificado da parte dealgum dos sujeitos da relação obrigacional no tocante à prestação.

Mas não é apenas de considerar-se o tempo, senão este e também as demaiscircunstâncias que envolvem a solutio. Quando o devedor não efetua o pagamento ou ocredor recusa recebê-lo no tempo, forma e lugar que a lei ou a convenção estabelecer,está em mora (Código Civil de 2002, art. 394 1). Não quisemos oferecer uma definiçãode mora, pois que todas as tradicionais, formuladas pelos nossos escritores como pelosestrangeiros (Clóvis Beviláqua, Giorgi, Salvat, Demogue etc.), pecam de imperfeição,como salienta Agostinho Alvim, e nas suas águas Serpa Lopes.2

Nela pode incorrer tanto o sujeito passivo quanto o sujeito ativo da obrigação. Mascomumente se cogita da mora do devedor (mora debendi ou solvendi), porque comfreqüência maior institui-se prazo relativamente ao devedor, que tem de cumprir emtempo certo. Nem por isto, entretanto, é despida de interesse e atenção a mora do credor(mora credendi ou accipiendi), configurada no obstáculo oposto à solutio do devedor.

Uma ou outra, da parte do devedor ou do credor, importa em inexecução da obrigação.Umas vezes traduz a impossibilidade ou inutilidade da prestação, quando esta somente éútil e proveitosa em dado momento. Nesse caso, os escritores, numa pacificidadeexemplar, argúem não se tratar mais de mora, senão de verdadeiro inadimplemento totalda obrigação, e como tal comportar idêntico tratamento.3 Outras vezes é o retardo puroe só. Não obstante atrasada, a prestação ainda seria possível e útil, e, então, a mora senão confunde, quer na sua antologia quer nos seus efeitos, como a falta absoluta deprestação. Às vezes há coincidência. Mas não deve ser tida como essencial.

Não é, também, toda retardação no solver ou no receber que induz mora. Algo mais éexigido na sua caracterização. Na mora solvendi, como na accipiendi, há de estarpresente um fato humano, intencional ou não intencional, gerador da demora naexecução. Isto exclui do conceito de mora o fato inimputável, o fato das coisas, oacontecimento atuante no sentido de obstar a prestação, o fortuito e a força maior,impedientes do cumprimento. Em princípio, o devedor há de solver no momento certo,e o credor receber oportunamente. A falta de execução na hora devida induz a mora deum ou de outro. Aquele que tem de suportar as suas conseqüências cumprirá provar,então, a existência do fato, acontecimento ou caso, hábil a criar a escusativa.

Atendendo a que nos requisitos como nos efeitos diversificam-se a mora do devedor e ado credor, cuidaremos em seguida de uma e de outra, destacadamente. Em qualquercaso, porém, mora não haverá se o devedor tempestivamente tiver oferecido a prestaçãoou se o credor não a tiver recusado.

A) Mora solvendi ou debendi. Ausência de pagamento oportuno da parte do devedor.Para sua caracterização, concorrem três fatores: exigibilidade imediata da obrigação,inexecução culposa e constituição em mora.4

A exigibilidade imediata pressupõe ainda a liquidez e a certeza. Para que se diga emmora, é necessário, pois, e antes de tudo, que exista uma dívida, e que esta seja certa, asaber, decorra de obrigação (convencional ou não) uma prestação determinada. Acerteza não acompanha apenas a obrigação pecuniária ou a de dar, mas está presente

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ainda na de fazer ou não fazer. Certa é a prestação caracterizada por seus elementosespecíficos. Líquida quando, além da certeza do débito, está apurado o seu montante ouindividuada a prestação. Já no Direito romano vigia princípio de que não se configuravaa mora nas obrigações ilíquidas - in illiquidis non fit mora. O Código Civil de 2002,entretanto, ameniza a rigidez da parêmia, admitindo hipótese em que, não obstante ailiquidez da obrigação, a mora ocorre. Assim é que, ao tratar da liquidação dasobrigações, estatuiu a fluência dos juros moratórios, nas obrigações ilíquidas, desde ainicial (Código Civil de 2002, art. 405 5). Também nas obrigações decorrentes de crimecorrem juros, e compostos, desde o tempo deste.6 Em ambas as hipóteses é manifesta ailiquidez, e, não obstante, são devidos os juros de mora, o que significa que, num enoutro, consagra o Direito positivo a incidência da mora, independentemente daliquidez da obrigação (v. nº 163, supra).

Fixados os pressupostos da certeza e liquidez, completa-se a noção do imediatismo daexigibilidade com a verificação do seu vencimento, uma vez que, na pendência decondição suspensiva, ou antes de termo final, não é possível a incidência de mora: acondição obsta à aquisição mesma do direito, e a aposição de um termo constituiobstáculo a que o credor o faça valer. Numa e noutra hipótese não ocorre o pagamento,e mora non fit.

A culpa do devedor é outro elemento essencial. O nosso Anteprojeto menciona ainexecução culposa como elemento integrante de sua etiologia (art. 189). Não há mora,se não houver fato ou omissão a ele imputável (Código Civil de 2002, art. 396 7). Aregra não comporta dúvida, em nosso Direito, embora o contrário possa dizer-se deoutros sistemas legislativos; não obstante a culpa, a parte debitoris é suscetível deverificação presumida (Código Civil de 2002, art. 399 8). De acordo com o melhorentendimento, tal presunção é iuris tantum, e não iuris et de iure.9 Embora o retardofaça presumir a conduta culposa, cabe ao devedor evidenciar que o atraso lhe foiimposto por um acontecimento, cujos efeitos não teve ele condições de evitar ouimpedir. De conseguinte, envolve escusativa para o devedor e conseqüente ausência demora a verificação de um acontecimento de força maior, ainda que transitório; a falta decooperação; o atraso na autorização do poder público sempre que seja requisito do ato, eoutros semelhantes.10 Não valeria ressalvar-se, contudo, por escusativa fundada na vismaior (força maior), a simples dificuldade subjetiva e relativa,11 pois não mereceproteção aquele que não sabe medir as suas forças ou conservar os meios de cumprir oobrigado.12

Constituído o devedor em mora (v. nº 173, infra), e positivada ela, duas são as ordens deseus efeitos: a responsabilidade pelas perdas e danos e a perpetuação da obrigação.13

Responde, na verdade, o devedor pelos prejuízos a que der causa o retardamento daexecução (Código Civil de 2002, art. 395 14); obrigado fica a indenizar o credor pelodano que o atraso lhe causar, seja mediante o pagamento dos juros moratórios legais ouconvencionais, seja ressarcindo o que o retardo tiver gerado. A indenização moratórianão é substitutiva da prestação devida, vale dizer que pode ser reclamada juntamentecom ela, se ainda for proveitosa ao credor. Mas, se se tornar inútil ao credor em razão damora do devedor, tem ele o direito de exigir a satisfação das perdas e danos completa,mediante a conversão da res debita no seu equivalente pecuniário. É o caso em que oatraso no cumprimento eqüivale a descumprimento total, equiparando-se a prestaçãoretardada à falta absoluta de prestação. O mesmo direito à recusa da prestação tardia

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assiste ao credor, quando é vinculada a um contrato, cuja resolução seja condicionadaao pagamento oportuno tempore. Não satisfeito na época determinada, enseja ao credoro rompimento da avença.

Outro efeito da mora debendi é a denominada perpetuatio obligationis, em virtude deque responde o devedor moroso pela impossibilidade da prestação (Código Civil de1916, art. 957/Código Civil de 2002, art. 399), ainda que tal impossibilidade decorra decaso fortuito ou de força maior. São requisitos deste agravamento da responsabilidadedo devedor: estar ele em mora e ocorrer a impossibilidade na pendência desta. Odevedor não se escusa sob alegação de ausência de culpa no perecimento do objeto,porque a sua condição de devedor se torna agravada precisamente em razão de não terprestado em tempo oportuno. A perpetuação da obrigação não deve ter, contudo,caráter absoluto. Casos haverá em que o dano sempre sobreviria à coisa, e, então,escusa-se o devedor moroso, comprovando, além da falta de culpa específica nadanificação, a circunstância de que o evento dar-se-ia ainda que a obrigação tivesse sidooportunamente desempenhada. Exemplo clássico é o da coisa fixa no solo e destruídapelo raio, na pendência da mora solvendi: ainda que o devedor houvesse cumprido atempo, perderia o credor a coisa, pela força do fogo do céu. Neste mesmo exemplo, pelofortuito, entretanto, responde o devedor, se a coisa era destinada à alienação, e oretardamento na entrega impediu o credor de realizá-la. É que o interitus não a atingiriaa tempo de frustrar a alienação, se, com a traditio oportuna, houvesse o credorconvertido o objeto no seu valor pecuniário, em desenlace das negociações jáentabuladas. Ressalva-se, também, a obrigação de gênero, pois que, sendo certo quegenus nunquam perit, a perda de uma coisa não individuada não impossibilita aexecução mediante a entrega de outra do mesmo gênero.15

B) Mora accipiendi ou credendi. Não encontra uniformidade de tratamento legislativo.Enquanto no sistema francês a mora do credor se confunde com a consignação empagamento, no germânico recebe tratamento específico. A esta segunda linha pertence oDireito brasileiro, que, disciplinando o instituto, mais próximo situa-se na tradiçãoromana. Costuma-se, como princípio básico, argumentar que o credor não tem o deverde receber em tempo certo. Mas não se pode recusar ao devedor a faculdade de liberar-se do vínculo obrigacional, em vez de manter-se jungido ao credor indefinidamente.Quando existe, pelas circunstâncias da hipótese, uma obrigação para o credor, quanto aorecebimento opportuno tempore, está em mora quando atrasa o recebimento do devido.Nos demais casos, embora falte ao credor a obrigação de receber,16 corre-lhe entretantoum dever negativo, de se não opor a que o devedor se desvencilhe da obrigação. Aí éque encontra paralelo a mora credendi com a mora debendi. O embaraço que o credoropõe à solutio da outra parte compara-se ao retardamento do devedor, e a mora de umequipara-se à do outro. A recusa do credor é requisito conceitual dela. O retardamentoinjustificado no recebimento eqüivale à recusa, não podendo o devedor que quer solvero débito suportar-lhe as conseqüências. E se, em princípio, cabe ao devedor constituir ocredor em mora, não é contudo um direito personalíssimo, pois compete também aqualquer terceiro que tenha a faculdade de efetuar pagamento válido.17

São extremos da mora creditoris o vencimento da obrigação e a constituição em mora.Enquanto não há dívida vencida e exigível, não há falar em direito do devedor delibertar-se dela, uma vez que, se não pode ainda ser molestado pelo credor, nem estáexposto a qualquer risco, não há direito de forrar-se a estes efeitos. Ainda quando setrate de termo instituído a benefício do devedor, a antecipação do pagamento não pode

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ser imposta ao credor, com a conseqüente constituição em mora, pois que por direitosomente no momento em que a obrigação está vencida é que se reputará aparelhado parao recebimento. O segundo requisito é a constituição em mora, desenvolvida no nº 173,infra.

Um ponto existe, que é o centro de competição dos juristas. Enquanto uns mantêmposição extremada, entendendo que não há mora accipiendi na falta de culpa docredor,18 outros vão ao campo oposto, e sustentam que ela se caracteriza ainda quandoo retardo ocorra por motivo de força maior. Não nos parece que qualquer dos extremosse justifique. Em princípio, sustentamos que o devedor há de ter a faculdade dedesobrigar-se no tempo, no lugar e pelo modo devido, e não pode sofrer asconseqüências da omissão do credor, quando a solutio depende da cooperação deste.Oferecida a prestação oportunamente, incidirá então o credor na mora, se falta a suaparticipação no ato, e isto independentemente de evidenciar o devedor se concorreu aculpa da outra parte. É por isto que alguns escritores sustentam não se cogitar de culpana mora accipiendi.19 Mas, de outro lado, será escusado o procedimento do credor ou asua omissão, se tiver justificado motivo de recusar a oferta ou de negar a suacooperação,20 como no caso de ser o retardamento decorrente de força superior à suavontade,21 ou de a prestação não corresponder exatamente ao conteúdo da obrigação.22

Os efeitos da mora accipiendi, em linhas gerais, resumem-se em dois: isenção deresponsabilidade do devedor e liberação dos juros, e da pena convencional. Incorrendoem mora, o credor subtrai o devedor isento de dolo da responsabilidade pelaconservação da coisa, cujos riscos assume.23 Em simetria com a mora debendi, queimplica o agravamento da situação do devedor, a mora credendi reduz a oneração daprestação. Assim é que, perecendo ou deteriorando-se o objeto, o credor em mora sofre-lhe a perda ou tem de recebê-lo no estado em que se encontra, sem a faculdade deeximir-se da prestação que lhe caiba, e sem o direito a qualquer abatimento ouindenização. E, ao revés, se o devedor tiver feito despesas para conservação da coisa,deve o credor ressarci-las. Mais: se ocorrer acréscimo de ônus, ainda que indiretamente,na pendência de mora credendi, por ele responde o credor. E se o valor da coisa oscilarentre o tempo do contrato e o do pagamento, o credor terá de recebê-la pela sua maisalta estimação (Código Civil de 2002, art. 400 24). O nosso Anteprojeto, diferindo daorientação do Código de 1916, minudenciava todos esses efeitos da mora credendi (art.195).

Não se pode admitir a existência de mora accipiendi sem oferta da res debita ao credor,pois que seu procedimento não é injurídico, senão quando embaraça a solutio dodevedor. Mas não basta o oferecimento simples ou verbal, pois é mister que ocorraoferta efetiva, de forma a positivar a atitude ostensiva do devedor no sentido dopagamento, e a recusa do credor,25 salvo se houver precedido a declaração formal deque não aceita o pagamento.26

Em qualquer dos casos - mora debendi e mora credendi - a determinação da naturezaquesível ou portável da dívida tem grande importância, como elemento informativo daconduta do devedor ou do credor. Se a dívida é quesível, cabe ao credor; se é portável,tem este último o dever de levar a prestação ao credor.

Ligada, pois, à mora accipiendi é a matéria da consignação em pagamento, meiotécnico de que se vale o devedor para liberar-se da obrigação nolente creditore,

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impondo a solutio ao credor, de forma que prevaleça a palavra jurisdicional comoquitação do obrigado. O Direito francês chega mesmo a não disciplinar a mora docredor, reportando-se à consignação em pagamento.27 Mas a escola alemã, a que onosso direito se filia, guarda a tradição romana e dela cogita em especial. Na verdade amora do credor há que produzir efeitos benéficos ao devedor que quer cumprir o que lhecabe.28 No nº 158, supra, tratamos em especial do pagamento por consignação.

172. Purgação e cessação da mora

Responde o credor, ou o devedor, em mora, pelos respectivos efeitos, suportandoconseguintemente os rigores da perpetuatio obligationis, de que o Direito romano nãoadmitia a princípio qualquer atenuação. No período clássico, Celso aceitou, sob ainspiração da eqüidade, que aquele que estivesse em mora pudesse restabelecer aobrigação e dar-lhe cumprimento, emendando a falta cometida - emendatio vel purgatiomorae. O Direito moderno, herdando daquele a recuperação da obrigação, disciplina apurgação da mora. Assim procede o brasileiro.

Cumpre, porém, salientar que nem sempre é possível fazê-lo. É inadmissível quando oatraso se confunde com a inexecução cabal, como na hipótese de tornar-se a prestaçãoinútil ao credor. É inaceitável, também, quando a conseqüência, legal ou convencional,do retardamento for a resolução. Em tais casos a mora é insuscetível de emenda, eproduz seus efeitos irretratavelmente. Quando a prestação é ainda aproveitável, ou nãoconjugada com a rescisão do negócio jurídico, tanto a mora accipiendi quanto a morasolvendi se purgam (Código Civil de 2002, art. 401 29), mediante o assumir, aquele quenela tiver incorrido, as respectivas conseqüências, produzidas até então. E, para saberquando o retardamento envolve, em regra, a rescisão, deve-se atentar para a distinçãoentre o termo essencial e o termo não essencial, formulada no nº 156, supra.

Para emendar a mora solvendi, o devedor oferecerá a prestação, mais a importância dosprejuízos decorrentes até o dia da oferta, abrangendo os juros moratórios, e o danoemergente para o credor, acrescida daquilo que ele razoavelmente deveria ganhar, se asolutio fosse oportuna. Muito se discute se a purgatio morae requer ou dispensa oassentimento do credor. E, se de um lado há os que defendem a dispensa,30 de outro háos que entendem que não existe regra absoluta, por não ser lícita após alitiscontestatio.31 Parece-nos, a nós, que o problema não pode ser posto em termosabstratos, porém, examinado à vista da natureza do prazo concedido: se se tratar determo essencial, não vale a emendatio morae sem o acordo do credor; se for, ao revés,não essencial, é aceita independentemente daquela anuência. E cumpre recordar, ainda,que não poderá ocorrer a purgação da mora na pendência da lide, salvo disposiçãoexpressa, como a facultada pela legislação do inquilinato, nas ações de despejo por faltade pagamento.

Se for do credor a mora, oferecer-se-á ele a receber a coisa no estado em que seencontrar, com todas as conseqüências dela.

Fator importante é a verificação da circunstância temporal em qualquer dos casos, poisque, uma vez consumada, e como tal se entende a impossibilidade de reparação dodano, não cabe mais purgação, sofrendo o devedor ou o credor os respectivos efeitos.32O Anteprojeto (art. 196) e o Projeto (art. 187) aceitavam a emendatio morae somente nocaso de ser ainda útil a prestação.

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Ao desaparecer a mora, geralmente não se apagam os seus efeitos pretéritos, ou jáproduzidos, a não ser que se relevem voluntariamente,33 mas isto já diz respeito àcessação, em seguida cogitada.

Considere-se ainda purgada a mora, por parte do credor ou do devedor, quando aqueleque se julgar por ela prejudicado renunciar aos direitos que da mesma lhe possam advir.Ocorre nesta hipótese o que mais precisamente pode designar-se como cessação damora, porque não há propriamente a emenda ou purgação dela, mas ao revés a suaterminação, sem que produza seus naturais efeitos. Quando é expressa a renúncia, nãohá propriamente questão ou dúvida, uma vez que na sua palavra mesma vem traduzida aintenção do agente, contrária ao propósito de utilizar-se dela ou de seus efeitos.Problema haverá na renúncia tácita, presumida ou implícita, que, por se não positivarem uma declaração formal, haver-se-á de inferir das circunstâncias de cada caso,quando o prejudicado pela mora age como se a outra parte não tivesse incorrido emfalta. Inexistindo critério rijo de aplicação, a renúncia presumida ocorre quando seconfigura incompatibilidade entre a conduta daquele a quem a mora aproveitaria e autilização de seus efeitos, induzindo-se inequivocamente de seu comportamento.

173. Constituição em mora

Fator da maior importância é a constituição em mora, tanto para o credor como para odevedor. É elementar na caracterização do atraso.

Conforme seja proveniente da própria obrigação (pleno iure), ou ao revés de umaprovocação da parte a quem interessa, diz-se que a mora pode ser ex re ou expersona.34

Dá-se a mora ex persona, na falta de termo certo para a obrigação. O devedor não estásujeito a um prazo assinado no título, o credor não tem um momento predefinido parareceber. Não se poderá falar, então, em mora automaticamente constituída. Elacomeçará da interpelação que o interessado promover, e seus efeitos produzir-se-ão exnunc, isto é, a contar do dia da intimação (Código Civil de 2002, art. 397, parágrafoúnico35).

A mora ex re vem do próprio mandamento da lei, independentemente de provocação daparte a quem interesse, nos casos especialmente previstos, e que passaremos em revista.

Nas obrigações negativas, o devedor é constituído em mora desde o dia em queexecutar o ato de que se devia abster (Código Civil de 2002, art. 390 36). É claro que,sendo objeto da obrigação uma omissão do devedor, o cometimento da ação proibida jáimplica a sua infração, que sujeita o devedor às respectivas conseqüênciasindependentemente de qualquer ato do credor para constituí-lo em mora. Nasdogmáticas estrangeiras, não falta mesmo quem sustente que não se trata de mora,caracterizada neste caso da obrigação de não fazer, porém deve-se, desde logo, traduzira conduta do reus debendi como inexecução pura e simples,37 ou mesmo quemjustifique o princípio apontando a inutilidade da constituição em mora, pois que ainfração da obrigação de não fazer por si mesma consuma o irreparável.38

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Nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se o devedor em mora desde que ocometeu (Código Civil de 2002, art. 398 39), como nos casos de delito contra apropriedade, em que o agente é obrigado desde logo à restituição da coisa subtraída ouapropriada (fur semper moram facere videtur).40 Pelo mesmo fundamento daantijuridicidade do procedimento, causador do dever de reparar, o qual corre desde o diaem que o agente violou o direito, ou causou prejuízo a outrem, qualquer que seja o bemjurídico ofendido, opera-se a constituição automática em mora, independentemente deintimação ao ofensor, a contar de quando foi praticado o ato ilícito.41

Em sua redação, o modelo de 1916 referia-se a "delito", como expressão genérica, paracompreender procedimento contra direito. Dúvida havia, entretanto, se se restringia ounão a alguma figura criminal, talvez porque a fonte romana tinha em vista o ladrãoquando o enunciava. A doutrina, entretanto, estendia o princípio a todo procedimentooriginado de uma antijuridicidade. Com a redação atual, a dúvida desaparece,instituindo-se a mora ex re, em todos os casos de ato ilícito.

O terceiro caso de mora ex re está no inadimplemento de obrigação positiva e líquida,no seu termo. Vencida a dívida contraída com prazo certo, nasce pleno iure o dever dasolutio, e a sua falta tem por efeito a constituição imediata em mora. É a regra diesinterpellat pro homine, que o Código Civil de 2002 consagra (art. 397, caput). É opróprio termo que faz as vezes de interpelação. Mas esta regra não deve ser levada aoextremo de ser tratada como absoluta, pois há casos em que, mesmo então, é necessáriointerpelar o devedor se a execução demanda a prática de atos determinados, como porexemplo nas promessas de compra e venda em que, não obstante o prazo estipulado, ocredor terá de interpelar o devedor, indicar o cartório onde será passada a escrituradefinitiva, apresentar documentos etc., sem o que a mora não existe.42 Também devealinhar-se na rota das exceções ao princípio dies interpellat pro homine a naturezaquesível da prestação (dívida quérable ou chiedibile), pois que, se o credor tem aobrigação de vir ou mandar receber, é claro que não pode o devedor incidir de plenodireito em mora, e sofrer os seus efeitos, enquanto não se positivar a atitude do credor,procurando a res debita.43

No Direito brasileiro ocorreu uma anomalia no tocante à constituição em mora:enquanto para as obrigações civis, dies interpellat pro homine, no Código Comercial de1850 predominou o princípio oposto e então dies non interpellat pro homine. Enquantono direito civil vigorava a mora ex re quanto às obrigações positivas, líquidas e a termocerto, no direito mercantil prevalecia a mora ex persona, não se podendo falar naconstituição em mora sem notificação, interpelação ou protesto. E tão precisos eram ostermos da lei comercial que não pode o interessado fugir à determinação, segundo aqual sempre teria de proceder judicialmente, sob pena de não haver incidência damora,44 a não ser naqueles casos específicos como o protesto cambial, que tem ocondão de positivar o não-cumprimento da obrigação contida na letra de câmbio, notapromissória, cheque, duplicata, à vista da certidão do oficial, que fez a convocação dodevedor.45

O Código Civil de 2002, visando à unificação do direito obrigacional, dita norma quetraz uniformidade à matéria, prevalecendo então um só princípio, quer seja civil, querempresarial a obrigação. E, na eleição entre uma e outra, o Código Civil de 2002 (art.395, parágrafo único) adotou a mora ex re, nas obrigações positivas, líquidas e a termo.

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Capítulo XXXV - Inadimplemento das Obrigações

Sumário: 174. Inadimplemento da obrigação, absoluto e relativo. 175.Dolo e culpa. 176. Indenização: dano patrimonial e dano moral. 177.Inimputabilidade: caso fortuito e força maior. Eliminação do risco. 178.Exoneração convencional: cláusula de não indenizar. 178-A. Arras.

Bibliografia: Hedemann, Tratado de Derecho Civil, Derecho deObligaciones, págs. 155 e segs.; Agostinho Alvim, Da Inexecução dasObrigações e suas Conseqüências; De Page, Traité, III, nos 92 e segs.;Mazeaud et Mazeaud, Leçons de Droit Civil, II, nos 371 e segs.; KarlLarenz, Obligaciones, I, págs. 190 e segs.; M. I. Carvalho de Mendonça,ed. atualizada por José de Aguiar Dias, II, nos 446 e segs.; AlfredoColmo, Obligaciones en General, nos 88 e segs.; von Tuhr, Obligaciones,II, nos 66 e segs.; Trabucchi, Istituzioni di Diritto Civile, nos 235 e segs.;Ruggiero e Maroi, Istituzioni di Diritto Privato, n° II, § 131; ArnoldoMedeiros da Fonseca, Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão; AguiarDias, Da Responsabilidade Civil; Aguiar Dias, Cláusula de NãoIndenizar; Paul Esmein, "Le Fondement de la ResponsabilitéContractuelle Raproché de la Responsabilité Delictuelle", in RevueTrimestrielle de Droit Civil, 1933, pág. 627; Clóvis Beviláqua,Obrigações, § 53; Serpa Lopes, Curso, vol. II, nos 306 e segs.; Soudart,Traité Général de la Responsabilité; Robert Bouillene, La ResponsabilitéCivile Extra-Contractuelle devant l’ Évolution du Droit; Henri Lalou,Traité Pratique de la Responsabilité Civile; Chironi, La Colpa nel DirittoCivile Odierno; Van Ryn, Responsabilité Aquillinne et Contrats;Leonardo Colombo, Culpa Aquiliana; Adriano de Cupis; Il Danno; HansA . Fischer, A Reparação dos Danos no Direito Civil; Cornu, De laResponsabilité Delictuelle, págs. 187 e segs.; Sertorio, La Colpa inConcreto; Wilson Mello da Silva, Dano Moral; Alvino Lima, Culpa eDolo; Caio Mário da Silva Pereira, Responsabilidade Civil.

174. Inadimplemento da obrigação, absoluto e relativo

Inadimplemento da obrigação é a falta da prestação devida. Conforme a sua natureza(de dar, de fazer, de não fazer), o devedor está adstrito à entrega de uma coisa, certo ouincerta, à prestação de um fato, a uma abstenção. Qualquer que seja esta prestação, ocredor tem direito ao seu cumprimento, tal como constitui seu objeto, o que envolve opoder do credor, a que o devedor se submete, pela própria força do iuris vinculum.Quando se impossibilita a prestação, duas hipóteses podem ocorrer: ou aimpossibilidade é inimputável ao sujeito passivo, e resulta pura e simplesmente aextinção da obrigação sem outras conseqüências; ou o devedor é responsável pelo não-cumprimento, e então cabe ao credor exercer sobre o patrimônio do devedor o poder desuprir a ausência da prestação, direta ou indiretamente. Dentro de um plano deexposição sistemática, diz-se que a impossibilidade pode ser subjetiva, se se refere àscircunstâncias pessoais ligadas ao devedor ou ao credor; ou objetiva, se atinge aprestação em si mesma, e se subdivide, à sua vez, em impossibilidade objetiva natural,quando afeta a prestação um acontecimento de ordem física, e impossibilidade objetivajurídica, quando se antepõe à prestação um obstáculo originário do próprioordenamento.1 É claro que, neste passo, excogitamos da impossibilidade superveniente

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ou subseqüente. É esta, e somente ela, que se conta no ângulo de visada, quando sedoutrina do não-cumprimento do obrigado. A outra, a impossibilidade originária, dizrespeito à própria formação do vínculo, conduz à ineficácia do negócio jurídico por faltade objeto, e já mereceu a nossa atenção no nº 109, supra, vol. I. Embora as duas idéiasse aproximem, devem distinguir-se, dentro de puro rigor técnico, o inadimplemento e aimpossibilidade da prestação, ligando-se o primeiro à noção de uma falta cometida pelodevedor, e a segunda à ausência de participação sua na inexecução do obrigado (nº 128).

O inadimplemento diz-se absoluto ou relativo. Será absoluto se tiver faltadocompletamente a prestação, de forma que o credor não receba aquilo a que o devedor seobrigou, seja a coisa, ou o fato, ou a abstenção, e não haja mais possibilidade de serexecutada a obrigação. Será relativo, se apenas parte da res debita deixou de serprestada, ou se o devedor não cumpriu oportunamente a obrigação, havendopossibilidade de que ainda venha a fazê-lo,2 o que constitui matéria enfeixada sob aepígrafe genérica da "mora", objeto do Capítulo XXXIV. Em qualquer dos casos háinadimplemento, porque o credor tem direito à prestação devida, na forma do título e notempo certo. Cumprir em parte pode ser o mesmo que não cumprir, porque o credor temdireito a todo o devido, e pode se não considerar satisfeito se algo falta na prestação dodevedor, da mesma forma que um cumprimento por modo diferente do devido ou umaexecução retardada não libera o sujeito passivo do poder que sobre ele criou o vínculoobrigatório. Assim, à impossibilidade eqüivale às vezes a execução parcial; à ausênciade prestação pode corresponder a que se der em termos diferentes do expresso no título;à falta de pagamento pode comparar-se a prestação inoportuna (mora do devedor).

E como em qualquer das hipóteses o devedor que falta ao devido descumpre aobrigação, responderá por perdas e danos, seja por não a ter cumprido in totum, seja pornão a ter cumprido no modo e no tempo devidos (Código Civil de 2002, art. 389 3).Noutros termos, o inadimplemento da obrigação, absoluto ou relativo, cria para o sujeitopassivo o dever de prestar ou indenizar, e para o credor a faculdade de exigir. Não seextingue a obrigação, nem nasce outra cujo objeto sejam as perdas e danos. É a mesmaobrigação que sofre mutação objetiva. A prestação é que difere, em razão de ter odevedor ficado em falta. E, como o seu inadimplemento impõe ao credor um dano e lhetraz uma perda, o devedor é obrigado a cobrir os prejuízos causados pela sua conduta,de forma que o equilíbrio se restabeleça.

Não se deve, porém, dizer, como regra geral e absoluta, que a prestação devida e nãocumprida se transforma nas perdas e danos, porque às vezes assim se passa, mas outrasvezes as duas sobrevivem - a res debita e as perdas e danos - sem que em uma se sub-roguem as outras. É claro que a sub rogatio é satisfação subsidiária do credor. Aprestação principal, direta, específica é a obtenção do objeto mesmo da obrigação. E seo devedor faltou ao prometido, cabe, antes de mais nada, perquirir se é possível obter,compulsória ou coercitivamente, aquilo que não veio com caráter espontâneo.Freqüentemente é. Mas nem sempre. Nas obrigações de dar não é difícil obter umasentença compelindo o devedor a entregar, em espécie, a própria coisa devida. Somentequando não seja possível lográ-lo, quando o título prevê a transformação automática, éque esta ocorre. Nas obrigações de fazer, se a prestação é fungível, isto é, se não foiajustada intuitu personae debitoris, o credor consegue executar por outrem, a expensasdo sujeito passivo, o fato recusado; no caso contrário, e já que nemo ad factum praecisecogi potest, não sendo lícito forçar alguém a uma ação sem quebra do respeito à sualiberdade, o remédio é substituir a prestação devida pelo seu equivalente pecuniário.

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Nas obrigações negativas, o credor pode obter um iudicium, compelindo o devedor adesfazer o que lhe era vedado, ou realizar o credor o desfazimento a expensas daquele,com a cominação de pena para a hipótese de nova infração, e, se o desfazimento éimpossível ou já inútil ao credor, dá-se a conversão.4 Em princípio, a execução diretaou ad rem ipsam é o modo normal de execução das obrigações. Mas, quando ela não émais possível, ou simplesmente não é possível, procura-se a execução pelo equivalente,através de um elemento compensatório, que vem suprir a ausência de execução direta.5

Os credores têm, no patrimônio do devedor, garantia para seus créditos, o que lhespermite promoverem a expropriação judicial (penhora) de um bem,6 para satisfazer odireito do credor, obtendo, pela sua venda em praça ou leilão, a quantia que liquida odébito.

Com todos os bens, presentes e futuros, salvo as restrições legais, o devedor respondepelo cumprimento das obrigações (Código Civil de 2002, art. 391 7). Neste mesmosentido, já rezava o Projeto de Código de Obrigações de 1965, art. 91. Em todo tempo, ocredor encontra no patrimônio do devedor o princípio da garantia, que lhe assegurareceber o seu crédito pelos bens, sejam presentes, sejam futuros, do devedor.

O patrimônio é a garantia genérica do adimplemento das obrigações do devedor. Se esteprocede irregularmente, alienando bens e com isto desfalcando aquela garantia, realizanegócio jurídico inquinado de defeito (fraude contra credores), cuja conseqüência é aanulação, para trazer de novo o bem desviado, e retorná-lo à condição de garantia.

Pode o devedor separar de seu patrimônio um bem determinado e transformá-lo emgarantia específica de um certo delito, mediante penhor, hipoteca, anticrese, alienaçãofiduciária. Neste caso, o respectivo credor tem, em caráter privilegiado, o seu créditoassegurado por aquele bem, por cujo valor satisfaz preferencialmente a outros credores.Pode, também, uma pessoa destacar um bem de seu patrimônio, e dá-lo em garantia reala obrigações de outra pessoa.

A todo tempo, os valores economicamente apreciáveis de uma pessoa, integrantes deseu patrimônio, respondem pelas dívidas. No caso de serem estas em valor excedentedos elementos patrimoniais ativos, instaura-se um concurso de preferências, pagandoem primeiro plano os créditos privilegiados, e rateando-se entre os demais o líquidoapurado.

Nos termos do artigo 391 do Código Civil de 2002, a responsabilidade pela solução daobrigação nasce no momento em que esta é constituída. Todo o acervo patrimonial dodevedor constitui a garantia do credor, e responde pelo adimplemento. Não se restringe,entretanto, o princípio da responsabilidade aos bens contemporâneos à constituição daobrigação. Aqueles que de futuro vierem a integrar o patrimônio aderem à garantiagenérica.

Excluem-se, obviamente, os bens que não têm expressão econômica, como os de famíliapuros, os da personalidade, inerentes à pessoa em vida e post mortem. Excluem-se,igualmente, aqueles bens que em razão de sua natureza são absolutamenteimpenhoráveis.8

175. Dolo e culpa

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Como ficou dito acima, o descumprimento que sujeita o devedor a perdas e danos é ooriginário de uma falta sua, entendida a expressão em senso largo, abrangente dequalquer infração de um dever legal ou contratual. Mas, na sua objetividade, a falta dodevedor pode percorrer toda uma gama de intensidade, desde a infração intencional evoluntária, dirigida no propósito de causar o mal, até a que provém de uma ausência decuidados especiais a seu cargo. Daí extremar-se em duas classes a conduta do agente,infratora da norma, denominadas respectivamente dolo e culpa, às quais já nosreferimos no nº 114, supra, e agora retomamos como elemento componente doinadimplemento da obrigação e seus efeitos.

Dolo é a infração do dever legal ou contratual, cometida voluntariamente, com aconsciência de não cumprir.9 A vontade do agente pode dirigir-se para o resultadomaléfico, e, sabendo do mal que sua conduta irá gerar, quer este resultado, apesar desuas conseqüências conhecidas. Esta é uma noção clássica de dolo que Carvalho deMendonça resume no animus injuriandi.10 Não é modernamente necessária, na suaconfiguração, aquela preordenada vontade de violar a obrigação (Ruggiero). Basta, acaracterizá-lo, que o agente tenha a consciência da infração, e esteja ciente do dano quese lhe siga. O elemento fundamental de sua verificação, para a concepção tradicional,estava no animus nocendi, intenção de causar o mal, de difícil e às vezes impossívelobjetivação na prática, porque se é fácil provar a transgressão, e se o efeito danoso logose consigna, a intenção é de evidenciação difícil, em razão da sua extrema subjetividadee seu menor grau de exteriorização. Adotando-se a outra concepção, já se torna maisviável demonstrá-lo, pois que não há mister indagar se o agente quis o efeito maléfico,senão que tinha a percepção da violação ou a consciência dela.11

No propósito de espaventar dúvidas, Serpa Lopes adverte que a idéia de dolo nocumprimento da obrigação não se confunde com o dolo defeito do negócio jurídico,cujos extremos já foram por nós apontados no nº 90, supra.

O Direito brasileiro desvencilhou-se das sutilezas na gradação da responsabilidade, queoutros sistemas ainda consagram, e afastou as diferenças de tratamento ao transgressor,decorrentes da verificação da causa do descumprimento. Os glosadores, trabalhandosobre os textos, haviam engendrado teorias complexas, em que a apuração do elementosubjetivo se mostrava fundamental na graduação da responsabilidade do agente. Até osnossos dias chegou a convicção de que merece mais rigoroso tratamento aquele queinfringe a obrigação visando ao resultado do que o inadimplente que a transgride pormera negligência. O Código Civil brasileiro, ao assentar o princípio da imputabilidade,e o Código de Processo Civil, ao fixar o direito de ação com tal fundamento, têm emvista o descumprimento objetivamente considerado, a transgressão do dever, paraestabelecer que o agente responde pelas conseqüências sem indagar se o resultadodanoso entrou nas cogitações do infrator ou se a violação foi especialmente querida.Não quer isto dizer que o Direito pátrio desconheça a diferença. Quer significar que aimputabilidade resulta do dever violado. Em certas circunstâncias, distingue-se entre oinadimplemento doloso e o culposo, para definir a responsabilidade em casos especiais.Nos contratos onerosos, não é necessária a análise subjetiva da transgressão, visto comoo contratante inadimplente responde por perdas e danos à simples demonstração de suaculpa. Nos contratos benéficos é que vem a menção do dolo, para se estabelecer que aresponsabilidade do contratante inadimplente é uma função do elemento anímico:

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aquele a quem o contrato aproveita responde pela culpa, e só por dolo aquele a quemnão favoreça (Código Civil de 2002, art. 392 12).

Na culpa encontra-se o fator inadimplemento, porém despido da consciência daviolação. A ação é voluntária, no que diz respeito à materialidade do ato gerador dasconseqüências danosas. Mas o agente não procura o dano como objetivo de sua conduta,nem procede com a consciência da infração. Daquela ação derivam conseqüênciasprejudiciais, que não podem ficar livres da reparação. Há, assim, um encadeamento defatos e conseqüências: uma atuação voluntária, ainda que sem a consciência datransgressão; um dano a alguém; uma obrigação de repará-lo, porque a conduta foicontraveniente à imposição de uma norma. Analisada originariamente esta série de fatose conseqüências, ressalta que o fundamento da responsabilidade por culpa está nainfração mesma de um dever, seja este legal, seja contratual, que o agente devia terevitado, conduzindo-se de maneira a não faltar a ele. Nela articulam-se dois fatores: odever violado e a imputabilidade do agente. O primeiro, presente na atuação da vontadeconsciente para a ação em contrariedade a uma predeterminação (elemento objetivo), e asegunda na verificação de não ter ele prevenido ou evitado os efeitos, podendo fazê-lo.13 Desde que o agente transgrediu a norma, seja ela instituída pela lei geral, sejacriada pela convenção que é lei particular entre as partes, e com isto causou dano aoutrem, responde pelas conseqüências e sujeita-se à reparação. Mas acha-se fora de suaetiologia a vontade de causar o mal, ou a consciência mesma da violação.

Sendo um dos mais debatidos problemas do Direito Civil, não é de admirar que deculpa haja dezenas de definições. Não iremos agravá-lo, aditando mais uma.Procedendo à análise do fenômeno, como fizemos no nº 114, supra (vol. I), verificamosque as noções formuladas apresentam a semelhança resultante de algumas constantes.Antes de mais nada, inexistiria culpa na inexistência de norma anterior. Moralmente (e aidéia de culpa, antes de ser jurídica já é moral), como juridicamente, há de haver umapredeterminação de conduta. O agente é adstrito a um certo procedimento. Partindo-seda idéia de que a sua conduta é predeterminada pela lei ou pela convenção, o primeiropressuposto ressalta e fica estabelecido. O segundo é a ação voluntária do agente emcontravenção a essa conduta e em contradição com aquela norma. Ele desviou-se danormação, transgrediu a regra predeterminante. Cometeu, assim, um erro de conduta.Devendo seguir um rumo condicente com a norma, afastou-se dela, ainda que sem aconsciência de violentá-la. Cometeu um desvio ou erro de conduta, por negligência, pordesatenção, por imprudência, por omissão da observância de regras - não importa acausa. Podendo evitar ou prevenir, desviou-se da conduta imposta pela norma. E comisto causou um mal ao bem jurídico alheio. Sem a pretensão de definir, fixamos a noçãode culpa com este caráter, em que predomina um sentido objetivo de aferição, e é poristo que De Cupis deduz ser ela uma noção objetiva.14 Não se há de deter, comoefetivamente não se detém, o Direito brasileiro na apuração das gradações da culpa. Istofizeram os glosadores, ao erigirem um padrão abstrato, de homem diligente, bonus paterfamilias, e ao aferirem a conduta do agente, em comparação com a diligência que estehomem-paradigma guardaria em relação ao procedimento examinado. Sistemaslegislativos ainda abrigam essa teoria, que configura a culpa levis na falta de diligênciamédia, que um homem normal observa; a culpa lata na negligência mais grave, quepoderia ser evitada por um homem inferior ao padrão médio; a culpa levíssima, na faltacometida em razão de uma conduta que escaparia ao padrão médio, mas que umdiligentissimus pater familias, especialmente cuidadoso, guardaria. E, em conformidadecom a distinção baseada na intensidade da culpa, vem uma graduação de

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responsabilidade. O Direito brasileiro, repetimos, afastou estas filigramas, para encarara existência da transgressão da norma e impor o dever de reparar ao contraventor.Alinhou-se, desta sorte, na escola inaugurada com o BGB, o qual, segundo os maisreputados autores, deu o golpe de morte na teoria da gradação da culpa.15

A culpa, tendo em vista a categoria do dever violado, diz-se contratual ouextracontratual. Culpa contratual é aquela decorrente da infração de uma cláusula oudisposição de contrato celebrado entre as partes. Culpa extracontratual, tambémchamada aquiliana, em razão de se achar originariamente definida na romana LexAquilia, é a transgressão do dever legal, positivo, de respeitar o bem jurídico alheio, oudo dever geral de não causar dano a outrem, quando a conduta do agente não estáregulada por uma convenção.

A culpa contratual e a aquiliana partem da mesma idéia ética e induzem para oresponsável a mesma conseqüência. Neste ponto, a concepção tradicional choca-se coma noção moderna, já que aquela as diferençava, enquanto que esta as aproxima eidentifica, e com toda razão. É que, se na sua estrutura há uma norma, e a violação destagera um dano - em nada importa que o preordenamento seja legal ou convencional.Hoje caminha a doutrina civilista no rumo da unidade de culpa.16

Não obstante confundirem-se ontologicamente a culpa contratual e a aquiliana, e nosseus efeitos identificarem-se, pois que toda culpa está sujeita a prova, a distinção aindasobrevive em razão do ônus desta. Enquanto na culpa extracontratual ao queixosoincumbe demonstrar todos os extremos da responsabilidade, evidenciando atransgressão, o dano e a relação de causalidade, na culpa contratual, há uma inversãodeste encargo.17 A razão está em que, quando há contrato, existe um dever positivoespecífico consistente em prestação definida na relação obrigacional, a que o devedorfaltou, o que só por si lhe impõe a responsabilidade, a não ser que comprove a razãojurídica de sua falta, porque os demais extremos derivam do próprio inadimplemento,que pressupõe o dano, e induz a relação de causalidade entre este e a transgressão. Emcontraposição a isto, na culpa aquiliana o dado único é o dever negativo, ou obrigaçãode não prejudicar, e para que se concretize a responsabilidade é necessário que seencontre não uma transgressão temática da norma, porém ainda que a infração percutana órbita jurídica do queixoso, causando-lhe um dano específico.18

Cogita a doutrina de distinguir a culpa, segundo o modo de proceder do agente,dizendo-se: culpa in vigilando, quando há uma falta no dever de velar ou umadesatenção de quem tinha a obrigação de observar; culpa in omittendo, quando o agentese abstém de realizar o que lhe impõe o dever ou é omisso no que lhe cabe fazer; culpain eligendo, quando há má escolha da pessoa a quem uma tarefa é confiada. Todas estasespécies de culpa são apenas modalidades que ela pode revestir, sem que a inscrição daconduta sob uma ou outra rubrica lhe altere o tratamento. Uma espécie, entretanto,merece ser destacada: é a culpa in contrahendo, dogmaticamente estruturada porRudolph von Ihering, e desenvolvida por numerosos escritores.19 Configura-se no fatode o agente, ao contratar, proceder de forma que a outra parte fique lesada com opróprio fato de realizar as negociações contratuais, como no caso de um doscontratantes já ter conhecimento do perecimento do objeto e, não obstante sonegar ainformação ao outro. A doutrina pacificamente aceita esta figura de culpa, mascontroverte na sua caracterização, opinando uns que é culpa contratual e outros que éextracontratual. A razão está com a segunda corrente, porque na espécie não se trata de

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violação da convenção, mas do dever genérico de não prejudicar, que o agentetransgride, conduzindo a outra parte ao dano, por uma violação da norma genérica e nãodo contrato. Ao induzir outrem a um ajuste que não poderia ter validade, procede comculpa aquiliana e responde pelos efeitos. Um aspecto peculiar é ainda a denominadaculpa pré-contratual, a qual pode assentar no fato de uma das partes proceder na faseantecedente ao contrato de forma a induzir a outra na crença de que as negociações irãoa bom termo, e depois, injustificadamente, cessar entendimentos, provocandoprejuízos.20

Marchando na rota evolutiva da responsabilidade civil e afinando com forte correntedoutrinária, o Código Civil de 2002 aceitou a culpa como fundamento da reparação,admitiu-a também independente dela, toda vez que a lei expressamente o mencione, e,ainda, quando o dano provém do risco criado em razão de uma atividade ou profissão.21

176. Indenização: dano patrimonial e dano moral

Descumprindo a obrigação, absoluta ou relativamente (v. nº 174, supra), nasce, emprimeiro lugar, para o credor a faculdade de obter o cumprimento coativo, isto é, oprovimento judicial, em virtude de que o devedor seja compelido a execução específica,entregando a res debita ou realizando o fato, ou desfazendo o de que se devia abster.Mas, não sendo isto possível, como freqüentemente não é, resta a outra hipótesesegundo a qual o inadimplemento converte a prestação no id quod interest, isto é, torna-se o devedor obrigado pela reparação de perdas e danos. A obrigação de pagar aindenização respectiva tanto pode resultar da apuração de uma culpa contratual comoaquiliana, e numa como noutra está subordinada a princípios comuns.

A) O fundamento primário da reparação está, como visto, no erro de conduta do agente,no seu procedimento contrário à predeterminação da norma, que condiz com a próprianoção de culpa ou dolo. Se o agente procede em termos contrários ao direito, desfere oprimeiro impulso, no rumo do estabelecimento do dever de reparar, que poderá serexcepcionalmente ilidido, mas que em princípio constitui o primeiro momento dasatisfação de perdas e interesses.

B) O segundo momento, ou o segundo elo dessa cadeia, é a ofensa a um bem jurídico. Éfreqüente a referência a este requisito como sendo a verificação de um "dano aopatrimônio". Não nos parece bem posta a expressão, porque a referência ao valorpatrimonial pode insinuar a exclusão do dever de reparar o atentado a outros valoresjurídicos, de cunho não patrimonial. A nós, que nos inscrevemos entre os que admitem aindenização do dano moral, não satisfaz plenamente a idéia de restrição àreparabilidade, que admitimos mais ampla. Daí sustentamos a apuração do segundorequisito com esta fórmula mais genérica, e mais elástica. Repitamos: ofensa a um bemjurídico.

C) Em terceiro lugar, cumpre estabelecer uma relação de causalidade entre aantijuridicidade da ação e o dano causado. Não basta que o agente cometa um erro deconduta e que o queixoso aponte um prejuízo. Torna-se indispensável a sua interligação,de molde a assentar-se ter havido o dano porque o agente procedeu contra direito.22

Uma vez verificados os pressupostos essenciais da determinação do dever de reparação,arma-se uma equação, em que se põe o montante da indenização como correlato do bem

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lesado. O que predomina nesta matéria é que a indenização do id quod interest não podeser fonte de enriquecimento, não se institui com o objetivo de proporcionar ao credoruma vantagem - de lucro capiendo -, porém, se subordina ontologicamente aofundamento de restabelecer o equilíbrio rompido pela prática do ato culposo, e destina-se a evitar o prejuízo, de damno vitando. Numa palavra, a indenização há decompreender a totalidade do dano, porém, limitar-se a ele, exclusivamente.23

Indenizar o prejuízo nem é o mesmo que restaurar o objeto da prestação originária, nemimplica necessariamente a conversão dele no seu equivalente pecuniário. Às vezes sim.Outras vezes, uma não exclui o outro, o que se dá sempre que o credor pode perseguir ares debita e mais as perdas e danos. Quando for possível, isto é, no caso de a prestaçãoainda ser viável, cabe ao credor persegui-la, e ao devedor executá-la, sem que lhesassista, em princípio, a conversão. Em tal caso, as perdas e danos podem ser postuladasjuntamente com a obrigação principal.24 O descumprimento, em si, não converte aobrigação em alternativa. Ao revés, o que resta in obligatione é a mesma prestaçãooriginária. Se o procedimento do devedor não a impossibilita, mas prejudica, gera para ocredor o direito de pedir a res debita e as perdas e danos. É preciso, todavia, esclarecer:jamais podem acumular-se a execução direta e as perdas e danos, se compensatórios; seé viável a execução específica, é lícito adicionar-lhe as perdas e danos moratórios.25

São as perdas e danos, portanto, o equivalente do prejuízo que o credor suportou, emrazão de ter o devedor faltado, total ou parcialmente, ou de maneira absoluta ou relativa,ao cumprimento do obrigado. Hão de expressar-se em uma soma de dinheiro, porqueeste é o denominador comum dos valores, e é nesta espécie que se estima odesequilíbrio sofrido pelo lesado. A este prejuízo, correspondente à perda de um valorpatrimonial, pecuniariamente determinado, costuma-se designar como dano matemáticoou dano concreto.26

Na sua apuração, há de levar-se em conta que o fato culposo privou o credor de umavantagem, deixando de lhe proporcionar um certo valor econômico, e também o privoude haver um certo benefício que a entrega oportuna da res debita lhe poderia granjear, eque também se inscreve na linha do dano. Como sua finalidade é restaurar o equilíbriorompido, seria insuficiente que o credor recebesse apenas a prestação em espécie, ou oseu equivalente pecuniário, porque assim estaria reintegrado no seu patrimônio tão-somente o que lhe faltou, em razão do dano sofrido, mas continuaria o destaquecorrespondente ao benefício que a prestação completa e oportuna lhe poderiaproporcionar. Não haveria, conseguintemente, o restabelecimento patrimonial no estadoem que ficaria, se o devedor tivesse cumprido a obrigação, e, ipso facto, não seriaindenização.

As perdas e danos compreendem, em conseqüência, a recomposição do prejuízocorrespondente ao que o credor efetivamente perdeu, e que as fontes denominamdamnum emergens. Mas para serem completas deverão abranger também o que ele tinhafundadas esperanças de auferir, e que razoavelmente deixou de lucrar, parcela designadacomo lucrum cessans, e que nós chamamos lucro cessante (Código Civil de 2002, art.402 27). Já a sentença de Paulo os abraçava na forma sintética: "Quantum mihi abest,quantumque lucrri potui."28

As perdas e danos não poderão ser arbitrários. Não pode o credor receber, a esse título,qualquer lucro hipotético. Somente lhe cabe, com fundamento na reparação, receber,

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como benefício de que o dano o privou, aquilo que efetivamente decorreu do fatoimputável, e os lucros cessantes por efeito direto e imediato do descumprimento daobrigação. Era lícito ao credor esperar que a execução da obrigação lhe proporcionasseum incremento patrimonial, conseqüente ao acrescentamento econômico que aprestação lhe traria. A inadimplência veio privá-lo, a uma só vez, deste acréscimo edaquele benefício. A reparação das perdas e danos abrangerá, então, a restauração doque o credor perdeu e a composição do que deixou razoavelmente de ganhar, apuradosegundo um juízo de probabilidade. Na indenização, envolve-se o prejuízo conseqüente,direta e imediatamente, do dano causado.29 Mas aquilo que exorbita do que seria oincremento resultante, direta e imediatamente, da obrigação descumprida não pode serconferido ao credor a título de indenização por perdas e danos, pois, se o fosse, traduzir-se-ia em oportunidade de enriquecimento, em vez de restabelecimento de equilíbrio.Não é, portanto, indenizável o chamado dano remoto, que seria conseqüência indiretado inadimplemento, envolvendo lucros cessantes para cuja efetiva configuraçãotivessem de concorrer outros fatores que não fosse apenas a execução a que o devedorfaltou, ainda que doloso o seu procedimento. Nota-se, na doutrina legal brasileira, atendência à simplificação dos extremos da responsabilidade. Com efeito, o Direitofrancês e os sistemas que o acompanham perdem-se no exame de sutilezas infindas, emtorno de questões que intrincam este já difícil problema da reparação do dano. Ali,gradua-se a responsabilidade da culpa para o dolo; debate-se a previsibilidade ouimprevisibilidade do evento. O nosso Direito, partindo da idéia da unidade da culpa esua conexão com o dano, vai dar na reparação dos prejuízos, da maneira mais ampla eabrangente do damnum emergens e do lucrum cessans, desde que direto e imediato, semcogitar se previsível ou imprevisível.30

Embora o princípio da reparação aponte como beneficiário o titular da indenização, àsvezes desborda deste para oferecer pretensão a terceiro, cujos direitos ou interessesforam ou tenham sido vulnerados. Karl Larenz lembra o caso do credor de alimentosvoltar-se contra aquele que causou dano de o devedor que os provia, privando-o daaptidão de prestá-los.31

No artigo 404, o Código Civil de 2002 32 destacou a prestação pecuniária. A razão estáem que as perdas e danos, segundo o disposto nos artigos anteriores, consistem naconversão da res debita em uma quantia em dinheiro. Consistindo, porém, a obrigaçãoem dinheiro, não há conversão a fazer. O ressarcimento do dano, neste caso, seráconstituído dos juros, que correspondem aos frutos civis, de que o credor ficou privadopelo inadimplemento do devedor. Se a obrigação for acompanhada de cláusula penal,acumulam-se os juros com a pena convencional.

O artigo faz alusão aos juros moratórios, isto é, aqueles que são devidos pela demora dodevedor no cumprimento do obrigado. Casos há, entretanto, em que são devidostambém juros compensatórios, por força de disposição legal ou por construçãopretoriana, conforme o caso ou circunstância.

Além dos juros, se se trata de dívida de valor, cabe a sua atualização, mediante critériosde aferição dentre os quais os índices de correção monetária.

O Código faz incluir na indenização as custas do processo, de que resulta a condenação.A elas, aditam-se os honorários de advogado,33 além da correção monetária.

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O parágrafo único do artigo 404 arma o juiz de poderes para agir por eqüidade. Esta,como justiça do caso dado, ou faculdade de conceder ou decidir fora dos termosestreitos da lei, permitirá ao julgador pesar as circunstâncias de cada caso, animado dedois elementos inspiradores: a ausência de cláusula penal e a insuficiência dos jurosmoratórios para cobertura do prejuízo do credor. O artigo não especifica, nem ao menosoferece elementos para estabelecer em que consiste a indenização complementar. Paraisto, pode valer-se de dados concretos, ou proceder sob inspiração de seu arbítrio debom varão - arbitrium boni viri. Não cabe, entretanto, ao juiz procederdiscricionariamente. Deverá valer-se tanto quanto possível dos elementos consagradosem lei e nos usos e costumes, inclusive judiciais. Dentre os critérios utilizáveis, estará acorreção monetária, que é aplicável às dívidas de valor, como as condenações judiciais,e bem assim os juros compensatórios.

Dano moral. Um dos pontos mais controvertidos na moderna sistemática civil é o quediz respeito ao dano moral e seu ressarcimento, talvez pelo fato de não haver o Direitoromano solucionado e sistematizado a matéria, de relevância muito mais acanhada nasingeleza daquela civilização do que na sociedade hodierna. Controvertido é o temaporque os escritores se colocam em campos adversos e, irredutivelmente, pelejam porsuas convicções. De um lado, aqueles que negam a ressarcibilidade (Pothier, Keller,Chironi), sob o fundamento de que a indenização é o ressarcimento de um prejuízo ereconstituição de um patrimônio, e isto não se dá com a reparação do dano moralpropriamente dito. De outro lado, outros atentam para que, a par do patrimônio emsentido técnico, o indivíduo seja titular de direitos integrantes de sua personalidade,como o que se refere à sua integridade física, sua liberdade, sua honorabilidade, os quaisnão podem ser impunemente atingidos. Os primeiros sustentam que a dor éinindenizável pecuniariamente e, por isto, não pode a vítima solicitar reparaçãoeconômica, para o dano causado, ao que seria correspondente aos bens jurídicos devalor inestimável. Vão mesmo ao extremo de achar imoral a idéia da reparação, que lhespareceria conter uma negação a sensibilidade, por permitir que se compense a perda deum filho ou a ofensa à honra com uma quantia em dinheiro. Os segundos eliminam aobjeção com a tese de que o titular do direito não comercia com a dor, mas tem afaculdade de obter uma reparação conseqüente à vulneração de um direito. Existe aindauma terceira corrente (Giorgi Dernburg), que se considera eclética, admitindo areparabilidade do dano moral - somente quando afeta a integridade do patrimônio. Osque assim pensam não chegam na verdade a formar uma corrente mista ou eclética. Elaintegra a primeira, pois que se acolhe a reparação do dano moral somente quandopercute no patrimônio, o que em verdade faz é negar a reparabilidade do dano moral, eafirmar a do patrimonial exclusivamente.

Em face das modernas tendências da nossa doutrina, força é convir que o pensamentohoje dominante é no sentido de se admitir a reparabilidade do dano moral,34 muitoembora a repercussão jurisprudencial não se possa dizer, na atualidade, muito ampla,senão prenunciadora de maior receptividade futura, tal como ocorreu em pura teoria,plano no qual a tendência crescente foi e tem sido no rumo amplificador.35

Assentando, então, como premissa, que o Direito brasileiro atual admite seja indenizadoo dano moral, tanto o originário de obrigação contratual quanto o decorrente da culpaaquiliana, passemos a fixar os extremos desta responsabilidade.

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A) Num primeiro grau, o Código de 1916 já assentava hipóteses casuísticas em que odano moral era reparável. Assim é no caso de a vítima sofrer ofensa corpórea quedeixasse lesão ou deformidade; no do ofendido ser mulher jovem e solteira, ainda capazde casar.36 Em situações como estas, o problema vem posto em equação pelo própriolegislador, que assenta a concessão de um pagamento à vítima, a título de reparaçãopelo dano sofrido, conscientemente desprezando a apuração se o ato lesivo atingiu o seupatrimônio, ou, melhor dito, cogitando da reparação sem dano patrimonial. É evidenteque não pode ser negada a responsabilidade onde a lei a define. A regra, nestes casos,seria a que o novo Código Civil italiano, art. 2.059, enunciou, mas sem a restrição alicontida.37

B) Num segundo plano, e aí é a vexata quaestio, cogitam os escritores, com poucasaprovações judiciais, de admitir que o dano moral, em tese, é indenizável. Ofundamento legal do princípio pode ser assentado na regra genérica do Código Civil,art. 76 e seu parágrafo, segundo o qual, para propor ou contestar uma ação, é suficienteo interesse moral (Clóvis Beviláqua), inciso que mais tarde iria integrar a sistemáticaprocessual (o Código Processual de 1973 reduziu a "interesse e legitimidade"). Esteargumento não é, porém, tão poderoso que convença os que se opõem à reparação pordano moral, porque já ao tempo da glosa se argumentava que o interesse moral bastavapara o ingresso em juízo, mas não era suficiente para justificar a condenação nas perdase danos.38

Partindo, entretanto, daí, ou seja, que a lei assentou em termos gerais o interesse moralcomo fundamento de pedir, e mais, que a idéia da reparação por dano moral ocorre emhipóteses várias e em numerosos dispositivos,39 a conclusão é de que o princípioencontra guarida em nosso Direito. É certo que nos faltava uma norma genérica, dentrodos princípios assentados no Código de 1916, segundo a qual, além da que for devidapelo prejuízo patrimonial, cabe reparação pelo dano moral.40 Nem por isto umainterpretação sistemática de nosso Direito positivo autorizava uma conclusão contrária.Além disso, a referência à "violação de um direito", no art. 159 do Código Civil, nãolimitava a reparação ao caso apenas de prejuízo material.

Acresce aos dispositivos mencionados o preceito do Código de Telecomunicações,autorizando explicitamente indenização por dano moral ao ofendido por calúnia,difamação ou injúria, cometidas por via publicitária fixada no mínimo de cinco e nomáximo de cem vezes o salário mínimo; e ainda no moderno Código de DireitosAutorais.

Num plano determinativo, e isolando-o de sutilezas e complexidades, que muitoconcorrem para embaraçar a matéria, é preciso assentar que o emprego da expressãodano moral se contrapõe com exatidão à outra, dano patrimonial, querendo dizer que éressarcível o prejuízo sofrido pela vítima, e tanto é reparável quando implica adiminuição ou não-incremento do patrimônio (dano patrimonial), quanto na hipótese emque não é este afetado, direta ou indiretamente (dano moral), sem a necessidade desubstituir por outra a designação aceita.41

Uma vez assentada a regra de que o dano moral é indenizável esbarra-se no problema dareparação em si mesma. Aqui, encontram alguns adversários um argumento concreto adizer que não deveria ser admitida, em razão de não ser a dor conversível emdinheiro.42 A questão, porém, não deve ser posta nestes termos, nem seria aceitável

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haver um tarifamento para os atos lesivos, como se fosse possível dizer que a uma talofensa corresponde um qual padrão pecuniário.

A idéia da reparação, no plano patrimonial, tem o valor de um correspectivo, e liga-se àprópria noção de patrimônio. Verificado que a conduta antijurídica do agente provocou-lhe uma diminuição, a indenização traz o sentido de restaurar, de restabelecer oequilíbrio, e de reintegrar-lhe a cota correspondente ao prejuízo. Para a fixação do valorda reparação do dano moral, não será esta a idéia-força. Não é assente na noção decontrapartida, pois que o prejuízo moral não é suscetível de avaliação em sentido estrito.E tão remoto deve ser o conceito de restabelecimento de valores que a jurisprudênciafrancesa tem sido às vezes informada pela tendência de considerar meramente simbólicaa reparação por dano moral, com a singela condenação do agente na quantia de umfranco.43 Não há, contudo, razão para que assim se proceda. Apagando doressarcimento do dano moral a influência da indenização, na acepção tradicional, comotécnica de afastar ou abolir o prejuízo, o que há de preponderar é um jogo duplo denoções: a) De um lado, a idéia de punição ao infrator, que não pode ofender em vão aesfera jurídica alheia; não se trata de imiscuir na reparação uma expressão meramentesimbólica, e, por esta razão, a sua condenação não pode deixar de considerar ascondições econômicas e sociais dele, bem como a gravidade da falta cometida, segundoum critério de aferição subjetivo; mas não vai aqui uma confusão entre responsabilidadepenal e civil, que bem se diversificam; a punição do ofensor envolve uma sanção denatureza econômica, em benefício da vítima, à qual se sujeita o que causou dano morala outrem por um erro de conduta. b) De outro lado proporcionar à vítima umacompensação pelo dano suportado, pondo-lhe o ofensor nas mãos uma soma que não éo pretium doloris, porém uma ensancha de reparação da afronta; mas reparar podetraduzir, num sentido mais amplo, a substituição por um equivalente, e este, que aquantia em dinheiro proporciona, representa-se pela possibilidade de obtenção desatisfações de toda espécie, como dizem Mazeaud e Mazeaud, tanto materiais quantointelectuais, e menos morais.44 c) A essas motivações acrescenta-se o gesto desolidariedade à vítima, que a sociedade lhe deve (Aguiar Dias, Da ResponsabilidadeCivil; Caio Mário da Silva Pereira, Responsabilidade Civil). Em doutrina,conseguintemente, hão de distinguir-se as duas figuras, da indenização por prejuízomaterial e da reparação do dano moral: a primeira é reintegração pecuniária ouressarcimento stricto sensu, ao passo que a segunda é sanção civil direta ao ofensor oureparação da ofensa, e, por isto mesmo, liquida-se na proporção da lesão sofrida.45 d)Em terceiro lugar, a reparação por dano moral envolve a idéia de "solidariedade" àvítima, em razão da ofensa que sofreu a um bem jurídico lesado pelo agente.

E, se em qualquer caso se dá à vítima uma reparação de damno vitando, e não de lucrocapiendo, mais que nunca há de estar presente a preocupação de conter a reparaçãodentro do razoável, para que jamais se converta em fonte de enriquecimento.46

Na elaboração de nosso Anteprojeto de Código de Obrigações, tivemos ensejo deconsignar em preceito os princípios doutrinários que defendemos, assentando, no art.916, que o dano moral será ressarcido, independentemente do prejuízo material. E oProjeto consignou norma, art. 856.

O argumento contrário à reparação do dano moral, fundado na inexistência depreceituação genérica, cai por terra em face do disposto no art. 5º, incisos V e X, da

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Constituição Federal de 1988 (Caio Mário da Silva Pereira, Responsabilidade Civil, nº48).

177. Inimputabilidade: caso fortuito e força maior. Eliminação do risco

Como já vimos, é pressuposto essencial da reparação, em regra, a imputabilidade dafalta, contratual ou extracontratual, ao agente. A contrario sensu , faltando aimputabilidade, descabe indenização. Se, então, a prestação se impossibilita, não pelofato do devedor, mas por imposição de acontecimento estranho ao seu poder, extingue-se a obrigação, sem que caiba ao credor ressarcimento. O Direito romano, na sua lógicaimpecável, já figurava a liberação do devedor, admitindo a exoneração quando odescumprimento provinha do fortuito ou do acaso, exprimindo-o sucintamente, emtermos que até hoje se repetem: casus a nullo praestantur.

Os romanistas, contudo, travam-se de razões que vêm até os civilistas, divididos emdois planos, no tocante à sua caracterização jurídica. De um lado, os que compõem acorrente subjetivista, encabeçada por Goldschmidt, justificam a exoneração do devedorà vista dos extremos de sua diligência, confundindo a força maior com a ausência deculpa. Esta escola peca do defeito de conspícua extremação: é demasiado rigorosa aodeterminar que somente começa a vis maior onde acaba a culpa; e é excessivamenteperigosa, porque admite a oscilação do critério judicante em função das aptidõesindividuais do devedor. De outro lado, planta-se a escola objetivista, liderada por Exner,assentando a imputabilidade como regra e concedendo a liberação do devedor somentena hipótese de surgir um evento cuja fatalidade se evidencie ao primeiro surto ocular,obstando a execução e afastando a idéia de responsabilidade. Esta corrente é forte parasobrepor-se à primeira, pecando entretanto da falha de abandonar as circunstânciaspessoais, inequivocamente ponderáveis na apuração da responsabilidade do agente.47

Consagrando o nosso Direito o princípio da exoneração pela inimputabilidade,48enuncia-se em tese a irresponsabilidade do devedor pelos prejuízos, quando resultam decaso fortuito ou de força maior. Não distingue a lei a vis maior do casus, e assimprocede avisadamente, pois que nem a doutrina moderna nem as fontes clássicas têmoperado uma diversificação bastante nítida de uma e outra figura. Costuma-se dizer queo caso fortuito é o acontecimento natural, ou o evento derivado da força da natureza, ouo fato das coisas, como o raio do céu, a inundação, o terremoto. E, maisparticularmente, conceitua-se a força maior como o damnum que é originado do fato deoutrem, como a invasão do território, a guerra, a revolução, o ato emanado daautoridade (factum principis), a desapropriação, o furto etc.49 Outras distinções, e nãopoucas, apontam-se ainda, sem contudo oferecerem gabarito determinante e hábil aefetuar a diferenciação.50 Preferível será mesmo, ainda com a ressalva de que podehaver um critério distintivo abstrato, admitir que na prática os dois termoscorrespondem a um só conceito (Colmo), unitariamente considerado no seu significadonegativo da imputabilidade.51

Sem descer a uma distinção que destaque os extremos do caso fortuito e da força maior,o legislador de 2002 os reuniu como uma causa idêntica de exoneração do devedor eresolução absoluta da obrigação, o que para o Direito suíço já foi igualmente notado.52Conceituou-os em conjunto como o fato necessário, cujos efeitos não era possível evitarou impedir,53 conceito que bem se ajusta à noção doutrinária, abrangente de todoevento não imputável, que obsta ao cumprimento da obrigação sem culpa do devedor.54

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Aprofundando na dissecção do princípio, a doutrina sustenta que o legislador pátriofiliou-se ao conceito objetivista.55 Basta, pois, apurar os requisitos genéricos: a)Necessariedade. Não é qualquer acontecimento, por mais grave e ponderável, bastantepara liberar o devedor, porém, aquele que impossibilita o cumprimento da obrigação. Seo devedor não pode prestar por uma razão pessoal, ainda que relevante, nem por istofica exonerado, de vez que estava adstrito ao cumprimento e tinha de tudo prever e atudo prover, para realizar a prestação. Se esta se dificulta ou se torna excessivamenteonerosa, não há força maior ou caso fortuito. Para que se ache exonerado, éindispensável que o obstáculo seja estranho ao seu poder, e a ele seja imposto peloacontecimento natural ou pelo fato de terceiro, de modo a constituir uma barreiraintransponível à execução da obrigação. b) Inevitabilidade. Mas não basta que à suavontade ou à sua diligência se anteponha a força do evento extraordinário. Requer-se,ainda, que não haja meios de evitar ou de impedir os seus efeitos, e estes interfiram coma execução do obrigado. Muito freqüente é, ainda, encontrar-se, entre os doutrinadores,referência à imprevisibilidade do acontecimento, como termo de sua extremação. Nãonos parece cabível a exigência, porque, mesmo previsível o evento, se surgiu comoforça indomável e inarredável, e obstou ao cumprimento da obrigação, o devedor nãoresponde pelo prejuízo. Às vezes a imprevisibilidade determina a inevitabilidade, e,então, compõe a etiologia desta. O que não há é mister de ser destacado como elementode sua constituição.56

Na elaboração do Anteprojeto, alinhamos entre as escusativas da responsabilidade aforça maior e o fortuito, abstendo-nos de defini-los, e ressalvando que deixam de eximiro agente nos casos previstos em lei, salvo passada a inevitabilidade. Assim é que odevedor em mora responde pelo fortuito, salvo provando que o dano ocorreria ainda quecumprisse em tempo.

Como se vê, da formulação de seus contornos e da análise de seus extremos não se podemunir o julgador de um padrão abstrato a que ajustar o fato, para decretar a exoneraçãodo devedor. Ao contrário, cada hipótese terá de ser ponderada segundo as circunstânciasque lhe são peculiares, e em cada uma ter-se-á de examinar a ocorrência do obstáculonecessário e inevitável à execução do devido. Pode até acontecer que o mesmo evento,que facultou a um devedor o cumprimento, para outro já se erija com aquelascaracterísticas de impedir a prestação. Não vemos aí a instituição de um novo requisitona etiologia da vis maior, senão a determinação de que os seus elementos sejamapurados sem subordinação a um critério inflexível. Ao revés, elástico deve ser. Se ainevitabilidade fosse absoluta, então o fortuito não precisaria de apuração. Por serrelativa, e por admitir que o que um devedor tem força para vencer outro não domina, éque o critério de apuração dos requisitos obedece a um confronto com as circunstânciasespeciais de cada caso. Daí admitir-se, mais modernamente, a necessidade de aliar àconcepção objetivista um certo tempero subjetivo, resultando a concepção mista defortuito, sustentado com galhardia por boa sorte de juristas.57

Efeitos. De regra exime-se o devedor de cumprir a obrigação ou de responder pelosprejuízos, uma vez demonstrado que a inexecução se deveu à verificação do casofortuito ou força maior - casus vel damnum fatale. Apurada a ocorrência doacontecimento necessário e inevitável, à vista das circunstâncias particulares à espécie,desaparece, para o credor, o direito a qualquer indenização. Esta ausência de direito, queos romanos apelidaram de periculum e os modernos denominam riscos e perigos,

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envolve os casos em que a prestação não pode ser cumprida, objetiva ousubjetivamente.58

Mas nem sempre a vis divina escusa a falta de prestação. Em algumas hipóteses vigora aresponsabilidade, não obstante a interferência do evento estranho, ainda que revestidodos seus extremos conceituais. a) Convenção. As partes podem ajustar que o devedorresponde pelo cumprimento, ainda no caso de força maior ou caso fortuito o queprevalecerá em face da declaração expressa, já que não é de se presumir umagravamento da responsabilidade. b) Mora. Estando o devedor em mora, cujo efeito éperpetuar a obrigação e sujeitar o devedor às conseqüências do inadimplemento, ocorrea responsabilidade pelo casus ou vis maior, salvo se demonstrar que não teve culpa noatraso ou que o dano sobreviria, mesmo se a obrigação fosse oportunamentedesempenhada (v. nº 172, supra). c) No caso de ter o mandatário, contra a proibiçãoformal do mandante, substabelecido os poderes em um terceiro, responde pelo danocausado sob a gerência deste, mesmo decorrente do fortuito, salvo provando que o danoteria sobrevindo ainda que não tivesse realizado a substituição do representante.59 d)Na gestão de negócios, quando o gestor fizer operações arriscadas, ainda que o danocostumasse fazê-las, ou quando preterir interesses deste por amor aos seus. e) Natradição de coisas que se vendem contando, marcando ou assinalando, quando já postasà disposição do comprador.60 f) No caso dos riscos profissionais previstos em lei.61

Se o acontecimento extraordinário não trouxer a impossibilidade total da prestação,eximir-se-á o devedor da parte atingida ou se forrará da mora, se apenas tiver comoconseqüência o atraso na sua execução. Mas não poderá invocar o fortuito paraexoneração absoluta, beneficiando-se fora das marcas.

Adotado, no Anteprojeto, o princípio da responsabilidade pelo risco criado, admitiu aconseqüente escusativa, desde que seja provada a adoção de todas as medidas idôneas aevitá-lo, e, desta forma, o excesso que se critica na doutrina desaparece no preceito.

178. Exoneração convencional: cláusula de não indenizar

Acabamos de ver que a inimputabilidade do dano ao agente, em razão do fortuito, gera aconseqüência negativa: o lesado não pode endereçar-lhe o pedido de reparação. Agoravemos um outro aspecto da irresponsabilidade que não tem com a força maior e ofortuito parentesco ontológico, mas que se lhes aproxima no efeito não indenizatório.Referimo-nos à convenção pela qual se exime o responsável do dever de reparação, ouseja, à cláusula de não indenizar. Vai prender-se, originariamente, à vontade declarada.Da mesma forma que a cláusula penal implica a prévia limitação do ressarcimento anteo inadimplemento do devedor; ou que o seguro de responsabilidade o exoneratransferindo ao segurador o encargo, idéias que são pelos especialistas aproximadas àcláusula de não indenizar62 - o Direito moderno, que presencia o plenodesenvolvimento do princípio da responsabilidade civil, coordena e aprova um sistemade contrapesos à obrigatoriedade de reparação, mediante a aceitação do afastamentoconvencional daquele dever. Antecipadamente, aquele que tem razões de prever, na suaatividade ou nos negócios jurídicos que realiza, o surgimento eventual do dever dereparação estatui a limitação ou a eliminação de sua responsabilidade, por via de umajuste que é pactuado com as pessoas com quem trata, e por estas aceito. Uma vezconvencionado, equipara-se à renúncia do direito de obter reparação, como a elaequivale qualquer pacto de non petendo in perpetuum.63

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É preciso, de plano, ponderar na legitimidade deste ajuste. Para isto atingirmos, bastavoltarmos a atenção para hipóteses em que o resultado idêntico ou aproximado éatingido. Quando as partes pactuam uma cláusula penal, prefixam as perdas e danos.Quando uma das partes dá à outra arras, ajustando-lhes o efeito penitencial, estipula-seuma convenção acessória real, que permite a qualquer dos contratantes a retrataçãomediante a perda do sinal ou a sua devolução em dobro. Quando há seguro, oresponsável pelo ressarcimento, não obstante sê-lo, transfere para o segurador aobrigação, e, desta sorte, sem exonerar-se dela, fica forro do pagamento. Nada impede,por outro lado, que, após a ocorrência do dano, e mesmo à vista da liquidação de seumontante, o credor abra mão dele ou de parte dele, por uma transação que previne ouencerra um litígio. Se tudo isto é lícito, viável e prático, óbice não pode ser levantado aque a convenção afaste a responsabilidade, o que, na expressão feliz de Aguiar Dias,não passa de uma transferência dela, que passa a cargo do próprio lesado. Neste ponto,que é relevante, reside a sua natureza jurídica: não tem a convenção o efeito de suprimira responsabilidade, o que em verdade não se poderia fazer, porém o de afastar aobrigação dela decorrente.64 Pela convenção, o devedor, que era responsável e quecontinua responsável, exime-se de ressarcir o dano causado.

No seu mecanismo, a convenção funciona como acessória, nunca como obrigaçãoprincipal. Pressupõe uma obrigação, legal ou convencional, cujo inadimplemento gera aresponsabilidade. E para abolir os efeitos desta, vem a cláusula exoneradora de suasconseqüências, apelidada por metonímia, e com impropriedade, cláusula de não-responsabilidade. Pode ser adjeta a um contrato ou pode aderir a uma declaraçãounilateral de vontade. No primeiro caso, seu campo mais freqüente é o contrato deadesão: o policitante insere-a ao lado de outras cláusulas contratuais, e, uma vezfirmado o ajuste, pela adesão do oblato, vigora juntamente com as demais a excludenteda indenização. No segundo caso, o agente, ao fazer a declaração de vontadeobrigatória, ressalva a escusativa de seu dever de reparação por danos ocasionais.

Em qualquer caso, a declaração volitiva da não-indenização encontra fundamento namesma razão determinante da força cogente das obrigações convencionais. E, enquantopermanecer neste estado, e dentro destes limites, é lícita, pois legítimo será que umcontrato, regulador de interesses pecuniários entre particulares, desobrigue o devedordas conseqüências de sua responsabilidade, sem lesão à ordem pública.65

Há, todavia, forte controvérsia na doutrina a respeito de sua validade, oscilando osescritores desde a sustentação de sua ineficácia, sob fundamento de que sempre ofendeo princípio proibitivo de lesão ao patrimônio alheio, contido na velha regra neminemlaedere, que é condicionante do exercício de todos os direitos, até o extremo oposto,onde se situam aqueles que, liberalmente, a admitem em todos os casos em que oprincípio da autonomia da vontade vigora. Pode, conseguintemente, vir ajustada sempreque seja permitido avençar outro qualquer contrato.66 Assim sendo, em vez de precisaro seu campo de ação e determinar quando é admissível, torna-se mais útil estabelecê-lopor exclusão, focalizando-se a zona em que não deve ter acolhida, apontando proibiçõesque se anteponham à sua eficácia, e obstáculos jurídicos ao seu ajuste.

De começo, é afastada se tiver por objeto a eliminação das conseqüências do dolo doagente. Neste particular, já o Direito romano condenava o conventio de dolo non

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praestando,67 por entendê-la contra bonam fidem, contraque bonos mores, e o Direitomoderno, mesmo na fala dos mais liberais, mantém o interdito.68

Afastada será também sempre que trouxer atentado à ordem pública, o que, aliás, nãoevade das normas gerais, pois que no equilíbrio de forças em que medram asconvenções cessa a autonomia da vontade, onde começa a imposição da ordem pública.Assim, podam-se os excessos daquela, na mesma medida em que o Direito modernoprocura, com a intervenção desta, coibir os exageros do individualismo.

E, finalmente, sendo uma cláusula convencional, não tem cabida em quaisquer outroscasos em que não seja permitida a criação do negócio jurídico contratual.69

Pode-se acrescentar que, embora inexista em nossa sistemática regra semelhante àcontida no art. 1.255 do Código Civil espanhol, princípio análogo a este deve serconsiderado em vigor, para repulsa da cláusula em todos os casos em que afronte direitoexpresso.

Ponto de grande importância na análise de sua estrutura é o que diz respeito à suaaceitação e já foi objeto de agudo comentário de Aguiar Dias. Critica a objeçãolevantada por aqueles que supõem possa ter guarida na falta de aceitação do credor,como posição enganosa, e fruto de um desvio de perspectiva. O monografista pátriomuito bem o esclarece, acentuando a sua natureza de cláusula contratual. O equívoco,acrescenta, está no fato de suporem ausência de acordo, particularmente porque écomum vir adjeta a contratos de adesão, parecendo antes imposta do que ajustada.Acontece, entretanto, que, no mecanismo mesmo deste contrato (adesão), tudo se passade igual maneira, nascendo ele da justaposição, às vezes momentânea, da vontade deaceitação ao esquema deduzido previamente pelo proponente.70 Adjeta a um contratodesta espécie, a cláusula não pode ser admitida quando violadora da vontade doaceitante, ou revestindo a forma de uma imposição a ele dirigida, senão que prevalece,se efetivamente aceita, ou se inequivocamente do seu conhecimento, como discutida eaceita deve ser, sob pena de invalidade, em todo outro contrato. Seria, aliás, injurídicoque aqueles que não têm a liberdade de deixar de contratar, por serem constrangidospelas circunstâncias à aceitação do serviço, fossem tratados como aceitantes de umaconvenção contrária aos seus interesses, determinada por imposição, e tartufamenteinterpretada como de livre aceitação, sob fundamento de que o serviço foi livrementeaceito.71 O intérprete há de ter presente que a cláusula não-indenizatória contém em seubojo uma renúncia, e que esta jamais se presume.72

Uma vez que reúna os requisitos de eficácia, a cláusula é válida, e por si só opera comoexcludente dos efeitos da responsabilidade do devedor.

Se é nula, a doutrina aconselha uma distinção: quando a cláusula adere por tal arte aonegócio que vem a formar com ele um todo incindível, admitindo a interpretação de queum não se realizaria sem a outra, a ineficácia daquela atinge a validade deste. Mas, aorevés, se a hermenêutica da vontade autoriza concluir que se justapõe ao negócio comcaráter acessório e depois se invalida, cai sem deixar mossa na obrigação a que adere,pela aplicação da regra geral de que o perecimento do acessório deixa subsistir oprincipal, e o seu efeito não o contagia: vitiatur sed non vitiat. A recíproca também é agenérica: extingue-se como acessória, se a obrigação principal, por qualquer motivo,vem a invalidar-se.73

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Os seus efeitos consistem no afastamento da obrigação conseqüente ao ato danoso. Nãocontém apenas uma inversão do onus probandi.74 Ao contrário, reconhece-se-lhe umaconseqüência específica, qual seja a de atuar, dentro do campo de sua aplicação, e noslimites de sua eficácia, como excludente da obrigação de reparar.75 Naqueles casos emque o dever de ressarcimento decorre naturalmente da verificação de culpa, a cláusulade não indenizar forra o devedor de suas conseqüências e elimina a indenização. Mas,dadas as limitações que encontra em sua aplicação, não se pode dizer que possa tergrande importância prática.

Não podíamos omitir, no Anteprojeto de Código de Obrigações, o tratamento destaescusativa de ressarcimento, já que ocorre com freqüência no trato dos negócios. Delacogitamos, estabelecendo (art. 924) que prevalecerá se for bilateralmente ajustada e nãocontratar lei expressa, a ordem pública e os bons costumes. Descabe, igualmente, dedolo non praestando, isto é, quando tiver por objeto eximir o agente dos efeitos do dolocom que se haja conduzido, e é ineficaz para liberá-lo da responsabilidadeextracontratual.

178-A. Arras

A colocação do instituto das arras no novo Código não é feliz. Alguns sistemasconsideram-nas ligadas a um contrato, especificamente. O Código Civil de 1916disciplinava-as na parte geral dos contratos, e assim fazia o Projeto de Código deObrigações de 1965, não obstante o art. 417 fazer referência expressa a que são dadaspor ocasião da conclusão do contrato.

Com origem no direito de família, e ligadas ao contrato esponsalício, penetrou nodireito obrigacional, com características bem definidas. Consideram-se uma convençãoacessória real, com a finalidade de assegurar a conclusão do contrato. Este efeitoconfirmatório vinha expresso no art. 1.094 do Código Civil de 1916. O atual dispensou-se de mencioná-lo (Código Civil de 2002, art. 417 76), mas nem por isto deixa de ser danatureza das arras ou sinal, em face de lhe atribuir o art. 420 o direito dearrependimento, em caráter opcional.

Dadas as arras, considera-se assegurada a conclusão do contrato. Distinguem-se dacláusula penal, pelo fato de ser convenção real, no sentido de que um dos contratantesentrega desde logo ao outro uma importância em dinheiro ou uma outra coisa móvel, aopasso que a cláusula penal consiste numa convenção acessória, pela qual a parteinfratora pagará à outra o valor estipulado.

Duas hipóteses prevê o artigo para o caso de execução do contrato. No primeiro caso,considera que o contratante deu ao outro uma coisa diversa do objeto do contratoprincipal. Executado ele, cabe ao que a recebeu restituí-la a quem a deu. No segundo,sendo as arras do mesmo gênero da prestação principal, ou com ela guardando relaçãode fungibilidade, consideram-se as arras princípio de pagamento, e, para este fim, sãocomputadas na prestação devida.

Cogita o artigo 418 do Código Civil de 2002 das arras confirmatórias,77 que sedefiniam no Direito Romano como dadas em sinal do consentimento: arrha quae insignum consensus interpositi data. O seu efeito é previsto no artigo, para as hipóteses de

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inexecução da parte de quem as deu, como daquele que as recebeu. Se o que deu o sinalcausar voluntariamente a não-realização do contrato, ensejará à outra parte considerá-loresolvido, retendo-o. Vale dizer, o inadimplente perde-o em favor do contratanteinocente. Reversamente, se a inexecução for de quem recebeu as arras, cabe ao outrocontratante a faculdade de considerar o contrato por desfeito, sujeitando-se o que asrecebeu à devolução em dobro, isto é, restituição do que recebeu, mais outro tanto.

Ocorrendo a impossibilidade sem culpa, não pode qualquer das partes ser punida. O querecebeu as arras restitui-as, simplesmente, porque não pode reter o recebido, sem quecom isto se enriqueça indevidamente.

Entre os nossos civilistas era acesa a controvérsia se, além das arras, ainda seriamdevidas as perdas e danos. Havia os que o não admitiam, os que consideravam possívela acumulação, e a tendência jurisprudencial era no sentido de que seria lícitaindenização além das arras, na hipótese de estipulação das partes. O novo Código pôstermo às dúvidas, tal como já constava do Projeto de Código de Obrigações de 1965,placitando a acumulação.

Na inexecução do contrato, tem a parte inocente a alternativa de resolver o contrato, ouexigir a sua execução (Código Civil de 2002, art. 419 78). Em qualquer caso, poderáacumular o sinal com o ressarcimento do prejuízo. Se optar pela resolução do negócio,pode pedir indenização, não obstante as arras, uma vez provando ser o prejuízo maiordo que o valor delas. Nunca, porém, diminuir, porque constituem o mínimo doressarcimento. Se preferir a execução do contrato, pode pedi-la acumulando-as comperdas e danos. Neste caso, funcionam as arras como o mínimo da indenização.

Cuida o artigo 420 do novo Código das arras penitenciais (arrha poenitentialis),79 queo Direito Romano considerava como pertencente ao direito de arrependimento (arrhaquae ad ius poenitendi peatinet). Com esta finalidade, liga-se-lhe o efeito indenizatório.É nesta função que o sinal corresponde, em princípio, à cláusula penal, da qual sedistingue em dois pontos: o primeiro por ser convenção acessória real, que se cumprecom a entrega efetiva e prévia da quantia ou coisa; o segundo, por não admitirindenização complementar, que a cláusula penal permite acumular.

A arra penitencial deve ser objeto de estipulação. Na falta desta última, prevalece ocaráter confirmatório. Avençado o direito de arrependimento, o valor das arras é aestimativa das perdas e danos. Se arrependido for quem as deu, perde-as em favor dooutro contratante. Se quem as recebeu, restitui-as em dobro, isto é, devolve as arrasrecebidas, e mais o equivalente.

Tendo o Código admitido que se acumule a indenização com as arras confirmatórias,entendeu de bom alvitre apartar desde logo qualquer dúvida, recusando indenizaçãosuplementar no caso das arras penitenciais.

Capítulo XXXVI - Transferência das Obrigações

Sumário: 179. Cessão de crédito: conceito e natureza. 180. Validade dacessão: entre as partes e em relação a terceiros. 181. Responsabilidade docedente. 182. Efeitos da cessão: quanto ao devedor e ao cessionário. 183.Assunção de débito.

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Bibliografia: Ruggiero e Maroi, Istituzioni di Diritto Privato, § 133;Serpa Lopes, Curso, II, nºs 380 e segs.; Biondo Biondi, in Nuovo DigestoItaliano, vb. "Cessione di Crediti e di Altri Diritti"; Gaudemet, ThéorieGénérale des Obligations, págs. 449 e segs.; Giorgio Giorgi, TeoriaGenerale delle Obbligazioni, VI, nºs 50 e segs.; Lacerda de Almeida,Obrigações, § 13 e nota D; Hector Lafaille, Tratado, Obligaciones, I, nº300; M. I. Carvalho de Mendonça, Doutrina e Prática das Obrigações,II, nºs 496 e segs.; Andreas von Tuhr, Obligaciones, II, págs. 285 e segs.;Trabucchi, Istituzioni, nº 252; De Page, Traité Élémentaire de DroitCivil, III, 384, e IV, 372; Enneccerus, Kipp e Wolff, Tratado,Obligaciones, I, §§ 78 e segs.; Karl Larenz, Derecho de Obligaciones, I,págs. 452 e segs.; Alfredo Colmo, Obligaciones, nºs 1.022 e segs.;Mazeaud e Mazeaud, Leçons, II, nºs 1.253 e segs.; Ludovico Barassi,Teoria Generale delle Obligazioni, I, nºs 86 e segs.; Orlando Gomes,Obrigações, nºs 116 e segs.; Molitor, Obligations, II, págs. 632 e segs.;Luís Roldão de Freitas Gomes, Da Assunção de Dívida e sua EstruturaNegocial, Ed. Liber Juris, Rio, 1982.

179. Cessão de crédito: conceito e natureza

Chama-se cessão de crédito o negócio jurídico em virtude do qual o credor transfere aoutrem a sua qualidade creditória contra o devedor, recebendo o cessionário o direitorespectivo, com todos os acessórios e todas as garantias. É uma alteração subjetiva daobrigação, indiretamente realizada, porque se completa por via de uma transladação daforça obrigatória, de um sujeito ativo para outro sujeito ativo, mantendo-se em vigor ovinculum iuris originário. Difere da novação e do pagamento com sub-rogação (v. nºs

162 e 159, supra), em que não opera a extinção da obrigação, mas, ao revés, permaneceesta viva e eficaz. Apenas a soma dos poderes e das faculdades inerentes à razãocreditória, sem modificação no conteúdo ou natureza da obligatio, desloca-se da pessoado cedente para a daquele que lhe ocupa o lugar na relação obrigacional.

O instituto recebeu a sua construção dogmática mais precisa no Direito moderno, de vezque o romano não o havia estruturado com perfeição. Razão disto era o caráterdemasiadamente personalista da obrigação (a que por mais de uma vez nos temosreferido), que se mostrava incompatível com a transferência de um dos termos daobrigação e o exercício dos poderes respectivos, por outrem que não o seu titular.Primitivamente, a obrigação era totalmente intransmissível. Se ao dominus era lícitotransferir a propriedade, e neste caso havia o investimento de outro no complexojurídico resultante do direito dominial, o que permite aceitar que o romano compreendiaa translação de poderes, ao credor não era permitido investir alguém na titularidade deseu crédito. Somente mais tarde foi que se tolerou a mutação do credor, e mesmo assimatravés de um complexo e indireto processo, em que aliás os romanos eram férteis.

O mecanismo da cessão de crédito, quando o Direito romano a admitiu na suasistemática, pela mesma razão do personalismo obrigacional, era bem diferente do atual.Não sendo possível transferir a título particular o direito de crédito em si, outorgava ocredor, àquele a quem pretendia cedê-lo, poderes de mandatário, e, fazendo-o seuprocurador, com a cláusula in rem suam, habilitava-o a exercer direitos de credor eguardar para si, como dominus litis, as vantagens e quantias recebidas. Somente mais

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tarde foi que, naquele direito, imaginou-se uma fórmula ligeiramente simplificada decessio, através de separação entre o crédito e a ação a ele competente (actio utilis),operando-se, então, não propriamente a transferência do primeiro, mas a cessão dasegunda, conferida conseqüentemente ao cessionário. Destarte, exercendo-a este,perseguia os benefícios da relação creditória, e assim lograva quase que inteiramente osefeitos de uma cessão integral do próprio crédito.1

Esta técnica adotada no Direito romano, ou esta processualística da cessão de créditopor via de transferência da ação, foi observada nos textos romanos e sistematizada porDonellus, e é por isto que se diz ser o autor do De iure civili o ponto de partida para amoderna dogmática do instituto.2

Por influência do direito romano, alguns sistemas jurídicos modernos não souberamencarar o negócio jurídico da cessão de crédito com a autonomia que sua freqüenteatualização exige. No direito brasileiro, porém, a evolução das idéias conduziu-nos auma posição totalmente viva e atual. Por muito tempo havia perdurado a concepção daincessibilidade e no século passado, quando os nossos juristas ao assunto se referiam,ainda era para conceituar o cessionário como um procurador do cedente, procurator inrem suam, que defendia os seus interesses nomine alieno, isto é, na qualidade derepresentante do cedente.3 Mais tarde, a concepção mudou. Foi reconhecida aoadquirente a qualidade de titular de um direito, embora em caráter potencial, e só depoisfoi que se caracterizou a transferência como definitiva.4 Finalmente, desvencilhamo-nosdas reminiscências e velharias históricas, como das injunções da sistemática do institutoem outras legislações, elaborando a sua normação com singeleza e precisão. A suasituação topográfica mesma, no Código Civil de 1916, já foi bem a mostra de suaconfiguração dogmática. Em vez de proceder como o Código francês ou o italiano de1865, que cuidavam da cessão de crédito como derivada apenas ex venditionis causa, epor isto têm merecido a crítica da boa doutrina,5 o brasileiro traçou a sua normaçãocomo instituto autônomo, tendo em vista a sua natureza intrínseca de transferência daobrigação, e por isto mesmo colocou-a no fecho da parte geral das obrigações, antes dadisciplina dos contratos. Ali cogita da cessão voluntária, que é objeto de tratamento nopresente capítulo. Fica, por conseguinte, à margem a chamada cessão necessária oulegal a que o Código Civil de 1916 faz referência.6 Com efeito, pode surgir mutaçãosubjetiva da obrigação em virtude de disposição legal ou de sentença judicial, como nocaso de transferência dos acessórios em conseqüência da trasladação do principal.Alguns autores mencionam como cessão necessária a sub-rogação legal referida no art.346, na qual enxergamos, todavia, nítidos elementos diferenciais relativamente à cessãono caráter extintivo da primitiva relação obrigacional. Como cessão judicial, aponta-se aadjudicação no juízo divisório, a assinação ao credor de um crédito do devedor, acondenação supletiva da declaração da cessão de quem tinha obrigação de fazê-la.7

Na elaboração do Anteprojeto de Código de Obrigações, inserimos a transferência daobrigação, nos seus dois aspectos de cessão de crédito e assunção de débito, na ParteGeral, arts. 160 e segs. O Código Civil de 2002 disciplina os institutos logo após o títuloque cuida das modalidades das obrigações.

Segundo o conceito hodierno, a cessão de crédito é tratada como negócio jurídicoabstrato (Larenz, von Tuhr), que se completa independentemente da indagação de suacausa. Pode-se, entre nós, defini-la como negócio jurídico em virtude do qual o credortransfere a outrem a sua qualidade creditória, com todos os acessórios e garantias, salvo

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disposição em contrário. Tanto pode ser esta a venda como a doação. Até mesmo adeixa testamentária. Em qualquer caso, é sempre distinta do negócio jurídico que aoriginou. É, por sua vez, um ato jurídico, não criador, acrescenta-se, mas meramentetransmissor da titularidade do crédito, no qual ressalta a substituição do primitivo credorpelo seu atual adquirente, enquanto subsiste objetivamente inalterado.8

Tendo em vista todos estes fatores, admite-se, em primeira classificação, que a cessãode crédito pode ser onerosa ou gratuita, conforme o cedente a realize mediante umacontraprestação do cessionário ou sem que haja qualquer correspectivo. Pode ainda servoluntária ou necessária. Diz-se voluntária a que se origina da manifestação de vontadedos interessados, espontânea e livre. É necessária ou legal, conforme acima referido,quando deriva da imposição da lei. E, ainda, judicial, se ocorre por força de sentença. Epode, finalmente, dar-se a cessão pro soluto ou pro solvendo, conforme o cedentetransfira o seu crédito em solução de uma obrigação preexistente, ficando delaexonerado; ou subsista aquela, sem a quitação do cessionário, coexistindo a obrigaçãocedida e a primitiva (v. nºs 154 e 161, supra).

Por via de regra, o credor sempre pode transferir o seu crédito (Código Civil de 2002,art. 286 9), pois em princípio todos são suscetíveis de mutação, como qualquerelemento integrativo do patrimônio.10 Por exceção, e somente por exceção, será defesa.As proibições ou decorrem da natureza da obrigação ou da vontade da lei ou daconvenção entre as partes. Pela própria natureza, não podem ser objeto de cessão oscréditos acessórios, enquanto tais, sem a transferência do principal, também aqueles quederivam de obrigações personalíssimas; ou quando não seja possível fazer efetiva aprestação ao cessionário sem alteração de seu conteúdo; ou ainda quando a pessoa docredor é levada em consideração exclusiva para a constituição do vínculo.11 De outrolado, a lei interdiz a determinadas pessoas a aquisição de bens de outras, e embora taisprincípios sejam expressos no tocante à compra e venda,12 aplicam-se à cessão, que éuma forma de aquisição, e pode efetuar-se ex venditionis causa. Outro campo, em quevigoram restrições à cessão, é o Direito Administrativo, no qual o legislador estabeleceproibições a benefício da administração pública. Nos casos lembrados e em outros mais,a cessão de crédito é interdita. Finalmente, podem as partes ajustar cláusula impedienteda cessão de crédito, seja de modo absoluto, seja relativo, isto é, vedando qualquertransferência, como, em exemplo corrente, a que proíbe ao locatário ceder a locação; ouestabelecendo restrições, ou somente permitindo-a sob determinadas condições. Aqui,referimo-nos a direitos por natureza cessíveis, e que se tornam intransferíveis por forçado ajuste, pois que este é desnecessário se contrariamente à transferência milita já umaproibição legal ou natural.

Em qualquer hipótese de crédito incessível, a transferência acaso realizada não ésomente inoponível a terceiros, porém, inválida mesmo entre as partes.13

Em relação ao terceiro de boa-fé, entretanto, a proibição convencional não tem eficáciase não constar do próprio instrumento da obrigação.

As disposições relativas à cessão de crédito aplicam-se à transferência de todo outrodireito, não sujeito a normas específicas. Assim dispunha o Código Civil de 1916 (art.1.078), mas o novo dispensou-se de reproduzir, pela desnecessidade de proclamá-lo.

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Uma vez que não ocorram oposições naturais, legais ou convencionais à cessão, é lícitoao credor fazê-la, transferindo a razão creditícia ao cedido com todos os acessórios daobrigação - acessorium sequitur principale (Código Civil de 2002, art. 287 14), salvo sehouver, quanto a estes, disposição em contrário, como no caso de cessão de um créditopecuniário com reserva dos juros, ou a transferência dos direitos creditórios comexclusão expressa das garantias que o asseguram, ou, ainda, quando os acessórios sãoinseparáveis da pessoa do cedente. A transferência da razão creditória abrange-lhe osfrutos, rendimentos e garantias. Não opera pleno iure a transferência de acessórios quesão inseparáveis da pessoa do cedente. Quando o direito é de molde a gerar outrosefeitos, prevalece, contudo, a ressalva quanto à pertinência destes ao cedente.

Mas é preciso atentar que a cessão é um negócio jurídico de disposição. Por isto exige,além do requisito da capacidade genérica para os atos comuns da vida civil, a especialreclamada para prática daqueles que tenham por objeto a alienação de direitos ou debens, sendo invocáveis os princípios relativos à compra e venda, para a onerosa (exvenditionis causa), e à doação, para a gratuita (dona tionis causa).15

Como envolve a alienação de direitos, a cessão de crédito deve ser encarada subjetiva eobjetivamente. Subjetivamente, não pode ceder seu crédito aquele que não tem o poderde disposição, seja em termos genéricos (incapacidade), seja especificamente emrelação ao próprio direito cedido. Objetivamente, a cessão não ultrapassa o conteúdo dopróprio crédito, dizendo-se que ninguém pode transferir a outrem mais direitos do quetem - nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet.

Questão das mais árduas, e eriçada de complexidade, é a que extrema a cessão decrédito da cessão do exercício dos direitos, por muito tempo usada à guisa desubterfúgio para contornar a incessibilidade do crédito propriamente dito. Hoje, porém,mudou. Não havendo mais obstáculo frontal à transferência do direito, esta não maisnecessita de disfarçar-se sob a roupagem da cessão do exercício, que passou a vigorarcomo uma categoria jurídica peculiar. Quando o crédito é cessível sem restrições, acessão do exercício ocorre quando se dá a conservação da razão creditória no primitivosujeito ativo, ficando um terceiro com a faculdade de fruir as vantagens ou osbenefícios, com retorno da integridade creditória ao cedente, ao fim de um certo prazo,ou no implemento de uma condição. Se, porém, o título não fornecer elementos para severificar que houve apenas cessão do exercício, e conservação da subjetividade ativa,dever-se-á entender que ela envolve a cessão do crédito, propriamente dito. Sobe,porém, de ponto a dificuldade quando se encara um crédito incessível, cujo exercíciotenha sido trasladado a outrem. Normalmente, a cessão do exercício é abrangida naproibição de transferir o crédito, e então tudo se resolve, considerando-se defesa tantouma quanto outra. Mas se for de tal modo destacável, que não prevaleçam contra oexercício por outrem as razões que militam em contrário à transferência do crédito,poderá verificar-se sem que se lhe oponham obstáculos maiores. Assim, exempli gratia,o pai que tem, inerente ao pátrio-poder, o usufruto dos bens do filho menor e que nãopode transferi-lo por ser integração da sua potestas, é apto no entanto a transferir apercepção dos rendimentos, e, assim, fará uma cessão de exercício, muito embora odireito seja por natureza intransmissível.

180. Validade da cessão: entre as partes e em relação a terceiros

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Ato consensual, denominado sem rebuços no BGB como contrato translatício e assimtratado na doutrina tedesca, a cessão de crédito não se subordina a requisitos de formapara valer entre as partes. Pode ser feita por escrito público ou particular, ou até mesmoverbalmente estipulada, o que ocorre quando o cedente, sem outra formalidade, entregao título da obrigação ao cessionário, notificando o devedor para que lhe pague. Não há,porém, uma aceitação universal para este princípio. Ao revés, não faltam sistemasjurídicos (BGB, art. 403; Código Civil francês, art. 1.689) para os quais é requerida aaceitação do devedor de forma escrita. Por ser negócio jurídico abstrato, independentedo que lhe serve de causa, sujeita-se à regra geral da prova dos negócios jurídicos, de talsorte que, se se tratar de obrigação de valor inferior à taxa legal, prova-se a cessão porqualquer meio, e, se de valor superior, exige-se um começo de prova por escrito. Se aobrigação transferida envolve um direito real, a forma escrita é da substância do ato, e oinstrumento público essencial, se de valor superior ao limite da lei.16 Cumpre notar queo valor a considerar-se não é o da cessão, pois que esta pode até ser gratuita, porém docrédito cedido.

Assim, não se exige a observância de requisito formal, para a cessão ter eficácia entre aspartes. Quando, porém, o direito cedido requer instrumento público, a forma deste atraia da cessão. Fora daí, tem igual eficácia instrumento público ou particular.

A entrega do título do crédito transferido, em princípio, é dispensável.17 Somente seránecessário para que se complete a cessão naqueles casos em que a obrigação é expressaem título negociável e transmissível, ou sejam os denominados créditos derivados detítulos-valores, não porque a cessão, em si, tenha como formalidade integrativa atraditio,18 mas porque o devedor, em tais circunstâncias, não é obrigado a prestar senãocontra a apresentação do instrumento, e, assim, a cessio é inoperante sem o instrumentooriginário, de vez que somente com este o cessionário estará habilitado a exercer odireito transferido. É a própria natureza do crédito que o determina, pois nesses casos oinstrumento não tem função meramente probatória, porém constitutiva , por ver que aforma se integra na substância do crédito ou na sua representação. Podem-se mencionarem primeiro plano os títulos de natureza cambial, própria e por extensão, pagáveis àordem e transferíveis por endosso (letra de câmbio, nota promissória, duplicata,warrant), cuja posse induz a presunção da titularidade do valor creditório representado.Numa fórmula geral, abrangente, resume-se o princípio, dizendo-se que o instrumentodeve ser entregue ao cessionário como elemento integrativo da transferência, em todosos casos em que tiver a função representativa do próprio crédito.19 É mesmo possívelque o cedente deixe em branco o nome do cessionário; válida a cessão, mesmo que oclaro do instrumento seja preenchido pelo próprio beneficiário.20

Afora os casos de o título exercer esta função representativa, o cessionário recebe todosos poderes do credor, por força da cessão regularmente feita, independentemente daposse do instrumento que prova o crédito transferido.

A eficácia da cessão relativamente a terceiros não é sujeita aos mesmos princípios. Elaestá subordinada a observância da forma. Ou se faz por escrito público, ou por escritoparticular. Se feito por instrumento público, dispensa o registro. Se por escritoparticular, é exigida a inscrição no registro próprio (Código Civil de 2002, art. 288 21).

Aliás, é conveniente positivarmos aqui o que se entende por terceiro. Genericamenteserá toda pessoa que não seja parte na mesma relação jurídica. Mas, no caso particular

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da cessão, considera-se tal, para efeitos legais, quem não participou do negotium iurisda cessão: assim é terceiro o devedor do crédito transferido, qualquer outro cessionário,o credor pignoratício que recebeu em caução o crédito cedido, como qualquer credorquirografário do cedente.22 Efetuada, então, a cessão, à sua validade contra terceirosnão basta a estipulação entre cedente e cessionário, ainda que acompanhada denotificação ao devedor. Esta notificação, esclareçamos desde logo, não se confundecom a denuntiatio primitiva, embora se aproxime dela. A notificação ao devedor é omeio técnico de levar ao seu conhecimento a transferência da relação creditória (CódigoCivil de 2002, art. 290 23). Sua finalidade é integrar na cessão o dever-prestar, da partedo devedor, ao novo credor (cessionário) e não ao antigo (cedente). A notificaçãoconsiste em qualquer meio, pelo qual a operação de transferência é comunicada aodevedor. Pode dar-se por qualquer meio: comunicação direta, ou efetuada através docartório de títulos e documentos, ou por via judicial. Além destas formas de notificaçãoexpressa, tem validade a notificação presumida, quando o devedor se declara ciente datransferência. Pode dar-se no próprio instrumento da cessão, ou escrito à parte (públicoou particular). A notificação tem o efeito de vincular o devedor ao cessionário,desligando-o do cedente. Após a notificação, o primitivo credor não lhe pode reclamar opagamento. E não tem validade em relação ao cessionário o que realiza ao cedente,estando, portanto, sujeito a pagar duas vezes se o fizer. Títulos ao portador ou à ordemobedecem a critério específico de transferência, não se lhes aplicando a formalidade danotificação.

Para ser oponível a terceiros, retomemos a exposição, a cessão poderá revestir a formapública e, se for hipotecário o crédito transferido, tem o cessionário o direito de fazeraverbar a cessão à margem da inscrição principal, como sub-rogado nas qualidades decredor hipotecário (Código Civil de 2002, art. 289). Averbado à margem da inscriçãoprincipal, será também o crédito quando a obrigação importa em criação de qualqueroutro ônus real sobre imóvel, como é o caso da promessa de compra e venda, hoje assimtratada e levada ao registro imobiliário para dar direito à execução específica: a cessãodeverá constar do mesmo registro, a fim de habilitar o cessionário a agir como sub-rogado do credor, no caso o promitente-comprador. O novo Código, embora destacandoem forma de artigo o parágrafo único do art. 1.067 do Código Civil de 1916, conservoua mesma imperfeição redacional do seu modelo. O princípio parece oferecer aocessionário do crédito hipotecário a faculdade de promover a averbação, o que insinua afaculdade aposta de não averbar. Como é complementar da garantia hipotecária a suainscrição, o cessionário promovê-la-á para que se sub-rogue nos efeitos da hipoteca.Mais correta a redação do art. 159 do Projeto de Código de Obrigações de 1965, a dizerque a cessão do crédito hipotecário será averbada à margem da inscrição.

Mas, se revestir a forma particular, terá de ser escrita e assinada, ou somente assinadapor quem esteja na disposição livre de seus bens, e transcrita no registro público, paravaler contra terceiros. Em torno da última exigência, reinou, na vigência do velhoCódigo, constante controvérsia na doutrina, com deplorável repercussão jurisprudencial,havendo opiniões e arestos no sentido de que tem mero efeito publicitário a inscrição noregistro público, enquanto que outros lhe atribuem o caráter de requisito de validade. Adistinção não é meramente acadêmica, mas de sensível projeção prática, pois que, se oregistro tivesse efeito de simples publicidade, sua omissão seria suprível por qualqueroutra prova de conhecimento da cessão por parte do terceiro. Caso contrário, erevestindo caráter de condição de eficácia, será insuprível. Diante dos termos do novoCódigo não pode haver dúvida de que o registro é erigido em requisito essencial à

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eficácia da cessão, pois que é ineficaz em relação a terceiros, a não ser que revista aforma pública, ou no caso de ser vazada em instrumento particular, se não se sujeitar àsimposições formais, entre as quais precisamente o registro (Código Civil de 2002, art.288 24). O regulamento específico deste determina, a seu turno, faça-se a inscrição noRegistro de Títulos e Documentos do domicílio dos contratantes, ou dos domicílios seos não tiverem na mesma localidade, dentro do prazo de 60 dias da data da respectivaassinatura. Ora, quando a lei estabelece o requisito formal como da substância do ato,cominando a pena de ineficácia para o caso de sua inobservância, não terá valor nenhumo ato que a ele desatenda. À luz de tais princípios, sempre sustentamos que a inscriçãodo instrumento de cessão é exigida ad substantiam, e não apenas ad probationem, o quequer dizer que, preterida a formalidade do registro, não é eficaz a cessão, isto é, não éoponível a terceiros, como por exemplo o credor do cedente.25

É bem de ver que aqui nos referimos à cessão voluntária, porque a necessária,precisamente por se realizar como imperativo da lei, opera-se em conseqüência domandamento desta, e completa-se independentemente de requisito formal.

181. Responsabilidade do cedente

O cedente realiza, por obra da transferência do crédito, uma alienação, e porconseguinte responde, como todo alienante, pelo ato que pratica.

O credor que cede o seu direito está sujeito a toda uma série de princípios especiais. Emvirtude da autonomia, e em razão de ser a cessão um negócio jurídico abstrato, cumpredistinguir o ato da cessão, relativamente ao negócio jurídico gerador do direito cedido.Daí destacar-se a responsabilidade do cedente pela realidade do crédito transferido -veritas nominis, da sua responsabilidade pela solvência do devedor - bonitas nominis.

Mas é preciso separar a cessão voluntária da necessária. É que a transferência operadapor força de lei não impõe ao cedente nenhuma responsabilidade,26 quer pela solvênciado devedor, quer pela realidade da dívida, de vez que, em tal caso, a alienação nãoderiva de manifestação de vontade do cedente, mas decorre de disposição coativa da lei.É o que dispunha o art. 1.076 do Código Civil de 1916, que o novo se dispensou dereproduzir. Mas a exoneração está ínsita no contexto do art. 295, uma vez que este, aoaludir à onerosidade e gratuidade, somente tem em vista a cessão convencional, e não àque decorre de disposição coativa de lei.

O que interessa, pois, é precisar a responsabilidade na cessão voluntária. O cedente nãoé obrigado pela bonitas nominis, a não ser que expressamente se declare responsávelpela solvência do devedor (Código Civil de 2002, art. 296 27), caso em que seráobrigado a restituir ao cessionário o que dele recebeu, com os respectivos juros, eressarcir-lhe as despesas da cessão, e as que houver feito com a cobrança da dívida, nahipótese de faltar o devedor com a prestação do obrigado (Código Civil de 2002, art.297 28). É que o cedente, ao obrigar-se pela solvência do devedor, não se comprometeua proporcionar ao cessionário uma fonte de enriquecimento, porém sujeitou-se aresguardá-lo de qualquer prejuízo decorrente da falta de pagamento, por parte do sujeitopassivo do crédito cedido. Insolvente este, tem-se o ressarcimento do cessionário com aindenização do que despendeu, e mais aqueles acessórios.

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Na ausência de estipulação, o cedente responde tão-somente pela veritas nominis, isto é,fica responsável ao cessionário pela realidade da dívida, ou seja, pela existência docrédito ao tempo da cessão. E isto mesmo na cessão a título oneroso, porque,embolsando o correspectivo da cessão, traz lesão ao cessionário se a dívida a esse tempojá não existe. Se não existir o crédito cedido, terá recebido sem causa uma quantia oucoisa, o que terá como conseqüência a obrigação de restituir, fundada na teoria doenriquecimento sem causa. Se, porém, ela vier a se extinguir após a transferência, é arisco do cessionário. Na cessão a título gratuito (donationis causa), a garantia docedente pela existência do crédito somente vigora se tiver procedido de má-fé ou se ahouver assumido expressamente (Código Civil de 2002, art. 295 29).30

Quer no tocante à cessão onerosa, quer na gratuita, a responsabilidade do cedente pelaveracidade do crédito pode ser objeto de convenções especiais. É válida a cláusula que oexime da responsabilidade pela realidade da dívida na cessão onerosa, ou daquela emque o assume na gratuita. É lícito, ainda, estipular que o cessionário assume os riscos daexistência do crédito (contrato aleatório), e, neste caso, nada tem a repor o cedente, sedele nada vier a existir.

Ao aludir à existência do crédito, o artigo 295 do novo Código compreende os seusacessórios, que via de regra o acompanham, salvo estipulação em contrário.

Equiparável à obrigação de responder pela realidade da dívida é a situação decorrenteda perda judicial do crédito, proferida a sentença posteriormente à cessão, mas por umacausa a ela anterior (evicção). A razão é que, se o cedente é obrigado pela existência docrédito, no momento em que o transfere, a sentença proferida posteriormente, masfundada em causa preexistente, opera como se ao tempo da cessão já não mais houvesseaquele.

Se o cessionário tem conhecimento do litígio sobre o crédito, e mesmo assim adquire-opor cessão onerosa, assume os riscos, nada podendo reclamar do cedente.

Em especial é de mencionar-se o crédito penhorado, que o credor não pode ceder apóster conhecimento da penhora, posto que se tornou objeto de expropriação judicial paragarantia da execução.31 Mas, se o devedor o pagar, não tendo sido notificado dela, ficaexonerado, subsistindo somente contra o cedente os direitos do terceiro (Código Civilde 2002, art. 298 32), porque, uma vez penhorado, torna-se o crédito indisponível peloseu titular. O credor perde a disponibilidade dele, e, desta sorte, não pode transferi-lo. Atransferência que tenha efetuado é ineficaz, por ter por objeto bem insuscetível dealienação. Notificado o devedor da penhora, não mais pode pagar, quer ao cedente, querao cessionário, e, se o fizer, responde por novo pagamento perante o terceiro exeqüente.Não sendo notificado, e pagando ao cessionário, presta a quem se lhe apresenta comqualidade para receber, e não se sujeita a pagar de novo. Mas o credor, por alienar o queera indisponível, responde perante o terceiro, cujas esperanças de receber pela viaexecutiva ficaram frustradas.

Em síntese, para que se complete o efeito da penhora sobre o crédito, o devedor tem deser intimado dela. Pagando antes disto ao credor, solve validamente a obrigação e ficaexonerado. Ao revés, pagando depois do conhecimento da penhora o pagamento éinoponível aos terceiros33, ficando-lhe ressalvado o regresso contra o credor, que lhe

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terá de restituir o recebido, por ter procedido de má-fé, caracterizada esta com orecebimento após a penhora, e independentemente de qualquer outra comprovação.

O problema em relação à pessoa do cedente, em caso de pluralidade de cessões, será auma só vez estudado em razão da responsabilidade do cedente, como dos efeitos dacessão, no nº 182, infra.

182. Efeitos da cessão: quanto ao devedor e ao cessionário

Decorrência da noção mesma de cessão de crédito é a sub-rogação do cessionário naqualidade creditória do cedente, investido que fica em todos os seus direitos e todas asgarantias, salvo quanto a estas a estipulação em contrário. O cessionário passa a ocupara mesma posição antes preenchida pelo cedente. Por via da sucessão de direitos, opera-se a mutação subjetiva, e então o cessionário pode proceder em relação ao crédito comose fora ele o credor originário.34 Em contrapartida, uma vez realizada a cessão, tem odevedor a faculdade de recusar a prestação ao cedente35 e, se este o acionar, tem contraele a exceção peremptória da ilegitimidade ad causam.

Mas, como a cessão não atinge a obrigação transferida, e mantém inalterada a suasubstância,36 segue-se que ela conserva todas as modalidades que a qualificavam. Se adívida era a termo ou sob condição, assim continua sendo. O cessionário terá deaguardar o vencimento do prazo ou sujeitar-se aos efeitos do implemento da condição,seja esta resolutiva ou suspensiva. Mais que isto: o crédito transfere-se com todos osvícios ou todas as vantagens.37

Sendo o credor, como efetivamente é, livre de dispor de seu crédito, não necessita daanuência do devedor para transferi-lo a terceiro, porque o vínculo essencial daobrigação sujeita-o a uma prestação; e não existe modificação na sua substância se, emvez de pagar ao primitivo sujeito ativo, tiver de prestar a um terceiro em que se sub-rogam as respectivas qualidades, sem agravamento da situação do devedor. Mas,completando-se a cessão com a notificação ao devedor, para ser a ele oponível, ouequiparada a esta a existência de qualquer escrito público ou particular em que seconfesse ciente da transferência feita, somente se libera quando presta ao cessionário,não produzindo efeito solutório o pagamento que efetue ao credor originário, após aciência da cessão.

Ao revés, vale e extingue a obrigação se presta ao cedente, depois da cessão realizada,porém, não notificada, por qualquer meio, ao devedor.38

Realizada a transferência do mesmo crédito a mais de uma pessoa, duas são as questõesque desde logo se apresentam. A primeira, que diz respeito à validade da cessão eresponsabilidade do cedente, e a segunda, que vai dar nos efeitos que produz.

Efetuada a cessão, o cedente é responsável perante os cessionários, relativamente aosquais ela não venha a prevalecer pela composição das perdas e danos, porque o seuprocedimento será, na melhor das hipóteses, culposo. É que, celebrada a primeira delas,procedeu-se à alienação do crédito, e, pois, saiu este de sua livre disposição. Mas, comoa obrigação cedida perdura até a solução ou extinção por uma das formas que a leiprevê, e que foram já estudadas, outra cessão feita pelo mesmo credor tem por objetobem de que já havia disposto, embora ainda exista, e este se qualificará de procedimento

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malicioso, ou ao menos negligente. Qualquer que seja o cessionário não satisfeito,pouco importando a ordem cronológica em que se coloque a sua aquisição do direitotransferido, tem ação contra o cedente para ressarcir-se do prejuízo sofrido, indenizaçãoque deve ser ampla, capaz de cobrir as perdas e danos que a conduta injurídica docedente lhe impôs. Operada a cessão, o credor não tem mais o direito de dispor docrédito.

Mas, se não obstante o fizer, quid iuris em relação ao devedor e ao cessionário?

Aqui vêm, então, os efeitos da pluralidade de cessões. E cabe, antes de mais nada,precisar qual delas guarda prioridade, em relação ao devedor, pois que tem esteinteresse em saber a quem deve prestar, para liberar-se da obrigação.

Se o crédito se contém em um título representativo (vide nº 180, supra), prevaleceráaquela cessão que for seguida da traditio deste, e pagará bem o devedor que o fizer aquem se lhe apresente portador do instrumento.

Fora daí, cumpre determinar, à vista das circunstâncias, qual a prioridade a serreconhecida. A primeira, e de maior monta, é a que se prende à anterioridade danotificação, que se apura com o maior rigor, indagando-se do dia e até da hora em quese realize. No caso de serem simultâneas as notificações, ou de se não conseguir ademonstração da anterioridade, rateia-se o valor entre os vários cessionários.39 Nãonotificado o devedor das várias cessões do mesmo crédito, fica liberado, pagando àqueledos cessionários que lhe apresentar, com o instrumento da cessão, o título da obrigaçãotransferida, porque se completa com a tradição do título do crédito cedido (Código Civilde 2002, art. 291 40). Assim, se o credor fizer várias cessões do mesmo crédito, e fornotificado o devedor apenas de um deles, é válido o pagamento que fizer ao quepromover a notificação. Se o devedor for notificado de mais de um deles, libera-se como pagamento que efetuar ao cessionário que lhe apresentar o título da cessão e o daobrigação cedida. Mas, no caso de constar ela de escritura pública, prevalece aprioridade da notificação. Estará, contudo, desobrigado o devedor que, antes de terconhecimento da cessão, paga ao credor primitivo, ou àquele que lhe apresentar o títuloda obrigação cedida, se ocorrer a pluralidade de cessões (Código Civil de 2002, art. 29241).

A notificação, expressa ou presumida do devedor, vincula-o ao cessionário, ficando elesubordinado a este. Pagando ao credor primitivo, paga mal. Reversamente, se paga aocredor primitivo antes de notificado, ou de tomar conhecimento por outra via da cessão,fixa exonerado. Do mesmo modo, fica desobrigado o devedor que pagar ao cessionáriomunido apenas do título da cessão, embora não apresente com ela o da obrigaçãocedida, no caso de ser notificado mais de uma. A segunda parte do artigo 292 do novoCódigo manda que prevaleça a prioridade da notificação sobre a posse do título, quandoo crédito constar de escritura pública.

O devedor tem a faculdade de opor, tanto ao credor primitivo quanto ao cessionário, asexceções pessoais que lhe competirem, bem como as que, no momento em que vier a terconhecimento da cessão, tinha contra o cedente (Código Civil de 2002, art. 294 42).

O novo Código alterou a redação dos efeitos da cessão no tocante à oponibilidade dasexceções. Cabe, então, distinguir. No primeiro plano, considerando o vocábulo

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"exceções" na acepção de quaisquer defesas, é óbvio que o devedor tem a faculdade deargüir todas as que dizem respeito à validade e eficácia da obrigação: incapacidade,defeito formal ou de consentimento, prescrição da obrigação, pagamento; bem como denatureza processual: incompetência jurisdicional, suspeição ou impedimento do juiz,litispendência, coisa julgada. Em especial, o artigo tem em vista as exceções pessoais dodevedor: compensação, novação, transação e confusão. Demandado, o devedor podeopor as exceções que tem contra o cessionário, que está exigindo o pagamento em seupróprio nome, embora com fundamento na obrigação primitiva. Não está inibido deopor as exceções contra o cedente, porque se a obrigação era inválida, ou se tinhamotivos para ilidir a pretensão creditória, eles não desaparecem com a mutaçãosubjetiva por que passou a obrigação.

É vedado ao devedor opor ao cessionário qualquer exceção que, após a cessão, venha ater contra o cedente. A razão é que, ao se processar a transferência, o direito do credorprimitivo não padecia de defeito. E o que é superveniente à cessão não prejudica ocessionário. O devedor que, notificado da cessão, nada opõe, não mais poderá opor aocessionário, a compensação que antes da cessão teria contra o cedente. Não sendonotificado, poderá opor ao cessionário a compensação do crédito que lhe assistia contrao direito do cedente.43

O Código Civil de 1916 excluía de oponibilidade ao cessionário de boa-fé a simulaçãodo cedente. O novo Código não aludiu ao caso, porque deixou de tratar a simulaçãocomo defeito do negócio jurídico, incluindo-a entre os casos de nulidade.44 Dentro danova sistemática, a simulação é oponível ao cedente, com ressalva, entretanto, do atoque se dissimulou, se válido for na substância e na forma.

O artigo 293 45 do Código Civil de 2002 trouxe inovação criada no Projeto de Códigode Obrigações de 1965. O conhecimento da cessão pelo devedor tem o efeito deestabelecer a sua vinculação ao cessionário, com as consequências estatuídas nos artigosanteriores. Não é ela, porém, requisito para a eficácia da cessão para o cessionário.Independentemente da notificação, o cessionário pode tomar as medidas destinadas àconservação de seu direito, como seria o caso de promover ele a interrupção daprescrição.

183. Assunção de débito

O Direito romano jamais admitiu a figura da cessão de débito, e nem podia mesmoconceber-se, naquele direito, dado o caráter estritamente pessoal da obrigação, que osujeito passivo transferisse a outrem o dever de prestar. O Direito moderno, herdando osprincípios clássicos, por muito tempo, fixou a impossibilidade de transferir o devedor osseus encargos. Coube à doutrina alemã a sua construção dogmática (Schuldübernahme)e sua disciplina nos arts. 414 e 419 do BGB, e depois veio o Código Federal Suíço dasObrigações, arts. 175 e segs., segundo as deduções lógicas assentadas por Delbruch.Posteriormente à sua disciplina do Código alemão, Saleilles, em monografia (LaCession des Dettes), espraiou-se na sua defesa e na sua análise.

Do fato de não haver o nosso Direito positivo, até o advento do Código Civil de 2002,cogitado da disciplina da cessão do débito e dos direitos alemão e suíço haverem-nofeito, não se segue que ali ela era possível e aqui não era, pois, como acentua De Page,são duas coisas distintas a sua regulamentação legal e a sua compatibilidade com os

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princípios vigentes:46 se faltava, entre nós, regra legal admitindo-a, nada impediu a suaadoção, e nenhuma conclusão imperava no sentido de sua repulsa. Até o novo Códigofoi, a bem dizer, geral a posição da doutrina favoravelmente à admissão da transferênciade débitos.47

No direito alemão e no suíço, onde a cessão de débito foi construída com requintes deapuração dogmática, os autores distinguem a chamada assunção cumulativa ou dereforço, que se dá quando um terceiro assume a obrigação ao lado do devedor primitivo,sem afastá-lo; da assunção de cumprimento, em que se verifica, na verdade,transferência do débito, porque aí o terceiro se coloca no lugar do devedor, e, liberadoeste, solve por ele.48

A idéia da transferência de um débito, repitamos, para retomar o fio de um raciocínio,nunca foi aberrante da nossa sistemática. De início, recordamos que ela se mostravaperfeitamente integrada na normalidade da vida jurídica, quando ocorresse por força detransmissão mortis causa. Dentro das forças da herança, sempre teve o credor o direitode perseguir no herdeiro a prestação que lhe devia o de cujus, e se o devedor nãoinvocasse o benefício, mesmo ultra vires hereditatis. Quer dizer que o direito reconhecea substituição do devedor pelos seus sucessores, sem alteração na substância do vínculoobrigacional. Admite, ainda, a novação subjetiva passiva, que, com extinção daprimitiva obrigação, e nisto se distingue da assunção de débito, implica umasubstituição do devedor. Qualquer que seja a posição doutrinária a respeito daobrigação, quer se encare como relação entre dois patrimônios (v. nº 127, supra), querse entenda em razão de um credor e de um devedor, subjetivamente considerados, que jámostramos ser a posição segura, não é essencial à subsistência da relação obrigacional apermanência dos mesmos sujeitos. A relação obrigatória sobrevive, ainda que se mude apessoa do credor, ou se opere a modificação da parte do devedor.49 Sempre existiu,pois, uma realidade jurídica irrecusável no fenômeno da transferência do lado passivoda obrigação, ou seja, na sucessão a título particular no débito. No terreno concreto, nãofalta mesmo a prática dos negócios a evidenciar a sua constante presença, na cessão dalocação, na transferência de um fundo de comércio etc., situações em que o novodevedor assume todos os compromissos resultantes do contrato ou do giro mercantil, ecoloca-se na posição do devedor primevo, por cujos compromissos passa a responder.

Não pode haver, portanto, impossibilidade jurídica, analogamente à cessão de crédito,para que o débito venha deslocar-se da pessoa do devedor para a de um terceiro quetoma o seu lugar, sem a necessidade de que se extinga a obrigação primitiva, e semalternação na substância da relação obrigatória. Invocando-se a analogia com a cessãode crédito, cumpre frisar que existe semelhança, mas não há identidade de situações,pois que a transferência da razão creditória se efetua sem dano para o devedor, uma vezque a prestação a que se obrigar apenas muda de destinatário, sem alteração substancial.

É, porém, evidente que o mesmo não ocorre com a cessão de débito, e neste ponto osdoutores, mesmo aqueles que a aceitam sem rebuços, já acentuam a ausência deparalelismo, que as legislações que a disciplinam (suíça e alemã) consagram, pois queas condições de solvência, as possibilidades de cumprimento etc. variam de pessoa apessoa, e pode o credor sofrer um prejuízo, direto ou indireto, com a sub-rogação, emum terceiro, das condições de seu devedor. Daí assinalar-se que, se a cessão de créditodispensa a anuência do devedor, e pode operar-se mesmo contra a sua vontade (etiaminvitus), a transferência da razão debitória exige o acordo do credor para que tenha

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eficácia - invito creditore.50 A anuência pode ser expressa ou tácita. O Código, porém,só admite-a expressa, embora estabeleça que o devedor primitivo ou o candidato àassunção intime o credor para, em prazo certo, declarar se anui à assunção. O seusilêncio considera-se como recusa. Entendemos poder ser tácita, como no caso dereceber o credor um pagamento parcial ou de juros, ou ainda no de praticar outro atoqualquer que induza acordo ao trespasse da relação debitória (Código Civil de 2002, art.299 51).52

Uma vez assentado este requisito, não há necessidade de se recorrer a quaisquer outrosnegócios jurídicos, como contrato triangular ou estipulação em favor de terceiro, paradefinir a sua estrutura. Há, na verdade, alguma semelhança entre a transferência dedívida e o contrato em favor de terceiro. Mas os dois tipos de figuras distinguem-se emque a obrigação do novo devedor se identifica com a do antigo, ao passo que naestipulação a obrigação do promitente fica delimitada pelos termos do contratocelebrado com o estipulante.53 Tal qual a cessão de crédito, a transferência do débitodeve ser definida como um negócio jurídico convencional e abstrato, pelo qual odevedor, com a aceitação do credor, transfere a um terceiro os encargos obrigacionais.

Pressupõe, obviamente, a existência e a validade da obrigação transferida; mas, no casode efetuar-se a assunção de débito oriundo de obrigação ineficaz, ou atacável, suaineficácia é suscetível de invocar-se por quem a assume, como poderá sê-lo pelodevedor primitivo,54 salvo se se tratar de defeito sanável, e tiver ocorrido a suaratificação ou confirmação, inclusive no próprio ato da cessão.

O Projeto de Código de Obrigações de 1965 estatuía que o devedor primitivopermanecia obrigado, no caso de proceder ele à transferência da obrigação a umterceiro, cuja insolvência era desconhecida do credor (art. 167, parágrafo único). Omesmo princípio vigora no novo Código, não obstante a omissão, tendo em vista oprocedimento doloso do devedor transmitente.

Assim entendida, é clara a sua validade jurídica, e, no seu mecanismo quanto nos seusefeitos, pode ser invocada a paridade de situações com a cessão de crédito: num comonoutro caso, pressupõe-se uma relação obrigacional, em que um dos sujeitos ésubstituído, sem mutação, na substância do vínculo jurídico. Da mesma forma que, nacessão de crédito, o primitivo sujeito ativo perde a razão creditória que passa aocessionário, também na cessão de débito o primitivo sujeito passivo fica liberado daobrigação, uma vez que o cessionário da dívida assume a sua posição jurídica na relaçãoobrigacional.

A assunção de dívida opera a transferência do débito ao novo devedor.Conseqüentemente, fica liberado o devedor primitivo. A responsabilidade patrimonialdele, pela solução da obrigação, desaparece. E extinguem-se, igualmente, todas asgarantias especiais, que haja dado ao credor. Ressalvam-se, contudo, aquelas que, porexpresso, haja o devedor assentido em que permaneçam em vigor (Código Civil de2002, art. 300 55). O novo Código não foi feliz na redação do artigo 300, porque omitiuas garantias dadas por terceiro. O Projeto de Código de Obrigações de 1965 foi maisexato, ao aludir à subsistência das garantias especiais, por "aquele que as ofereceu". Seo terceiro deu garantia à obrigação, e a razão debitória foi assumida por outro devedor,sem o seu assentimento expresso, não pode ele ser chamado a responder pela solução,

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presumindo-se que, ao garanti-la, teve em vista as condições daquele, cuja solvênciaassegurou.

Para a dogmática de seus efeitos, há de ter-se em conta que o débito transferido é omesmo primitivo (identidade da relação jurídica), como o mesmo o objeto (identidadeobjetiva). Daí assentar-se que passa ao novo devedor, conservadas as exceçõespreexistentes, salvo as que eram pessoais ao antigo. Os acréscimos permanecem a favordo credor, como os juros vencidos, cláusula penal etc. Os privilégios e as garantiaspessoais, do devedor estritamente, terminam com a mutação; as reais sobrevivem, comexceção das que tenham sido constituídas por um terceiro estranho à relação, a não serque este anua na sobrevivência.56 E, finalmente, ocorre a imediata liberação dodevedor, exclusivamente pelo efeito da convenção de cessão da dívida.57

Transferido que seja o débito, o terceiro investe-se na conditio debitoris, sem que lheassista a faculdade de invocar as exceções pessoais do antigo sujeito passivo.

Demandado, o novo devedor pode opor ao credor as exceções que lhe são pessoais, taiscomo a compensação, a remissão da dívida e a novação. Nada pode opor as que sãopessoais ao devedor primitivo, em simetria com o princípio (Código Civil de 2002, art.302 58). Pode, entretanto, opor as exceções extintivas da obrigação primitiva, que nãotenham ficado superadas pela assunção da dívida. Se é pressuposto dela a existência daobrigação, não pode ser o novo devedor chamado a solvê-la, se ao tempo da assunçãoela já era extinta.

Cessam ipsu facto as garantias especiais que acediam à dívida, salvo se consentir na suapermanência aquele que as tiver oferecido. As garantias reais não são atingidas todavia.

A liberação do devedor primitivo é uma conseqüência do ato negocial da assunção dodébito, e verifica-se com subsistência do vínculo. Difere, repetimos, da novaçãosubjetiva, que é meio extintivo, e, obviamente, diversificam-se os efeitos, especialmenteno tocante à restauração da antiga obligatio, com todos os seus acessórios, se vier aanular-se a substituição do devedor, com ressalva, entretanto, dos direitos dos terceirosde boa-fé.

Anulada a assunção da dívida, restituem-se as partes ao status quo ante. O devedorprimitivo volta a ser devedor, e as garantias, que havia dado, voltam a vigorar: penhor,hipoteca, anticrese. As garantias dadas por terceiro (fidejussórias ou reais) não serestauram, salvo se ele anuir expressamente ou se, mesmo não dando seu assentimento,era conhecedor do vício (Código Civil de 2002, art. 301 59). O Código cometeequívoco, quando alude ao "vício da obrigação". Há de se referir ao vício da assunçãoda dívida, pois o que terá sido objeto de anulação é a substituição do devedor, e não aobrigação em si mesma. Ressalvam-se, obviamente, os direitos dos terceiros de boa-fé,como seria o caso de cancelamento de hipoteca por efeito de assunção de dívidagarantida, e aquisição, por terceiro, do imóvel que fora objeto dela.

Embora o novo Código haja se oposto à assunção tácita de dívida, o artigo 303 60 abreuma exceção. Com a aquisição do imóvel hipotecado, notificada ao credor hipotecário,e a ressalva de ter ele tomado a seu cargo o débito garantido, opera-se uma assunção dedívida. E esta passa ao novo devedor, se não manifestar a sua oposição, dentro de ummês. É um caso típico de presunção de anuência, decorrente do silêncio.

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Hipótese especial de assunção de obrigações é a que provém da aquisição deestabelecimento ou de fundo de comércio, bem como a que se origina da sucessãouniversal por ato inter vivos (e. g., a incorporação de sociedade anônima). Operação decerta freqüência na vida empresarial, implica sempre que o adquirente receba ativo epassivo, e, desta sorte, desenha-se nítida a assunção dos débitos preexistentes,indiscriminadamente. Para conhecimento dos interessados, dever-se-á observarformalidade publicitária, e demais requisitos previstos na Lei das Sociedades por Ações(Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976).

No resguardo, contudo, dos direitos dos credores, subsiste a responsabilidade solidáriado devedor primitivo, até um ano a contar da última publicação, o que se justificaplenamente em razão de que, nesta hipótese, a transferência das obrigações se concluisem o consentimento dos credores, diversamente, portanto, do que se passa com aassunção ordinária de débitos, para a qual se reclama aquela anuência.

No Direito alemão, a figura da assunção de dívida alheia (Schuldübernahme)desenvolvida por Hans Reichel opõe-se a da Schuldbeitritt que traduz a de adesão dealguém a um débito de outrem, sustentada por Werterkamp. Independentemente daclassificação, se se trata de garantia fidejussória ou de adesão, certo é que um terceiroassume a condição de reus debendi.61

O Código Civil de 2002 foi insipiente ao tratar das modalidades pelas quais podeocorrer a assunção da dívida: a) por acordo entre um terceiro e o devedor (formadelegatória); e, b) por acordo entre o terceiro e o credor (forma expromissória - ex promitere). No primeiro caso, o terceiro tem a faculdade de assumir a obrigação dodevedor, podendo a assunção verificar-se por contrato, desde que haja consentimento docredor. Na segunda hipótese, o contrato é realizado entre o terceiro e o credor,independentemente de assentimento do devedor. Em qualquer das hipóteses, a assunçãosó exonera o devedor primitivo se houver declaração expressa do credor. Do contrário,o novo devedor responde solidariamente com o antigo. Como é princípio geral dodireito que ninguém pode dispor de direito alheio sem a autorização do seu titular, seriauma violência admitir a mudança do devedor sem o consentimento do credor.

O novo Código também não dispôs sobre a assunção cumulativa de dívida. Comodissemos, esta ocorre quando um terceiro assume a obrigação ao lado do devedorprimitivo, passando o credor a contar com dois ou mais devedores. A finalidade, nestecaso, é reforçar a garantia da obrigação.

O questionamento mais comum diz respeito ao que ocorre se o credor não dá o seuconsentimento para essa cumulatividade subjetiva passiva. Na hipótese, há umaverdadeira assunção cumulativa de dívida ou se está diante de outro negócio jurídico?Se o credor expressamente consente com a cumulatividade, a obrigação se tornasolidária, podendo o mesmo cobrar tudo de qualquer um dos devedores. O credor,então, passa a dispor de mais um devedor, aumentando a sua garantia. Contudo, se nãohá assentimento do credor, surge um novo negócio jurídico, que vincula apenas osdevedores entre si. Trata-se da Promessa de Liberação. Aqui, o terceiro que assume aobrigação ao lado do devedor primitivo ou em sua substituição se compromete peranteeste a liberá-lo daquela obrigação em face do credor. Este tipo de negócio é plenamente

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válido e eficaz. Os seus efeitos é que se resumem apenas ao compromisso de liberaçãodo devedor primitivo em face do credor originário.

APÊNDICE

Tantas vezes me referi ao Anteprojeto de Código de Obrigações no curso deste volume,que, ao encerrá-lo, me pareceu conveniente trazer o seu conteúdo mais à vista do leitor.A fim de não incorrer em demasia inconveniente, abstenho-me de transcrever o seutexto, oferecendo, contudo, a Exposição de Motivos com que o apresentei ao Governo,pela qual se patenteiam as suas linhas gerais e se evidencia a orientação que imprimi àsua elaboração.

Constituída comissão, efetuou seu estudo e promoveu sua revisão, resultando o Projetode Código de Obrigações, encaminhado ao Congresso Nacional, onde iniciou suatramitação, havendo, todavia, sido retirado pelo Governo.

Com prazer verifiquei que tanto a orientação quanto as soluções por mim preconizadasprevaleceram, enriquecendo, entretanto, o meu trabalho com a contribuição valiosa doseminentes juristas que o aperfeiçoaram.

A comissão fica assim constituída:

Orosimbo Nonato, presidente;Caio Mário da Silva Pereira, relator-geral;Sílvio Marcondes;Theophilo Azeredo Santos;Orlando Gomes;Nehemias Gueiros.

I - INTRODUÇÃO

Desincumbindo-me do encargo que assumi com este Ministério, tenho a honra deapresentar a Vossa Excelência o Anteprojeto de Código de Obrigações (Parte Geral eContratos).

Contando quase mil artigos, este projeto procura conciliar a tradição de nosso Direitocom as inovações mais aceitáveis.

1. Sempre entendi que uma reforma legislativa de profundidade não pode romper com opassado jurídico da Nação, sob pena de realizar-se obra desarraigada e inapta a viver nomeio social. Seria muito fácil, em verdade, formular um projetamento tendo os olhosvoltados apenas para os monumentos legislativos alheios e para os livros doutrinários.Daria tal empresa a idéia de um modernismo avançado, mas faltar-lhe-ia o cunho derealidade, fundamental a qualquer sistematização legislativa.

Por outro lado, se a todos pareceu necessário reformar, é porque a consciência jurídicanacional convenceu-se da falta de atualidade de nosso direito positivo. E, então, boa é aoportunidade para que o novo diploma consagre concepções contemporâneas, queventilem e enriqueçam o conteúdo desta vasta e ebuliente província do direito privado.

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A idéia-força estrutural deste projeto reside, pois, na conciliação entre as tendênciasmodernas do direito obrigacional e a tradição da cultura jurídica pátria.

Com efeito, o nosso direito legislado é, em termos gerais, bom. O Código de 1916 aindasubsiste na maioria de seus preceitos. Daí ter eu aproveitado dele o máximo que lhepodia sacar.

2. Mas o direito de nosso tempo, refletindo os efeitos da profunda transformação socialque este século impôs à herança que recebeu, repele muitos conceitos, que reputaanacrônicos. Ao elaborar este Anteprojeto, adotei o moderno, não por sê-lo apenas, masquando me pareceu bom. E, sobretudo, aqui insinuei as tendências do quotidiano,afrontando o exagerado individualismo que dominava o Direito brasileiro até asimediações da metade do século, contra o qual em minha obra doutrinária me tenhouniformemente pronunciado.

II - UTILIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA

3. Todos os juristas pátrios conhecem muito bem os episódios e as vicissitudes queenvolveram a elaboração do Código Civil de 1916. Acompanham todos, à distância, asvárias fases do desenvolvimento dos trabalhos. E percorrem, na perspectiva de umtempo mais que secular, a estrada de sua criação, assinalada pelos diversos marcos, unsmais altos, outros mais baixos.

Quem se detém nestes estudos percebe, e muito bem, que o Projeto Beviláqua não seriapossível com aquelas características e admiráveis qualidades que o exornam, e lhepermitiram vencer as barreiras e converter-se em lei, sem que outros, antes dele,tivessem enfrentado e transposto obstáculos, contornado dificuldades e preparado oterreno para a sua marcha triunfal.

Teixeira de Freitas desbravou a selva selvagem da legislação desordenada e fixou rumosà doutrina difusa. Teixeira de Freitas imprimiu ao Direito brasileiro o cunho de unidadefundamental, que lhe valeu as qualidades de sistema que haveria de servir de modelo aoutros sistemas. Coelho Rodrigues, Felício dos Santos, Carlos de Carvalho lavraram noeito da Consolidação e do Esboço.

Clóvis Beviláqua, sem dúvida original, e irrecusavelmente inspirado, não teria por certoo êxito que logrou, e mais que muito mereceu, sem que antes dele os ásperos caminhosda codificação fossem desbravados e achanados.

A problemática dos tempos novos oferece a quem nela adentra com propósitoreformativo dados peculiares, que exigem, no equacionamento e manuseio de fórmulasadequadas, a que não pode faltar um tanto de imaginação.

Nunca poderá, contudo, desprezar os mananciais da rica experiência.

4. Empreendendo a codificação do direito obrigacional, não me animou jamais apretensão de criar uma legislação nova, e muito menos de revolucionar o Direito pátrio.

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Fui, a todo momento e por todos os motivos, às fontes mais puras. E vali-me, em todosos instantes, da lição dos que me precederam. Aproveitei-me da elaboração doutrináriados mestres. Utilizei-me da codificação, aqui e alhures, obtida e tentada, do direitoobrigacional. E meditei bem, mesmo naqueles projetos que como tais permanecem,pois, nem por haver a má sorte frustrado o seu melhor sucesso, lhes faltam valor e força.Até os erros cometidos valem como lição, para que se não repitam.

Não perdi de vista o Anteprojeto apresentado em 1941 por três mestres e amigos,Orosimbo Nonato, Hahnemann Guimarães e Filadelfo Azevedo, por mim criticado naimprensa, na classe e no livro, sem lhe haver jamais regateado o merecido encômio.Não desprezei o trabalho de Inglês de Souza. Não pus de lado o Esboço Florêncio deAbreu. Não ignorei aquele monumental esforço comparatista, que foi o Projeto deCódigo Único Franco-Italiano de Obrigações e Contratos, nascido da inspiração arejadade Scialoja. Não me faltou a presença da contribuição valiosa de Cosentini, no projetode Code International des Obligations. Freqüentei a sistematização do direitoobrigacional unificado da Suíça, Itália, México. Manuseei os famosos Travaux dacomissão encarregada de rever o Código Civil francês, o esforço ainda não aproveitadode reforma na Argentina, o Código novo da Grécia, e mesmo o Código Civil chinês, jáhoje superado pela subversão social que lhe sacudiu a estrutura econômica e ideológica.

Não caberia aqui a menção de toda a messe doutrinária, que na seara obrigacional éopulenta. Mas não me posso esquivar de referir-me ao conceito sempre presente deGeorges Ripert, que desde os verdores de minha formação jurídica me impressionou, aosalientar que o direito das obrigações nunca deve ser tratado como algo destinado adisciplinar somente o fenômeno econômico, mas há de submeter-se essencialmente àregra moral; que o Direito não é somente técnica, mas há de ser instrumento defraternidade humana.

Todo este material consultei, li e reli.

Redigido este Anteprojeto depois de ter consolidado as noções que compõem a TeoriaGeral das Obrigações e as suas Fontes Contratuais e Extracontratuais, que são o objetodos volumes II e III de minhas Instituições de Direito Civil, e de ter cogitado em que omaterial legislativo exógeno não pode vir servilmente copiado e decalcado, cuidei deextrair daí a útil orientação e aí batear a boa inspiração.

Com suas deficiências que os doutos suprirão, com seus erros que os mestres hão deemendar, com a imperfeição decorrente da contingência humana, que as minhasreduzidas possibilidades agravam ainda mais, não faltei ao dever de oferecer estacontribuição modesta ao meu País.

Aí está este Anteprojeto, fruto de infatigável trabalho, aliança da tradição jurídica dosnossos maiores, da experiência rica da doutrina, da legislação e dos projetamentos, econtribuição pessoal de seu autor também.

III - LINGUAGEM

5. Sem jamais perder de vista que o Direito é ciência altamente especializada, e, por istomesmo, dotado de vocabulário próprio, sempre entendi que o rigor de um tecnicismoextremado apura demasiadamente o sentido das palavras e leva o jurista muitas vezes ao

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hermetismo de uma fala cabalística, somente inteligível pelos iniciados nesteexoterismo particular, contra que os melhores de nosso tempo se insurgem, como é ocaso do esclarecido René David.

Evitando, então, os abusos da linguagem extremamente especializada, procurei imprimiraos dispositivos estilo singelo, tanto quanto possível próximo da fala do povo. Assim fizmais perceptível o conteúdo da norma, senão pelo vulgo em geral, pois que não irá atanto a capacidade de difusão de um diploma profundo, mas ao menos por aqueles queconhecem o vernáculo. Redigindo os artigos sem as preocupações do purista, emboracom os cuidados para que lhe não falte a correção essencial, vali-me dos vocábulos deacepção especializada, porém com as cautelas de fazer com que este projeto pelo rigorda linguagem não sofra as torturas de uma hermenêutica deformadora de seupensamento.

IV - TÉCNICA DE REDAÇÃO

6. Sem fugir dos bons modelos, na disposição dos princípios, deliberei redigir artigossem a fragmentação em numerosos parágrafos, somente recorrendo a esta técnicaquando o exige a boa disposição da matéria ou o adequado ordenamento dos conceitos.Fugi dos períodos excessivamente extensos, que dificultam o entendimento do contexto,afastando-me igualmente do pólo oposto. Com efeito, a redução dos preceitos apequenas frases atenta contra a fluência natural do pensamento e impõe a este um ritmosincopado que exige a aglutinação dos curtos períodos erigidos em incisos individuadose numerados, para a composição de um conceito que muito melhor preenche a suafinalidade, se correr como habitualmente o homem de mediano preparo pensa eexprime.

Na convicção de que a lei não se destina a fins didáticos, mas ao ordenamento social, oudirige-se à vontade antes que à inteligência, na feliz expressão do mestre ClóvisBeviláqua, abandonei as definições, que melhor se sentem nos livros de doutrina e noscompêndios universitários. Fixando os preceitos sob a forma permanente de comandos,iniciei, contudo, os capítulos, de forma a permitir que o aplicador, ou o leigo a que avontade legal se dirige, possa perceber, em termos simples, a sua extensão e orientação.Se o professor, além disto, ainda puder dali extrair os elementos construtores de umadefinição, tanto melhor, pois que assim os textos mais se difundirão, e a lei preencherá oobjetivo de se tornar mais conhecida, senão de todos, ao menos do maior número, edeixará de ser o privilégio de minorias favorecidas.

V - MÉTODO

7. Partindo da idéia essencial de que é o fato jurídico o elemento gerador do direito e daobrigação, e de que na gênese desta implanta-se a vontade humana como fatornecessário e as mais das vezes ontologicamente preponderante, inaugurei o projetoassinalando esta componente psicossocial, de onde se passa ao negócio jurídico.

Preferi, francamente, aderir à escola alemã do Rechtsgeschäft. Como deixei claro nasminhas Instituições de Direito Civil, compreendo na noção do ato jurídico, segundo atendência mais moderna adotada por Jèze, Duguit, Brethe de La Gressay, Serpa Lopes,e hoje em dia com livre curso entre nós, uma amplitude muito maior do que adeclaração de vontade apta a criar, modificar, transferir, resguardar ou extinguir

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direitos. É uma fonte formal, abrangente de todo comportamento, seja social, sejaindividual, apto a construir os direitos subjetivos. Dentro da concepção genérica do atojurídico cabe a noção de negócio jurídico, que em puro rigor científico deve ser adotadocomo fato gerador da obrigação.

Destacou o projeto, portanto, a declaração de vontade, em todos os seus aspectos evicissitudes, desde a origem, desenvolvimento, interpretação, comprovação,modalidades, ineficácia, extinção.

Cogitou depois, já caminhando no rumo de uma necessária especialização, daobrigação, propriamente dita, seu conceito, classificação, mutação, execução,inexecução.

8. Tratou das fontes.

Em qualquer ocorrência, alicerça-se a obrigação sobre dois pilares sempre presentes: avontade humana e a lei, que não entram em dosagem igual, porém em gradaçãodescompassada, ora predominando a contribuição volitiva, ora prelevando a vontadesocial. Por isto mesmo, o Anteprojeto atentou para estes dois momentos de composiçãodas forças jurídico-obrigacionais. Começou, portanto, e o fez com todas as minúciasnecessárias à boa dedução dos princípios, por aquela mais freqüente e usual, a vontadehumana obediente aos ditames da ordem jurídica, e impulsionada na consecução de suafinalidade. E, como esta manifestação volitiva pode ser bilateral ou unilateral, o projetotratou primeiramente da obrigação convencional, com a teoria geral do contrato e aregulamentação de suas várias espécies. Depois veio a declaração unilateral devontade.

Finalmente aparece a obrigação oriunda do fenômeno legal preeminente, e oAnteprojeto disciplina o enriquecimento indevido e a responsabilidade civil.

As matérias que o compõem vêm, portanto, subordinadas a uma idéia fundamental eobedientes a uma coordenação lógica, sem a qual ao futuro Código faltará a aprovaçãocientífica básica e não passará da reunião atabalhoada de preceitos e de comandos.

VI - TOPOGRAFIA

9. Em obediência a este método, dividi o Anteprojeto em IX Títulos, subdivididos emCapítulos, e estes em Seções.

O Título I trata do Negócio Jurídico.

O Capítulo I, das Disposições Gerais, parte da noção da vontade como fato essencial nagênese da obrigação, cogita dos requisitos de sua declaração e da prova; passa àinterpretação da vontade declaradora, e daí às modalidades (condição e termo), paraterminar com a seção destinada à representação.

No Capítulo II, ative-me aos defeitos do negócio jurídico, defeitos do consentimento edefeitos sociais. Nas seções sucessivas em que se fraciona foram deduzidas as noçõestradicionais do erro, dolo, coação, simulação. Em seguida, vem a lesão, a exemplo doque fazem os códigos modernos, mas aliado ao estado de perigo na conformidade do

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Código italiano de 1942. E encerra-se com a fraude, nos seus dois aspectos de reduçãoda garantia geral ou desfalque consciente do patrimônio, e da alienação pendente lite, ousejam a fraude contra credores e a fraude à execução.

Em seguida abre-se o Capítulo da Insubsistência do negócio jurídico que se inauguracom a nulidade e anulabilidade da declaração da vontade; passa à rescisão que sereserva para a lesão e o estado de perigo, e termina com a revogação dos atosfraudulentos.

10. O Título II versa a obrigação em geral.

Começa pela Classificação das Obrigações, objeto do Capítulo I, alinhando asobrigações de dar, de fazer; divisíveis e indivisíveis; solidárias, alternativas; e findacom as obrigações pecuniárias, na corrente dos modelos mais modernos.

O Capítulo II trata apenas da Cláusula Penal.

O III cogita da transmissão da obrigação, contendo duas seções: a I é a clássica cessãode crédito e a II é a assunção de débito, idéia que modernamente reclamasistematização legal.

11. O Título III é destinado à inexecução da obrigação, nos seus aspectos deinadimplemento absoluto e relativo. Daí as duas seções, em que se trata,respectivamente, do descumprimento das obrigações positivas e negativas, e doretardamento ou da mora na execução, que preferi situar neste local a tratar em seguidaao pagamento, por melhor me parecer que, sendo peculiar modalidade de inexecuçãorelativa, seus efeitos antes se prendem a esta do que à solutio.

12. O Título IV é todo ele dedicado à cessação da relação obrigacional, ou extinção daObrigação.

O Capítulo I menciona, nas várias seções, os casos em que a obrigação termina com opagamento, que é a sua forma regular de desaparecer: pagamento comum ou normal,nos aspectos subjetivos e objetivos sua prova, local e oportunidade; pagamento porconsignação, pagamento com sub-rogação, imputação do pagamento, e dação empagamento. Não ignorando que a sub-rogação é tratada ora com modalidade especial depagamento, ora como técnica de sua mutação, preferi, com a lição do Código de 1916,aqui conservá-la, acentuando nela a extinção do vínculo em relação ao credor primitivo.Também não desconheço que a datio in solutum é para muitos considerada modalidadecontratual. Não obstante, a conservação entre as formas de pagamento foi intencional,pois que o objetivo da dação é extinguir a obrigação, mediante a entrega de coisadiversa da res debita, girando o acordo precisamente em torno da escolha da coisa que asubstitui - aliud pro alio - e, desta sorte, não me pareceu aconselhável modificar a noçãoque é perfeitamente clara em nossa doutrina, como no tratamento jurisprudencial, einovar sem vantagem.

O Capítulo II contém a extinção sem pagamento, com as figuras clássicas da novação,compensação e remissão. Aqui não conservei a transação, na qual a finalidade extintivaé menos relevante, razão por que, a exemplo do Anteprojeto de Código de Obrigaçõesde 1941, alijei-a do capítulo do pagamento e tratei-a como espécie de contrato, o que,

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aliás, também faz o Código Italiano de 1942. O compromisso não foi aqui disciplinado,por ser instituto em que predomina o aspecto processual.

No Capítulo III vem a Prescrição e a Decadência, deduzidas na seguinte ordem:disposições gerais; causas impeditivas e suspensivas; causas interruptivas; prazos deprescrição e de decadência.

13. O Título V contém a teoria geral do Contrato.

O Capítulo I refere-se às disposições gerais, partindo da formação do contrato; suarelatividade, com os efeitos do contrato em relação a terceiros e o contrato por terceiro;passa aos contratos aleatórios, às arras, aos vícios redibitórios e à evicção.

O Capítulo II regula a cessação da relação contratual, reunindo em cinco seções asvárias hipóteses em que o contrato sofre a ação de força neutralizadora, que via de regraé extintiva, mas que pode comportar uma atenuação permissiva da sua sobrevivência,porém em termos diversos dos primitivamente ajustados. Neste capítulo, useiterminologia mais adequada do que a do Código de 1916, e resolvi, na forma depronunciamento doutrinário, o problema da revivescência da cláusula rebus sicstantibus, em termos mais adequados à realidade econômica nacional. São estas asseções que o compõem: resilição, bilateral e unilateral; do contrato não cumprido(exceptio non adimpleti contractus); resolução por onerosidade excessiva; eimpossibilidade da prestação.

14. O Título VI, de grande extensão, compreende as várias espécies de contratos, emcuja distribuição deixei um pouco de lado a seqüência do Código de 1916, adotandoorientação que me pareceu mais lógica.

Tratando, por enquanto, apenas de sua disposição topográfica, limito-me, aqui, a indicara ordem em que os contratos se colocam e constituem outros tantos capítulos desteTítulo.

Pela sua própria natureza, ocupa o primeiro lugar o Contrato Preliminar.

Em seguida a Compra e Venda e Permuta, como padrão de contrato oneroso, e reunidosem um mesmo capítulo, em razão de que essencialmente não encontram disciplinajurídica diversa. O Capítulo III é preenchido pelas Modalidades Especiais de Compra eVenda (Retrovenda, Venda a Contento, Preempção, Pacto Comissório, Reserva deDomínio). Pareceu-me melhor considerar estas figuras como variedades da compra evenda típica, do que tratá-las como cláusulas especiais, à moda do Código de 1916.

Capítulo IV, Doação, como padrão do contrato gratuito.

Passa o Projeto, em seguida, a contratos em que predomina a idéia de utilização semtransferência: Locação, Parceria Rural. Vem adiante a Empreitada, e a esta segue-se oTransporte (Capítulo VIII), e, logo depois, o Empréstimo e o Depósito.

Fugindo da sistemática romana, que aliava na mesma etiologia a locatio rerum e alocatio operarum, destaquei da locação de coisas a Prestação de Serviços, aceitando aargumentação dos mais modernos civilistas. E, com este contrato, inaugurei a série dos

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que se inspiram na idéia fundamental da atividade humana: Prestação de Serviços (emvez de locação de serviços), Corretagem, Mandato, Gestão de Negócios, Comissão,Agência e Distribuição, Edição. Convém aqui dizer que a Gestão de Negócios continuapróxima do mandato, e não como fonte especial de obrigações, não somente pelo fato deestar em uma e em outra figura a idéia de representação, como ainda em razão dosefeitos práticos, uma vez que a ratificação os equipara, como já se dizia há dois milanos: ratihabitio mandato comparatur. Seu lugar adequado é, porém, após a disciplinados contratos, como título autônomo.

O Capítulo XVIII é destinado ao Seguro.

O XIX cuida da Transação.

Logo após vem a cláusula Constituição de Renda e a Capitalização que lhe estápróxima. Depois o Jogo e a aposta.

O Capítulo XXII abrange os Contratos Bancários (Depósito, Conta Corrente, Aberturade Crédito, Desconto, Financiamento).

E, afinal, o contrato de Fiança.

15. O Título VII compreende a Declaração Unilateral de Vontade (Promessa deRecompensa e Concursos Públicos).

Depois deveriam entrar, segundo a exposição lógica que defendo, os Títulos de Crédito,se outra fosse a orientação seguida na distribuição dos trabalhos de projetamento.

16. Título VIII, Enriquecimento Indevido, compreendendo nas Disposições Gerais aidéia de enriquecimento sem causa como gênero, e no Capítulo II, o PagamentoIndevido.

17. Finalmente, com o Título IX termina o projeto apresentando a ResponsabilidadeCivil, dividida em dois Capítulos.

No I, a Reparação do Dano: por fato próprio, e por fato alheio; fundada na culpa, comoelemento ontológico erigido em princípio; independente da idéia de culpa; e a gradaçãoda responsabilidade.

No Capítulo II, último do projeto, vem a Liquidação das Obrigações.

Eis a apresentação topográfica do Anteprojeto.

Agora passarei à análise das suas partes, apontando e justificando a posição tomada, emface das controvérsias, das inovações e das disciplinas.

VII - ANÁLISE DO CONTEÚDO

18. Ao proceder à análise do Anteprojeto, não me inspira o propósito de efetuar ocomentário de seus dispositivos. Se a tanto me abalançasse, esta exposição de motivosperderia o seu objetivo de apresentá-lo e se converteria desabusadamente em peça

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doutrinária ou pedagógica. Tendo, porém, este projeto fixado posições destacadas efrancas, diante dos problemas a que visa dar solução, e obedecido a critérios escolhidoscomo orientação sistemática, vejo a necessidade de explicar uns e outra, a fim deproporcionar a todos quantos pretendam colaborar com a sua crítica e as suas achegasna redação definitiva, fazê-lo mais consciente e proveitosamente.

19. No frontispício do projeto, ad instar de Códigos de boa extração, está a origem daobrigação, voluntária ou legal, como tomada de posição em face das controvérsias quedividem a doutrina. Com o propósito de distingui-la dos deveres legais, o projetosalienta a economicidade da prestação.

20. Sobre a manifestação da vontade não há necessidade de baixar a minúcias, pois queos dispositivos falam por si.

21. No tocante aos requisitos da declaração de vontade, o projeto consigna a habilitaçãoespecial, para a renúncia.

22. Manteve o projeto o sistema vigente em matéria de forma e prova dos atosnegociais, a que introduziu algumas inovações úteis.

Para a exigência da escritura pública e para a aceitação da prova exclusivamentetestemunhal, fixou o critério do valor móvel em função do mais elevado salário mínimovigente no País ao tempo do ato. A determinação de um preço conduz à situação que seconhece: durante mais de 50 anos, a prova escrita era exigida para as obrigaçõessuperiores a quatrocentos mil réis; o Código Civil a reclamava para o valor acima de milcruzeiros; e desde a Lei nº 1.768, de 18.12.1952, que se pôs o limite, em Cr$ 10.000.Mas, estas cifras são logo superadas. O que o Legislador de 1952 levou emconsideração no nível de Cr$ 10.000 hoje representa já uma expressão correspondente amais de Cr$ 100.000. E, como é difícil e moroso atualizador um código em vigor,pareceu-me convinhável a indexação, amarrando a exigência probatória ao dobro domaior salário mínimo, que é uma importância conhecida, mas acompanha, entretanto, ospadrões contemporâneos.

23. Ainda em matéria de prova, referiu-se o Anteprojeto aos processos modernos.

A fotocópia, já muito vulgarizada, recebeu o tratamento devido, aceita como elementoprobatório, mas sem o condão de dispensar a exibição do original se contestada, nem desuprir o título de crédito. A apresentação deste não pode ser dispensada, sob pena de umportador malicioso multiplicar o instrumento a seu talante, e instalar a maiorinstabilidade econômico-financeira na vida do devedor, com grave repercussão para ocomércio.

Também o instrumento multiplicado por processo mecânico (multilit, mimeógrafo,cópia-carbono etc.) exige autenticação para valer como documento. Caso contrário, osriscos serão imensos.

Não se omitiu o projeto no tocante à prova resultante da reprodução mecânica daimagem e do som (fotografia, película cinematográfica, gravação eletrônica), mas paracolocá-la no seu devido lugar; como prova plena só terá valor se confirmada por

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confissão; como prova subsidiária será recebida com cautela, tendo em vista que oscortes, os arranjos e as composições poderão deturpar inteiramente a realidade.

24. Ao enfrentar o problema da hermenêutica da vontade, a alternativa das duas escolas- francesa e alemã - ofereceu-se. Fiel a convicções que defendo, mantive no Anteprojetoa orientação do BGB, reduzindo as normas legais de interpretação no mínimoaconselhável. Se vê que a orientação do Código Napoleão, com a consagraçãolegislativa das regras de Pothier, não me parece boa. Cabe à doutrina ensinar como secomporta o intérprete, e aconselha a conduta proveitosa. Mesmo porque, se desce aminúcias o Legislador, acaba a jurisprudência por entender que os preceitos não passamde conselhos, como aconteceu na França.

Mantendo o mesmo princípio do art. 85 do Código de 1916, predominância da intençãosobre a literabilidade da cláusula (Willemstheorie em oposição à Erklärungstheorie),adotei ainda o princípio do Treu und Glauben, a interpretação conforme a boa-fé, esujeição aos usos.

Fixei em complemento, mais duas normas eminentemente práticas.

25. As modalidades dos atos jurídicos não registam alteração substancial, porématualização apontada pela experiência. Embora não oculte minha simpatia pela"pressuposição", achei mais prudente, em nome da segurança dos negócios, prescindirdela.

26. Destinei uma seção à representação. Mas não fiquei com o Anteprojeto de 1941.Considerei, neste passo, aquilo que diz respeito a toda espécie de representação,deixando para a disciplina do mandato o que é próprio da representação convencional, epara a representação legal as normas específicas ditadas em lei.

O Anteprojeto referiu-se à autocontratação, que considerou, em princípio, defesa,ressalvada contudo sua realização quando o representante está autorizado pela lei oupelo representado, porque, nestes casos, a prévia autorização já contém a dualidade devontades necessárias à constituição do vínculo.

27. O projeto, que perfilha a noção clássica de erro, exclui o de cálculo, e afasta os seusefeitos, se a parte, a quem aproveita, oferecer a execução do ato na conformidade davontade real do agente, contanto que o faça antes do prejuízo consumado.

Admite, também, a alegação do erro de direito, quando tenha sido a razão determinadado ato. Consciente, porém, de que a maior objeção que se levanta é a insegurançaoriunda da quebra do princípio nemo ius ignorare consetur ou nemini excusatignorantia legis, tem a cautela de recusar-lhe a invocação quando esta importa emoposição ou recusa à aplicação da lei.

28. Tratando da simulação, adotei o princípio da reserva mental, com o efeito que adoutrina lhe reconhece, subsistência do ato, salvo se o destinatário teve prévioconhecimento da reticência.

29. O Anteprojeto incluiu entre os defeitos do negócio jurídico a lesão, cujos requisitosse alinham em dois planos: o primeiro, objetivo, no avantajamento de uma das partes,

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que aufere do negócio um lucro manifestamente desproporcional ao proveito obtidopela outra, ou exageradamente exorbitante da normalidade; o segundo, subjetivo,consiste no dolo de aproveitamento, quando uma delas abusa da inexperiência ou dapremente necessidade da outra.

Ao seu lado inscreve-se a declaração da vontade emitida em estado de perigo, sob aapuração também de dois elementos: o objetivo, que consiste na onerosidade excessivada prestação; o subjetivo, na necessidade de salvar a si próprio, ascendente oudescendente, de perigo atual de dano grave.

Na ontologia da declaração de vontade, os vícios tradicionais (erro, dolo, coação,simulação, fraude) não preenchem toda a gama dos estados psíquicos, tendentes adeformá-la desajustando do querer puro. Quem é vítima de um dolo de aproveitamento,ou quem assume obrigação movido pela motivação de salvar-se de um risco real,comprometendo-se onerosamente, emite uma declaração de vontade, que permite aindução de não ser verdadeira, e que, se não houvesse a sua mente sofrido taisinfluências, não teria sido proferida.

30. Sob a epígrafe genérica de "insubsistência do negócio jurídico" congreguei todos oscasos em que sucumbe, por defeito de constituição: nulidade e anulabilidade, rescisão,revogação por fraude.

Ao desenvolver a disciplina das nulidades, preferi a sistemática do Código de 1916 à doRegulamento 737, de 1850. A do Código, sem embargo dos ataques que sofre e dasatenções de que a outra escola ainda é cumulada por escritores de hoje, parece-me maislógica e mais simples.

Quando uma formalidade essencial é postergada ou quando uma disposição de ordempública é ofendida, o ato negocial é nulo: incapacidade do agente, afronta a umaproibição legal, impossibilidade absoluta da prestação, desatenção a requisito devalidade, outras causas de nulidade.

Quando a vontade é defeituosa (erro, dolo, coação, simulação) ou quando incapazrelativamente o agente, o ato é anulável.

A nulidade pode ser "argüida pelo interessado, ou pelo Ministério Público, oupronunciada ex officio pelo juiz". A anulabilidade somente pelo interessado pode seralegada, não aproveita senão a quem a invocar, e não produz efeitos antes de julgadapor sentença.

A ratificação convalida a declaração de vontade anulável, com efeito retrooperante àdata de sua emissão, mas a confirmação do ato nulo requer nova e dotada de todos osrequisitos legais, com efeito ex nunc.

A ineficácia parcial não afeta a totalidade do ato.

31. Os atos lesivos, bem como os praticados em estado de perigo, são sujeitos àrescisão, e, desta forma, retoma a lei uma linguagem mais técnica.

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O problema da renúncia foi solucionado, bem como o convalescimento na dependênciade receber o prejudicado o suplemento suficiente ou concordar o beneficiado com aredução do proveito.

32. Os atos praticados em fraude contra credores são revogáveis, ao passo que osrealizados em fraude de execução são nulos.

Estende-se, a igual do Anteprojeto de 1941, a ação revocatícia ao credor privilegiadoque demonstre a insuficiência da garantia.

33. Tratando da classificação das obrigações, o Anteprojeto começa pelas de dar, comoé uso, e consagra, com pequenas alterações, os princípios correntes.

34. Na obrigação de fazer, acentua-se a regra da personalidade da prestação ouinfungibilidade da dívida, ilidida pela convenção ou pelas circunstâncias.

A velha parêmia nemo ad factum precise cogi potest é atenuada com a permissão deexecutar especificamente, quando este fato não importe em constrangimento à pessoa dodevedor.

Generaliza-se, também, a substituição da declaração de vontade pelo pronunciamentojudicial, sempre que a obligatio faciendi nela consiste, e o devedor a recusa.

E, como o interesse do credor é a prestação mesma, esclarece-se que a sentença podeautorizá-lo a promover a prestação, positiva ou negativa, a expensas da outra parte.

Somente em caso de urgência manifesta o credor executará sem prévia decisão do juiz.

35. Inexigível é a obrigação de fazer ou de não fazer quando o devedor a contrair semlimite de tempo ou lugar, ou com cerceamento da sua liberdade. Inexigível, mas válida,porque a solutio espontânea é perfeita.

36. Na obrigação alternativa, o Anteprojeto procurou simplificar a regra da escolha, queé o seu ponto fundamental, seja pelas parte, seja pelo juiz, seja por terceiro.

E instituiu, a par da irrevogabilidade, a simples comunicação como meio técnico demanifestar-se.

37. Ao disciplinar as obrigações divisíveis e indivisíveis, tive em vista a sua velhacomplexidade, que Dumoulin tachava de labirinto, sem contudo esclarecer. Procureifazê-lo, partindo do pressuposto básico de que nem sempre a divisibilidade jurídicaacompanha a divisibilidade material. Esta, às vezes, é possível, mas pode ser afastadapela vontade (indivisibilidade convencional), ou pela lei (indivisibilidade legal), ouporque o fracionamento da coisa torna-a economicamente inaproveitável.

38. O Anteprojeto, em matéria de solidariedade, admitiu-a passiva, como ativa.Considerou-a a parte debitoris, como ainda disciplinou a outra, da parte dos credores,por entender que é útil a solidariedade ativa.

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De olhos postos na realidade, presumiu, a exemplo dos novos códigos, solidária aobrigação, quando vários devedores, em um mesmo instrumento, se obrigam para com omesmo credor, salvo ao interessado provar o contrário.

39. Abriu o Anteprojeto uma seção especial para as obrigações pecuniárias, e instituiu,como regra, o princípio nominalista, a saber que a solutio se faz pelo valor corrente.

Levando em conta os perigos resultantes da estipulação de pagamento em ouro, ou emoutra espécie monetária, fulminou-a de nulidade, ressalvando as exceções que jáconstam da legislação vigente. E adotou a regra da solução na espécie ajustada ou seuequivalente ao câmbio do dia.

40. Admitiu o Anteprojeto as cláusulas monetárias e outros critérios de revalorizaçãodas dívidas pecuniárias (index-number, escalator-clause, cláusula-mercadoria etc.).Mas não as deixou livres. Fiel à posição doutrinária que tenho assumido, fiz consignarno projeto que todo tipo de indexação está sujeito à limitação legal.

41. As obrigações de prestação pecuniária, direta ou indireta, vencem jurosindependentemente de convenção. Mas estes são limitados, como proibido aoanatocismo.

42. O Anteprojeto faculta a repetição do juro pago acima dos limites legais,independentemente de prova de erro ou prejuízo, mesmo que o devedor haja procedidoespontaneamente. As fraudes, neste terreno, são muito numerosas, e é preciso que a leiproteja o devedor, vítima freqüente de processos hábeis dos credores.

43. A cláusula penal perde o rígido conceito de prefixação das perdas e danos, tanto emrazão de ser lícito exigi-la juntamente com a obrigação principal, se for relativa ainexecução, como ainda de ter o credor opção entre a cláusula penal e a indenização doprejuízo.

Mas, ao juiz será lícito reduzi-la em caso de cumprimento parcial, como ainda se lheparecer manifestamente excessiva.

44. O Anteprojeto destina um capítulo à transmissão das obrigações, compreendendo acessão de crédito e a assunção de débito.

Estrutura em termos simples a oponibilidade em função da notificação, da natureza daobrigação, do instrumento do crédito cedido.

45. A assunção de débito é disciplinada no projeto, que desta sorte dá-lhe sistema.Somente é válida se consentida pelo credor, e libera o devedor primitivo bem como seusfiadores, salvo se o contrário resultar da convenção ou das circunstâncias.

46. A aquisição de estabelecimento ou fundo de negócio, bem como a sucessãouniversal por ato inter vivos (como no caso de incorporação de sociedade por outra)opera a transferência de responsabilidade para o sucessor, desde que a operação édevidamente divulgada, subsistindo temporariamente a responsabilidade do devedorprimitivo.

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47. No tocante à inexecução das obrigações, absoluta ou relativa, a regra é sujeitar-se oinadimplente à indenização, que compreenderá o dano emergente, o lucro cessante e oshonorários de advogado. Mas não me pareceu necessário definir uns e outros. Sãoconceitos já muito conhecidos.

48. A cláusula de exclusão é válida, se não ofender a ordem pública e os bons costumes,nem tiver por objeto afastar os efeitos do dolo.

49. Como modalidade que é de inexecução, a mora é tratada em seção deste capítulo.

Mantém-se o princípio da mora ex re nas obrigações positivas e líquidas, somenteexigida a interpelação judicial não havendo prazo tanto nas relações civis quanto nascomerciais.

O Anteprojeto fixa os requisitos e alinha os efeitos da mora nas obrigações de dar, defazer, de não fazer.

Cuida da purga da mora do devedor, como do credor.

50. Passando à extinção da obrigação, o Anteprojeto disciplina em primeiro plano a quedecorre do pagamento e cogita, depois, da extinção sem pagamento.

Em seções distintas são formulados os requisitos subjetivos, os objetivos, bem como olugar e o tempo do pagamento.

51. Dá o Anteprojeto início aos pagamentos especiais com a consignação, que mencionaquando cabível, e alinha os seus efeitos.

52. Segue-se-lhe o pagamento com sub-rogação, que mantive neste Título da Extinçãodas Obrigações preferindo-o a inscrevê-lo no da mutação. Esta sem dúvida ocorre,passando o crédito ao sub-rogado. Mas, dando ênfase ao fato extintivo do crédito emrelação ao antigo reus cedendi, optei pela manutenção do esquema com o qual já ojurista pátrio se habilitou, não encontrando justificativa para modificação.

53. A imputação do pagamento não oferece alteração de monta.

54. Também em relação à datio in solutum preferi manter a colocação topográfica doCódigo de 1916, considerando-a modalidade extintiva de obrigação, em vez de transpô-la para as variedades contratuais. Aliás, as normas a respeito são muito simples, e adação opera, à semelhança da compra e venda ou da cessão de crédito, conforme se tratede coisa com preço determinado, ou título creditório, sem perder as características desolutio.

A evicção da coisa restaura a dívida, mas não faz reviver as garantias fidejussórias nemtorna a vincular os co-responsáveis liberados.

55. Com a novação, entra o projeto na extinção da obrigação sem pagamento.

Algumas questões foram aí clareadas. O lançamento em conta corrente, mesmocontratual, não nova a dívida, se não houver reconhecimento do saldo.

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A novação produz efeito extintivo em relação aos demais, quando ajustada entre um dosdevedores solidários e o credor.

A emissão de título pro solvendo importa em novação da dívida anterior, salvo se ocontrário resultar da convenção.

56. Para a compensação é necessária a fungibilidade das prestações entre si.

57. Remissão e confusão, modalidades extintivas sem pagamento, não reclamamexplicações.

58. Fixando o efeito extintivo da relação jurídica pela prescrição, o projeto afasta de seualcance os direitos indisponíveis e as meras faculdades legais. Na verdade, os primeiros,pelo fato de o serem, não podem sucumbir pela inércia do titular. As segundas não seextinguem pelo não-uso, pois é uma forma de exercê-las o não as utilizar.

A par de outras noções consagradas, o Anteprojeto converteu em norma a velha regraquae temporalia sunt ad agendum perpetua ad excipiendum dizendo que o credor podeinvocar por via de exceção o direito que não mais possa exercer em razão da ocorrênciada prescrição.

59. A regra da decadência vem ao final da Seção I, considerando que a fixação de prazocerto para o exercício de alguns direitos, sob pena de decair deles o titular, afasta asnormas relativas à interrupção, ao impedimento e à suspensão da prescrição. Basta, paraassegurar a posição do credor, o ajuizamento do pedido.

60. Às causas impeditivas e suspensivas da prescrição, o projeto acrescenta, entrecontratantes, a pendência de cláusula de garantia. Na verdade, se a alienante ou cedentefixou prazo, dentro do qual assegura garantia ou assistência ao adquirente, não podecomeçar, ou correr, prazo de prescrição contra o mesmo adquirente.

61. Fixou o Anteprojeto a data do despacho que ordena a citação, se o interessado apromover nos prazos e na forma que a lei processual ordenar, como fato interruptivo.

A prescrição intercorrente, na pendência da lide, somente ocorre com a caracterizaçãodo abandono da causa pelo credor, por mais de trinta dias.

62. Os prazos de prescrição têm um começo determinado, que é o momento em que ocredor poderia exercer em juízo a pretensão. Ou, então, quando a lei o mencionarexpressamente.

63. A prescrição ordinária fica limitada a dez anos. Não se justifica, na era da altavelocidade e dos meios fáceis de comunicação, a subsistência da pretensão não exercidaindefinidamente. Ou o credor utiliza o seu direito ou então sucumbe esta com a criaçãode situação a ele contrária. A tendência foi a redução dos prazos, a começar, então, pelaprescrição ordinária.

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64. Proferida a sentença e passada em julgado, o vencedor deverá promover a suaexecução no prazo igual ao da ação que lhe deu causa, pois que a sentença é causainterruptiva.

65. O projeto igualou o prazo de prescrição do direito de profissionais liberais: médicos,odontólogos, farmacêuticos, advogados, solicitadores, engenheiros, arquitetos,agrimensores, professores e mestres. Esta harmonização é conveniente.

66. Não estão as partes adstritas, para o conteúdo do contrato, à tipicidade deduzida noTítulo VI. Mas devem observar os princípios gerais que compõem o Título V.

67. Assentando o Anteprojeto o princípio da obrigatoriedade da proposta, acrescenta suaextensão aos herdeiros do proponente, ressalvando, além dos casos em que ela deixariade ser obrigatória para o policitante mesmo, aquele outro, da personalidade daprestação. É claro que, se as qualidades pessoais do proponente foram substancialmenteconsideradas, a sua morte é incompatível com a transmissão, aos herdeiros, do dever deguardá-la, em razão de não se lhes estender a contratação futura.

Como em boa doutrina se leciona, a oferta ao público não se considera proposta decontrato, mas convite a que sejam, ao anunciante, dirigidas propostas: invitatio adofferendum. Mas, se já contiver todos os requisitos essenciais à celebração do contratoem perspectiva, equivale à proposta. Pode ao anunciante revogá-la pela mesma viautilizada para a sua divulgação, respeitada a situação criada em relação a candidatos emperspectivas.

68. Foi mantida a teoria da expedição para a formação do contrato por correspondênciaepistolar ou telegráfica.

Foi, igualmente, mantido o critério do Código de 1916, reputando-se celebrado ocontrato no lugar em que foi proposto.

69. O Anteprojeto reuniu em uma seção única as duas hipóteses de percussão docontrato fora do âmbito subjetivo dos contratantes.

A primeira é o contrato em favor de terceiros (denominação melhor do que estipulaçãoem favor de terceiro). Dentre as várias explicações para o fenômeno (teoria da proposta,da gestão de negócios, da declaração unilateral) a melhor é a contratualista, naquelesentido muito bem esplanado por Clóvis Beviláqua: relação contratual dupla, em que aequação se arma entre estipulante e promitente e cumpre-se entre promitente ebeneficiário, sem que se elimine a interferência do estipulante, ao qual é reservada afaculdade de exigir à prestação e conferida com exclusividade a de resolver o contrato.

A segunda é o contrato por outrem (convention de porte-fort), que me parece mais bemsituado aqui do que alhures. O contrato por outrem ficou perfeitamente escoimado dasdúvidas que habitualmente assaltam o aplicador das disposições legais respectivas,geralmente mal lançadas. Assentado o princípio cardeal, segundo o qual o terceiro não éobrigado enquanto não dá o seu assentimento, o Anteprojeto situa a obrigação dopromitente, sujeitando-o a indenizar o outro contratante, se o terceiro recusa o seuacordo. Mas, dado este, o promitente, que não é fiador do terceiro, fica exonerado, enenhuma indenização lhe pode ser exigida se o terceiro, depois de obrigar-se, vem a

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descumprir. Igualmente forro é o devedor, se a prestação futura for, desde o início,absolutamente impossível ou ilícita, porque, sendo inviável o contrato, a anuência doterceiro seria frustra. Então, a sua recusa não causa dano a ninguém.

A incapacidade do terceiro, entretanto, não invalida o negócio, que permanece à esperade que, em se tornando capaz, dê o seu acordo.

70. O contrato aleatório guarda a mesma estrutura do Código de 1916. Houve amelhoria da redação e o expurgo de um erro gráfico daquele Código.

71. O Anteprojeto conservou, quanto às arras, a disciplina do Código de 1916: têmfunção confirmatória, mas podem ser ajustadas como penitenciais. Os seus efeitosforam armados em termos de maior simplicidade do que naquele diploma.

As arras confirmatórias não são incompatíveis com a indenização do prejuízo. Aspenitenciais excluem-na.

72. Atualizada a teoria dos vícios redibitórios, foi dilargado o prazo de caducidade dareclamação para trinta dias, se for móvel a coisa, atendendo a que aparelhos einstrumentos complexos demandam tempo para serem testados.

Mas não corre prazo de decadência se pender cláusula de garantia, obrigando porém aadquirente a denunciar o defeito até quinze dias após tê-lo descoberto.

73. Ao regular a evicção e seus efeitos, o Anteprojeto emendou algumas falhas dodireito vigente, e solucionou alguns problemas que se achavam em aberto.

Equiparou à evicção os casos a ela assemelháveis, que a doutrina habitualmenteenumera e que não convém que o legislador expressamente mencione.

Estendeu a garantia pela evicção ao terceiro adquirente. Esclareceu as hipóteses deevicção parcial considerável e não considerável, abrindo ao evicto, no primeiro caso, aalternativa entre a resolução e a indenização e concedendo-lhe no segundo somente aindenização.

O chamamento em garantia (comumente denominada chamamento à autoria, laudatioauctoris) ficou mais lógico e mais ameno, reconhecido, como João Monteiro jáassinalava e como Teixeira de Freitas já sugeria, que a preclusão imposta semalternativa é demasiado drástica. No Anteprojeto, condicionei o regresso contra oalienante ao chamamento in litem, porém amenizado com a dispensa à vista da liquidezdo direito do terceiro reivindicante.

74. O Capítulo da "cessação da relação contratual" inaugura-se com a resilição.

Depois de repetir o velho princípio de atração da forma do contrato, para o distrato,consignei a hipótese em que este não necessita de ser submetido a qualquer organismoestatal para produzir efeito. E, em tal caso, entendi que deverá ser dispensado orequisito formal.

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Acrescentei a resilição unilateral, ou revogação, nos casos em que a lei o permite, dosquais o exemplo mais frisante é o mandato.

75. A cláusula resolutiva obedece à regra tradicional, mas com inovação salutar: quandotácita, exige interpelação judicial; quando expressa, dispensa-a, bastando a comunicaçãoda parte lesada ao inadimplente, salvo, contudo, se a lei impuser a interpelação judicial,mesmo se ajustada à resolução expressa.

Ficou, também, consignado que se não dará resolução, mesmo quando ajustada, se oinadimplemento for ínfimo em relação ao valor do contrato.

76. A exceptio non adimpleti contractus não sofreu alteração, relativamente ao sistemado Código de 1916.

77. Na resolução por onerosidade excessiva, o Anteprojeto dá guarida à velha cláusularebus sic stantibus, que entrou decididamente no Direito moderno como teoria daimprevisão (Arnoldo Medeiros da Fonseca), ou base do negócio jurídico (Karl Larenz),ou da superveniência (Osti), todas baseadas no velho texto de Nerantius.

O Anteprojeto adota o critério da resolução, com a sentença retroagindo o efeito à datada citação. Mas franqueia ao beneficiado pela mudança das condições objetivas afaculdade de revalidar o negócio, desde que se ofereça a reajustar as prestações no prazoda contestação.

Fica excluída a resolução por onerosidade excessiva nos contratos aleatórios e naquelesem que somente uma das partes assuma obrigações.

78. A impossibilidade da prestação, sem culpa, resolve o contrato.

Mas, se for possível o cumprimento parcial, prevalece quanto à parte possível, salvo seindivisível a obrigação ou se as circunstâncias convencerem de que não tem utilidadenem interesse o cumprimento pro parte.

79. Passando às Várias Espécies de Contratos (Título VI), o Anteprojeto começa com oContrato Preliminar, que estruturou em termos da maior simplicidade.

Deu tipicidade à promessa unilateral, muito freqüente na vida dos negócios, masdescurada pelo Legislador.

E à promessa bilateral de contratar - pactum da contrahendo - assentou contornos queresumem toda a evolução deste instituto no nosso Direito, onde a elaboraçãojurisprudencial e a doutrina, desde a criação viva de Filadelfo Azevedo, lograram vencerobstáculos e atingir o extraordinário desenvolvimento.

Liberto do requisito formal, o contrato preliminar vale sempre. Mas variam os seusefeitos; se não reúne os exigidos para o contrato definitivo, gera contra o inadimplente odever de indenizar; se os enfeixa, é dotado de execução direta.

80. A estrutura do contrato de compra e venda conserva as suas característicastradicionais, que são milenares.

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Foi-lhe conservada a natureza de título causal da transferência do domínio, dentro doque constitui a linha fundamental do instituto entre nós. O princípio da escola francesa,segundo a qual a venda opera desde logo a mutação da propriedade, não vinga. Por isso,o contrato habilita a transmissão, mediante a formalidade essencial do registro, outradição.

Dei ordem e método às disposições, que no Código de 1916 eram desordenadas: trateidos elementos um a um: o preço, a coisa, o consentimento.

Ao cuidar da venda imobiliária, previ o caso de a diferença na área ser para mais do queo título menciona. Destaquei todas as hipóteses e fixei um prazo de decadência ânuo,para que não pairem dúvidas em torno destas operações, especialmente nos meiosrurais, onde estes contratos encontram maior índice de incidência, por tempo muitoprolongado.

81. Resolvi o problema da compra a non domino, em torno da qual três correntes sedigladiam em nosso Direito: para uns o contrato é anulável, para outros é nulo plenoiure, e para outros é ato inexistente em relação ao verus dominus. O Anteprojetoadmitiu o convalescimento da compra e venda de coisa alheia, desde que o vendedorvenha a adquirir a sua propriedade ou o verdadeiro dono dê a sua anuência.

82. As restrições impostas à celebração do contrato de compra e venda são mantidasdentro do esquema tradicional.

83. Uma seção especial para os riscos não oferece novidade.

84. Entre as obrigações do vendedor está a de exibir documentação comprobatória doseu domínio, e bem assim da inexistência de ônus ou empecilhos à execução docontrato.

Ao comprador faculta-se sustar o pagamento do preço, se tiver fundadas razões dedúvida sobre a liquidez do direito do vendedor.

85. Nos efeitos da compra e venda está expressa referência a que a transcrição do títulonão pode ser obstada, a não ser em caso de dúvida regularmente processada.

E, finalmente, estatui o Anteprojeto que se resolvem em indenização quaisquerpreferências instituídas para venda de coisa móvel ou imóvel, salvo quando a leiestabelecer execução direta sobre a coisa mesma. Assim fica resolvida questão que nãotem encontrado solução pacífica entre os doutores e nos tribunais.

86. Na troca ou permuta, o Anteprojeto deu desate à questão levantada a respeito dacaracterização do contrato, quando a torna em dinheiro: preferi a doutrina imaginadapor Aubry et Rau que associa a apreciação subjetiva com a verificação objetiva.

87. Um capítulo foi destinado às modalidades especiais de compra e venda.

88. Muito embora haja forte corrente contrária à retrovenda, em nome dos princípiosmorais e defensivos do interesse do vendedor empobrecido, considerei que o contrato

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deve ser mantido. Tive, entretanto, a cautela de armar o vendedor a retro dos meios dese defender contra as maquinações usurárias do comprador ganancioso: a cessibilidadedo Direito inter vivos, e sua transmissão causa mortis. Desde que o vendedor, em riscode decair do direito, possa investir alguém na faculdade de retrocomprar, diminuem-seos riscos a que se expõe, com o contrato.

89. A venda a contento e a preempção ou preferência foram mantidas. O pacto demelhor comprador foi eliminado, por desaconselhável e inútil.

90. O pacto comissório recebeu tratamento que o põe em harmonia com a estrutura dacondição resolutiva e da cláusula resolutiva expressa, de que é mera modalidadeespecífica. O ideal será a sua abolição pois que a cláusula resolutiva expressa ao caso jáprovê.

91. A venda com reserva de domínio vem preencher lacuna nos contratos típicos, e temcabida qualquer que seja o objeto móvel ou imóvel. Vem estruturada em termos simplese práticos, e defende com justiça ambas as partes.

92. A venda contra documento, que é modalidade habitual no comércio, entra para onovo Código, tranqüila e singelamente.

Esta modalidade de contrato articula-se com a abertura de crédito documentário,disciplinada entre os contratos bancários.

93. O caráter contratual da doação está enfaticamente acentuada.

De acordo com a boa doutrina, assinalei que as liberalidades habituais não são doações,e, portanto, não se sujeitam às exigências legais próprias: gratificações a quem prestaserviço, donativos a instituições pias e filantrópicas, mimos em datas natalícias ousolenes etc.

Eliminei aquela regra esdrúxula, do Código de 1916, validando a aceitação pelo incapazde consentir. É melhor, tendo em vista o caráter social e benéfico da liberalidade pura,conferir-lhe todos os efeitos, independentemente da aceitação do beneficiário incapaz.

Em seção epigrafada, o Anteprojeto trata dos efeitos da doação, e, em seguida, daineficácia, com referência expressa a problemas que o nosso direito positivo nãoresolve, e que constituem tormento para os seus aplicadores.

94. No tocante à revogação da doação, merece acentuar-se a faculdade de promoverem-na herdeiros do doador que morra em conseqüência da ofensa física recebida dodonatário.

Corrigi, na doutrina da ingratidão, a referência à obrigação natural do Código de 1916,substituindo-a por dever moral, como ensinam os mestres.

95. Inicia o Anteprojeto o contrato de locação pelo de coisas, com a adoção das regrastradicionais, acrescidas daquelas que a experiência adotar e, ainda, das que a consulta aoutras legislações sugere.

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96. Tratando da cessação da locação, distinguiu a resolução da retomada. Sãoefetivamente dois conceitos diversos. Resolve-se o contrato de locação pela falta deuma das partes ou pela circunstância de não sobreviver uma utilização satisfatória dacoisa. Retoma-se esta, quando o locador opõe ao locatário a pretensão de reavê-la,recuperando o seu uso.

97. Simplificado o método, a Seção I compreende a locatio rerum genericamente, e aseguinte enumera os deveres das partes, e logo depois a cessação do aluguel.

Na Seção IV, vêm as regras especiais à locação de prédios.

Como já tenho assentado em obra de doutrina, não me parece de boa extraçãoconservarem-se preceitos inaplicáveis e prorrogar por períodos a legislação de exceção.Mais útil será dar ao contrato de locação uma estrutura definitiva, com a fixação dedireito ao locatário. Desta forma, retira-se parcialmente este contrato do regime daliberdade plena de ação do locador, tendo em vista principalmente que a ordem jurídicanão deve desamparar o economicamente mais fraco, ou contratualmente menospoderoso, para gáudio e prazer dos que são melhor aquinhoados da fortuna ou seencontram em posição contratualmente mais vantajosa.

Respeitada a liberdade de contratar, entretanto, põe o projeto limite à convenção doaluguel progressivo, para os inferiores ao salário mínimo vigorante na região ao tempoda celebração do contrato.

Os casos de retomada são especificamente discriminados, bem como determinadas ashipóteses de elevação do preço.

98. A renovação da locação, de prédio destinado ao uso comercial ou industrial, vemdisciplinada no Anteprojeto, escoimada, naturalmente, das disposições de cunhoprocessual, que nele evidentemente não têm cabimento.

99. Na disciplina do aluguel de prédio rural reforçou o projeto a posição do locatário,quer contra exigências ou pretensões do locador, quer contra os azares da má colheita.Neste último caso, não podendo permitir o excesso de individualismo do Código de1916, facultou a redução do aluguel ante o malogro das culturas.

100. A parceria rural, nos seus dois aspectos (agrícola e pecuária), foi ordenada emobediência ao mesmo critério, procurando o projeto acautelar aquele que contribui como seu trabalho.

101. Na disciplina do contrato de empreitada aproveitei para resolver algumas questõesque a prática civil veio suscitando e que reclamam constantes atenções.

A par de alguns pontos, já definidos no direito em vigor, porém mal conduzidos, e agoraclareados, como a teoria dos riscos, aludi a outros, inéditos no velho Código.

Mantida a inalterabilidade do preço ajustado, foi admitida a modificação convencional,bem como a decorrente dos princípios inspiradores da resolução por onerosidadeexcessiva. A prática dos negócios, que é também fonte de direito (René David), mostra

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que nos períodos de instabilidade a empreitada é arma perigosa. A faculdade de reajustepor excessiva onerosidade pode emendar os seus efeitos.

Outro ponto duvidoso da lei vigente é a do prazo de reclamação contra defeitos. OAnteprojeto adotou critério singelo: o empreiteiro responde, nos casos comuns, pelosdefeitos que surjam até trinta dias depois de entregar a obra, e por cinco anos pelos queapareçam nas de grandes edifícios.

Verificado que seja, a ação tem de ser ajuizada em seis meses, sob pena de decadência.

102. O contrato de transporte foi articulado com toda singeleza, visando a umaparelhamento prático da lei, para as soluções imediatas.

Compreende o de pessoas e o de coisas, assinalando o projeto a importância de fixar aresponsabilidade do condutor. Na verdade, é um gênero de atividades muito freqüente, eé preciso que se determine que o transportador é responsável pelos danos às pessoas e àscoisas transportadas, independentemente da apuração de sua conduta.

Procurei eliminar o efeito da cláusula escusativa da responsabilidade com que ocondutor acredita acobertar-se dos ressarcimentos. Não deixei de mencionar o dever detransportar, por parte de quem mantém em tráfego veículo a isto destinado.

Dei tipicidade ao contrato de cruzeiro turístico, tão freqüente hoje em dia, definindo osdeveres de quem promove a excursão.

103. O Anteprojeto, ao regular o comodato, acompanha a sistemática do Código de1916, que é, aliás, a corrente nos diplomas legislativos em geral.

104. Ao discutir o mútuo, os doutrinadores disputam sobre a sua natureza de contratoreal, ensinando que o contrato não se forma sem a tradição efetiva da coisa.

Como demonstrei em minhas Instituições de Direito Civil (vol. III) não é lógica adúvida, porém fruto de puro romanismo. Fiel às minhas convicções, estruturei o mútuoem termos que permitem admitir a perfeição do contrato solo consensu, estatuindo odever de restituição sob a condição da entrega, que passa, assim, a constituir faseexecutória do contrato.

Como o projeto já regula as obrigações de prestação pecuniária, dispensou-se deretornar ao assunto no capítulo do empréstimo, reportando-se àquelas.

105. O conceito de depósito dispensa, igualmente, o romanismo da realidade docontrato. No ordenamento dos preceitos foi mantida a idéia inspiradora tradicional,ablação feita deste aspecto.

Acrescenta-se ao depósito o contrato de guarda ou custódia, com ou sem prestação deserviços (automóvel em garagem, mobília em guarda-móveis etc.).

Mas reporta-se o projeto ao depósito nos Armazéns Gerais, que deve ser regulado àparte, em razão da especialização necessária do contrato, e do título emitido.

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106. Dá o Anteprojeto guarida à corretagem, até hoje relegada para o terreno baldio doscontratos atípicos, e conservada como terra de ninguém. A jurisprudência tem laboradonesta gleba, com inevitável indecisão.

A corretagem, quando objeto de leis e regulamentos especiais, foi respeitada, porquenão há interesse em destruir uma sistemática que produz bons resultados.

O Anteprojeto cogitou, portanto, do contrato de corretagem, como atividade liberal eprocurou estatuir normação quer para a concorrente, quer para a exclusiva, analisandoos efeitos do contrato, obrigações das partes, cessação.

107. Como modalidade específica, o Anteprojeto disciplina o mandato, deslocando-o darepresentação in genere. Ele é um contrato, e, como tal, gera direitos e obrigações domandante para com o mandatário e vice-versa, bem como em relação ao terceiro comoquem o procurador trata. Merece, portanto, ser conservado como contrato típico.

Instituiu o projeto a presunção de solidariedade para os mandatários constituídos nomesmo instrumento.

Procurou solucionar de maneira clara e expressa as dúvidas que a aplicação dospreceitos vigentes tem suscitado.

Simplificou a matéria da cessação, bem como da irrevogabilidade.

No tocante a esta, considerou que o mandato irrevogável efetivamente o é, sem asanomalias do Código de 1916, dentro de cujo regime entendeu-se que o mandatoirrevogável é revogável. Mas ressalvou o caso em que o mandante possa ter causa justapara a cassação.

Não disciplinou o mandato judicial, que deve ser objeto da lei processual e do estatutodo advogado.

108. O anteprojeto, que coloca a gestão de negócios em seguida no mandato, pelosmotivos expostos na parte desta Exposição, relativa à sua topografia, procurousimplificar ao máximo o regime legal do instituto, e procurou solver os problemasexistentes.

Entendendo que não pode haver intervenção oficiosa contra a vontade manifesta dodono, o Anteprojeto a exclui expressamente da caracterização de negotiorum gestio.

Simplificou o problema da gestão útil, compreendendo os casos de reconhecimento pelodominus, além daqueles de apuração objetiva.

109. Na zona dos contratos em que há prestação de atividade, destacas-se a comissão,que amplamente se usa no comércio, e na qual há uma representação de tipo especial.

Cogitei deste contrato tendo em vista a sua disciplina no Código Comercial de 1850,consagrada por mais de um século de uso, acrescentando-lhe inovações aconselhadaspela prática dos negócios, e busquei sugestões nos modelos modernos, especialmente noCódigo italiano de 1942.

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Tratou, assim, o Anteprojeto da comissão simples e del credere, conceituando onegócio, fixando-lhe os efeitos e definindo os direitos e as obrigações das partes.

110. Em seguida, o Anteprojeto passa à agência e distribuição. Até agora, o nossoDireito não o compreendeu como contrato típico. Todas as dúvidas e todos osproblemas que surgem procuram desate no regime do mandato, da prestação deserviços, da comissão e do contrato de trabalho. É um apelo razoável, pois que há, nesteato negocial, algo daquelas figuras. Mas a sua freqüência, no plano nacional como nointernacional, já reclama regulamentação própria e proclamação de autonomia.

Vali-me, na coordenação das normas a respeito deste contrato, da experiênciaprofissional, da prática mercantil e da inspiração dos códigos mais modernos.

A agência e distribuição andam de parelha, ora aglutinadas em um mesmo complexomercantil, ora separadas. Mas, à vista de sua analogia, podem estar reguladas pordisposições comuns, que tanto se aplicam ao caso do agente simples como dodistribuidor ou agente-distribuidor.

Foi previsto o contrato nas suas várias incidências: com e sem exclusividade, e nos seusefeitos, com a fixação dos deveres do comitente e do atente, e dos direitos de um contraoutro, no desenvolvimento geral do contrato, como nas hipóteses de sua cessação.

111. Com o contrato de edição, o Anteprojeto retorna ao Código de 1916, introduzindo-lhe algumas modificações e consolidando disposições já constantes de legislaçãoextravagante.

112. A representação dramática prevê a atualização dos processos cênicos, a películacinematográfica, a radiofonização das peças e a sua exibição no vídeo.

Assegura o projeto os direitos autorais, os de reprodução, e ainda os que dizem respeitoà garantia do artista que trabalha na divulgação da obra, exibindo-se ao vivo, ou porgravação, videoteipe etc. Reporta-se à censura das autoridades.

113. A evolução do seguro, no direito estrangeiro como nacional, tem sido intensa. Aome voltar para este contrato, parei numa alternativa inevitável: regulamentá-lo em todasas suas minúcias, que no plano doutrinário, como legislativo, enchem enormes espaços,ou permanecer em termos de generalidades, e deixar para a legislação especial asminudências indispensáveis. Inclinei-me por esta segunda hipótese, não pelo horror àextensão, pois que o aproveitamento do material legislado no País já seria uma ajudaponderável, mas por ter em vista que a modificação de uma lei isolada traz muito menortranstorno e inconveniente do que a modificação de um código, que resta sempremutilado da derrogação de qualquer dispositivo seu. Preferi, então, fixar as linhas-mestras do contrato de seguro, deixando para as leis especiais e para os decretosexecutivos formar-lhe o tecido conjuntivo, hábil a permitir sua execução.

O Anteprojeto fala no seguro em geral, no co-seguro, no resseguro, no seguro coletivo.

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Inova no tocante ao suprimento probatório, em caso de comprovada perda ou destruiçãoda apólice. Alude em especial ao seguro de responsabilidade civil e libera o seguradodos incômodos da demanda ou de qualquer defesa.

114. O seguro de vida recebeu algumas inovações que me pareceram úteis. Consolideino projeto dispositivos legais referentes à menção de beneficiários ex vi legis para oscasos de faltar ou de não prevalecer a indicação do segurado.

Fiz consignar que não está impedido de ser instituído beneficiário quem é proibido dereceber em doação do segurado. As situações, em verdade, não se equivalem. Proibindoem certos casos a doação, o Código protegerá o patrimônio da família e resguardará aslegítimas dos herdeiros. Mas não encontra justificativa a proibição de proporcionaramparo e proteção post mortem a quem o segurado tem o dever moral de assistir, e aoqual não pode, por circunstâncias dignas de atenção e respeito, dar estado ou transferirbens. Mediante o seguro, cumpre-se a obrigação que a lei natural impõe, e respeita-se aintegridade de um acervo hereditário.

Além de instituir a irretratabilidade da obrigação assumida com a emissão da apólice, oprojeto impõe o dever de pagar o seguro, ainda que uma cláusula em contrário sejainserida no contrato, se o sinistro for devida à utilização de meio mais arriscado detransporte, prática de esporte ou prestação de serviço militar. Não se exime o seguradordo pagamento se a morte ou incapacidade resultar de recusa do segurado a submeter-sea tratamento cirúrgico, por ser direito seu preservar a integridade de seu corpo, aindacom risco de vida. Igual efeito terá a mudança de gênero de atividade ou profissão ou dedomicílio.

115. O seguro mútuo a bem dizer não encontra lugar no Anteprojeto, que ao mesmoalude apenas para se reportar às disposições, constantes de leis e regulamentosespeciais.

116. A transação, a símile do que se passa com outros Códigos, deixou o lugar ocupadoentre as modalidades meramente extintivas de obrigação, e passou para o campocontratual.

Por isso mesmo, reconhece-lhe o projeto força jurígena, habilitando-a a criar, modificarou extinguir relações iguais ou diversas da que tiver originado a pretensão ou acontrariedade à pretensão. Mas a obrigação nascida da transação não tem caráterabstrato. Ao contrário, é sempre motivada ou causada, não prevalecendo se o litígio porela encerrado já se achava definitivamente encerrado, e o transigente o ignorava, ou senenhuma das partes tinha direito ao seu objeto.

Eliminei do Anteprojeto aquela alusão existente no Código de 1916, como em outrosdiplomas, a que tem a transação força de coisa julgada. Este preceito não tem valorcientífico. Melhor será que, tratando-a como um contrato, a lei e a doutrina lhereconheçam os efeitos de um negócio jurídico.

117. O Código de Obrigações deverá disciplinar o contrato de constituição de renda e oCódigo Civil regulará o direito real respectivo, quando o capital entregue ao devedor darenda é um imóvel. Daí o Anteprojeto ter tratado do assunto, muito embora seja este umnegócio de pouco uso.

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118. O Anteprojeto refere-se ao contrato de capitalização, que melhor se situa junto àconstituição de renda do que ao seguro. Mas, tendo em vista a conveniência de manter-se mais suscetível de alterações deixa para a legislação especial as minúcias respectivas.

119. O jogo e a aposta, já disciplinados pelo Código Civil de 1916, encontram guaridano Anteprojeto, com o acréscimo de que não são tratadas como dívidas de jogo asobrigações decorrentes dos sorteios autorizados regularmente, e bem assim as oriundasde competições de natureza esportiva, intelectual ou artística, ainda que o ganhador nãotome parte nelas. É preciso, porém, que obedeçam os interessados às normas legais, ounão contrariem proibições estabelecidas.

120. Os contratos bancários foram reunidos em um só capítulo, porque compõem achamada atividade bancária. Muito freqüentemente, associam dois ou mais contratos,em uma operação complexa, caso em que as disposições de uns e outros são aplicáveis.

É claro que as atividades bancárias não se limitam aos cinco tipos aqui referidos. Comosão, porém, negócios jurídicos definidos, encontram disciplina em relação ao negóciojurídico apropriado.

121. O depósito bancário é o mais comum. Regula-se pelo disposto neste lugar, comopelas regras referentes ao depósito em geral e ao mútuo.

122. A conta corrente, que não é somente de natureza bancária, produz os efeitos que asedimentação de sua prática já lhe reconhecem.

123. Muito próxima, e freqüentemente aliada da conta corrente, é a abertura de crédito,que o Anteprojeto tratou como contrato típico.

Deu, ainda, realce ao crédito documentário, simples ou confirmado, assegurando a esteirrevogabilidade por força de lei. Negócio que vem ganhando terreno dia a dia, o créditodocumentário não deve entretanto, receber tratamento casuístico no Código, porém aíencontrar, tão-somente, a sua estrutura. É um instituto em franca evolução, que se nãopode constringir em limites apertados, que lhe entravem o progresso.

124. O desconto é operação bancária simples, de que se salienta a faculdade de regressocontra os obrigados no título, pelo banco que o adquire.

O redesconto deverá permanecer subordinado à regulamentação própria, para que se nãoconverta em instrumento inflacionário.

125. O financiamento geralmente vem ligado a outro negócio (desconto, abertura decrédito, conta corrente), mas assim mesmo deve ter seu próprio lugar, uma vez que éoperação fluente.

126. Com a fiança chega o projeto ao termo dos vários tipos contratuais. Aproveitando alição de uma experiência milenar, conservei o contrato como é conhecido e usado. Masmodifiquei aquilo que, na tradição do Direito pátrio, me parecia reclamar alteração.

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Depois de ter disciplinado com simplicidade as disposições gerais do contrato, obeneficium excussionis e o beneficium divisionis, cogitei do regresso contra o afiançado.

Amenizei a condição deste, que, se escapava (no regime de 1916) à execução do credor,podia sujeitar-se à ação do fiador contra protelação que reduza as resistências doafiançado, mas em inverter a condição de abonador em exeqüente.

Assegurei ao fiador, por tempo indeterminado, a faculdade de se livrar forro, mediantesimples notificação. Pelo antigo sistema, era necessário propor ação e aguardarsentença, o que traduzia a quase inanidade da medida, conhecida como é a lentidão dosprocessos. Com o preceito do Anteprojeto, o fiador efetiva a sua exoneração, restandoao credor, que se não tenha acautelado com a fixação do termo, defender-se com outrosrecursos, inclusive o vencimento da obrigação.

127. Sob a epígrafe do Título VII, Declaração Unilateral de Vontade, o Anteprojetovolta as suas vistas para esta fonte de obrigações, que se distingue do contrato. É avontade do declarante, independente da anuência ou da emissão volitiva de umaceitante, que, por si só, obriga. Não se trata de uma oferta, à procura de aceitante, e nãohá necessidade de recorrer a este complicado mecanismo para explicá-la, como aindahoje fazem escritores de respeito (Mazeaud et Mazeaud). Sem o receio de Brinz quantoàs dificuldades de distingui-la da proposta, a declaração de vontade deve ser encarada,como já o faz o Código Civil de 1916, como geradora de obrigações, e assim o manteveo Anteprojeto.

128. A promessa unilateral e o reconhecimento de uma dívida geram obrigação para odeclarante, independentemente de investigação da causa, sujeitando-o ao pagamento,ainda que o ato não seja praticado com a intenção da recompensa.

O declarante poderá revogar a promessa, desde que o faça antes de praticado o ato oupreenchida a condição, porque, até então, não surge o sujeito ativo da relação jurídicacriada. Mas não poderá fazê-lo na pendência de prazo aberto.

Em qualquer caso, ao candidato de boa-fé assiste o direito de reembolsar-se do que hajadespendido, salvo se ficar demonstrado que seu esforço e seus gastos se frustrariam.

129. O concurso público é uma outra modalidade de declaração de vontade unilateral,que o projeto encarou em termos análogos aos de Direito vigente.

130. O Anteprojeto adotou critério de sistematização do instituto do enriquecimentosem causa. Enunciou o princípio geral da indenização do que se enriquece à custa dosacrifício alheio, ainda que a causa venha a faltar depois de obtido o proveito.

Ao contrário de outras legislações, para as quais a ação de locupletamento é secundária,no sentido do que somente cabe quando faltar outro meio de reparação, entendi que nãodevia consignar tal restrição, somente geradora de recursos processuais inúteis deexceções desnecessárias, e de eternização dos litígios. Quem tiver outro meio derestaurar o direito lesado poderá usá-lo. Mas nenhum dano social existe no fato detomar rumo, desde logo, pela ação que visa a esta indenização.

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131. O Anteprojeto, dentro do título de enriquecimento indevido, disciplina a restituiçãodo pagamento, acompanhando o Código de 1916, cujas impropriedades emendou, comopor exemplo a referência à obrigação natural, substituída por "obrigação judicialmenteinexigível".

132. O Título IX do projeto formula as regras que ordenam a responsabilidade civil.

Começando pela reparação de dano causado por fato próprio, o projeto assenta as regrasfundamentais, a saber: dever de indenização por culpa, dever de indenização sem culpa,reparação do dano moral e ressarcimento do prejuízo causado pelo abuso do direito.

A idéia de culpa nunca poderá ser abolida da problemática da responsabilidade civil. Elaé hoje insuficiente para conter todo plano da reparação. Mas não se justifica suaabolição. Não há mesmo razão para se prescindir dela. Daí haver o projeto assentado oprimeiro preceito, instituindo o ressarcimento causado pela culpa do agente. Mas nãoprocurou definir a noção de culpa, relegando-a à doutrina, fiel à convicção de que umconceito doutrinário, afirmado no Código, ou ficará superado pela evolução natural ouimpedirá o progresso.

A responsabilidade sem culpa, que é uma conquista do tempo, vem consagrada noprojeto, com a dosagem razoável para que não se exagere a invocação e seja aceitaquando a lei o estabelecer, direta ou indiretamente.

A reparação do dano moral não pode ser recusada.

E o abuso de direito tornou-se hoje, depois de vencer a luta capitaneada por MarcelPlaniol, idéia triunfante. O condicionamento do exercício dos direitos à idéia de umalimitação tornou-se indispensável à paz e à harmonia social. Nas épocas de extremoindividualismo, como foi o período clássico do Direito romano, ou a exacerbação daeconomia no século passado, não se cogitava da frenação dos egoísmos. Cada umpoderia levar às últimas conseqüências a manifestação de suas faculdades. É preciso,porém, atentar que a ordem jurídica não as concede ao homem para a satisfaçãoilimitada de seu gozo; o que ela tem em vista é a coexistência pacífica. E para obtê-la háde fixar fronteiras à utilização dos direitos subjetivos.

Aceitou o Anteprojeto a sugestão do de 1941, sujeitando os bens do incapaz àreparação, se não houver outro meio, e equiparou o menor relativamente incapaz aomaior, para efeito de reparação civil.

Cuidando das escusativas de responsabilidade, desenvolve as noções de legítima defesa,estado de necessidade, cláusula de não indenizar, caso fortuito e força maior.

133. Na responsabilidade por fato alheio, não se cogita da culpa in vigilando, ineligendo etc. O projeto define as responsabilidades, que se sujeitam aos princípiosgerais, que são as linhas mestras do sistema.

Quanto às pessoas jurídicas de direito público, a noção de culpa aparece na apuração dasolidariedade do servidor. A União, o Estado, o Município e a Autarquia respondempelo dano causado por seus servidores ou prepostos. Estes serão co-responsáveis

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solidários, se houverem procedido culposamente e a elas responderão, reembolsando oque forem condenadas a pagar.

134. Na responsabilidade sem culpa, vêm as regras mais ou menos tradicionais. Mas odano ou detentor do animal só se escusa do prejuízo que este causar provando ainevitabilidade do dano ou a provocação da vítima.

O vício ou defeito da construção e o objeto lançado da casa obrigam à reparação.

Mas onde fixei o clímax da responsabilidade sem culpa foi ao aceitar o ressarcimentopelo risco. Com efeito, a complexidade da vida moderna proporciona muitos meios detirar proveito, dilargando a zona de risco alheio. Então deve responder na medida doperigo que criar. É justo que se veja compelido a indenizar, por ter instituído umempreendimento capaz de proporcionar-lhe vantagens ao mesmo passo que generalizaos perigos.

Somente o fortuito o exonera dos efeitos.

135. A responsabilidade civil estende-se ao co-autor e ao que tira proveito ainda que dofato danoso não participe.

A responsabilidade civil independe da criminal nos termos já clássicos. A sentençacondenatória, no juízo criminal, é exeqüível no juízo civil, independentemente da fasede acertamento.

136. O Anteprojeto termina com a liquidação das obrigações, completando e corrigindoos dispositivos atualmente em vigor.

E acrescenta que as regras ali fixadas não são adstritas à reparação do dano causado emrazão dos princípios da responsabilidade civil, porém abraçam a apuração dos prejuízosdecorrentes do descumprimento de quaisquer outras obrigações, voluntariamenteassumidas.

137. Entregando este Anteprojeto de Código de Obrigações aos juristas brasileiros estouconvencido de que colaboro na solução de problemas que atormentam o nosso povo.Sem romper com as linhas de estrutura no Direito ocidental e do Direito brasileiro,introduzi nele aquelas inovações necessárias a que os direitos civis possam exercer-seem respeito aos ditames da consciência coletiva, e sem que se proporcione a situação jáhoje injustificável de acentuar a predominância econômica dos poderosos contra osdesvalidos. Ao revés, a estes, dentro do esquema geral da organização jurídica, foiassegurada margem de garantias.

Este projeto custou trabalho, demandou tempo, impôs sacrifícios.

Oferecendo-o à crítica dos doutos, receberei com humildade as emendas que oaprimorarão.

E tudo estará sobejamente compensado e regiamente pago se com ele puder eu retribuirao meu País o muito que dele tenho recebido, proporcionando-me a oportunidade de

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elaborar a traça de um Código novo, neste programa de reformulação do direitopositivo.

Belo Horizonte, 25 de dezembro de 1963 - Caio Mário da Silva Pereira