cães na rua - habitue-se a perguntar "posso?"

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32 Cães&Companhia 33 Cães&Companhia Passeios na rua... Habitue-se a perguntar: Posso? Cidadania D Por: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal • Fotos: Shutterstock Agora que as férias estão à porta e o tempo a isso convida, os passeios em família são cada vez mais frequentes. Os tempos passados ao ar livre são uma excelente oportunidade para reforçar os laços sociais entre pessoas, e entre os cães e as pessoas… desde que haja respeito mútuo! O primeiro cão que tive desde cachorro, o “Nik- ko”, tinha medo de pessoas. E tinha a sorte (ou o azar, sob o ponto de vista dele) de ter um aspecto muito atractivo, com o seu pêlo desgrenhado. Quando o passeava, se tivesse a sor- te de as pessoas me perguntarem se lhe podiam fazer festas (isto porque a maior parte nem se dava ao trabalho de perguntar e faziam logo), dizia que não, que ele não gostava, pelo que não o queria forçar a uma situação desagra- dável para este. Já a minha mãe, cheia de boas inten- ções, dizia que sim e, se fosse preciso, pegava no cachorro ao colo para as pessoas lhe poderem mexer melhor. Ora, naturalmente, isto só agravava o seu medo, pois ele ficava sem a hipó- tese de escolher o que fazer e não se podia afastar se quisesse. Se fosse consigo, gostava? Imagine… Está você calmamente a dis- frutar o seu passeio, a apreciar a vista, a ver quem passa, quando de repente um perfeito desconhecido vem ter consigo: agarra-o, dá-lhe um abraço bem aper- tado, como se fosse um amigo de longa data, apalpa-o todo e desaparece em seguida. Confuso? Um pouco mais à frente, aproxima-se outra pessoa, pega-o ao colo, enche-o de beijos enquanto lhe fala como se fosse um bebé e vai-se embora. Mas o que é que se passa? Passado mais um pouco, estas situa- ções tornam-se a repetir. Quando é que a sua paciência acaba? O que faria para evitar a situação? Surreal? Certamente! Não passaria pela cabeça de ninguém comportar-se a ajuda de profissionais consoante a situação, mas também que as outras pessoas respeitem o espaço do cão e a sua necessidade de aprendizagem. Primeiro, peça autorização! A maior parte das pessoas, principal- mente as crianças, assim que vêm um cão na rua, de imediato se dirige a ele e começa a mexer-lhe. No entanto, habitue-se, e ensine os seus filhos, a pedir primeiro autorização ao dono. É tão simples e tão mais seguro! E é um sinal de respeito pelo dono e pelo cão. Respeite o que o dono lhe diz, quer con- corde quer não! Nas raras ocasiões em que as pessoas me perguntavam se podiam mexer no “Nikko”, e lhes dizia que não, expli- cando a razão, uma resposta típica era: “Oh, mas ele é tão lindo, claro que não pode ter medo de pessoas!”. O que é que ser bonito tem a ver com ter medo de pessoas? A resposta mais comum quando o dono recusa é: “Por- quê? É mau? Morde?”. me que o cão irá tolerar tudo o que lhe aparecer. E, efectivamente, a maioria dos cães sabe comportar-se minima- mente em público. Mas, e quanto aos que não sabem? Ah, mas esses os seus donos certamen- te deixam em casa! O que é que isso resolve? Um cão que fique permanen- temente confinado em casa nunca aprenderá a comportar-se numa socie- dade humana. É necessário vir para o exterior, calma e controladamente, para aprender as regras que deve cumprir. E, para isso, é preciso não só que o dono esteja disposto a ensiná-lo, com ou sem Normalmente, as pessoas não pensam que poderá haver inúmeras razões para que não seja adequado mexer num cão estranho. À partida, o dono conhece o seu cão melhor que ninguém e será a pessoa mais avalizada (salvo, em algu- mas situações, um profissional especia- lizado) a aferir se o seu animal está ou não confortável e como irá reagir em diferentes situações. Aliás, é precisamente o facto de as pes- soas muitas vezes desrespeitarem as in- dicações do dono que leva a que alguns donos comecem sistematicamente a recusar qualquer contacto entre o seu cão e outras pessoas, criando um círcu- lo vicioso em que o cão poderá inclusive começar a ganhar (ainda mais) medo às pessoas. Mas também não caia no extremo oposto! Pois também é frequente estar- mos a passear o nosso cão na rua e ou- virmos os pais dizerem aos seus filhos: “Não mexas que o cão morde!”. Porquê incutir às crianças o medo aos cães? Se não se quer que a criança mexa no cão, não seria mais razoável assim com perfeitos desconhecidos. No entanto, esta é a realidade de inúmeros cães, quando vão passear – serem fre- quentemente interceptados por pesso- as que lhes querem mexer, enquanto se espera que gostem ou, no mínimo, que não tenham qualquer tipo de reacção negativa! Um cão na rua é um bom cão? Quando vê uma criança na rua, assume imediatamente que é uma criança bem- -educada? No entanto, quando vêm um cão na rua, a maioria das pessoas assu- explicar-lhe porque é que não deve me- xer em cães desconhecidos e ensiná-la a pedir primeiro autorização ao dono? Observe o cão Mesmo que o dono o autorize a mexer no seu cão, observe atentamente se o cão quer efectivamente esse contacto. Muitas pessoas acedem a que estranhos façam festas ao seu cão não porque este gosta da situação, ou porque os donos efectivamente não se importem, mas porque socialmente “fica mal” recusar. E forçar um cão tímido ou receoso ao contacto poderá agravar os seus medos e levar potencialmente a situações que ponham em risco a integridade física da pessoa e/ou do animal. Se prestar atenção ao comportamento do cão, normalmente, ele irá dar muitos sinais se está ou não confortável com a situação. Um cão que voluntariamente vem ter com a pessoa é um cão que, à partida, estará mais predisposto a esta- belecer contacto físico. Mas, e os outros? Alguns sinais indi- cadores de stress (ou sinais calmantes, Deixe ser o cão a optar vir ter consigo, pois isso permite que seja o cão a decidir se se sente confortável com a situação CCP_170_032 035 Cidadania.indd 32-33 12/14/11 9:36:41 AM

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Artigo de reflexão sobre a forma correcta de abordar (ou não!) outros cães na rua

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Page 1: Cães na rua - habitue-se a perguntar "posso?"

32 Cães&Companhia 33Cães&Companhia

Passeios na rua...Habitue-se a perguntar: Posso?

CidadaniaD

Por: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal • Fotos: Shutterstock

Agora que as férias estão à porta e o tempo a isso convida, os passeios em família são cada vez mais frequentes. Os tempos passados ao ar livre são uma excelente oportunidade para reforçar os laços sociais entre pessoas, e entre os cães e as pessoas… desde que haja respeito mútuo!

O primeiro cão que tive desde cachorro, o “Nik-ko”, tinha medo de pessoas. E tinha a sorte (ou o azar, sob o ponto

de vista dele) de ter um aspecto muito atractivo, com o seu pêlo desgrenhado. Quando o passeava, se tivesse a sor-te de as pessoas me perguntarem se lhe podiam fazer festas (isto porque a maior parte nem se dava ao trabalho de perguntar e faziam logo), dizia que não, que ele não gostava, pelo que não o queria forçar a uma situação desagra-dável para este.

Já a minha mãe, cheia de boas inten-ções, dizia que sim e, se fosse preciso, pegava no cachorro ao colo para as pessoas lhe poderem mexer melhor. Ora, naturalmente, isto só agravava o seu medo, pois ele ficava sem a hipó-tese de escolher o que fazer e não se podia afastar se quisesse.

Se fosse consigo, gostava?Imagine… Está você calmamente a dis-frutar o seu passeio, a apreciar a vista, a ver quem passa, quando de repente um perfeito desconhecido vem ter consigo:

agarra-o, dá-lhe um abraço bem aper-tado, como se fosse um amigo de longa data, apalpa-o todo e desaparece em seguida. Confuso?Um pouco mais à frente, aproxima-se outra pessoa, pega-o ao colo, enche-o de beijos enquanto lhe fala como se fosse um bebé e vai-se embora. Mas o que é que se passa?Passado mais um pouco, estas situa-ções tornam-se a repetir. Quando é que a sua paciência acaba? O que faria para evitar a situação?Surreal? Certamente! Não passaria pela cabeça de ninguém comportar-se

a ajuda de profissionais consoante a situação, mas também que as outras pessoas respeitem o espaço do cão e a sua necessidade de aprendizagem.

Primeiro, peça autorização!A maior parte das pessoas, principal-mente as crianças, assim que vêm um cão na rua, de imediato se dirige a ele e começa a mexer-lhe. No entanto, habitue-se, e ensine os seus filhos, a pedir primeiro autorização ao dono. É tão simples e tão mais seguro! E é um sinal de respeito pelo dono e pelo cão. Respeite o que o dono lhe diz, quer con-corde quer não!Nas raras ocasiões em que as pessoas me perguntavam se podiam mexer no “Nikko”, e lhes dizia que não, expli-cando a razão, uma resposta típica era: “Oh, mas ele é tão lindo, claro que não pode ter medo de pessoas!”.O que é que ser bonito tem a ver com ter medo de pessoas? A resposta mais comum quando o dono recusa é: “Por-quê? É mau? Morde?”.

me que o cão irá tolerar tudo o que lhe aparecer. E, efectivamente, a maioria dos cães sabe comportar-se minima-mente em público. Mas, e quanto aos que não sabem?Ah, mas esses os seus donos certamen-te deixam em casa! O que é que isso resolve? Um cão que fique permanen-temente confinado em casa nunca aprenderá a comportar-se numa socie-dade humana. É necessário vir para o exterior, calma e controladamente, para aprender as regras que deve cumprir. E, para isso, é preciso não só que o dono esteja disposto a ensiná-lo, com ou sem

Normalmente, as pessoas não pensam que poderá haver inúmeras razões para que não seja adequado mexer num cão estranho. À partida, o dono conhece o seu cão melhor que ninguém e será a pessoa mais avalizada (salvo, em algu-mas situações, um profissional especia-lizado) a aferir se o seu animal está ou não confortável e como irá reagir em diferentes situações.Aliás, é precisamente o facto de as pes-soas muitas vezes desrespeitarem as in-dicações do dono que leva a que alguns donos comecem sistematicamente a recusar qualquer contacto entre o seu cão e outras pessoas, criando um círcu-lo vicioso em que o cão poderá inclusive começar a ganhar (ainda mais) medo às pessoas.Mas também não caia no extremo oposto! Pois também é frequente estar-mos a passear o nosso cão na rua e ou-virmos os pais dizerem aos seus filhos: “Não mexas que o cão morde!”.Porquê incutir às crianças o medo aos cães? Se não se quer que a criança mexa no cão, não seria mais razoável

assim com perfeitos desconhecidos. No entanto, esta é a realidade de inúmeros cães, quando vão passear – serem fre-quentemente interceptados por pesso-as que lhes querem mexer, enquanto se espera que gostem ou, no mínimo, que não tenham qualquer tipo de reacção negativa!

Um cão na rua é um bom cão?Quando vê uma criança na rua, assume imediatamente que é uma criança bem--educada? No entanto, quando vêm um cão na rua, a maioria das pessoas assu-

explicar-lhe porque é que não deve me-xer em cães desconhecidos e ensiná-la a pedir primeiro autorização ao dono?

Observe o cãoMesmo que o dono o autorize a mexer no seu cão, observe atentamente se o cão quer efectivamente esse contacto. Muitas pessoas acedem a que estranhos façam festas ao seu cão não porque este gosta da situação, ou porque os donos efectivamente não se importem, mas porque socialmente “fica mal” recusar. E forçar um cão tímido ou receoso ao contacto poderá agravar os seus medos e levar potencialmente a situações que ponham em risco a integridade física da pessoa e/ou do animal.Se prestar atenção ao comportamento do cão, normalmente, ele irá dar muitos sinais se está ou não confortável com a situação. Um cão que voluntariamente vem ter com a pessoa é um cão que, à partida, estará mais predisposto a esta-belecer contacto físico.Mas, e os outros? Alguns sinais indi-cadores de stress (ou sinais calmantes,

Deixe ser o cão a optar vir ter consigo, pois isso permite que seja o cão a decidir se se sente confortável com a situação

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como são frequentemente designados) são subtis e poderão passar desaperce-bidos para quem não os conhece, por exemplo: o retrair dos lábios ou a dila-tação das pupilas, que é uma resposta fisiológica de medo e que pode ser pre-paração para uma reacção de “fuga ou ataque”.Outros sinais não são tão subtis, mas muitas pessoas não os sabem inter-pretar correctamente. Como o cão que vira a cabeça de lado, evitando enca-rar a pessoa que se aproxima dele; ele não o faz porque viu algo mais inte-ressante noutro sítio. Ou o cão que co-meça a bocejar ou a lamber os lábios ou o nariz; afinal ele não acabou de comer algo saboroso nem um passeio é altura em que esteja com sono. Ou o cão que placa as orelhas contra a ca-beça ou o pescoço (mais difícil de ver em cães de orelhas caídas, sobretudo quando não se sabe o que se está à procura).Mas alguns sinais são óbvios – o cão inseguro que se aproxima devagar e agachado, o cão que se afasta da pessoa ou que se refugia atrás ou en-tre as pernas do seu dono, está clara-mente a demonstrar que a situação não lhe agrada.

Isto, claro, sem chegar aos extremos de aviso de desconforto como o rosnar e/ou o snapping (dentada no ar, para de-sencorajar uma aproximação). Numa situação destas, porquê insistir? E ar-riscar tornar a situação extremamente complicada para todos os envolvidos?

Como abordar um cão?Vamos assumir que já pediu autoriza-ção ao dono para fazer festas ao cão e o animal não parece estar descon-fortável com a situação. Apesar disso, talvez não seja uma boa ideia chegar ao pé do cão, dar-lhe um abraço e pespegar-lhe com um beijo no meio do focinho!De uma forma geral, os cães não gos-tam de abraços, mesmo das pessoas que conhecem bem. Aliás, basta pensar que esse gesto não só não existe entre cães como lhes elimina a hipótese de se afastarem se quiserem. Apesar de cães com um grande laço entre eles gostem, por vezes, de estar contacto físico estreito um com o outro, o mais parecido com um abraço entre cães ocorre normalmente durante rituais ou lutas hierárquicas entre cães. Não será assim difícil imaginar que este

gesto tem para eles uma conotação diferente da que tem para nós.Então que fazer? Não aborde o animal de frente, isso é intimidatório para o cão. Evite olhar o cão directamente nos olhos (gosta de ter um estranho a olhá--lo directamente nos olhos?). Agache--se ao lado do cão, tornando-se assim mais acessível e cumprindo a etiqueta canina – ao contrário das pessoas, os cães cumprimentam-se de lado, não de frente.Deixe ser o cão a optar vir ter consigo. Isto é muito importante, pois permite que seja o cão a decidir se se sente con-fortável com a situação. Pode mesmo deixar uma mão descaída, para o cão vir cheirar. Ele poderá aproximar-se e ficar a cheirar, ou aproximar-se, cheirar

Para que todos (pessoas e cães) pos-sam disfrutar dos dias soalheiros que aí vêm basta um pouco de bom senso. A maioria dos cães gosta de interagir com outras pessoas, mas nem todos os cães se sentem confor-táveis nessa situação. Habitue-se a pedir autorização primeiro, e apren-

da a interpretar a linguagem corporal dos cães, a maioria dos animais são bastante expressivos e indicam clara-mente a sua disposição, se se souber o que procurar ver.Basta um pouco de respeito mútuo por parte dos donos e das restantes pessoas para que os passeios sejam uma experiência agradável para to-dos envolvidos, e não um martírio para o cão e o dono. D

ao dono se o cão tem algum sitio pre-ferido, e/ou experimente as faces atrás dos lábios, atrás das orelhas, no peito, nos ombros, na base da cauda… É im-portante que o vá fazendo calmamente, sempre observando o cão, e que pare se o cão começar a exibir sinais de descon-forto ou stress.

Em suma…Que diferentes pessoas têm compor-tamentos diferentes perante a mes-ma situação, ninguém duvida; porém, a maioria das pessoas parece pensar que todos os cães devem ter o mes-mo comportamento quando confron-tados com pessoas desconhecidas.

A maioria dos cães gosta de in-teragir com outras pessoas, mas nem todos os cães se sentem con-fortáveis nessa situação

Na presença de um cão estranho que está a passear com o dono na rua, antes de lhe mexer habitue-se a pedir primeiro autorização

e afastar-se de imediato… respeite a sua decisão e não vá atrás dele se se afastar.

Onde mexer?Se o cão der sinais de estar confortável e procurar contacto, a fase seguinte é normalmente as pessoas tentarem fazer-lhe festas. Esta situação também requer frequentemente algum auto-controlo por parte da pessoa.Evite movimentos bruscos, que poderão assustar o cão. Mantenha-se relaxa-do, um corpo tenso ou com sinais de indecisão irá deixar o cão alerta e/ou receoso.A tendência é tentar fazer festas na ca-beça, mas a maioria dos cães não gosta particularmente de carícias aí. Pergunte

À partida, o dono conhece o seu cão melhor que ninguém e será a pessoa mais avalizada para aferir se o seu animal está ou não confortável, e como irá reagir em diferentes situações.

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