cadernos do mercado de valores mobiliÁrios · de aquisição das acções pertencentes aos sócios...

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NÚMERO 52 * Dezembro de 2015 Artigos * O Dever de OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo * OPA Derrogatória * Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses * Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo ao Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo: Regime Atual e Perspetivas Futuras CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

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Page 1: CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS · de aquisição das acções pertencentes aos sócios da sociedade X, por preço igual à cotação mé-dia ponderada de tais valores

1 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

NÚMERO 52 * Dezembro de 2015

Artigos

* O Dever de OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo

* OPA Derrogatória

* Negociação por Conta Própria

e os Conflitos de Interesses

* Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo ao Regime Geral dos Organismos

de Investimento Coletivo: Regime Atual e Perspetivas Futuras

CADERNOS

DO MERCADO

DE VALORES

MOBILIÁRIOS

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2 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

N.º 52

Dezembro de 2015

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3 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Editorial 05

Artigos:

O Dever de OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo 09

Carlos Osório de Castro

OPA Derrogatória 40

Domingos Salgado e Juliano Ferreira

Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses 60

Maria João Mateus

Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento

Alternativo ao Regime Geral dos Organismos

de Investimento Coletivo: Regime Atual e Perspetivas Futuras 82

Alexandre Norinho de Oliveira

Índice

Page 4: CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS · de aquisição das acções pertencentes aos sócios da sociedade X, por preço igual à cotação mé-dia ponderada de tais valores

4 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

EDITORIAL

Page 5: CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS · de aquisição das acções pertencentes aos sócios da sociedade X, por preço igual à cotação mé-dia ponderada de tais valores

5 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Editorial A edição n.º 52 dos Cadernos do Mercado de

Valores Mobiliários apresenta quatro artigos de

cariz jurídico.

O primeiro artigo trata a questão do surgimento

de um dever de lançamento de oferta pública de

aquisição (OPA) nalguns casos de circulação do

controlo no interior de um grupo societário,

nomeadamente quando se introduz um patamar

adicional na cadeia de domínio societário. A

interpretação que o autor faz do artigo 187.º, n.º

1, do Código dos Valores Mobiliários

(Cód.VM) — à luz, designadamente, dos seus

elementos teleológicos, das garantias constituci-

onais da autonomia e da propriedade privadas,

das prescrições do direito comunitário e do sis-

tema de imputação de votos entre entidades em

relação de domínio consagrado pelo Cód.VM –

leva-o a concluir que daquele preceito não de-

corre um dever de OPA. Apresentando uma

análise de direito internacional comparado, o

autor sustenta que a tutela dos acionistas mino-

ritários consubstanciada na imposição de um

dever de OPA representa um encargo tão onero-

so para o obrigado que tem de ser reservada

para os casos de verdadeira alteração material

do controlo.

A transmissão intragrupo de uma participação

de controlo não constitui a sociedade adquirente

num dever de OPA porquanto, segundo o autor,

o artigo 20º, n.º 1, al. b), do Cód.VM, consagra

uma imputação i) dos votos detidos por uma

entidade, singular ou coletiva, às sociedades

dela dependentes, ii) dos votos detidos por uma

sociedade à entidade que a domine e iii) dos

votos detidos por uma sociedade à entidade que

a domine a outras sociedades que sejam tam-

bém dependentes da entidade que a domine.

Como a mera alteração de título de imputação

jamais gera dever de OPA (se os votos que são

imputáveis a um novo título já o eram a um ou-

tro, nunca pode, por definição, decorrer daí a

ultrapassagem de um dos limiares de obrigatori-

edade de OPA visto que não há modificação do

número de votos imputáveis), esta interpretação

implica a total inocuidade, para efeitos de obri-

gatoriedade de OPA, tanto das transmissões de

ações por parte de uma sociedade para a pessoa

(singular ou coletiva) que a domine, como desta

última para a primeira, qualquer que seja a per-

centagem do capital da sociedade aberta repre-

sentada pelas ações em causa. Assim, o autor

conclui que a previsão de uma cláusula derroga-

tória do dever de OPA no caso de transmissões

intragrupo não tem verdadeiro conteúdo útil e

que só poderia explicar-se pelo propósito de

prevenir dúvidas, ainda que injustificadas.

No segundo texto estuda-se a matéria da derro-

gação do dever de lançamento de OPA, com

fundamento no lançamento prévio de OPA vo-

luntária, por via da qual o oferente tenha dado

cumprimento às exigências subjacentes à previ-

são deste dever jurídico. Os autores referem que

a OPA derrogatória é um meio prescindível de

proteção dos acionistas minoritários, alcançado

já através da OPA voluntária. Uma vez garanti-

da a real e efetiva possibilidade de saída dos

acionistas mediante recebimento de contraparti-

da equitativa, no âmbito de oferta voluntária

destinada à aquisição de controlo (proteção que

a OPA obrigatória lhes concederia, uma vez

concretizada aquela intenção), a imposição do

dever de lançamento de OPA encontra-se esva-

ziada da racionalidade que tipicamente lhe é

subjacente, procurando afinal proteger quem

beneficiou já da oportunidade de reagir.

Considerando que a derrogação coadjuva na

tarefa de garantir que a OPA não é concluída

em desrespeito pelo princípio de tratamento

igualitário dos seus destinatários – pois se, por

exemplo, transações realizadas na sua pendên-

cia fizerem com que uns recebam contrapartida

superior aos outros, a declaração não deverá ser

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6 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Editorial emitida –, os autores tendem a concluir que a

mesma apenas pode ser apreciada depois de

divulgados os resultados da oferta, só então es-

tando a CMVM em condições de aferir o inte-

gral cumprimento dos pressupostos de que a

derrogação depende.

O terceiro artigo trata a matéria dos conflitos de

interesses na intermediação financeira, em par-

ticular os associados à intervenção dos interme-

diários financeiros autorizados a negociar por

conta própria e que atuam como contraparte dos

clientes. A autora confina o conceito de conflito

à existência de duas ou mais forças com senti-

dos contrários, a que se associa a possibilidade

de ocorrência de um dano, pelo que se uma par-

te tem um benefício sem que a outra sofra uma

desvantagem não há tecnicamente conflito para

efeitos do regime jurídico comunitário (e, logo,

nacional). Nessa medida, conclui que o concei-

to de conflitos de interesses assenta na existên-

cia de relações entre os sujeitos – clientes e in-

termediários financeiros – e os bens aptos a sa-

tisfazer as suas necessidades (valores mobiliá-

rios ou instrumentos financeiros que pretendem

adquirir ou alienar).

A autora refere que a prevenção de conflitos de

interesses dos intermediários financeiros e dos

clientes, nas situações em que os primeiros in-

tervêm como contraparte dos segundos, passa

pela autorização ou confirmação dos negócios

celebrados pelos clientes. Em particular, na ne-

gociação por conta própria, a mitigação de po-

tenciais conflitos resulta: i) de uma segregação

orgânica entre essa área e todas a outras, sem

comunicação de operações ou reportes de valo-

res mobiliários; ii) de uma delimitação detalha-

da das funções dos respetivos colaboradores e

dirigentes, que não poderão participar em deci-

sões de investimento relacionados com outros

serviços financeiros; iii) da adoção de mecanis-

mos de verificação e controlo com reporte de

eventuais conflitos às áreas de compliance; iv)

da criação de procedimentos que obstem à co-

municação da informação existente nesta área a

outras áreas operativas ou de negociação gera-

doras de conflitos.

O último texto analisa a recente transposição

para o ordenamento jurídico nacional da direti-

va relativa aos gestores de fundos de investi-

mento alternativo (GFIA) que redefiniu o qua-

dro regulatório a que os GFIA e, indiretamente,

os próprios fundos de investimento alternativo

(FIA), se encontram sujeitos. O autor identifica

as principais alterações introduzidas ao regime

jurídico anteriormente em vigor e efetua um

juízo crítico sobre as opções adotadas pelo le-

gislador nacional na transposição da referida

diretiva.

A regulação prevista na Diretiva, e vertida para

o ordenamento jurídico nacional, assenta em

duas vertentes: a regulação da dinâmica do go-

verno societário da própria sociedade gestora e

a regulação da atuação da sociedade no âmbito

do sistema financeiro e, designadamente, na sua

interação com o investidor. Nestas duas verten-

tes, o autor analisa criticamente: i) os procedi-

mentos de autorização dos GFIA, que deve de-

correr no Estado Membro de origem; ii) as re-

gras de avaliação de ativos dos FIA, que deve

ser efetuada por entidade externa ao gestor; iii)

os requisitos de fundos próprios do GFIA; iv) o

estabelecimento, pelos GFIA, dos níveis máxi-

mos de alavancagem dos FIA; v) os requisitos

de elegibilidade e os deveres do depositário dos

FIA; vi) os termos em que é autorizada a dele-

gação de funções pelo GFIA; vii) a validação

externa, por um auditor, da atividade dos GFIA

e dos FIA, bem como a imposição de um regi-

me de rotatividade dos auditores; viii) as regras

de governação dos GFIA e, por fim, ix) o regi-

me do passaporte europeu para os GFIA. É

neste último plano que o autor defende que,

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7 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Editorial independentemente das críticas que lhe possam

ser apontadas, a abertura do mercado interno

para a comercialização de FIA com a adoção do

regime de passaporte constitui o inegável trunfo

do regime em causa e que poderá conhecer uma

importante extensão no seguimento das reco-

mendações da ESMA.

Em suma, a diversidade e a qualidade dos temas

apresentados nesta edição dos Cadernos aconse-

lham a sua leitura atenta e cuidada.

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8 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

ARTIGOS

* O dever de OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo

* OPA Derrogatória

* Negociação por Conta Própria

e os Conflitos de Interesses

* Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo

ao Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo:

Regime Atual e Perspetivas Futuras

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9 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

O Dever de OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo

Carlos Osório de Castro

1. O Problema

No passado recente foram publicados artigos,

da autoria de Menezes Cordeiro1, de Ana

Perestrelo de Oliveira2 e de Carlos

Ferreira de Almeida3, relativos à problemáti-

ca do surgimento de um dever de OPA em cer-

tas hipóteses de circulação do controlo no inte-

rior de um grupo societário, os dois primeiros

sustentando, e o terceiro negando, a existência

de um tal dever.

Esses artigos baseiam-se nos pareceres pedidos

àqueles ilustres autores4 no quadro de um litígio

judicial decorrente da situação seguinte: uma

pessoa singular, que detinha o domínio indirec-

to de uma sociedade cotada (sociedade X),

transferiu a integralidade da sua participação

maioritária na sociedade intermédia (sociedade

Y) para uma outra sociedade também sob

o seu controlo (sociedade Z), introduzindo

por conseguinte um patamar adicional na cadeia

de domínio.

1- OPAs obrigatórias: pressupostos e consequências da sua não-realização, Revista de Direito das Sociedades, 2011, n.º 4, p. 927 e segs. 2- OPA obrigatória e controlo indireto, Revista de Direito das Sociedades, 2012, n.º 3, págs. 593 e segs.. 3- OPA obrigatória no direito português. Pressupostos do dever e efeitos civis do incumprimento, disponível em http://www.institutovaloresmobiliarios.pt/estudos/pdfs/1378738637opa_obrigatória_no_direito_português_cfa.pdf. 4- Além destes, foram juntos aos autos mais três pareceres pugnando pela existência do dever (da autoria de Engrácia Antunes, Paulo Câmara e Pedro Romano), e um quarto em sentido contrário (subscrito por Paulo Mota Pinto) — todos, ao que julgamos, ainda inéditos.

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10 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Pretendiam os autores na referida acção judicial

que, em resultado disto, a sociedade Z teria in-

corrido no dever de lançar uma oferta pública

de aquisição das acções pertencentes aos sócios

da sociedade X , por preço igual à cotação mé-

dia ponderada de tais valores nos seis meses

anteriores, implicando um investimento de vá-

rias dezenas de milhões de euros.

É que, segundo alegavam, nos termos do art.

187.º, n.º 1, do Código de Valores Mobiliários

("CVM")5, esse dever é imposto sobre todo

aquele cuja participação em sociedade aberta,

ultrapasse, directamente ou nos termos do n.º 1

do artigo 20.º, um terço ou metade dos direitos

de voto correspondentes ao capital social, sendo

certo que, na situação sub judice, não era preen-

chida nenhuma das hipóteses de "derrogação do

dever de lançamento" previstas no art. 189.º do

CVM, e que a Comissão do Mercado de Valo-

res Mobiliários não tem hoje em dia competên-

cia para dispensar o cumprimento do dever, ao

contrário do que sucedia no domínio do anterior

Código do Mercado de Valores Mobiliários

(“CodMVM”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º

142-A/91, de 10 de Abril.

Mas esta posição afigura-se-nos completamente

insubsistente: devidamente interpretado o art.

187.º, n.º 1, do CVM — à luz, designadamente,

da teleologia que lhe é ínsita, das garantias

constitucionais da autonomia e da propriedade

privadas, das prescrições do direito comunitário

e do sistema de imputação de votos entre enti-

dades em relação de domínio consagrado pelo

CVM — temos por seguro, ressalvado o respei-

to devido aos paladinos da posição contrária,

que desse preceito não decorre um dever de

OPA na situação examinada.

A própria CMVM o reconheceu por diversas

vezes de forma inequívoca, salientando numa

dessas ocasiões ser tal entendimento "o domi-

nante no mercado de capitais e o corresponden-

te à actuação anterior da CMVM em casos si-

milares e já na vigência do Código de Valores

Mobiliários", sem que essa actuação anterior

tivesse sido alguma vez contrariada por quem

Pessoa singular

Sociedade Y

Sociedade X

Situação anterior à constituição

da Sociedade Z

Situação posterior à constituição

da Sociedade Z

Sociedade X

Pessoa singular

Sociedade Z

Sociedade Y

>50%

>50%

>99.9%

>50%

>50%

5- Pertencem ao CVM os preceitos doravante citados sem indicação de fonte.

Graficamente:

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11 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

quer que seja.

2. Sinopse

Seguidamente apresentamos um brevíssimo

resumo das razões pelas quais entendemos que

a transmissão intra-grupo de uma participação

de controlo não constitui a sociedade adquirente

num dever de OPA.

Mostrar-se-á que o art. 20.º, n.º 1, al. b), do

CVM, consagra uma imputação (i) dos votos

detidos por uma entidade, singular ou colectiva,

às sociedades dela dependentes, ii) dos votos

detidos por uma sociedade à entidade que a do-

mine, (iii) dos votos detidos por uma sociedade

a outras sociedades que sejam também depen-

dentes da entidade que a domine.

Uma imputação nesses termos já era, aliás,

prescrita pelo anterior CodMVM, sendo certo

que viria mais tarde a ser imposta aos Estados-

Membros pelo direito comunitário: a Directiva

2004/25/CE (doravante amiúde apenas

"Directiva") obriga a que, para efeitos de obri-

gatoriedade de OPA, se contem os votos ineren-

tes a acções detidas por pessoas que actuem em

concertação com o "oferente" (art. 5.º, n.º 1) e

impõe, ademais, que as pessoas controladas por

outra pessoa sejam consideradas como agindo

em concertação com essa pessoa e entre si (art.

2.º, n.º 2).

Nas alterações introduzidas ao CVM pelo

Dec.-Lei n.º 219/2006, de 2 de Novembro, que

procedeu à adaptação do nosso direito à Directi-

va, usa-se a expressão "pessoas que com o ofe-

rente estejam em alguma das situações do n.º 1

do art. 20.º" como compreendendo todas as

"pessoas que actuem em concertação com o

oferente" na acepção da Directiva, coisa que só

pode implicar uma leitura da referência às enti-

dades ligadas por um relação de domínio ou de

grupo constante da al. b) do n.º 1, do art. 20.º,

que atribua relevância tanto ao sentido ascen-

dente como ao sentido descendente.

Como a mera alteração de título de imputa-

ção jamais gera dever de OPA (se os votos

que são imputáveis a um novo título já o eram

a um outro, nunca pode, por definição, decor-

rer daí a ultrapassagem de um dos limiares de

obrigatoriedade de OPA — não há modifica-

ção do número de votos imputáveis), esta in-

terpretação do art. 20.º, n.º 1, al. b), implica

a total inocuidade, para efeitos de obrigatori-

edade de OPA, tanto das transmissões de

acções por parte de uma sociedade para a

pessoa (singular ou colectiva) que a domine,

como desta última para a primeira, qualquer

que seja a percentagem do capital da socie-

dade aberta representada pelas acções em

causa.

Daí que uma cláusula derrogatória do dever de

OPA no caso de transmissões intra-grupo não

tenha verdadeiro conteúdo útil e só possa expli-

car-se pelo propósito de prevenir dúvidas, ainda

que injustificadas.

Por outro lado, o problema em apreço coloca-se

nos mesmos termos sempre que o accionista de

controlo de uma sociedade cotada adquire o

domínio de uma qualquer outra sociedade (por

isso que sempre serão atribuídos a esta última

os direitos de voto na sociedade cotada imputá-

veis a tal accionista).

A questão de uma eventual obrigatoriedade de

OPA decorrente da circunstância de os votos já

detidos por uma certa entidade passarem a ser

imputados a uma sociedade que ela domine,

coloca-se, portanto, não no momento de uma

eventual transmissão de valores da primeira

para a segunda, mas no próprio momento em

que a relação de domínio entre ambas se

constitui, seja ou não a (nova) sociedade

dependente titular de acções da sociedade

aberta.

Seria absurdo, porém, que o legislador pudesse

ter querido impor OPAs em todos os casos em

que a um "grupo" é adicionada uma sociedade

dependente, seja esta constituída de raiz ou

O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 11

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12 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

adquirida a terceiros (e independentemente de

ela ter ou não acções da sociedade visada ou de

se situar num qualquer patamar intermédio en-

tre as sociedades detentoras dessas acções e a

entidade cabeça do grupo).

A lei reconhece, ao invés, uma espécie de

controlo pelo grupo: "o controlo pertence ao

grupo na configuração que tem em cada mo-

mento" com o que a inclusão adicional de soci-

edades não conduz a uma aquisição do controlo

e não obriga a OPA. Este parece ser realmente

o caminho indicado. Qualquer entidade e as

diversas sociedades que a mesma em cada

momento domine, directa ou indirectamente,

devem ser encaradas como constitutivas de

um organismo cuja identidade se mantém

enquanto for a mesma a entidade controla-

dora, não sendo afectada por alterações

ocorridas ao nível das suas células componen-

tes.

Esta leitura encontra apoio no art. 17.º, n.º 3 (o

dever de divulgação de participação qualificada

pode ser cumprido por qualquer uma das socie-

dades com as quais a sociedade participada se

encontre em relação de domínio ou de grupo),

e, sobretudo, no art. 16.º, n.º 4, que impõe que a

comunicação de aquisição ou alienação de par-

ticipação qualificada inclua “a identificação de

toda a cadeia de entidades a quem a participa-

ção qualificada é imputada nos termos do n.º 1

do artigo 20.º”, na medida em que tais preceitos

dão conforto à ideia de que o legislador olha

para as entidades em relação de domínio ou de

grupo como um conjunto, e cuida sempre de

que haja informação sobre quem ocupa o lugar

de topo na cascata de controlo, na medida em

que esse é que é o dado relevante ou crítico pa-

ra os investidores.

E, na verdade, ao longo de mais de 20 anos

nunca a ninguém ocorreu clamar por OPAs em

cada ocasião em que uma sociedade passou

a ser dependente, directa ou indirectamente, de

pessoa que detivesse mais de 50% dos votos

em sociedade aberta. Ora o valor da segurança

jurídica (que em matér ia mobiliár ia assume

particular acuidade) postula que os destinatários

de uma norma possam confiar em que os tribu-

nais a aplicarão com o sentido que generaliza-

damente lhe seja atribuído.

Como quer que seja, mesmo que a imputação

funcionasse apenas em sentido descendente,

não teria surgido qualquer dever de OPA no

caso vertente. Restruturações no seio de um

grupo não podem desencadear um dever de

lançamento de OPA, na medida em que pressu-

posto desse dever é que surja um “potencial

de influência que anteriormente não existisse”

— assim o impõem razões jurídico-

constitucionais e o próprio direito comunitá-

rio; e “isso não é o que se passa nos negócios

entre um accionista e aquelas pessoas cujos

votos lhe sejam imputáveis (ou aliás também

entre tais pessoas)”, não havendo “nenhum

interesse digno de tutela dos accionistas exter-

nos em que lhes seja feita uma (nova) oferta

obrigatória”.

A exigência de uma "absoluta neutralidade da

modificação intragrupo do controlo" (para que

não exista dever de OPA é totalmente vazia de

sentido, pois há inúmeros casos que não benefi-

ciam de uma "derrogação" e em que não é obri-

gatória a OPA, apesar de ocorrerem alterações

verificadas ao nível do controlo do ponto de

vista material (por força, designadamente, de

modificações dos títulos a que os votos são im-

putáveis a determinado participante).

O interesse dos minoritários não é o único que

está em jogo no instituto das OPAs obrigató-

rias. A sua protecção tem de manter-se dentro

de limites razoáveis e não pode ir ao ponto de

sacrificar a liberdade do accionista de controlo

de movimentar a sua participação no interior do

seu grupo empresarial; enquanto se mantiver a

cúpula do grupo, os accionistas continuarão

a confrontar-se com a mesma situação de

domínio, em termos substanciais.

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13 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Por força dessa liberdade, os sócios minoritá-

rios sabem que, cessada a relação de domínio

entre a pessoa controladora e a sociedade que

seja a titular directa da participação, apenas se

tornará obrigatória uma OPA se e quando essa

sociedade vier a tornar-se dependente de ou-

tra ou outras entidades. Assim o reconhece

nomeadamente a doutrina alemã: a empresa-

filha não fica obrigada a OPA no momento em

que cessa a relação de dependência e em que

pela primeira vez ela pode exercer de modo

independente o seu controlo directo sobre a so-

ciedade visada.

3. A ultrapassagem de um dos limiares

relevantes como facto determinante

do dever de OPA (a irrelevância

da alteração do título de imputação)

Nos termos do art. 187.º, n.º 1, do CVM, o de-

ver de OPA advém de a participação em socie-

dade aberta ultrapassar, “directamente ou nos

termos do n.º 1 do artigo 20.º, um terço ou me-

tade dos direitos de voto".

Vem daqui que quem já se encontre acima do

patamar dos 50% dos votos6 não incorre no

dever de OPA enquanto a sua participação

assim se mantiver, independentemente de

todas e quaisquer modificações que possam

ocorrer relativamente ao(s) título(s) a que os

votos lhe são imputáveis.

É o que sucede, por ex., quando uma sociedade

adquire acções a um dos seus administradores

(os votos em causa deixam de ser-lhe imputa-

dos nos termos do art. 20.º, n.º 1, al. d), para

passarem a sê-lo nos termos do corpo do arti-

go), ou quando uma sociedade dela dependente

aliena acções a um terceiro que as detém por

sua conta (os direitos de voto em causa deixam

de ser imputados à sociedade dominante sim-

plesmente nos termos da al. b) do n.º 1 do art.

20.º, para passarem a sê-lo nos termos conjuga-

dos dessa alínea e das als. i) e a)7).

No ensinamento de Christoph von Bülow, no

âmbito do direito alemão:

“Em todos estes casos mantém-se inalterado o

montante absoluto da percentagem de direitos

de voto do titular do controlo. Por isso mesmo

estas operações tão pouco conduzem a uma

(renovada) obtenção do controlo sobre a socie-

dade visada. Se em consequência da alteração,

a influência de facto do titular do controlo

aumenta ou não, é irrelevante. O que conta é,

apenas, que o montante da percentagem de

direitos de voto do titular do controlo na socie-

dade visada se mantém inalterado”8

(sublinhado nosso).

Particularmente impressivos são alguns dos

exemplos figurados por Thomas Libscher9.

Este autor, depois de explicar outrossim que

o dever de OPA, segundo o texto e o telos da

lei, depende de uma mudança de controlo

(entendido “controlo” como a detenção, directa

e/ou por via do jogo das regras de imputação,

de votos em percentagem igual ou superior a

30%), e que alterações do título de imputação

são irrelevantes para o efeito (“decisivo é se o

sujeito da imputação, ou seja, a pessoa em con-

creto relativamente à qual se coloca a questão

do dever de OPA, já anteriormente à operação

O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 13

6- Brevitatis causa ao aludirmos a percentagens de direitos de voto omitiremos frequentemente a referência a que se trata dos "direitos de voto correspondentes ao capital social de determinada sociedade aberta"; pela mesma razão usaremos o termo "votos" como sinónimo de "direitos de voto". 7- Como os direitos de voto continuam a ser imputados à sociedade dependente (agora nos termos da al. a)), a imputação à sociedade continua também a manter-se, já que, por força da als. i) e b), são imputados à sociedade dominante todos os votos que sejam imputados à dependente (e não apenas os votos inerentes às acções de que a sociedade dependente seja detentora). 8- Kölner Kommentar zum Aktiengesetz, anotação 92 ao § 35 da WpÜG (sublinhado nosso). No mesmo sentido veja-se Hommelhoff/Witt, in Frankfurter Kommentar zum Werpapiererwerbs- und Übernahmegesetz, 3.ª edição, 2008, anotação 51 ao § 35, e os autores citados na nota 78, bem como, finalmente, Steinmeyer, WpÜG - Kommentar, de Steinmeyer/Häger, 2.ª edição, anotação 29 ao § 35 ("aquele que já tiver o controlo no sentido do § 29, II, não poderá mais adquirir o controlo da sociedade visada"). 9- Die Zurechnungstatbestände des WpHG und WpÜG, in ZIP – Zeitschrift für Wirtschaftsrecht, 2002, págs. 1014 e segs.

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14 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

detinha uma posição de controlo, directa ou

indirecta, ou se não era este o caso e essa

pessoa cai pela primeira vez no âmbito de apli-

cação dos §§ 35 e segs”), ilustra o ponto com

os casos em que:

a) as acções representativas de 30% ou de mais

de 30% dos votos, na sequência da dissolu-

ção da sociedade holding que as detinha, são

distribuídas aos accionistas co-controlantes

da mesma holding, independentemente de

essa distribuição se fazer ou não na pro-

porção das suas participações na mesma

(não havendo dever de OPA inclusive na

hipótese de todas as acções detidas pela hol-

ding serem atribuídas a apenas um dos seus

accionistas);

b) é alterado o conteúdo de acordo parassocial

que, já antes dessa modificação, provocava a

imputação de pelo menos 30% dos votos a

cada um dos seus diversos intervenientes;

c) pessoas que se limitavam a agir de modo

concertado relativamente a 30% ou mais de

30% dos votos optam por outorgar um acor-

do parassocial.

Concretizando um pouco mais.

Quanto à al. a). Suponha-se que a sociedade

detentora de mais de 50% dos direitos de voto

inerentes ao capital social de uma sociedade

cotada tem apenas 2 accionistas, cada um com

50% do capital e ambos titulares de um contro-

lo conjunto sobre a sociedade cotada, por força

de um acordo parassocial. Dissolvendo-se a

sociedade dominante, não surgirá dever de OPA

sobre a sociedade cotada mesmo que a totali-

dade da participação nesta seja atribuída na

partilha a apenas um desses accionistas (ao

accionista em causa passam a ser imputados os

direitos de voto correspondentes a essa partici-

pação nos termos do proémio do art. 20.º, n.º 1;

mas não há ultrapassagem dos 50%, porquanto

a mesma quantidade de votos já lhe era anteri-

ormente imputada, em conformidade com o art.

20.º, n.º 1, al. b)).

Quanto à alínea b). Admita-se que 3 accionistas

de uma sociedade cotada, um (A) titular de uma

participação de 30% dos votos, outro (B) de

uma participação de 15% e outro (C) de uma

participação de 6%, são partes num acordo que

os obriga a votar nas assembleias gerais de uma

sociedade cotada em consonância com o senti-

do fixado em votação realizada anteriormente

no quadro do sindicato, pertencendo nessa vota-

ção um voto a cada um dos contraentes. Se o

acordo for alterado por maneira que a votação

no interior do sindicato se não faça por cabeça

mas em razão da participação na sociedade co-

tada detida por cada um dos contraentes, tão

pouco surgirá dever de OPA, apesar de A se

assenhorear de uma influência muito superior à

que possuía até então (neste caso a cada um dos

três accionistas continuarão a ser imputados

51% dos votos, tanto antes como depois da alte-

ração, nos termos da mesma alínea, a saber, da

al. c) do n.º 1 do art. 20.º). E as coisas não se

alteram se, subsequentemente, A alienar 25% a

C, embora isso tenha como efeito tornar C no

líder do sindicato.

Estas considerações são plenamente válidas no

nosso direito. Quem detiver o domínio formal

— entendido aqui, para simplificar, como a de-

tenção de votos superior a 50% “directamente"

ou “nos termos do n.º 1 do artigo 20.º" em per-

centagem superior a 50% — nunca fica obri-

gado a lançar uma OPA, por mais radicais

que sejam as alterações verificadas ao nível

desse controlo do ponto de vista material;

partindo-se de uma participação superior a

50% não se pode, por definição, ultrapassar

essa percentagem10. Isto mostra, só por si,

quão falha de sentido é a tese da "absoluta

10- Nos termos do art. 1.º, al. c), Regulamento n.º 5/2008 da CMVM (a exemplo do que constava anteriormente do art. 2.º, n.º 1, al. d), do Regulamento da CMVM n.º 4/2004), a alteração do título de imputação deve simplesmente ser objecto de divulgação pública.

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15 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

neutralidade da modificação intragrupo do

controlo" (Ana Perestrelo de Oliveira):

como se acaba de demonstrar, a modificação

objectiva do controlo é completamente

irrelevante para efeitos do surgimento de

uma obrigação de OPA11.

4. A circulação de votos no seio

de entidades ligadas por uma relação

de domínio no direito comparado

A generalidade dos países da União Europeia,

por uma via ou por outra, não impõe um dever

de OPA nas hipóteses em que uma participa-

ção de controlo circula no interior de um

mesmo grupo societário. Seguidamente ana-

lisar-se-ão os exemplos italiano, alemão, espa-

nhol e francês.

4.1 O exemplo italiano

O art. 106.º, parágrafo 1, do Testo Unico della

Finanza12, estatui que "aquele que, na sequên-

cia de uma aquisição, venha a deter uma parti-

cipação superior ao limiar de 30% promove

uma oferta pública de aquisição [geral]".

No n.º 5 do mesmo artigo acrescentava-se:

"A Consob13 estabelece em regulamento os ca-

sos em que a ultrapassagem da participação

referida no n.º 1 (...) não acarreta obrigação de

oferta se for realizada entre pessoas que dete-

nham o controlo ou resultar da (…)

c) transferência de títulos (...) entre sujeitos

ligados por relevantes relações de participa-

ção".

Em conformidade, o Regolamento di Attuazio-

ne del Decreto Legislativo 24 Febbraio 1998,

n. 58, concernente la disciplina degli Emittenti

prescreve, no seu art. 49, parágrafo 1, al. c),

que não há obrigação de oferta "se a participa-

ção for transferida entre sociedades em que o

mesmo ou os mesmo sujeitos disponham, ainda

que conjuntamente e/ou indirectamente, atra-

vés de sociedade controlada no sentido do

art. 2359, parágrafo 1, número 1, do Código

Civil14, da maioria dos direitos de voto exercí-

veis em assembleia ordinária, ou seja transferi-

da entre uma dessas sociedades e aqueles su-

jeitos".

Pois bem. Como bem observa Ana Perestrelo

de Oliveira15, na Comunicazione n. DE-

M/2009909 de 13-2-2002, a Consob esclarece

que a isenção se aplica "a 2 tipologias de opera-

ções intragrupo:

a) uma em que a transferência da participação

relevante, directa ou indirecta, na sociedade

cotada tem lugar horizontalmente entre so-

ciedades controladas de direito16, ainda que

indirectamente, pelo mesmo, ou, conjunta-

mente, pelos mesmos sujeitos de direito

(entre sociedades "irmãs");

b) outra em que a transferência tem lugar em

sentido vertical, entre sujeitos ligados por

uma relação de controlo de direito, ainda

que directo ou conjunto (entre sociedades

"mãe e filha") ou entre pessoas físicas e so-

ciedades controladas".

Sinceramente não se alcança onde é que Ana

Perestrelo de Oliveira pretende ir buscar

O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 15

11- Exceptua-se, claro está, o caso em que o sujeito em causa ultrapasse de novo os 50%, depois de, por um segundo que seja, ter descido abaixo dessa fasquia. 12- Decreto legislativo 24 Febbraio 1998, n. 58., tal como actualmente em vigor. 13- Commissione Nazionale per le Società e la Borsa. 14- Ou seja, “sociedade em que outra sociedade detém a maioria dos votos exercíveis em assembleia geral ordinária”. 15- OPA obrigatória cit., pág. 638. 16- O controlo de direito é o mesmo que o “controlo no sentido do art. 2359, parágrafo 1, número 1, do Código Civil” (cfr. a nota anterior) — e nada tem a ver, por conseguinte, com a noção de grupo de direito por contraposição a grupo de facto, a que se refere a nossa doutrina.

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16 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

apoio para a afirmação de que "os casos excluí-

dos são apenas aqueles em que o precedente

controlo pela sociedade adquirente torna abso-

lutamente neutros os efeitos das operações su-

cessivas”17, sendo condição necessária mas não

suficiente a manutenção do ultimate beneficial

owner.

É que “a manutenção do ultimate controller ou

do ultimate beneficial owner” só “não é critério

único e exclusivo do afastamento da obrigação

de lançamento de oferta pública de aquisição”

nos casos em que a situação não se integre

numa das tipologias acima referidas e se trate

antes de proceder a uma aplicação analógica

da excepção!!!

Na hipótese que apreciamos, porém, a partici-

pação indirecta na sociedade cotada é transferi-

da em "sentido vertical" entre uma pessoa física

e uma sociedade por ele controlada. O caso in-

tegra-se, sem sombra de dúvida, na segunda das

referidas tipologias. Não há que "estender" a

lógica de isenção, nem que apurar se a neutrali-

dade é "absoluta" ou "relativa"18.

Em suma: não parece justificável qualquer dú-

vida de que a operação analisada beneficia-

ria da excepção prevista no art. 49, parágra-

fo 1, al. c), do citado regulamento italiano,

caso estivesse em causa uma sociedade cota-

da em Itália, pela razão simples de que a

transferência ocorreu entre uma pessoa física e

uma sociedade por si controlada — não se exi-

ge, nestas hipóteses, rigorosamente mais nada.

Isso mesmo é o que decorre das Comunicações

n. DEM/2009909, de 13 de Fevereiro de 2002 e

n. DEM/8093480, de 9 de Outubro de 2008,

onde o que se discutiu não foram as hipóteses

plain vanilla, e indiscutivelmente excepciona-

das, de transferência horizontal e vertical tal

como acima descritas, mas transferências de

outro tipo (no primeiro caso, diversas coopera-

tivas pretendiam transferir as suas acções para

uma nova sociedade, sem que nenhuma delas

tivesse o controlo da sociedade cotada, e no

segundo caso fundos ligados por um acordo

parassocial queriam transferir as suas participa-

ções para uma sociedade de que seriam accio-

nistas).

4.2 O exemplo alemão

O § 35 do Wertpapiererwerbs- und Übernah-

megesetz (WpÜG) impõe o lançamento de uma

OPA a quem obtenha directa ou indirectamente

o controlo de uma sociedade alvo. "Controlo",

nos termos do § 29, II, consoante se assinalou

já, é definido como a detenção de pelo menos

30% dos votos, sendo certo que às acções deti-

das pelo próprio participante se equiparam mui-

tas outras, designadamente as que sejam detidas

por "empresas-filhas" ou por entidades que,

relativamente à sociedade alvo, actuem em con-

certação com esse participante ou com uma das

suas “filhas”.

Porém, nos termos do § 36 da WpÜG, no côm-

puto da participação são desconsiderados os

votos inerentes a acções que tenham sido ad-

quiridas em 3 tipos de situações, designada-

mente através de "reestruturações no quadro de

um Grupo" (§ 36, III, da WpÜG). Esta des-

consideração ocorre a pedido do interessado

junto da entidade de supervisão (BaFin19), cuja

decisão tem carácter vinculado e não discricio-

nário.

17- Ob. Cit., pág. 639. 18- Para este efeito, note-se, as transferências ocorrem entre sociedades já integrantes do grupo, mesmo que a sociedade transmissária seja uma sociedade adrede constituída (a constituição da sociedade precede necessariamente a aquisição: cfr. Martin Philipp Heuber, Die Befreiung vom Pflichtangebot nach dem Wertpapiererwerbs- und Übernahmegesetz, pág. 143). 19- Bundesanstalt für Finanzdienstleistungsaufsicht.

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17 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Por sua vez, o § 37 da WpÜG admite a dispen-

sa da obrigação de OPA também por decisão do

BaFin, na medida em que tal se mostre justifi-

cado tendo em conta o tipo de obtenção do con-

trolo, o fim visado com essa obtenção, o ter-se

descido logo de seguida aquém do limiar do

controlo, as relações de participação existentes

na sociedade visada ou a possibilidade fáctica

do exercício do controlo, atendendo aos interes-

ses dos requerentes e aos dos titulares das ac-

ções da sociedade.

A doutrina alemã é consensual quanto ao fun-

damento do regime:

"por detrás da regulamentação da Secção

III [do § 26] está a ideia de que os accionis-

tas da sociedade, apesar da aquisição de

controlo realizada no decurso de uma rees-

truturação interna do grupo, não se afigu-

ram dignos de protecção, quando a socieda-

de cabeça do grupo continua a deter o

controlo da sociedade visada no sentido do

§ 29, II [detenção de pelo menos 30% dos

votos]"20. (sublinhado nosso);

"Por detrás desta regulamentação está

igualmente a consideração legislativa de

que a situação material de controlo no seio

de um grupo se mantém inalterada. Dada a

formação unitária da vontade no interior do

grupo pela sociedade de topo, as transmis-

sões dentro do grupo não tem repercussões

na possibilidade de exercício do controlo

pela sociedade de topo e, portanto, no

controlo material (último) da sociedade

visada. Os restantes accionistas não

carecem por conseguinte de tutela"21.

(sublinhados nossos)

Repare-se que também na Alemanha se observa

que a excepção do § 36, III, não intervém onde

não haja aquisição do controlo, como sucede-

rá quando os votos já fossem imputáveis ao

adquirente (ex: a sociedade-mãe não obtém o

controlo da sociedade aberta quando as acções

desta são adquiridas a uma sociedade-filha, o

controlo já lhe pertencia, a excepção do § 36,

III, da WpÜG não tem cabimento)22.

Não obstante, Ana Perestrelo de Oliveira

fala, também aqui, do requisito da "neutralidade

da restruturação operada", citando Lenz/

Linke e Braun23.

Uma parte do que dizem Lenz/Link (e Braun)

é pura constatação do óbvio: como é requisito

posto pelo preceito que a reestruturação ocorra

no interior do grupo, a hipótese não está pre-

enchida se "as acções de uma sociedade são

transferidas para uma sociedade que não esteja

dentro do grupo"24.

A isso Lenz/Link acrescentam, é certo, que,

pela mesma razão (ou seja, porque tem de tratar

-se de uma reestruturação no interior do grupo),

não podem terceiros vir a participar na empresa

no quadro da reestruturação.

Com isso, porém, Lenz/Link parece que só

querem significar que a totalidade das acções

transmitidas têm de o ser para uma ou mais

empresas do grupo, não podendo uma parte das

mesmas ser alienada directamente a um

terceiro. No mesmo sentido, veja-se Uwe

Schneider, que, louvando-se em Lenz/Link,

defende que "não existe reestruturação se

O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 17

20- Christoph von Bülow, Kölner Kommentar cit., anotação 39 ao § 36. O autor refere-se nesta passagem a "sociedade controladora", mas logo a seguir esclarece que o n.º 3 abrange todos os casos em que o adquirente do controlo é uma empresa filha de um sujeito nos termos do § 2, VI ["empresas filhas são empresas sejam consideradas empresas filhas no sentido do § 290 do Handelsgesetzbuch, ou em que possa ser exercida uma influência dominante, sem que tenha relevo a forma jurídica ou a sede"], que, anteriormente à operação de reestruturação já detivesse o controlo da sociedade visada no sentido do § 29, II. 21- Schlitt/Ries, Aktiengesetz, M eterminadativo".nmada de posiç e aos quais responsabilidade civil (tirando a questünchener Kommen-tar, vol. 6, 3.ª edição, anotação 33 ao § 36. 22- Schlitt/Ries, ob. cit., anotação 165 ao § 35 (itálico acrescentado). 23- OPA obrigatória cit., pág. 640. A autora refere-se ainda a que o requisito de a reestruturação ter lugar no interior do grupo exclui as hipóteses de "transferências externas" (para empresas não controladas pela empresa controladora do transmitente), o que, sendo embora verdadeiro, não tem nenhuma relevância para a problemática em apreço. 24- "Esteja" ou "está" (steht) e não "estava", como traduz Ana Perestrelo de Oliveira.

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18 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

simultaneamente forem transferidas acções a

terceiros, designadamente a quadros dirigen-

tes25". Não se afigura que algum destes auto-

res defenda que a reestruturação tem de con-

sistir na transmissão de acções para socieda-

des-filhas detidas a 100% (em que, por tanto,

não participem de todo em todo quaisquer ter-

ceiros).

De qualquer das formas, convincente é, uma

vez mais, o ensinamento de von Bülow neste

contexto: "o conceito 'reestruturação' é de inter-

pretar em sentido amplo. É suficiente que to-

dos os que em resultado das transmissões de

participações (…) obtêm o controlo da socieda-

de sejam ou empresas-filhas, no sentido do § 2,

VI, de um sujeito de direito que, antes da rees-

truturação, tivesse já o controlo no sentido do §

29, II, ou o próprio sujeito que já anteriormen-

te detinha o controlo da sociedade alvo"26

(sublinhado nosso).

E certeiramente conclui: "É irrelevante se, no

quadro da reestruturação, terceiros que não

sejam empresas-filhas no sentido do § 2, VI, do

sujeito de direito que já anteriormente detinha

o controlo adquiram uma participação directa

ou indirecta na sociedade visada, contanto que

o terceiro não obtenha ele próprio o controlo

da sociedade visada, no sentido do § 29, II, no

quadro da reestruturação. Pois não pode fazer

qualquer diferença se tal aquisição de partici-

pação tem lugar no decurso da reestruturação

ou posteriormente a ela", sendo certo que, no

segundo caso, nenhuma sanção seria aplicável

(a desconsideração dos votos não resultaria pre-

judicada)27(sublinhado nosso).

Concede-se que, segundo o entendimento do

BaFin e da doutrina dominante28, a noção de

Konzern, neste contexto, pressupõe uma coliga-

ção entre empresas; todavia, uma pessoa

singular pode valer como empresa para este

efeito, designadamente em virtude de ser

detentora de participações societárias, em dados

termos29.

Mais importante que isso é, porém, o facto de o

BaFin conceder a dispensa de OPA ao abrigo

do § 37 da WpÜG quando os votos não possam

ser desconsiderados nos termos do § 36, III, do

mesmo diploma, em virtude de o sócio domi-

nante não ter natureza empresarial.

Assim aconteceu, para dar um exemplo recente,

no caso Schaeffler30, em que se verificou a in-

tercalação de novas sociedades (a Schaeffler

Beteiligungsholding GmbH & Co. KG e outras)

na cascata do domínio sobre a Continental Akti-

engesellschaft encimada pelo casal Schaeffler.

O BaFin considerou, nomeadamente, que o in-

teresse das sociedades requerentes em serem

poupadas aos encargos inerentes a uma OPA

sobrepujava os interesses dos accionistas mino-

ritários em que fosse lançada uma oferta, consi-

derados de peso “reduzido” (gering) em virtude

de não ter ocorrido uma alteração substancial da

situação de controlo. “A mera redistribuição de

acções, directa ou indirectamente detidas, no

25- Wertpapiererwerbs- und Übernahmegesetz, de Assman/Pötzsch/Schneider, anotação 10 ao § 36. 26- Ob. cit., anotação 41 ao § 36. 27- No mesmo sentido, veja-se Schlitt/Ries, ob. cit., anotação 40 ao § 36, Martin Philipp Heuber, ob. cit., pág. 145 ("se no quadro da reestruturação terceiros adquirem adicionalmente, directa ou indirectamente, uma participação, é irrelevante. Não tem influência na neutralidade da reestruturação em termos do controlo") e Klepsch, in WpÜG - Kommentar, de Steinmeyer/Häger, 2.ª edição, anotação 23 ao § 36. 28- Que não unânime: no sentido de que é suficiente que a empresa dependente seja uma filha na acepção do § 2, VI, da WpÜG (ou seja: que sobre ela se possa exercer uma influência dominante), pronunciam-se autores tão representativos como Schlitt/Ries (Aktiengesetz, Münchener Kommentar, vol. 6, 3.ª edição, anotação 36 ao § 36) e Christoph von Bülow (Kölner Kommentar zum Aktiengesetz, anotação 40 ao § 36 da WpÜG). 29- Cfr. Christine Windblicher, AktG Großkommentar, anotações 24 e 32 e segs. ao § 15). 30-http://www.BaFin.de/cln_152/nn_720794/SharedDocs/Downloads/DE/Verbraucher/Befreiungsentscheidungen/Conti2,templateId=raw,property=publicationFile.pdf/Conti2.pdf.

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19 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

seio de uma cadeia de participações (...) não

representa uma alteração relevante das relações

de participação”. “As requerentes representam

(...) apenas um elo adicional no controlo sobre a

sociedade visada que promana da Sra.

Schaeffler e do Sr. Schaeffler. A sua vinculação

ao lançamento de uma oferta ligar-se-ia a um

aspecto meramente formal, sem que lhe estives-

se subjacente uma alteração material da situa-

ção jurídica”.

Constata-se, portanto, também que não haveria

obrigatoriedade de OPA (ou seria segura-

mente concedida dispensa) se a sociedade X

no exemplo que nos serve de mote fosse uma

sociedade alemã cotada. Todas as acções da

sociedade intermédia Y, de que o respectivo

acionista dominante era titular, foram trans-

mitidas para uma única sociedade, a socieda-

de Z, também dominada por esse accionista.

Que parte do capital da sociedade Z perten-

cesse a terceiros é tão irrelevante como ser ia

se essa sociedade, começando por ser uma soci-

edade unipessoal por quotas constituída pelo

dito accionista, visse logo depois uma pequena

parte do capital ser aberto a terceiros.

4.3 O exemplo espanhol

Nos termos do artigo 5.º, n.º 4, do Real Decreto

1066/2007, de 27 de julio, sobre el régimen de

las ofertas públicas de adquisición de valores,

não há obrigação de formular uma oferta públi-

ca de aquisição nos casos de aquisições e outras

operações de que resulte uma mera redistribui-

ção de direitos de voto quanto, em virtude do

n.º 1, continuem a ser atribuídos a uma mesma

pessoa”31, sendo certo que tal n.º 1 manda atri-

buir a uma pessoa os direitos de voto detidos

por entidades pertencentes ao mesmo grupo, tal

como definido no art. 4.º da Ley 24/1988, de 28

de julio, del Mercado de Valores, e que este

artigo, por sua vez, remete para “a definição de

grupo de sociedades estabelecida no artigo 42

do Código de Comercio”, cujo n.º 1 reza assim:

“Toda a sociedade dominante de um grupo

de sociedades estará obrigada a formular as

contas anuais e o relatório de gestão consoli-

dados na forma prevista nesta secção. Existe

um grupo quando uma sociedade ostente ou

possa ostentar, directa ou indirectamente, o

controlo de outra ou outras. Em particular,

presumir-se-á que existe controlo quando

uma sociedade, que se qualificará como do-

minante, se encontre em relação com outra

sociedade, que se qualificará como depen-

dente (…)” numa de diversas situações

(detenção da maioria dos votos, da faculdade

de nomear ou destituir a maioria dos mem-

bros do órgão de administração, etc.)”.

Por último, o artigo 42.º, n.º 6, do Código do

Comercio manda aplicar o disposto na secção

em que se integra aos casos em que qualquer

pessoa física ou jurídica elabore e publique con-

tas consolidadas — donde vem que para efeitos

do art. 5.º, n.ºs 1 e 4, do Real Decreto

1066/2007, o “grupo” pode ser encabeçado

por qualquer pessoa, seja ela uma sociedade,

outra pessoa colectiva ou inclusive uma pessoa

singular32.

Não tem cabimento sustentar ser unicamente

visada a hipótese de alteração do título de im-

putação, que supõe que exista previamente uma

imputação (não podem surgir novos elementos).

Face à razão de ser do art. 5.º, n.º 1, do Real

Decreto 1066/2007 (“se o sistema de OPA

obrigatória tem por finalidade a protecção dos

interesses dos accionistas minoritários nas

situações de tomada ou mudança de controlo,

torna-se necessário considerar de forma conjun-

ta as aquisições realizadas pelas distintas socie-

dades que, por fazerem parte de um mesmo

O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 19

31- “No producirán obligación de formular una oferta pública de adquisición, las adquisiciones u otras operaciones que entrañen una mera redistribución de derechos de voto cuando, en virtud del apartado 1, sigan atribuidas a una misma persona”. 32- Este entendimento é pacífico: cfr., por todos, Fernando Sánchez Calero, Ofertas Públicas de Adquisición de Acciones (OPAS), 2009, pág. 145.

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20 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

grupo empresarial, actuem na verdade sob uma

direcção comum ou unidade de controlo”33), a

obrigação de OPA não nasce, por conseguinte,

onde as aquisições e outras operações se reali-

zem no quadro do mesmo "grupo", de tal forma

que os direitos de votos continuem a ser impu-

tados ou atribuídos ao mesmo sócio dominante.

4.4 O exemplo francês

Em França o artigo 234-9, 7.º, do Règlement

Général de L’Autorité des Marchés Financiers,

prevê que a AMF34 possa conceder uma derro-

gação da obrigação de OPA, no caso de uma

operação de venda de acções, ou transacção

equiparável, entre sociedades ou pessoas per-

tencentes ao mesmo grupo”.35

Não colhe argumentar não ser suficiente a exis-

tência de uma relação de controlo para que a

derrogação na obrigação de lançamento de

OPA possa ser aplicada, sendo antes necessário

que exista uma relação grupal baseada num

acordo com vista ao controlo de direitos de voto

de forma a executar uma política comum. O que

é preciso é, simplesmente, que a operação se

realize no quadro de um grupo; “o acordo com

vista ao controlo de direitos de voto de forma a

executar uma política comum” só é necessário

na medida em que a existência de um grupo

resulte da coordenação dos poderes de influên-

cia de dois ou mais accionistas, em vez de deri-

var da circunstância de diversas sociedades es-

tarem sob o domínio de uma mesma entidade.

Muito elucidativo é, a este respeito, o caso

Tharreau Industries, que sumariamente foi

apresentado à AMF como segue:

a) na situação de partida, Jacques Tharreau ti-

nha um total de 44,87% do capital da socie-

dade Tharreau Industries (parte directamente

e parte através da sociedade sua dependente

Finta) e o seu irmão Michel Tharreau

23,10%;

b) ambos os irmãos transfeririam as suas ac-

ções para a sociedade Finta (da qual o irmão

Michel era já accionista minoritário), que

passaria a deter 67,97% do capital da Thar-

reau Industries;

c) Michel Thareau passaria a ser o accionista

maioritário da Finta, com 58,06% do respec-

tivo capital;

d) Jacques Tharreau cederia os seus 41,9% da

Finta a 3 fundos de investimento;

e) entre Michel Tharreau e os fundos seria ce-

lebrado um acordo parassocial, que, designa-

damente, consagrava um direito de preferên-

cia recíproco na venda de acções, garantia

aos fundos um lugar na administração e no

conselho de fiscalização da Finta e obrigava

Michel Tharreau a não realizar, directa ou

indirectamente, qualquer operação que im-

plicasse a obrigação de comprar ou de ven-

der, no todo ou em parte, o capital da Thar-

reau Industries.

Ora a AMF concedeu a derrogação do dever de

OPA a Michel Tharreau e à sociedade Finta36,

com fundamento em que a operação não punha

em causa o controlo maioritário da Tharreau

Industries por parte da família Thareau, apesar

da circunstância de, em consequência da mes-

ma, entidades externas (os 3 fundos) passarem a

deter (indirectamente) uma participação muito

expressiva na Tharreau Industries.

33- GARCÍA DE ENTERRÍA/ ZURITA SÁENZ DE NAVARRETE, Comentario Sistemático del Rd 1066/2007, de 27 de julio 2009, pág. 160. 34- Autorité des Marchés Financiers. 35- Opération de reclassement, ou s'analysant comme un reclassement, entre sociétés ou personnes appartenantà un même groupe. 36- http://www.amf-france.org/inetbdif/documents/bdif/dop/2001/201C1190.htm.

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21 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

4.5 Balanço

Liquida-se do exposto que, suposta uma hipóte-

se como a que apreciamos:

na Alemanha, o Bafin estaria obrigado a re-

conhecer a desconsideração dos direitos de

voto, ou não deixaria de conceder dispensa

do dever de OPA, consoante a pessoa singu-

lar controladora fosse ou não equiparado a

uma empresa;

em Itália, não surgiria dever de OPA, inde-

pendentemente de qualquer acto da Consob,

por se tratar de uma transmissão em sentido

vertical entre uma pessoa singular e uma

entidade controlada de direito;

em Espanha, não surgiria dever de OPA,

também independentemente de qualquer ac-

to da CNMV, por se tratar de uma operação

de que decorre uma mera redistribuição de

direitos de voto no contexto de um mesmo

grupo;

em França, a AMF concederia seguramente

uma dispensa em virtude de estar em causa

uma transmissão entre pessoas pertencentes

ao mesmo grupo.

5. A circulação de votos no seio

de entidades ligadas por uma relação

de domínio no direito português

5.1 A situação na vigência do Código

do Mercado de Valores Mobiliários

Na versão inicial do CodMVM estabelecia-se

que:

"ficam igualmente obrigados a lançar uma

oferta geral da aquisição nos termos deste

artigo as pessoas singulares ou colectivas

que, após entrada em vigor do presente di-

ploma, venham a deter (…) valores que, por

si sós ou adicionados, se for o caso, aos que

devam considerar-se como pertencendo-lhes

nos termos do artigo 530.º, lhes confiram

mais de metade dos votos correspondentes

ao capital da sociedade em causa"37.

Nos termos do art. 530.º do CodMVM eram,

designadamente, contados como pertencentes

ao "oferente", sendo este uma pessoa singular,

os valores detidos por sociedades que dele de-

pendam, e bem assim por quaisquer outras soci-

edades que se encontrem, directa ou indirecta-

mente, em relação de domínio ou de grupo com

aquelas, e sendo o “oferente” uma sociedade,

“as sociedades que com ela se encontrem em

relação de domínio ou de grupo e bem assim

quaisquer outras sociedades que se encontrem

em relação de domínio ou de grupo com estas

últimas”.

Nesta altura, chegámos a sustentar que a impu-

tação funcionava só no sentido ascendente (os

votos detidos por uma sociedade dependente

eram imputados à dominante, mas não vice-

versa), embora contra o entendimento já então

dominante e reconhecendo que a letra da lei não

favorecia essa interpretação38.

A verdade, porém, é que, com as alterações ao

art. 525.º do Código do Mercado de Valores

Mobiliários introduzidas pelo Decreto-Lei

n.º 261/95, de 3 de Outubro, a imputação

passou a funcionar indiscutivelmente não só

no sentido descendente, como nos sentidos

ascendente e lateral. De facto:

sendo o oferente uma pessoa singular ou

uma pessoa colectiva que não seja uma soci-

edade, passaram-lhe a ser imputados os vo-

tos derivados de valores mobiliários detidos

por "sociedades que dele dependam, [por]

sociedades que com estas se encontrem,

directa ou indirectamente, em relação de

domínio, e, bem assim, [por] sociedades que

se encontrem, directa ou indirectamente, em

O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 21

37- Por uma questão de simplicidade raciocinaremos apenas à vista de uma das hipóteses legais de OPA obrigatória — a da OPA geral sucessiva. 38- Carlos Osório de Castro, Os casos de obrigatoriedade do lançamento de uma oferta pública de aquisição, in Problemas Societários e Fiscais do Mercado de Valores Mobiliários, Edifisco, Lisboa, 1992, págs. 55 e segs. Note-se que na pág. 58 se deve ler art. 525.º, n.º 2, al. d) em vez de art. 525.º, n.º 2, al. e).

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22 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

relação de grupo com qualquer das antes

referidas” (art. 525.º, n.º 1, al. c)),

e, caso o oferente fosse uma sociedade, os

votos derivados de valores mobiliários deti-

dos por "sociedades que com ela se encon-

trem, directa ou indirectamente, em relação

de domínio ou de grupo, [por] quaisquer

outras sociedades que se encontrem, directa

ou indirectamente, em relação de domínio

ou de grupo com estas últimas, e ainda, se

for o caso, [pela] pessoa singular ou pessoa

colectiva de que a sociedade oferente depen-

da, directa ou indirectamente, nos termos

das alíneas b) ou d) do n.o 1 do artigo

346” (art. 525.º, n.º 1, al. d)) (ascendente,

descendente e lateral). A parte final da al. d)

não consentia, insiste-se, outra leitura senão

a de que a uma sociedade se imputavam os

votos detidos pela entidade que a domi-

nasse, directa ou indirectamente.

Adicionalmente, o Decreto-Lei n.º 261/95 veio

introduzir um novo artigo — o 528.º-A — que

estabelecia diversos casos de derrogação ao

dever de OPA, entre os quais figurava a hipóte-

se de a obrigatoriedade resultar da "aquisição

por uma sociedade de valores detidos por outra

sociedade que com ela se encontre em relação

de domínio ou de grupo ou que seja dominada

por uma terceira sociedade que domine igual-

mente a sociedade adquirente".

E assim, após 1995, enquanto o Código do

Mercado de Valores Mobiliários se manteve

em vigor, era absolutamente consensual a

interpretação, aliás antes disso já larguissi-

mamente dominante, no sentido de que a

imputação funcionava no triplo sentido atrás

referido, assim como o era também o

entendimento de que a circulação de parti-

cipações no seio do mesmo grupo societário

(encabeçado fosse por uma pessoa singular

fosse por uma pessoa colectiva) não acarreta-

va um dever de OPA.

5.2 A situação na vigência do CVM.

O CVM, aprovado pelo Decreto-Lei nº 486/99,

de 13 de Novembro, manteve, como não podia

deixar de ser, a imputação de direitos de voto

baseada na existência de uma relação de domí-

nio. Substituiu, porém, a redacção algo prolixa

usada no Código pretérito por uma fórmula te-

legráfica. Diz-se agora, no art. 20.º, n.º 1, al. b):

"no cômputo das participações qualificadas

consideram-se (...) os direitos de voto detidos

por sociedade que com o participante se encon-

tre em relação de domínio ou de grupo". Por

outro lado, a norma do art. 528.º-A do Código

do Mercado de Valores Mobiliários acima men-

cionada, que acolhia uma derrogação ao dever

de OPA no caso de transmissão intra-grupo,

não tem correspondência no CVM.

5.2.1 O estudo por nós publicado em Abril

de 2000

Mal o CVM tinha acabado de entrar em vigor,

publicámos um artigo em que desenvolvemos o

raciocínio seguinte39:

a) literalmente o art. 20.º, n.º 1, al. b), do CVM

é compatível com a atribuição de relevo ape-

nas à situação de dependência, apenas à situ-

ação de domínio ou a ambas essas situações

(ou seja, é compatível com uma imputação

só em sentido descendente, só em sentido

ascendente ou em ambos os sentidos);

b) é injustificado impor-se um dever de OPA

no caso de reestruturações no interior de um

grupo empresarial, incluindo no caso de

"circulação dos votos em sentido descenden-

te", uma vez que "a estrutura de controlo

mantém-se a mesma, vistas as coisas em

termos substantivos";

39- Imputação de direitos de voto no Código dos Valores Mobiliários, Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 7, 2000, págs. 161 e segs.

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23 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

c) dir-se-ia, pois, que a eliminação da hipótese

de derrogação da obrigatoriedade do lança-

mento de uma OPA prevista no art. 528º-A,

n.º 1, al. e), do CodMVM (“aquisição por

uma sociedade de valores detidos por outra

sociedade que com ela se encontre em rela-

ção de domínio ou de grupo ou que seja do-

minada por uma terceira sociedade que do-

mine igualmente a sociedade adquirente”)

só pode ter ficado a dever-se à circunstância

de o legislador a reputar completamente dis-

pensável — o que, por seu turno, implica

que o art. 20.º, n.º 1, al. a), seja objecto da

leitura mais ampla, que abarque a imputa-

ção em ambos os sentidos;

d) porém, a conjugação dessa leitura ampla

com a inexistência de cláusula derrogatória

do dever de OPA para os casos em que a

uma nova sociedade dependente passam a

ser imputados votos imputáveis à sua entida-

de dominante, levaria a que sendo o controlo

de uma pequena sociedade adquirido por

uma holding de um vasto “grupo” empresa-

rial, aquela se teria de considerar obrigada a

lançar uma OPA sobre as inúmeras socie-

dades abertas relativamente às quais a ho-

lding disponha de mais de metade dos votos;

e) a melhor solução, de jure condendo, seria,

por um lado, interpretar o art. 20.º, n.º 1, al.

b), do CVM de forma tal que a existência de

uma relação de domínio fosse determinante

de uma imputação apenas em sentido ascen-

dente, ao mesmo tempo que, por outro lado,

se daria assento na lei a uma hipótese adicio-

nal de derrogação do art. 187.º, capaz de

abarcar os casos em que uma sociedade de-

pendente adquire votos já imputáveis à sua

entidade dominante.

f) de jure constituto, a leitura restritiva do art.

187.º (imputação só em sentido ascendente)

é menos má do que a leitura ampla, porquan-

to evita o resultado absurdo referido em d),

apesar dos inconvenientes referidos em b).

5.2.2 A interpretação triunfante

Sucedeu, todavia, que a interpretação que veio a

triunfar foi outra: a imputação ex vi do art. 20.º,

n.º 1, al. b), opera não só no sentido ascendente

ou upstream (os votos detidos pela sociedade

dependente contam como da entidade dominan-

te), como em sentido descendente ou downstre-

am (os votos detidos pela dominante contam

como da entidade dependente), como ainda

(agora em articulação com o art. 20.º, n.º 1, al.

i)) lateralmente ou sidestream (os votos detidos

por sociedades dependentes de uma mesma en-

tidade são imputáveis reciprocamente). A uma

imputação com este alcance referir-nos-emos

doravante como "imputação múltipla".

No fundo, a CMVM e os agentes de mercado

optaram por atribuir ao art. 20.º, n.º 1, o mesmo

sentido e alcance que competiam ao art. 525.º,

n.º 2, als. c) e d) do Código do Mercado de Va-

lores Mobiliários (os quais operavam como fac-

tores de imputação de votos por força da remis-

são feita pelo art. 530.º, n.º 1, al. b), do mesmo

diploma), quiçá entendendo que se o legislador

tivesse querido romper com a solução anterior

não poderia ter deixado de o fazer de uma for-

ma inequívoca.

E não foram sensíveis ao receio por nós mani-

festado, entendendo que, mau grado o CVM

não ter consagrado disposição idêntica à do art.

528.º-A, n.º 1, al. e), do Código do Mercado de

Valores Mobiliários, a leitura "ampla" do art.

20.º, n.º 1, al. b), não poderia implicar que

qualquer nova sociedade "incorporada" no seio

de um grupo tivesse de lançar uma OPA sobre

todas as sociedades abertas integrantes do

mesmo40.

O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 23

40- E de facto, como se verá melhor adiante, a derrogação consagrada pelo 528.º -A, n.º 1, al. e), do CodMVM nada tem a ver com estas

situações.

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24 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A referida "leitura ampla" — insiste-se —

foi, desde 2000, e é-o ainda hoje, objecto de

um vastíssimo consenso.

Designadamente em todos os prospectos de

ofertas públicas de aquisição lançadas após a

entrada em vigor do CVM, a percentagem de

direitos de voto que, nos termos do n.º 1 do arti-

go 20.º, pode ser exercida pelo oferente na soci-

edade visada (cuja divulgação é prescrita pelo

art. 138.º, n.º 1, al. c)), é invariavelmente calcu-

lada assumindo uma imputação múltipla (ou

seja, relembra-se, uma imputação nos sentidos

ascendente, descendente e lateral). E o mesmo

se diga quanto à generalidade das comunica-

ções da aquisição e alienação de participa-

ções qualificadas.

5.2.3 A imposição da imputação múltipla

pela Directiva 2004/25/CE

O art. 5.º, n.º 1, da Directiva 2004/25/CE deter-

mina que os Estados Membros devem adoptar

regras que obriguem uma pessoa singular ou

colectiva que, na sequência de uma aquisição

efectuada por si ou por pessoas que com ela

actuam em concertação, venha a deter valores

mobiliários de uma sociedade cotada que, adici-

onados a uma eventual participação que já dete-

nha e à participação detida pelas pessoas que

com ela actuam em concertação, lhe confiram

directa ou indirectamente uma determinada per-

centagem dos direitos de voto nessa sociedade,

permitindo-lhe dispor do controlo da mesma, a

lançar uma oferta a fim de proteger os accionis-

tas minoritários dessa sociedade.

A definição de "pessoas que actuam em concer-

tação" consta do art. 2.º, n.º 1, al. d), da Direc-

tiva: são as "pessoas singulares ou colectivas

que cooperam com o oferente ou com a socie-

dade visada com base num acordo, tácito ou

expresso, oral ou escrito, tendo em vista, res-

pectivamente, obter o controlo da sociedade

visada ou impedir o êxito da oferta".

E o n.º 2 do mesmo artigo prescreve-se: "para

efeitos do disposto na alínea d) do n.° 1, as

pessoas controladas por outra pessoa, na acep-

ção do artigo 87.° da Directiva 2001/34/CE 41,

são consideradas pessoas que actuam em con-

certação com essa pessoa e entre si".

A Directiva 2004/25/CE obriga, portanto, a que

os Estados Membros consagrem regras que de-

terminem a imputação dos votos detidos por

determinada entidade tanto às sociedades que

ela domine (imputação downstream) como à

entidade de que seja dependente (imputação

upstream) como às outras sociedades também

dominadas por esta última entidade (imputação

sidestream)42/43. Talvez a letra do art. 2.º, n.º 2,

da Directiva, apenas seja totalmente inequí-

voca quanto à imputação lateral ("as pessoas

controladas por outra pessoa são consideradas

pessoas que actuam em concertação entre si"):

"mas como o fundamento da imputação das

participações de sociedades-irmãs só pode ser

o poder de direcção da mãe comum, a imputa-

ção downstream é forçosa44".

41- “Qualquer empresa em que uma pessoa física ou uma entidade jurídica tenha (a) a maioria dos direitos de voto dos accionistas ou

sócios, ou (b) o direito de nomear ou de destituir a maioria dos membros do órgão de administração, de direcção ou de fiscalização e seja

simultaneamente accionista ou sócio dessa empresa, ou (c) seja accionista ou sócio e, por força de um acordo celebrado com outros

accionistas ou sócios dessa empresa, tenha o controlo exclusivo da maioria dos direitos de voto dos seus accionistas ou sócios".

42- Entendido "domínio" na acepção do artigo 87.° da Directiva 2001/34/CE, correspondente à do art. 21.º, n.º 2, do CVM.

43- Confira-se, neste sentido, Wackerbarth, in Aktiengesetz, M eterminadativo".nmada de posiç e aos quais responsabilidade civil

(tirando a questünchener Kommentar, vol. 6, 3.ª edição, anotação 30 ao § 30, Hommelhof/Witt, ob.cit., anotação 28 ao § 35, Hilmer,

Die Übernahmerichtlinie und ihre Umsetzung in das deutsche Recht, 2007, pág. 93, Hopt/Mülbert/Kumpan, Reformsbedarf in

Übernahmerecht, in Die Aktiengesellschaft, 2005, pág. 111.

44- Wackerbarth, ult. lug. cit..

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25 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

5.3 A lição do direito comparado:

a experiência alemã na vigência

da redacção do § 30, 1, da WpÜG

introduzida em Julho de 2006

A transposição da Directiva 2004/25/CE tinha

de ser efectuada pelos Estados-Membros até 20

de Maio de 2006. Com algum atraso, em 14 de

Julho de 2006, entrou em vigor na Alemanha a

lei destinada a proceder a essa transposição.

Para assegurar a conformidade do direito ale-

mão com os arts. 5.º, n.º 1 e 3.º, n.ºs 1, al. d) e

2, da Directiva, o § 30, I, 1, da WpÜG passou

a imputar ao "oferente" os "direitos de voto

pertencentes às empresas-filhas do oferente

[imputação ascendente], à pessoa controladora

do oferente [imputação descendente] e às

outras empresas-filhas da pessoa controladora

do oferente [imputação lateral]", e, por outro

lado, na definição de "pessoas actuando em

concertação", constante do § 2, V, da WpÜG

incluiu-se a frase "as empresas-filhas conside-

ram-se pessoas actuando em concertação com

a pessoa que as controla e umas com as

outras".

Rapidamente os alemães se deram conta das

consequências da alteração legislativa, nomea-

damente no que concerne ao seu impacto sobre

o mecanismo da desconsideração de direitos de

voto ao abrigo do § 36, III (aquisição de acções

em resultado de reestruturações no interior do

grupo)45.

Desde logo, a utilização desse mecanismo dei-

xou de fazer sentido nos casos de transmissão

da participação igual ou superior a 30% para

uma empresa dominada pelo transmitente, ou

realizada entre sociedades controladas pela

mesma entidade — o que é o mesmo que dizer

que deixou de fazer sentido nem mais nem me-

nos do que em todos os casos a que anterior-

mente se aplicava. A razão disto é simples:

como nessas hipóteses os votos já eram imputá-

veis ao adquirente (por força da imputação múl-

tipla), a todas as empresas do grupo já eram

afinal imputáveis direitos de voto acima do li-

miar relevante para efeitos do controlo, pelo

que, aconteçam as transferências que acon-

tecerem, nenhuma delas pode já ultrapassar (de

novo) esse limiar e adquirir o controlo46.

As hipóteses abrangidas passaram a ser outras,

a saber, os casos em que ao "grupo" é adiciona-

da uma sociedade, seja ela constituída de raiz

ou adquirida a terceiros (e independentemente

de a mesma ter ou não acções da sociedade vi-

sada ou de se situar num qualquer patamar in-

termédio entre as sociedades detentoras dessas

acções e a entidade cabeça do grupo).

Consoante refere Andreas Nelle47:

"esta regra de imputação conduz à situação

absurda em que qualquer nova empresa-

filha constituída por M2 [no topo do grupo]

preencherá a hipótese do § 35, I, da §

WpÜG, e portanto ficaria obrigada ao lan-

çamento de uma oferta pública de aqui-

sição dirigida a todos os accionistas da so-

ciedade visada. O mesmo valerá quando

uma das empresas-filhas (…) adquirir uma

nova sociedade-filha ou neta, uma vez que a

estas será imputada a globalidade dos direi-

tos de voto detidos pelo grupo. A uma nova

empresa-filha ou empresa-neta de M2, para

se furtar ao de-ver de oferta, apenas resta a

possibilidade de apresentar ao BaFin um

requerimento de desconsideração dos direi-

tos de voto imputados nos termos do § 36,

III, da WpÜG".

O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 25

45- Cfr. Arnold, Die neue konzernweite Stimmrechtszurechnung gemäß § 30, Abs. 1, Satz 1 Nr.1 WpÜG, in Die Aktiengesellschaft,

2006, pág. 569.

46- Cfr. supra o que dissemos acerca da irrelevância da alteração do título de imputação dos votos. 47- Stimmrechtszurechnung und Pflichtangebot nach Umsetzung der Übernahmerichtlinie, in ZIP – Zeitschrift für Wirtschaftsrecht, 2006, pág. 2059.

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26 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

O que sucedeu foi que, conforme previsto, se

seguiu uma avalancha de tais requerimentos. A

situação era insustentável, tendo o legislador

alemão optado por uma solução radical: repris-

tinou a anterior redacção do § 31, Nr. 1, da

WpÜG (!), considerando as exigências da

Directiva 2004/25/CE cumpridas mediante a

mera qualificação das empresas-filhas como

pessoas actuando em concertação com a pessoa

que as controla constante do § 2, V —- que per-

maneceu intocado —, para outros efeitos que

não o de espoletar o dever de OPA.

5.4 A contrariedade à Directiva

da solução alemã, e a sua inviabilidade

no quadro do direito português constituído

Parece indiscutível que a Directiva 2004/25/CE

obriga a que, onde houver uma relação de do-

mínio ou de grupo, os votos detidos pela socie-

dade dependente sejam imputados à entidade

dominante e vice-versa48.

O legislador alemão, inicialmente dessa opini-

ão, mudou depois de ideia; mal, do ponto de

vista de diversos dos autores mais representati-

vos49, alguns dos quais consideram, inclusive,

que para assegurar a conformidade com a Di-

rectiva, a ultrapassagem do limiar de 30% dos

votos, para efeitos do dever de OPA, terá de

continuar a ser aferida na base de uma imputa-

ção múltipla, nos termos expostos50.

Como quer que seja, a via alemã não é segura-

mente trilhável em Portugal, de jure constituto.

É que ela consiste em distinguir entre a noção

de "pessoas que actuam em concertação com o

oferente", para efeitos do apuramento da exis-

tência de um dever de OPA, e a noção homóni-

ma usada pela Directiva para diversos outros

efeitos, e em sustentar seguidamente que apenas

para estes últimos se imporia a qualificação

tanto de uma empresa-filha como pessoa actu-

ando em concertação com a entidade que a con-

trola como vice-versa (e bem assim das empre-

sas-filhas de uma mesma entidade como pesso-

as actuando em concertação umas com as ou-

tras), procedendo depois a uma transposição da

Directiva de modo diferenciado, em consonân-

cia com essa distinção51.

Esses “outros efeitos” são as exigências:

a) de que o “preço equitativo” a que a OPA

obrigatória deve ser lançada atenda ao preço

mais elevado pago pelos valores mobiliários

pelo oferente ou por pessoas que com ele

actuem em concertação ao longo de deter-

minado período (art. 5.º, n.º 4, da Directiva);

b) de que se exija uma alternativa em dinheiro

se o oferente ou pessoas que com ele actuem

em concertação tiverem adquirido contra

numerário valores mobiliários que represen-

tem 5% ou mais dos direitos de voto da soci-

edade visada ao longo certo período (art. 5.º,

n.º 4, da Directiva); e

c) de que dos documentos da oferta conste in-

formação detalhada sobre os valores mobi-

liários que o oferente e as pessoas que com

ele actuam em concertação já detenham na

sociedade visada" (art. 6.º, n.º 3, al. g), da

Directiva), bem como a identidades dessas

pessoas (art. 6.º, n.º 3, al. m) da Directiva).

O CVM dá satisfação a essas imposições da

Directiva mediante utilização do conceito

"pessoas que estejam com o oferente em algu-

ma das situações previstas no artigo 20.º": cfr.,

respectivamente, o art. 188.º, n.º 1, al. a)), o n.º

5 do mesmo artigo e os art. 138.º, n.º 1, al. e) e

183.º-A, n.º 1, al. i).

48- Além de ser também obrigatória a imputação lateral, que para o caso sub judice não tem interesse. 49- Vide, por todos, os autores citados na nota 43. 50- Assim Wackerbarth, ob. cit., anotação 31 ao § 30. 51- Daí que, como se referiu, o legislador alemão tivesse repescado a redacção anterior do § 31, 1, da WpÜG, mas não a noção de pessoas actuando em concertação consagrada no § 2, VI, da WpÜG.

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27 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Todas estas normas foram introduzidas pelo

Dec.-Lei n.º 219/2006, de 2 de Novembro, jus-

tamente destinado, conforme se assume no res-

pectivo Preâmbulo, a transpor "para o ordena-

mento jurídico interno a Directiva n.º 2004/25/

CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de

21 de Abril, relativa às ofertas públicas de

aquisição", sendo certo que o mesmo Preâmbu-

lo faz expressa referência a que "o dever de lan-

çamento de uma oferta pública de aquisição

surge assim que uma entidade ou grupo de enti-

dades actuando em concertação detenham va-

lores mobiliários da entidade visada em tal per-

centagem dos direitos de voto que lhes permi-

tam, directa ou indirectamente, dispor do con-

trolo da visada".

Ora o conceito de "pessoas que estejam com o

oferente em alguma das situações previstas no

artigo 20.º" usado no art. 188.º, n.ºs 1, al. a)), e

5 e nos art. 138.º, n.º 1, al. e) e 183.º-A, n.º 1,

al. i), tem, necessariamente, de abranger, sendo

o “oferente” uma sociedade, a pessoa, singular

ou colectiva, que domine o “oferente” (e todas

as demais sociedades igualmente dominadas

pela pessoa que domine o “oferente”) — assim

o impõe uma interpretação conforme com a

Directiva 2004/25/CE. Mas, como essa noção é

também a que é usada no art. 187.º, n.º 1, do

CVM, sobre o dever de OPA ("directamente ou

nos termos do art. 20.º"), é mister concluir que

os votos detidos por uma qualquer entidade são

também imputados a toda e qualquer sociedade

que ela domine para efeitos de se apurar se foi

ultrapassado por esta última algum dos limiares

de obrigatoriedade de OPA.

Por outras palavras:

sabendo-se que o legislador português, no

diploma destinado a adaptar o nosso direito à

Directiva, usou a locução "pessoas que este-

jam com o oferente em alguma das situações

previstas no artigo 20.º" nos lugares em que

a Directiva indiscutivelmente obriga a que

sejam abrangidas todas as pessoas agindo

em concertação com o oferente,

não há como deixar de concluir que a locu-

ção "pessoas com o oferente em alguma das

situações previstas no artigo 20.º" compre-

ende todas as pessoas que a Directiva consi-

dera como em concertação com o oferente,

sem excepção;

sendo certo que a Directiva 2004/25/CE

obriga a que as empresas-filhas e a

entidade que as domine sejam considera-

das como actuando em concertação

(independentemente de qual delas seja o

“oferente”).

5.5 A irrelevância da previsão

de uma cláusula derrogatória idêntica

à consagrada no art. 528-º-A, do Código

do Mercado de Valores Mobiliários;

o absurdo de se considerar inapelavelmente

obri-gada a OPA qualquer sociedade

que passe a inte-grar um grupo

de que façam parte sociedades cotadas.

Entre 2000 e o tempo presente muita água cor-

reu por debaixo das pontes.

Hoje em dia deveria ser incontroverso que o art.

20.º, n.º 1, al. b), do CVM, acolhe uma impu-

tação dos votos da sociedade dependente à

dominante e vice-versa. Essa é, de resto, a tra-

dição do nosso direito, pois assim sucedia já

no domínio do Código do Mercado de Valores

Mobiliários. Essa foi a interpretação que cedo

se generalizou, que mais não seja em conse-

quência justamente dessa tradição.

O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 27

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28 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

E, para rematar, essa é a solução imposta pela

Directiva 2004/25/CE em matér ia de OPA

obrigatória, ou quando menos, a solução que o

legislador português confirmou, em 2006 (no

âmbito do diploma precisamente destinado a

transpor para o nosso direito a referida Directi-

va), ser a resultante das palavras "nos termos do

art. 20.º" constantes do art. 187.º, n.º 1, ao em-

pregar a locução "pessoas que com o oferente

se encontrem em alguma das situações do art.

20.º" como (pelo menos) equivalente à noção

de "pessoas actuando em concertação com ofe-

rente" em domínios em que a Directiva fora de

toda a dúvida obriga que entre essas pessoas se

contem sempre as empresas-filhas e a respecti-

va entidade dominante.

Não tem razão, por ex., Engrácia Antunes,

quando afirma, no parecer inédito a que acima

nos referimos, que "à ausência de previsão de

qualquer cláusula derrogatória semelhante no

atual CVM apenas poderá ser atribuído o senti-

do de o legislador português vigente ter preten-

dido recusar relevância às chamadas transmis-

sões intragrupo em sede da isenção de OPA

obrigatória", se com isso pretende significar

que a alienação de uma participação de mais de

50% a uma sociedade dependente do transmi-

tente constitui aquela num dever de OPA.

Efectivamente, tendo presente que o art. 20.º,

n.º 1, al. b) (aplicável ex vi do art. 187.º) consa-

gra uma imputação múltipla, os votos em causa

já eram imputáveis à sociedade dependente

anteriormente à transmissão, e, por via disso,

se a mesma não estava já constituída num de-

ver de OPA, tão pouco incorrerá nessa obriga-

ção em consequência da transmissão52.

A questão da obrigatoriedade de OPA coloca-

se em momento anterior, a saber, no momento

em que uma sociedade passa a estar na de-

pendência de uma entidade a quem sejam

imputáveis mais de 50% dos votos em socie-

dade aberta.

Se certa pessoa já detinha mais de 50% dos vo-

tos no momento em que a sociedade visada ad-

quiriu a qualidade de sociedade aberta, todas as

sociedades que a mencionada pessoa já domi-

nasse nesse momento não terão de lançar OPA

(tal como não tem a pessoa que as controla)

nem nessa altura nem na data ulterior em que

eventualmente venham a adquirir a titularidade

da participação em causa.

Segue-se daqui que uma cláusula como a que

constava do art. 528.º-A, n.º 1, al. e), do Código

do Mercado de Valores Mobiliários, inserida no

quadro de um sistema que consagre uma impu-

tação múltipla dos votos no seio de um grupo

societário, tem quando muito a utilidade limita-

da de eliminar dúvidas injustificadas quanto

à inexistência de um dever de OPA nos casos

de transmissões intra-grupo, tanto em senti-

do ascendente, como nos sentidos descenden-

te e lateral53.

52- O raciocínio é exactamente o mesmo que leva a considerar que a entidade dominante não fica constituída num dever de OPA pelo facto de adquirir a uma sociedade dependente uma participação superior a 50% em sociedade aberta (tais votos já lhe eram imputáveis e, portanto, a ultrapassagem do limiar dos 50% já tinha ocorrido anteriormente à transmissão). 53- Cfr., aliás, Ana Perestrelo de Oliveira, ob. cit., pág. 636: "no anterior regime jurídico, a regra privilegiadora do grupo havia sido aditada ao CMVM pelo decreto-lei n.° 261/95, de 3 de outubro para resolver dúvidas suscitadas no âmbito da versão original do Código" (sublinhado nosso).

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29 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Repare-se, com efeito, que a dita cláusula só

cobria as hipótese de "aquisição por uma socie-

dade de valores detidos por outra sociedade

que com ela se encontre em relação de domínio

ou de grupo ou que seja dominada por uma

terceira sociedade que domine igualmente a

sociedade adquirente" — casos esses em que,

por força da imputação múltipla, repisa-se, os

votos já eram atribuídos à sociedade adquirente

e a transmissão nunca poderia, et pour cause,

importar na ultrapassagem de nenhum limiar54.

Falta faria uma norma diferente (if any...), que

esclarecesse antes não haver dever de OPA no

caso em que os votos de uma pessoa passarem a

ser imputados pela primeira vez a uma socieda-

de dela dependente, coisa que ocorre no mo-

mento em que a relação de domínio entre am-

bas se constitui (seja ou não a sociedade de-

pendente detentora a essa data de quaisquer

acções da sociedade visada).

O certo, contudo, é que essa norma também não

existia no Código do Mercado de Valores

Mobiliários, e nem por isso ocorreu alguma vez

a alguém, na vigência desse Código, clamar por

OPAs em cada ocasião em que uma sociedade

passou a ser depen-dente, directa ou indirecta-

mente, de pessoa que detivesse mais de 50%

dos votos em sociedade aberta. Isso terá levado

o legislador do Código dos Valores Mobiliários

a entender que uma tal norma se limitaria a

estatuir o óbvio.

Cabe aqui salientar dois pontos.

O primeiro é este: se, em lugar de ter constituí-

do a Sociedade Z, a pessoa singular do nosso

exemplo tivesse transmitido a sua participação

na Sociedade Y para uma qualquer sociedade

que ele já detivesse maioritariamente desde o

momento em que a Sociedade X adquiriu a qua-

lidade de sociedade aberta e lhe desse uns esta-

tutos iguais aos da Sociedade Z, a situação se-

ria em tudo igual à actualmente existente, sem

que, mesmo de acordo com a tese que rejeita-

mos, nenhum dever de OPA tivesse de ser cum-

prido. Isto porque os direitos de voto inerentes

à participação na Sociedade X na titularidade da

Sociedade Y já seriam imputáveis a essa outra

sociedade anteriormente à transmissão.

O segundo é que o problema trazido a juízo se

colocaria nos mesmos termos se a pessoa singu-

lar se tivesse mantido como titular da partici-

pação do capital social da Sociedade Y e tives-

se realizado o capital da Sociedade Z em di-

nheiro: na verdade, sendo esta uma sociedade

dominada por aquela pessoa, sempre lhe seriam

atribuídos os direitos de voto na Sociedade X

imputados àquela (mau grado não possuir uma

única acção da Sociedade X ).

Em duas palavras: a imposição de OPA nos

casos em apreço seria tão absurda que, de facto,

o argumento que usámos no nosso escrito de

2000 acaba por não passar de um argumentum

ad terrorem, que não procede. Sem rebuço se

estende aqui a mão à palmatória55.

5.6 A um sistema de imputação múltipla

subjaz uma consideração grupal unitária

Está fora de cogitação que, ao impor uma impu-

tação múltipla, tivesse sido propósito do legis-

lador comunitário obrigar ao lançamento de

OPAs nos casos a que nos vimos referindo.

Na Alemanha, onde a imputação múltipla, en-

quanto durou, era sobretudo fonte de inconveni-

entes burocráticos (necessidade para a nova

sociedade dependente de requerer ao BaFin a

desconsideração dos votos) Arnold sugeria

como saída uma interpretação do § 31, I, 1, da

O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 29

54- Como se adverte no artigo A imputação de direitos de voto no Código dos Valores Mobiliários, assumindo uma imputa-ção múltipla, "a eliminação da hipótese de derrogação da obrigatoriedade do lançamento de uma OPA prevista no art. 528º-A, n.º 1, al. e), do CodMVM (...) só pode ter ficado a dever‑se à circunstância de o legislador a reputar completamente dispensável". 55- Não será caso, julga-se, para citar Emerson: "A foolish consistency is the hobgoblin of little minds, adored by little statesmen and philosophers and divines (…). Speak what you think now in hard words, and tomorrow speak what tomorrow thinks in hard words again, though it contradict everything you said today”.

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30 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

WpÜG que o reduzisse ao limite do razoável,

entendendo-se a imputação múltipla dele decor-

rente como traduzindo uma espécie de controlo

pelo grupo: "o controlo pertence ao grupo na

configuração que tem em cada momento" com

o que "a inclusão adicional de sociedades não

conduziria a uma 'obtenção do controlo'", e

não obrigaria a OPA56.

Este parece ser realmente o caminho indicado.

A imputação múltipla assenta numa considera-

ção unitária do todo formado por uma entidade

e pelas diversas sociedades que a mesma em

cada momento domine, directa ou indirecta-

mente; esse grupo é encarado como um organis-

mo cuja identidade se mantém enquanto for a

mesma a entidade controladora, não sendo

afectada por alterações ocorridas ao nível das

suas células componentes.

Nas palavras de Paulo Mota Pinto, no seu

parecer inédito a que tivemos acesso: "o domí-

nio relevante para efeitos de imputação deve

compreender todo o potencial de influência reu-

nido no seio desse grupo, e sob o controlo de

uma mesma entidade-cúpula — seja ela uma

pessoa singular ou colectiva, em face das re-

gras, bem assentes, sobre o âmbito pessoal de

aplicação. E deste modo, a inclusão adicional

de uma ou mais sociedades na cadeia de um

mesmo grupo, que não deixa de ser o mesmo

grupo por causa disso (uma vez que não surge a

partir dessa inclusão um novo controlador, um

novo potencial de influência), constitui-a em

mais um vaso comunicante de imputação dentro

do grupo (…). As regras de imputação de direi-

tos de voto, ao atuarem nos sentidos ascenden-

te, descendente e lateral, criam um sistema de

vasos comunicantes do controlo que torna des-

de logo irrelevantes, sem que a lei o tenha que

expressamente dizer, as 'realocações' intragru-

po de direitos de voto, fazendo com que se não

possa dizer que, por força de tal 'realocação', ou

de uma interposição de um novo elo na mesma

'cadeia de domínio', se passou a superar um li-

miar relevante para o dever de lançamento de

OPA (com uma 'mudança de controlo')".

5.7 A inexistência de interesses

dos accionistas minoritários dignos de tutela

A mera alteração de título de imputação, já o

vimos, não é constitutiva de um dever de

OPA, por maior e mais profundo que seja o

seu impacto dessa alteração sobre as

“condições de investimento” dos accionistas

minoritários — sendo certo que esse impacto

pode efectivamente ser bastante significativo,

como o ilustram algumas das hipótese por nós

figuradas supra sob 3.

Acompanhamos, neste passo, Thomas

Liebscher57: “em tais constelações os interes-

ses dos accionistas externos da sociedade visa-

da não são tão carecidos de protecção como

nos casos em que um terceiro que vem de fora

adquire uma participação de controlo. O risco

de transferências de participação dentro do

grupo das entidades domi-nantes na situação

de domínio anterior é intrínseco a essa situa-

ção e os accionistas externos encontram-se

[depois das transferências], como se encontra-

vam antes, diante de um dos anteriores titulares

do domínio, de tal forma que não parece exigí-

vel uma reapreciação da sua decisão de investi-

mento, tanto mais que o direito das tomadas de

domínio pura e simplesmente não pode oferecer

uma protecção completamente isenta de bre-

chas”. (sublinhado nosso).

Aqui é que bate o ponto: quem adquire acções

numa sociedade cotada já sabe de antemão

que a transmissão de acções dentro do círcu-

lo de accionistas a quem determinada parti-

cipação seja imputável não gera dever de

OPA e, portanto, não pode deixar de aceitar

56- Ob. cit., pág. 517. 57- Ob. cit., págs. 1015.

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31 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

arcar com o risco correspondente (aliás inex-

pressivo), incorporando-o na sua decisão de

investimento.

6. Da inexistência do dever de OPA

mesmo pressupondo-se uma imputação

dentro de um grupo apenas em sentido

descendente

Admitamos, for the sake of argument, que a

imputação de votos decorrente do art. 20.º, n.º

1, al. b) operava apenas em sentido ascendente

e que a nossa lei não reconhecia o tal controlo

pelo grupo (ou seja, que " o controlo pertence

ao grupo na configuração que tem em cada

momento" com o que, logo por isso, "a inclusão

adicional de sociedades não conduziria a uma

'obtenção do controlo'", e não obrigaria a

OPA); mesmo assim não é legítimo sustentar

que a sociedade Z do nosso exemplo incorreu

num dever de OPA, em virtude da inter-

pretação restritiva de que, nessa hipótese, o art.

187.º, n.º 1, teria de ser objecto. Vejamos uma

vez mais.

6.1 Necessidade de uma interpretação

teleológica do art. 187.º, n.º 1, do CVM

Como bem salienta Paulo Mota Pinto no seu

citado parecer "nenhum dado (legislativo, da

prática do mercado de capitais ou qualquer ou-

tro) pode infirmar a necessidade de interpreta-

ção das normas jurídicas em causa à luz da res-

petiva teleologia, à luz do respetivo fim sócio-

jurídico, tendo aliás de, no quadro da interpreta-

ção dessas normas, ser atribuída proeminência a

tal 'elemento teleológico' (...). A interpretação

da norma do art. 187.º, n.º 1, à luz da teleologia

que lhe é ínsita, não dispensa que se indague, de

modo decisivo, em que medida alterações na

estrutura de domínio devem ou não ter conse-

quências ao nível da vinculação ao lançamento

de uma OPA obrigatória"58.

Hoje em dia é largamente dominante a opinião

que recusa uma interpretação literal e uniforme

dos critérios de imputação dos votos nos termos

do artigo 20.º do CVM (para os quais remete o

art. 187.º, n.º 1), e que conclui que, para efeitos

do dever de lançamento de OPA, as diversas

alíneas daquele preceito devem apenas ser con-

sideradas se, e na medida em que, à imputação

de direitos de voto corresponda uma situação de

efetivo domínio ou controlo da sociedade visa-

da. A CMVM afina pelo mesmo diapasão.

Não perfilhamos esta opinião. Mesmo a ser ver-

dade, porém, que se tem de interpretar as regras

sobre a imputação de direitos de voto sob a égi-

de da respetiva teleologia ou consequência —

no caso, por força da remissão do artigo 187.º,

n.º 1, a constituição de um dever de lançamento

de OPA —, “isso não dispensa, em rigor, que se

identifique a ratio legis (o surgimento do dever

de lançamento de OPA) que deva justificar a

consideração deste ou daquele aspecto de facto

e/ou de direito como integrante ou conducente

ao domínio para efeitos jurídico-mobiliários,

conforme computado por via das regras de im-

putação de direitos de voto"59.

Na Alemanha, diga-se en passant, a doutrina

divide-se sobre se o apelo ao telos do dever de

OPA para efeitos restritivos deve ser atendido

aquando da fixação do sentido das regras de

imputação de direitos de voto ou antes subse-

quentemente, quando se trata de apurar se a

ultrapassagem do patamar de votos relevante

(30%) é efectivamente geradora de um dever de

OPA60.

Não se pode é querer matar a discussão com o

argumento de que a situação examinada não é

subsumível a nenhum dos casos de derrogação

do dever de OPA previstos no art. 189.º do

CVM. Pois, como nota uma vez mais Paulo

Mota Pinto no seu parecer, "a eventual

O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 31

58- Na mesma linha cfr. Carlos Ferreira de Almeida, ob. cit., pág. 8: "Seguro é, pelo menos, que não existe no sistema jurídico qualquer princípio de in dubio pro opa e que a interpretação das normas sobre ofertas públicas segue os cânones hermenêuticos comuns". 59- Paulo Mota pinto, parecer citado. 60- Vide, por todos, Wackerbarth, ob. cit., anotações 5 e segs. ao § 30.

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32 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

aplicação da exceção taxativa só pode ser discu-

tida no pressuposto de que antes a regra geral,

em momento lógico prévio, atuou no caso con-

creto, impondo pela sua previsão e teleologia

uma vinculação a um dever de lançamento de

OPA obrigatória (...). Ou por outras palavras:

não vale a pena, nem faz sentido, discutir a ex-

ceção se e quando é logo a regra geral que nem

sequer se aplica ao caso (e só se esta se aplicas-

se, num primeiro momento lógico, é que have-

ria, num segundo momento, que verificar se

essa aplicação cessaria ou não, em virtude das

exceções que lhe dizem respeito)”.

6.2 Os fundamentos do dever de OPA

Há no essencial acordo sobre os fundamentos

da consagração de um dever de OPA — a ratio

legis, aliás, é de uma "simplicidade cristalina";

trata-se de, havendo uma modificação do con-

trolo da sociedade, assegurar uma distribuição

equitativa do prémio que seja pago e de possibi-

litar que o accionista discordante com a altera-

ção possa sair da sociedade em condições jus-

tas.

A experiência mostrou que, tanto no caso de

passar a existir pela primeira vez um accionista

de controlo, como no caso de alteração desse

accionista, ocorre frequentemente uma mudan-

ça da política e da estratégia empresariais, po-

dendo tais eventos afectar negativamente a co-

tação das acções ou a política de distribuição de

dividendos; daí a necessidade de tutelar os acci-

onistas minoritários, assegurando-lhes a oportu-

nidade de reapreciarem e reverem a sua decisão

de investimento.

Por outro lado, "é ponto assente, na análise fi-

nanceira empresarial e mobiliária, que uma par-

ticipação social que permita ao seu adquirente a

obtenção do controlo não vale apenas tanto

quanto a soma do valor de mercado de cada

ação que a compõe: vale, sim, esse montante

somado a um valor acrescido, um plus que re-

presenta o chamado prémio de controlo"61: o

dever de OPA geral provê a que esse valor

acrescido seja repartido igualitariamente entre

todos os accionistas, em vez de ser apropriado

pelo titular da participação de controlo.

6.3 Os limites ao dever de OPA impostos

pelas garantias constitucionais da liberdade

negativa de contratar e da autonomia

privada

"O dever de lançar oferta pública, na medida

em que efetivamente tenha de conduzir a final a

aquisição forçosa de valores mobiliários por

determinado preço, fixado nos termos do CVM,

põe o oferente numa posição em que a sua auto-

nomia privada se encontra comprimida próxi-

mo do mínimo imaginável: não pode furtar-se à

celebração de contratos tendentes à aquisição

dos valores mobiliários, quer queira, quer não

queira"; ora configurando a imposição do de-

ver de lançamento de OPA uma significativa

restrição à liberdade negativa de contratar do

oferente, protegida também no plano constituci-

onal, ela só poderá ser justificada, também nes-

te plano, em situações em que se encontrem em

concreto interesses de acionistas/investidores

minoritários que, efectiva ou potencialmente

afectados por uma real aquisição ou transmis-

são do controlo, careçam desde já de ser tute-

lados, pelo surgimento de tão extenso e gravoso

dever jurídico".62

Mais: a protecção da posição jurídica e do patri-

mónio daquele a quem se queira impor um de-

ver de OPA não podem ser simplesmente obnu-

bilados, e o seu interesse inteiramente desconsi-

derado, em favor de uma irrestrita protecção

dos accionistas minoritários e dos investidores,

na hora de interpretar o artigo 187.º, n.º 1.

Razões jurídico-constitucionais, de respeito

pelo princípio da proporcionalidade na previsão

de restrições ou limitações legais a valores tão

61- Paulo Mota Pinto, parecer citado. 62- Paulo Mota Pinto, parecer citado (itálico acrescentado).

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33 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

fundamentais como a liberdade negativa de

contratar e a garantia da propriedade privada

exigem que o dever de OPA se contenha dentro

dos limites do que seja adequado e exigível pa-

ra protecção dos interesses dos accionistas mi-

noritários em operações de tomada de controlo

das empresas.

6.4 Os limites ao dever de OPA impostos

pelo direito comunitário

As regras do CVM relativas às ofertas públicas

de aquisição têm hoje em dia de interpretar-se

em conformidade com a Directiva 2004/25/CE,

que os Estados Membros estavam obrigados a

transpor até 20 de Maio de 2006.

A Directiva tem indiscutivelmente como

finalidade a protecção dos interesses dos accio-

nistas nos casos de mudanças de controlo

(Considerandos 3 e 9). Mas a essa finalidade

junta-se outra, qual seja a criação de um merca-

do eficiente para a tomada de controlo de

empresas63. A protecção dos accionistas minori-

tários constante do art. 3.º, n.º 1, al. a), parte

final, da Directiva, não pode fazer-se a expen-

sas desse outro objectivo, tendo de recuar onde

o interesse de que exista um mercado de capi-

tais eficiente se lhe sobreponha de forma não

despicienda64.

A isto importa ajuntar que quaisquer intromis-

sões (provindas tanto dos direitos nacionais co-

mo do direito comunitário) na liberdade de cir-

culação de capitais e de estabelecimento — co-

mo é indiscutivelmente o caso da que se traduz

imposição de um dever de OPA — só são ad-

missíveis se preencherem quatro condições:

aplicarem-se de modo não discriminatório, jus-

tificarem-se por razões imperativas de interesse

geral, serem adequadas para garantir a realiza-

ção do objectivo que prosseguem e não ultra-

passarem o que é necessário para atingir esse

objectivo (vide o Acórdão do Tribunal de Justi-

ça de 30 de Novembro de 1995, Proc. C-55/94).

6.5 No domínio multi-escalonado,

só a entidade de topo é verdadeiramente

dominante, em termos substantivos

É incontrovertida a possibilidade de que a um

domínio directo venha juntar-se um domínio

indirecto (se B domina C, mas é por sua vez

dominada por A, C será dependente tanto de A

como de B); do ponto de vista substantivo, po-

rém, nessas hipóteses, só há na verdade uma

influência dominante (a de A). Assim, designa-

damente, Koppensteiner: “nos casos de depen-

dência indirecta a vontade de domínio decisiva

é em última instância formada por um único

sujeito de direito, e não por vários: a empresa-

mãe pode determinar os termos da influência da

empresa-filha sobre a empresa neta”65.

No mesmo sentido se pronunciou a CMVM:

"(…) numa cadeia de imputação quem domina,

em última análise, é “o respetivo ultimate bene-

ficial owner […] que tem o poder fáctico e jurí-

dico de determinar o sentido em que são exerci-

dos os direitos de voto na sociedade aberta, in-

dependentemente do número de entidades que

entre si e a sociedade aberta se interponham

[…]".

6.6 A razão de ser ou teleologia

do art. 187.º, n.º 1, do CVM, não está

presente nas hipóteses de restruturações

intra-grupo

A este respeito, há uma nota muito importante a

reter: na circulação intra-grupo que aqui se tem

em vista não podem entrar novas pessoas que

passem a partilhar com outras o domínio anteri-

ormente existente (pessoas a quem não eram

O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 33

63- Vide Martin Philipp Heuber, ob. cit., pág. 66 e segs: essa finalidade deduz-se, designadamente, de alguns dos preceitos da Directiva (assim, por ex., do art. 3.º, n.º 1. al. d), que proíbe a criação de "mercados artificais"), e do próprio facto de esse acto ser emanado ao abrigo do art. 44.º, n.º 1, do Tratado da Comunidade Europeia (correspondente ao art. 50.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia), segundo o qual a adopção de directivas se destina a "realizar a liberdade de estabelecimento". 64- Martin Philipp Heuber, ob. cit., pág. 72. 65- Kölner Kommentar zum Aktiengesetz, vol. I, 3.ª edição, anotação 32 ao § 17).

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34 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

anteriormente imputados quaisquer direitos de

voto). Exige-se, pelo contrário, que em conse-

quência dela, os votos inerentes às acções trans-

mitidas não sejam imputáveis senão à pessoa

que estiver no vértice da pirâmide societária e

às sociedades integrantes desse grupo (e, por-

ventura, a outras entidades a quem já fossem

atribuídos, mas não a qualquer outra nova enti-

dade). "Está em causa a mera introdução de um

elo societário suplementar, inócua do ponto de

vista da prévia influência dominante, que se

mantém.

Pois bem. Na Alemanha, Fuhrman e

Oltmanns defendem que restruturações no seio

de um grupo assim entendidas não podem de-

sencadear um dever de lançamento de OPA,

na medida em que pressuposto desse dever é

que surja um “potencial de influência que

anteriormente não existisse”; ora “isso não é o

que se passa nos negócios entre um accionista

e aquelas pessoas cujos votos lhe sejam imputá-

veis (ou aliás também entre tais pessoas)”, não

havendo “nenhum interesse digno de tutela dos

accionistas externos em que lhes seja feita uma

(nova) oferta obrigatória”66.

O BaFin e a grande maioria dos outros autores

alemães recusa esse entendimento, mas com o

único argumento de que a sua adopção tornaria

“vazio” o § 36, III, da WpÜG, o qual justamen-

te, como se viu, permite que, mediante requeri-

mento formulado àquela entidade, não sejam

contados os votos inerentes às acções adquiri-

das em resultado de reestruturações no seio de

um grupo.

Este argumento, à primeira vista irrespondível,

não chega para desarmar os Fuhrman e

Oltmanns:

“esta concepção do BaFin é dificilmente

compreensível. Numa reestruturação no seio

de um grupo não há alteração prejudicial

aos accionistas externos. A influência decisi-

va continua a ser exercida como dantes pela

empresa mãe do grupo em causa. Nem o

valor nem a natureza da participação dos

accionistas externos na sociedade é substan-

cialmente alterada (…). A fundamentação

do BaFin, segundo a qual a regulamentação

do § 36, nr. 3, ficaria na prática esvaziada,

afigura-se não ser muito convincente diante

destas considerações baseadas nas finalida-

des da WpÜG”.

Convém não perder de vista que, na Alemanha,

o ponto não tem importância prática por aí

além: trata-se apenas de saber se a sociedade

do grupo adquirente está isenta do dever de

OPA sem mais, ou se tem de requerer a descon-

sideração dos votos ao BaFin (que não a pode

recusar). Entre nós, onde não existe regra seme-

lhante à do § 36, III, da WpÜG, não há nenhum

argumento para não retirar da razão de ser da lei

a consequência preconizada por Fuhrman e

Oltmanns. Como referem Noack/Zetsche, a

exigência de obter a desconsideração de votos é

totalmente inadequada, porque uma reestrutura-

ção na prática não muda em nada o controlo por

parte da sociedade de cúpula, e os accionistas

não carecem de protecção67.

Não são dignos de tutela, pelo menos, em ter-

mos que justifiquem um dever de OPA, ou seja,

uma restrição tão significativa à liberdade nega-

tiva de contratar do oferente, protegida também

no plano constitucional, e à liberdade de estabe-

lecimento e de circulação de capitais, protegida

no plano comunitário.

Assim o comprova a lição do direito compara-

do. Tem toda a razão quem afirme que "a análi-

se do Direito comparado permite compreender

que nesses ordenamentos o entendimento é o de

que a circulação entre pessoas relacionadas por

laços de domínio ou sociedades em relação de

66- Pflichtangebot bei konzerninternen Umstrukturierungen? Praktische Erfahrungen mit § 36 Nr. 3 und § 37 WpÜG, in NZG - Neue Zeitschrift für Gesellschaftsrecht, 2003, pág. 18. Em sentido idêntico Seibt/Heiser, Übernahme und Umwandlungsrecht, in Zeitschrift für das gesamte Handelsrecht und Wirtschaftsrecht, 2001, págs. 492 e seg.. 67- KapitalmarktrechtsKommentar, de Schwark/Zimmer, 4.ª edição, anotação 13 ao § 36 da WpÜG.

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35 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

grupo recai (…) na previsão da obrigação de

lançamento de OPA, de forma que se preveem

exceções em determinados casos, o que de ou-

tra forma não faria sentido".

O que acontece, simplesmente, é que, pressu-

pondo embora a obrigatoriedade de OPA, do

ponto de vista da ratio legis, uma alteração ma-

terial do domínio, a maioria das legislações

socorre-se de uma noção formal para delimitar

o âmbito dessa obrigatoriedade (a ultrapassa-

gem de um certo número de votos, contados de

determinada maneira) — e daí precisamente a

necessidade de restringir o âmbito de aplicação

da norma que acolhe essa noção, de modo a

assegurar a conformidade entre o regime aplicá-

vel e o telos do dever de lançamento. As

"excepções" (recte: "restrições") são necessárias

porque a letra da lei vai além do seu espírito (é

por isso que elas surgem nas diversas legisla-

ções); se o próprio legislador não as prevê

caberá ao órgão aplicador do direito restringir o

teor literal, segundo os cânones hermenêuticos

gerais.

Não se objecte que a tese de que "a alteração do

domínio efetivo constitui um limite imanente

do dever de lançamento de OPA, que, por isso,

não tem de considerado como exceção a esse

dever"68 significaria a abrogação da presunção

legal inilidível de “alteração de domínio efecti-

vo” quando é ultrapassado o limite de 1/2, re-

sultante do artigo 187. n.º 1 do CVM, a abroga-

ção da presunção legal inilidível do domínio,

resultante do artigo 21.º n.º 2 al. a) do CVM, e a

equiparação dos regimes da ultrapassagem do

limite de 1/3 e 1/2, regimes que o legislador

quis expressamente distinguir".

Efectivamente, o que se alega para subtrair ao

campo de aplicação do art. 187.º, n.º 1, os casos

de restruturações intragrupo em que uma socie-

dade adquire da pessoa que a domina uma parti-

cipação que lhe confere mais de metade dos

votos numa sociedade aberta não é que a mes-

ma não lhe proporciona o domínio desta última

sociedade, antes que a influência dominante

veiculada por essa participação verdadeiramen-

te não pertence ao respectivo titular jurídico-

formal, sujeito que está, por sua vez, ao domí-

nio de outrem; não pode figurar-se sequer um

domínio conjunto, na medida em que para tanto

seria imprescindível que o seu exercício depen-

desse de uma vontade comum da entidade do-

minante e da sociedade dependente, para cuja

formação ambos pudessem contribuir de manei-

ra autónoma.

Dito de outro modo, a não obrigatoriedade de

uma OPA nestes casos não decorre de não ha-

ver aquisição do domínio, mas de este ser mera

correia de transmissão de um outro que lhe pré-

existia e que subsiste, não cobrando por isso

relevo, assim, no plano material ou dos interes-

ses em jogo.

Como quer que seja: o art. 187.º, n.º 1, do

CVM, interpretado como consagrando um de-

ver de OPA em casos em que não há alteração

substancial da situação de controlo, como ocor-

re no caso sub judice, seria inconstitucional, por

violação dos arts. 26.º, n.º 1 (que consagra um

direito ao desenvolvimento da personalidade do

qual decorre a tutela de uma liberdade geral de

acção), 61.º e 62.º da Constituição, e ilegal por

violação dos arts. 49.º e 63.º do Tratado sobre o

Funcionamento da União Europeia.

6.7 A inexistência no caso sub judice

de uma alteração significativa da situação

de domínio

O certo, porém, é que se invoca que a situação

de domínio da Sociedade X se modificou, e em

termos essenciais.

Engrácia Antunes, por ex., no seu parecer,

escrevia: "Em face do exposto, julgamos ter

O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 35

68- Carlos Ferreira de Almeida, ob. cit., pág. 11.

Page 36: CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS · de aquisição das acções pertencentes aos sócios da sociedade X, por preço igual à cotação mé-dia ponderada de tais valores

36 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

ficado claro que a situação de domínio preexis-

tente se alterou: no lugar de um domínio de na-

tureza individual (exercido por uma pessoa sin-

gular) e solitário (exercido por um único sujei-

to), a [Sociedade X] é hoje objeto de um domí-

nio de natureza societária (exercida através de

pessoa jurídica societária) e coletiva (em cuja

conformação participam vários sujeitos, na

qualidade de acionistas e membros dos órgãos

sociais dessa mesma sociedade)".

Esta asserção e os argumentos em que se es-

triba só fazem sentido no impecável

"legalês" em que são escritas. O domínio últi-

mo, “na cadeia de domínio” que já existia antes

da constituição da Sociedade Z, competia, co-

mo continua hoje a competir, à mesma pessoa

singular. E esse domínio era já então complexo,

na medida em que, embora a sua detenção últi-

ma coubesse a essa pessoa, o seu exercício exi-

gia já a passagem intermédia pelo outro elo do

domínio: a Sociedade Y .

Paulo Câmara, no parecer junto aos autos,

contrapõe que, com a criação da Sociedade Z,

"passa a existir um domínio conjunto da

[Sociedade X], exercido quer pela [Sociedade

Z], quer pelo accionista dominante desta últi-

ma69. Mas a tese é totalmente improcedente,

com o devido respeito.

Se a Sociedade Z tivesse sido constituída em

termos tais que o seu controlo fosse objecto de

uma partilha com alguma outra pessoa (a quem

não fossem anteriormente imputados os direitos

de voto) não se questiona que esse outro accio-

nista co-controlante estaria obrigado a uma

lançar uma OPA.

Só que não é isso o que se passa. A influência

dominante sobre a Sociedade Z pertence exclu-

sivamente à pessoa singular que anteriormente

já detinha o domínio indirecto da Sociedade X.

Essa pessoa tem a maioria suficiente para asse-

gurar a prevalência da sua vontade; parafrase-

ando Engrácia Antunes, graças à participação

quase totalitária do capital e votos que detém na

Sociedade Z, a referida pessoa singular está

“em condições de imprimir, de um modo juridi-

camente estável e permanente, o cunho da res-

pectiva vontade no seio da estrutura organizati-

va desta última sociedade, determinando o sen-

tido das decisões da respectiva Assembleia Ge-

ral e, mediatamente (em virtude do poder de

eleição, destituição e remuneração dos seus

membros), das decisões dos respectivos órgãos

de administração” — e nisso consiste precisa-

mente a influência dominante no quadro das

sociedades comerciais.

Se uma pessoa detém o poder de influência do-

minante sobre uma sociedade, não pode haver

mais ninguém com esse poder. Só uma influên-

cia pode ser dominante ("perante duas influên-

cias distintas, ou uma é dominante e desaloja a

outra, ou ambas se excluem mutuamente70"); na

hipótese de um controlo conjunto, o que aconte-

ce é que, havendo embora também uma só in-

fluência dominante, a mesma assenta na coor-

denação dos poderes de influência de 2 ou mais

sócios — o que, contudo, nada tem a ver com o

caso que analisamos.

Em suma: o poder de influência dominante

sobre a Sociedade X pertence hoje, em última

instância, à mesma pessoa singular que o deti-

nha anteriormente à constituição da Sociedade

Z. Improcede em absoluto a tese de que houve

“introdução na cadeia de controlo de nova hol-

ding em que um antigo accionista (…) partilha

o controlo com novos accionistas” — afirmar

isso é desconhecer em que consiste a figura da

partilha de controlo ou do controlo conjunto.

O preenchimento dos denominados requisitos

de “neutralidade e de coincidência das partes”

69- Segundo Paulo Câmara, à semelhança de Engrácia Antunes, a constituição da sociedade Z "inaugura (…) um processo de transferência do domínio sobre a (Sociedade X), de domínio individual, para co-domínio vertical". Não se chega a entender, na lógica destes autores, por que é que, anteriormente, a situação era de domínio individual da pessoa singular, e não de co-domínio vertical da pessoa singular e da sociedade Y. 70- Geßler, in AktG Kommentar, de Geßler, Hefermehl, Eckardt e Kropf, vol. I, anotação 71 e segs. ao § 17.

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37 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

— se com isso se pretende significar que não é

suficiente a manutenção do mesmo accionista

último de controlo, e, designadamente, que é

necessário que este detenha 100% do capital da

sociedade que é adicionada à cadeia de domínio

— não se justifica no quadro do sistema erigido

pela nossa lei que apenas cuida de proteger os

accionistas minoritários no pressuposto de que

a situação de controlo se altera em termos

tais que surge um novo sócio controlador

(recorde-se que a mera alteração de título de

imputação não é constitutiva de um dever de

OPA, por maior e mais profundo que seja o seu

impacto dessa alteração sobre as “condições de

investimento” dos accionistas minoritários), e,

mais a mais, não serviria absolutamente para

nada: como a questão de obrigatoriedade ou não

obriga-toriedade de OPA se tem de resolver no

momento em que é ultrapassado um dos pata-

mares de direitos de voto legalmente relevantes,

nada impediria que o capital, detido integral-

mente naquele momento, fosse, sem obrigatori-

edade de OPA, transmitido parcialmente a ter-

ceiros no instante seguinte, de par, já agora,

com a atribuição a esses terceiros de “direitos

consagrados estatutariamente"; única condição

é que, por via disso, o terceiro não adquira o

domínio ou o co-domínio da sociedade (o que

não é o caso sempre que os votos inerentes às

acções da sociedade-alvo detidas pela tal socie-

dade adicionada à cadeia de domínio não se

tornem imputáveis a esse terceiro).

Não tem nenhum sentido não usar este mesmo

critério no próprio momento em que a socieda-

de passa a integrar a cadeia de domínio: não

haverá dever de OPA desde que o terceiro ou

terceiros que sejam sócios dessa sociedade in-

terposta e tenham direitos estatutários não parti-

cipem no domínio dessa sociedade, cabendo

antes esse domínio a quem já era, e continua a

ser, o accionista de controlo da sociedade aberta

em causa.

6.8 A certeza e segurança jurídica

Estamos plenamente convictos de que a inter-

pretação da lei que rejeitamos é completamente

errónea, mesmo que fosse possível desenvolver

a actividade hermenêutica fazendo abstracção

do modo como a lei tem sido uniformemente

entendida e aplicada ao longo de muitos anos.

O facto, porém, é que não é. O valor da segu-

rança jurídica (que em matér ia mobiliár ia

assume particular acuidade) postula que os des-

tinatários de uma norma possam confiar em que

os tribunais a aplicarão com o sentido que gene-

ralizadamente lhe é atribuído, salvo casos

excepcionalíssimos.

Isto é particularmente assim quanto a normas

que permanecem intocadas depois de o instituto

em que se integram ter sido objecto de uma in-

tervenção legislativa (como aconteceu com o

art. 187.º, n.º 1, do CVM, aquando designada-

mente da reforma do instituto das OPAs levada

a cabo pelo Decreto-Lei n.º 219/2006, de 2 de

Novembro), pois é legítimo ver nessa circuns-

tância um sinal de concordância do legislador

com a interpretação prevalecente (sinal esse

tanto mais forte quanto maior for o grau da pre-

valência: a lei não é lei se não encarnar na vida

que é suposta regular).

É pelo menos inusitado que, em nome da

certeza e da segurança jurídica — é dizer, da

previsibilidade das decisões —, se defenda

uma leitura literal da lei que, a ser acolhida e

aplicada, apanharia totalmente de surpresa o

nosso mercado de valores mobiliários e a ge-

neralidade dos seus agentes, lançando ondas

de choque sobre uma experiência pacata de

mais de dez anos sem notícia de qualquer inci-

dente relacionado com a questão em apreço e

criando no mercado um verdadeiro caos, pelas

repercussões daí decorrentes sobre um amplo

leque de operações transactas.

O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 37

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38 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Inúmeras operações que implicaram a

"adveniência de novos sujeitos" à cadeia de

controlo tiveram lugar desde Abril de 2000 sem

que ninguém — positivamente ninguém — ti-

vesse aventado a obrigatoriedade de uma OPA.

Podem citar-se, sempre a título de meros exem-

plos, o que aconteceu com a Sonaecom em Ja-

neiro de 2007 (a Sontel BV passou a constituir

um elo adicional na cadeia existente entre o

Eng. Belmiro de Azevedo e a sociedade sua

dominada Sonaecom) e, ainda muito recente-

mente, com a Jerónimo Martins SGPS, S. A. (o

domínio directo que sobre ela exercia a Socie-

dade Francisco Manuel dos Santos, SGPS S.A,

passou a ser indirecto, mercê da interposição da

Sociedade Francisco Manuel dos Santos B.V.).

Isto para já não falar das dezenas ou centenas

de casos em que novas sociedades passaram

simplesmente a integrar grupos de que fazem

parte sociedades abertas, e a quem, por força da

imputação múltipla, passaram por esse mero

facto a ser imputáveis votos em percentagem

superior aos limiares de obrigatoriedade de

OPA.

Perante um consenso tão vasto, em que par-

ticipa a própria CMVM (a entidade a quem a

lei comete a supervisão e a regulação do merca-

do de valores mobiliários!), não é mini-

mamente admissível uma interpretação feita

em redoma de vidro — para mais, insiste-se,

em nome de “exigências imperativas de segu-

rança e de previsibilidade”. Estas exigências

postulam, sim, que se respeite a interpretação

prevalecente e não se introduza uma feroz litigi-

osidade onde tem imperado total harmonia71.

Essa harmonia é possível porque a interpretação

restritiva propugnada não abre a porta a discus-

sões a propósito de situações concretas, passí-

veis de minar a segurança na aplicação do direi-

to, pretendida pelo legislador. Nada há para

discutir: a recomposição de grupos que impli-

que a "adveniência de novos sujeitos" à cadeia

de controlo nunca gera obrigação de OPA, sem-

pre que se mantenha a cabeça do grupo e os

votos não se tornem imputáveis a qualquer enti-

dade alheia ao grupo (não é, pois, que umas

vezes a determine e outras não, de acordo com

uma qualquer ponderação das circunstâncias do

caso concreto que pudesse ser fonte de dúvidas

e incertezas).

6.9 Considerações finais

Não se pode falar de deveres de OPA, passe a

expressão, como quem bebe um copo de água!

A tutela dos accionistas minoritários consubs-

tanciada na imposição de um dever de OPA

representa um encargo tão oneroso para o obri-

gado que tem de ser reservada para os casos de

verdadeira alteração material do controlo (e,

aliás, nem para todos); trata-se de um remédio

poderoso e dispendiosíssimo para uma doença

grave, não de um placebo para pacientes hipo-

condríacos ou com a síndrome de Münchausen.

Tal tutela tem, por outras palavras, de ser man-

tida dentro de limites razoáveis. O interesse dos

minoritários não é o único que está em jogo. A

sua protecção não pode ir ao ponto de sacrificar

a liberdade do accionista de controlo de movi-

mentar a sua participação no interior do seu

grupo empresarial; enquanto se mantiver a

cúpula do grupo, os accionistas continuarão a

confrontar-se com a mesma situação de domí-

nio, em termos substanciais.

Mas, por força dessa liberdade, os sócios mino-

ritários sabem que, cessada a relação de domí-

nio entre a pessoa controladora e a sociedade

que seja a titular directa da participação, apenas

se tornará obrigatória uma OPA se e quando

essa sociedade vier a tornar-se dependente de

outra ou outras entidades. Assim o reconhece a

71- Como refere Paulo Mota Pinto (Parecer PMP, pág. 92): "E quanto à certeza jurídica ou segurança do mercado de valores mobiliários no seu todo, basta-nos remeter para a circunstância, suficientemente eloquente, de, em vários anos de aplicação do Código de Valores Mobiliários, em operações idênticas (ou pelo menos semelhantes em todos os aspectos relevantes) à que está agora em causa, nunca se ter concluído pela necessidade de lançamento de uma OPA geral — nem a CMVM a ter exigido, nem a doutrina ter reclamado a sua consagração, nem sequer o legislador, apesar de ter revisto o CVM, nunca ter vindo contrariar esta prática com uma alteração legislativa correspondente”.

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39 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

a doutrina alemã: a empresa-filha não fica

obrigada a OPA no momento em que cessa a

relação de dependência e em que pela primeira

vez pode exercer de modo independente o seu

controlo directo sobre a sociedade visada72.

O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 39

72- Ekkenga, in WpÜG - Kommentar, de Ehricke/Ekkenga/Oeschsler, anotação 27 ao § 27.

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40 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

OPA Derrogatória A derrogação do dever de lançamento de OPA com fundamento no prévio lançamento de OPA voluntária: momento em que deve ser apreciada e requisitos de que depende Domingos Salgado e Juliano Ferreira *

Apresentação do Tema

A derrogação do dever de lançamento de Oferta

Pública de Aquisição (“OPA”), com fundamen-

to no lançamento prévio de OPA voluntária, por

via da qual o oferente tenha dado cumprimento

às exigências subjacentes àquele dever jurídico,

encontrou entre nós previsão legal mesmo antes

da entrada em vigor da Diretiva n.º 2004/25/

CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de

21 de abril de 2004 (“Diretiva das OPAs” ou

apenas “Diretiva”), de onde de resto se destaca

como a única exceção naquela expressamente

prevista.

O lançamento de OPA voluntária pode, cumpri-

dos determinados requisitos, eximir do dever de

lançamento de OPA aquele que, por aquela via,

vem a adquirir o controlo de determinada socie-

dade aberta.

Ainda que a norma legal em que esta assenta

não origine significativas dúvidas – a julgar

pelo pouco interesse que tem despertado na

doutrina especializada –, a verdade é que, no

âmbito da sua efetiva implementação, não raras

vezes surgem questões quanto ao alcance inter-

pretativo dos seus requisitos, bem como quanto

ao concreto procedimento a seguir por quem de

tal derrogação pretenda beneficiar. Na última

década, e com maior incidência em tempo

próximo daquele em que escrevemos, a previ-

são da natureza derrogatória da OPA voluntária

como condição de lançamento1, ou seja, sem

verificação da qual o respetivo registo da OPA

voluntária não deve ser concedido, tem posto a

nu algumas dúvidas e potenciais incoerências

do regime legal entre nós vigente.

Nesta sequência, e sem significativas preocupa-

ções de sistematização dogmática ou conceptu-

al, reservamos à figura da “OPA derrogatória”

– a OPA voluntária lançada em termos tais que

habilitam o oferente que assim venha a adquirir

o controlo a não ficar sujeito ao dever legal de

lançamento de OPA subsequente – as linhas

que se seguem, com o propósito exclusivo de,

partilhando as dúvidas acima mencionadas, (re)

lançar o debate sobre esta figura.

Não se estranhe, pois, que esta reflexão nos

conduza por um percurso entre o ser e o dever-

ser, ao nível do direito constituído e do direito

a constituir, tendo presente um confronto dialé-

tico entre o privilégio da certeza e segurança

jurídica, reclamada pelos potenciais oferentes, e

a primazia da solução materialmente justa e

equitativa, reivindicada pelos acionistas perante

OPA voluntária com pretensões derrogatórias.

* - Juristas do Departamento de Supervisão do Mercados, Emitentes e Informação da CMVM.

O presente texto expressa opiniões estritamente pessoais dos autores, que não podem ser legitimamente entendidas como manifestação da posição da CMVM sobre as matérias versadas. 1- Para uma análise das condições que legitimamente podem ser apostas às OPAs, v. Paulo Câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 609 a 611. Pelo relevo prático que esta questão assume, veja -se infra, nota 20.

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41 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

1. Introdução

I. A aquisição do poder de exercer influência

dominante sobre determinada sociedade aber-

ta, revelada pelo controlo de mais de um terço

ou metade dos direitos de voto origina, em prin-

cípio, a constituição do dever de lançamento de

OPA, imposto como mecanismo de proteção

dos acionistas minoritários que se vêm confron-

tados com a superveniência de uma alteração de

controlo.

Em certas circunstâncias, porém, admite-se que

a aquisição daquele poder não dê lugar à exigi-

bilidade de cumprimento do dever a ele associa-

do. Admite-o, de resto, a própria Diretiva das

OPAs, ao conceder na previsão de específicas

exceções no direito interno dos Estados Mem-

bros, exigindo apenas a garantia de que, não

obstante a não imposição do dever, os acionis-

tas minoritários se encontrem protegidos2.

Mais: é a própria Diretiva que, de modo expres-

so, prevê o afastamento do dever «…quando o

controlo tiver sido adquirido na sequência de

uma oferta voluntária realizada em conformi-

dade com a presente diretiva, dirigida a todos

os titulares de valores mobiliários, para a tota-

lidade das suas participações»3.

Entre nós, encontra-se disposição similar no art.

189.º, n.º 1, al. a) do Código dos Valores Mobi-

liários4, que de resto precede a entrada em vigor

da Diretiva5. É pois aí que se encontra legal-

mente consagrada a figura da “OPA derrogató-

ria”, sobre que incidem as próximas linhas.

II. Não obstante a clareza com que já no pre-

âmbulo do Decreto-Lei n.º 261/95, de 3 de

outubro6 se previa que os casos de derrogação

seriam aqueles «…em que o fundamento da

obrigação de lançamento de OPA decorra da

mera verificação do facto previsto na norma»,

assim distinguindo aqueles da figura jurídica da

dispensa, a verdade é que cumprirá necessaria-

mente ao aplicador do direito a interpretação da

norma onde a derrogação se contém, sendo nes-

se campo que, não raras vezes, se têm levantado

dúvidas quanto i) aos factos de que depende a

derrogação prevista no art. 189.º n.º 1, al. a), e,

em concreto, quanto ii) ao período temporal

tomado como relevante para efeitos de determi-

nação da contrapartida que, uma vez paga na

OPA voluntária, contribuirá para o afastamento

da exigibilidade de cumprimento do dever de

lançamento de OPA.

OPA Derrogatória : 41

2- Assim decorre do art. 4.º/n.º 5 da Diretiva das OPAs: «[s]em prejuízo dos princípios gerais enunciados no n.º 1 do artigo 3.º, os Estados-Membros podem estabelecer, nas regras por eles aprovadas ou introduzidas em aplicação da presente directiva, derrogações a estas regras i) incluindo essas derrogações nas suas regras nacionais, a fim de ter em conta circunstâncias determinadas a nível nacional, e/ou ii) conferindo às suas autoridades de supervisão, caso estas sejam competentes na matéria, o poder de não aplicar as regras nacionais, por forma a ter em conta as circunstâncias mencionadas na alínea i) ou outras circunstâncias específicas, exigindo-se, neste último caso, uma decisão fundamentada». A conformidade das exceções previstas no direito interno dos Estados Membros com os princípios previstos na Diretiva é um dos aspetos que tem vindo a merecer a atenção da Comissão Europeia. Sobre este tema veja-se o “Report from the Commission to the European Parliament, The Council, the European Economic and Social Committee and the Committee of the Regions, Application of Directive 2004/25/EC on takeover bids”, COM (2012) 347, final, de 28 de junho de 2012 e o contributo preparado pelos membros do European Company Law Experts, Peter Böckii, Paul Davies, Eilis Ferran, Guido Ferrarini, José Garrido, Klaus J. Hopt, Alain Pietrancosta, Katharina Pistor, Rolf Skog, Stanislaw Soltysinski, Jaap Winter e Eddy Wymeersch, Response to the European Comission’s Report on the Applicattion of the Takeover Bids Directive, Oxford Legal Studies Research Paper n.º 5/2014, disponível em http://ssrn.com/abstract=2362192. 3- Cfr. n.º 2 do art. 5.º da Diretiva das OPAs. 4- Referindo-se a este Diploma todas as normas mencionadas sem expressa menção em contrário. 5- Do Anteprojeto de Diploma de Transposição da Diretiva das OPAs para o direito português decorria que os princípios previstos no diploma comunitário já se encontravam «consagrados no Código dos Valores Mobiliários quer directamente, quer por força da conjugação de diversas disposições», cfr. ponto 2.1 do referido documento, disponível em www.cmvm.pt. 6- Diploma que veio introduzir na ordem jurídica portuguesa a figura das derrogações, aditando o art. 528.º-A ao Código do Mercado dos Valores Mobiliários. Para uma ideia do regime de OPA que então se instituiu, v. Maria Luísa Azevedo, Maria do Rosário Azevedo, Luís Bandeira, Miguel Cunha, Código do Mercado de Valores Mobiliários e Legislação Complementar – Anotado e Comentado, Porto: Associação da Bolsa de Derivados do Porto, 1.ª edição, 1996, p. 507 e ss.

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42 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

III. Procuraremos, de seguida, enunciar os

fatores que estão na origem de possíveis dúvi-

das interpretativas, apontando ideias que podem

auxiliar tantos quantos estejam envolvidos na

aplicação deste regime jurídico, ou nele possam

ter interesse. Cumprirá ter em particular atenção

a adequada definição do procedimento a seguir

quando em causa esteja a invocação desta cir-

cunstância derrogatória, procurando ainda evi-

denciar, em função das conclusões obtidas, o

momento em que competirá à Comissão do

Mercado dos Valores Mobiliários (“CMVM”)

apreciar o requerimento de derrogação, que pa-

ra o efeito tem de ser apresentado por quem

dela pretenda beneficiar.

Partindo da enunciação dos factos constitutivos

da derrogação (2.1.) e da descrição do procedi-

mento para obtenção da declaração da CMVM

(2.2.), procuraremos aferir, com base num con-

fronto dicotómico entre duas perspetivas inter-

pretativas possíveis, o sentido de se considerar

– quando em causa esteja apurar a adequação

da contrapartida oferecida –, os seis meses ante-

riores ao anúncio preliminar de OPA voluntária

(3.1.) ou os seis meses anteriores ao anúncio

preliminar de OPA obrigatória (3.2).

2. A derrogação do dever de lançamento

de OPA com fundamento na aquisição

de controlo por via de OPA voluntária

prévia

2.1 Os factos constitutivos da derrogação

I. No ar t. 189.º estão previstos os casos em

que, mediante a verificação dos factos e cir-

cunstâncias previstos na letra da lei, o dever de

lançamento de OPA poderá ser “derrogado”.

Ainda que o controlo tenha efetivamente sido

adquirido e que o correspondente dever de

lançamento de OPA se tenha constituído na

esfera jurídica do novo controlador, o facto de

tal se ficar a dever a alguma das circunstâncias

relativamente às quais o legislador ajuizou não

fazerem emergir a necessidade de proteção dos

minoritários, por via de OPA obrigatória,

permitem que aquele não fique adstrito ao cum-

primento de tal dever.

Por isso, quando em causa esteja a aplicação da

al. a) do n.º 1 do art. 189.º, haverá de se antever

que a OPA obrigatória constitui meio prescindí-

vel de proteção dos acionistas minoritários, al-

cançada já através da OPA voluntária. Uma vez

garantida a real e efetiva possibilidade de saída

dos acionistas mediante recebimento de contra-

partida equitativa, no âmbito de oferta voluntá-

ria destinada à aquisição de controlo – proteção

que a OPA obrigatória lhes concederia, uma

vez concretizada aquela intenção –, a imposição

do dever de lançamento de OPA encontrar-se-ia

esvaziada da racionalidade que tipicamente lhe

é subjacente, procurando afinal proteger quem

beneficiou já da oportunidade de sair da socie-

dade.

II. No ar t. 189.º n.º 1, al. a) encontra-se pre-

vista a derrogação do dever de lançamento de

OPA fundada na circunstância de o controlo da

sociedade ter sido adquirido por via de OPA

voluntária prévia. Ali se prevê que «(…) o dis-

posto no 187.º não se aplica quando a ultrapas-

sagem do limite de direitos de voto relevantes

nos termos dessa disposição resultar (…) da

aquisição de valores mobiliários por efeito de

oferta pública de aquisição lançada sobre a

totalidade dos valores mobiliários referidos no

artigo 187.º emitidos pela sociedade visada,

sem nenhuma restrição quanto à quantidade ou

percentagem máximas de valores mobiliários a

adquirir e com respeito dos requisitos estipula-

dos no artigo anterior».

Atenta a previsão da norma, é possível concluir

pela existência de três pressupostos de cuja

verificação cumulativa depende a respetiva

aplicação7:

7- Em sentido similar, v. Paulo Câmara, Manual…, ob. cit., p. 659, quando conclui que o oferente beneficiará da derrogação ao dever de lançamento de OPA se «o preço mínimo e a alternativa em dinheiro, nos termos do art. 188.º, tiver sido respeitado na sobredita oferta» e esta tiver a natureza de geral e total.

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43 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

i) O oferente deve ter adquirido o controlo

da sociedade visada em resultado de uma

OPA por si lançada, assim preenchendo o

pressuposto de que depende a constitui-

ção do dever de lançamento de OPA, pre-

visto no art. 187.º n.º1;8

ii) A oferta voluntariamente lançada deve

ter-se qualificado como geral e totalitária,

i.e., deve ter sido dirigida à generalidade

dos acionistas e ter tido por objeto a tota-

lidade dos valores mobiliários não deti-

dos pelo oferente (ações e outros valores

mobiliários emitidos pela sociedade visa-

da que confiram direito à sua subscrição

ou emissão), sem restrições ao montante

máximo de valores mobiliários a adqui-

rir;

iii) A contrapartida oferecida deve ter respei-

tado os requisitos estabelecidos no art.

188.º, onde se preveem os critérios para

determinação da contrapartida mínima

legal a oferecer no âmbito de OPA

obrigatória.

III. Em consideração ao primeiro facto cons-

titutivo, cumpre salientar, ainda que sucinta-

mente, que este apenas se encontra verificado

quando o oferente, em resultado da oferta lan-

çada, obtenha o controlo da sociedade visada,

i.e., adquira um número de ações que, ultrapas-

sando um dos limites quantitativos previstos no

número 1 do art. 189.º, lhe atribua a possibilida-

de de exercer sobre ela influência dominante9.

Se ao oferente vierem a ser imputados direitos

de voto, por convocação dos critérios de impu-

tação do art. 20.º, em medida superior às fasqui-

as legalmente previstas, mas tal não lhe atribuir

o poder de exercer influência dominante (art.

21.º), a derrogação já não lhe aproveitará, pois,

sendo sua função a de afastar a exigibilidade de

cumprimento do dever de lançar OPA, ela só

poderá ser exercida se o dever em causa se tiver

efetivamente constituído10. Sintetizando, a der-

rogação apenas aproveita a quem efetivamente

se tenha constituído no dever de lançamento de

OPA, de acordo com o critério de identificação

de posições de domínio inerente ao art. 187.º

n.º1.

IV. No que diz respeito ao segundo facto

constitutivo (recorde-se, oferta geral e totalitá-

ria), ao mesmo está inerente o pressuposto de,

através da OPA, ter sido atribuída uma oportu-

nidade de “saída” à totalidade dos acionistas

minoritários. A alteração de controlo numa so-

ciedade acarreta uma pluralidade de riscos po-

tenciais para os acionistas minoritários11 que, de

acordo com a Diretiva das OPAs, estão na

origem da exigência de que o novo controlador

dirija, o mais rapidamente possível, uma oferta

de compra «…a todos os titulares de valores

mobiliários, para a totalidade das suas partici-

pações»12.

OPA Derrogatória : 43

8- Antecipa-se, desde já, que o anúncio relativo ao apuramento de resultados deverá, para que a derrogação venha a ser declarada, conter a informação relativa à quantidade de valores mobiliários e direitos de voto que o oferente passou a deter, calculados nos termos do art. 20.º (cfr. art. 16.º, n.º 2 do Regulamento da CMVM n.º 3/2006 [Ofertas e Emitentes]).

9- Em virtude de limitações de espaço, da complexidade do tema e por não ser um aspeto central para o problema que nos propomos tratar neste artigo, optámos por não desenvolver o tema da imputação do dever de lançamento de OPA obrigatória, em particular no que respeita aos critérios que devem presidir à identificação de situações de aquisição de controlo.

10- Em tais circunstâncias – que serão, por exemplo, as de quem ultrapasse a fasquia de um terço, havendo acionista(s) com participação superior –, ao participante já não poderá aproveitar a derrogação do dever de lançamento de OPA, pois na sua esfera jurídica não se chegou a sedimentar o poder de exercer influência dominante sobre a sociedade. Em tal circunstância, dever-se-á ao invés considerar encontrar-se o participante em condições que o colocam no âmbito da prova negativa de domínio, por se verificar que a imputação de direitos de voto que para si resulta, superior embora à fasquia de um terço, não lhe atribui o poder de exercer influência dominante sobre a sociedade. Em termos práticos, sucederá então que se verificará plenamente aplicável o regime dos n.os 2 e 3 do art. 187.º, não só no que respeita aos deve-res de comunicação de incrementos de 1%, como ao dever de lançamento de OPA logo que adquira uma posição que lhe permita exercer influência dominante sobre a sociedade visada (sem que possa ser para o efeito invocada a derrogação ao dever de lançamento de OPA).

11- Associados ao risco de apropriação de benefícios privados do controlo. Para um maior desenvolvimento desta problemática, v. Ana Perestrelo de Oliveira, Grupos de Sociedades e Deveres de Lealdade – Por um Critério Unitário de Solução do “Conflito do Grupo”, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 370 a 378 e Alessio M. Pacces, Control Matters: Law and Economics of Private Benefits of Control, ECGI, Law working paper n. 131/2009, 2009, disponível em www.ssrn.com/abstract=1448164.

12- Cfr. n.º 1 do art. 5.º da Diretiva das OPAs.

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44 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A ratio inerente a tal exigência é a de garantir à

totalidade dos acionistas minoritários a mesma

oportunidade que todos teriam, caso a oferta a

eles dirigida fosse subsequente à aquisição de

controlo, permitindo que cada um repondere a

manutenção do seu investimento.

V. Por último, o terceiro facto constitutivo (o

preço proposto respeitar os critérios de determi-

nação da contrapartida mínima a oferecer no

âmbito de OPA obrigatória) assenta na exigên-

cia de que a contrapartida consista num “preço

equitativo”13. A previsão de uma contrapartida

mínima legal tem como fundamento, no essenci-

al, assegurar aos acionistas minoritários, con-

frontados com uma mudança de controlo, uma

real e efetiva possibilidade de saída da socieda-

de, o que apenas se encontrará garantido se a

aceitação do valor proposto não os deixar em

circunstância significativamente pior do que

aquela em que puderam sair os acionistas que

tenham alienado o bloco de controlo14 ou, na

ausência de uma tal transação, se a contraparti-

da oferecida corresponder a um montante repre-

sentativo do valor da sociedade.

VI. Porém, a remissão que é feita na par te

final da alínea a) do número 1 do art. 189.º para

os critérios aplicáveis à fixação da contrapartida

mínima a oferecer no âmbito da OPA obrigató-

ria é suscetível de levantar dúvidas, em especial

quanto ao modo de contagem do período de seis

meses relevante para apuramento da cotação

média ponderada, ou do período em que rele-

vam as aquisições efetuadas pelo oferente (ou

por pessoas consigo relacionadas).

No art. 188.º, o legislador define o modo de

determinação da contrapartida, prevendo, no

seu número 1, os respetivos critérios em que

aquele assenta por referência à cotação média

ponderada e por referência ao maior valor pago

pelo oferente, um e outro atento o período de

seis meses anterior ao anúncio preliminar. Nos

números seguintes, o legislador prevê regras a

aplicar perante a impossibilidade de recurso aos

critérios mencionados – seja por não ser efeti-

vamente possível chegar a um valor por recurso

à sua aplicação, seja porque da mesma resulta-

ria contrapartida entendida pela CMVM como

não justificada ou não equitativa (por insufici-

ente ou excessiva).

Assim, de acordo com os critérios do art. 188.º,

n.º 1, a contrapartida não poderá ser inferior ao

valor mais elevado dos seguintes montantes:

a) Maior preço pago pelo oferente ou por

pessoas relacionadas (nos termos do art.

20.º), nos seis meses anteriores à data da

publicação do anúncio preliminar da

oferta;

b) Preço médio ponderado desses valores

mobiliários apurado em mercado regula-

mentado durante o mesmo período (seis

meses anteriores à data do anúncio preli-

minar).

Em comum, as duas alíneas partilham o período

temporal tido por relevante para aferição da

contrapartida mínima a pagar, os seis meses

imediatamente anteriores à data da publicação

do anúncio preliminar.

Em circunstâncias excecionais, o aplicador do

direito deverá afastar-se do referido regime,

caso em que restará apelar à intervenção de um

auditor independente para a fixação da contra-

partida devida. A determinação da contrapartida

passará então a circunscrever-se dentro dos

resultados do trabalho do auditor independente,

de acordo com as leges artis que o devem

orientar.

13- Cfr. n.º 1 do art. 5.º, in fine, da Diretiva das OPAs. Sobre o preenchimento deste conceito v. Silja Maul, Daniele Muffat-Jeandet e Joelle Simon, Takeover bids in Europe, The Takeover Directive and its implementation in the Member States, Memento Verlag, 2008, em particular p. 26 e ss. 14- Assim se prosseguindo o princípio da igualdade de tratamento, previsto do art. 3.º n.º 1, a) da Diretiva, e promovendo a distribuição do prémio de controlo (quando existente).

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45 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

VII. É importante ter presente que, entre a

data do anúncio preliminar da oferta pública

voluntária (que “nasça” com a vocação de ser

qualificada como derrogatória) e a data do res-

petivo apuramento de resultados – momento em

que se poderá concluir ter o oferente efetiva-

mente adquirido o controlo da sociedade visada,

para aí assentar a constituição do dever de lan-

çamento de OPA (art. 187.º, n.º 1) e a inerente

obrigação de imediata divulgação de anúncio

preliminar (art. 191.º, n.º 1)15 – pode decorrer

um período de tempo considerável16.

O decurso desse tempo, mais ou menos longo,

pode não ser indiferente quando em causa esteja

determinar o período relevante para apuramento

do valor de uma contrapartida justificada e

equitativa que, recorde-se, não deve senão

corresponder ao valor da sociedade aberta,

aferido em função da avaliação do oferente

(refletida no mais elevado preço pago por este

pela aquisição de valores mobiliários), da

cotação de mercado, ou da avaliação de um

auditor independente.

Deve ainda ter-se em consideração que, num

contexto de interesses antagónicos – o interesse

do oferente em pagar o menos possível e o

interesse dos minoritários em vender pelo mais

elevado preço possível –, o legislador não pro-

curou, de forma neutra, uma perspetiva concili-

atória, tendo antes privilegiado o interesse dos

minoritários, num contexto em que estes são

colocados, individualmente, perante o dilema

de decidir na coletividade sem conhecimento da

decisão a tomar pelos demais membros que a

integram. Só assim se compreende que, resul-

tando da aplicação dos critérios do art. 188.º, n.º

1 dois valores diferentes, deva prevalecer o

mais elevado (leia-se, o mais benéfico para os

minoritários)17. Este constitui por isso um im-

portante contributo que não deve ser desconsi-

derado quando em causa esteja a invocação da

ratio inerente ao regime que propugna uma

contrapartida regulada.

Por isso, quando se estabelece que o dever não

mais precisa de ser cumprido, contanto que um

determinado preço tenha já sido oferecido a

todos os acionistas, cumprirá questionar se

esse preço deverá corresponder ao valor tempo-

ralmente determinado por referência ao período

que antecede a divulgação do anúncio prelimi-

nar da OPA voluntária – independentemente do

tempo que tenha então decorrido até ao apura-

mento dos resultados e dos eventos que possam

ter afetado, positiva ou negativamente, o valor

do objeto da oferta –, ou se haverá afinal mar-

gem para tomar em consideração o valor da

sociedade à data mais próxima da aquisição de

controlo, por ser esse o momento em que o

direito de saída adquire plena e efetiva razão de

ser18. O que antes existe é uma mera intenção

do oferente adquirir o controlo e uma mais ou

menos remota perceção dos acionistas quanto

ao facto de, vindo tal a acontecer, recaírem na

posição de minoritários.

Enunciadas em maior detalhe as dúvidas a que

inicialmente começámos por nos referir, avan-

çaremos sem mais demora para a descrição e

análise do procedimento tendente à declaração

de derrogação, na expectativa de se tornarem

claras as possíveis perspetivas em confronto.

OPA Derrogatória : 45

15- Onde se prevê que «a publicação do anúncio preliminar da oferta deve ocorrer imediatamente após a verificação do facto constitutivo do dever de lançamento». 16- Pense-se, por exemplo, no tempo necessário para obtenção das autorizações administrativas exigíveis (art. 115.º n.º 1, al. a), parte final). Tomando como exemplificativo o caso da OPA lançada pela Sonae SGPS, S.A e pela Sonaecom, SGPS, S.A. sobre a PT Telecom – SGPS, S.A e sobre a PT Multimédia – Seviços de Telecomunicações e Multimédia, SGPS, S.A., verificamos que o anúncio preliminar foi divulgado a 6 de fevereiro de 2006, tendo a oferta apenas sido registada, com a consequente divulgação do prospeto e do anúncio de lançamento, a 12 de janeiro de 2007. 17- Assim resulta do n.º 1 do art. 188.º, onde se estabelece que «[a] contrapartida de oferta pública de aquisição obrigatória não pode ser inferior ao mais elevado dos seguintes montantes…» (sublinhado nosso). 18- Sendo de resto esse o momento em que, se não existisse a derrogação, se haveria de proceder à imediata publicação de anúncio preliminar, de onde deveria constar contrapartida não inferior ao resultante da aplicação dos critérios do art. 188.º n. 1, aferido por referência aos seis meses imediatamente anteriores.

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46 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

2.2 O procedimento para obtenção

da derrogação

I. A der rogação do dever de lançamento de

OPA depende da adoção de um ato administra-

tivo pela CMVM, consubstanciado na emissão

de uma declaração. Resulta do art. 189.º, n.º 2

que «[a] derrogação do dever de lançamento de

oferta é objeto de declaração pela CMVM,

requerida e imediatamente publicada pelo inte-

ressado».

A concretizar esta disposição, o art. 16.º do Re-

gulamento da CMVM n.º 3/2006 (Ofertas e

Emitentes), sob epígrafe “[d]errogação do de-

ver de lançamento de oferta pública de aquisi-

ção obrigatória”, dispõe que o anúncio em que

forem divulgados os resultados de uma OPA

que respeite os factos constitutivos previstos no

art. 189.º n.º 1, al. a), deverá conter, adicional-

mente, a quantidade de valores mobiliários e de

direitos de voto, calculados nos termos do art.

20.º, que o requerente passou a deter19.

Parece por isso incontornável que, dependendo

a derrogação dos resultados da oferta, a mesma

apenas possa ser apreciada pela CMVM após a

respetiva divulgação. Só então será possível

aferir se o oferente adquiriu uma percentagem

de valores mobiliários que, adicionados àqueles

cujos direitos de voto fossem por si já controla-

dos, lhe facultam a possibilidade de exercício

de influência dominante sobre a sociedade

visada.

II. Perguntar -se-á, em face do disposto, se não

seria possível a emissão da referida declaração

pela CMVM antes do apuramento dos resulta-

dos, pois o que em qualquer circunstância esta-

ria em falta seria um elemento, incerto, que ha-

veria de se concretizar assim que a OPA che-

gasse ao seu termo20. Perante esta possibilidade,

três seriam os desfechos possíveis: a OPA che-

garia ao seu termo e o oferente seria bem suce-

dido – caso em que a derrogação se poderia em

princípio aplicar –, a OPA chegaria ao seu ter-

mo e o oferente não seria bem sucedido – caso

em que não se verificaria o pressuposto de que

dependeria a perfeição da derrogação, e esta

revelar-se-ia inútil –, ou a OPA não chegaria ao

seu termo, pois por alguma vicissitude a mesma

seria revogada ou retirada, caso em que a derro-

gação pura e simplesmente valeria menos do

que o papel em que houvera sido escrita21.

Mas ainda que tal ideia possa parecer apelativa,

pergunta-se se não redundaria, afinal, no reco-

nhecimento prévio de que pode ser afastado um

dever em que o respetivo beneficiário não só

ainda não se constituiu (dever de lançamento de

OPA), como relativamente ao qual não reuniu

ainda as condições de que tal afastamento de-

pende. E, mais importante ainda, questiona-se

se tal não constituiria uma inevitável forma de

pressão para a venda, sabendo de antemão os

destinatários da oferta que a entidade responsá-

vel pelo seu registo (a CMVM) houvera já dado

o seu pré-acordo ao afastamento da OPA

obrigatória, subsequente à aquisição do contro-

lo, ainda que condicionada à verificação de

determinados requisitos não controláveis por

aqueles. Ao oferente, que veria deixar de im-

pender sobre si qualquer efeito dissuasor asso-

ciado à não concessão da derrogação senão

após o conhecimento do resultado da oferta,

restaria aguardar os efeitos da referida pressão e

esperar que a incerteza quanto à atuação dos

demais destinatários levasse à venda massiva de

19- Cfr. art. 16.º n.os 2 e 3 do Regulamento da CMVM n.º 3/2006. 20- Veja-se, a título de exemplo, a condição de lançamento constante do ponto 14 ii) do anúncio preliminar de oferta pública, geral e vo-luntária, de aquisição de ações representativas do capital social da Portugal Telecom, SGPS, S.A., divulgado pela Terra Peregrin - Partici-pações SGPS, S.A., no dia 9 de novembro de 2014, que condicionava o lançamento da oferta «à declaração pela CMVM da derrogação do dever de lançamento de oferta pública de aquisição subsequente, em resultado da aquisição de Ações no âmbito da presente Oferta, nos termos da alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 189.º do Código dos Valores Mobiliários, ainda que subordinada à subsistência dos res-pectivos pressupostos, em particular entendendo que a contrapartida oferecida se encontra devidamente justificada e é equitativa». 21- Usando a expressão atribuída ao Comissário para o Mercado Interno Frits Bolkestein – responsável pela negociação da Diretiva das OPAs, a propósito do produto final – e que deu igualmente título ao sugestivo texto de Vanessa Edwards, The Directive on Takeover Bids - Not Worth the Paper it's Written on?, in European Company and Financial Law Review, Vol. 1, n.º 4, 2004, disponível em http://ssrn.com/abstract=1035921.

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47 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

ações, permitindo-lhe obter a almejada posição

de controlo.

III. Atento o exposto, e considerando ainda

que a derrogação constituirá em si meio que

coadjuva na tarefa de garantir que a OPA não é

concluída em desrespeito pelo princípio de tra-

tamento igualitário dos seus destinatários – pois

se, por exemplo, transações realizadas na sua

pendência fizerem com que uns recebam con-

trapartida superior aos outros, a declaração não

deverá ser emitida –, tendemos a concluir que a

mesma apenas pode ser apreciada depois de

divulgados os resultados da oferta, só então es-

tando a CMVM em condições de aferir o inte-

gral cumprimento dos pressupostos de que a

mesma depende.

IV. Identificado o momento do apuramento

de resultados como aquele a partir do qual a

CMVM estará em condições de se pronunciar

sobre a verificação dos factos constitutivos do

direito à derrogação, cumpre então retomar a

questão antes enunciada, e que constitui verda-

deiramente o aspeto controvertido que aqui pro-

curamos analisar – o período relevante para

aferição do valor da sociedade cotada.

Como hipóteses em confronto teremos a possi-

bilidade de a contrapartida ser aferida por refe-

rência ao período de seis meses que antecedeu a

publicação do anúncio preliminar da OPA vo-

luntária – independentemente do tempo, mais

ou menos longo, que tenha decorrido desde a

sua divulgação até ao termo da

oferta –, ou, em alternativa, por referência ao

período de seis meses que antecedeu o momen-

to em que, não fora a derrogação, o dever de

lançamento da OPA (e de imediata divulgação

de anúncio preliminar) se constituiria(m).

São estas as hipóteses que procuramos dissecar

no ponto seguinte.

3. A apreciação do pedido de derrogação

pela CMVM

3.1 Relevância dos seis meses anteriores

ao anúncio preliminar de OPA voluntária

I. Começando pela análise, necessar iamente

breve, da evolução histórica das exceções ao

dever de lançamento de OPA, é possível verifi-

car que, com a entrada em vigor do atual Códi-

go dos Valores Mobiliários, foi alterado o siste-

ma misto que até então vigorava, em que dis-

pensas e derrogações coexistiam.

O facto de se terem abolido as dispensas parece

indiciar o propósito de privilegiar a certeza e a

segurança, optando-se pela ponderação prévia

dos vários interesses em questão, concretizados

e refletidos num elenco taxativo e vinculativo

em função das circunstâncias do caso concreto,

retirando margem de discricionariedade à

CMVM.

Com isso, deixou de estar cometida à CMVM,

ao contrário do que sucedia com as dispensas, a

tarefa de analisar o mérito da questão, ainda que

por referência aos pressupostos valorativos pre-

vistos na lei. Nas dispensas, a atuação da autori-

dade de supervisão era pautada por uma discrio-

nariedade mitigada, de que o legislador preten-

deu abdicar22. Com o regime do atual Código, à

autoridade de supervisão competirá apenas o

juízo de verificação dos pressupostos e dos fac-

tos constitutivos previstos na lei, de acordo com

a interpretação que dos mesmos faça.

Nessa sequência, e como veremos de seguida, a

conclusão a alcançar quanto ao período de tem-

po relevante para determinação da contrapartida

não poderá deixar de ter como premissa a inten-

ção subjacente à referida alteração de paradi-

gma. Assim sendo, a solução que melhor cor-

responderá aos propósitos do legislador será

OPA Derrogatória : 47

22- Para uma perspetiva histórica da figura das derrogações e das dispensas, v. Jorge Brito Pereira, A OPA Obrigatória, Almedina, Coimbra, 1998, pp. 283 a 332.

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48 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

aquela que melhor promova a certeza e segu-

rança jurídica23, ou seja, aquela que mais forte

apoio encontre nos elementos onde usualmente

tal certeza se enraíza (elemento literal).

II. Se atentarmos bem, a Diretiva das OPAs

não se limita a prever que, caso o controlo seja

obtido em sequência de OPA voluntária, reali-

zada em conformidade com as suas disposições,

o oferente não ficará adstrito ao dever de lança-

mento de OPA24. Foi mais além, concretizando

os elementos que permitem aferir se os termos

da oferta respeitam ou não as disposições da

Diretiva, relevantes para o efeito25.

Assim, depois de prever o requisito da oferta se

dirigir a todos os titulares dos valores mobiliá-

rios que seriam objeto da oferta obrigatória, a

Diretiva concretiza o que deve ser entendido

por preço equitativo. Embora deixe margem de

discricionariedade aos Estados Membros quan-

to à duração do período temporal a fixar, não

inferior a seis e não superior a 12 meses, e aos

critérios a utilizar para apuramento da contra-

partida, parece resultar claro que o momento ao

qual o período temporal e os critérios são apli-

cáveis é aquele “que preceda a oferta” que per-

mitiu ao oferente vir a adquirir o controlo da

sociedade e que, como tal, o obrigaria ao lança-

mento da OPA obrigatória subsequente26.

Em conformidade com a Diretiva, no art. 188.º

do nosso Código são concretizados os critérios

relevantes para determinação da contrapartida e

o período tido em consideração, prevendo-se,

como o momento adequado para a sua aplica-

ção, «os seis meses anteriores à data da publica-

ção do anúncio preliminar da oferta»27.

Tendo presente que a verificação daquele que

identificámos como o terceiro pressuposto

constitutivo da OPA derrogatória depende do

respeito pelos requisitos estipulados no art.

188.º, parece seguro afirmar, em atenção à sua

letra, que o critério temporalmente tido em con-

sideração para avaliar a sua efetiva verificação

será o mesmo, ou seja, os seis meses anteriores

à data da publicação do anúncio preliminar.

Ora, se a derrogação se aplica, nenhum dever

de OPA se chega a constituir, é dizer, nenhum

anúncio preliminar de OPA obrigatória chega a

ver a luz do dia, pelo que a remissão para

anúncio preliminar não pode deixar de corres-

ponder, neste contexto, à vontade de remeter

para o (único) documento que foi efetivamente

divulgado – o anúncio preliminar da OPA

voluntária28.

III. Conjugada a evolução histór ica das exce-

ções ao dever de lançamento de OPA (no que

respeita à superveniência das derrogações às

dispensas) com a letra das normas que susten-

tam esta concreta derrogação, haverá que lhes

juntar a identificação dos correspondentes fun-

damentos teleológicos, no sentido de aferir se a

derrogação de que ora tratamos deve efetiva-

mente assentar na determinação da contraparti-

da por referência ao momento em que é preli-

minarmente anunciada a OPA voluntária.

23- Note-se que, entre nós, vêm de longe os sinais de que os agentes do mercado anseiam por indicações que permitam antecipar as “regras do jogo”, como o demonstram as notas com pedido de disclosure das decisões da CMVM sobre os termos em que deveriam considerar-se ilididas determinadas presunções de atuação concertada, como sucede em José Miguel Júdice, Maria Luísa Antas, António Artur Ferreira, Jorge Brito Pereira, OPA: Ofertas Públicas de Aquisição (Legislação Comentada), Lisboa, 1992, nota 3, pág. 27 (nota ao art. 525.º, n.º 4 do Código do Mercado de Valores Mobiliários). 24- Cfr. n.º 2 do art. 5.º da Diretiva. 25- Cfr. n.os 2 e 4 do art. 5.º da Diretiva. 26- Cumpre salientar que o art. 4.º n.º 1 da Diretiva prevê «[p]or preço equitativo (…) o preço mais elevado pago pelos mesmos valores mobiliários pelo oferente, ou pelas pessoas que com ele atuam em concertação, ao longo de um período a determinar pelos Estados-Membros, não inferior a seis e não superior a 12 meses, que preceda a oferta prevista no n.º 1» (sublinhado nosso). 27- Cfr. art. 188.º n.º 1, a) e b). 28- Em sentido convergente, do art. 5.º, n.º 2 do Regulamento da CMVM n.º 7/2003 (Taxas) parece resultar a necessidade de a CMVM atender, para efeitos de apuramento do cálculo da respetiva taxa de supervisão a pagar, à potencial qualificação da OPA voluntária como derrogatória.

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49 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Conclusão diversa importará, desde logo, a ine-

lutável imposição ao oferente de custos, quanto

mais não seja os decorrentes da situação de in-

certeza quanto aos critérios que lhe permitirão

(vir a) beneficiar da derrogação, podendo em

última análise motivar mesmo a sua paralisação

e o desinteresse em avançar para uma tal opera-

ção.

Se, associado a essa incerteza, se vier a final a

impor uma OPA subsequente, quando a primei-

ra tenha sido lançada em termos não menos

desfavoráveis do que o teria sido se a sua natu-

reza fosse a de oferta obrigatória, teremos então

um significativo encargo que as mais das vezes

se poderá revelar demasiado oneroso face ao

bem jurídico que o regime pretende proteger. E

tal seria assim porque a posição jurídica dos

acionistas minoritários encontra já na OPA vo-

luntária, lançada nos mesmos termos que teriam

de ser respeitados caso a sua natureza fosse

obrigatória, um mínimo de proteção, assente na

oportunidade de saída mediante o pagamento de

uma contrapartida considerada, à data, justifica-

da e equitativa.

Não pode desconsiderar-se que o lançamento de

uma OPA acarreta custos significativos, não

podendo corresponder para o oferente a um sal-

to no escuro. Sendo expectável que atue de for-

ma racional, não se lhe poderá negar a expecta-

tiva de ter antecipadamente presente os encar-

gos que lhe competirá suportar para adquirir o

controlo da sociedade visada. Deste modo, a

interpretação que se faça da presente derroga-

ção, porquanto poderá implicar a necessidade

de disponibilidades financeiras adicionais, não

poderá deixar de ter em consideração as legíti-

mas expectativas do oferente quanto ao mon-

tante associado à operação29.

O reforço da certeza e segurança jurídica, que

fundamenta e reforça a interpretação propugna-

da nas linhas antecedentes, permitirá ao oferen-

te saber de antemão quais os pressupostos com

que se terá de conformar, caso pretenda eximir-

se ao dever de lançamento de OPA obrigatória

subsequente. A consideração de momento e

procedimento distintos, pelo contrário, poderá

implicar que o oferente seja a posteriori con-

frontado com a necessidade de pagar um valor

com que podia não contar, vendo-se compelido

a oferecer uma contrapartida que poderia não

estar a prever.

Assim, crê-se que, nesta perspetiva, os funda-

mentos da lei apenas serão adequadamente

prosseguidos se, o mais tardar até ao momento

do registo da OPA voluntária, o oferente puder

conhecer se a contrapartida oferecida respeita,

naquela data, os critérios legalmente exigidos.

Prolongar a incerteza até ao final da oferta con-

traria tais propósitos e, em última análise, pode-

rá levantar problemas na formação da vontade

do oferente, uma vez que poderá não lhe permi-

tir antecipar os custos inerentes à obtenção do

controlo.

Admitir que o período a ter em consideração

para efeitos de fixação da contrapartida é outro

que não aquele que antecede a data de divulga-

ção do anúncio preliminar corresponderá a ad-

mitir o lançamento de OPA voluntária sem que

a formação da vontade do oferente esteja com-

pleta, em resultado da indefinição quanto ao

efetivo encargo que terá de assumir para adqui-

rir o controlo.

IV. Note-se que a consideração de um período

prévio à divulgação do anúncio preliminar não

deixará de ter simultaneamente em atenção os

interesses dos acionistas minoritários, uma vez

que a informação relativa à intenção do oferente

em vir a beneficiar da derrogação, bem como a

sua posição quanto ao cumprimento dos

requisitos de que depende a declaração da

mesma, maxime, no que toca ao respeito das

regras da contrapartida mínima legal, constitui

OPA Derrogatória : 49

29- É importante ter presente que um dos princípios gerais consagrado na Diretiva da OPAs, e que deverão ser respeitados na previsão das derrogações por parte dos Estados Membros, prevê que «[u]m oferente só deve anunciar uma oferta depois de se assegurar de que está em plenas condições de satisfazer integralmente qualquer contrapartida em numerário, caso a oferta tenha sido feita nesses termos, e depois de tomar todas as medidas razoáveis para garantir a entrega de qualquer outro tipo de contrapartida», cfr. art. 3.º n.º 1, al. f) da Diretiva.

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50 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

informação essencial à formação de juízos fun-

dados sobre a oferta por parte dos destinatários.

Por esse motivo, trata-se de informação que

deverá constar dos documentos da oferta30, as-

sim informando os seus destinatários sobre a

expectável concessão de outra oportunidade de

saída, ou se ela se consubstanciará, para todos

os efeitos, na OPA voluntária.

Recorde-se ainda que, para além da informação

que reflita a posição do oferente face à verifica-

ção dos pressupostos de que depende a conces-

são da derrogação – refletida, em especial, no

prospeto31 –, o relatório do conselho de admi-

nistração da sociedade visada deverá conter

informação quanto ao montante da contraparti-

da e à sua adequação face às regras de contra-

partida mínima, como decorre do art. 181.º n.º

2, al. c). Nessa medida, cumprirá ao conselho

de administração, no âmbito dos seus deveres

fiduciários, pronunciar-se sobre a contrapartida

proposta, sabendo de antemão se esta pode ou

não fundamentar a derrogação do dever de

lançamento de OPA32.

Em suma, a possibilidade de a contrapartida ser

aferida por referência ao período de seis meses

que antecedeu a publicação do anúncio prelimi-

nar da OPA voluntária será apta a permitir con-

ciliar, com a certeza e segurança jurídica que se

impõe acautelar no mercado de capitais, os inte-

resses dos acionistas minoritários, que dispõem

durante a OPA de informação que lhes permite

formar a sua decisão, com os interesses do ofe-

rente, possibilitando a formação da sua vontade

de uma forma completa, em respeito pelas suas

legítimas expectativas.

V. Importa ter presente que, embora pareça

resultar da interpretação das normas anterior-

mente referidas que o período tido por relevante

para efeitos de aferição do respeito pelas regras

da contrapartida mínima sejam os seis meses

anteriores ao anúncio preliminar, tal não impe-

de que o mesmo venha a ser “ajustado” face,

designadamente, a aquisições por parte do ofe-

rente (ou por pessoas com este relacionadas nos

termos do art. 20.º), na pendência da oferta.

30- De resto, analisando alguns prospetos é possível encontrar referências que apontam no sentido de ser esse o entendimento dos oferentes em questão. Veja-se, v.g., em 2006 o prospeto da OPA anunciada pela Sonae sobre a Portugal Telecom SGPS, S.A., onde se referia que «[c]onsiderando que o objectivo dos oferentes, através do lançamento da Oferta, é o de beneficiar da derrogação ao dever de lançamento de uma oferta pública de aquisição obrigatória, prevista no art. 189.º, n.º 1, al. a), do Código de Valores Mobiliários, dever esse em que de outro modo incorreriam em consequência do sucesso da Oferta PT e da consequente imputação aos Oferentes dos votos inerentes às Ac-ções actualmente detidas pela PT, a contrapartida oferecida respeita os critérios enunciados no artigo 188º do CVM, sendo igual ao preço médio ponderado das Acções (9,03 Euros) verificado nos seis meses imediatamente anteriores ao anúncio preliminar de lançamento da oferta divulgado em 7 de Fevereiro de 2006» (sublinhado nosso). Mais recentemente, veja-se o prospeto da OPA anunciada pela Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A. sobre a Espírito Santo Saúde, SGPS, S.A. onde se referia que «[p]ese embora a Oferta Concorrente não seja uma oferta pública de aquisição obrigatória, a contrapartida da Oferta Concorrente cumpre os requisitos do artigo 188.º, n.º 1 do Cód.VM, por ser superior: (i) ao preço mais alto pago, direta ou indiretamente, pela Oferente ou por qualquer entidade ou pessoa que, em relação a ela, se encontra em alguma das situações previstas no n.º 1 do artigo 20.º do Cód.VM, durante os seis meses anteriores à Data do Anúncio Preliminar 4, o qual foi de € 3,857 por Ação 5; e (ii) o preço médio ponderado das Ações no mercado regulamentado da Euronext Lisbon durante os seis meses anteriores à Data do Anúncio Preliminar, o qual foi de € 3,984 por Ação 6. O Capítulo 3 contém uma descrição detalhada das transações sobre as Ações efetuadas pela Oferente e pelas entidades ou pessoas que, em relação a esta, se encontram em alguma das situações previstas no n.º 1 do artigo 20.º do Cód.VM» (sublinhado nosso). 31- A título de exemplo, veja-se no prospeto de OPA lançada pela Farminveste 3 – Gestão de Participações SGPS, Lda., sobre a Glintt – Global Intelligent Techonologies, S.A., divulgado em 2 de novembro de 2015, a forma como o oferente refere que, no seu entender, «…a Oferta é geral e cumpre, na presente data, os requisitos relativos à contrapartida mínima previstos no artigo 188.º do Cód.VM para as ofertas obrigatórias». Tenha-se presente que, na dinâmica da instrução do processo de registo de OPA, será sempre possível – e desejável – que o oferente possa desde cedo monitorizar a adequação da contrapartida por si proposta aos requisitos legais para a sua determinação, pois ainda que a derrogação só possa vir a ser declarada no termo daquela, não será de todo irrelevante (para o oferente e para os destinatá-rios) saber, ab initio, se a contrapartida proposta respeita já, ou não, os critérios do art. 188.º. 32- Pense-se, por exemplo, no caso de um oferente que anuncia preliminarmente a sua oferta, propondo-se a adquirir por preço que não respeita os critérios do art. 188.º, n.º 1. Em tal caso, não deve senão o conselho de administração da visada informar desse facto os acionis-tas e alertar para a circunstância de, vindo o controlo a ser obtido, dever ser concedido a quem tenha decidido não vender uma nova oportu-nidade de saída, a preço potencialmente superior (resultante da aplicação dos critérios inseridos naquele artigo). Tenha-se v.g. presente a atuação do conselho de administração da Portugal Telecom, SGPS, S.A., no âmbito da oferta pública de aquisição geral e voluntária anun-ciada pela Terra Peregrin – Participações, SGPS, S.A. em 9 de novembro de 2014, refletida no seu relatório divulgado a 10 de dezembro de 2014.

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51 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Veja-se que, se, na pendência da oferta e de

forma a garantir a aquisição do controlo, o ofe-

rente vier a adquirir ações da mesma categoria

daquelas que integram o seu objeto, pagando

uma contrapartida superior à estabelecida nos

documentos da oferta, tal representará um trata-

mento diferenciado de titulares de valores mo-

biliários da mesma categoria (assumindo que

aquele não toma voluntariamente a iniciativa de

aumentar a contrapartida oferecida na OPA).

Em tal caso, se a CMVM tivesse já determina-

do, de forma definitiva, a natureza derrogatória

da OPA voluntária aquando do seu registo, es-

taria naquele momento e para de aí em diante a

admitir a desnecessidade de lançamento de

OPA obrigatória, mesmo que presenciasse

aquele tratamento diferenciado de acionistas, ao

qual estaria inerente uma repartição não equita-

tiva do prémio de controlo (contra a qual não

poderia já reagir mediante a não declaração da

derrogação).

Embora estes motivos pudessem por si só ser

suficientes para se advogar, afinal, que a toma-

da de decisão quanto à natureza derrogatória da

OPA não pode senão ocorrer depois de conheci-

das todas as transações com potencial relevo –

permitindo assim conhecer o concreto modo

como a mesma foi executada –, a verdade é

que, procurando colmatar esse “risco” (que se

repercutiria na esfera dos acionistas minoritá-

rios), o regime das transações na pendência da

oferta exige que qualquer aquisição realizada

pelo oferente (ou por pessoas com este relacio-

nadas nos termos do art. 20.º) seja comunicada

à CMVM (art. 180.º, n.os 2 e 3).

Se «[n]o âmbito de ofertas públicas de aquisi-

ção obrigatórias, o oferente é obrigado a au-

mentar a contrapartida para um preço não in-

ferior ao preço mais alto pago pelos valores

mobiliários assim adquiridos» (art. 180.º, n.º 3,

al. b)), «[n]o âmbito de ofertas públicas de

aquisição voluntárias, a CMVM pode determi-

nar a revisão da contrapartida se, por efeito

dessas aquisições, a contrapartida não se mos-

trar equitativa» (art. 180.º, n.º 3, al. a))

(sublinhado nosso).

De tal modo, competirá à CMVM – caso a tran-

sação a valor superior ao da OPA lhe venha a

ser comunicada – determinar o respetivo au-

mento da contrapartida, com isso assegurando

que a contrapartida oferecida pelo oferente per-

manece ao longo do período da oferta

“equitativa” e que esta qualificação não sai

afetada com a ocorrência de tais transações (não

pondo em causa a igualdade de tratamento dos

destinatários da oferta).

Feita esta monitorização das transações na pen-

dência da oferta, assegurando que a contraparti-

da oferecida se mantém equitativa, no seu ter-

mo, o art. 16.º, n.º 3, al. c) do Regulamento da

CMVM n.º 3/2006 vem tão só determinar que

seja assegurada a divulgação pública da infor-

mação em falta, a saber, a quantidade de valo-

res mobiliários e de direitos de voto, calculados

nos termos do art. 20.º, que o oferente passou a

deter em resultado da oferta. Deste modo, é ga-

rantida a divulgação ao mercado da verificação

do último facto constitutivo de que depende a

aplicação e a concessão da derrogação: a aquisi-

ção de valores mobiliários em quantidade sufi-

ciente que permitam ao oferente adquirir o con-

trolo da sociedade.

Ao contrário do que sucede para as demais der-

rogações33 – de onde resulta que quem pretenda

delas beneficiar «comunica à CMVM os factos

determinantes da derrogação, no prazo de cin-

co dias úteis após a verificação dos mesmos,

juntando os elementos de prova respectivos»34–

no que diz respeito à derrogação prevista na

alínea a) do n.º 1 do art. 189.º, poderia assim

sustentar-se a desnecessidade de comprovação

dos elementos constitutivos de tal direito, em

OPA Derrogatória : 51

33- Previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do art. 189.º. 34- Cfr. art. 16.º, n.º 1 do Regulamento da CMVM n.º 3/2006.

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52 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

função de os mesmos serem já conhecidos do

supervisor, por constarem dos documentos da

oferta.

Isto dito, conclui-se que a referência ao período

de seis meses anteriores ao anúncio preliminar

de OPA voluntária, que temos vindo a apontar

como mais adequado, não encontraria no regi-

me das transações na pendência da OPA um

obstáculo, porquanto o legislador cuidou de

dotar a CMVM de mecanismos alternativos de

controlo da igualdade de tratamento, manifesta-

da na atribuição de contrapartida não diferenci-

ada aos acionistas em idênticas circunstâncias.

VI. Por outro lado, a convocação de um de-

terminado período de tempo para aferir a ade-

quação da contrapartida, com propósito de de-

clarar ou não a derrogação do dever de lança-

mento de OPA, não deverá desconsiderar os

efeitos que a divulgação do anúncio preliminar

tem na subsequente formação dos preços em

mercado.

Após a referida divulgação, a cotação tende a

aproximar-se do valor oferecido como contra-

partida na oferta, o que de resto se compreende,

por passar a ser esse o referencial do valor da

sociedade, aferido em função da valorização

que o oferente lhe atribui. A partir desse mo-

mento, a cotação de mercado tende deixar de

constituir medida fiel enquanto proxy do valor

(“real”) da empresa, em virtude de a sua forma-

ção passar a atender mais a aspetos relaciona-

dos com o grau de probabilidade de sucesso da

OPA, do que a variações do seu negócio e ativi-

dade. Esta situação, de resto, tende a acentuar-

se nos casos em que seja de aplicar ao conselho

de administração da sociedade visada as limita-

ções a que se refere o art. 182.º. Encontrando-se

este órgão, a partir do momento em que tome

conhecimento da decisão de lançamento de

OPA tendente à aquisição do domínio, impedi-

do de praticar «atos suscetíveis de alterar de

modo relevante a situação patrimonial da soci-

edade visada que não se reconduzam à gestão

normal da sociedade e que possam afetar de

modo significativo os objetivos anunciados pelo

oferente»35, menos provável se tornará que, até

ao termo da oferta, as variações da cotação se

fiquem a dever a determinados atos que, não

fora a limitação, poderiam de facto ter impacto

no valor da sociedade36.

Por outro lado, e uma vez que o valor usual-

mente oferecido em OPA destinada à aquisição

de controlo tenderá a incluir um sobrepreço

face a uma determinada cotação média ponde-

rada – constituindo maior ou menor incentivo à

venda quanto maior ou menor for esse sobre-

preço (ou prémio de controlo37), assim procu-

rando o oferente maximizar as suas probabilida-

des de sucesso –, poderá concluir-se que o re-

curso à cotação de mercado, utilizando para o

efeito um determinado período que se encontra-

rá já “afetado” pela inclusão nos pressupostos

da negociação de um elemento atípico (o preço

pelo qual alguém se dispõe a adquirir todos os

valores mobiliários detidos por terceiros), não

encontrará autonomia de relevo face ao outro

critério em que assenta a determinação da con-

trapartida em OPA obrigatória, o critério do

maior preço pago pelo oferente num determina-

do período. Nestes termos, haveria então de se

concluir que o relevo autónomo do critério da

al. b) do n.º 1 do art. 188.º implicará que para

ele se encontre um sentido que não o de, afinal,

se equivaler ao critério resultante da outra alí-

nea do mesmo artigo e número, o que será me-

lhor prosseguido se, para os efeitos de que cui-

damos, fizermos apelo a esse critério por refe-

rência a um período de negociação não

“afetado” pela divulgação de anúncio prelimi-

nar.

35 - Cfr. art. 182.º n.º 1. 36- Sobre este tema veja-se Orlando Vogler Guiné, Da Conduta (Defensiva) da Administração “Opada”, Almedina, Coimbra, 2009. 37- Prémio de controlo corresponderá, nas palavras de Paulo Câmara, Manual…, ob. cit., pág. 644, ao «…valor dos benefícios futuros decorrentes da tomada de uma empresa, descontando os custos implícitos decorrentes da transição de controlo».

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53 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Note-se, por fim, que a atribuição de relevo a

um período temporal pós anúncio preliminar

poderia constituir um incentivo à adoção de

práticas de legalidade duvidosa, tendentes a

aumentar a cotação do título, por de tal circuns-

tância se pretender vir a retirar a possibilidade

de, no âmbito de uma OPA obrigatória subse-

quente, se poderem vir a alienar as ações em

causa pelo preço inflacionado. O pressuposto

seria então o de que, respeitando a contrapartida

oferecida na OPA os critérios de determinação

à partida (seis meses antes do anúncio prelimi-

nar), mas já não à chegada (seis meses antes do

anúncio preliminar que se deveria seguir à di-

vulgação dos resultados da OPA), a derrogação

não poderia ser concedida, vendo-se o oferente

obrigado a lançar nova OPA, oferecendo con-

trapartida determinada por referência ao segun-

do dos mencionados períodos.

VII. Em suma, considerar , para efeitos de

cálculo da contrapartida mínima, um período

temporal influenciado pela divulgação do anún-

cio preliminar de OPA, poderá revelar-se bas-

tante oneroso. O oferente lançará oferta (se o

vier a fazer…) na incerteza quanto à contrapar-

tida que terá de oferecer para não ficar adstrito

ao dever de lançamento de OPA subsequente. A

tal acrescerá o receio de que o sobrepreço que

se dispõe voluntariamente a pagar poderá, in-

clusivamente, em virtude do impacto que possa

ter na cotação, virar-se contra si, determinando

que em OPA subsequente venha a ter de pagar

mais. Os efeitos indesejados desta situação ten-

derão a alastrar-se, indiretamente, aos próprios

acionistas (minoritários), caso as incertezas

quanto ao verdadeiro custo da operação venham

a constituir obstáculo ao efetivo lançamento da

oferta (que para aqueles representaria sempre

uma oportunidade de saída38).

À luz do direito vigente, e tendo presente os

propósitos de certeza e segurança jurídica que

transversalmente o caracterizam, parece resultar

que o momento a ter em consideração para o

cálculo da contrapartida serão os seis meses

antecedentes à divulgação do anúncio prelimi-

nar de OPA voluntária, assim atendendo aos

interesses do oferente, sem com isso colocar em

causa as expectativas dos acionistas minoritá-

rios.

Os interesses dos acionistas minoritários ter-se-

ão então por salvaguardados por via da presta-

ção de informação, essencial à formação de juí-

zos fundados sobre a oferta, e por via da moni-

torização que é feita pela CMVM da contrapar-

tida oferecida, para que esta se mantenha equi-

tativa ao longo da oferta.

Esta monitorização deverá assegurar aos

acionistas minoritários uma oportunidade de

saída mediante o recebimento de uma contra-

partida equitativa, calculada tendo em conside-

ração o último momento em que a formação

dos preços no mercado não se encontra influen-

ciada pela proposta de contrapartida, apresenta-

da no anúncio preliminar.

Já quanto aos interesses do oferente, este terá de

conhecer, as regras a cumprir caso pretenda vir

a beneficiar da derrogação, sob pena do prolon-

gamento da incerteza causar dificuldades na

formação da sua vontade.

3.2 Relevância dos seis meses anteriores

ao anúncio preliminar de OPA obrigatória

I. Analisados os pressupostos de que depende

a concreta derrogação que tomamos como

objeto de reflexão, bem como o procedimento a

seguir para a emissão da correspondente decla-

ração pela CMVM, cumpre questionar, à luz

das conclusões a que chegámos no ponto ante-

rior, se o direito positivo permite efetivamente

dar por salvaguardada a posição jurídica dos

acionistas que, na sequência de uma OPA vo-

luntária, podem vir a tornar-se acionistas mino-

ritários de uma sociedade aberta sem que dis-

ponham de uma outra oportunidade de saída

para além da conferida por aquela oferta.

OPA Derrogatória : 53

38- V. Paulo Câmara, Manual…, ob. cit., p. 659, onde se descreve como um efeito positivo da presente derrogação, o funcionamento desta «…como contramotivação para ofertas voluntárias a preços inferiores aos que resultariam da aplicação do art. 188.º».

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54 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Como se iniciou por dizer, o intuito primordial

da Diretiva é a proteção dos acionistas em caso

de mudança de controlo, pelo que as exceções

ao dever de lançamento de OPA apenas são

admissíveis se estiver garantido que, não obs-

tante o afastamento daquele dever, a posição

dos acionistas se encontra protegida39. A derro-

gação aplicar-se-á, portanto, quando os interes-

ses dos acionistas minoritários estiverem salva-

guardados, mesmo sem a exigibilidade de lan-

çamento de OPA subsequente.

A tal conclusão estará subjacente o juízo de que

a OPA obrigatória é meio dispensável de prote-

ção dos acionistas, alcançada já com a OPA

voluntária. Esta deve ter proporcionado uma

oportunidade real e efetiva de saída da socieda-

de, mediante o recebimento de uma contraparti-

da equitativa, pois não seria senão essa a prote-

ção que a OPA obrigatória concederia.

II. Ainda que se possa admitir que esta

derrogação visa atender também ao interesse do

oferente, desonerando-o de um dever em fun-

ção da circunstância de ter já lançado voluntari-

amente oferta com intuito de adquirir o contro-

lo, esse propósito é, dentro do espírito do

sistema40, necessariamente subalternizado ao

outro mencionado, o de se garantir a proteção

dos acionistas perante a alteração de controlo.

Nestes termos, mais correto do que fundamen-

tar esta exceção na necessidade de proteção do

oferente – quando procuramos a sua teleologia

– seria fundamentá-la na desnecessidade de

proteção dos acionistas, ou, melhor dizendo, na

circunstância de a posição jurídica em que re-

caem (minoritários) não carecer de ser protegi-

da pela imposição do dever de lançamento de

(nova) OPA, porquanto ela se considere ade-

quadamente tutelada pelo prévio lançamento de

oferta voluntária que tenha satisfeito as exigên-

cias e propósitos subjacentes à OPA obrigató-

ria.

Como corolário deste raciocínio, e por contra-

posição à ideia de que será derrogatória a OPA

voluntária lançada como se de obrigatória se

tratasse, teríamos assim a ideia de que a OPA

obrigatória não deverá ser imposta quando os

acionistas se devam considerar adequadamente

protegidos pela OPA voluntária, atentos os ter-

mos em que se verificou ter a mesma decorrido.

O que pode parecer mero jogo de palavras é,

afinal, reflexo da diferente perspetiva a partir da

qual a questão pode ser vista. Inerente estará,

por isso, uma diferença assinalável quanto ao

período de tempo relevante para aferir a ade-

quação da contrapartida, já não o período de

seis meses que antecede o anúncio preliminar

de OPA voluntária, mas o período de seis me-

ses prévio ao momento em que, não fora a der-

rogação, deveria ser divulgado anúncio preli-

minar de OPA obrigatória. E, em virtude da

razão de ser da derrogação, cumpre questionar

se não deverá ser esta a configuração que me-

lhor prossegue esse espírito.

III. Para melhor compreendermos esta pers-

petiva, pensemos, por momentos, que a norma

legal onde a derrogação assenta não existia. O

oferente que, através de OPA voluntária, viesse

a adquirir o controlo de uma sociedade aberta,

veria preenchido o pressuposto de que depende

a constituição do dever de lançamento de OPA

assim que os seus resultados fossem divulga-

dos. O dever impor-se-ia mesmo que a oferta

voluntária tivesse sido dirigida a todos os acio-

nistas e à aquisição da totalidade das ações por

si detidas, e mesmo que a contrapartida ofereci-

da tivesse respeitado os mais exigentes critérios

para a sua determinação (inclusivamente, os

critérios que determinariam a contrapartida em

OPA obrigatória).

Na sequência do apuramento e divulgação dos

resultados da oferta voluntária, e verificada

a aquisição de controlo, o oferente deveria

então divulgar um novo anúncio preliminar –

39- Cfr. art. 4.º, n.º 5 da Diretiva. V. supra, nota 2. 40- No que respeita à primazia dos interesses dos acionistas minoritários, para efeitos de determinação da contrapartida na concorrência entre dois critérios de onde decorram preços diferentes, v. supra, nota 17.

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55 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

respeitante agora a uma OPA obrigatória –, de

forma a legitimar perante os minoritários a po-

sição de controlo, acabada de adquirir. A con-

trapartida a pagar seria determinada, por refe-

rência ao art. 188.º, nomeadamente, pelas tran-

sações realizadas no período de seis meses ante-

riores à data de divulgação do anúncio prelimi-

nar de OPA obrigatória.

Poderia então suceder que, em virtude de os

termos da oferta inicial terem sido determina-

dos em respeito pelas exigências, naturalmente

mais rigorosas, aplicáveis às ofertas obrigató-

rias (no que respeita ao seu objeto e contraparti-

da), a segunda oferta que o mesmo oferente

viesse a lançar, em cumprimento agora de dever

legal, fosse pautada por termos não distintos

daqueles em que foi lançada a oferta voluntária,

em particular no que à contrapartida diz respei-

to – e seria assim caso a aplicação do art. 188.º

conduzisse à determinação de uma contraparti-

da não superior àquela efetivamente paga na

OPA voluntária prévia41.

Oferta voluntária prévia e oferta obrigatória

subsequente seriam, portanto, ofertas não dis-

semelhantes quanto aos seus termos e condi-

ções, somente com natureza distinta (voluntária

a primeira, obrigatória a segunda).

Teríamos assim, por um lado, os acionistas da

sociedade visada, a quem seria concedida, em

duas ocasiões distintas e sucessivas, a possibili-

dade de reponderar o seu investimento e sair da

sociedade – ainda que em termos não disseme-

lhantes num e noutro caso –, e, por outro lado, o

oferente, que, tendo lançado OPA voluntária

em termos não distintos daqueles em que teria

de lançar oferta obrigatória (quando, apurados

os resultados da primeira, se viesse a revelar ter

aquele adquirido o controlo), se vê obrigado a

“cumprir duas vezes”, como se a primeira ofer-

ta não tivesse cumprido já o propósito de prote-

ger os acionistas discordantes da sua explícita

intenção de adquirir o controlo.

Em suma, os acionistas (minoritários) seriam

assim duplamente “protegidos” – podendo

vender na oferta obrigatória por preço não

superior àquele em função do qual decidiram

não vender na oferta voluntária –, e o oferente

“penalizado” por ter lançado OPA voluntária a

um preço que se viria a revelar não diferente

daquele que teria de pagar na OPA obrigatória

subsequente, no que seguramente representaria

um forte desincentivo ao lançamento de ofertas

voluntárias dirigidas à aquisição de controlo.

IV. A exceção legal vem assim tentar promo-

ver uma adequada e equilibrada composição

dos interesses das partes em “confronto”, dando

como satisfeitos os interesses dos acionistas

(minoritários) sempre que haja de se concluir

que a OPA obrigatória constituiria mera repeti-

ção da oportunidade de saída concedida já pela

OPA voluntária.

O juízo a fazer, dentro do espírito da Diretiva e

em função da necessidade de proteção dos acio-

nistas perante uma alteração de controlo, resul-

taria então de uma análise comparativa, objeti-

va, entre a oferta (voluntária) que conduziu à

alteração de controlo – e que, portanto, origina-

ria a necessidade de proteção que, não fora a

exceção, se haveria de prosseguir pela imposi-

ção do dever de lançamento de OPA – e a ofer-

ta obrigatória que de outro modo se imporia. A

derrogação dependerá, pois, da resposta à se-

guinte questão: a OPA obrigatória impõe-se

como meio indispensável à proteção dos acio-

nistas, agora minoritários, ou o facto de os ter-

mos em que teria de ser lançada não diferirem

OPA Derrogatória : 55

41- Ainda que a cotação média ponderada possa conduzir a resultados distintos consoante os períodos a que respeitam, afigurar-se-á pouco provável que, no período que antecede o anúncio de resultados de OPA voluntária (que permite ao oferente a aquisição de controlo), a negociação em mercado conduza a contrapartida superior ao oferecido na OPA (ainda que se venha a verificar superior à contrapartida determinada nos seis meses anteriores à divulgação de anúncio preliminar de OPA voluntária). Nesse caso, o critério prevalecente será o do maior preço pago pelo oferente, valor esse que, em princípio, não diferirá da contrapartida por si proposta e efetivamente paga na OPA voluntária.

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56 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

(em termos de objeto e contrapartida) da oferta

voluntária permitem dar por satisfeita a neces-

sidade de proteção daqueles?

Colocada a questão nestes termos, facilmente se

depreenderá que o juízo inerente à concessão da

derrogação não se deveria centrar exclusiva-

mente nos termos da OPA voluntária, sem ter

em consideração os termos da OPA obrigatória

a cujo lançamento o oferente procura eximir-se.

Nesta perspetiva, a resposta só poderia ser en-

contrada em função do caso concreto, atenden-

do às circunstâncias em que foi lançada a oferta

voluntária e às circunstâncias em que teria de

ser lançada OPA obrigatória. A derrogação só

deveria, então, ser apreciada e concedida no

termo da oferta voluntária (como de resto já

hoje sucede), perante a tal análise comparativa

a que aludimos42.

V. Como vimos no ponto anter ior , porém, à

luz do direito constituído e numa perspetiva de

maior certeza e segurança jurídica – que nos

levam a sopesar o elemento literal na interpreta-

ção das disposições aplicáveis –, não pode me-

nosprezar-se a interpretação de que o juízo que

o aplicador deve fazer é afinal outro, já não o de

perceber que OPA teria de ser lançada depois

da aquisição de controlo – para perceber se a

OPA lançada antes já satisfez as suas exigên-

cias –, mas tão só, partindo da ficção de que a

oferta voluntária tinha a natureza de obrigató-

ria, verificar se foi lançada nos mesmos termos

em que teria efetivamente de o ter sido se a sua

natureza fosse mesmo a de oferta obrigatória.

De acordo com esta perspetiva, o momento em

que ocorre uma efetiva alteração de controlo já

não relevará para aferição do valor a pagar aos

acionistas que então passam a qualificar-se co-

mo minoritários, irrelevando os termos em que

teria de ser lançada OPA (obrigatória) para legi-

timar a posição assim adquirida: bastante será

que quem pré-anunciou a sua intenção de vir a

adquirir o controlo, tenha lançado OPA volun-

tária como se dele já fosse titular.

No confronto entre as duas perspetivas, havere-

mos então de concluir que as exigências (de

objeto e preço) previstas em ordem à tutela dos

acionistas minoritários que se deparam com

uma alteração de controlo têm como referencial

distintos momentos temporais. Adotando a pri-

meira – que privilegia a divulgação de anúncio

preliminar de oferta voluntária, por referência

ao período de seis meses que o precede (art.

188.º, n.º 1) –, admitir-se-á que ficarão tempo-

ralmente delimitados os factos que podem ter

relevância para apurar o valor da empresa, com

isso se cristalizando, para esses efeitos, o valor

da sociedade visada.

Contudo, imagine-se que, uma vez preliminar-

mente anunciada OPA voluntária, e fixada a

contrapartida de acordo com os critérios aplicá-

veis às ofertas obrigatórias, a sociedade que

dela é objeto vem a sofrer uma efetiva deprecia-

ção do seu valor43.

Compreende-se, com relativa facilidade, que a

desvalorização objetiva e quantificável da soci-

edade podem tornar inexigível que o oferente

mantenha a sua proposta, tal como plasmada no

anúncio preliminar. Por recurso às regras de

modificação da oferta, em caso de alteração das

circunstâncias44, será de elementar justiça que,

mantendo o oferente interesse em prosseguir

com o negócio, possa modificar a oferta,

42- Note-se, aliás, que interpretar o regime da OPA derrogatória atribuindo relevo exclusivo ao valor estabelecido por referência ao anún-cio preliminar divulgado, redundaria na afirmação de que aquele se deverá necessariamente presumir ser um preço justo, aí fundamentando o afastamento da exigibilidade de cumprimento do dever de lançamento de OPA. Ora, como se depreende do regime da aquisição potestati-va, o legislador (nacional e comunitário), apenas pretendeu atribuir esse carácter à contrapartida oferecida em OPA voluntária quando, em sua sequência, o oferente tenha adquirido mais de «90% do capital com direito de voto abrangido pela oferta» (art. 15.º, n.º 5 da Direti-va), erigido, de resto, sob a forma de mera presunção. 43- Originada por contingências do negócio ou por acontecimentos inesperados. 44- Nos termos em que a mesma releva para efeitos de aplicação do art. 128.º e ss.

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57 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

ajustando (rectius, diminuindo) a contrapartida

proposta no anúncio preliminar, na medida pro-

porcional à “desvalorização” da sociedade.

Aplicando a este exemplo a teoria que sustenta

que todas as exigências (de objeto e preço) pre-

vistas em ordem à tutela dos acionistas

(minoritários) tendem a cristalizar-se com a

divulgação de anúncio preliminar de oferta

voluntária, por referência ao período de seis

meses que o precede, deveríamos então concluir

que, para a derrogação ser concedida, o oferente

deveria afinal ter pago na OPA não o valor de

contrapartida ajustado pela depreciação do va-

lor da empresa – valor esse que resultaria da

aplicação do regime dos arts. 128.º e ss.

(dependente de aprovação da CMVM) –, mas o

valor (mais elevado) previsto no anúncio preli-

minar, que em tempos poderia até ter sido o

valor mais fiel e representativo do que a socie-

dade valia, mas que perdeu atualidade em fun-

ção dos eventos entretanto ocorridos.

E agora imagine-se que sucedia afinal o inver-

so: uma vez preliminarmente anunciada oferta

voluntária e fixada a contrapartida de acordo

com os critérios aplicáveis às ofertas obrigató-

rias, a sociedade vem a sofrer uma real aprecia-

ção do seu valor, por contingências de negócio

ou de outra natureza. Nesse caso, perante a

perspetiva de adquirir por 100 aquilo que pas-

sou entretanto a valer 120, o oferente manteria

inalterada a sua oferta, sem que nenhuma nor-

ma impusesse a revisão.

Se a oferta viesse a ter sucesso, a derrogação

havia de ser concedida, pois o valor efetiva-

mente pago (100) correspondia ao valor da so-

ciedade antes do anúncio preliminar e antes do

facto que determinou o aumento do seu valor.

De acordo com a segunda teoria, se a sociedade

valia 120 quando a alteração de controlo se

concretizou, e se o controlo foi obtido pagando

apenas 100, não pode concluir-se ter a oferta

voluntária promovido o mesmo nível de prote-

ção que seria exigido na oferta obrigatória, es-

poletada pela aquisição de controlo.

O raciocínio é simples: a oferta obrigatória – se

não existisse derrogação –, nasceria com a ob-

tenção do controlo, momento em que o seu titu-

lar se apropria da faculdade do seu exercício,

sendo esse o único momento relevante para afe-

rir o valor a pagar aos acionistas minoritários

que não queiram continuar vinculados à socie-

dade, em face do novo quadro em que passam a

desenrolar-se as relações de poder no seu seio.

Se essa oferta teria, por qualquer motivo, de ser

lançada por 120, não se deverá poder afirmar

que uma oferta precedente voluntária, concluída

recentemente por 100, cumpriu integralmente

os propósitos de proteção dos acionistas minori-

tários que a Diretiva reclama.

VI. E note-se que o facto de os acionistas terem

uma palavra a dizer, podendo recusar vender

por 100 algo que julgam valer 120, não altera o

pensamento base deste raciocínio: uma coisa

são os mecanismos de que cada acionista se

servirá para se defender de uma eventual

injustiça – agravada pelos problemas decorren-

tes da incerteza quanto à atuação dos demais

acionistas e pelos inerentes receios de ficar

“preso” numa sociedade com acionista de con-

trolo45 –, outra é achar que esses mecanismos

dispensam, por si só, a existência de regras e a

atribuição de poderes à autoridade de supervi-

são, como forma de garantia adicional da posi-

ção jurídica dos investidores, em nome não só

da sua proteção mas da proteção da eficiência e

regularidade de funcionamento do mercado.

De resto, constituindo as duas realidades opos-

tas situações reflexas (numa o valor da socieda-

de desce, no outro, sobe), não fará sentido tratá-

las de forma diferenciada, só porque num dos

casos o eventual prejudicado disporá de alguns

meios para evitar ficar sujeito a um controlo

OPA Derrogatória : 57

45- Agravado ainda pelo efeito (de “pressão” para venda) que vimos poder estar associado à derrogação, caso a declaração viesse em algu-ma circunstância a ser emitida pela CMVM por ocasião do registo da OPA voluntária (ainda que condicionada à verificação ou não verifi-cação de determinados pressupostos).

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58 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

com que não alinha. A solução da lei há de ser

idêntica nas duas circunstâncias, reservando

para o momento em que há que aferir se a ofer-

ta obrigatória se constitui, o dever de verificar

se a oferta voluntária cumpriu ou não, por com-

paração com os termos em que aquela deveria

ser lançada, o propósito de proteção dos acio-

nistas e do seu tratamento igualitário46.

Neste sentido, uma OPA voluntária não poderia

nascer como derrogatória, sendo-o apenas se e

quando se vier a concluir que a OPA obrigató-

ria deveria afinal respeitar idênticos termos e

condições. Tal verificar-se-ia em perfeita coe-

rência com o que supra se sustentou, no que

respeita ao único momento em que a CMVM se

pode pronunciar sobre um pedido de derroga-

ção. É por isso sempre a posteriori que, emitin-

do a declaração, a CMVM vai qualificar a OPA

voluntária como derrogatória.

VII. Em sentido inverso, e como foi avançado

supra, um argumento para sustentar a tese da

consolidação dos pressupostos da derrogação

no momento do anúncio preliminar, por refe-

rência aos seis meses anteriores, foi o de que, a

não ser assim, o oferente ficaria exposto a even-

tuais ataques especulativos que tivessem como

propósito e efeito aumentar artificialmente a

cotação das ações objeto da oferta voluntária,

de forma a afetar um dos critérios de determina-

ção do preço da futura e eventual OPA obriga-

tória.

Seria intelectualmente inapropriado invocar que

a exigência de as OPAs se deverem desenrolar

entre duas e dez semanas (art. 183.º) é suficien-

te para obstar a esse resultado, uma vez que o

valor de mercado se haveria de calcular sempre

por referência a um período de seis meses. Co-

mo sabemos, a circunstância de certas ofertas

não poderem ser registadas sem prévia obten-

ção de autorizações administrativas inderrogá-

veis tornam longo o processo de registo, ultra-

passando por vezes o período de seis meses re-

levante para o referido cálculo.

Contudo, a resposta poderá não passar pela sim-

ples e total desconsideração do que venha a

acontecer à sociedade – note-se, relativamente à

qual o oferente ainda não adquiriu o controlo

(pode até não ter ainda adquirido qualquer

ação), não estando por isso sujeito a qualquer

risco relacionado com a apreciação ou deprecia-

ção do valor da empresa –, devendo antes en-

contrar-se dentro do espírito do sistema e, em

concreto, das válvulas de escape que este ex-

pressamente prevê.

Nas circunstâncias em que haja de ocorrer tal

perturbação – quando, obviamente, enquadrável

nos requisitos do art. 188.º, n.º 2 – haverá que,

sem grandes dificuldades, recorrer a auditor

independente que há de aferir o valor da con-

trapartida que teria de ser paga na OPA obriga-

tória, por referência ao momento em que o con-

trolo é adquirido.

46- Note-se que em abono da perspetiva supra referida (ponto 3.1), sempre poderá ser referido que no caso de se verificar a existência de um acontecimento excecional, com um impacto negativo no valor da sociedade, a modificação ou retirada da oferta não dependerá, exclusi-vamente, da vontade do oferente, uma vez que tal depende da autorização da CMVM. O único ponto dependente, de forma exclusiva, do oferente, é o de fazer constar dos documentos da oferta os pressupostos em que se fundou para lançar a mesma, garantindo dessa forma a sua cognoscibilidade por parte dos destinatários. Contudo, é à CMVM que cabe a realização do juízo quanto à efetiva imprevisibilidade, substancialidade e capacidade do facto em alterar os fundamentos que levaram o oferente a lançar a oferta. Quanto à ocorrência de um acontecimento excecional, com um impacto positivo no valor da sociedade, estão previstos mecanismos que, perante o dinamismo dos acontecimentos na pendência da oferta, permitam aos destinatários ter total conhecimento dos factos ocorridos e do seu impacto no valor da sociedade. Desde logo, sendo tal facto um acontecimento suscetível de alterar o valor de mercado dos títulos, teria de ser divulgado ao mercado nos termos do art. 248.º. Caso o facto ocorra em momento posterior à divulgação do prospeto, o oferente deverá requerer à CMVM, imediatamente, aprovação da respetiva adenda (art. 142.º). Por último, o conselho de administração da socieda-de visada, mesmo que já o tenha feito, deverá pronunciar-se novamente sobre os termos e condições da oferta (de acordo com o ponto 4. do Parecer genérico da CMVM sobre os deveres de comportamento na pendência de oferta pública de aquisição OPA, disponível em www.cmvm.pt). Será assim possível concluir existirem mecanismos legais que habilitarão os destinatários da oferta, caso nisso demons-trem interesse, a aceder a informação que lhes permita formar a sua vontade de forma totalmente esclarecida, incluindo perante as novas circunstâncias.

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59 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

E então, dois cenários seriam possíveis: i) a

sociedade não vale mais do que já foi pago na

oferta voluntária, caso em que a derrogação

pode ser concedida; ii) a sociedade vale intrin-

secamente mais do que já foi pago na oferta

voluntária, caso em que a derrogação não pode-

rá ser concedida.

VIII. Trata-se, este, de tema sensível. O seu

adequado tratamento e a sua correta aplicação

em concreto não podem desconsiderar os efei-

tos que se pretende estejam associados ao regi-

me jurídico da OPA obrigatória. A questão de

saber se as regras devem incentivar, desincenti-

var ou, simplesmente, ser neutras face à inten-

ção de usar as ofertas públicas como forma de

concentração societária tem sido objeto de estu-

do nos tempos mais recentes47, não podendo por

isso ser ignorado particularmente quando em

causa esteja a ponderação do regime vigente.

4- Conclusões

Nas páginas antecedentes, procurámos sumaria-

mente caracterizar a figura da OPA derrogató-

ria, delimitando os seus pressupostos e eviden-

ciando o procedimento conducente à sua decla-

ração pela CMVM. À conceptualização e dog-

matismo sobrepusemos preocupações da praxis,

a que procurámos dar resposta pela clarificação

do sentido das perguntas.

Conscientes do risco de gerar alguma confusão

no leitor menos versado em tema tão específico,

assumimos um dualismo por vezes provocató-

rio, testando até ao limite do razoável teorias e

perspetivas necessariamente contrapostas (por

vezes inconciliáveis), orientados pela razão de

ser da concreta exceção ao dever de lançamen-

to de OPA em análise.

Não chegámos por isso a conclusão que não a

de que, perante os dados normativos de que

dispomos, não há também aqui um sentido úni-

co e excludente pelo qual se deva pautar a inter-

pretação e aplicação do instituto, restando por

isso, em obediência a preocupações de seguran-

ça e certeza jurídica, adotar uma perspetiva cau-

telosa que tenha por base the worst case scena-

rio.

E porque a matéria das ofertas públicas de aqui-

sição constitui um dos poucos redutos onde os

legisladores nacionais gozam (ainda) de signifi-

cativa margem de modelação do quadro legal,

cumprirá tomar em conta, numa reforma já

(pre)anunciada, todos os contributos para o

aperfeiçoamento do regime jurídico português,

na expectativa de que, agora como no passado,

possa este constituir (também) catalisador da

promoção e dinamização do mercado de capi-

tais. Não constituiu senão esse o móbil deste

pequeníssimo contributo, que se algum mérito

vier a ter será seguramente o de provocar con-

tributos que ultrapassarão este em relevância,

em benefício de todos.

OPA Derrogatória : 59

47- Neste último sentido, embora problematizando os demais, veja-se Luca Enriques, R.J. Gilson e A.M. Pacces, The Case for an Unbiased Takeover Law (with an Application to the European Union), 2014, 4 Harvard Business Law Review, 85, disponível em http://ssrn.com/abstract=2258926 ou em http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2258926.

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60 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

1. Delimitação positiva e negativa

do objeto

Nos últimos anos tem-se assistido no setor

financeiro mundial e nacional a uma constante

tensão entre a necessidade de assegurar a manu-

tenção do princípio da eficácia dos mercados2 e

a recuperação da confiança dos investidores3

nos prestadores de serviços financeiros4.

Na discussão que se impõe, o tema do conflito

Negociação por Conta Própria

e os Conflitos de Interesses

(Atuação por parte do intermediário financeiro como contraparte dos clientes)

Maria João Mateus *

“Costuma dizer-se, que a ética paga no longo prazo.

Deduz-se que, se vossa situação for de curto prazo,

nem sempre compensa ser ético. O que temos de

compreender é que cada um tem uma relação de

longo prazo consigo mesmo e que é por isso que

devem ser éticos sempre! A questão tem que ver com

o respeito que temos por aquele que vemos ao

espelho todos os dias de manhã e respeitarem quem

vêem do lado de lá.”1

* - Jurista da CMVM. O presente estudo tem por base a tese de mestrado elaborada pela signatária sob orientação da Professora Margarida Lima Rego, discutida na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, em outubro de 2015, perante um júri presidido pela Professora Ana Prata, tendo como arguente o Professor André Figueiredo. As opiniões expressas neste estudo são as da autora, e não necessariamente as da CMVM. 1- Neves, João César das, Introdução à Ética Empresarial, pp. 241 Dedico o presente estudo ao Dr. Amadeu Ferreira, que não tendo conseguido convencer – me em 1995 a realizar este projeto, me obrigou, em 2013 a retomá-lo: a sua mudança de “estado”, em março de 2015 fez a diferença, tanto na ausência de opinião como na obrigatoriedade de o concluir. 2- Continua atual o entendimento de Amadeu José Ferreira, Direito dos … pp. 39-40: “Será eficiente o mercado que funcione de acordo com aquele equilíbrio permitindo que todos os interesses que concorram no mercado encontrem a mais adequada realização”. Vide em particular à apresentação de José Bracinha Vieira referenciada no presente estudo. 3- Ferreira, António Pedro A. O Governo das Sociedades…, pp. 188 salienta: “Um dos maiores perigos derivados da subsistência da actu-al crise radica, precisamente, na possibilidade de a deterioração desse clima de confiança atingir níveis que ponham em causa a própria subsistência da actividade financeira, pelo menos tal como ela vem sendo exercida de acordo com os padrões tradicionais". 4- Roche, Marc, O Banco, pp. 72, transmite a seguinte imagem: “O Goldman Sachs põe o acento não só sobre o serviço dos seus clientes como cria as suas próprias estruturas concorrentes… um com-portamento original. Dentro da legalidade, as informações obtidas junto destes permitem alimentar as outras actividades do Banco. (…) A evolução dos lucros ao longo dos anos ilustra a transformação do Goldman. Em 1999, o trading representava 43% do rendimento líquido, as actividades de banco de investimento 33% e as de gestão de património 24%. (…) Em 2009, 77%, 10% e 13%. Como explicar este domínio do trading? Em primeiro lugar, a concorrência feroz que opõe os bancos no aconselhamento ou na gestão de fortuna reduz as margens, enquanto o negócio – comprar, vender – é guiado pelos volumes, «o volume de negócios». Depois, a cultura da casa muito particular – espírito de equipa, pressão constante, culto da vitória a qualquer preço, arrogância – faz maravilhas no universo selvagem do trading. Finalmente, graças à sua rede de influências única nos círculos do poder do planeta. (…) Ao mesmo tempo juiz e parte interessada, o banco joga em todas as frentes para tirar proveito com conhecimento de causa”.

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61 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

de interesses na intermediação financeira

assume particular importância5, sobretudo pela

distância entre “boas normas” e as “más

práticas”6.

As “boas normas” resultam das alterações re-

gulamentares comunitárias, patentes quer na

primeira Diretiva Relativa ao Mercado de Ins-

trumentos Financeiros7, DMIF 1 - complemen-

tada pela Diretiva de Execução da Diretiva Re-

lativa ao Mercado de Instrumentos Financeiros

8, e pelo Regulamento (CE) n.º 1287/2006 da

Comissão, de 10 de Agosto de 20069 - quer na

segunda Diretiva Relativa ao Mercado de Ins-

trumentos Financeiros10, DMIF 2, em fase de

transposição.

As “más práticas” são confirmadas pelas insol-

vências de instituições de crédito consideradas

“demasiado grandes para falir”, como aconte-

ceu em Portugal11.

Atendendo à amplitude do tema do conflito de

interesses na intermediação financeira, optei

por estudar o conflito de interesses associado à

intervenção dos intermediários financeiros,

autorizados a negociar por conta própria, que

atuam como contraparte dos clientes.

Não sendo possível uma abordagem das ques-

tões económicas, psicológicas ou sociológicas,

circunscrevo-me às questões jurídicas, anali-

sando primeiro as características dos negócios

jurídicos celebrados pelo intermediário finan-

ceiro e a sua relação com a figura do negócio

consigo mesmo do direito civil, e depois o con-

flito de interesses associados a estes negócios.

Excluo assim, quaisquer outras matérias intrín-

secas às relações societárias estabelecidas entre

os administradores e as sociedades (como por

exemplo, o crédito a membros dos órgãos soci-

ais e outras operações).

Neste estudo considerei necessário identificar

mecanismos de mitigação desse conflito.

O sistema do controlo interno, tendo diversas

funções na prevenção de riscos no exercício da

atividade de intermediação financeira, deverá

ser implementado de forma eficaz como forma

de mitigação.

Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 61

5- Cf. Câmara, Paulo “Conflitos de interesses…”, p. 20-22 6- Goleman, Daniel e outros, Transparência-Como os Lideres podem…, pp. 16, defende: “(…) muitas organizações lisonjeiam os valores da abertura e sinceridade, chegando mesmo a inscrever o seu compromisso com eles nas declarações de intenções. Demasiadas vezes trata-se de documentos vazios, que não conseguem descrever a verdadeira intenção da orga-nização e inspiram frustração, mesmo cinismo, aos seus empregados, todos eles demasiado cientes de uma realidade organizacional muito diferente”. 7- Diretiva 2004/39/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de abril, alterada pelas Diretivas n.ºs 2006/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 5 de abril de 2006; 2007/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 5 de setembro de 2007; 2008/10/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de março de 2008, e 2010/78/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 24 de novembro de 2010. As referências serão feitas à versão consolidada disponível em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2004:145:0001:0044:FR:PDF 8- Diretiva 2006/73/ da Comissão, de 10 de agosto, que veio especificar os requisitos e procedimentos concretos em matéria de organiza-ção, concretizando os princípios fixados pela Diretiva Relativa ao Mercado de Instrumentos Financeiros - versão disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2006:241:0026:0058:ES:PDF 9- Regulamento n.º 1287/2006 da Comissão, de 10 de agosto de 2006, versão disponível em seghttp://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:32006R1287 10- Diretiva 2014/65 do Parlamento e do Conselho, de 15 de maio de 2014, versão disponível em http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:32014L0065 11- A existência de compilações de extensas normas internas e de relatórios de controlo interno muito documentados, asseguraram uma aparente normalidade, mas não evitaram a insolvência do Banco Privado Português, S.A., do Banco Português de Negócios, S.A. e a recente intervenção no Banco Espirito Santo, S.A..

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62 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

2. Estrutura de análise do tema

O presente estudo circunscreve-se ao regime

previsto no Código dos Valores Mobiliários12,

que consagrou no Capítulo da intermediação

financeira o artigo 309.º ao “Conflitos de inte-

resses” e no Capítulo da “Negociação por con-

ta própria”, os conflitos de interesses associa-

dos à atuação como contraparte do cliente (art.º

346.º do CVM)13.

Assinala-se que, tendo o regime dos conflitos

de interesses sido objeto de uma profunda mo-

dificação em 2007 - com a transposição da

DMIF I, da Diretiva de Execução e do Regula-

mento n.º 1287/2006, operada pelo DL n.º 357-

A/2007, de 31 de outubro – o artigo 346.º do

CVM não sofreu diretamente significativas mo-

dificações.

Contudo, as alterações estruturais “pós-DMIF”

acarretaram uma mudança na identificação,

registo e mitigação de conflitos de interesses,

urgindo estabelecer uma maior articulação com

esse regime legal (art.º 309.º e seguintes do

CVM).

3. Negociação por conta própria

Impõe-se uma prévia referência à classificação

que tem sido proposta pela doutrina relativa-

mente às atividades e serviços de investimento.

Em termos de sistematização das atividades e

serviços de investimento principais e serviços

auxiliares, Carlos Ferreira de Almeida agrupa-

as, “conforme o conteúdo e função a que se

destinam”14, em: (i) “prestações de servi-

ços” (incluindo a gestão de carteira); (ii)

“operações de conta alheia” (nas quais se in-

cluem os serviços de receção e execução de

ordens de clientes, “agindo os intermediários

financeiros por conta e ordem dos seus clien-

tes”) e, (iii) “operações por conta própria”.

Engrácia Antunes sintetiza a atuação dos inter-

mediários financeiros afirmando: “A actividade

negocial dos intermediários financeiros no âm-

bito do mercado de capitais pode ser realizada

por conta alheia ou própria: no primeiro caso,

o intermediário (“broker”) actua por ordem e

conta dos seus clientes (destinando-se os bene-

fícios e riscos dos negócios jusfinanceiros cele-

brados a projectar-se exclusivamente na esfera

destes), assumindo aquele a função primordial

de mediação entre oferta e procura no mercado

de capitais; no segundo caso, pelo contrário, o

intermediário (“dealer”) atua por sua própria

conta e risco, repercutindo-se os efeitos jurídi-

cos e económicos dos negócios sobre o seu pró-

prio património, com vista à realização de uma

pluralidade de finalidades”15.

Nas operações por conta própria incluem-se

as operações de “cruzamento de ordens

dos clientes com a carteira própria do interme-

diário”16 e, as operações “incentivadas

como instrumento para assegurarem a fluidez e

a liquidez do mercado”17, com um fim

“puramente especulativo, de forma a beneficiar

da margem entre o preço de compra e o de

12- Aprovado pelo Decreto-Lei nº 486/99 de 13 de novembro, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.ºs 61/2002, de 20 de março, 38/2003, de 8 de março, 107/2003, de 4 de junho, 183/2003, de 19 de agosto, 66/2004, de 24 de março, 52/2006, de 15de março, 219/2006, de 2 de novembro, 357-A/2007, de 31 de outubro, que o republica (retificado pela Declaração de Retificação nº 117-A/2007, de 28 de dezembro), 211-A/2008, de 3 de novembro, pela Lei nº 28/2009 de 19 de junho, pelo Decreto-Lei nº 185/2009, de 12 de agosto, pelo Decreto-Lei nº 49/2010, de 19 de maio, pelo Decreto-Lei nº 52/2010, de 26/05, pelo Decreto-Lei nº 71/2010, de 18 de junho, pela Lei nº 46/2011, de 24 de junho, pelo Decreto-Lei nº 85/2011, de 29 de junho, pelo Decreto-Lei nº 18/2013, de 6 de fevereiro, pelo Decreto-Lei nº 63-A/2013, de 10 de maio, pelo Decreto-Lei nº 29/2014, de 25 de fevereiro e pelo Decreto-Lei nº 40/2014, de 18 de março, pelo Decreto-Lei nº 88/2014, de 6 de junho, pelo Decreto-Lei nº 157/2014, de 24 de outubro e pela Lei nº 16/2015, de 24 de fevereiro. 13- Sobre o regime anterior vide Rodrigues, Sofia Nascimento, “A regulação geral dos conflitos…”, pp. 69 e Ss., e “O conflitos de interes-ses…”, pp. 334 e seguintes 14- Almeida, Carlos Ferreira, “Transações de conta alheia…”, pp. 292 15- Antunes, José A. Engrácia, Direito Dos Contratos…, pp. 301 16- Antunes, José A. Engrácia, Direito Dos Contratos…, pp. 302 17- Almeida, Carlos Ferreira, “Transações de conta alheia…”, pp. 294

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63 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

venda”18 (as operações de fomento do mercado

e de estabilização dos preços e o empréstimo de

valores mobiliários).

Esta classificação resulta da arrumação do

CVM que, no seu Capitulo III, sob a epígrafe de

“Negociação por conta própria”, regula:

A intervenção do intermediário financeiro

como contraparte do cliente (art.º s 346.º);

O regime de conflito de interesses em situa-

ções de antecipação na negociação (art.º

347.º);

A enunciação de típicas operações por conta

própria: as operações de fomento de merca-

do19 (art.º 348.º do CVM); as operações de

estabilização de preços de uma determinada

categoria de valores mobiliários (art.º 349.º

do CVM), e o empréstimo de valores mobi-

liários (art.º 350.º do CVM).

Em 2008 foi aditado neste capítulo do CVM o

artigo 350.º-A20, nos termos do qual o interme-

diário financeiro autorizado a atuar por conta

própria está obrigado a comunicar à CMVM os

ativos que detém - diretamente ou por socieda-

de por si dominada - que se encontrem domici-

liados ou sejam geridos por entidade sedeada

em Estado que não seja membro da União Eu-

ropeia, visando o reforço da transparência de

ativos detidos.

Circunscrevo-me às operações previstas no

artigo 346.º do CVM.

4. Dos conflitos associados atuação

como contraparte

A atuação como contraparte do cliente constitui

uma das múltiplas situações identificadas pela

doutrina em que o intermediário financeiro aca-

ba por se envolver em situações geradoras de

conflitos entre os seus interesses e os interesses

dos clientes.

Segundo Luís Menezes Leitão21 “sendo-lhe

permitido atuar como contraparte, o interme-

diário terá sempre ínsito à sua atuação um

interesse diretamente oposto ao do cliente.

Essa oposição direta faz colocar ao intermediá-

rio a interrogação de se deverá atuar em

prossecução do interesse do investidor, ou se

atuará de acordo com os seus interesses ”.

Nas transações de instrumentos financeiros

entre carteira própria e dos clientes várias situa-

ções se poderão equacionar: ao atuar como

contraparte dos contratos em que intervém, em

nome próprio e em nome dos clientes, poderá o

intermediário financeiro entender que as ordens

que lhe são transmitidas para execução são as

mais convenientes para os seus interesses,

desconsiderando ou minimizando os efeitos que

ocorrerão na esfera dos ordenadores.

Outro exemplo, quando perante uma ordem de

venda de um cliente, o intermediário não segue

a política da execução nas melhores condições

(art.º 330.º do CVM), optando por vender

valores mobiliários que estão na sua carteira.

Noutra situação poderá desejar colocar obriga-

ções de curto prazo, fazendo-o por imputação à

conta de um cliente que pretende adquirir esses

instrumentos financeiros.

Estarão em causa situações que geram, necessa-

riamente, um conflito entre os interesses que

carece de ser tutelado?

Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 63

18- Leitão, Luís Menezes, “Actividades de Intermediação Financeira …”, pp. 136 19- Nos termos do artigo 348.º do CVM, na redação inicial estas operações “visam a criação de condições para a comercialização regular num mercado de uma determinada categoria de valores mobiliários, nomeadamente o incremento da liquidez”. 20- DL n.º 211-A/2008, de 3 de novembro 21- Leitão, Luís Menezes, “Atividades de Intermediação Financeira…”, pp. 137

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64 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A resposta a esta questão exige uma precisão do

conceito de “conflito” e de “interesses” que

releva para o presente estudo.

5. Noção de conflitos de interesses

5.1 Noção de Conflito

O conceito “conflito” tem uma realidade extra-

jurídica de “embate” ou “oposição” que implica

a existência de duas ou mais forças em oposi-

ção.

O legislador comunitário balizou da seguinte

forma o conceito relevante que visa tutelar:

“As circunstâncias que devem ser considera-

das como originando um conflito de interesses

devem abranger os casos em que se verifica um

conflito entre os interesses da empresa ou de

certas pessoas relacionadas com a empresa ou

com o grupo a que pertence e os deveres da

empresa face a um cliente, ou entre os interes-

ses divergentes de dois ou mais dos seus clien-

tes, perante os quais a empresa tem, em cada

caso, um dever. Não é suficiente que a empresa

possa vir a obter um benefício no caso de não

se verificar igualmente uma possível desvanta-

gem para um cliente ou que o cliente perante o

qual a empresa tem um dever possa vir a obter

um ganho ou a evitar um prejuízo, sem se veri-

ficar um possível prejuízo concomitante para

um outro cliente”22.

Sendo defensável que “embora não obrigue à

demonstração de uma incompatibilidade de

interesses – no sentido de que não se possa sa-

tisfazer um sem o outro sai a lesado -, dispõe-se

directamente que tais conflitos apenas relevam

se implicarem prejuízo para uma das partes.

Assim, se uma parte tem um benefício sem que

a outra sofra uma desvantagem, não há tecni-

camente conflito para efeitos do regime comu-

nitário”23.

Resulta do exposto que o conceito de conflito

se confina à existência de duas ou mais forças

com sentidos contrários, a que se associa a pos-

sibilidade de ocorrência de um dano.

5.2 Noção de Interesse

O conceito de “interesse” reconduz-se, em ter-

mos semânticos, à “atenção”, à “importância”

dada por um sujeito a um objeto ou a uma fina-

lidade.

Na teorização do conceito de “interesse” consi-

dero útil a referência ao pensamento de

Savigny, que “construíra todo um sistema de

direito privado assente na vontade humana co-

mo expressão última de liberdade, que teria

como seu instrumento privilegiado o direito

subjetivo enquanto «poder da vontade» 24.

Em sentido contrário, Jhering “rejeitaria a defi-

nição de direito subjetivo com base na ideia de

vontade. Para o autor, uma vez que uma tal

definição implica que a vontade esteja de algu-

ma forma presente em todo o direito, esta teria

como consequência necessária, desde logo, o

não reconhecimento da existência de verdadei-

ros direitos em pessoas totalmente privadas de

vontade racional, ou a existência de diretos

que os seus titulares desconhecem, não poden-

do, por isso ter qualquer espécie de vontade a

seu respeito”25.

Para este Autor os “direitos não existem para

realizar a ideia de vontade jurídica abstrata,

22- Considerando 24 da Diretiva de Execução 23- Câmara, Paulo, “A Regulação baseada…”, pp. 24 24- Rego, Margarida Lima, Contrato de Seguro…, pp. 173 25- Rego, Margarida Lima, Contrato de Seguro…, pp. 174, 175

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65 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

mas antes para servir os interesses, as necessi-

dades, os fins do tráfego. (…) Os direitos não

produzem nada de inútil. A utilidade - não a

vontade - é a substância do direito” 26.

Pedro Pais de Vasconcelos salienta que Jhering

inverte o pensamento que “situava o direito

subjetivo na liberdade, na faculdade, no poder

que o seu titular tinha de exercer o poder sobre

um bem e define-o de modo radicalmente novo:

Os direitos subjetivos são interesses juridica-

mente protegidos.

O direito subjetivo deixa de ser algo que é inato

e inerente à qualidade humana e passa a ser

uma concessão da ordem subjetiva. O ponto de

ancoragem da noção de direito subjetivo muda

do poder para o interesse.” (…) Os direitos

transformam-se ao logo da vida. O titular do

direito subjetivo não deixa de o ser em caso de

falta ou deficiência do seu discernimento ou

vontade”27.

Há assim uma “diferença entre a

«subjetividade» da vontade e a «objetividade»

do interesse» ”28.

“A partir da construção de Jhering, a doutrina

passa a expor a alternativa entre a teoria da

vontade, que situa geralmente em Savigny e

Windscheild e a teoria do interesse, que atribui

a Jhering”29.

Na apreciação das teorias expostas, conclui

Margarida Lima Rego que: “A teoria do inte-

resse contrasta com a teoria da vontade: por

um lado, temos os que reconduzem a caracte-

rística primordial do direito subjetivo a um es-

paço de liberdade, a uma oportunidade de es-

colha atribuída ao seu titular, por outro lado

aqueles que instrumentalizam o conceito de

direito subjetivo à prossecução de um determi-

nado fim, à proteção de determinados aspetos

do bem-estar do seu titular, ou que buscam a

fundamentação última da vinculatividade dos

negócios jurídicos em princípios extrínsecos à

autodeterminação das partes”30.

Salientando diversas posições - nomeadamente

a de Pessoa Jorge para quem o interesse é "um

ponto de vista de relação entre a situação de

necessidade ou carência de determinada pes-

soa e o bem lato sensu capaz de preencher essa

carência"31 – Margarida Lima Rego faz refe-

rência ao seguinte entendimento:

“Em sentido diverso se fala em interesse quan-

do se define o conceito como relação entre um

sujeito e um bem” (…) “É este um sentido de

sabor jheringuiano: o interesse como aptidão

ou utilidade de um bem para satisfação de uma

necessidade de um determinado sujeito. Nesse

sentido se diz por vezes que o dano - o dano

real - corresponde à negação ou lesão de um

interesse”32.

Pedro de Albuquerque opta pela definição de

interesse como “relação entre o sujeito e o bem

apto a satisfazer tal necessidade, determinada

na previsão ou valoração que dela faz o

ordenamento jurídico”33.

Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 65

26- Rego, Margarida Lima, Contrato de Seguro… pp. 175 27- Vasconcelos, Pedro Pais, Teoria Geral…, pp.252 28- Múrias, Pedro, http:muriasjuridico.no.sapo.pt/InteresseOOQueE.pdf, pag.26 29- Vasconcelos, Pedro Pais, Teoria Geral…, pp.255 30- Rego, Margarida Lima, Contrato de Seguro…, pp. 178, 179 31- Rego, Margarida Lima, Contrato de Seguro…, pp. 187, nota 414 32- Rego, Margarida Lima, Contrato de Seguro…, pp. 186, 187 e 188 33- Albuquerque, Pedro de, A representação voluntária…, pp.935, nota 1477

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66 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Sigo a proposta de definição “interesse como a

relação entre o sujeito de uma necessidade e o

bem que necessita”, considerando a “distinção

entre os conceitos de interesse objectivo e de

interesse subjectivo, correspondendo o primei-

ro à «virtualidade que determinados bens têm

para a satisfação de certas necessidades» e o

segundo à «relação de apetência que se estabe-

lece entre o sujeito carente e as realidades ap-

tas a satisfazê-lo»”34.

Conclui-se que o conceito de conflito (ou con-

flitos) de interesses:

Assenta na existência de relações entre os

sujeitos – clientes e intermediários financei-

ros – e os bens aptos a satisfazer as suas ne-

cessidades (valores mobiliários ou instru-

mentos financeiros que pretendem adquirir

ou alienar);

Sendo valorado o facto de se tratar de rela-

ções juridicamente protegidas estabelecidas

em sentidos contrários, a que associa a pos-

sibilidade de ocorrência de danos.

6. Intervenção como contraparte

dos clientes

Nos contratos referidos no art.º 346.º, nº1 do

CVM o intermediário financeiro atua em nome

do cliente “agindo como comprador ou vende-

dor por conta própria, isto é, como contraparte

no negócio de execução. Esta operação é co-

nhecida no direito alemão, como Kommission

mit Sebsteintritt, expressão que, na literatura

espanhola, foi traduzida por “autoentrada del

comissionista”35.

O intermediário financeiro “toma a decisão, de

negociar directamente com o cliente, fora de

mercado, comprando-lhe os valores que ele

pretende vender ou alienando-lhe os valores

que pretende adquirir”36.

A doutrina tem reconduzido estas situações à

figura do contrato consigo mesmo (art.º 261.º

do CC) ou da “auto-entrada do comissário”37

do direito comercial.

No contrato consigo mesmo “intervém uma só

pessoa que age simultaneamente na qualidade

de parte e na qualidade de representante da

outra parte ou na qualidade de representante

de todos as partes”38.

A aceitação da figura jurídica dos negócios con-

sigo mesmo no direito civil não foi consensual

na doutrina estrangeira39 nem na doutrina portu-

guesa, questionando-se mesmo se haveria um

verdadeiro contrato40.

Partilho da opinião de que a figura do “contrato

consigo mesmo” é “um instituto relevante

33- Albuquerque, Pedro de, A representação voluntária…, pp.935, nota 1477 34- Rego, Margarida Lima, Contrato de Seguro…, pp. 188 35- Almeida, Carlos Ferreira, “Transações de conta alheia…”, pp. 298 e Neto, Abílio “Código Civil Anotado”, pp.180 36- Borges, Sofia Leite, “O conflito de interesses …”, pp.397 37- Almeida, Carlos Ferreira, Contrato I …,pp. 147 38- Almeida, Carlos Ferreira, Contrato I …,pp. 146 39- Albuquerque, Pedro, A representação voluntária … pp. 390 e 391, refere que na Alemanha, na discussão dos anteprojetos que antecederam o BGB, enquanto no primeiro anteprojeto se decidia favoravelmente não obstante a possibilidade de eventuais conflitos, no 2º anteprojeto impunham-se restrições. 40- Vide Serra, Adriano Vaz “Contrato Consigo mesmo” pp. 179 afirma “É discutida a possibilidade jurídica destes contratos. Antes de mais, pode perguntar-se se haverá então verdadeiro contrato “; concluindo (pp. 180) que “não é essência do contrato a existência de duas ou mais vontades, produto psicológico de duas ou mais pessoas, mas apenas de duas ou mais declarações de vontade, representando inte-resses diferentes”. Este Autor assinalava a perigosidade do contrato consigo mesmo (pp. 180) dado que: “Se todos os interesses das duas partes são opostos, pode ser temer que o representante sacrifique os do representado a favor dos seus ou, no caso de dupla representação, sacrifique um dos representados em benefício de outro”.

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67 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

para a regulação de conflitos de interesse

gerados por efeito da atribuição, de poderes de

representação. Conforme as circunstâncias, o

contrato é válido ou anulável”41.

No artigo 261.º do Código Civil preveem-se

duas situações42:

“ou alguém representa em simultâneo ambas

as partes de determinados negócios – é a

chamada dupla representação”43;

“ou o representante atua nessa sua qualida-

de, e ao mesmo tempo, em nome próprio e

portanto como contraparte – trata-se do au-

tocontrato ou autonegócio”.

Aproximam-se as situações subjacentes ao regi-

me do art.º 346.º do CVM do “autocontrato ou

autonegocio”44, do contrato de comissão45.

Nos termos do disposto no artigo 266.º do Có-

digo Comercial o mandatário executa o manda-

to mercantil sem menção ou alusão ao man-

dante, contratando por si e em seu nome, como

principal e único contraente (aplicando-se as

regras do mandato sem representação prevista

no art.º 1180.º e Ss. do Código Civil). No artigo

274.º do mesmo diploma regula-se a compra e

venda ao comitente atuando por conta própria.

As consequências da não-aceitação dos efeitos

dos contratos celebrados, por parte dos Repre-

sentados tem, no entanto, regimes jurídicos di-

versos no direito civil, comercial e dos valores

mobiliários, conforme se analisará nos n.º 9.1 a

9.3.

7. Regime comunitário – regulação geral

7.1 DMIF 146

A DMIF 1 ao eleger como um dos seus princi-

pais objetivos a proteção dos Investidores47 im-

põe às empresas de investimento e instituições

de crédito que atuem de forma honesta, equita-

tiva e profissional, em função do interesse dos

clientes (art.º 19.º / 1 da DMIF 1).

Para tal, terão de “adotar e manter mecanismos

organizativos e administrativos eficazes por

forma a tomar todas as medidas razoáveis des-

tinadas a evitar que conflitos de interes-

ses” (art.º 13.º/3 DMIF 1), o que pressupõe a

sua identificação (art.º 18/1 DMIF 1).

Caso as medidas adotadas não sejam suficien-

tes para garantir com um “grau de certeza ra-

zoável, que serão evitados os riscos de os inte-

resses dos clientes serem prejudicados”, o in-

termediário financeiro deve “informar clara-

mente o cliente, antes de efetuar uma operação

em seu nome, na natureza genérica e/ou das

fontes desses conflitos de interesses” (art.º18/2

DMIF 1).

Sendo a DMIF 1 essencialmente programática -

“designada como uma maximum harmonization

directive e caraterizada como uma regulação

Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 67

41- Almeida, Carlos Ferreira, Contrato I …,pp.146 42- Albuquerque, Pedro, A representação voluntária …, pp. 935 e 936 43- Relativamente ao duplo mandato ou dupla comissão vide Borges, Sofia Leite, “A regulação Geral dos Conflitos…”, pp. 75. A Autora enuncia como situação típica do conflito entre clientes investidores a “decorrente das ordens transmitidas pelos clientes poderem ser cru-zadas fora do mercado, com eventual benefício de um cliente e em detrimento de outro”. Sendo uma situação abrangida pelo art.º 261.º do Código Civil “implica que o intermediário actue por conta de vários clientes com interesses contrapostos, recebendo e executando as ordens por aqueles transmitidas ou gerindo as respetivas carteiras”. 44- Almeida, Carlos Ferreira, Contrato I …,pp.147-148. O Autor afirma: “Afins dos contratos consigo mesmo (ou, num conceito lato, uma especial classe destes) são os contratos celebrados pelo comissário com o seu comitente, no âmbito dos poderes atribuídos pelo comitente para actuação por sua conta mas em nome do comissário”. 45- Almeida, Carlos Ferreira, Contrato I …,pp.148. O Autor salienta que existem diferenças entre o contrato consigo mesmo e o contrato de comissão, regulado no artigo 266.º Ss. do Código Comercial já que no primeiro “há duas declarações do representante; na auto-entrada do comissário, este emite apenas a sua própria declaração, sendo a função da outra substituída pelo contrato de comissão”. 46- A DMIF 1 consagra a regulação geral dos conflitos de interesses nos artigos 13.º /3 e 18.º. 47- Cf. Considerando 29

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68 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

baseada em normas bastante amplas”48 – veio

impor:

A identificação de possíveis conflitos de in-

teresses de dois níveis: entre o intermediário

financeiro e seus clientes e entre estes (art.º

18.º DMIF 1);

A adoção de medidas de organização interna

de segregação de atividades e funções - com

separação entre as diferentes áreas para que

seja realizável uma limitação da circulação

de informações - assim como uma delimita-

ção do poder decisório, a par da implementa-

ção de mecanismos de controlo interno desta

segregação (art.º 13/3 DMIF 1);

A divulgação junto dos clientes - antes de

efetuar uma operação em seu nome - da na-

tureza dos conflitos de interesses contrapos-

tos, ou meramente perturbadores do exercí-

cio correto e determinado da prestação con-

tratada (art.º 18º/2 DMIF 1).

Decorre do disposto no artigo 18.º da DMIF 1

que a identificação inclui:

As relações internas verticais ou horizontais

(entre colaboradores e entre dirigentes e co-

laboradores);

As relações dentro do grupo financeiro em

que o intermediário se insira;

As relações entre os clientes.

Relativamente às medidas de organização e se-

gregação orgânica e funcional serão menciona-

dos em capítulo subsequente, a propósito da

mitigação dos conflitos, exemplos das mesmas.

Salienta-se, no entanto, que “as medidas de or-

ganização e funcionamento actuariam assim

quer ao nível da circulação da informação,

quer ao nível da autonomia decisória entre ac-

tividades, evitando o contágio por interesses”49,

que decorrem do exercício de outras atividades

ou prestação de serviços.

7.2 Diretiva de Execução

A Diretiva de Execução - Diretiva de Nível 250

-concretizando os deveres previsto na DMIF 1,

estabeleceu novos requisitos em matéria de or-

ganização e condições de exercício das ativida-

des das empresas de investimento (art.º s 21º a

23º), passando a ser determinante:

O grau de independência das atividades den-

tro o intermediário, e entre estas e outras

entidades do mesmo grupo51 (art.º 22º/3 Di-

retiva de Execução);

A obrigação de registo de todos os tipos de

atividades ou serviços de investimento nos

quais teve origem um conflito de interesses

que implicou um risco significativo de que

os interesses de um ou mais clientes fossem

afetados, ou no caso de uma atividade ou

serviço em curso, em que tal seja suscetível

de ocorrer (art.º 23º Diretiva de Execução);

A identificação e registo de operações em

que intervêm “Pessoas Relevantes” (art.º

22/3 da Diretiva de Execução).

Os intermediários financeiros ficaram obriga-

dos a manter registos atualizados de serviços ou

atividades que originam conflitos de interesses

(art.º 23.º da Diretiva de Execução, em comple-

mento do art.º 13º/5 da Diretiva DMIF 1).

Relativamente à negociação por conta própria, a

Diretiva de Execução elegeu esta atividade

48- Câmara, Paulo, “A Regulação baseada…”, pp. 62 49- Borges, Sofia Leite, “A Regulação geral…”, pp. 83 50- Catarina Trigacheiro sintetiza o processo de decisão comunitária, “Comitologia”, pp. 34, referindo as conclusões do Relatório de Lamfalussy publicado a 15 de fevereiro de 2001, sugerindo a implementação de um processo de regulamentação em quatro níveis, o 1º baseado em princípios e normas de carácter geral”; o 2.º “consiste, em medidas de execução, que concretizam os princípios gerais defini-dos no Base”; o 3.º pretende-se atingir uma “cooperação estreita entre as várias entidades nacionais de supervisão” e o 4.º relacionado “com o cumprimento das normas comunitárias”. 51- Se o intermediário financeiro estiver no âmbito de um grupo de sociedades a sua política terá de agrupar todas as possibilidades de conflitos de interesses em razão de quaisquer circunstâncias que possam suscitar de acordo com a estrutura e atividades comerciais de outros membros de grupo (art.º 22.º/2 da Diretiva de Execução).

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69 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

como uma das que apresentam uma maior

probabilidade de gerar potenciais conflitos de

interesses, relevando em particular o exercício

de várias atividades de intermediação em con-

junto com esta52.

7.3 DMIF 253

O legislador comunitário considerou que a

“crise financeira revelou deficiências no funci-

onamento e na transparência dos mercados

financeiros”54, sendo oportuno a revisão de to-

do o regime anterior.

A DMIF 2 procura acompanhar a evolução re-

gistada na negociação, em particular na negoci-

ação algorítmica, e de novos instrumentos fi-

nanceiros derivados de mercadorias, incluindo

contratos de energia, negociados num sistema

de negociação organizado (OTF, organised tra-

ding facility), o surgimento de novas platafor-

mas de negociação.

Inclui ainda a regulação aplicável aos depósitos

estruturados.

Em matéria de conflito de interesses reitera-se a

necessidade de prevenir, mitigar e informar os

clientes de possíveis conflitos de interesses55, e

introduz-se uma referência expressa à sua

origem com base na “combinação de serviços,

incluindo os causados pela aceitação de incen-

tivos de terceiros ou pela própria remuneração

da empresa de investimento e demais estrutu-

ras de incentivos” (art.º 23.º /1).

Salienta-se a regulação da estruturação da re-

muneração dos colaboradores56, e do regime de

incentivos e comissionamento57.

8. Regime nacional

A transposição da DMIF 1 e da Diretiva de

Execução exigiram aos intermediários financei-

ros:

Um conhecimento profundo do modelo de

negócio adotado, de modo a ser possível

identificar, em concreto, e para cada ativida-

de de intermediação prestada, potenciais

conflitos;

A identificação das áreas operativas com

maior probabilidade de ocorrerem situações

de conflitos potenciais ou efetivos58;

A fixação de mecanismos operacionais de

prevenção e mitigação desses conflitos;

A avaliação da eficácia deste sistema pelos

órgãos de fiscalização interna, e

A demonstração interna e externa dessa

avaliação.

Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 69

52- Considerando 24: “Em especial, considera-se que essa atenção especial é adequada sempre que a empresa ou a pessoa, directa ou indiretamente vinculada à empresa por uma relação de controlo, realize uma combinação de duas ou mais dessas atividades”. 53- Esta diretiva que revoga a DMIF 1 com efeitos a partir de 03 de janeiro de 2017 (art.º 94.º), é complementada pelo Regulamento (UE) n.º 600/2014, do PE e Com., de 15 de maio de 2014. 54- No Considerando 4, salienta-se a necessidade de regular as situações em que a negociação ocorre em mercado de balcão (OTC, over-the-counter) de modo “a aumentar a transparência, melhor proteger os investidores, reforçar a confiança, fazer face às áreas não regulamentadas e assegurar que sejam concedidos às autoridades de supervisão poderes adequados para o desempenho das suas tarefas”. Caso não exista garantia de que se serão evitados esses riscos os clientes deverão ser informados, devendo a informação ser efetuada num suporte duradouro e ser suficientemente detalhada, de modo a permitir uma decisão esclarecida (art.º 23/ 2 e 3). 55- Considerando 56: “Caso, no entanto, subsista algum risco residual de prejuízo para os interesses do cliente, será necessário informar claramente o cliente da natureza genérica e/ou das fontes do conflito de interesses e das medidas tomadas para mitigar esses riscos, antes de efetuar uma operação em seu nome.” 56- Considerando 77 e artigo 9. 3 / al. c) da Diretiva. 57- Nos termos do disposto no art.º 24/ 10:“Uma empresa de investimento que preste serviços de investimento a clientes deve assegurar que o seu pessoal não é remunerado nem o seu desempenho avaliado de forma a entrar em conflito com a sua obrigação de atuar no inte-resse dos seus clientes. Em particular, não deve tomar medidas relativas a remuneração, objetivos de vendas ou de outro tipo suscetíveis de criar um incentivo ao seu pessoal a recomendar um determinado instrumento financeiro quando a empresa de investimento poderia propor um instrumento financeiro diferente que melhor correspondesse às necessidades desse cliente”. 58- Uma das principais alterações está relacionada com a necessidade de autonomização de áreas operacionais e comerciais e segregação de funções, com especial exigência, em termos de negociação por conta própria, para a delimitação das tarefas de execução de front office e verificação por parte das áreas de back office.

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70 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Complementarmente, foram reforçados os de-

veres de segregação patrimonial e de separação

contabilística, bem como as proibições impos-

tas ao intermediário financeiro de dispor dos

valores mobiliários pertencentes aos seus Clien-

tes ou exercer os direitos a eles inerentes, salvo

acordo escrito dos titulares (art.º 306.º do

CVM).

Temos assim59:

A delimitação subjetiva, ou seja, o perímetro

das pessoas cujos interesses relevem para

efeitos de aplicação do regime – art.º s 309.º-

E e 309.º-F do CVM – distinguindo-se con-

flitos entre intermediário e clientes (não ape-

nas entre o cliente e a pessoa coletiva presta-

dora do serviço, mas também entre os clien-

tes e os dirigentes do intermediário, colabo-

radores e agentes vinculados ou quaisquer

pessoas em relação de domínio com o inter-

mediário financeiro) e conflitos de interesses

entre os diferentes clientes;

A delimitação objetiva, relevando a incom-

patibilidade de interesses e não a simples

concorrência de interesses contrapostos.

Até 2007 decorriam do regime geral de conflito

de interesses previsto no artigo 309.º do CVM:

O dever imposto ao intermediário financeiro

de se “organizar e atuar de modo a evitar ou

reduzir ao mínimo o risco de conflito de in-

teresses” (art.º 309.º /1 na redação original);

Em situação de conflito, o dever de “agir

por forma a assegurar aos seus clientes um

tratamento transparente e equitativo” (art.º

309.º /2 na redação original);

O dever de prevalência dos interesses dos

clientes (art.º 309.º/ 3 na redação original);

A obrigação de colocar à disposição dos cli-

entes os valores mobiliários pelo preço de

aquisição, quando o intermediário realize

operações para satisfazer ordens de clientes

(art.º 309.º/ 4 na redação original).

Com a transposição da DMIF 1 e da Diretiva de

Execução, operada pelo DL n.º 357-A/2007, 31

de outubro, este regime sofreu uma profunda

alteração, passando o artigo 309.º do CVM a

conter os “Princípios gerais”, tendo sido intro-

duzidos novos artigos – art.º s 309.º- A a 309.º

G do CVM - com “deveres instrumentais”60:

a) De organização;

b) De planeamento e execução da política

de conflitos de interesses;

c) De recenseamento e de comunicação.

a) Deveres de organização61

Na referência à natureza da política em matéria

de conflitos de interesses impõe-se que esta

deve ser adequada à dimensão e organização do

59- Câmara, Paulo “Conflitos de interesses …”, pp. 24 60- Câmara, Paulo “Conflitos de interesses …”, pp. 26 61- A par do regime referido, a reformulação de toda a Seção III (Organização e exercício) do Capitulo VI do CVM, reflete a preocupação de limitar a ocorrência de conflitos de interesses entre o intermediário financeiro e os Clientes, em particular na negociação por conta própria, salientando-se:

A imposição do princípio da segregação patrimonial com a clara distinção em todos os atos que pratique e nos registos contabilísticos e de operações entre os bens pertencentes ao seu património e os bens pertencentes ao património de cada um dos clientes (art.º 306.º /1 do CVM);´

A obrigatoriedade de conservação dos registos e contas de modo a permitir, em qualquer momento e de modo imediato, distinguir os bens pertencentes ao património de um cliente, dos pertencentes ao património de qualquer outro cliente, bem como dos bens perten-centes ao património do intermediário financeiro (art.º 306.º /5/al a) e 307.º do CVM);

O dever de manter os registos e contas organizados de modo a garantir a sua exatidão e, em especial, a sua correspondência com os instrumentos financeiros e o dinheiro dos clientes (art.º 306.º /5/al b) do CVM);

A necessidade de autorização expressa dos Clientes para que o intermediário financeiro possa dispor, no seu interesse ou no interesse de terceiros dos instrumentos financeiros pertencentes aos Clientes, (art.º 306.º /3 e 306.º B do CVM);

O dever de colocar à disposição dos Clientes os instrumentos ou dinheiro de/para operação sobre os mesmos no próprio dia em que esses valores estejam disponíveis na conta do intermediário ou até ao dia seguinte se as regras do sistema de liquidação não o permi-tirem mais cedo (art.º 306.º D/ 1 do CVM);

O dever de abstenção de incitar os seus clientes a efetuar operações repetidas sobre instrumentos financeiros, incluindo a concessão de crédito, ou de as realizar por conta deles, quando tais operações tenham como fim principal a cobrança de comissões ou outro objetivo estranho aos interesses do cliente (art.º 310/1 do CVM);

A proibição de receção/oferta por parte do intermediário de financeiro de “benefícios ilegítimos” remuneração, comissão ou benefício não pecuniário - relativos à prestação de serviço em causa (art.313.º do CVM).

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71 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

intermediário financeiro (art.º 309.º- A/1 do

CVM).62.

Assumirá particular relevância a estrutura so-

cietária adotada e a existência de sociedades

dominadas pelo intermediário financeiro fora

de território comunitário, atendendo à negocia-

ção de instrumentos financeiros e respetiva

contabilização, quer na casa mãe quer nesses

estabelecimentos.

b) Deveres de planeamento e execução da

política de conflitos de interesses

Os intermediários financeiros passaram a ser

obrigados a adotar uma política de conflitos de

interesses, reduzida a escrito (art.º 309.º-A/ 1 e

3 do CVM):

Adequada à sua dimensão, à sua organização

e aos serviços efetivamente prestados, com

especial atenção para a complexidade das

atividades desenvolvidas (art.º 309.º-A/ 1 do

CVM);

Com identificação, relativamente às ativida-

des de intermediação financeira específicas,

das circunstâncias que constituem ou podem

dar origem a um conflito de interesses (art.º

309.º-3/ al. a) do CVM);

Especificando os procedimentos a seguir e

as medidas a tomar, a fim de gerir esses con-

flitos (art.º 309.º-3/ al. b) do CVM).

A política de conflitos de interesses aplica-se a

todos os colaboradores que atuem em nome do

intermediário financeiro, de forma direta ou

indireta (subcontratados ou outros em regime

de prestação de serviços).

c) Deveres de registo e de comunicação

Fixou-se a implementação de procedimentos

para manter e atualizar regularmente os registos

de todos os tipos de atividades de intermediação

financeira, realizadas diretamente pelo interme-

diário financeiro ou em seu nome (com especial

atenção para o regime de subcontratação previs-

to nos artigos 308.º e seguintes do CVM) - que

poderão originar um conflito (Art.º 309.º-C do

CVM).

Em matéria de deveres de comunicação o inter-

mediário passou a estar obrigado a:

a) Prestar informação quando à “origem e à

natureza de qualquer interesse” que tenha

ou que qualquer pessoa, que em nome dele

aja possa ter, no serviço a prestar, sempre

que as medidas organizativas adotadas em

matéria de conflito de interesses “não sejam

suficientes para garantir, com um grau de

certeza razoável, que serão evitados o risco

de os interesses dos clientes serem prejudi-

cados” (art.º 312.º/1/c) do CVM);

b) Efetuar uma descrição “ainda que apresen-

tada sinteticamente, da política em matéria

de conflitos de interesses seguida”, para

além de ter de prestar todas as informações

adicionais que lhe sejam solicitadas (art.º

312.ºC/1/h) do CVM), quando negocie com

investidores não qualificados.

9. Conflitos associados à intervenção

como contraparte

A prevenção de conflito dos interesses dos in-

termediários e dos clientes, nas situações em

que os primeiros intervêm como contraparte

dos segundos, passa pela autorização ou confir-

mação dos negócios celebrados por parte dos

Clientes (art.º 346/ 1 do CVM).

No direito dos valores mobiliários existe uma

situação de conflito dado que, “sendo-lhe per-

mitido atuar como contraparte, o intermediário

terá sempre ínsito à sua atuação um interesse

diretamente oposto ao do cliente. Essa oposi-

ção direta faz colocar ao intermediário a inter-

rogação de se deverá atuar em prossecução do

interesse do investidor, ou se atuará de acordo

com os seus interesses ” 63.

Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 71

62- Atendendo à integração do intermediário financeiro em grupos societários foi imposto que a política de conflitos deve ter em conta “quaisquer circunstâncias que são, ou deveriam ser, do conhecimento” do intermediário que sejam “suscetíveis de originar um conflito de interesses decorrente da estrutura e atividades comerciais de outras sociedade do grupo” (art.º 309.º-A/2 do CVM). 63- Leitão, Luís Menezes, “Atividades de Intermediação Financeira…”, pp. 137

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72 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

9.1 Negócio consigo mesmo

No direito civil esta matéria reduz-se à figura

do “contrato consigo mesmo” (261.º Código

Civil), sendo anulável o negócio celebrado pelo

representante consigo mesmo.

A título excecional, o negócio será válido desde

que:

O representado tenha especificadamente

consentido na celebração64, ou

O negócio exclua por sua natureza a possibi-

lidade de um conflito de interesses.

A consagração das exceções enunciadas leva a

que o “conflito de interesses deva ser entendi-

do, no fundo, como um conflito entre vontades

ou fins predeterminados pela vontade predeter-

minada do representado” (…) e os potenciais

visados pelo representado (no sentido de que o

conflito de interesses entre o representante e o

representado) sendo, na verdade, um conflito

entre vontades”65.

9.2 Autorização do negócio

No direito dos valores mobiliários, o legislador

consagrou a permissão do negócio desde que o

cliente, “por escrito”, o tenha “autorizado ou

confirmado” (art.º 346/1 do CVM).

O regime da autorização prévia ou da confirma-

ção do negócio tem subjacente o cumprimento

do dever de transparência previsto no art.º

309.º/2 do CVM, uma vez que o intermediário

terá sempre de interagir com o cliente, cumprin-

do esse dever antes ou depois da realização do

negócio.

“Assim, quando pretenda obter a autorização

prévia do cliente, o intermediário financeiro

deve informá-lo de que pretende agir como sua

contraparte no negócio fora de mercado,

indicando o preço pelo que está disposto a

comprar ou a vender os valores, bem como o

preço de mercado dos mesmos, caso este seja,

respetivamente, superior ou inferior àquele. O

cliente deve ficar perfeitamente esclarecido

quanto aos termos da operação e suas implica-

ções designadamente, patrimoniais” 66.

Relativamente ao regime da autorização, consi-

dero útil a seguinte precisão concetual efetuada

por Pedro Leitão Pais de Vasconcelos67, no sen-

tido de estarmos perante uma autorização cons-

titutiva, enquanto “ato destinado especifica-

mente a provocar, em conjunto com a autono-

mia privado do autorizado, a aquisição de legi-

timidade por parte deste, através da paralisa-

ção dos efeitos de defesa da situação jurídica

do autorizante e da reflexa constituição, na es-

fera jurídica do autorizado, de uma posição

jurídica de beneficiário dessa paralelização, o

que possibilita a sua atuação”.

Este Autor efetua a distinção entre o regime

jurídico da autorização e o regime jurídico sub-

jacente à representação típica de emissão de

uma procuração, nos seguintes termos:

Enquanto o autorizado atua em nome próprio, o

representante age em nome alheio e não por sua

própria conta, declarando “que os efeitos do

negócio são dirigidos à esfera do dominus”68.

Por outro lado, a confirmação do negócio apro-

xima-se da aprovação, dado que ocorre posteri-

ormente à sua realização, e não se confunde

64- Serra, Adriano Vaz “Contrato Consigo mesmo” pp.227, “Afigura-se conveniente exigir uma autorização clara e específica do repre-sentado, pois qualquer não monstra suficientemente que este quis autorizar o contrato do representante consigo mesmo e teve consciência do risco que corria”. 65- Albuquerque, Pedro, A representação voluntária … pp. 935, nota 1477 66- Borges, Sofia Leite, “O conflito de interesses…”, pp. 400 67- Vasconcelos, Pedro Leitão Pais de, “ A Autorização”, pp. 152 68- Vasconcelos, Pedro Leitão Pais de, “ A Autorização”, pp. 287

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73 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

com a ratificação, “especificamente destinada a

cessar a ineficácia causada pela falta de pode-

res de representação”69.

Cumpre com o disposto no citado artigo 346.º/1

do CVM o intermediário financeiro que obte-

nha autorização (prévia) do cliente para a cele-

bração do negócio ou a sua confirmação

(aprovação).

A autorização ou confirmação do negócio jurí-

dico por parte do Investidor não o impede de vir

a questionar o intermediário financeiro pelos

efeitos jurídicos desse mesmo negócio.

Por exemplo, quando toma conhecimento de

que o preço de compra ou venda era superior ao

preço de mercado. Nesse caso, o cliente pode

recorrer judicialmente, invocando a ilicitude do

ato porque contrário ao principio da prevalência

dos interesses do intermediário sobre os seus

interesses70.

9.3 Da invalidade e da ineficácia

E se o cliente não autorizar o negócio?

Poderá questionar-se se estaremos perante uma

situação de invalidade ou de ineficácia.

Tratando-se de uma situação de invalidade, o

negócio será nulo ou anulável?

A opção por uma situação de nulidade poderá

ser considerada excessiva tendo em conta: (i) a

natureza dos interesses em causa, já que não se

trata de questões de ordem pública; (ii) o facto

de estar em causa a tutela de interesses privados

e não públicos; e (iii) a ausência de uma solu-

ção idêntica para situações semelhantes no di-

reito civil.

Será então o negócio anulável?

Verificando-se que em situações paralelas no

direito civil, a propósito do negócio consigo

mesmo, o legislador optou pela anulabilidade

(art.º 261.º Código Civil).

Esta opção seria consentânea com o direito co-

mum, aplicando-se analogicamente do regime

do contrato consigo mesmo (art.º 261.º do

Código Civil):

Os interesses do cliente estariam sempre

acautelados, já que, antes de intentar a ação de

anulabilidade poderia, se o entendesse oportu-

no, concluir pela confirmação do negócio,

sanando assim a invalidade (art.º 288.º do

Código Civil)71.

Salienta-se, no entanto, que sendo o regime em

análise datado de 1999, o legislador não optou

pela consagração de um regime da invalidade

idêntico72.

Uma última hipótese será a arguir da ineficácia

do negócio.

Em termos da discussão em torno do negócio

consigo mesmo, a ineficácia chegou a ser

Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 73

69- Vasconcelos, Pedro Leitão Pais de, “ A Autorização”, pp. 321 Refere o Autor a propósito da ratificação: “se falta a titularidade do poder de representação o agente não terá legitimidade para praticar o ato de representação pelo que o ato será parcialmente ineficaz na parte afetada pela ilegitimidade, não sendo os seus efeitos dirigidos à esfera jurídica do dono do negócio. Ou seja, o ato será ineficaz relativamente ao dono do negócio” (pp. 297). 70- Borges, Sofia Leite, “O conflito de interesses…”, pp. 402 71- Neste sentido Borges, Sofia Leite, “O conflito de interesses…”, pp. 403 72- Carlos Ferreira de Almeida, presidente dessa Comissão, discorda da opção pela anulabilidade dos negócios com a seguinte argumenta-ção, no âmbito do anterior Código do Mercado dos Valores Mobiliários: “Não há fundamento para a sua aplicação directa, porque, não agindo o intermediário financeiro como representante, o acto não se configura como contrato consigo mesmo em sentido técnico. Também não se justifica a sua aplicação analógica, porque a razão de ser da anulabilidade cominada por aquele preceito reside na existência potencial (ex ante) de conflito de interesses e não no modo como tal conflito em concreto se resolve (ex post). (…) A violação das aludidas regras não tem aliás qualquer efeito jurídico directo sobre o contrato de compra e venda. Admitida a licitude deste, o comissário intervém nele sob as vestes e com a liberdade negocial de qualquer comprador. O efeito da inobservância dos referi-dos “deveres gerais” incide antes sobre as obrigações decorrentes dos contratos de mandato celebrados pelo intermediário financeiro com os seus clientes, podendo envolver cumprimento defeituoso das obrigações deles decorrentes. Em relação ao cliente que é contraparte no contrato de compra e venda, se o preço do contrato for pior do que o preço corrente do mercado. Em relação a outros clientes, se o contrato tiver por efeito a perda de oportunidade de negócio. Em qualquer caso, a eventual obrigação de indemnizar deve ser considerada no âmbito da responsabilidade civil contratual.”, in “Transacções por conta alheia…”, pp.300.

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74 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

considerada a melhor solução: Vaz Serra defen-

dia, antes da elaboração do Código Civil em

1966, a propósito do negócio consigo mesmo,

que seria a desconsideração do negócio a me-

lhor solução, salientando que a anulação consti-

tuiria “um incómodo para o representado, que

se verá muitas vezes levado a abster-se de fazer

anular o contrato”73.

Em matéria de representação sem poderes, con-

sidera-se ineficaz em relação ao representado, o

negócio que “uma pessoa, sem poderes de re-

presentação, celebre” em seu nome, que aquele

não o ratificar (art.º 268.º / 1 do Código Civil).

Refere Pedro Leitão Pais de Vasconcelos a pro-

pósito do regime subjacente ao art.º 268.º do

Código Civil:

“Se faltar a titularidade do poder de represen-

tação o agente não terá legitimidade para pra-

ticar o ato em representação pelo que o ato

será parcialmente ineficaz na parte afetada

pela ilegitimidade, não sendo os seus efeitos

dirigidos à esfera jurídica do dono do negó-

cio”74.

(…)

“ A ratificação provoca, à posteriori, mas com

efeito retroativo, o efeito de vinculação da pes-

soa em nome de quem o agente praticou o ato.

Não se trata de uma concessão retroativa de

poder de representação, mas sim de uma ratifi-

cação que torna certa a situação jurídica”75.

Considero que, na situação em análise, caso o

intermediário financeiro, autorizado a atuar por

conta própria, celebre contratos como contra-

parte do cliente, sem que este autorize ou con-

firme o negócio, poder-se-á aplicar o regime do

direito civil da representação sem poderes, con-

siderando-se o negócio jurídico ineficaz relati-

vamente ao cliente.

Esta solução permitirá a manutenção dos diver-

sos negócios jurídicos celebrados num mercado

em que vários operadores atuam numa plurali-

dade de negócios por segundo.

9.4 Outras situações

Os negócios celebrados pelo intermediário fi-

nanceiro como contraparte de um investidor

qualificado não carecem de ser autorizados nem

confirmados (art.º 346.º / 2 - 1ª parte).

Tratando-se de um investidor qualificado (nos

termos do disposto no art.º 30º do CVM), pre-

sume-se que terá conhecimentos e experiência

suficientes para avaliar da bondade do negócio.

O mesmo se aplicará nos casos em que as ope-

rações devam ser “executadas em mercado re-

gulamentado, através de sistemas centralizados

de negociação” (art.º 346.º / 2 - 2ª parte).

Quando as operações sejam executadas em

mercado regulamento presume-se, que pela in-

tegridade das cotações e transparência que cara-

terizam essa forma de negociação, serão neutra-

lizados os efeitos prejudiciais do conflito de

interesses.

9.5 Cláusula geral de autorização

Uma última reflexão quanto à possibilidade de

consagrar o regime de autorização ou confirma-

ção do negócio sob a forma de cláusula geral,

inclusa nos contratos de intermediação financei-

ra celebrados entre os intermediários e os seus

clientes.

73- Serra, Adriano Vaz “Contrato Consigo mesmo”, pp. 246 74- Vasconcelos, Pedro Leitão Pais de, A Autorização, pp. 297 75- Vasconcelos, Pedro Leitão Pais de, A Autorização pp. 315 Refere ainda o Autor que “a ratificação provoca a eficácia do ato, mas não a aquisição superveniente e retroativa da legitimidade. A eficácia do ato ratificado sobre a esfera jurídica da pessoa em nome de quem foi praticado resulta da vontade desta. O titular da esfera jurídica afetada declara aceitar a eficácia vinculativa retroativa desse ato. Ou seja, ratifica o ato, assim se verificando a sua eficácia típica na esfera jurídica a que foi dirigido” (pp. 316).

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75 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Tratando-se de situações que geram sempre

conflitos entre os interesses dos clientes e dos

intermediários, em que o legislador decidiu

consagrar um regime excecional de autorização

prévia ou confirmação do negócio, a aceitação

de uma cláusula geral dificilmente se aceita.

Acresce que:

a) Estamos perante um regime excecional;

b) Não foi prevista a possibilidade de ser inclu-

ída essa cláusula geral ao contrário de outras

situações em que o legislador o referiu ex-

pressamente (art.º 321.º /2 do CVM);

c) A referência é feita de modo expresso à in-

tervenção do cliente que por escrito, autoriza

ou confirma “o negócio”;

d) A inclusão de cláusulas standard de negocia-

ção massificada não permitiria aos clientes a

tomada de consciência de forma esclarecida,

sobre o negócio a celebrar ou celebrado.

Face ao exposto, considero que não será aceitá-

vel uma autorização genérica de atuação com

contraparte do cliente.

10. Mecanismos de mitigação

dos conflitos de interesses associados

ao art.º 346.º do CVM

10.1 Procedimentos e medidas de segregação

orgânica e funcional

Considero útil equacionar as seguintes situa-

ções:

O departamento que gere a carteira própria

do intermediário partilha sistemas informáti-

cos e de registo de instrumentos financeiros

com o que gere a negociação por conta de

clientes e, ambos os departamentos reconci-

liam várias operações com o departamento

de gestão de carteiras.

O departamento que gere a negociação para

a carteira própria do intermediário tem co-

nhecimento de que o departamento de análi-

se está a efetuar um estudo sobre uma deter-

minada sociedade ou instrumento financeiro

tencionando recomendar aos respetivos cli-

entes ou ao público em geral, a compra des-

se título, e um dos diretores da área participa

no Comité semanal onde se tomam decisões

sobre recomendações de investimento.

Resulta claramente que, perante a ausência de

segregação orgânica e funcional, o departamen-

to que gere a carteira própria procurará tirar

partido dos conhecimentos que possui quanto às

ordens transmitidas pelos clientes, em particu-

lar, quando venha a atuar como contraparte.

Ainda que a transposição da legislação comuni-

tária não tenha trazido qualquer modificação no

regime específico dos conflitos associados à

atuação como contraparte dos clientes, por in-

termediários financeiros registados para a nego-

ciação por conta própria, as modificações men-

cionadas em capítulos anteriores, em particular,

no regime nacional da regulação dos conflitos

de interesses, provocaram alterações no exercí-

cio das atividades e serviços de intermediação

financeira.

Já antes de 2007 o intermediário financeiro es-

tava obrigado a incluir nos contratos de inter-

mediação financeira76 um capítulo sobre poten-

ciais conflitos potenciais ou existentes (art.º

321.º /5 do CVM).

10.2 Regime após DMIF

Após 2007, a par da identificação dos conflitos

de interesses, passou a ser necessário imple-

mentar mecanismos de mitigação e comunica-

ção aos investidores desses mesmos conflitos.

A mitigação de potenciais conflitos, em cada

uma das áreas de intermediação financeira, pas-

sou a exigir:

Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 75

76- Almeida, José Queirós, “Contratos de Intermediação Financeira …”, pp. 300

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76 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A segregação funcional e orgânica;

A delimitação das competências de colabo-

radores e responsáveis pelas diferentes áreas;

A identificação de mecanismos de verifica-

ção e reporte, de modo a impedir a circula-

ção da informação de cada uma das áreas

operativas ou de negociação.

Em particular, na negociação por conta própria,

a mitigação de potenciais conflitos resulta:

De uma segregação orgânica entre essa área

e todas a outras, sem comunicação de opera-

ções ou reportes de valores mobiliários;

De uma delimitação detalhada das funções

dos respetivos colaboradores e dirigentes,

que não poderão participar em decisões de

investimento relacionados com outros servi-

ços financeiros;

Da implementação de mecanismos de verifi-

cação e controlo com reporte de eventuais

conflitos às áreas de compliance;

Da criação de procedimentos que obstem à

comunicação da informação existente nesta

área a outras áreas operativas ou de negocia-

ção geradoras de conflitos.

Salienta-se que tão importante como identificar,

registar e gerir os interesses conflituantes é co-

municar a ocorrência, (ou potencial ocorrência),

destas situações aos Clientes, tendo em conta

que a informação “é função de um mercado

transparente, eficiente e credível”77, defenden-

do Eduardo Paz Ferreira que a “ausência de

informação poderá pôr em causa o funciona-

mento do mercado criando um risco sistémico

que retrairá os Investidores”78.

10.3. Mitigação de conflitos de interesses e

regras de transparência

A mitigação de possíveis conflitos só será pos-

sível com o cumprimento de regras de indepen-

dência.

Foi a propósito do conteúdo da política em ma-

téria do conflito de interesses que o legislador

impôs que, “na medida do necessário para as-

segurar o nível de independência requeri-

do” (art.º 309.º 5 do CVM), devem ser criados

e mantidos procedimentos:

Eficazes, para impedir ou controlar a troca

de informação entre as pessoas relevantes

(referidas no art.º 304.º /5 do CMV), sempre

que essa troca possa prejudicar os interesses

de um ou mais clientes (art.º 309.º /5/al. a)

do CVM): por exemplo, a troca de informa-

ção entre os colaboradores que desenvolvem

atividades de negociação por conta própria

e os que prestam consultoria para investi-

mento79;

De fiscalização distinta destas pessoas quan-

do as suas funções envolvam a realização de

atividades por conta de clientes e a atuação

em conformidade com os interesses do pró-

prio intermediário financeiro, situação típica

da negociação por conta própria (art.º

309.º /5/al. b) do CVM);

De eliminação de qualquer relação direta

entre a remuneração de umas e de outras

destas pessoas, quando envolvidas em ativi-

dades distintas, e sempre que possa surgir

um conflitos de interesses entre essas ativi-

dades (art.º 309.º /5/al. c) do CVM): por

77- Ferreira, Amadeu José, Direito dos …, pp. 333 78- Ferreira, Eduardo Paz, “Informação e mercado …”, pp. 14, reforçando o autor que “é a existência de uma informação tão completa, verosímil e clara quanto possível que constitui a garantia essencial de funcionamento regular dos mercados”.

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77 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

exemplo, da relação direta entre remunera-

ção dos colaboradores afetos à negociação

por conta própria e os que estão afetos à

emissão de recomendações de investim

ento80.

Devem ainda ser implementadas medidas:

a) Destinadas a impedir ou a limitar qualquer

pessoa de exercer uma influência inadequada

sobre o modo como as pessoas relevantes

prestam atividades de intermediação finan-

ceira (art.º 309.º /5/al. d) do CVM);

b) Destinadas a impedir ou a limitar o envolvi-

mento simultâneo ou sequencial dessas pes-

soas em diferentes atividades de intermedia-

ção financeira, quando esse envolvimento

possa impedir a gestão adequada dos confli-

tos de interesses (art.º 309.º /5/al. e) do

CVM.

Se a “independência” for um valor consciencia-

lizado na cultura empresarial do intermediário

financeiro, e estiver ao nível do objetivo de

“obtenção de lucro”, será possível manter uma

eficaz segregação orgânica e funcional, com

mecanismos efetivos de mitigação e comunica-

ção de conflitos de interesses na negociação por

conta própria e por conta dos clientes.

11. O sistema de controlo interno81

na identificação e mitigação de conflitos

Os intermediários financeiros estão obrigados a

adotar e manter a sua organização empresarial

“equipada com os meios humanos, matérias e

técnicos necessários para prestar os seus servi-

ços em condições adequadas de qualidade, pro-

fissionalismo e de eficiência e por forma a evi-

tar procedimentos errados”82 (art.º 305.º /1 do

CVM).

Se mais nenhuma disposição existisse, poder-se

-ia retirar deste preceito que um sistema de con-

trolo eficaz e eficiente resulta uma organização

empresarial dotada:

Em termos de meios humanos – de colabora-

dores idóneos (i) em número ajustado aos

serviços de intermediação a prestar, (ii) com

conhecimentos profundos da organização e

das regras da intermediação financeira

(incluindo das práticas criminais e contra

ordenacionais); (iii) com competência técni-

ca relevante e (iv) um espirito de formação

contínua;

Relativamente aos meios materiais e técni-

cos83 – de sistemas informáticos e procedi-

mentos de transmissão de informação ajusta-

dos às necessidades e em contínuo aperfei-

çoamento em razão das prestações de servi-

ços a assegurar;

De procedimentos de segregação de funções,

mecanismos de controlo e de reporte efeti-

vos84, de forma a evitar o fluxo de informa-

ção de uma área para outra.

Ao nível da organização interna a mitigação

de conflitos de interesses em entidades inte-

gradas em “grupos financeiros” passa pela

adoção de estruturas societárias transparentes,

com uma clara identificação:

Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 77

80- Emissão de relatórios de análise financeira em que se formule, directa ou indiretamente, uma recomendação ou sugestão de investimen-to ou desinvestimento sobre um emitente de valores mobiliários, valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros e que se destinem a canais de distribuição ou ao público (art.º 12.º A do CVM). 81- O sistema de controlo interno engloba, na organização das atividades financeiras, a existência de um sistema de controlo do cumpri-mento (art.º 305.º-A), de Gestão de ricos (art.º 305.º B do CVM) e de Auditoria interna (art.º 305.º C do CVM). Vide sobre a matéria doutrina citada sobre Controlo Interno. 82- Refere Paulo Câmara, “Conflito de interesses…”, pp. 36 “Subjaz a estas orientações a ideia de que uma estrutura organizativa afinada contribui para a eficácia do desempenho e previne irregularidades. Mas não basta montar a estrutura; importa aplicar os esquemas orga-nizativos desenhados – isto é: fazê-los funcionar na prática”. 83- Salvaguarda-se a necessidade de ter em conta que os requisitos em matéria de meios informáticos e humanos (previstos nos art.º s 4.º e 5º do Regulamento da CMVM n.º 2/2007), exigidos a quando da concessão do registo, terão de ser observados ao longo do desenvolvimen-to das atividades e serviços e assumindo, nesta matéria, particular importância. 84- Santos, Gonçalo Castilho dos, A Responsabilidade Civil …. pp. 147, refere que estes deveres consistem na “criação de procedimentos de controlo interno relativamente ao acesso restrito à informação recolhida e produzida no seio da organização do próprio intermediário financeiro”.

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78 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Relativamente a cada entidade, das ativida-

des e serviços de intermediação prestados,

bem como das pessoas afetas á execução e

respetivo controlo;

De potenciais conflitos – sua origem e forma

de mitigação dentro do grupo financeiro;

Dos colaboradores afetos ao exercício de

cada uma das funções, em cada uma das en-

tidades, com particular relevo quanto funcio-

namento dos mecanismos de reporte hori-

zontal e vertical;

De regras limitativas de acumulação de car-

gos ou funções desempenhadas pelos mem-

bros dos órgãos de administração ou direção

nas várias sociedades do grupo.

A identificação dos conflitos em cada interme-

diário financeiro exigirá não só, o mapeamento

pormenorizado de todas as atividades e serviços

financeiros que está autorizado a prestar, mas

também o cruzamento de operações e colabora-

dores afetos às mesmas.

Em particular, na definição das regras de nego-

ciação como contraparte dos Clientes, o cum-

primento do disposto no art.º 346.º do CVM

passa pela obtenção da autorização ou confir-

mação de cada um dos negócios celebrados co-

mo contraparte do Cliente, conforme definido

anteriormente.

Definidos os mecanismos de prevenção e miti-

gação de conflitos de interesses:

Carecem de ser periodicamente verificados

os procedimentos de reporte e registo desses

mesmos conflitos (monotorização);

É necessário assegurar a existência de uma

fiscalização interna contínua - assegurada

pelas áreas do controlo do cumprimento, de

auditoria e órgão de fiscalização que funcio-

ne junto do Conselho de Administração –

dos procedimentos implementados tendo

como fim identificar, antes de qualquer outra

entidade, situações de conflito ou ausência

do cumprimento do disposto no art.º 346.º

do CVM.

Por último, reforça-se a necessidade de consci-

encialização (diária) imposta aos “titulares do

órgão de administração” de que, não estando

só ao serviço dos acionistas, desempenham fun-

ções em entidades de interesse público85.

Um sistema de controlo interno assente numa

efetiva segregação orgânica e funcional, com

um detalhe ajustado de procedimentos operati-

vos a observar por todos os colaboradores -

com especial atenção para a área de negociação

por conta própria - permitirá uma mitigação

efetiva do conflito de interesses entre interme-

diários financeiros e os seus clientes, sob super-

visão das diversas áreas de fiscalização interna

e externa.

A lei estabelece que os titulares do órgão de

administração devem avaliar a ”eficácia das

políticas, procedimentos e normas internas

adotados para cumprimento dos deveres referi-

dos nos artigos 305.º-A a 305.º-C”, de modo a

tomarem “medidas adequadas para corrigir

eventuais deficiências detetadas e prevenir a

sua ocorrência futura” (art.º 305.º D/ 2 do

CVM).

A manutenção do negócio passa por querer

cumprir a lei.

85- Nos termos do disposto no art.º 1/al. f) Da Diretiva 2014/56/EU de 16 são consideradas entidades de interesse pública as” Instituições de crédito” nos termos e definições respetivos.

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79 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

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Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 79

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Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 81

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82 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Introdução e Razão de Ordem

A recente transposição para o ordenamento

jurídico nacional da diretiva relativa aos

gestores de fundos de investimento alternativo

(“GFIA”) através do regime geral dos organis-

mos de investimento coletivo veio redefinir o

quadro regulatório a que os GFIA e, indireta-

mente, os próprios fundos de investimento

alternativo (“FIA”), se encontram sujeitos.

A referida alteração legislativa carece, pelo im-

pacto imediato no enquadramento legislativo

nacional aplicável aos GFIA, de identificação

das principais alterações introduzidas ao regime

jurídico anteriormente em vigor e da correspon-

dente reflexão sobre o caminho adotado pelo

legislador nacional na transposição da referida

diretiva.

Atendendo ao elevado número de disposições

em causa e à extensão e profundidade com que

as mesmas são tratadas nos diplomas legais re-

levantes, reconhecemos a impossibilidade de

elaborar um trabalho que trate de forma exausti-

va o manancial de questões levantadas com a

aprovação da diretiva e com a correspondente

transposição, motivo pelo qual considerámos

preferível limitar o escopo do presente trabalho

à análise de questões selecionadas, esperando

ser esta a melhor opção, por se nos afigurar

conferir ao presente trabalho uma maior utilida-

de prática, por um lado, e um maior interesse

académico, por outro lado.

Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo ao Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo: Regime Atual e Perspetivas Futuras

Alexandre Norinho de Oliveira

Page 83: CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS · de aquisição das acções pertencentes aos sócios da sociedade X, por preço igual à cotação mé-dia ponderada de tais valores

83 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Capítulo I. O Contexto da Diretiva

1. O Contexto da Diretiva

As raízes da regulação dos fundos de investi-

mento harmonizados remontam à primeira ver-

são da Diretiva UCITS1. No entanto, a referida

Diretiva deixou de parte os fundos de investi-

mento não harmonizados (fundos de investi-

mento mobiliários não harmonizados, fundos de

investimento imobiliário e fundos de capital de

risco), os quais, pela sua elevada heterogeneida-

de, se revelam de regulação bem mais comple-

xa e têm sido, até bem recentemente, deixados à

margem da legislação da UE, um pouco à seme-

lhança do que acontece um pouco por todo o

mundo2. De facto, os fundos de investimento

não harmonizados, ou FIA, caracterizam-se por

serem um fenómeno praticamente desconhecido

ou ignorado pelos legisladores das várias juris-

dições do globo3/4.

No entanto, os organismos de investimento al-

ternativo são figuras incontornáveis do sistema

financeiro global pelo volume de ativos geridos,

por representarem uma parte significativa da

negociação em mercados de instrumentos finan-

ceiros e pelo elevado dinamismo e influência

que têm no governo societário das empresas5.

Contudo, a crise financeira global veio expor a

extensão de um conjunto de riscos associados à

atividade de gestão de fundos de investimento

alternativo. Estes riscos variam, inter alia, entre:

(i) riscos sistémicos ou macro-prudenciais, en-

tre os quais destacamos a exposição direta do

sistema bancário ao setor da gestão de FIA; (ii)

riscos micro-prudenciais; (iii) inadequada sal-

vaguarda da proteção do investidor, designada-

mente ao nível da transparência na política de

investimento, política de gestão de riscos e pro-

cedimentos internos; (iv) eficiência e integrida-

de do mercado; e (v) impacto nas sociedades

controladas pelos GFIA6.

O reconhecimento de tais riscos veio redobrar a

perceção da necessidade de regulação da respe-

tiva atividade.

A criação de um quadro legal europeu aplicável

aos GFIA dá um passo decisivo com a publica-

ção do Livro Verde da Comissão Europeia so-

bre o reforço do enquadramento que rege os

fundos de investimento na UE7.

Todavia, a crise financeira associada ao

sub-prime é a verdadeira responsável por uma

notável aceleração na reforma legislativa de

todo o setor financeiro destinada a reforçar o

quadro regulatório que lhe é aplicável, incluin-

do aos organismos de investimento coletivo.

Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 83

1- Diretiva 85/611/CEE do Conselho, de 20 de dezembro de 1985, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrati-vas respeitantes a alguns organismos de investimento coletivo em valores mobiliários (OICVM). 2- Bessa, T., Crise, regulação e supervisão de hedge funds, Revista de Direito das Sociedades, n.º 3-4, Ano II, Almedina, 2010, p. 889. 3- Engrácia Antunes, J., Os “Hedge Funds” e o Governo das Sociedades, Direito dos Valores Mobiliários, Vol. IX, Coimbra Editora, 2009, p. 33. 4- Pela clareza da exposição, citamos Calvão da Silva, que indica que fundos deverão ser considerados como englobados pelos fundos de investimento não harmonizados, pelos fundos de investimento alternativo: “Por isso mesmo, porque não harmonizados pela Directiva, estes organismos são conhecidos como Fundos de Investimento Alternativo (FIA), em que se incluem hedge funds, fundos de capitais de investimento em participações privadas (private equities) e outros organismos de investimento em capital de risco, fundos imobiliários (real estate funds), fundos de matérias- -primas (commodity funds), fundos de investimento em infra-estruturas (infrastructure funds), etc”. Calvão da Silva, J., OICVM – Organismos de Investimento Colectivo em Valores Mobiliários, Revista Online da Banca, Bolsa e Seguros, n.º 1, outubro de 2014, p. 30. 5- Considerando (1) da Diretiva. 6- Comissão Europeia, Proposal for a Directive of the European Parliament and of the Council, on Alternative Investment Fund Managers and amending Directives 2004/39/EC and 2009/../EU, COM(2009), p. 2-3. 7- Livro Verde da Comissão Europeia sobre o reforço do enquadramento que rege os fundos de investimento na UE (SEC(2005)947), que poderá ser consultado através do seguinte link, acedido no dia 06.07.2015: http://www.cmvm.pt/pt/Legislacao/ConsultasPublicas/ComissaoEuropeia/Documents/aa85ed58f4564d33b1e8dd786fbb96cb050714_pt.pdf

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84 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

De facto, sob o impulso do G20, desde a Cimei-

ra de Washington, realizada no final do ano de

2008, o Conselho de Estabilidade Financeira

propôs diversas medidas destinadas a aumentar

a estabilidade do sistema financeiro, entre as

quais se conta a extensão da regulação aos or-

ganismos de investimento alternativo.

Ao nível da UE, o quadro legal que viria a ser

proposto e aprovado tem como objetivo dar

resposta às preocupações manifestadas ao mais

elevado nível8 na sequência da crise financeira

global, relativamente à eficácia do quadro legal

da UE em vigor aplicável aos FIA e, em parti-

cular, à alegada falta de regulação da atividade

desenvolvida pelos gestores de FIA9. A elevada

heterogeneidade dos FIA e a consequente difi-

culdade em alcançar a sua harmonização foi um

dos motivos que levou o legislador da UE a

optar por regular a atividade dos GFIA, ao in-

vés de regular diretamente os FIA, cuja regula-

ção é, ainda hoje, confiada aos vários EM.

Com efeito, como parte do esforço reformista

do ambiente regulatório na UE e no contexto

de idênticas reformas levadas a cabo à escala

global10, a Comissão apresentou uma proposta

de diretiva11, a qual viria a ser aprovada, no fi-

nal de um longo processo legislativo, como Di-

retiva 2011/61/UE, do Parlamento Europeu e do

Conselho, de 8 de junho de 2011, relativa aos

gestores de fundos de investimento alternativos

e que altera as Diretivas 2003/41/CE e 2009/65/

CE e os Regulamentos (CE) n.º 1060/2009 e

(UE) n.º 1095/2010 (a seguir, a “Diretiva”).

Sensivelmente um ano e meio após a aprovação

da Diretiva, foi aprovado o Regulamento Dele-

gado (UE) n.º 231/2013 da Comissão, de 19 de

dezembro de 2012, que complementa a Diretiva

2011/61/UE (a seguir, “Regulamento Delega-

do”). E o dia 15 de maio de 201 viu a aprova-

ção do Regulamento de Execução (UE) n.º

447/2013 da Comissão, que estabelece os pro-

cedimentos para os GFIA que optem por ser

abrangidos pela Diretiva 2011/61/UE do Parla-

mento Europeu e do Conselho, bem como do

Regulamento de Execução (UE) n.º 448/2013

da Comissão, que estabelece um procedimento

para determinar o Estado-Membro de referência

de um GFIA extra-UE nos termos da Diretiva

2011/61/UE do Parlamento Europeu e do Con-

selho.

Um dos principais objetivos da Diretiva é o es-

tabelecimento de um quadro regulatório único

aplicável aos gestores de organismos de investi-

mento alternativo, capaz de assegurar a prote-

ção dos investidores, de promover a transparên-

cia em relação aos investidores e entidades su-

pervisoras, de criar as bases para uma eficaz

monitorização dos riscos sistémicos, com vista

a contribuir para uma maior solidez do sistema

financeiro e de desenvolver o mercado interno

dos GFIA com recurso ao regime de passaporte.

8- Cfr., em particular, o relatório Rasmussen, 2008, acessível através do seguinte link, consultado em 11.07.2015:

http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//NONSGML+REPORT+A6-2008-0338+0+DOC+PDF+V0//EN

9- A declaração de José Manual Durão Barroso, de 11 de novembro de 2010, à data Presidente da Comissão Europeia, é demonstrativa dos

objetivos na base da iniciativa legislativa em causa: “The adoption of the directive means that hedge funds and private equity will no longer

operate in a regulatory void outsider the scope of supervisors. The new regime brings transparency and security to the way there funds are

managed and operate, which adds to the overall stability of our financial system” (sublinhado da nossa autoria). “European Commission

Statement at the Occasion of the European Parliament Vote on the Directive on Hedge Funds and Private Equity” (Referência:

MEMO/10/573).

10- Refira-se, por exemplo, que disposições similares foram adotadas nos Estados Unidos da América com a entrada em vigor do

Dodd-Frank Act.

11- A versão inglesa da proposta apresentada pela Comissão poderá ser consultada através do seguinte link, acedido no dia 06.07.2015:

http://ec.europa.eu/internal_market/investment/docs/alternative_investments/fund_managers_proposal_en.pdf

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85 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

2. A transposição da Diretiva

para o ordenamento jurídico português

A Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro, transpõe

parcialmente a Diretiva, procede à revogação

do regime jurídico dos organismos de investi-

mento coletivo, aprovado pela Decreto-Lei n.º

63-A/2013, de 10 de maio, revoga o regime

jurídico dos fundos de investimento imobiliário,

aprovado pelo Decreto-Lei n.º 60/2002, de 20

de março, e aprova o regime geral dos organis-

mos de investimento coletivo (a seguir referido

como “RGOIC”).

O regime previsto no RGOIC é, por sua vez,

desenvolvido pelo Regulamento da CMVM n.º

2/2015 sobre organismos de investimento cole-

tivo (mobiliários e imobiliários) e comercializa-

ção de fundos de pensões abertos de adesão

individual (a seguir, “Regulamento 2/2015”)12.

A Diretiva também foi transposta para o orde-

namento jurídico nacional com a entrada em

vigor da Lei n.º 18/2015, de 4 de março, que

aprova o regime jurídico do investimento em

capital de risco, em empreendedorismo social e

em investimento alternativo especializado (a

seguir, “RJCR”). Para efeitos do presente traba-

lho, o impacto da transposição da Diretiva no

que concerne ao capital de risco não será abor-

dado. No entanto, e uma vez que as mesmas

disposições tiveram que ser transpostas para

ambos os diplomas, será legítimo considerar

que, pelo menos, parte das considerações do

presente trabalho também serão aplicáveis nu-

ma leitura do RJCR.

Capítulo II. Âmbito de Aplicação

do regime da Diretiva

1. Âmbito subjetivo

A Diretiva visa regular a atividade desenvolvi-

da pelos GFIA, i.e., visa regular o exercício da

atividade de gestão de FIA e não os FIA

propriamente ditos. A atividade de gestão

poderá ser exercida por uma entidade diferente

do FIA (heterogestão), ou pelo próprio FIA

(autogestão), sendo que no primeiro caso a refe-

rida legislação será aplicável à entidade terceira

à qual é confiada a gestão, enquanto no segundo

caso será aplicável ao próprio FIA, mas apenas

na medida em que exerce a atividade de gestão.

Por conseguinte, os FIA (excluindo, como

vimos, o exercício da atividade de gestão no

caso de FIA autogeridos) continuam a ser regu-

lados maioritariamente a nível nacional. A mo-

tivação subjacente a tal opção legislativa prende

-se com a dificuldade em harmonizar os FIA

atendendo à sua grande heterogeneidade, com o

simples facto, de índole prática, de a maior par-

te dos FIA terem sido constituídos e estarem

sediados fora do espaço europeu, e, ainda, com

o facto de boa parte das decisões que poderão

implicar riscos sistémicos serem adotadas pelas

entidades gestoras13.

A Diretiva aplica-se aos GFIA da UE e aos

GFIA extra-UE, independentemente de gerirem

FIA-UE ou FIA extra-UE14. Revela-se, para o

efeito, irrelevante o facto de estar em causa um

FIA de tipo aberto ou fechado e, bem assim, a

forma jurídica dos GFIA15.

12- Publicado em Diário da República, 2ª série, n.º 138, de 17 de julho de 2015. 13- Bessa, T., Crise, regulação e supervisão de hedge funds, Revista de Direito das Sociedades, n.º 3-4, Ano II, Almedina, 2010, p. 899. 14- Art. 2.º/1 da Diretiva. 15- Art. 2.º/2 da Diretiva.

Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 85

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86 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Contudo, embora a diretiva não seja aplicável

diretamente aos FIA, mas antes aos GFIA, a

definição de FIA afigura-se extremamente

abrangente e reveste uma elevada importância

prática. Senão vejamos.

Nomeadamente com vista a evitar a arbitragem

regulamentar (regulatory arbitrage) e de forma

a não deixar diferentes tipos de FIA de fora da

definição, o legislador optou por estabelecer

uma definição pela negativa, de acordo com a

qual estaremos perante um FIA sempre que não

esteja em causa um fundo harmonizado e seja

reunido “capital junto de um certo número de

investidores, tendo em vista investi-lo de acor-

do com uma política de investimento definida

em benefício desses investidores”16. A defini-

ção escolhida, ao ser tão abrangente, levanta um

conjunto de questões e coloca a dúvida sobre se

determinados produtos cairão no seu âmbito.

Determinar os contornos exatos da definição de

FIA revela-se particularmente determinante na

medida em que nela assenta, ainda que indireta-

mente, o próprio âmbito de aplicação da Direti-

va, dirigida aos GFIA. Aguarda-se, por isso,

uma importante contribuição da ESMA ao lon-

go do período de vida da Diretiva (e dos regi-

mes nacionais aprovados para proceder à cor-

respondente transposição), e também das pró-

prias autoridades de supervisão nacionais, em

coordenação com a ESMA, a este nível, de for-

ma a assegurar o aperfeiçoamento da definição

em causa17.

O âmbito subjetivo de aplicação da Diretiva

também deixa de fora as Sociedades Gestoras

de Participações Sociais (“SGPS”) e as entida-

des com fins específicos de titularização (art.

2.º/3 da Diretiva).

Escapam também ao âmbito de aplicação da

Diretiva os GFIA que giram um ou vários FIA

no quadro restrito de relações de grupo, i.e.,

cujos exclusivos investidores sejam o GFIA e a

respetiva subsidiária ou empresa mãe, sob con-

dição de nenhum dos investidores ser um FIA

(art. 3.º/1 da Diretiva). Contudo, assinala-se o

facto de o legislador nacional não ter consagra-

do esta disposição no RGOIC. Está em causa

uma opção legislativa questionável na medida

em que os principais valores que o regime que a

Diretiva visa tutelar, em particular a proteção

dos investidores e a prevenção dos eventuais

riscos sistémicos decorrentes da atuação dos

GFIA, não se deverão considerar ameaçados

pela atividade de gestão no âmbito exclusivo de

uma relação de grupo. Por este motivo, conside-

ramos que se revelaria mais adequado e propor-

cional aplicar um regime simplificado aos

GFIA neste caso específico, e eximi-los do

cumprimento de um conjunto de disposições

que resultam de transposição da Diretiva, e que

não se encontravam já anteriormente previstas

no RJOIC. No entanto, sublinhe-se que, em

bom rigor, a referida opção legislativa tem um

alcance prático limitado uma vez que várias

disposições e exigências que passaram a ser

aplicáveis às entidades gestoras com a imple-

mentação da Diretiva, já decorriam da própria

DMIF, tendo sido implementadas na ordem

jurídica nacional através do CdVM.

Em qualquer caso, independentemente de con-

siderações de fundo sobre a opção legislativa

adotada, importa reter que as relações de gestão

de FIA de escopo estritamente intragrupo não

escapam ao regime previsto no RGOIC, nem

beneficiam de um regime simplificado.

16- Art. 4.º/1, a) da Diretiva. 17- A título de exemplo, sublinhe-se o caso em que a ESMA, reconhecendo a elevada importância de especificar em maior detalhe os contornos da definição de FIA, esclareceu que, “[n]os casos em que um compartimento de investimento de uma empresa apresente todos os elementos presentes na definição de «FIA» no artigo 4.º, n.º 1, alínea a) da DGFIA (i.e. «organismos de investimento coletivo», «angariação de capital», «número de investidores» e «política específica de investimento»), tal facto deverá ser considerado suficiente para considerar que uma determinada empresa na sua totalidade é «FIA» nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea a) da DGFIA”. ESMA, Orienta-ções sobre conceitos-chave da Diretiva GFIA, ESMA/2013/611, p. 5, acessível através do seguinte link, consultado no dia 04.07.2015: http://www.esma.europa.eu/system/files/esma_2013_00600000_pt_cor.pdf

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87 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

2. De minimis: a aplicação de um regime

regulatório simplificado

A Diretiva prevê um regime simplificado para

os GFIA que giram carteiras de ativos que não

excedam determinados limiares, a saber, (i) de

100 milhões de EUR, independentemente do

recurso a alavancagem e (ii) de 500 milhões de

EUR (art. 3.º/2 da Diretiva).

A Diretiva impõe aos GFIA abrangidos pelo

regime simplificado o cumprimento das seguin-

tes obrigações: (i) registo; (ii) identificação no

momento de inscrição junto das autoridades de

supervisão competentes do EM de origem; (iii)

prestação de informações sobre as estratégias

de investimento dos FIA geridos no momento

de inscrição junto das autoridades competentes

do EM de origem; (iv) prestação regular de in-

formações às autoridades de supervisão, desig-

nadamente sobre as principais posições de ris-

co; e (v) notificação às autoridades de supervi-

são competentes sempre que deixem de estar

abaixo dos limiares relevantes para a aplicação

do regime simplificado de minimis (art. 3.º/3 da

Diretiva). Refira-se que as autoridades compe-

tentes dispõem de competência de supervisão e

de investigação adequada para garantir o cum-

primento das obrigações referidas (art. 46.º da

Diretiva).

Todavia, apesar de o leque de obrigações cons-

tante do regime simplificado ser claramente

menos exigente que o regime da Diretiva apli-

cado na íntegra, os GFIA abrangidos pelo regi-

me simplificado não beneficiam dos direitos

decorrentes da Diretiva (designadamente do

regime de passaporte18). Por este motivo, a

Diretiva deixa a porta aberta a que os GFIA,

uma vez ponderadas as vantagens e desvanta-

gens que daí possam decorrer, optem pela sub-

missão na íntegra ao seu regime19.

No momento de proceder à transposição do re-

gime da Diretiva, o legislador nacional optou

por não prever um regime simplificado no

RGOIC, tendo apenas previsto um regime com

tais características para as sociedades de capital

de risco, no RJCR20.

Consideramos que se trata de um ponto em que

a transposição em Portugal poderia ter ido mais

longe. Ao prever a aplicação do mesmo regime

regulatório a todos os GFIA, independentemen-

te do valor da carteira de FIA sob gestão, poder

-se-á ter previsto um regime que, ao aplicar a

mesma carga regulatória independentemente da

dimensão do GFIA em causa, peca pela despro-

porcionalidade para com os GFIA de reduzida

dimensão, sobretudo os GFIA que apenas pre-

tendem comercializar numa lógica interna, ex-

clusivamente no mercado português.

A razão de ser da previsão de um regime

simplificado pelo legislador europeu passará

pela conclusão de que a probabilidade de os

GFIA que se encontrem abaixo dos limiares

definidos darem origem a sérios problemas para

a estabilidade financeira é, atendendo à reduzi-

da dimensão da carteira de FIA sob a sua

alçada, particularmente reduzida21. Por este

motivo, o legislador europeu considerou

apropriado permitir a redução, por um lado,

dos custos transacionais (e.g., custos contratu-

ais) suportados pelas sociedades em causa,

bem como, por outro lado, dos custos

18- Todavia, tal não significa que o GFIA não possa comercializar FIA em outro EM, desde que o direito do EM de origem e do EM de destino permitam a referida comercialização. Cabe ainda a cada EM determinar se tal GFIA pode comercializar junto de investidores não profissionais. 19- Art. 3.º/4 da Diretiva. 20- Refira-se que, embora o RGOIC não preveja um regime de minimis, prevê a possibilidade de as próprias instituições de crédito levarem a cabo a atividade de gestão do FIA. Com efeito, em conformidade com o art. 65.º/2 do RGOIC, os FIA fechados também podem ser geridos por instituições de crédito, desde que disponham de fundos próprios não inferiores a €7,5 milhões, e os ativos que compõem as respetivas carteiras sob gestão não excedam no total o limiar de €100 milhões, independentemente do recurso ao efeito de alavancagem ou de €500 milhões. 21- Considerando 17 da Diretiva.

Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 87

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88 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

administrativos e burocráticos para as próprias

autoridades de supervisão22 em situações em

que estejam em causa acumulações de capital

de reduzida dimensão.

Para além do reduzido impacto sistémico de tais

sociedades, tem sido defendido que a imposição

da mesma carga regulatória aos GFIA com um

portfolio de menor dimensão é suscetível de

provocar um impacto negativo no seu cresci-

mento23. Com efeito, poderá revelar-se na práti-

ca particularmente difícil assegurar o cumpri-

mento do regime regulatório previsto na Direti-

va, que tem sido apontado como bastante exi-

gente24, em particular para sociedades de menor

dimensão. Acresce ao exposto o facto de, na

perspetiva de uma sociedade, os custos relacio-

nados com o exercício da função de compliance

apresentarem importantes economias de escala,

o que certamente contribui para conferir uma

vantagem competitiva acrescida a sociedades de

maior dimensão. Por estes motivos poderá ser

defendido que a não previsão de um regime

simplificado revelar-se-á, no mínimo, despro-

porcional.

Concebemos como alternativa à não previsão

tout court do regime de minimis o estabeleci-

mento de limiares inferiores aos da Diretiva,

adaptados à realidade económica portuguesa, à

semelhança, de resto, do que foi feito em rela-

ção ao RJCR. Todavia, a pura e simples elimi-

nação de tal regime simplificado não parece,

salvo meliore, ter sido a solução mais acertada.

3. Definições

Relativamente às várias definições constantes

quer da Diretiva, quer do RGOIC (resultado da

correspondente transposição), consideramos

necessário, pelo papel central que ocupa no

quadro legal em causa, analisar o conceito de

comercialização.

Comercialização vem definida no RGOIC como

“a atividade dirigida a investidores, no sentido

de divulgar para efeitos de subscrição ou propor

a subscrição de unidades de participação ou de

ações em organismo de investimento coletivo,

utilizando qualquer meio publicitário ou de co-

municação” (sublinhado nosso)25. Sublinha-se

que o conceito de comercialização para efeitos

do RGOIC (bem como da Diretiva) se encontra

limitado a valores mobiliários representativos

de capital social (equity issue), não abrangendo

emissão de dívida (debt issue)26.

Sublinhamos igualmente que o conceito de

comercialização parece deixar de fora situações

em que o investidor tenha expressado, por sua

livre iniciativa, vontade de ser contactado

pela entidade que comercialize fundos de inves-

timento com vista a ficar a conhecer os produ-

tos e serviços que tal entidade comercialize

(reverse solicitation exemption). A relação es-

tabelecida tendo por base tal manifestação de

interesse não solicitada parece escapar ao esco-

po das regras aplicáveis à atividade de comerci-

alização. Notamos, contudo, que tal exceção

22- Bernhardt, T., The European Alternative Investment Fund Managers (AIFMD) – an appropriate approach to the global financial crisis?, Faculdade de Direito da Universidade de Glasgow, 2013, p. 113. 23- Nabilou, H., The Alternative Investment Fund Managers Directive and Hedge Funds’ Systemic Risk Regulation in the EU, 2013, p. 26. 24- Antunes, M., Hedge Funds e o Activismo Societário, Faculdade de Direito da Universidade Católica de Lisboa, tese de mestrado não publicada, 2012, p. 35; Aramendía, M., Implementing the AIFMD: Success or Failure?, European Capital Markets Institute, n.º 34, março de 2013, p. 1. 25- Art. 2.º/1 c) do RGOIC. 26- Neste sentido, a Comissão pronunciou-se no seguinte sentido: As a matter of principle, the Commission considers the term "units and shares" to be generic and inclusive of other forms of equity of the fund, i.e. a stock or any other security representing an ownership interest in the fund. A resposta da Comissão indicada pode ser consultada através do seguinte link, acedido no dia 05.07.2015: http://ec.europa.eu/yqol/index.cfm?fuseaction=question.show&questionId=1169

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89 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

deverá ser interpretada como tendo um âmbito

estritamente coincidente com o âmbito da livre

manifestação de interesse por parte do investi-

dor, i.e., deverá estar limitada aos produtos e

serviços relativamente aos quais o investidor

manifestou interesse em ser contactado.

Capítulo III. Regras

de funcionamento dos GFIA

1. Autorização

De forma a assegurar uma supervisão efetiva de

todos os GFIA a operar na UE, de acordo com a

Diretiva as entidades que pretendam exercer a

atividade de gestão de organismos de investi-

mento alternativo deverão registar-se27 junto

das autoridades de supervisão competentes. Tal

pedido de autorização deverá ser dirigido à au-

toridade de supervisão do EM de origem, inde-

pendentemente do domicílio legal do FIA28/29,

seguindo-se, deste modo, o modelo de regula-

ção mais comum, que consiste em controlar na

fonte o exercício de atividade do gestor, i.e. no

local onde tem a sua sede social30.

As sociedades gestoras de FIA deverão apre-

sentar a seguinte documentação em relação a

cada organismo de investimento coletivo que

vise gerir31: (i) informações sobre a correspon-

dente estratégia de investimento, indicando a

política do GFIA no que concerne à utilização

de efeito de alavancagem, perfis de risco e ou-

tras características, bem como informação sobre

os EM ou países terceiros nos quais os FIA em

causa se encontrem, ou se espera que serão,

estabelecidos; (ii) informação sobre o local no

qual o FIA se encontra estabelecido; (iii) respe-

tivos documentos constitutivos; (iv) informação

quanto aos mecanismos de contratação de depo-

sitário; e (v) informações adicionais que devam

ser divulgadas aos investidores nos termos do

art. 221.º do RGOIC.

2. Avaliação de ativos

De entre os vários deveres fiduciários que o

GFIA deverá observar no exercício da sua ativi-

dade, encontra-se o dever de cuidado na gestão

dos fundos, o qual passa, designadamente, por

uma correta valorização do valor das UPs e a

sua correspondente divulgação.

Com vista a cumprir o referido dever fiduciário,

os GFIA devem implementar procedimentos

internos que permitam uma avaliação correta e

independente dos ativos sob gestão32. A avalia-

ção em causa deverá seguir as leis do país onde

o FIA esteja estabelecido e o regulamento ou

documentos constitutivos do FIA, devendo,

ainda, seguir o disposto no Regulamento Dele-

gado, visto que a Comissão, no uso da compe-

tência reconhecida na Diretiva33, adotou, no

Regulamento Delegado, medidas destinadas a

especificar e harmonizar as políticas e procedi-

mentos para a avaliação dos ativos dos FIA de

forma a garantir a aplicação de procedimentos

de avaliação sólidos, abrangentes e devidamen-

te documentados34.

27- Sublinhe-se que, por força do art. 5.º da Lei n.º 16/2015, as entidades responsáveis pela gestão de FIA já em atividade no momento da entrada em vigor do novo quadro legal tiveram que voltar a registar-se junto da CMVM e do BdP. 28- Arts. 6.º e 7.º da Diretiva. 29- De acordo com o art. 7.º da Diretiva, a ESMA mantém um registo público de todos os GFIA autorizados ao abrigo da Diretiva. 30- Bessa, T., Crise, regulação e supervisão de hedge funds, Revista de Direito das Sociedades, n.º 3-4, Ano II, Almedina, 2010, p. 922. 31- Art. 70.º do RGOIC. 32- Art. 19.º da Diretiva. 33- Art. 19.º/11 da Diretiva. 34- Art. 67.º ss. do Regulamento Delegado.

Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 89

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90 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A Secção IV do Título II do RGOIC regula o

exercício da função de avaliação de ativos. A

função de avaliação deverá ser desempenhada

com zelo, competência e independência35 por

um avaliador externo, independente do FIA e

do GFIA, ou pelo próprio GFIA quando este

faça uma separação funcional da gestão de car-

teiras e da função de avaliação e se assegure

que os evidentes conflitos de interesses que re-

sultarão de ter uma única entidade a desempe-

nhar ambas as funções sejam devidamente ate-

nuados36.

Justamente pelos interesses conflituantes em

presença, acreditamos que a primeira solução,

de votar a função de avaliação a um avaliador

externo, parece ser mais garantística dos inte-

resses dos investidores. Aliás, o facto de se pre-

ver expressamente, quando a avaliação de ati-

vos seja desempenhada pelo próprio GFIA, a

possibilidade de a CMVM exigir que os proce-

dimentos de avaliação utilizados sejam verifica-

dos por um auditor externo registado junto da

CMVM ou por outro avaliador externo37, cons-

titui claro reconhecimento de que tal opção de-

termina uma maior necessidade de salvaguarda

dos interesses dos investidores. A entidade ges-

tora será, desta forma, responsável pela correta

avaliação de ativos, bem como pelo cálculo do

valor global do FIA, independentemente de as

funções de avaliação de ativos terem sido confi-

adas a um avaliador externo38.

Sublinhe-se ainda a situação particular dos peri-

tos avaliadores de imóveis, que motivou a apro-

vação de regras próprias para o exercício de

atividade39.

3. Capital inicial e fundos próprios

Os requisitos de fundos próprios visam acaute-

lar a continuidade e regularidade do desempe-

nho da atividade pelos GFIA e, bem assim, co-

brir a responsabilidade profissional no exercício

de tal atividade40. Exige-se aos FIA que tenham

um capital mínimo de €300 000 ou de

€125 000, consoante sejam geridos interna ou

externamente41.

Sempre que o valor líquido global da carteira

sob gestão do GFIA ultrapasse o montante de

€250 milhões, recai sobre os GFIA a obrigação

de constituir uma reserva de fundos próprios

suplementares que equivalerá a 0,02% do mon-

tante em que a carteira exceda o referido limi-

ar42. No entanto, a soma da referida reserva su-

plementar com o capital inicial tem como limite

máximo o montante de €10 milhões43.

Com vista a cobrir eventuais riscos de responsa-

bilidade civil profissional decorrentes de atua-

ção negligente, os GFIA devem deter fundos

próprios suplementares suficientes, ou celebrar

um contrato de seguro para o efeito44.

35- Art. 93.º/2 do RGOIC. 36- Art. 94.º/1 do RGOIC. 37- Art. 94.º/3 do RGOIC. 38- Art. 95.º do RGOIC. 39- Aprovado pela Lei n.º 153/1025, de 14 de setembro, que regula o acesso e o exercício da atividade de peritos avaliadores de imóveis que prestem serviços a entidades do sistema financeiro nacional. 40- Considerando 23 da Diretiva. 41- Art. 50.º e 99.º/1 h) do RGOIC, que transpõem o disposto no art. 9.º/1/2 da Diretiva. 42- Art. 71.º/1 do RGOIC, o qual procede à transposição do art. 9.º/3 da Diretiva. 43- Art. 71.º/3 do RGOIC, que transpõe o art. 9.º/3 da Diretiva. 44- Art. 71.º/7 do RGOIC, que transpõe o art. 9.º/7 da Diretiva.

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91 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Refira-se, ainda, que a Comissão regula, no

exercício da competência que lhe é concedida

pela Diretiva45, relativamente aos fundos pró-

prios suplementares e/ou ao seguro de respon-

sabilidade civil profissional, as seguintes maté-

rias: (i) os riscos que deverão cobrir, (ii) requi-

sitos qualitativos em matéria de riscos de res-

ponsabilidade profissional; e (iii) cobertura de

riscos de responsabilidade profissional através

de fundos próprios complementares ou através

de seguro46.

4. Alavancagem

Com vista a acompanhar e monitorizar o recur-

so a técnicas de exposição ao risco e a evitar

que a utilização a tais procedimentos aumente o

risco sistémico do sistema financeiro, o quadro

legal aprovado pela Diretiva dedica particular

atenção ao efeito de alavancagem.

Os GFIA devem estabelecer os níveis máximos

de alavancagem em relação a cada FIA que ge-

rem, informação que deverá ser disponibilizada

quer aos investidores47, quer às entidades de

supervisão do EM de origem48. Tais obrigações

de comunicação visam promover a transparên-

cia em relação aos investidores, bem como a

capacidade das autoridades de supervisão de

controlarem eventuais riscos sistémicos49.

Caberá ao GFIA demonstrar que os limites no

que respeita ao recurso ao efeito de alavanca

para cada FIA são razoáveis e que são cumpri-

dos numa base contínua, enquanto, por seu tur-

no, as autoridades de supervisão do EM de ori-

gem do GFIA deverão determinar se, e em que

medida, o recurso ao efeito de alavanca contri-

bui para aumentar o risco sistémico no sistema

financeiro50. No entanto, na eventualidade de as

autoridades de supervisão competentes conside-

rarem excessivo o recurso ao nível de alavanca-

gem, poderão ser impostos, após terem notifica-

do a ESMA, o ESRB e as autoridades de super-

visão competentes do FIA em questão, e apenas

quando tal se revele necessário para assegurar a

estabilidade do sistema financeiro, limites ao

recurso a tal técnica de exposição ao risco ou

outras restrições à gestão que se revelem ade-

quadas51.

Capítulo IV. As entidades

relacionadas com os GFIA

1. Depositário

A separação entre a função de gestão e a função

de depósito tem sido apontada como uma im-

portante medida destinada a salvaguardar os

interesses dos investidores e justificada pelo

importante papel desempenhado pelos depositá-

rios na governação dos fundos de investimento

e pela natureza fiduciária da sua posição52. No

contexto desta divisão, é confiado ao depositá-

rio um papel essencial de custódia dos ativos

que lhes são confiados, e é estabelecido um

conjunto alargado de normas e de condições

que o depositário deverá observar no exercício

da função que lhe é confiada.

45- Art. 9.º/9 da Diretiva. 46- Arts. 12.º a 15.º do Regulamento Delegado. 47- De acordo com o art. 23.º/1 a) da Diretiva, deverão ser divulgados aos investidores as circunstâncias em que os GFIA poderão recorrer a alavancagem, tipos e fontes de efeito de alavanca permitidos e os riscos que lhes são inerentes. 48- De acordo com o art. 24.º/4 da Diretiva, os GFIA que giram FIA com recurso substancial a alavancagem deverão informar as autoridades de supervisão do EM de origem quanto ao nível global de recurso ao efeito de alavanca em relação a cada FIA sob sua gestão. 49- Baffi, E., Lattuca, D., e Santella, P., Extending the EU Financial Regulatory Framework to AIFM, Credit Derivatives, and Short Selling, 2011, p.8. 50- Art. 25.º/1 da Diretiva. 51- Art. 25.º/3 da Diretiva. 52- Câmara, P., Manual de Direito dos Valores Mobiliários, 2ª Ed., Almedina, 2011, p. 782.

Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 91

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92 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Para além do regime da Diretiva, transposto

para o RGOIC, o Regulamento Delegado por-

menoriza as funções e obrigações dos depositá-

rios de FIA e detalha as normas previstas na

Diretiva. Visto que o Regulamento Delegado é

uma fonte de direito com aplicabilidade direta,

as normas aí previstas deverão ser tidas em con-

sideração juntamente com as normas previstas

no RGOIC, motivo pelo qual serão indicadas

infra em conjunto com as normais nacionais

aplicáveis.

São confiados a um único depositário os ativos

que fazem parte da carteira dos organismos e

investimento coletivo (art. 120.º/1 do RGOIC)53, podendo exercer as funções de depositários

instituições de crédito e empresas de investi-

mento, desde que autorizadas a prestar os servi-

ços de registo e de depósito de instrumentos

financeiros por conta de clientes, sujeitas a su-

pervisão prudencial numa base contínua54.

A Diretiva prevê (art. 21.º/3) que os EM pode-

rão permitir, quando estiverem em causa FIA

sem direitos de reembolso que possam ser exer-

cidos durante o período de cinco anos (a contar

da data do investimento inicial), que as funções

de depósito possam ser desempenhadas por pro-

fissionais que desempenhem a função de depo-

sitário como parte das suas atividades profissio-

nais ou empresariais, relativamente às quais

estejam sujeitos à obrigação de registo profis-

sional (referido normalmente como depositary

lite-regime). Todavia, o legislador nacional

optou por não prever esta possibilidade, infeliz-

mente, a nosso ver, porquanto tratar-se-ia de

uma interessante oportunidade de retirar (ainda

que a título indireto) parte da pressão regulató-

ria que o novo regime veio colocar sobre os

GFIA.

Os depositários que atuem em Portugal deverão

estar estabelecidos em Portugal55/56 e deverão

cumprir, inter alia, os seguintes deveres (art.

121.º do RGOIC): (i) garantir o cumprimento

da lei, dos regulamentos e do disposto nos do-

cumentos constitutivos do FIA; (ii) guardar os

ativos, mantendo um registo atualizado dos

mesmos; (iii) executar as instruções emitidas

pela entidade gestora; (iv) assegurar que os par-

ticipantes recebem a contrapartida e rendimen-

tos que lhes sejam devidos; e (v) elaborar uma

relação de todas as operações levadas a cabo

por conta do FIA e um inventário discriminado

dos correspondentes ativos e passivos57.

Note-se que os deveres do depositário, no que

concerne à diligência com que deverão exercer

as funções que lhe são confiadas e segregar os

ativos sob custódia, encontram-se previstos em

maior detalhe nos arts. 85.º a 99.º do Regula-

mento Delegado. De entre os vários deveres do

depositário, previstos na Diretiva e especifica-

dos ou mesmo alargados no Regulamento Dele-

gado, consideramos particularmente esclarece-

dor da elevada importância conferida à figura

do depositário no contexto da relação entre in-

vestidor, entidade gestora e depositário, e da

função de verdadeiro censor58 da atividade de-

senvolvida pelo próprio gestor que é chamado a

53- O art. 21.º/1 da Diretiva dispõe expressamente que constitui obrigação do GFIA assegurar a nomeação de um único depositário para cada um dos FIA por si geridos. 54- Art. 120.º/2 do RGOIC. 55- No art. 120.º/3 do RGOIC o legislador nacional optou por não estabelecer o período transitório previsto no art. 61.º/5 da Diretiva, no qual se prevê a possibilidade de os EM permitirem a possibilidade de os GFIA recorrerem a depositários estabelecidos noutro EM até 22 de julho de 2017. Visava-se com a previsão do referido período transitório permitir aos EM o desenvolvimento de um corpo de entidades depositárias nacionais suficiente para responder às exigências a este respeito, em particular em EM onde o recurso a entidades depositárias estabelecidas noutros EM numa base regular teve como consequência o não desenvolvimento de depositários nacionais do EM em que o FIA esteja, também ele, estabelecido. Todavia, a aludida opção do legislador português ter-se-á prendido com o simples facto de os deposi-tários estrangeiros a atuar em Portugal o fazerem através de uma sucursal, o que significa que a preocupação que o legislador da UE visava acautelar não se justificava no caso específico de Portugal. 56- O art. 2.º/1, al. l) do RGOIC, define o conceito de “Estado em que se encontra estabelecido ou constituído” da entidade depositária como correspondendo ao Estado no qual se encontre a respetiva sede social ou sucursal. 57- O elenco de deveres enunciados no art. 121.º do RGOIC corresponde ao disposto no art.21.º/7/8/9 da Diretiva. 58- Aramendía, M., Implementing the AIFMD: Success or Failure?, European Capital Markets Institute, n.º 34, março de 2013, p. 3.

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93 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

a desempenhar, o facto de, para além de o ges-

tor ter que apresentar ao depositário todas as

informações relevantes para o exercício das

suas funções, ser-lhe concedida a prorrogativa

de aceder à contabilidade da entidade gestora e,

mesmo, de realizar visitas às instalações do ges-

tor (e às de qualquer prestador de serviços sub-

contratado pelo gestor, como por exemplo ava-

liadores externos). Apesar de ser possível consi-

derar que as competências de monitorização

poderão vir a ter um reduzido alcance prático, o

que, em todo o caso, apenas poderá confirmado

decorrido um suficiente período de tempo sobre

o início da implementação do presente regime

jurídico, a verdade é que a consagração de tais

competências simboliza a profunda alteração no

espírito regulatório na origem da própria apro-

vação do quadro legal em análise.

Recai sobre o depositário a responsabilidade,

perante o GFIA e os participantes, em caso de

perda dos instrumentos financeiros sob sua cus-

tódia (art. 122.º/1 do RGOIC), de devolver ao

GFIA um instrumento financeiro do mesmo

tipo ou o montante correspondente (art. 122.º/2

do RGOIC)59. O depositário responde ainda em

caso da ocorrência de qualquer prejuízo sofrido

pelos participantes que resulte de incumprimen-

to das obrigações que sobre ele impendam, em

caso de dolo ou negligência60.

O regime de responsabilidade do depositário

consagrado no RGOIC representa uma verda-

deira mudança relativamente ao Regime Jurídi-

co dos Fundos de Investimento Imobiliário,

aprovado pelo Decreto-Lei n.º 71/2010, de 18

de junho, e revogado com a entrada em vigor

do RGOIC, onde se dispunha que a sociedade

gestora e o depositário respondiam solidaria-

mente perante os participantes.

Resulta do exposto que assume uma importân-

cia acrescida determinar que instrumentos fi-

nanceiros, apesar de não poderem ser fisica-

mente entregues ao depositário, deverão ser

incluídos no âmbito das obrigações de custódia,

uma vez que estes estarão, como tal, sujeitos ao

regime de responsabilidade objetiva indicado.

De acordo com o art. 88.º do Regulamento De-

legado deverão ser incluídos no âmbito das

obrigações de custódia os seguintes instrumen-

tos financeiros: valores mobiliários que incluam

os que incorporam instrumentos derivados, ins-

trumento do mercado monetário ou unidades de

participação de organismos de investimento

coletivo. Estão em causa instrumentos que po-

derão ser mantidos numa conta em nome do

depositário e sobre os quais o depositário terá

controlo. Se é claro que os derivados financei-

ros admitidos à negociação em mercado regula-

mentado (listed derivatives) estarão abrangidos

pelo dever de custódia, já menos claro será o

caso específico em caso de acordos de garantia,

empréstimo de títulos e acordos de recompra. O

enquadramento a dar a estes casos torna-se par-

ticularmente problemático tendo em considera-

ção que o Regulamento Delegado faz depender

o dever de manter em custódia um instrumento

financeiro da sua titularidade por parte do FIA,

pelo que se conclui que o dever de custódia

apenas não será aplicável caso se verifique uma

verdadeira transferência da sua titularidade do

FIA para uma entidade terceira. Por este moti-

vo, será necessário analisar cada transação em

concreto para determinar a verificação de uma

verdadeira transferência da titularidade para

apurar o regime de responsabilidade aplicável.

Na falta de legislação harmonizada, esta ponde-

ração poderá revelar na prática uma dificuldade

acrescida e é assinalável o claro risco de ser

59- As regras em matéria de responsabilidade do depositário resultam da transposição do art. 21.º/12/13/14/15 da Diretiva. 60- O regime de responsabilidade do depositário é complementado pelas normas constantes dos arts. 100.º a 102.º do Regulamento Delega-do. O art. 100.º do Regulamento Delegado clarifica as situações em que se considera ter ocorrido uma verdadeira perda, ao passo que o art. 101.º do Regulamento Delegado identifica o elenco de requisitos cujo preenchimento é necessário para que o depositário possa afastar a responsabilidade pela perda, a saber, (i) que o evento que originou a perda não resulte de ato ou omissão do depositário ou de terceiro a quem a custódia tenha sido confiada; (ii) que o depositário não pudesse, razoavelmente, ter evitado o evento em causa; e (iii) que, pese embora o exercício das respetivas funções com a exigida diligência, o depositário não pudesse impedir a perda.

Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 93

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94 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

aplicado de forma não harmonizada em diferen-

tes EM, pelo que está em causa um ponto que

deveria merecer uma atenção acrescida por par-

te da ESMA, de forma a assegurar, sempre que

possível, uma interpretação o mais convergente

possível.

A introdução de um regime de responsabilidade

particularmente abrangente é suscetível de dar

origem a profundas alterações às práticas de

mercado em vigor61. De entre os vários desafios

lançados pela Diretiva a este nível, destacamos

o impacto da modificação do regime de respon-

sabilidade nos acordos relativos à delegação da

função de custódia. Com efeito, a prática de

mercado de os depositários delegarem o exercí-

cio da função de custódia nos corretores princi-

pais (prime broker), poderá conhecer importan-

tes alterações. O facto de o depositário ser o

responsável final pela devolução dos ativos sob

custódia significa, em termos práticos, que se

encontra exposto à possibilidade de o corretor

principal não devolver o instrumento financeiro

que lhe foi confiado, pelo que terá que precaver

tal possibilidade, o que terá, necessariamente,

impacto nos custos associados à prestação de tal

serviço. A existência de um acréscimo de cus-

tos resultante de uma maior exposição ao risco

e do facto de o cumprimento do regime aplicá-

vel ser mais exigente, surge como uma inevita-

bilidade. Resta apenas saber se tais custos serão

repercutidos no investidor final, GFIA, deposi-

tário ou próprio corretor principal.

Neste contexto, os depositários poderão encon-

trar nas delegações intragrupo uma resposta a

um eventual acréscimo de custos, em virtude

das quais poderão beneficiar de importantes

sinergias e, possivelmente, de um maior contro-

lo por força da harmonização das políticas e

procedimentos internos implementados nas

várias sociedades no âmbito de determinado

grupo económico. Assumirá neste quadro uma

importância digna de realce a necessidade de

prever, expressamente, nos contratos a celebrar

(e nos contratos atualmente em vigor) a possibi-

lidade de transferência da custódia sempre que

existam dúvidas quanto à capacidade de o cor-

retor principal contratado cumprir as disposi-

ções legais aplicáveis62.

Por último, o referido regime de responsabilida-

de justifica uma maior cautela com a seleção

dos corretores principais aos quais o depositário

confiará as funções de custódia. Por este moti-

vo, fará particular sentido ter um cuidado acres-

cido com a contratação de corretores principais

com elevada reputação (top tier), uma vez que

oferecerão acrescidas garantias no respetivo

exercício de atividade. Tal mudança tem poten-

cial para provocar um verdadeiro realinhamento

no setor.

O depositário apenas pode subcontratar em ter-

ceiro, através de delegação, o exercício das fun-

ções de guarda de ativos e apenas se as seguin-

tes condições forem verificadas: (i) não se tratar

de uma tentativa de evitar o cumprimento do

regime previsto no RGOIC; (ii) o depositário

demonstrar existirem razões objetivas para pro-

ceder a tal subcontratação63; (iii) a seleção e

contratação da entidade subcontratada tenha

sido realizada de forma diligente; e (iv) o depo-

sitário conseguir assegurar que a entidade sub-

contratada dispõe das estruturas e competências

necessárias e adequadas à complexidade das

funções em causa, esteja sujeita a regulamenta-

ção prudencial no que concerne à guarda de

instrumentos financeiros, segregue os ativos

dos clientes do depositário dos seus próprios

ativos e apenas reutilize os ativos em determi-

nadas circunstâncias64.

61- JP Morgan, AIFMD Depositary Liability – Perspectives, Investor Services, Whitepaper, julho de 2013, p. 1. 62- JP Morgan, AIFMD Depositary Liability – Perspectives, Investor Services, Whitepaper, julho de 2013, p. 3. 63- A título exemplificativo, o Regulamento Delegado refere, no art. 76.º/1, as seguintes razões objetivas: (i) otimização das funções e processos operacionais; (ii) poupança; (iii) conhecimento da entidade que beneficie da delegação quanto a mercados específicos; e (iv) acesso da entidade delegada a capacidades de negociação mundiais. 64- Art. 124.º do RGOIC, o qual procede à transposição do disposto no art. 21.º/11 da Diretiva.

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95 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

A nomeação de depositário pelo GFIA deve ser

realizada através de contrato sujeito a lei portu-

guesa (art. 127.º/1 do RGOIC), no qual deverá,

necessariamente, ser fixado o conjunto de ele-

mentos elencados no art. 128.º/1 do RGOIC e

no art. 83.º do Regulamento Delegado.

As profundas alterações introduzidas com a

entrada em vigor do regime descrito supra rela-

tivamente ao investimento alternativo e as ga-

rantias acrescidas que a segregação de ativos

representam para o investimento, poderão lan-

çar o mote para uma forte expansão da ativida-

de de gestão de fundos na UE, na medida em

que visam contribuir para a criação uma forma

mais simples e segura através da qual a banca

tradicional e setor segurador poderão canalizar

poupanças para investimento65.

2. Delegação

A delegação de funções de gestão deverá ser

justificável com base em razões objetivas66 e

não deverá, em caso algum, colocar em causa a

eficácia da supervisão do GFIA. Por outro lado,

a entidade na qual sejam delegadas funções no

contexto do presente regime deverá dispor de

recursos suficientes para desempenhar as fun-

ções que lhe são confiadas e estar registadas ou

autorizadas para o exercício de tais funções67.

Para não contornar a separação de funções im-

posta pelo quadro legal em causa, as entidades

que desempenhem funções de depósito em vir-

tude de uma delegação não poderão beneficiar

de delegação das funções de gestão.

3. Auditores

De forma a garantir a transparência e o rigor

dos relatórios anuais dos GFIA, a informação

contabilística aí apresentada deverá ser objeto

de relatório de auditoria68, preparado por audi-

tor registado na CMVM.

Recai sobre o GFIA o dever de garantir a rotati-

vidade dos auditores, de forma a acautelar situ-

ações de conflitos de interesses entre auditores

e FIA69. Não tendo sido previsto um regime

transitório durante o qual as novas regras não

seriam aplicáveis aos mandatos ainda em curso

dos membros dos órgãos sociais das sociedades

gestoras e dos auditores à data de entrada em

vigor do diploma. Assim sendo, dada a falta da

previsão de tal período transitório para os man-

datos dos membros dos órgãos sociais ou audi-

tores em curso, deverá considerar-se que as re-

gras previstas no RGOIC lhes serão automatica-

mente aplicáveis70.

Capítulo V. A Regulação

do Governo Societário dos GFIA

O bom funcionamento do governo dos fundos

de investimento passa, em boa medida, pelo

regular exercício de atividade da própria

entidade gestora, sobre a qual recai a responsa-

bilidade pela gestão eficaz e diligente do fundo.

Por este motivo, a promoção de um equilibrado

governo societário das entidades gestoras de

FIA enquadra-se numa clara intenção do legis-

lador em assegurar a promoção dos interesses

dos investidores e que qualquer decisão de

65- Aramendía, M., Implementing the AIFMD: Success or Failure?, European Capital Markets Institute, n.º 34, março de 2013, p. 3. 66- Art. 20.º da Diretiva. 67- Cumpre sublinhar que são igualmente aplicáveis as regras gerais em matéria de delegação previstas no CdVM. 68- Art. 22.º/3 da Diretiva e art. 131.º do RGOIC. 69- Art. 132.º do RGOIC. 70- Designadamente as disposições previstas no art. 132.º do RGOIC, onde se encontra prevista a rotatividade de mandatos dos auditores, e no art. 75.º do RGOIC, onde se encontra prevista a independência e regime de impedimentos aplicáveis aos membros dos órgãos sociais da sociedade gestora, bem como aos auditores.

Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 95

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96 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

investimento é adotada de forma esclarecida e

que é objeto de escrutínio interno, de forma a

assegurar o seu alinhamento com a política de

investimento da sociedade, evitar uma excessi-

va exposição ao risco e promover uma relação

de confiança entre entidade gestora e partici-

pantes dos fundos.

No presente capítulo são analisadas as princi-

pais alterações para o governo societário dos

GFIA resultantes da aprovação da Diretiva e da

correspondente transposição para o RGOIC.

1. Políticas de Remuneração

A previsão de políticas de remuneração desa-

justadas ao perfil de risco das entidades em cau-

sa tem sido apontada como um dos elementos

na origem da crise financeira71, na medida em

que influencia diretamente a agressividade das

estratégias de risco seguidas pelos gestores de

fundos. Com esta preocupação em mente, a Di-

retiva procurou lançar as bases para a previsão

de políticas de remuneração equilibradas e que

promovam uma gestão sã e eficaz.

Os GFIA devem dispor de políticas remunera-

tórias para os seus colaboradores, que deverão

abranger os membros dos órgãos de administra-

ção, responsáveis pela assunção de riscos e pelo

exercício das funções de controlo72. O Anexo II

da Diretiva concretiza tal dever, indicando em

maior detalhe as linhas ao longo das quais os

GFIA deverão fixar as políticas de remunera-

ções internas. A ESMA, por seu turno, deve

assegurar a existência de orientações que con-

tribuam para dar corpo às indicações constantes

do Anexo II da Diretiva.

Esta disposição foi transposta para a ordem jurí-

dica nacional pelo art. 78.º do RGOIC. De acor-

do com esta disposição, as políticas de remune-

ração dos GFIA não deverão encorajar a assun-

ção de riscos incompatíveis com o perfil de ris-

co do FIA, devendo a política de remuneração

incidir, inter alia, sobre as remunerações e be-

nefícios dos colaboradores responsáveis pela

assunção de riscos. Numa palavra, procura-se

regular as políticas de remuneração seguidas no

que respeita em particular aos colaboradores

que desempenhem funções com impacto no

perfil de risco das sociedades responsáveis pela

gestão de fundos, visando-se desse modo pro-

mover uma gestão sólida e eficaz dos riscos e

que não encoraje uma assunção de riscos exces-

siva e agressiva73.

É digna de realce a preocupação demonstrada

pelo legislador ao prever, ao longo do RGOIC,

várias disposições destinadas a promover a

transparência da política de remunerações prati-

cada pelos GFIA e, deste modo, sindicar o cum-

primento dos parâmetros definidos no art. 78.º

do RGOIC, no Anexo I do RGOIC e em Regu-

lamento da CMVM, de entre as quais destaca-

mos as seguintes:

a) Relatório e contas deverá revelar o montante

total das remunerações do exercício econó-

mico, separando de forma clara remunera-

ções fixas e variáveis e eventuais comissões

de desempenho (art. 160.º/1 a) do RGOIC);

e

b) Dever de divulgação de informação aos in-

vestidores quanto à descrição de todas as

remunerações suportadas pelos investidores

e indicação do correspondente valor máximo

possível (art. 221.º/1, m) do RGOIC).

71- Considerando 24 da Diretiva. 72- Art. 13.º da Diretiva. 73- Pelo contrário, o art. 24.º do Regulamento Delegado indica vários exemplos de incentivos que deverão ser considerados aceitáveis.

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97 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

O Anexo I do RGOIC atribui ao comité de re-

munerações a fiscalização da remuneração de

colaboradores que desempenhem funções de

controlo de risco, prevendo o n.º 3 do referido

Anexo a nomeação de um comité de remunera-

ção no caso das “entidades gestoras significati-

vas em termos da sua dimensão ou da dimensão

dos organismos de investimento coletivo por si

geridos, de organização interna e da natureza,

âmbito e complexidade das respetivas ativida-

des”. Coloca-se aqui a questão de determinar,

em concreto, o ponto a partir do qual um GFIA

terá dimensão que justifique a criação de um

comité de remuneração74.

As Orientações da ESMA de boas práticas de

remuneração ao abrigo da Diretiva (a seguir,

“Orientações da ESMA sobre Remuneração”)75

contribuem significativamente para concretizar

em maior detalhe o disposto no Anexo II da

Diretiva e definem as linhas orientadoras que

deverão ser seguidas para determinar a partir de

que momento um GFIA deverá criar um comité

de remuneração76/77. No entanto, a ESMA indi-

ca, a título meramente exemplificativo, que não

será necessário criar um comité de remuneração

no caso específico de GFIA que sejam parte de

grupos de bancos, seguradoras ou grupos de

investimento dentro dos quais exista uma enti-

dade que desempenhe a função de comité de

remuneração para todo o grupo económico, des-

de que cumpram as disposições da Diretiva

aplicáveis (relativamente à composição e fun-

ção de tais comités)78.

As Orientações da ESMA salientam a necessi-

dade de estender as disposições relativas à polí-

tica de remuneração dos GFIA às entidades às

quais nas quais seja delegada a gestão dos FIA,

que deverão ser igualmente eficazes e previstas

expressamente disposições contratuais que não

as disposições da Diretiva e das Orientações

da ESMA sobre Remuneração não sejam

contornadas79. Não obstante, tem sido defendi-

do que a extensão da aplicação às entidades às

quais é delegada a gestão de FIA recomendada

nas Orientações poderá, em particular em virtu-

de das diferenças legislativas em matéria de

remuneração entre a UE e o resto do mundo,

dar azo a sérias dificuldades no estabelecimento

de estruturas de delegação nas quais o delegado

esteja estabelecido fora da UE80.

2. Conflitos de Interesses

Com o objetivo de assegurar, numa base contí-

nua, uma gestão eficaz dos riscos associados à

atividade de gestão de fundos de investimento

alternativos, a Diretiva prevê um conjunto de

disposições que visam impor e regular a imple-

mentação interna de procedimentos de controlo

de conflitos de interesses.

De acordo com o art. 14.º da Diretiva, os GFIA

deverão adotar medidas razoáveis para detetar

situações de conflitos de interesses entre o

GFIA, o FIA, os seus investidores e clientes.

Deverá igualmente ser mantida uma clara

separação entre as funções que possam ser

74- A este respeito, é indicado nas Orientações da ESMA sobre Remuneração que o estabelecimento de um comité de remuneração constitui uma boa prática, independentemente da dimensão de cada GFIA. 75- As Orientações da ESMA podem ser consultadas através do seguinte link, acedido no dia 30 de junho de 2015: http://www.esma.europa.eu/system/files/2013-232_aifmd_guidelines_on_remuneration_-_en.pdf 76- De acordo com as Orientações da ESMA sobre Remuneração, para determinar se o GFIA tem uma dimensão significativa, que determine a obrigatoriedade de criar um comité de remuneração, dever-se-á atender aos seguintes critérios: (i) a sua dimensão ou a dimensão dos FIA que gere; (ii) a sua organização interna; e (iii) a natureza, escopo e complexidade das atividades que desenvolva. 77- A conjugação do dever de estabelecer um comité de remuneração poderá suscitar diversas questões 78- Idem, ponto 55, p. 16. 79- Idem, ponto 18, p. 8. 80- Buttigieg, C., The Alternative Investment Fund Managers Directive in Malta: Past, Present…What next?, ID-DRITT, Vol. XXV, 2015, p. 18.

Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 97

Page 98: CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS · de aquisição das acções pertencentes aos sócios da sociedade X, por preço igual à cotação mé-dia ponderada de tais valores

98 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

consideradas incompatíveis entre si e que pos-

sam dar origem a conflitos de interesses siste-

máticos e os investidores informados da exis-

tência do risco de os seus interesses serem pre-

judicados e da aplicação de procedimentos

apropriados para o efeito.

A adoção de procedimentos destinados a identi-

ficar e evitar situações de conflitos de interesses

constitui uma condição de funcionamento dos

GFIA (art. 12.º/1, d), art. 18.º da Diretiva) e

uma medida de gestão dos riscos (art. 15.º/5, d)

da Diretiva).

Assume ainda uma assinalável importância no

quadro da delegação das funções de gestão de

carteiras ou de riscos, na medida em que consti-

tui uma condição que deverá ser observada pela

entidade na qual estas sejam delegadas (art.

20.º/2, b) da Diretiva e art. 80.º do Regulamento

Delegado).

O regime constante da Diretiva procura assegu-

rar a independência do depositário81 e a particu-

lar preocupação em garantir que o depositário

evita situações de conflitos de interesses, em

relação ao, ou em nome do, FIA, constitui uma

clara manifestação de tal objetivo82. A identifi-

cação e gestão de potenciais situações de confli-

tos de interesses constitui condição da nomea-

ção de depositário de determinado FIA como

avaliador externo do mesmo FIA (art. 19.º/4 da

Diretiva), condição essa a acrescer à separação

funcional e hierárquica do exercício das duas

funções e que deverá ser divulgada aos investi-

dores (art. 23.º/1, f), o), art. 28.º/2, b), ambos da

Diretiva).

O Regulamento Delegado, no art. 30.º, avança

várias situações a ter em consideração para

identificar eventuais situações de conflitos de

interesses, ao passo que o art. 31.º do Regula-

mento Delegado dispõe que a política de confli-

to de interesses deve ser reduzida a escrito e

adaptada à dimensão e natureza de cada

GFIA83. Define ainda situações de conflitos de

interesses relacionados com o resgate de inves-

timentos (art. 32.º do Regulamento Delegado),

bem como procedimentos e medidas destinadas

a prevenir e a gerir conflitos de interesses (art.

33.º do Regulamento Delegado). Sempre que os

procedimentos administrativos não se revelem

suficientes para acautelar os interesses dos in-

vestidores, a direção, ou outro organismo inter-

no do GFIA, deverão ser prontamente informa-

dos para que possam adotar as decisões que se

revelem adequadas para o efeito (art. 34.º do

Regulamento Delegado). Prevê também que

seja colocado em prática um procedimento de

acompanhamento dos conflitos de interesses,

designadamente através da manutenção de um

registo atualizado das atividades realizadas (art.

35.º do Regulamento Delegado). Por último, a

existência de situações de conflitos de interes-

ses também poderá ter impacto na definição das

estratégicas relativas ao exercício dos direitos

de voto (art. 37.º do Regulamento Delegado).

Com a transposição da Diretiva, é notório que

as cautelas com situações de conflitos de inte-

resses previstas no RGOIC foram redobradas.

Referimo-nos, nomeadamente, à introdução da

obrigação de manutenção de um registo atuali-

zado das atividades que originem conflitos de

interesses84, sempre que se considere que os

81- PriceWaterHouseCoopers, Depositaries AIFMD Newsbrief – A closer look at the impact of the AIFMD on depositaries, fevereiro de 2013, p. 4. 82- A preocupação indicada justifica-se nomeadamente no contexto em que depositários pertençam a grandes grupos financeiros, pese embora a existência de interesses muitas vezes antagónicos quando comparados com os diferentes agentes do grupo económico em causa, por um lado, e o interesse dos FIA e dos respetivos investidores, por outro lado. Neste sentido, cfr. Hooghiemstra, S., Depositary Regulation, p. 417, citado por Berghe, H., Custody Risk and Investors’ Protection: the EU Response and its Implementation in Belgium, Faculdade de Direito da Universidade Católica de Leuven, 2014. 83- Cumpre, a este respeito, sublinhar que a obrigatoriedade de apresentar, e de reduzir a escrito, uma política de conflito de interesses já decorria do CdVM. 84- Art. 89.º do RGOIC.

Page 99: CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS · de aquisição das acções pertencentes aos sócios da sociedade X, por preço igual à cotação mé-dia ponderada de tais valores

99 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

procedimentos internos destinados a acautelar

situações de conflitos de interesses se revelem

insuficientes. Nestes casos, o órgão de adminis-

tração ou de fiscalização da entidade gestora

deverão ser prontamente informados de tal fac-

to para que possam adotar as medidas que con-

siderem adequadas ao caso concreto, decisão

essa que deverá ser comunicada aos participan-

tes do organismo de investimentos coletivo em

causa (art. 89.º do RGOIC).

Sublinhe-se ainda a preocupação vertida no

novo quadro legal em evitar situações de confli-

tos de interesses entre depositário, gestor e FIA,

de molde a garantir a independência do deposi-

tário, manifestada em particular com a previsão

das seguintes proibições85: (i) as entidades res-

ponsáveis pela gestão não poderão desempe-

nhar a função de depositário; e (ii) o corretor

principal que atue como contraparte de um FIA

não poderá ser depositário de tal FIA se o de-

sempenho de ambas as funções não obedecer a

uma separação funcional e hierárquica86. Preo-

cupações essas que são adicionalmente acaute-

ladas com o estabelecimento do elenco de

operações vedadas às entidades gestoras, pre-

visto no art. 147.º do RGOIC.

3. Gestão de riscos e de liquidez

De acordo com o novo quadro legal os GFIA

deverão implementar uma separação funcional

e hierárquica entre as funções de gestão de ris-

cos das unidades operacionais, incluindo a ges-

tão de carteiras, devendo, ainda, implementar

procedimentos internos, sujeitos a revisão e

atualização regular, que permitam detetar e

acompanhar riscos relevantes para a estratégia

de investimento do GFIA87.

Numa outra vertente, os GFIA deverão adotar

procedimentos de acompanhamento de riscos

de liquidez do FIA, designadamente do perfil

de liquidez dos investimentos do FIA, relativa-

mente a cada um dos FIA sob gestão88. Assume

particular relevância a este nível o dever de os

GFIA levarem a cabo, numa base regular, testes

de esforço, que permitam tomar o pulso a cada

FIA e apurar os riscos de liquidez em causa.

O art. 79.º do RGOIC dispõe um conjunto de

mecanismos, técnicas e processos que permitem

efetuar uma avaliação de ativos, gestão de ris-

cos e de liquidez, entre os quais destacamos os

seguintes: (i) dever de realização, sempre que

considerado adequado, de testes periódicos com

vista a avaliar a validade dos mecanismos de

avaliação do risco (backtesting); e (ii) levar a

cabo a realização de testes de esforço (stress

tests) periódicos, relativamente aos FIA (com

exceção dos que sejam fechados não alavanca-

dos), bem como análises de cenários em que se

verifiquem possíveis modificações das condi-

ções de mercado que possam colocar em causa

os organismos de investimento coletivo, desig-

nadamente que permitam avaliar o risco de li-

quidez em condições excecionais.

4. Transparência

São várias as obrigações impostas pela Diretiva

para fomentar a transparência no exercício da

função de gestão de FIA. Merecem destaque os

seguintes deveres: (i) de disponibilização dos

relatórios anuais para cada exercício em relação

a cada FIA que giram89; (ii) de divulgação de

85- Art. 123.º do RGOIC. 86- Tal separação funcional e hierárquica deverá ser efetuada com observância de todas as condições enunciadas no art. 43.º do Regulamento Delegado. 87- Art. 15.º da Diretiva, cujas disposições são objeto de especificação nos arts. 38.º a 45.º do Regulamento Delegado. Destacamos em particular o art. 42.º do Regulamento Delegado, no qual são objeto de concretização as condições a preencher para que se verifique uma verdadeira separação funcional e hierárquica. 88- Art. 16.º da Diretiva, cujas disposições são objeto de concretização nos arts. 46.º a 49.º do Regulamento Delegado. 89- Art. 227.º do RGOIC, que procede à transposição do art. 22.º da Diretiva.

Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 99

Page 100: CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS · de aquisição das acções pertencentes aos sócios da sociedade X, por preço igual à cotação mé-dia ponderada de tais valores

100 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

informações aos investidores (inter alia, descri-

ção da estratégia e dos objetivos de investimen-

to do FIA, limitações aplicáveis aos investimen-

tos e descrição dos procedimentos através dos

quais poderão alterar as respetivas estratégias

de investimento)90; e (iii) de apresentação de

informações, numa base regular, à CMVM

(designadamente sobre os mercados e instru-

mentos em que negoceiam, perfil de risco dos

FIA e principais categorias de ativos em que o

FIA investiu)91.

A obrigação de divulgação das remunerações

auferidas é digna de realce na medida em que

constitui uma clara manifestação da preocupa-

ção legislativa quanto às políticas de remunera-

ção praticadas92.

Todavia, a grande amplitude dos deveres de

transparência tem suscitado fortes preocupações

num setor tradicionalmente caracterizado por

uma maior opacidade93. Na verdade, ao abrigo

do novo quadro legal a comercialização de FIA

assenta e depende do tratamento equitativo en-

tre investidores94, pelo que o tratamento prefe-

rencial de determinados investidores apenas é

possível desde que não dê origem a uma des-

vantagem material em relação a outros investi-

dores, sem prejuízo, claro está, da possibilidade

de prever UPs de diferentes categorias.

Adicionalmente, os GFIA deverão também di-

vulgar as suas estratégias de investimento e,

bem, assim, demonstrar a solidez das respetivas

estratégias de investimento de cada FIA, a coe-

rência do perfil de liquidez e da política de

reembolsos relativamente a cada um dos FIA

geridos95. Não obstante, historicamente o pró-

prio ethos dos FIA assenta na adoção de estraté-

gias de investimento caracterizadas pela sua

confidencialidade e privacidade96. Acresce, ain-

da, o facto de os FIA darem, tradicionalmente,

um tratamento preferencial a investidores que,

designadamente pela sua dimensão ou peso es-

tratégico, possam ser considerados determinan-

tes (key investors) e que desempenhem um pa-

pel decisivo na obtenção de investimentos mais

significativos. Por esse motivo, a obrigação de

não permitir que determinados investidores be-

neficiem de tratamento preferencial poderá re-

velar-se particularmente difícil de assegurar na

prática.

Adicionalmente, os deveres destinados a asse-

gurar a transparência poderão motivar sérias

preocupações quanto à segurança da informa-

ção divulgada e o risco de a mesma ser

objeto de espionagem empresarial (ou simples-

mente conferir vantagem concorrencial a outros

players no mercado). Estas e outas preocupa-

ções poderão, no limite, motivar um menor in-

teresse no exercício da atividade de GFIA na

UE e reduzir a correspondente atratividade, vis-

ta de fora da União97.

5. Independência

Os GFIA (bem como os depositários e as enti-

dades que comercializem um FIA) devem atuar

no exclusivo interesse dos participantes98.

90- Art. 221.º do RGOIC, que procede à transposição do art. 23.º da Diretiva. 91- Art. 222.º do RGOIC, que procede à transposição do art. 24.º da Diretiva. 92- Art. 107.º do Regulamento Delegado. 93- Engrácia Antunes, J., Os “Hedge Funds” e o Governo das Sociedades, Direito dos Valores Mobiliários, Vol. IX, Coimbra Editora, 2009, p. 26. 94- Art. 23.º do Regulamento Delegado. 95- Art. 16.º/2 da Diretiva. 96- Zepeda, R., To EU, or not to EU: that is the AIFMD question, Journal of International Banking Law and Regulation, 2014, p. 14. 97- A seguinte passagem é elucidativa do modus operandi dos FIA: “Hedge Funds are more like private clubs. They choose who comes in, and they don’t want to make it too easy. There’s this mentality that if you have a great club, then it should be difficult to get into”, da autoria de Devasabi, K., Hedge funds face automation challenge, Risk Magazine, outubro de 2013. 98- Art. 15.º do RGOIC.

Page 101: CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS · de aquisição das acções pertencentes aos sócios da sociedade X, por preço igual à cotação mé-dia ponderada de tais valores

101 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

Os órgãos de administração da entidade gestora

devem conter um número mínimo adequado de

membros independentes, tendo em considera-

ção a dimensão da entidade gestora e a do pró-

prio órgão de administração99. Considera-se

independente o membro que não se encontre

associado a algum grupo de interesses na enti-

dade gestora, nem se encontre em posição ou

circunstância suscetível de afetar a sua isenção

e que não preste serviços ou mantenha relação

comercial significativa com a entidade gestora

em causa ou com entidade que com esta se en-

contre em relação de domínio ou grupo.

A avaliação da independência dos membros dos

órgãos de administração da sociedade gestora

deverá ser efetuada tendo em consideração o

elenco exemplificativo de situações suscetíveis

de afetar a independência constante do art. 31.º-

A do RGICSF, e as exigências decorrentes do

art. 414.º do CSC, designadamente a exigência

de nomear alguns membros não executivos e

que não sejam acionistas da sociedade. Não

obstante, as proibições aí previstas deverão ser

interpretadas à luz do princípio da proporciona-

lidade, de forma a ter em devida consideração

as particularidades de cada caso concreto que a

autoridade de supervisão for chamada a apreci-

ar e deverão, consequentemente, ser interpreta-

das de forma evolutiva, sob pena de afetar de

forma desproporcional as sociedades reguladas

face aos interesses que a lei visa proteger.

Capítulo VI. O regime do passaporte

Europeu: o nascimento de um mercado

único para os Fundos de Investimento

Alternativo

O regime de passaporte dos GFIA constitui um

dos pontos mais relevantes do regime introduzi-

do pela Diretiva. A atribuição de um passaporte

constitui, no geral, um dos elementos de harmo-

nização de maior peso no seio da União, em

boa medida porque assenta numa paridade entre

os EM, ao nível das condições praticadas, re-

quisitos de exercício de atividade exigidos e

garantias concedidas, neste caso aos investido-

res, dessa forma contribuindo para fomentar a

liberdade de circulação de capitais e de presta-

ção de serviços.

A vantagem automática da implementação do

regime de passaporte consistirá em permitir aos

GFIA beneficiar do sistema de notificação entre

autoridades de supervisão para os efeitos de

comercializar junto de investidores qualificados

na UE. O sistema de notificação entre autorida-

des replica, em boa medida, o sistema desenha-

do com a diretiva UCITS, o qual se revelou um

verdadeiro sucesso100.

Tem sido defendido que a introdução de um

regime de passaporte, ao estabelecer as condi-

ções para que GFIA ofereçam livremente os

seus serviços a investidores qualificados em

toda a União Europeia, poderá contribuir para

estimular o volume de investimento em FIA no

mercado interno da UE, para promover a trans-

parência do mercado de comercialização de

FIA e para simplificar os procedimentos a ob-

servar com vista à comercialização de AIF.

Num contexto económico marcado pela cres-

cente globalização, espera-se que o passaporte

seja visto pelos investidores como uma garantia

acrescida de proteção dos investidores101, funci-

onando como um verdadeiro padrão de qualida-

de internacional102.

Com vista a permitir uma correta colocação em

prática deste regime, a sua implementação é

99- Art. 75.º do RGOIC. 100- S. Lydon, Marketing in Europe: Life after the AIFMD for non-EU managers, Offshore Investment Magazine, n.º 242, janeiro de 2014, p. 3. 101- Bernhardt, T., The European Alternative Investment Fund Managers (AIFMD) – an appropriate approach to the global financial crisis?, Faculdade de Direito da Universidade de Glasgow, 2013, p. 136. 102- S. Lydon, Marketing in Europe: Life after the AIFMD for non-EU managers, Offshore Investment Magazine, n.º 242, janeiro de 2014, p. 3.

Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 101

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102 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

prevista de forma faseada. Com efeito, no

momento da transposição da Diretiva o regime

de passaporte será aplicável ao GFIA que giram

FIA UE e poderá estender-se, em momento

posterior, aos GFIA extra UE que giram FIA,

bem como à comercialização de FIA extra-UE,

independentemente de onde o GFIA estiver es-

tabelecido.

1. O Regime em Vigor

a. GFIA da UE

i. Comercialização de FIA da EU

A Diretiva estabelece, nos artigos 31.º e 32.º,

condições para que um GFIA autorizado possa

comercializar UPs ou ações de FIAs da UE jun-

to de investidores profissionais, quer no EM de

origem do GFIA, quer noutros EM da UE.

No caso da comercialização por GFIA autoriza-

do no seu EM de origem, o artigo 31.º da Dire-

tiva prevê a aplicação de um regime simplifica-

do, segundo o qual o GFIA deverá notificar as

autoridades de supervisão competentes da sua

intenção de comercializar, apresentando toda a

documentação indicada no Anexo III da Direti-

va (art. 31.º/2)103, ao passo que a autoridade de

supervisão competente disporá de um prazo de

vinte dias úteis para informar o GFIA da possi-

bilidade de comercializar o FIA em causa.

O artigo 32.º, por seu turno, prevê a comerciali-

zação de FIA da UE em EM distintos do EM de

origem do GFIA da UE. Importa aqui destacar

o facto de o regime de passaporte previsto nesta

disposição ser limitado à comercialização junto

de investidores profissionais.

Para que possa beneficiar do regime de passa-

porte, o GFIA deverá notificar a autoridade de

supervisão competente do seu EM de origem,

indicando, relativamente a todos os FIA que

pretenda comercializar, a documentação e in-

formações constantes do Anexo IV da Diretiva

(art. 32.º/2). Uma vez notificada, a autoridade

de supervisão do EM de origem deverá transmi-

tir o processo completo de notificação às autori-

dades de supervisão do EM de destino, i.e. onde

o GFIA pretenda comercializar os FIA em cau-

sa, dentro de um prazo de vinte dias úteis conta-

dos desde a respetiva receção. Em paralelo,

quando a notificação entre autoridades de su-

pervisão tiver ocorrido, o GFIA deverá ser noti-

ficado em conformidade, podendo dar início à

comercialização a partir desse preciso momento

(art. 32.º/4 da Diretiva).

O art. 230.º do RGOIC regula a comercializa-

ção de FIA da UE em Portugal por GFIA aí

autorizados junto de investidores qualificados.

Nos termos do disposto no art. 230.º/1 do

RGOIC, os GFIA da UE autorizados em Portu-

gal podem comercializar em Portugal. Para o

efeito deverão notificar a CMVM, indicando os

FIA da UE que pretendem comercializar (art.

230.º/2 do RGOIC). A CMVM disporá de um

prazo de vinte dias, a contar da receção do pro-

cesso de notificação completo, para notificar os

GFIA relevantes (art. 231.º do RGOIC). O pro-

cesso de notificação deverá ser instruído com as

informações e documentos listados no art.

230.º/3 do RGOIC.

Ao passo que o art. 230.º do RGOIC regula a

comercialização em Portugal por entidades ges-

toras aí autorizadas, o art. 233.º do RGOIC

transpõe para o ordenamento jurídico português

os termos em que um GFIA da UE poderá co-

mercializar FIA da UE em Portugal ao abrigo

do regime do passaporte. Para que um GFIA da

UE autorizado noutro EM possa iniciar a co-

mercialização exclusivamente junto de investi-

dores qualificados em Portugal, a CMVM deve-

rá receber da autoridade de supervisão compe-

tente do EM onde o GFIA se encontrar autori-

zado, a seguinte documentação: (i) processo

103- Qualquer intercâmbio de informações entre autoridades de supervisão deve respeitar o direito à proteção de dados pessoais, consagrado no artigo 16.º do Tratado de Lisboa e no art. 8.º da Carta de Direitos Fundamentais. Cfr., designadamente, Considerando 76 da Diretiva.

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103 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

completo de notificação; (ii) certificado que

comprove que o GFIA está habilitado para gerir

FIA com a estratégia de investimento em causa;

e (iii) informação sobre qualquer alteração sub-

sequente aos elementos referidos em (i). O pro-

cesso completo de notificação poderá ser elabo-

rado em português ou em língua de uso corrente

no mundo financeiro e ser enviado por via ele-

trónica (art. 233.º/4 do RGOIC).

Finalmente, caberá às autoridades de supervisão

do EM de origem transmitir às autoridades de

supervisão do EM onde é pretendida a comerci-

alizaçã, as informações necessárias para o efei-

to. Após a referida transmissão de informações

o GFIA da UE será notificado e, a partir desse

momento, poderá imediatamente iniciar a co-

mercialização ao abrigo do regime de passapor-

te.

ii. Comercialização de FIA extra-EU

Conforme referido supra, encontra-se prevista

uma implementação do regime de passaporte

faseada. Na verdade, a Diretiva não prevê a ex-

tensão do regime de passaporte à comercializa-

ção dos FIA de país terceiro por GFIA da UE

no momento da sua transposição pelos diferen-

tes EM, a qual terá que ser realizada com recur-

so ao regime de colocação particular (art. 36.º

da Diretiva). Para que tal comercialização seja

possível, os GFIA da UE em causa deverão pre-

encher os requisitos indicados nessa disposição,

para além dos quais os diferentes EM poderão

impor regras mais rigorosas (gold-plating) (art.

36.º/2 da Diretiva).

No RGOIC, o regime em causa foi

vertido no artigo 237.º. De acordo com esta

disposição, os GFIA da UE podem comerciali-

zar (exclusivamente junto de investidores quali-

ficados) FIA extra-UE (art. 237.º/1 do RGOIC),

desde que seja concedida autorização pela

CMVM para o efeito (art. 237.º/2 do RGOIC).

A autorização da CMVM depende da verifica-

ção de um conjunto de condições, que corres-

pondem às condições previstas no art. 36.º da

Diretiva: (i) cumprimento dos vários requisitos

previstos no RGOIC que lhe sejam aplicáveis

(exceção feita às normas relativas aos depositá-

rios); (ii) existência de mecanismos de coopera-

ção entre as entidades de supervisão do EM de

origem do GFIA e do país terceiro onde o FIA

se encontra estabelecido; e (iii) que o país ter-

ceiro onde o FIA esteja estabelecido não integre

a lista de Países e Territórios Não Cooperantes

do Grupo de Ação Financeira contra o branque-

amento de capitais e o financiamento do terro-

rismo.

b.GFIA extra-EU

iii. Comercialização de FIA da UE

e de FIA extra-EU

Atualmente os GFIA extra-UE (i.e., de países

terceiros) podem comercializar em Portugal

exclusivamente perante investidores qualifica-

dos UP de FIA por si geridos (sejam estes da

UE ou extra-UE) (art. 237.º/4 do RGOIC), me-

diante a verificação de um conjunto de condi-

ções (art. 237.º/5 do RGOIC). As condições em

causa, que terão que ser observadas pelo GFIA

extra-UE são as seguintes:

a) Cumprimento de normas de direito aplicá-

veis à constituição e funcionamento de FIA

(art. 115.º do RGOIC), à colaboração de au-

ditor (art. 131.º do RGOIC), à elaboração e

prazos de divulgação dos relatórios e contas

(art. 160.º do RGOIC), ao conteúdo dos rela-

tórios e contas e relatórios de auditores (art.

161.º do RGOIC), à divulgação de prospeto,

contas anuais e semestrais e demais docu-

mentos com informações fundamentais des-

tinadas aos investidores (art. 163.º do

RGOIC), à divulgação de informações aos

investidores (art. 163.º, art. 221.º e art. 229.º,

todos do RGOIC) e à prestação de informa-

ções à CMVM (art. 222.º do RGOIC);

b) Previsão de mecanismos de cooperação

entre a CMVM e as autoridades de supervi-

são de país terceiro onde o GFIA está

estabelecido, com vista ao controlo do risco

sistémico e de forma a assegurar uma troca

Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 103

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104 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

de informações eficaz que permita à CMVM

a prossecução das suas competências; e

c) O país terceiro onde o GFIA estiver estabe-

lecido não integrar a lista de Países e Terri-

tórios Não Cooperantes do Grupo de Ação

Financeira contra o branqueamento de capi-

tais e o financiamento do terrorismo.

Em conformidade com o disposto no art. 36.º/2

da Diretiva, os diferentes EM têm a possibilida-

de de impor regras mais rigorosas quanto à

comercialização de FIA extra-UE no seu

território104. Ora, uma vez que o art. 237.º do

RGOIC estabelece as mesmas condições que

as previstas no art. 36.º da Diretiva, verificamos

que o legislador português optou por não impor

condições mais rigorosas (gold-plating).

c. Comercialização junto de investidores

não profissionais: o regime

de colocação particular

Os EM podem permitir aos GFIA a comerciali-

zação nos seus respetivos territórios junto de

investidores não qualificados, independente-

mente de estarem em causa FIA da UE ou extra

-UE (art. 43.º/1 da Diretiva), e poderão prever

requisitos mais rigorosos do que os previstos

em relação aos investidores qualificados, o que

se compreende atendendo à acrescida necessi-

dade de proteção de que tais investidores care-

cem. Todavia, a imposição de regras mais rigo-

rosas não poderá traduzir-se na imposição de

requisitos mais rigorosos na comercialização de

FIA da UE, sob pena de violação de vários

princípios do Direito da União Europeia, entre

os quais o princípio de não discriminação, o

princípio da liberdade de estabelecimento e o

princípio da liberdade de prestação de serviços

e de capitais.

O artigo 237.º/3 do RGOIC prevê que a comer-

cialização de FIA (da UE e extra-UE) em Por-

tugal junto de investidores não qualificados está

sujeita a autorização da CMVM, que seguirá os

termos definidos em regulamento da CMVM.

E, com efeito, o art. 54.º do Regulamento

2/2015 especifica as condições a observar para

a comercialização em regime de colocação par-

ticular, em Portugal, junto de investidores não

qualificados de FIA. Pese embora a epígrafe da

referida disposição fazer referência expressa à

comercialização de organismo de investimento

alternativo “de país terceiro”, a mesma tratar-se

-á de um lapso porquanto o art. 273.º/3 do

RGOIC, a norma que este artigo visa especifi-

car e complementar, é relativo quer a FIA da

UE, quer a FIA extra-UE, pelo que se revelaria

questionável limitar o âmbito de tal disposição

aos FIA extra-UE. De facto, o próprio art. 54.º

do Regulamento 2/2015 indica quer a documen-

tação que deverá acompanhar o pedido de

autorização para a comercialização de FIA “não

constituídos em Portugal”105 (art. 54.º/1 do Re-

gulamento 2/2015), quer a documentação relati-

va aos FIA “de país terceiro”106 (art. 54.º/5 do

Regulamento 2/2015), aos quais é exigida a

104- A previsão de idêntica possibilidade em relação aos FIA da UE revelar-se-ia suscetível de violar o Direito da União Europeia, em particular o princípio de não discriminação. 105- A documentação a apresentar é, no caso de FIA não constituído em Portugal, a seguinte: (i) certificado ou documento equivalente, emitido pela autoridade de supervisão do Estado de origem do FIA, atestando que este foi constituído e funciona regularmente e que é sujeita a supervisão; (ii) regulamento de gestão; (iii) modalidades previstas para a comercialização e projeto de contrato de comercializa-ção; (iv) último relatório anual e semestral, se aplicável; e (v) a lei do país onde o FIA esteja constituído e a identificação da entidade responsável pela sua gestão. 106- A documentação a apresentar é, no caso de FIA de país terceiro, a seguinte: (i) existência de reciprocidade de FIA em Portugal; (ii) existência de mecanismos de cooperação entre a CMVM e a autoridade de supervisão relevante do país terceiro; (iii) o país não fazer parte da Lista de Alto-Risco e de Jurisdições com Deficiências Estratégicas do Grupo de Ação Financeira contra o branqueamento de capitais e financiamento de terrorismo; e (iv) sempre que o depositário também esteja estabelecido em país terceiro diferente do Estado de estabelecimento do FIA, deverão verificar-se as condições (ii) e (iii) quanto a este Estado.

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105 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

a apresentação de documentação adicional.

2. Alterações no horizonte:

o impacto das recomendações da ESMA

A Diretiva prevê com detalhe um conjunto de

disposições transitórias que prometem mudar

radicalmente o regime atualmente em vigor,

através da criação a médio prazo de um merca-

do único de comercialização de FIA na UE107.

Em conformidade com o art. 67.º da Diretiva, a

ESMA deverá adotar um parecer sobre o funci-

onamento da Diretiva e transmiti-lo ao Parla-

mento Europeu, ao Conselho e à Comissão Eu-

ropeia, até 22 de julho de 2015. O parecer da

ESMA deverá incidir sobre (i) a comercializa-

ção transfronteiriça de FIA dentro da UE e

apreciar o funcionamento do regime de passa-

porte do qual os GFIAs da UE que giram ou

comercializem FIAs da UE beneficiam desde a

transposição da Diretiva; (ii) o funcionamento

da comercialização de FIA extra-UE por GFIA

da UE; e (iii) a gestão e comercialização de FIA

por GFIA extra-UE.

Nesta fase do percurso conducente à implemen-

tação total do regime de passaporte pede-se à

ESMA uma avaliação do percurso percorrido

desde a transposição da Diretiva nos vários EM

e que, com base nos elementos que resultem da

referida avaliação, efetue um balanço com base

nas quais deverá emitir recomendações dirigi-

das às instituições europeias sobre as próximas

medidas a adotar.

a. Eventual alargamento do regime

de passaporte

De acordo com o art. 67.º da Diretiva, recai so-

bre a ESMA a obrigação de apresentar reco-

mendações ao Parlamento Europeu, ao Conse-

lho e à Comissão relativamente à possibilidade

de extensão da aplicação do regime de passa-

porte à comercialização de FIA extra-UE por

GFIA da UE, por um lado, e sobre gestão e co-

mercialização de FIA por GFIA extra-UE, por

outro lado108/109. Ora, importa sublinhar que a

extensão do regime de passaporte está depen-

dente do sentido do parecer da ESMA quanto à

existência de obstáculos significativos, designa-

damente em matéria de concorrência, ao nível

de controlo do risco sistémico, que impeçam a

extensão do regime de passaporte (art. 67.º/4 da

Diretiva) e às recomendações adotadas.

E, com efeito, no dia 30 de julho de 2015, a

ESMA apresentou um documento com as refe-

ridas recomendações110, ao longo do qual um

conjunto de fatores111, em particular a proteção

de investidores, a existência de boas relações de

cooperação entre as autoridades de supervisão

da UE e de países terceiros, bem como a inexis-

tência de obstáculos que impeçam uma autori-

dade de supervisão da UE de levar a cabo as

suas competências de supervisão, designada-

mente obstáculos legais à partilha de informa-

ções entre autoridades, são avaliados. Foi igual-

mente tido em linha de conta, na análise da

ESMA, a existência de risco de perturbação de

107- O Considerando 4 da Diretiva identifica expressamente o estabelecimento de “um mercado interno dos GFIAs e um enquadramento regulamentar e de supervisão harmonizado e rigoroso das actividades exercidas na União por todos os GFIA” como um dos seus principais objetivos. 108- Pode ler-se no Considerando 4 da Diretiva a seguinte passagem, elucidativa quanto aos diferentes passos a dar com vista a um alargamento do regime de passaporte: “[p]revê-se que, após um período transitório de dois anos, seja aplicável, após a entrada em vigor de um acto delegado adoptado pela Comissão para esse efeito, um sistema de passaporte europeu harmonizado aos GFIAs extra-UE que desenvolvam actividades de gestão ou comercialização na União e aos GFIAs da UE que giram FIAs extra-UE. Este regime harmonizado deverá coexistir, durante um período transitório suplementar de três anos, com os regimes nacionais dos Estados-Membros, sob reserva de algumas condições harmonizadas mínimas. Após este período de coexistência de três anos, deverá cessar a vigência dos regimes nacionais após a entrada em vigor de um novo acto delegado adoptado pela Comissão para este efeito.” 109- Tem sido defendido que o alargamento do âmbito de aplicação do regime de passaporte tem por objetivo promover a deslocalização para a UE de fundos estabelecidos em países terceiros. Neste sentido, Bessa, T., Crise, regulação e supervisão de hedge funds, Revista de Direito das Sociedades., n.º 3-4, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2010. 110- ESMA, ESMA’s advice to the European Parliament, Council and Commission on the application of the AIFMD passport to non-EU AIFMs and AIFs, ESMA/2015/1236, 30 de julho de 2015. 111- ESMA, AIFMD passport and third country AIFMs, Call for evidence, ESMA/2014/1340, novembro de 2014, p. 7.

Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 105

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106 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

mercado e de violação das regras de concorrên-

cia, suscetíveis de representar uma desvanta-

gem concorrencial para os FIA estabelecidos na

UE e, bem assim, a existência e adequação dos

mecanismos de monitorização de riscos sistémi-

co em vigor no país terceiro.

Ora, o sentido das aludidas recomendações não

é, de todo, linear, na medida em que, das várias

jurisdições de países terceiros analisadas, ape-

nas algumas foram consideradas como assegu-

rando um grau de proteção adequado que lhes

permitisse estender o regime de passaporte. No

entanto, em vários casos, designadamente no

caso da jurisdição dos Estados-Unidos da Amé-

rica, a ESMA recomenda as instituições euro-

peias a adiar a respetiva decisão de extensão

do regime de passaporte até que sejam assegu-

radas condições de proteção dos investidores e

adotadas medidas que lidem adequadamente

com as distorções de concorrência registadas112.

Aguarda-se que, relativamente às jurisdições

onde foram identificados alguns obstáculos à

aplicação do regime de passaporte, sejam adota-

das medidas destinadas a acautelar as preocupa-

ções manifestadas pela ESMA, evolução essa

que será monitorizada pela ESMA, com vista a

adotar novas recomendações, uma vez decorri-

do um período adequado.

No seguimento de recomendações por parte da

ESMA em sentido favorável, caberá à Comis-

são adotar os correspondentes atos delegados

(art. 67.º/5 da Diretiva) no prazo de três meses

sobre o recebimento de recomendação e parecer

favorável da ESMA. Ao adotar os atos delega-

dos em conformidade com a recomendação da

ESMA, deverá fixar uma data para que os vá-

rios EM procedam à aprovação ou entrada em

vigor de regras que permitam que as normais

relativas à comercialização com passaporte por

parte de FIA extra-UE por GFIA da UE (arts.

35.º, 37.º a 41.º, todos da Diretiva) passem a ser

aplicáveis em toda a UE.

Os procedimentos previstos na Diretiva para a

comercialização na UE (de FIA extra-UE e de

FIA da UE por GFIA extra-UE) ao abrigo do

regime de passaporte – no futuro e apenas após

emissão de recomendação favorável por parte

da EMSA e da subsequente adoção pela Comis-

são de ato delegado que lhe dê seguimento –

segue as mesmas linhas do regime de passapor-

te atualmente em vigor para a comercialização

de FIA da UE por GFIA da UE. De acordo com

este regime, quando um GFIA da UE pretender

comercializar um FIA extra-UE (art. 35.º da

Diretiva) ou um GFIA de país terceiro pretenda

comercializar FIA da UE (art. 39.º da Diretiva)

ou um FIA extra-UE (art. 40.º da Diretiva),

sempre junto de investidores profissionais, de-

verá notificar a autoridade de supervisão do seu

EM de origem (no caso dos GFIA da UE) ou de

referência (no caso dos GFIA de países tercei-

ros). Tal notificação deverá sempre vir acompa-

nhada de toda a documentação listada no Anexo

IV da Diretiva, a qual será transmitida à autori-

dade de supervisão do EM de destino, no prazo

de vinte dias úteis.

Conforme resulta do exposto, o regime de noti-

ficação entre autoridades de supervisão compe-

tentes segue o regime de passaporte atualmente

previsto para a comercialização por GFIA da

UE de FIA da UE. Importa, apesar de tudo, des-

tacar um conjunto de diferenças assinaláveis.

Antes de poderem beneficiar do regime de pas-

saporte, os GFIA da UE e de país terceiro, con-

soante aplicável, deverão encontrar-se devida-

mente autorizados. Para além disso, os seguin-

tes requisitos adicionais deverão ser cumpridos:

(i) terem sido acordados mecanismos de coope-

ração entre as entidades de supervisão do EM

112- ESMA, ESMA’s advice to the European Parliament, Council and Commission on the application of the AIFMD passport to non-EU AIFMs and AIFs, ESMA/2015/1236, 30 de julho de 2015, p. 24.

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107 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

de origem (ou de referência, consoante aplicá-

vel), do GFIA e do país terceiro onde o FIA se

encontra estabelecido; (ii) o país terceiros onde

o FIA está estabelecido não fazer parte da lista

de Países e Territórios Não Cooperantes do

Grupo de Ação Financeira contra o branquea-

mento de capitais e o financiamento do terroris-

mo; e (iii) o país terceiro vertente ter assinado

com o EM de origem (ou de referência, conso-

ante aplicável) do GFIA autorizado e com cada

um dos EM onde pretende comercializar um

acordo em conformidade com o Modelo de

Convenção Fiscal sobre o Rendimento e o

Património da OCDE (arts. 35.º, 39.º e 40.º).

Acresce ao exposto a elevada relevância que a

autoridade de supervisão do EM de referência

assume neste contexto. É-lhe confiada a impor-

tante incumbência de conceder a autorização

aos GFIA de países terceiros, a qual assume um

peso claramente acrescido na eventualidade de

o regime de passaporte ser, conforme se aguar-

da, alargado aos GFIA de países terceiros. Nes-

te contexto, o EM de referência assumirá a fun-

ção de porta de entrada no mercado único da

UE e sobre os seus ombros recairá a responsa-

bilidade de controlar o cumprimento integral do

disposto na Diretiva.

A determinação do EM de referência competen-

te poderá introduzir alguma incerteza para os

GFIA extra-UE, os quais, para além das autori-

dades de supervisão dos seus países de origem,

serão regulados pelo EM de referência. Tal ele-

mento poderá nomeadamente ter como conse-

quência prática que os GFIA não escolham os

EM de referência que lhes seriam eventualmen-

te mais favoráveis113.

Os GFIA de país terceiro que pretendam comer-

cializar FIA na UE deverão ter um representan-

te legal estabelecido no EM de referência, que

servirá de ponto de contacto oficial do GFIA no

seio da UE (art. 37.º/3 da Diretiva). Assim, e

atenta a elevada relevância que assume como

porta de entrada no mercado único da UE, com-

preende-se a exaustividade com que o legisla-

dor da UE procurou gizar os critérios aplicáveis

para a determinação do EM de referência com-

petente (art. 37.º/4 da Diretiva)114. E compreen-

de-se que o legislador tenha previsto que, na

eventualidade de discordância por parte de uma

autoridade de supervisão de outro EM, as auto-

ridades de supervisão relevantes possam sub-

meter a questão à apreciação da ESMA.

Visa-se, deste modo, estabelecer um mecanis-

mo que permita, por um lado, garantir a harmo-

nização da interpretação das normas em causa

e, ao mesmo tempo, prevenir eventuais entraves

às liberdades de circulação que, de outra forma,

poderiam decorrer de uma interpretação da Di-

retiva não conforme com o Direito da União

Europeia. Uma vez trazida a questão perante a

EMSA, esta entidade poderá fazer uso da com-

petência que resulta do art. 19.º do Regulamen-

to 1095/2010, a saber, a resolução de diferendos

entre autoridades competentes em situações

transfronteiriças. Ao abrigo destas competên-

cias, a ESMA prestará assistência às autorida-

des de supervisão em causa na procura de um

acordo, fixando um prazo para que se chegue a

um consenso, findo o qual poderá adotar uma

decisão vinculativa que ponha termo ao diferen-

do.

No caso do RGOIC, a adaptação à adoção do

referido ato delegado pela Comissão far-se-á,

como decorre do artigo 5.º da Lei n.º 16/2015,

que aprova o RGOIC, com a entrada em vigor

dos arts. 234.º e 235.º do mesmo diploma, arti-

gos esses que procederão à transposição do

113- Jaecklin, S, Gamper, F., e Shah, A., Domiciles of Alternative Investment Funds, Oliver Wyman, Financial Services, 2011, p. 6. 114- A Comissão esclarece que, na eventualidade de mudar o EM de referência, nomeadamente por força de uma alteração da estratégia de comercialização do GFIA, não recai ainda sobre o GFIA a obrigação de apresentar um novo pedido de autorização à autoridade de supervisão do novo EM de referência. Isto porque, na sequência da notificação efetuada para o efeito pelo GFIA à autoridade de supervisão junto da qual se encontra autorizado, a autoridade de supervisão do antigo EM de referência terá que transmitir à autoridade de supervisão do novo EM de referência uma cópia do processo de autorização (art. 37.º/11). Deverá considerar-se que uma autorização nova apenas se revelará necessária quando a autorização inicial já não cubra as atividades desenvolvidas pelo GFIA. A aludida resposta da Comissão poderá ser consultada através do seguinte link, acedido no dia 27 de junho de 2015: http://ec.europa.eu/yqol/index.cfm?fuseaction=question.show&questionId=1197

Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 107

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108 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

regime jurídico que vimos descrevendo e ao

correspondente alargamento do regime de pas-

saporte.

b. Eventual extinção do regime

de colocação particular junto

de investidores profissionais

Assumindo que no seguimento da recomenda-

ção da ESMA o regime de passaporte será alar-

gado, conforme descrito supra, durante um perí-

odo transitório o regime de passaporte e o regi-

me de colocação nacional coexistirão.

No entanto, a Diretiva prevê a cessação de apli-

cação da legislação dos EM que consagre a pos-

sibilidade de comercializar FIA através dos re-

gimes nacionais de colocação particular após o

referido período, nos termos de ato delegado a

adotar pela Comissão (art. 66.º/4). Na verdade,

três anos sobre a (possível) entrada em vigor do

ato delegado da Comissão referido supra (i.e.,

até julho de 2018), a ESMA transmitirá ao Par-

lamento Europeu, ao Conselho e à Comissão (i)

um parecer no qual fará uma apreciação da ex-

tensão do regime de passaporte referida supra e

(ii) deverá recomendar as instituições referidas

quanto à cessação da existência de regimes na-

cionais de colocação particular de FIA nos dife-

rentes EM (art. 68.º/1).

Num cenário em que a recomendação referida

em (ii) aconselhe a eliminação dos regimes na-

cionais de colocação particular de FIA, a Co-

missão deverá adotar, dentro de um prazo de

três meses, os atos delegados necessários para

lhe dar seguimento (art. 68.º/5 da Diretiva). Os

atos delegados referidos deverão indicar o pra-

zo concedido aos EM para que cessem o regime

de colocação particular. Por outras palavras,

findo o referido período a comercialização de

FIA nos diferentes EM apenas será possível ao

abrigo do regime de passaporte (art. 68.º/6 da

Diretiva).

Capítulo VII. Balanço Final

e Conclusão

1. O debate relativo à responsabilidade dos

organismos e investimento alternativo pela

crise financeira do sub-prime parece estar

longe de ter uma resposta final. Contudo,

independentemente da conclusão resultante

de tal discussão, é inegável a importância da

crise financeira como catalisador para a ver-

dadeira reforma regulatória que transfigurou

o sistema financeiro e que não deixou de

parte os organismos de investimento alterna-

tivos.

2. Neste contexto, a aprovação da Diretiva,

vista como um dos diplomas legislativos da

UE dos tempos recentes com maior impacto

no sistema financeiro, veio estabelecer um

elevado nível de regulação do exercício da

atividade de gestão de organismos de inves-

timento alternativos.

3. A regulação prevista na Diretiva tem duas

vertentes: regula a dinâmica do governo so-

cietário da própria sociedade gestora e regu-

la a atuação desta sociedade no âmbito do

sistema financeiro e, designadamente, a sua

interação com o investidor.

4. A Diretiva foi recentemente transposta para

o ordenamento jurídico nacional através da

aprovação do RGOIC. No entanto, tem sido

considerado que tal transposição não teve

em Portugal o impacto particularmente

significativo que teve noutros EM, uma vez

que a atividade de gestão já se encontrava

regulada no RJOIC e no RJFII, ambos revo-

gados com a entrada em vigor do RGOIC.

5. Todavia, é inegável a importância das altera-

ções introduzidas nas normas reguladoras da

atuação dos gestores de fundos de investi-

mento alternativo com a entrada em vigor do

RGOIC, que veio prever um regime conside-

ravelmente mais garantístico, na perspetiva

do investidor, introduzindo importantes

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109 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

deveres de transparência, que têm o potenci-

al para modificar o próprio modus operandi

das entidades gestoras. Por outro lado, a in-

trodução de uma apertada malha regulatória

acarreta consideráveis compliance costs, que

poderão ter um impacto nos retornos dos

investidores.

6. O regime introduzido pela Diretiva parece

dividir atenções entre a tutela dos direitos do

investidor e a garantia da estabilidade do

sistema financeiro. Sendo o primeiro objeti-

vo, à partida, menos premente, tendo em

consideração o facto de a comercialização

cujas portas o regime de passaporte vem

abrir ser destinada em exclusivo aos investi-

dores qualificados, já a estabilidade do siste-

ma financeiro revelar-se-ia, a nosso ver, um

valor fundamental mais relevante. Ora, a não

definição de forma clara de qual o valor fun-

damental preponderante que o regime sob

análise visa tutelar tem o potencial para re-

duzir significativamente a correspondente

eficácia regulatória. Refira-se, designada-

mente, que se o objetivo principal tutelado

fosse o da estabilidade financeira, seria ques-

tionável se não se revelaria suficiente limitar

o regime em causa aos fundos e entidades

gestoras sistemicamente relevantes, i.e., fun-

dos com elevada dimensão, altamente ala-

vancados, com caráter transfronteiriço.

7. Não obstante, independentemente das críti-

cas que lhe possam ser apontadas, a abertura

do mercado interno para a comercialização

de FIA com a implementação do regime de

passaporte constitui o inegável trunfo do

regime em causa e que poderá conhecer uma

importante extensão no seguimento das re-

comendações da ESMA.

8. A implementação do regime analisado ao

longo do presente trabalho veio contribuir

para robustecer o sistema financeiro e para

harmonizar um setor até então deixado de

parte da legislação europeia. Resta, contudo,

ainda muito caminho pela frente na tentativa

de harmonizar a legislação dos vários EM e

deste modo abrir os mercados nacionais, a

começar pela harmonização da regulação

diretamente aplicável aos próprios fundos de

investimento alternativo. Mas um passo de

cada vez.

Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 109

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110 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

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52ª Edição dos Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários

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