cães de rebanho i

3
30 Cães&Companhia 31 Cães&Companhia Etologia D A ssociado à actividade de produção animal, nomeadamente de ovinos e caprinos, o cão tem-se revelado um auxiliar indispensável. Tradicionalmente designados sob o mesmo nome, os chamados “cães de pastor” ou “cães de gado” podem exercer de facto uma de duas funções completamente distintas: enquanto uns auxiliam na condução dos rebanhos (cães de pastor propriamente ditos, cães pastores, cães de condução ou, como são também conhecidos em algumas zonas do país, cães de virar), outros pro- tegem os rebanhos dos ataques de predadores (cães de gado propriamente ditos). No entanto, esta diferença entre os diferentes tipos de cães nem sempre tem sido reconhecida, sendo co- mum ainda hoje, mas particularmente na literatura mais antiga, estes dois tipos de cães serem considera- dos sob o mesmo nome, quer este fosse o de cães de gado, quer o de cães de pastor, quer atribuindo-lhes PR . RUI ÓSCAR T EIXEIRA ©CARLA CRUZ PR . OLIVÉRIO MEDEIROS CARREIRO ©CARLA CRUZ ©CARLA CRUZ ©CARLA CRUZ ©CARLA CRUZ PR . GRUPO LOBO ©CARLA CRUZ Tradicionalmente designados sob o mesmo nome, os animais popularmente designados como “cães de pastor” podem exercer uma de duas funções completamente distintas, requerendo características especializadas: enquanto uns auxiliam na condução dos rebanhos, outros protegem os rebanhos dos ataques de predadores. Ambos os tipos caninos constituem parte integrante do sistema tradicional de maneio de gado europeu. a sinonímia. Como curiosidade, até um livro etnográ- fico datado de 1933, “Etnografia Portuguesa, volu- me II”, de J.L. Vasconcelos, individualiza, nos cães de guarda, os mastins, os cães de fila, os molossos e os cães de montanha, nos quais inclui os cães de gado nacionais; no entanto, na sua classificação dos cães, não parece haver lugar para os cães de pastor. Para evitar confusões na terminologia, e para se con- seguir saber imediatamente a que tipo de animais nos estamos a referir quando falamos destes cães, optei há uns anos por usar as denominações clássicas de “cão de gado”, quando me refiro aos cães de protecção de rebanho; “cão de pastor” ou “cão de pastoreio”, para falar de cães de condução de rebanhos; e por introduzir o termo “cão de reba- nho” quando abordo o conjunto dos diferentes cães que trabalham com o gado. Mas afinal, quais as principais diferenças entre os dois tipos de cães de rebanho? Morfologia dos cães de pastor Os cães de pastor variam consideravelmente em dimensão, mas são em geral de pequeno ou médio porte – normalmente com altura ao garrote inferior a 65 cm e menos de 35 kg de peso – compactos, com focinhos tipicamente compridos e estreitos (apesar de nos cães de condução de bovinos poderem ser mais maciços) e frequentemente de orelhas erectas (ou cortadas de forma a ficarem erectas). A sua morfologia, denominada de tipo lupóide, asse- melha-se à de um predador (o lobo), parecença esta que é acentuada pela coloração típica da pelagem – apesar de poderem apresentar uma variada gama de cores, as preferidas são as tonalidades escuras. Há referências que indicam que os pastores referem que muito branco num cão de pastoreio é indesejável, aparentemente porque as ovelhas não se assustam muito com semelhante cão, talvez porque um cão branco se assemelha menos ao lobo ancestral. Cão de gado vs Cão de pastor Cães de Rebanho Por: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal) Cão da Serra de Aires com o pastor. Cão de Fila de São Miguel a pastorear vacas. Cão de Gado Transmontano com ovelhas. Cão de Castro Laboreiro. Barbado da Terceira. Cão da Serra da Estrela na função de cão de gado, com cabras. CCP_158_030 034 CaoPastor.indd 30-31 6/21/10 1:50:22 PM

Upload: carla-cruz

Post on 16-Mar-2016

224 views

Category:

Documents


3 download

DESCRIPTION

Introdução aos cães de rebanho - cães de gado e cães de pastoreio; diferenças entre eles

TRANSCRIPT

Page 1: Cães de Rebanho I

30 Cães&Companhia 31Cães&Companhia

EtologiaD

Associado à actividade de produção animal, nomeadamente de ovinos e caprinos, o cão tem-se revelado um auxiliar indispensável. Tradicionalmente

designados sob o mesmo nome, os chamados “cães de pastor” ou “cães de gado” podem exercer de facto uma de duas funções completamente distintas: enquanto uns auxiliam na condução dos rebanhos (cães de pastor propriamente ditos, cães pastores, cães de condução ou, como são também conhecidos em algumas zonas do país, cães de virar), outros pro-tegem os rebanhos dos ataques de predadores (cães de gado propriamente ditos).No entanto, esta diferença entre os diferentes tipos de cães nem sempre tem sido reconhecida, sendo co-mum ainda hoje, mas particularmente na literatura mais antiga, estes dois tipos de cães serem considera-dos sob o mesmo nome, quer este fosse o de cães de gado, quer o de cães de pastor, quer atribuindo-lhes

PR. R

UI Ó

SCA

R TE

IXEI

RA ©

CA

RLA C

RUZ

PR. O

LIV

ÉRIO

MED

EIRO

S C

ARR

EIRO

©C

ARL

A C

RUZ

©C

ARL

A C

RUZ

©C

ARL

A C

RUZ

©C

ARL

A C

RUZ

PR. G

RUPO

LO

BO ©

CA

RLA C

RUZ

Tradicionalmente designados sob o mesmo nome, os animais popularmente designados como “cães de pastor” podem exercer uma de duas funções completamente distintas, requerendo características especializadas: enquanto uns auxiliam na condução dos rebanhos, outros protegem os rebanhos dos ataques de predadores. Ambos os tipos caninos constituem parte integrante do sistema tradicional de maneio de gado europeu.

a sinonímia. Como curiosidade, até um livro etnográ-fi co datado de 1933, “Etnografi a Portuguesa, volu-me II”, de J.L. Vasconcelos, individualiza, nos cães de guarda, os mastins, os cães de fi la, os molossos e os cães de montanha, nos quais inclui os cães de gado nacionais; no entanto, na sua classifi cação dos cães, não parece haver lugar para os cães de pastor.Para evitar confusões na terminologia, e para se con-seguir saber imediatamente a que tipo de animais nos estamos a referir quando falamos destes cães, optei há uns anos por usar as denominações clássicas de “cão de gado”, quando me refi ro aos cães de protecção de rebanho; “cão de pastor” ou “cão de pastoreio”, para falar de cães de condução de rebanhos; e por introduzir o termo “cão de reba-nho” quando abordo o conjunto dos diferentes cães que trabalham com o gado.Mas afi nal, quais as principais diferenças entre os dois tipos de cães de rebanho?

Morfologia dos cães de pastorOs cães de pastor variam consideravelmente em dimensão, mas são em geral de pequeno ou médio porte – normalmente com altura ao garrote inferior a 65 cm e menos de 35 kg de peso – compactos, com focinhos tipicamente compridos e estreitos (apesar de nos cães de condução de bovinos poderem ser mais maciços) e frequentemente de orelhas erectas (ou cortadas de forma a fi carem erectas).A sua morfologia, denominada de tipo lupóide, asse-melha-se à de um predador (o lobo), parecença esta que é acentuada pela coloração típica da pelagem – apesar de poderem apresentar uma variada gama de cores, as preferidas são as tonalidades escuras. Há referências que indicam que os pastores referem que muito branco num cão de pastoreio é indesejável, aparentemente porque as ovelhas não se assustam muito com semelhante cão, talvez porque um cão branco se assemelha menos ao lobo ancestral.

Cão de gado vs Cão de pastorCães de RebanhoPor: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal)

Cão da Serra de Aires com o pastor.

Cão de Fila de São Miguel a pastorear vacas.

Cão de Gado Transmontano com ovelhas.

Cão de Castro Laboreiro.

Barbado da Terceira.Cão da Serra da Estrela na função de cão de gado, com cabras.

CCP_158_030 034 CaoPastor.indd 30-31 6/21/10 1:50:22 PM

Page 2: Cães de Rebanho I

32 Cães&Companhia 33Cães&Companhia

O modo de acção destes cães (ladrando, perseguin-do e mordendo o gado) deriva do comportamento predatório. Em consequência, os animais do rebanho exibem uma reacção de medo que origina a fuga, levando-os a afastarem-se do cão.Muito activos e enérgicos, estes cães exibem uma rá-pida capacidade de aprendizagem, sendo, como tal, fáceis de treinar. São muito receptivos aos comandos do pastor, sob cuja supervisão trabalham. Não po-dem ser deixados sós com um rebanho, pois o seu forte instinto predatório pode facilmente levar ao ataque e morte de vários animais.

Morfologia dos cães de gadoEm contraste, os cães de gado são animais em geral de grandes dimensões e corpulência – tipicamente com mais de 65 cm ao garrote e 35 a 65 kg de peso. Pela sua dimensão e aspecto lembram frequente-mente ovelhas, o gado que estão normalmente in-cumbidos de proteger.Morfologicamente são mastins ou amastinados, apresentando tipicamente cabeças maciças e arre-dondadas, orelhas caídas e cauda longa. A pelagem, densa, parece ser o principal factor que permite a distinção das várias raças, podendo ser curta ou lon-ga (tendendo neste caso a ser moderadamente com-

existe uma componente genética importante no que respeita aos traços comportamentais impor-tantes para o pastor, e as diferentes raças têm sido seleccionadas para exibirem padrões comporta-mentais um pouco diferentes consoante a espécie de gado a que se destinam; no entanto, a maioria é versátil e adaptável a trabalhar com outras espé-cies (i.e. ovinos, caprinos, bovinos, suinos, etc.).Ao contrário do que sucede com os cães de gado, é necessário esperar que os cães tenham alguns meses de idade antes de se iniciar o seu treino específi co para a condução do rebanho, em vir-tude de algumas componentes comportamentais fundamentais só surgirem num estado mais tardio do seu desenvolvimento.Um cão de pastor apenas deve ser utilizado após um período de treino e sempre sob a supervisão de um pastor, sem os quais poderá causar danos aos animais do rebanho/manada.

Existem várias teorias para a predominância de cores claras nos cães de gado. Uma é a de que animais de cores claras são mais facilmente dis-tinguidos dos predadores; adicionalmente, nas regiões quentes, esta tonalidade poderá conferir uma melhor protecção relativamente ao calor. Pode também ser devida a uma selecção efectu-ada pelos pastores e proprietários dos cães, dado que animais dessa cor teriam uma maior procura, em detrimento de animais com outra coloração.Outra hipótese é a de que a coloração foi seleccio-nada de forma a assemelhar-se à dos animais que os cães estão incumbidos de guardar. As primeiras cabras e ovelhas domesticadas eram pretas, cin-zentas ou castanhas, tal como os primeiros cães de gado. Cães de cores invulgares (como branco ou malhado) possivelmente seriam mantidos por curiosidade, como animais de estimação. Durante o período romano, as ovelhas de cor branca come-çaram a ser preferidas, o que levou à selecção dos cães também para essa cor.E se o leitor pensa que a cor é um assunto de so-menos importância, basta pensar que já no século I d.C, autores de renome na área da agricultura dedicavam um espaço nos seus tratados para descrever as cores ideais para o cão de guarda do rebanho e para o de guarda de propriedades (na altura não existiam ainda cães de pastor).

Comportamento dos cães de gadoContrariamente aos cães de pastor, os cães de gado não conduzem o rebanho; “limitam-se” a acompanhá-lo nas suas deslocações, como mais um elemento do rebanho, mantendo-se perma-nentemente na sua proximidade mas sem pertur-bar a sua actividade; porém, estão sempre atentos ao que se passa, e se o gado se movimenta, de imediato o acompanham e exploram em redor, certifi cando-se da ausência de ameaças.São animais calmos e independentes; pouco re-ceptivos a comandos, trabalham sem supervisão humana. No caso de confronto com potenciais ameaças, a sua acção é essencialmente dissuasi-va, através de latidos, rosnidos e postura corporal, colocando-se entre o seu rebanho e o intruso, etc.;

prida) e apresentando toda a gama de variações do branco ao preto. Actualmente, na maioria das raças do Centro e Norte da Europa, a cor predominante é a branca; em raças de países mediterrâneos (Portugal, Espanha, Balcãs) e da Ásia Central encontra-se uma maior diversidade de cores.

o ataque directo apenas é utilizado em último re-curso.O modo de acção destes cães não é “aprendido”, mas essencialmente instintivo. O seu comporta-mento deriva essencialmente da vinculação ao gado – idealmente, estes cães deverão ser criados desde cachorros com os animais que irão proteger, passando a encará-los como parte do seu grupo familiar, da sua “matilha”. O comportamento de guarda deriva do comportamento de protecção do seu grupo, pelo que podem ser deixados sozinhos em segurança com o gado. A sua forma de actuar é assim independente de treino pelo proprietário, e inclusive independente da presença do pastor por perto, tendo os cães sido seleccionados ao longo dos tempos para serem capazes de tomar decisões de forma autónoma. É também este fac-tor que os torna tão difíceis de motivar quando se pretende fazer um treino formal (por exemplo, de Obediência) a cães destas raças.

Comportamento dos cães de pastorEm contraste, o modo de acção dos cães de pastor é fundamentalmente aprendido. Naturalmente,

Os cães de gado não conduzem o rebanho; acompanham-no nas suas deslocações protegendo o gado de predadores

Rafeiro do Alentejo (cão de gado) com ovelhas.

Cão de Gado Transmontano.

Cachorro de Cão de Castro Laboreiro.Border Collie (cão pastor) a conduzir um rebanho.

Barbado da Terceira (cão pastor) a pastorear cabras.

Cão de Fila de São Miguel.

Cão da Serra da Estrela de pêlo curto (cão de gado).

PR. G

RUPO

LO

BO ©

CA

RLA C

RUZ

PR. J

OSÉ

EZE

QU

IEL P

IRES

©C

ARL

A C

RUZ

PR. O

LIV

ÉRIO

MED

EIRO

S ©

CA

RLA C

RUZ

PR. D

ÉBA

LO H

ENRI

QU

E ©

CA

RLA C

RUZ

©C

ARL

A C

RUZ

©C

ARL

A C

RUZ

©C

ARL

A C

RUZ

CCP_158_030 034 CaoPastor.indd 32-33 6/21/10 1:50:37 PM

Page 3: Cães de Rebanho I

34 Cães&Companhia

Um exemplo americanoNos anos 1970/80, a equipa de investigação ame-ricana liderada por Raymond Coppinger criou ca-chorros de raças reconhecidas como cães de gado e da raça Border Collie (cães de pastor) em condições semelhantes, tendo constatado não existirem dife-renças signifi cativas no comportamento dos cães até à maturidade sexual.Nesta altura verifi cou-se que os cães de pastor começaram a exibir um comportamento de fi xa-ção por um objecto, vivo ou inanimado, elemento reconhecido como uma componente do comporta-mento predatório e, como tal, necessária em muitos tipos de cães de pastor e indesejável num cão de gado, cuja função é a de proteger e não perturbar um rebanho.Nos cães de gado, pelo contrário, não ocorreu o aparecimento de nenhum padrão motor novo, mantendo estes o seu comportamento juvenil. É precisamente por exibirem um forte instinto preda-tório, reminiscente do seu ancestral selvagem, que os cães de pastor são efi cazes na sua acção, quando abordam o rebanho.

Os cães de rebanho em nossa casa…Pois... esta informação sobre a forma de actuar dos cães de rebanho é bastante interessante, mas cer-tamente apenas se aplica na situação de trabalho com o gado, certo? Será mesmo assim?Quem tem um cão de uma raça de pastoreio, es-pecialmente daquelas que até muito recentemente, ou ainda actualmente, são seleccionadas principal-mente pela sua capacidade de trabalho, certamente já terá reparado que, por exemplo, o seu cão está constantemente à espera que que o dono lhe diga o que fazer. Ou, quando está à solta nos seus pas-seios, tem tendência a tentar agrupar as pessoas à sua volta, inclusive por vezes mordiscando os seus calcanhares. Estas atitudes derivam directamente

do comportamento de pastoreio, da sua tendência para ir buscar e juntar o rebanho.Já quem tem um cão de uma raça de cães de gado facilmente constata que, apesar de o seu cão ter uma grande tendência para passar uma grande parte do dia aparentemente a dormitar, qualquer barulho estranho o irá pôr de imediato de alerta, levando-o a posicionar-se entre a situação estranha e o seu núcleo familiar. Caso o cão tenha à sua disposição um terreno de dimensão sufi ciente, irá alternar as “sestas” com o patrulhamento do perímetro do ter-ritório.Normalmente, numa situação de confronto, é mais difícil levar um cão de gado a morder (o último recur-so após várias exibições de dissuasão) que um cão de pastor, para quem a mordida faz parte do seu traba-lho normal, quando encontra um animal do rebanho que não lhe obedeça.E, naturalmente, o treino de Obediência tende a ser particularmente trabalhoso, não por teimosia ou “burrice” do cão, mas por ser difícil encontrar a moti-vação certa – afi nal, estes cães foram seleccionados para pensarem de forma independente do seu dono, que podia ou não estar presente, ao contrário do cão de pastor, que trabalha com o seu dono e sob sua orientação.D

Um cão de pastor apenas deve ser utilizado após um período de treino e sempre sob a supervisão de um pastor

Cão da Serra de Aires.

Rafeiro do Alentejo.

Cão da Serra de Aires a tra-balhar como cão de pastor.

PR. N

UN

O C

ORO

NH

A ©

CA

RLA C

RUZ

©C

ARL

A C

RUZ

PR. C

ENTR

O D

E RE

PRO

DU

ÇÃ

O D

O R

AFE

IRO D

O A

LEN

TEJO

©C

ARL

A C

RUZ

CCP_158_030 034 CaoPastor.indd 34-35 6/21/10 1:50:45 PM