cadernos do mercado de valores mobiliÁrios · de aquisição das acções pertencentes aos sócios...
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1 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
NÚMERO 52 * Dezembro de 2015
Artigos
* O Dever de OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo
* OPA Derrogatória
* Negociação por Conta Própria
e os Conflitos de Interesses
* Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo ao Regime Geral dos Organismos
de Investimento Coletivo: Regime Atual e Perspetivas Futuras
CADERNOS
DO MERCADO
DE VALORES
MOBILIÁRIOS
2 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
N.º 52
Dezembro de 2015
3 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Editorial 05
Artigos:
O Dever de OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo 09
Carlos Osório de Castro
OPA Derrogatória 40
Domingos Salgado e Juliano Ferreira
Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses 60
Maria João Mateus
Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento
Alternativo ao Regime Geral dos Organismos
de Investimento Coletivo: Regime Atual e Perspetivas Futuras 82
Alexandre Norinho de Oliveira
Índice
4 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
EDITORIAL
5 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Editorial A edição n.º 52 dos Cadernos do Mercado de
Valores Mobiliários apresenta quatro artigos de
cariz jurídico.
O primeiro artigo trata a questão do surgimento
de um dever de lançamento de oferta pública de
aquisição (OPA) nalguns casos de circulação do
controlo no interior de um grupo societário,
nomeadamente quando se introduz um patamar
adicional na cadeia de domínio societário. A
interpretação que o autor faz do artigo 187.º, n.º
1, do Código dos Valores Mobiliários
(Cód.VM) — à luz, designadamente, dos seus
elementos teleológicos, das garantias constituci-
onais da autonomia e da propriedade privadas,
das prescrições do direito comunitário e do sis-
tema de imputação de votos entre entidades em
relação de domínio consagrado pelo Cód.VM –
leva-o a concluir que daquele preceito não de-
corre um dever de OPA. Apresentando uma
análise de direito internacional comparado, o
autor sustenta que a tutela dos acionistas mino-
ritários consubstanciada na imposição de um
dever de OPA representa um encargo tão onero-
so para o obrigado que tem de ser reservada
para os casos de verdadeira alteração material
do controlo.
A transmissão intragrupo de uma participação
de controlo não constitui a sociedade adquirente
num dever de OPA porquanto, segundo o autor,
o artigo 20º, n.º 1, al. b), do Cód.VM, consagra
uma imputação i) dos votos detidos por uma
entidade, singular ou coletiva, às sociedades
dela dependentes, ii) dos votos detidos por uma
sociedade à entidade que a domine e iii) dos
votos detidos por uma sociedade à entidade que
a domine a outras sociedades que sejam tam-
bém dependentes da entidade que a domine.
Como a mera alteração de título de imputação
jamais gera dever de OPA (se os votos que são
imputáveis a um novo título já o eram a um ou-
tro, nunca pode, por definição, decorrer daí a
ultrapassagem de um dos limiares de obrigatori-
edade de OPA visto que não há modificação do
número de votos imputáveis), esta interpretação
implica a total inocuidade, para efeitos de obri-
gatoriedade de OPA, tanto das transmissões de
ações por parte de uma sociedade para a pessoa
(singular ou coletiva) que a domine, como desta
última para a primeira, qualquer que seja a per-
centagem do capital da sociedade aberta repre-
sentada pelas ações em causa. Assim, o autor
conclui que a previsão de uma cláusula derroga-
tória do dever de OPA no caso de transmissões
intragrupo não tem verdadeiro conteúdo útil e
que só poderia explicar-se pelo propósito de
prevenir dúvidas, ainda que injustificadas.
No segundo texto estuda-se a matéria da derro-
gação do dever de lançamento de OPA, com
fundamento no lançamento prévio de OPA vo-
luntária, por via da qual o oferente tenha dado
cumprimento às exigências subjacentes à previ-
são deste dever jurídico. Os autores referem que
a OPA derrogatória é um meio prescindível de
proteção dos acionistas minoritários, alcançado
já através da OPA voluntária. Uma vez garanti-
da a real e efetiva possibilidade de saída dos
acionistas mediante recebimento de contraparti-
da equitativa, no âmbito de oferta voluntária
destinada à aquisição de controlo (proteção que
a OPA obrigatória lhes concederia, uma vez
concretizada aquela intenção), a imposição do
dever de lançamento de OPA encontra-se esva-
ziada da racionalidade que tipicamente lhe é
subjacente, procurando afinal proteger quem
beneficiou já da oportunidade de reagir.
Considerando que a derrogação coadjuva na
tarefa de garantir que a OPA não é concluída
em desrespeito pelo princípio de tratamento
igualitário dos seus destinatários – pois se, por
exemplo, transações realizadas na sua pendên-
cia fizerem com que uns recebam contrapartida
superior aos outros, a declaração não deverá ser
6 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Editorial emitida –, os autores tendem a concluir que a
mesma apenas pode ser apreciada depois de
divulgados os resultados da oferta, só então es-
tando a CMVM em condições de aferir o inte-
gral cumprimento dos pressupostos de que a
derrogação depende.
O terceiro artigo trata a matéria dos conflitos de
interesses na intermediação financeira, em par-
ticular os associados à intervenção dos interme-
diários financeiros autorizados a negociar por
conta própria e que atuam como contraparte dos
clientes. A autora confina o conceito de conflito
à existência de duas ou mais forças com senti-
dos contrários, a que se associa a possibilidade
de ocorrência de um dano, pelo que se uma par-
te tem um benefício sem que a outra sofra uma
desvantagem não há tecnicamente conflito para
efeitos do regime jurídico comunitário (e, logo,
nacional). Nessa medida, conclui que o concei-
to de conflitos de interesses assenta na existên-
cia de relações entre os sujeitos – clientes e in-
termediários financeiros – e os bens aptos a sa-
tisfazer as suas necessidades (valores mobiliá-
rios ou instrumentos financeiros que pretendem
adquirir ou alienar).
A autora refere que a prevenção de conflitos de
interesses dos intermediários financeiros e dos
clientes, nas situações em que os primeiros in-
tervêm como contraparte dos segundos, passa
pela autorização ou confirmação dos negócios
celebrados pelos clientes. Em particular, na ne-
gociação por conta própria, a mitigação de po-
tenciais conflitos resulta: i) de uma segregação
orgânica entre essa área e todas a outras, sem
comunicação de operações ou reportes de valo-
res mobiliários; ii) de uma delimitação detalha-
da das funções dos respetivos colaboradores e
dirigentes, que não poderão participar em deci-
sões de investimento relacionados com outros
serviços financeiros; iii) da adoção de mecanis-
mos de verificação e controlo com reporte de
eventuais conflitos às áreas de compliance; iv)
da criação de procedimentos que obstem à co-
municação da informação existente nesta área a
outras áreas operativas ou de negociação gera-
doras de conflitos.
O último texto analisa a recente transposição
para o ordenamento jurídico nacional da direti-
va relativa aos gestores de fundos de investi-
mento alternativo (GFIA) que redefiniu o qua-
dro regulatório a que os GFIA e, indiretamente,
os próprios fundos de investimento alternativo
(FIA), se encontram sujeitos. O autor identifica
as principais alterações introduzidas ao regime
jurídico anteriormente em vigor e efetua um
juízo crítico sobre as opções adotadas pelo le-
gislador nacional na transposição da referida
diretiva.
A regulação prevista na Diretiva, e vertida para
o ordenamento jurídico nacional, assenta em
duas vertentes: a regulação da dinâmica do go-
verno societário da própria sociedade gestora e
a regulação da atuação da sociedade no âmbito
do sistema financeiro e, designadamente, na sua
interação com o investidor. Nestas duas verten-
tes, o autor analisa criticamente: i) os procedi-
mentos de autorização dos GFIA, que deve de-
correr no Estado Membro de origem; ii) as re-
gras de avaliação de ativos dos FIA, que deve
ser efetuada por entidade externa ao gestor; iii)
os requisitos de fundos próprios do GFIA; iv) o
estabelecimento, pelos GFIA, dos níveis máxi-
mos de alavancagem dos FIA; v) os requisitos
de elegibilidade e os deveres do depositário dos
FIA; vi) os termos em que é autorizada a dele-
gação de funções pelo GFIA; vii) a validação
externa, por um auditor, da atividade dos GFIA
e dos FIA, bem como a imposição de um regi-
me de rotatividade dos auditores; viii) as regras
de governação dos GFIA e, por fim, ix) o regi-
me do passaporte europeu para os GFIA. É
neste último plano que o autor defende que,
7 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Editorial independentemente das críticas que lhe possam
ser apontadas, a abertura do mercado interno
para a comercialização de FIA com a adoção do
regime de passaporte constitui o inegável trunfo
do regime em causa e que poderá conhecer uma
importante extensão no seguimento das reco-
mendações da ESMA.
Em suma, a diversidade e a qualidade dos temas
apresentados nesta edição dos Cadernos aconse-
lham a sua leitura atenta e cuidada.
8 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
ARTIGOS
* O dever de OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo
* OPA Derrogatória
* Negociação por Conta Própria
e os Conflitos de Interesses
* Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo
ao Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo:
Regime Atual e Perspetivas Futuras
9 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
O Dever de OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo
Carlos Osório de Castro
1. O Problema
No passado recente foram publicados artigos,
da autoria de Menezes Cordeiro1, de Ana
Perestrelo de Oliveira2 e de Carlos
Ferreira de Almeida3, relativos à problemáti-
ca do surgimento de um dever de OPA em cer-
tas hipóteses de circulação do controlo no inte-
rior de um grupo societário, os dois primeiros
sustentando, e o terceiro negando, a existência
de um tal dever.
Esses artigos baseiam-se nos pareceres pedidos
àqueles ilustres autores4 no quadro de um litígio
judicial decorrente da situação seguinte: uma
pessoa singular, que detinha o domínio indirec-
to de uma sociedade cotada (sociedade X),
transferiu a integralidade da sua participação
maioritária na sociedade intermédia (sociedade
Y) para uma outra sociedade também sob
o seu controlo (sociedade Z), introduzindo
por conseguinte um patamar adicional na cadeia
de domínio.
1- OPAs obrigatórias: pressupostos e consequências da sua não-realização, Revista de Direito das Sociedades, 2011, n.º 4, p. 927 e segs. 2- OPA obrigatória e controlo indireto, Revista de Direito das Sociedades, 2012, n.º 3, págs. 593 e segs.. 3- OPA obrigatória no direito português. Pressupostos do dever e efeitos civis do incumprimento, disponível em http://www.institutovaloresmobiliarios.pt/estudos/pdfs/1378738637opa_obrigatória_no_direito_português_cfa.pdf. 4- Além destes, foram juntos aos autos mais três pareceres pugnando pela existência do dever (da autoria de Engrácia Antunes, Paulo Câmara e Pedro Romano), e um quarto em sentido contrário (subscrito por Paulo Mota Pinto) — todos, ao que julgamos, ainda inéditos.
10 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Pretendiam os autores na referida acção judicial
que, em resultado disto, a sociedade Z teria in-
corrido no dever de lançar uma oferta pública
de aquisição das acções pertencentes aos sócios
da sociedade X , por preço igual à cotação mé-
dia ponderada de tais valores nos seis meses
anteriores, implicando um investimento de vá-
rias dezenas de milhões de euros.
É que, segundo alegavam, nos termos do art.
187.º, n.º 1, do Código de Valores Mobiliários
("CVM")5, esse dever é imposto sobre todo
aquele cuja participação em sociedade aberta,
ultrapasse, directamente ou nos termos do n.º 1
do artigo 20.º, um terço ou metade dos direitos
de voto correspondentes ao capital social, sendo
certo que, na situação sub judice, não era preen-
chida nenhuma das hipóteses de "derrogação do
dever de lançamento" previstas no art. 189.º do
CVM, e que a Comissão do Mercado de Valo-
res Mobiliários não tem hoje em dia competên-
cia para dispensar o cumprimento do dever, ao
contrário do que sucedia no domínio do anterior
Código do Mercado de Valores Mobiliários
(“CodMVM”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º
142-A/91, de 10 de Abril.
Mas esta posição afigura-se-nos completamente
insubsistente: devidamente interpretado o art.
187.º, n.º 1, do CVM — à luz, designadamente,
da teleologia que lhe é ínsita, das garantias
constitucionais da autonomia e da propriedade
privadas, das prescrições do direito comunitário
e do sistema de imputação de votos entre enti-
dades em relação de domínio consagrado pelo
CVM — temos por seguro, ressalvado o respei-
to devido aos paladinos da posição contrária,
que desse preceito não decorre um dever de
OPA na situação examinada.
A própria CMVM o reconheceu por diversas
vezes de forma inequívoca, salientando numa
dessas ocasiões ser tal entendimento "o domi-
nante no mercado de capitais e o corresponden-
te à actuação anterior da CMVM em casos si-
milares e já na vigência do Código de Valores
Mobiliários", sem que essa actuação anterior
tivesse sido alguma vez contrariada por quem
Pessoa singular
Sociedade Y
Sociedade X
Situação anterior à constituição
da Sociedade Z
Situação posterior à constituição
da Sociedade Z
Sociedade X
Pessoa singular
Sociedade Z
Sociedade Y
>50%
>50%
>99.9%
>50%
>50%
5- Pertencem ao CVM os preceitos doravante citados sem indicação de fonte.
Graficamente:
11 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
quer que seja.
2. Sinopse
Seguidamente apresentamos um brevíssimo
resumo das razões pelas quais entendemos que
a transmissão intra-grupo de uma participação
de controlo não constitui a sociedade adquirente
num dever de OPA.
Mostrar-se-á que o art. 20.º, n.º 1, al. b), do
CVM, consagra uma imputação (i) dos votos
detidos por uma entidade, singular ou colectiva,
às sociedades dela dependentes, ii) dos votos
detidos por uma sociedade à entidade que a do-
mine, (iii) dos votos detidos por uma sociedade
a outras sociedades que sejam também depen-
dentes da entidade que a domine.
Uma imputação nesses termos já era, aliás,
prescrita pelo anterior CodMVM, sendo certo
que viria mais tarde a ser imposta aos Estados-
Membros pelo direito comunitário: a Directiva
2004/25/CE (doravante amiúde apenas
"Directiva") obriga a que, para efeitos de obri-
gatoriedade de OPA, se contem os votos ineren-
tes a acções detidas por pessoas que actuem em
concertação com o "oferente" (art. 5.º, n.º 1) e
impõe, ademais, que as pessoas controladas por
outra pessoa sejam consideradas como agindo
em concertação com essa pessoa e entre si (art.
2.º, n.º 2).
Nas alterações introduzidas ao CVM pelo
Dec.-Lei n.º 219/2006, de 2 de Novembro, que
procedeu à adaptação do nosso direito à Directi-
va, usa-se a expressão "pessoas que com o ofe-
rente estejam em alguma das situações do n.º 1
do art. 20.º" como compreendendo todas as
"pessoas que actuem em concertação com o
oferente" na acepção da Directiva, coisa que só
pode implicar uma leitura da referência às enti-
dades ligadas por um relação de domínio ou de
grupo constante da al. b) do n.º 1, do art. 20.º,
que atribua relevância tanto ao sentido ascen-
dente como ao sentido descendente.
Como a mera alteração de título de imputa-
ção jamais gera dever de OPA (se os votos
que são imputáveis a um novo título já o eram
a um outro, nunca pode, por definição, decor-
rer daí a ultrapassagem de um dos limiares de
obrigatoriedade de OPA — não há modifica-
ção do número de votos imputáveis), esta in-
terpretação do art. 20.º, n.º 1, al. b), implica
a total inocuidade, para efeitos de obrigatori-
edade de OPA, tanto das transmissões de
acções por parte de uma sociedade para a
pessoa (singular ou colectiva) que a domine,
como desta última para a primeira, qualquer
que seja a percentagem do capital da socie-
dade aberta representada pelas acções em
causa.
Daí que uma cláusula derrogatória do dever de
OPA no caso de transmissões intra-grupo não
tenha verdadeiro conteúdo útil e só possa expli-
car-se pelo propósito de prevenir dúvidas, ainda
que injustificadas.
Por outro lado, o problema em apreço coloca-se
nos mesmos termos sempre que o accionista de
controlo de uma sociedade cotada adquire o
domínio de uma qualquer outra sociedade (por
isso que sempre serão atribuídos a esta última
os direitos de voto na sociedade cotada imputá-
veis a tal accionista).
A questão de uma eventual obrigatoriedade de
OPA decorrente da circunstância de os votos já
detidos por uma certa entidade passarem a ser
imputados a uma sociedade que ela domine,
coloca-se, portanto, não no momento de uma
eventual transmissão de valores da primeira
para a segunda, mas no próprio momento em
que a relação de domínio entre ambas se
constitui, seja ou não a (nova) sociedade
dependente titular de acções da sociedade
aberta.
Seria absurdo, porém, que o legislador pudesse
ter querido impor OPAs em todos os casos em
que a um "grupo" é adicionada uma sociedade
dependente, seja esta constituída de raiz ou
O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 11
12 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
adquirida a terceiros (e independentemente de
ela ter ou não acções da sociedade visada ou de
se situar num qualquer patamar intermédio en-
tre as sociedades detentoras dessas acções e a
entidade cabeça do grupo).
A lei reconhece, ao invés, uma espécie de
controlo pelo grupo: "o controlo pertence ao
grupo na configuração que tem em cada mo-
mento" com o que a inclusão adicional de soci-
edades não conduz a uma aquisição do controlo
e não obriga a OPA. Este parece ser realmente
o caminho indicado. Qualquer entidade e as
diversas sociedades que a mesma em cada
momento domine, directa ou indirectamente,
devem ser encaradas como constitutivas de
um organismo cuja identidade se mantém
enquanto for a mesma a entidade controla-
dora, não sendo afectada por alterações
ocorridas ao nível das suas células componen-
tes.
Esta leitura encontra apoio no art. 17.º, n.º 3 (o
dever de divulgação de participação qualificada
pode ser cumprido por qualquer uma das socie-
dades com as quais a sociedade participada se
encontre em relação de domínio ou de grupo),
e, sobretudo, no art. 16.º, n.º 4, que impõe que a
comunicação de aquisição ou alienação de par-
ticipação qualificada inclua “a identificação de
toda a cadeia de entidades a quem a participa-
ção qualificada é imputada nos termos do n.º 1
do artigo 20.º”, na medida em que tais preceitos
dão conforto à ideia de que o legislador olha
para as entidades em relação de domínio ou de
grupo como um conjunto, e cuida sempre de
que haja informação sobre quem ocupa o lugar
de topo na cascata de controlo, na medida em
que esse é que é o dado relevante ou crítico pa-
ra os investidores.
E, na verdade, ao longo de mais de 20 anos
nunca a ninguém ocorreu clamar por OPAs em
cada ocasião em que uma sociedade passou
a ser dependente, directa ou indirectamente, de
pessoa que detivesse mais de 50% dos votos
em sociedade aberta. Ora o valor da segurança
jurídica (que em matér ia mobiliár ia assume
particular acuidade) postula que os destinatários
de uma norma possam confiar em que os tribu-
nais a aplicarão com o sentido que generaliza-
damente lhe seja atribuído.
Como quer que seja, mesmo que a imputação
funcionasse apenas em sentido descendente,
não teria surgido qualquer dever de OPA no
caso vertente. Restruturações no seio de um
grupo não podem desencadear um dever de
lançamento de OPA, na medida em que pressu-
posto desse dever é que surja um “potencial
de influência que anteriormente não existisse”
— assim o impõem razões jurídico-
constitucionais e o próprio direito comunitá-
rio; e “isso não é o que se passa nos negócios
entre um accionista e aquelas pessoas cujos
votos lhe sejam imputáveis (ou aliás também
entre tais pessoas)”, não havendo “nenhum
interesse digno de tutela dos accionistas exter-
nos em que lhes seja feita uma (nova) oferta
obrigatória”.
A exigência de uma "absoluta neutralidade da
modificação intragrupo do controlo" (para que
não exista dever de OPA é totalmente vazia de
sentido, pois há inúmeros casos que não benefi-
ciam de uma "derrogação" e em que não é obri-
gatória a OPA, apesar de ocorrerem alterações
verificadas ao nível do controlo do ponto de
vista material (por força, designadamente, de
modificações dos títulos a que os votos são im-
putáveis a determinado participante).
O interesse dos minoritários não é o único que
está em jogo no instituto das OPAs obrigató-
rias. A sua protecção tem de manter-se dentro
de limites razoáveis e não pode ir ao ponto de
sacrificar a liberdade do accionista de controlo
de movimentar a sua participação no interior do
seu grupo empresarial; enquanto se mantiver a
cúpula do grupo, os accionistas continuarão
a confrontar-se com a mesma situação de
domínio, em termos substanciais.
13 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Por força dessa liberdade, os sócios minoritá-
rios sabem que, cessada a relação de domínio
entre a pessoa controladora e a sociedade que
seja a titular directa da participação, apenas se
tornará obrigatória uma OPA se e quando essa
sociedade vier a tornar-se dependente de ou-
tra ou outras entidades. Assim o reconhece
nomeadamente a doutrina alemã: a empresa-
filha não fica obrigada a OPA no momento em
que cessa a relação de dependência e em que
pela primeira vez ela pode exercer de modo
independente o seu controlo directo sobre a so-
ciedade visada.
3. A ultrapassagem de um dos limiares
relevantes como facto determinante
do dever de OPA (a irrelevância
da alteração do título de imputação)
Nos termos do art. 187.º, n.º 1, do CVM, o de-
ver de OPA advém de a participação em socie-
dade aberta ultrapassar, “directamente ou nos
termos do n.º 1 do artigo 20.º, um terço ou me-
tade dos direitos de voto".
Vem daqui que quem já se encontre acima do
patamar dos 50% dos votos6 não incorre no
dever de OPA enquanto a sua participação
assim se mantiver, independentemente de
todas e quaisquer modificações que possam
ocorrer relativamente ao(s) título(s) a que os
votos lhe são imputáveis.
É o que sucede, por ex., quando uma sociedade
adquire acções a um dos seus administradores
(os votos em causa deixam de ser-lhe imputa-
dos nos termos do art. 20.º, n.º 1, al. d), para
passarem a sê-lo nos termos do corpo do arti-
go), ou quando uma sociedade dela dependente
aliena acções a um terceiro que as detém por
sua conta (os direitos de voto em causa deixam
de ser imputados à sociedade dominante sim-
plesmente nos termos da al. b) do n.º 1 do art.
20.º, para passarem a sê-lo nos termos conjuga-
dos dessa alínea e das als. i) e a)7).
No ensinamento de Christoph von Bülow, no
âmbito do direito alemão:
“Em todos estes casos mantém-se inalterado o
montante absoluto da percentagem de direitos
de voto do titular do controlo. Por isso mesmo
estas operações tão pouco conduzem a uma
(renovada) obtenção do controlo sobre a socie-
dade visada. Se em consequência da alteração,
a influência de facto do titular do controlo
aumenta ou não, é irrelevante. O que conta é,
apenas, que o montante da percentagem de
direitos de voto do titular do controlo na socie-
dade visada se mantém inalterado”8
(sublinhado nosso).
Particularmente impressivos são alguns dos
exemplos figurados por Thomas Libscher9.
Este autor, depois de explicar outrossim que
o dever de OPA, segundo o texto e o telos da
lei, depende de uma mudança de controlo
(entendido “controlo” como a detenção, directa
e/ou por via do jogo das regras de imputação,
de votos em percentagem igual ou superior a
30%), e que alterações do título de imputação
são irrelevantes para o efeito (“decisivo é se o
sujeito da imputação, ou seja, a pessoa em con-
creto relativamente à qual se coloca a questão
do dever de OPA, já anteriormente à operação
O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 13
6- Brevitatis causa ao aludirmos a percentagens de direitos de voto omitiremos frequentemente a referência a que se trata dos "direitos de voto correspondentes ao capital social de determinada sociedade aberta"; pela mesma razão usaremos o termo "votos" como sinónimo de "direitos de voto". 7- Como os direitos de voto continuam a ser imputados à sociedade dependente (agora nos termos da al. a)), a imputação à sociedade continua também a manter-se, já que, por força da als. i) e b), são imputados à sociedade dominante todos os votos que sejam imputados à dependente (e não apenas os votos inerentes às acções de que a sociedade dependente seja detentora). 8- Kölner Kommentar zum Aktiengesetz, anotação 92 ao § 35 da WpÜG (sublinhado nosso). No mesmo sentido veja-se Hommelhoff/Witt, in Frankfurter Kommentar zum Werpapiererwerbs- und Übernahmegesetz, 3.ª edição, 2008, anotação 51 ao § 35, e os autores citados na nota 78, bem como, finalmente, Steinmeyer, WpÜG - Kommentar, de Steinmeyer/Häger, 2.ª edição, anotação 29 ao § 35 ("aquele que já tiver o controlo no sentido do § 29, II, não poderá mais adquirir o controlo da sociedade visada"). 9- Die Zurechnungstatbestände des WpHG und WpÜG, in ZIP – Zeitschrift für Wirtschaftsrecht, 2002, págs. 1014 e segs.
14 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
detinha uma posição de controlo, directa ou
indirecta, ou se não era este o caso e essa
pessoa cai pela primeira vez no âmbito de apli-
cação dos §§ 35 e segs”), ilustra o ponto com
os casos em que:
a) as acções representativas de 30% ou de mais
de 30% dos votos, na sequência da dissolu-
ção da sociedade holding que as detinha, são
distribuídas aos accionistas co-controlantes
da mesma holding, independentemente de
essa distribuição se fazer ou não na pro-
porção das suas participações na mesma
(não havendo dever de OPA inclusive na
hipótese de todas as acções detidas pela hol-
ding serem atribuídas a apenas um dos seus
accionistas);
b) é alterado o conteúdo de acordo parassocial
que, já antes dessa modificação, provocava a
imputação de pelo menos 30% dos votos a
cada um dos seus diversos intervenientes;
c) pessoas que se limitavam a agir de modo
concertado relativamente a 30% ou mais de
30% dos votos optam por outorgar um acor-
do parassocial.
Concretizando um pouco mais.
Quanto à al. a). Suponha-se que a sociedade
detentora de mais de 50% dos direitos de voto
inerentes ao capital social de uma sociedade
cotada tem apenas 2 accionistas, cada um com
50% do capital e ambos titulares de um contro-
lo conjunto sobre a sociedade cotada, por força
de um acordo parassocial. Dissolvendo-se a
sociedade dominante, não surgirá dever de OPA
sobre a sociedade cotada mesmo que a totali-
dade da participação nesta seja atribuída na
partilha a apenas um desses accionistas (ao
accionista em causa passam a ser imputados os
direitos de voto correspondentes a essa partici-
pação nos termos do proémio do art. 20.º, n.º 1;
mas não há ultrapassagem dos 50%, porquanto
a mesma quantidade de votos já lhe era anteri-
ormente imputada, em conformidade com o art.
20.º, n.º 1, al. b)).
Quanto à alínea b). Admita-se que 3 accionistas
de uma sociedade cotada, um (A) titular de uma
participação de 30% dos votos, outro (B) de
uma participação de 15% e outro (C) de uma
participação de 6%, são partes num acordo que
os obriga a votar nas assembleias gerais de uma
sociedade cotada em consonância com o senti-
do fixado em votação realizada anteriormente
no quadro do sindicato, pertencendo nessa vota-
ção um voto a cada um dos contraentes. Se o
acordo for alterado por maneira que a votação
no interior do sindicato se não faça por cabeça
mas em razão da participação na sociedade co-
tada detida por cada um dos contraentes, tão
pouco surgirá dever de OPA, apesar de A se
assenhorear de uma influência muito superior à
que possuía até então (neste caso a cada um dos
três accionistas continuarão a ser imputados
51% dos votos, tanto antes como depois da alte-
ração, nos termos da mesma alínea, a saber, da
al. c) do n.º 1 do art. 20.º). E as coisas não se
alteram se, subsequentemente, A alienar 25% a
C, embora isso tenha como efeito tornar C no
líder do sindicato.
Estas considerações são plenamente válidas no
nosso direito. Quem detiver o domínio formal
— entendido aqui, para simplificar, como a de-
tenção de votos superior a 50% “directamente"
ou “nos termos do n.º 1 do artigo 20.º" em per-
centagem superior a 50% — nunca fica obri-
gado a lançar uma OPA, por mais radicais
que sejam as alterações verificadas ao nível
desse controlo do ponto de vista material;
partindo-se de uma participação superior a
50% não se pode, por definição, ultrapassar
essa percentagem10. Isto mostra, só por si,
quão falha de sentido é a tese da "absoluta
10- Nos termos do art. 1.º, al. c), Regulamento n.º 5/2008 da CMVM (a exemplo do que constava anteriormente do art. 2.º, n.º 1, al. d), do Regulamento da CMVM n.º 4/2004), a alteração do título de imputação deve simplesmente ser objecto de divulgação pública.
15 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
neutralidade da modificação intragrupo do
controlo" (Ana Perestrelo de Oliveira):
como se acaba de demonstrar, a modificação
objectiva do controlo é completamente
irrelevante para efeitos do surgimento de
uma obrigação de OPA11.
4. A circulação de votos no seio
de entidades ligadas por uma relação
de domínio no direito comparado
A generalidade dos países da União Europeia,
por uma via ou por outra, não impõe um dever
de OPA nas hipóteses em que uma participa-
ção de controlo circula no interior de um
mesmo grupo societário. Seguidamente ana-
lisar-se-ão os exemplos italiano, alemão, espa-
nhol e francês.
4.1 O exemplo italiano
O art. 106.º, parágrafo 1, do Testo Unico della
Finanza12, estatui que "aquele que, na sequên-
cia de uma aquisição, venha a deter uma parti-
cipação superior ao limiar de 30% promove
uma oferta pública de aquisição [geral]".
No n.º 5 do mesmo artigo acrescentava-se:
"A Consob13 estabelece em regulamento os ca-
sos em que a ultrapassagem da participação
referida no n.º 1 (...) não acarreta obrigação de
oferta se for realizada entre pessoas que dete-
nham o controlo ou resultar da (…)
c) transferência de títulos (...) entre sujeitos
ligados por relevantes relações de participa-
ção".
Em conformidade, o Regolamento di Attuazio-
ne del Decreto Legislativo 24 Febbraio 1998,
n. 58, concernente la disciplina degli Emittenti
prescreve, no seu art. 49, parágrafo 1, al. c),
que não há obrigação de oferta "se a participa-
ção for transferida entre sociedades em que o
mesmo ou os mesmo sujeitos disponham, ainda
que conjuntamente e/ou indirectamente, atra-
vés de sociedade controlada no sentido do
art. 2359, parágrafo 1, número 1, do Código
Civil14, da maioria dos direitos de voto exercí-
veis em assembleia ordinária, ou seja transferi-
da entre uma dessas sociedades e aqueles su-
jeitos".
Pois bem. Como bem observa Ana Perestrelo
de Oliveira15, na Comunicazione n. DE-
M/2009909 de 13-2-2002, a Consob esclarece
que a isenção se aplica "a 2 tipologias de opera-
ções intragrupo:
a) uma em que a transferência da participação
relevante, directa ou indirecta, na sociedade
cotada tem lugar horizontalmente entre so-
ciedades controladas de direito16, ainda que
indirectamente, pelo mesmo, ou, conjunta-
mente, pelos mesmos sujeitos de direito
(entre sociedades "irmãs");
b) outra em que a transferência tem lugar em
sentido vertical, entre sujeitos ligados por
uma relação de controlo de direito, ainda
que directo ou conjunto (entre sociedades
"mãe e filha") ou entre pessoas físicas e so-
ciedades controladas".
Sinceramente não se alcança onde é que Ana
Perestrelo de Oliveira pretende ir buscar
O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 15
11- Exceptua-se, claro está, o caso em que o sujeito em causa ultrapasse de novo os 50%, depois de, por um segundo que seja, ter descido abaixo dessa fasquia. 12- Decreto legislativo 24 Febbraio 1998, n. 58., tal como actualmente em vigor. 13- Commissione Nazionale per le Società e la Borsa. 14- Ou seja, “sociedade em que outra sociedade detém a maioria dos votos exercíveis em assembleia geral ordinária”. 15- OPA obrigatória cit., pág. 638. 16- O controlo de direito é o mesmo que o “controlo no sentido do art. 2359, parágrafo 1, número 1, do Código Civil” (cfr. a nota anterior) — e nada tem a ver, por conseguinte, com a noção de grupo de direito por contraposição a grupo de facto, a que se refere a nossa doutrina.
16 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
apoio para a afirmação de que "os casos excluí-
dos são apenas aqueles em que o precedente
controlo pela sociedade adquirente torna abso-
lutamente neutros os efeitos das operações su-
cessivas”17, sendo condição necessária mas não
suficiente a manutenção do ultimate beneficial
owner.
É que “a manutenção do ultimate controller ou
do ultimate beneficial owner” só “não é critério
único e exclusivo do afastamento da obrigação
de lançamento de oferta pública de aquisição”
nos casos em que a situação não se integre
numa das tipologias acima referidas e se trate
antes de proceder a uma aplicação analógica
da excepção!!!
Na hipótese que apreciamos, porém, a partici-
pação indirecta na sociedade cotada é transferi-
da em "sentido vertical" entre uma pessoa física
e uma sociedade por ele controlada. O caso in-
tegra-se, sem sombra de dúvida, na segunda das
referidas tipologias. Não há que "estender" a
lógica de isenção, nem que apurar se a neutrali-
dade é "absoluta" ou "relativa"18.
Em suma: não parece justificável qualquer dú-
vida de que a operação analisada beneficia-
ria da excepção prevista no art. 49, parágra-
fo 1, al. c), do citado regulamento italiano,
caso estivesse em causa uma sociedade cota-
da em Itália, pela razão simples de que a
transferência ocorreu entre uma pessoa física e
uma sociedade por si controlada — não se exi-
ge, nestas hipóteses, rigorosamente mais nada.
Isso mesmo é o que decorre das Comunicações
n. DEM/2009909, de 13 de Fevereiro de 2002 e
n. DEM/8093480, de 9 de Outubro de 2008,
onde o que se discutiu não foram as hipóteses
plain vanilla, e indiscutivelmente excepciona-
das, de transferência horizontal e vertical tal
como acima descritas, mas transferências de
outro tipo (no primeiro caso, diversas coopera-
tivas pretendiam transferir as suas acções para
uma nova sociedade, sem que nenhuma delas
tivesse o controlo da sociedade cotada, e no
segundo caso fundos ligados por um acordo
parassocial queriam transferir as suas participa-
ções para uma sociedade de que seriam accio-
nistas).
4.2 O exemplo alemão
O § 35 do Wertpapiererwerbs- und Übernah-
megesetz (WpÜG) impõe o lançamento de uma
OPA a quem obtenha directa ou indirectamente
o controlo de uma sociedade alvo. "Controlo",
nos termos do § 29, II, consoante se assinalou
já, é definido como a detenção de pelo menos
30% dos votos, sendo certo que às acções deti-
das pelo próprio participante se equiparam mui-
tas outras, designadamente as que sejam detidas
por "empresas-filhas" ou por entidades que,
relativamente à sociedade alvo, actuem em con-
certação com esse participante ou com uma das
suas “filhas”.
Porém, nos termos do § 36 da WpÜG, no côm-
puto da participação são desconsiderados os
votos inerentes a acções que tenham sido ad-
quiridas em 3 tipos de situações, designada-
mente através de "reestruturações no quadro de
um Grupo" (§ 36, III, da WpÜG). Esta des-
consideração ocorre a pedido do interessado
junto da entidade de supervisão (BaFin19), cuja
decisão tem carácter vinculado e não discricio-
nário.
17- Ob. Cit., pág. 639. 18- Para este efeito, note-se, as transferências ocorrem entre sociedades já integrantes do grupo, mesmo que a sociedade transmissária seja uma sociedade adrede constituída (a constituição da sociedade precede necessariamente a aquisição: cfr. Martin Philipp Heuber, Die Befreiung vom Pflichtangebot nach dem Wertpapiererwerbs- und Übernahmegesetz, pág. 143). 19- Bundesanstalt für Finanzdienstleistungsaufsicht.
17 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Por sua vez, o § 37 da WpÜG admite a dispen-
sa da obrigação de OPA também por decisão do
BaFin, na medida em que tal se mostre justifi-
cado tendo em conta o tipo de obtenção do con-
trolo, o fim visado com essa obtenção, o ter-se
descido logo de seguida aquém do limiar do
controlo, as relações de participação existentes
na sociedade visada ou a possibilidade fáctica
do exercício do controlo, atendendo aos interes-
ses dos requerentes e aos dos titulares das ac-
ções da sociedade.
A doutrina alemã é consensual quanto ao fun-
damento do regime:
"por detrás da regulamentação da Secção
III [do § 26] está a ideia de que os accionis-
tas da sociedade, apesar da aquisição de
controlo realizada no decurso de uma rees-
truturação interna do grupo, não se afigu-
ram dignos de protecção, quando a socieda-
de cabeça do grupo continua a deter o
controlo da sociedade visada no sentido do
§ 29, II [detenção de pelo menos 30% dos
votos]"20. (sublinhado nosso);
"Por detrás desta regulamentação está
igualmente a consideração legislativa de
que a situação material de controlo no seio
de um grupo se mantém inalterada. Dada a
formação unitária da vontade no interior do
grupo pela sociedade de topo, as transmis-
sões dentro do grupo não tem repercussões
na possibilidade de exercício do controlo
pela sociedade de topo e, portanto, no
controlo material (último) da sociedade
visada. Os restantes accionistas não
carecem por conseguinte de tutela"21.
(sublinhados nossos)
Repare-se que também na Alemanha se observa
que a excepção do § 36, III, não intervém onde
não haja aquisição do controlo, como sucede-
rá quando os votos já fossem imputáveis ao
adquirente (ex: a sociedade-mãe não obtém o
controlo da sociedade aberta quando as acções
desta são adquiridas a uma sociedade-filha, o
controlo já lhe pertencia, a excepção do § 36,
III, da WpÜG não tem cabimento)22.
Não obstante, Ana Perestrelo de Oliveira
fala, também aqui, do requisito da "neutralidade
da restruturação operada", citando Lenz/
Linke e Braun23.
Uma parte do que dizem Lenz/Link (e Braun)
é pura constatação do óbvio: como é requisito
posto pelo preceito que a reestruturação ocorra
no interior do grupo, a hipótese não está pre-
enchida se "as acções de uma sociedade são
transferidas para uma sociedade que não esteja
dentro do grupo"24.
A isso Lenz/Link acrescentam, é certo, que,
pela mesma razão (ou seja, porque tem de tratar
-se de uma reestruturação no interior do grupo),
não podem terceiros vir a participar na empresa
no quadro da reestruturação.
Com isso, porém, Lenz/Link parece que só
querem significar que a totalidade das acções
transmitidas têm de o ser para uma ou mais
empresas do grupo, não podendo uma parte das
mesmas ser alienada directamente a um
terceiro. No mesmo sentido, veja-se Uwe
Schneider, que, louvando-se em Lenz/Link,
defende que "não existe reestruturação se
O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 17
20- Christoph von Bülow, Kölner Kommentar cit., anotação 39 ao § 36. O autor refere-se nesta passagem a "sociedade controladora", mas logo a seguir esclarece que o n.º 3 abrange todos os casos em que o adquirente do controlo é uma empresa filha de um sujeito nos termos do § 2, VI ["empresas filhas são empresas sejam consideradas empresas filhas no sentido do § 290 do Handelsgesetzbuch, ou em que possa ser exercida uma influência dominante, sem que tenha relevo a forma jurídica ou a sede"], que, anteriormente à operação de reestruturação já detivesse o controlo da sociedade visada no sentido do § 29, II. 21- Schlitt/Ries, Aktiengesetz, M eterminadativo".nmada de posiç e aos quais responsabilidade civil (tirando a questünchener Kommen-tar, vol. 6, 3.ª edição, anotação 33 ao § 36. 22- Schlitt/Ries, ob. cit., anotação 165 ao § 35 (itálico acrescentado). 23- OPA obrigatória cit., pág. 640. A autora refere-se ainda a que o requisito de a reestruturação ter lugar no interior do grupo exclui as hipóteses de "transferências externas" (para empresas não controladas pela empresa controladora do transmitente), o que, sendo embora verdadeiro, não tem nenhuma relevância para a problemática em apreço. 24- "Esteja" ou "está" (steht) e não "estava", como traduz Ana Perestrelo de Oliveira.
18 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
simultaneamente forem transferidas acções a
terceiros, designadamente a quadros dirigen-
tes25". Não se afigura que algum destes auto-
res defenda que a reestruturação tem de con-
sistir na transmissão de acções para socieda-
des-filhas detidas a 100% (em que, por tanto,
não participem de todo em todo quaisquer ter-
ceiros).
De qualquer das formas, convincente é, uma
vez mais, o ensinamento de von Bülow neste
contexto: "o conceito 'reestruturação' é de inter-
pretar em sentido amplo. É suficiente que to-
dos os que em resultado das transmissões de
participações (…) obtêm o controlo da socieda-
de sejam ou empresas-filhas, no sentido do § 2,
VI, de um sujeito de direito que, antes da rees-
truturação, tivesse já o controlo no sentido do §
29, II, ou o próprio sujeito que já anteriormen-
te detinha o controlo da sociedade alvo"26
(sublinhado nosso).
E certeiramente conclui: "É irrelevante se, no
quadro da reestruturação, terceiros que não
sejam empresas-filhas no sentido do § 2, VI, do
sujeito de direito que já anteriormente detinha
o controlo adquiram uma participação directa
ou indirecta na sociedade visada, contanto que
o terceiro não obtenha ele próprio o controlo
da sociedade visada, no sentido do § 29, II, no
quadro da reestruturação. Pois não pode fazer
qualquer diferença se tal aquisição de partici-
pação tem lugar no decurso da reestruturação
ou posteriormente a ela", sendo certo que, no
segundo caso, nenhuma sanção seria aplicável
(a desconsideração dos votos não resultaria pre-
judicada)27(sublinhado nosso).
Concede-se que, segundo o entendimento do
BaFin e da doutrina dominante28, a noção de
Konzern, neste contexto, pressupõe uma coliga-
ção entre empresas; todavia, uma pessoa
singular pode valer como empresa para este
efeito, designadamente em virtude de ser
detentora de participações societárias, em dados
termos29.
Mais importante que isso é, porém, o facto de o
BaFin conceder a dispensa de OPA ao abrigo
do § 37 da WpÜG quando os votos não possam
ser desconsiderados nos termos do § 36, III, do
mesmo diploma, em virtude de o sócio domi-
nante não ter natureza empresarial.
Assim aconteceu, para dar um exemplo recente,
no caso Schaeffler30, em que se verificou a in-
tercalação de novas sociedades (a Schaeffler
Beteiligungsholding GmbH & Co. KG e outras)
na cascata do domínio sobre a Continental Akti-
engesellschaft encimada pelo casal Schaeffler.
O BaFin considerou, nomeadamente, que o in-
teresse das sociedades requerentes em serem
poupadas aos encargos inerentes a uma OPA
sobrepujava os interesses dos accionistas mino-
ritários em que fosse lançada uma oferta, consi-
derados de peso “reduzido” (gering) em virtude
de não ter ocorrido uma alteração substancial da
situação de controlo. “A mera redistribuição de
acções, directa ou indirectamente detidas, no
25- Wertpapiererwerbs- und Übernahmegesetz, de Assman/Pötzsch/Schneider, anotação 10 ao § 36. 26- Ob. cit., anotação 41 ao § 36. 27- No mesmo sentido, veja-se Schlitt/Ries, ob. cit., anotação 40 ao § 36, Martin Philipp Heuber, ob. cit., pág. 145 ("se no quadro da reestruturação terceiros adquirem adicionalmente, directa ou indirectamente, uma participação, é irrelevante. Não tem influência na neutralidade da reestruturação em termos do controlo") e Klepsch, in WpÜG - Kommentar, de Steinmeyer/Häger, 2.ª edição, anotação 23 ao § 36. 28- Que não unânime: no sentido de que é suficiente que a empresa dependente seja uma filha na acepção do § 2, VI, da WpÜG (ou seja: que sobre ela se possa exercer uma influência dominante), pronunciam-se autores tão representativos como Schlitt/Ries (Aktiengesetz, Münchener Kommentar, vol. 6, 3.ª edição, anotação 36 ao § 36) e Christoph von Bülow (Kölner Kommentar zum Aktiengesetz, anotação 40 ao § 36 da WpÜG). 29- Cfr. Christine Windblicher, AktG Großkommentar, anotações 24 e 32 e segs. ao § 15). 30-http://www.BaFin.de/cln_152/nn_720794/SharedDocs/Downloads/DE/Verbraucher/Befreiungsentscheidungen/Conti2,templateId=raw,property=publicationFile.pdf/Conti2.pdf.
19 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
seio de uma cadeia de participações (...) não
representa uma alteração relevante das relações
de participação”. “As requerentes representam
(...) apenas um elo adicional no controlo sobre a
sociedade visada que promana da Sra.
Schaeffler e do Sr. Schaeffler. A sua vinculação
ao lançamento de uma oferta ligar-se-ia a um
aspecto meramente formal, sem que lhe estives-
se subjacente uma alteração material da situa-
ção jurídica”.
Constata-se, portanto, também que não haveria
obrigatoriedade de OPA (ou seria segura-
mente concedida dispensa) se a sociedade X
no exemplo que nos serve de mote fosse uma
sociedade alemã cotada. Todas as acções da
sociedade intermédia Y, de que o respectivo
acionista dominante era titular, foram trans-
mitidas para uma única sociedade, a socieda-
de Z, também dominada por esse accionista.
Que parte do capital da sociedade Z perten-
cesse a terceiros é tão irrelevante como ser ia
se essa sociedade, começando por ser uma soci-
edade unipessoal por quotas constituída pelo
dito accionista, visse logo depois uma pequena
parte do capital ser aberto a terceiros.
4.3 O exemplo espanhol
Nos termos do artigo 5.º, n.º 4, do Real Decreto
1066/2007, de 27 de julio, sobre el régimen de
las ofertas públicas de adquisición de valores,
não há obrigação de formular uma oferta públi-
ca de aquisição nos casos de aquisições e outras
operações de que resulte uma mera redistribui-
ção de direitos de voto quanto, em virtude do
n.º 1, continuem a ser atribuídos a uma mesma
pessoa”31, sendo certo que tal n.º 1 manda atri-
buir a uma pessoa os direitos de voto detidos
por entidades pertencentes ao mesmo grupo, tal
como definido no art. 4.º da Ley 24/1988, de 28
de julio, del Mercado de Valores, e que este
artigo, por sua vez, remete para “a definição de
grupo de sociedades estabelecida no artigo 42
do Código de Comercio”, cujo n.º 1 reza assim:
“Toda a sociedade dominante de um grupo
de sociedades estará obrigada a formular as
contas anuais e o relatório de gestão consoli-
dados na forma prevista nesta secção. Existe
um grupo quando uma sociedade ostente ou
possa ostentar, directa ou indirectamente, o
controlo de outra ou outras. Em particular,
presumir-se-á que existe controlo quando
uma sociedade, que se qualificará como do-
minante, se encontre em relação com outra
sociedade, que se qualificará como depen-
dente (…)” numa de diversas situações
(detenção da maioria dos votos, da faculdade
de nomear ou destituir a maioria dos mem-
bros do órgão de administração, etc.)”.
Por último, o artigo 42.º, n.º 6, do Código do
Comercio manda aplicar o disposto na secção
em que se integra aos casos em que qualquer
pessoa física ou jurídica elabore e publique con-
tas consolidadas — donde vem que para efeitos
do art. 5.º, n.ºs 1 e 4, do Real Decreto
1066/2007, o “grupo” pode ser encabeçado
por qualquer pessoa, seja ela uma sociedade,
outra pessoa colectiva ou inclusive uma pessoa
singular32.
Não tem cabimento sustentar ser unicamente
visada a hipótese de alteração do título de im-
putação, que supõe que exista previamente uma
imputação (não podem surgir novos elementos).
Face à razão de ser do art. 5.º, n.º 1, do Real
Decreto 1066/2007 (“se o sistema de OPA
obrigatória tem por finalidade a protecção dos
interesses dos accionistas minoritários nas
situações de tomada ou mudança de controlo,
torna-se necessário considerar de forma conjun-
ta as aquisições realizadas pelas distintas socie-
dades que, por fazerem parte de um mesmo
O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 19
31- “No producirán obligación de formular una oferta pública de adquisición, las adquisiciones u otras operaciones que entrañen una mera redistribución de derechos de voto cuando, en virtud del apartado 1, sigan atribuidas a una misma persona”. 32- Este entendimento é pacífico: cfr., por todos, Fernando Sánchez Calero, Ofertas Públicas de Adquisición de Acciones (OPAS), 2009, pág. 145.
20 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
grupo empresarial, actuem na verdade sob uma
direcção comum ou unidade de controlo”33), a
obrigação de OPA não nasce, por conseguinte,
onde as aquisições e outras operações se reali-
zem no quadro do mesmo "grupo", de tal forma
que os direitos de votos continuem a ser impu-
tados ou atribuídos ao mesmo sócio dominante.
4.4 O exemplo francês
Em França o artigo 234-9, 7.º, do Règlement
Général de L’Autorité des Marchés Financiers,
prevê que a AMF34 possa conceder uma derro-
gação da obrigação de OPA, no caso de uma
operação de venda de acções, ou transacção
equiparável, entre sociedades ou pessoas per-
tencentes ao mesmo grupo”.35
Não colhe argumentar não ser suficiente a exis-
tência de uma relação de controlo para que a
derrogação na obrigação de lançamento de
OPA possa ser aplicada, sendo antes necessário
que exista uma relação grupal baseada num
acordo com vista ao controlo de direitos de voto
de forma a executar uma política comum. O que
é preciso é, simplesmente, que a operação se
realize no quadro de um grupo; “o acordo com
vista ao controlo de direitos de voto de forma a
executar uma política comum” só é necessário
na medida em que a existência de um grupo
resulte da coordenação dos poderes de influên-
cia de dois ou mais accionistas, em vez de deri-
var da circunstância de diversas sociedades es-
tarem sob o domínio de uma mesma entidade.
Muito elucidativo é, a este respeito, o caso
Tharreau Industries, que sumariamente foi
apresentado à AMF como segue:
a) na situação de partida, Jacques Tharreau ti-
nha um total de 44,87% do capital da socie-
dade Tharreau Industries (parte directamente
e parte através da sociedade sua dependente
Finta) e o seu irmão Michel Tharreau
23,10%;
b) ambos os irmãos transfeririam as suas ac-
ções para a sociedade Finta (da qual o irmão
Michel era já accionista minoritário), que
passaria a deter 67,97% do capital da Thar-
reau Industries;
c) Michel Thareau passaria a ser o accionista
maioritário da Finta, com 58,06% do respec-
tivo capital;
d) Jacques Tharreau cederia os seus 41,9% da
Finta a 3 fundos de investimento;
e) entre Michel Tharreau e os fundos seria ce-
lebrado um acordo parassocial, que, designa-
damente, consagrava um direito de preferên-
cia recíproco na venda de acções, garantia
aos fundos um lugar na administração e no
conselho de fiscalização da Finta e obrigava
Michel Tharreau a não realizar, directa ou
indirectamente, qualquer operação que im-
plicasse a obrigação de comprar ou de ven-
der, no todo ou em parte, o capital da Thar-
reau Industries.
Ora a AMF concedeu a derrogação do dever de
OPA a Michel Tharreau e à sociedade Finta36,
com fundamento em que a operação não punha
em causa o controlo maioritário da Tharreau
Industries por parte da família Thareau, apesar
da circunstância de, em consequência da mes-
ma, entidades externas (os 3 fundos) passarem a
deter (indirectamente) uma participação muito
expressiva na Tharreau Industries.
33- GARCÍA DE ENTERRÍA/ ZURITA SÁENZ DE NAVARRETE, Comentario Sistemático del Rd 1066/2007, de 27 de julio 2009, pág. 160. 34- Autorité des Marchés Financiers. 35- Opération de reclassement, ou s'analysant comme un reclassement, entre sociétés ou personnes appartenantà un même groupe. 36- http://www.amf-france.org/inetbdif/documents/bdif/dop/2001/201C1190.htm.
21 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
4.5 Balanço
Liquida-se do exposto que, suposta uma hipóte-
se como a que apreciamos:
na Alemanha, o Bafin estaria obrigado a re-
conhecer a desconsideração dos direitos de
voto, ou não deixaria de conceder dispensa
do dever de OPA, consoante a pessoa singu-
lar controladora fosse ou não equiparado a
uma empresa;
em Itália, não surgiria dever de OPA, inde-
pendentemente de qualquer acto da Consob,
por se tratar de uma transmissão em sentido
vertical entre uma pessoa singular e uma
entidade controlada de direito;
em Espanha, não surgiria dever de OPA,
também independentemente de qualquer ac-
to da CNMV, por se tratar de uma operação
de que decorre uma mera redistribuição de
direitos de voto no contexto de um mesmo
grupo;
em França, a AMF concederia seguramente
uma dispensa em virtude de estar em causa
uma transmissão entre pessoas pertencentes
ao mesmo grupo.
5. A circulação de votos no seio
de entidades ligadas por uma relação
de domínio no direito português
5.1 A situação na vigência do Código
do Mercado de Valores Mobiliários
Na versão inicial do CodMVM estabelecia-se
que:
"ficam igualmente obrigados a lançar uma
oferta geral da aquisição nos termos deste
artigo as pessoas singulares ou colectivas
que, após entrada em vigor do presente di-
ploma, venham a deter (…) valores que, por
si sós ou adicionados, se for o caso, aos que
devam considerar-se como pertencendo-lhes
nos termos do artigo 530.º, lhes confiram
mais de metade dos votos correspondentes
ao capital da sociedade em causa"37.
Nos termos do art. 530.º do CodMVM eram,
designadamente, contados como pertencentes
ao "oferente", sendo este uma pessoa singular,
os valores detidos por sociedades que dele de-
pendam, e bem assim por quaisquer outras soci-
edades que se encontrem, directa ou indirecta-
mente, em relação de domínio ou de grupo com
aquelas, e sendo o “oferente” uma sociedade,
“as sociedades que com ela se encontrem em
relação de domínio ou de grupo e bem assim
quaisquer outras sociedades que se encontrem
em relação de domínio ou de grupo com estas
últimas”.
Nesta altura, chegámos a sustentar que a impu-
tação funcionava só no sentido ascendente (os
votos detidos por uma sociedade dependente
eram imputados à dominante, mas não vice-
versa), embora contra o entendimento já então
dominante e reconhecendo que a letra da lei não
favorecia essa interpretação38.
A verdade, porém, é que, com as alterações ao
art. 525.º do Código do Mercado de Valores
Mobiliários introduzidas pelo Decreto-Lei
n.º 261/95, de 3 de Outubro, a imputação
passou a funcionar indiscutivelmente não só
no sentido descendente, como nos sentidos
ascendente e lateral. De facto:
sendo o oferente uma pessoa singular ou
uma pessoa colectiva que não seja uma soci-
edade, passaram-lhe a ser imputados os vo-
tos derivados de valores mobiliários detidos
por "sociedades que dele dependam, [por]
sociedades que com estas se encontrem,
directa ou indirectamente, em relação de
domínio, e, bem assim, [por] sociedades que
se encontrem, directa ou indirectamente, em
O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 21
37- Por uma questão de simplicidade raciocinaremos apenas à vista de uma das hipóteses legais de OPA obrigatória — a da OPA geral sucessiva. 38- Carlos Osório de Castro, Os casos de obrigatoriedade do lançamento de uma oferta pública de aquisição, in Problemas Societários e Fiscais do Mercado de Valores Mobiliários, Edifisco, Lisboa, 1992, págs. 55 e segs. Note-se que na pág. 58 se deve ler art. 525.º, n.º 2, al. d) em vez de art. 525.º, n.º 2, al. e).
22 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
relação de grupo com qualquer das antes
referidas” (art. 525.º, n.º 1, al. c)),
e, caso o oferente fosse uma sociedade, os
votos derivados de valores mobiliários deti-
dos por "sociedades que com ela se encon-
trem, directa ou indirectamente, em relação
de domínio ou de grupo, [por] quaisquer
outras sociedades que se encontrem, directa
ou indirectamente, em relação de domínio
ou de grupo com estas últimas, e ainda, se
for o caso, [pela] pessoa singular ou pessoa
colectiva de que a sociedade oferente depen-
da, directa ou indirectamente, nos termos
das alíneas b) ou d) do n.o 1 do artigo
346” (art. 525.º, n.º 1, al. d)) (ascendente,
descendente e lateral). A parte final da al. d)
não consentia, insiste-se, outra leitura senão
a de que a uma sociedade se imputavam os
votos detidos pela entidade que a domi-
nasse, directa ou indirectamente.
Adicionalmente, o Decreto-Lei n.º 261/95 veio
introduzir um novo artigo — o 528.º-A — que
estabelecia diversos casos de derrogação ao
dever de OPA, entre os quais figurava a hipóte-
se de a obrigatoriedade resultar da "aquisição
por uma sociedade de valores detidos por outra
sociedade que com ela se encontre em relação
de domínio ou de grupo ou que seja dominada
por uma terceira sociedade que domine igual-
mente a sociedade adquirente".
E assim, após 1995, enquanto o Código do
Mercado de Valores Mobiliários se manteve
em vigor, era absolutamente consensual a
interpretação, aliás antes disso já larguissi-
mamente dominante, no sentido de que a
imputação funcionava no triplo sentido atrás
referido, assim como o era também o
entendimento de que a circulação de parti-
cipações no seio do mesmo grupo societário
(encabeçado fosse por uma pessoa singular
fosse por uma pessoa colectiva) não acarreta-
va um dever de OPA.
5.2 A situação na vigência do CVM.
O CVM, aprovado pelo Decreto-Lei nº 486/99,
de 13 de Novembro, manteve, como não podia
deixar de ser, a imputação de direitos de voto
baseada na existência de uma relação de domí-
nio. Substituiu, porém, a redacção algo prolixa
usada no Código pretérito por uma fórmula te-
legráfica. Diz-se agora, no art. 20.º, n.º 1, al. b):
"no cômputo das participações qualificadas
consideram-se (...) os direitos de voto detidos
por sociedade que com o participante se encon-
tre em relação de domínio ou de grupo". Por
outro lado, a norma do art. 528.º-A do Código
do Mercado de Valores Mobiliários acima men-
cionada, que acolhia uma derrogação ao dever
de OPA no caso de transmissão intra-grupo,
não tem correspondência no CVM.
5.2.1 O estudo por nós publicado em Abril
de 2000
Mal o CVM tinha acabado de entrar em vigor,
publicámos um artigo em que desenvolvemos o
raciocínio seguinte39:
a) literalmente o art. 20.º, n.º 1, al. b), do CVM
é compatível com a atribuição de relevo ape-
nas à situação de dependência, apenas à situ-
ação de domínio ou a ambas essas situações
(ou seja, é compatível com uma imputação
só em sentido descendente, só em sentido
ascendente ou em ambos os sentidos);
b) é injustificado impor-se um dever de OPA
no caso de reestruturações no interior de um
grupo empresarial, incluindo no caso de
"circulação dos votos em sentido descenden-
te", uma vez que "a estrutura de controlo
mantém-se a mesma, vistas as coisas em
termos substantivos";
39- Imputação de direitos de voto no Código dos Valores Mobiliários, Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 7, 2000, págs. 161 e segs.
23 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
c) dir-se-ia, pois, que a eliminação da hipótese
de derrogação da obrigatoriedade do lança-
mento de uma OPA prevista no art. 528º-A,
n.º 1, al. e), do CodMVM (“aquisição por
uma sociedade de valores detidos por outra
sociedade que com ela se encontre em rela-
ção de domínio ou de grupo ou que seja do-
minada por uma terceira sociedade que do-
mine igualmente a sociedade adquirente”)
só pode ter ficado a dever-se à circunstância
de o legislador a reputar completamente dis-
pensável — o que, por seu turno, implica
que o art. 20.º, n.º 1, al. a), seja objecto da
leitura mais ampla, que abarque a imputa-
ção em ambos os sentidos;
d) porém, a conjugação dessa leitura ampla
com a inexistência de cláusula derrogatória
do dever de OPA para os casos em que a
uma nova sociedade dependente passam a
ser imputados votos imputáveis à sua entida-
de dominante, levaria a que sendo o controlo
de uma pequena sociedade adquirido por
uma holding de um vasto “grupo” empresa-
rial, aquela se teria de considerar obrigada a
lançar uma OPA sobre as inúmeras socie-
dades abertas relativamente às quais a ho-
lding disponha de mais de metade dos votos;
e) a melhor solução, de jure condendo, seria,
por um lado, interpretar o art. 20.º, n.º 1, al.
b), do CVM de forma tal que a existência de
uma relação de domínio fosse determinante
de uma imputação apenas em sentido ascen-
dente, ao mesmo tempo que, por outro lado,
se daria assento na lei a uma hipótese adicio-
nal de derrogação do art. 187.º, capaz de
abarcar os casos em que uma sociedade de-
pendente adquire votos já imputáveis à sua
entidade dominante.
f) de jure constituto, a leitura restritiva do art.
187.º (imputação só em sentido ascendente)
é menos má do que a leitura ampla, porquan-
to evita o resultado absurdo referido em d),
apesar dos inconvenientes referidos em b).
5.2.2 A interpretação triunfante
Sucedeu, todavia, que a interpretação que veio a
triunfar foi outra: a imputação ex vi do art. 20.º,
n.º 1, al. b), opera não só no sentido ascendente
ou upstream (os votos detidos pela sociedade
dependente contam como da entidade dominan-
te), como em sentido descendente ou downstre-
am (os votos detidos pela dominante contam
como da entidade dependente), como ainda
(agora em articulação com o art. 20.º, n.º 1, al.
i)) lateralmente ou sidestream (os votos detidos
por sociedades dependentes de uma mesma en-
tidade são imputáveis reciprocamente). A uma
imputação com este alcance referir-nos-emos
doravante como "imputação múltipla".
No fundo, a CMVM e os agentes de mercado
optaram por atribuir ao art. 20.º, n.º 1, o mesmo
sentido e alcance que competiam ao art. 525.º,
n.º 2, als. c) e d) do Código do Mercado de Va-
lores Mobiliários (os quais operavam como fac-
tores de imputação de votos por força da remis-
são feita pelo art. 530.º, n.º 1, al. b), do mesmo
diploma), quiçá entendendo que se o legislador
tivesse querido romper com a solução anterior
não poderia ter deixado de o fazer de uma for-
ma inequívoca.
E não foram sensíveis ao receio por nós mani-
festado, entendendo que, mau grado o CVM
não ter consagrado disposição idêntica à do art.
528.º-A, n.º 1, al. e), do Código do Mercado de
Valores Mobiliários, a leitura "ampla" do art.
20.º, n.º 1, al. b), não poderia implicar que
qualquer nova sociedade "incorporada" no seio
de um grupo tivesse de lançar uma OPA sobre
todas as sociedades abertas integrantes do
mesmo40.
O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 23
40- E de facto, como se verá melhor adiante, a derrogação consagrada pelo 528.º -A, n.º 1, al. e), do CodMVM nada tem a ver com estas
situações.
24 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
A referida "leitura ampla" — insiste-se —
foi, desde 2000, e é-o ainda hoje, objecto de
um vastíssimo consenso.
Designadamente em todos os prospectos de
ofertas públicas de aquisição lançadas após a
entrada em vigor do CVM, a percentagem de
direitos de voto que, nos termos do n.º 1 do arti-
go 20.º, pode ser exercida pelo oferente na soci-
edade visada (cuja divulgação é prescrita pelo
art. 138.º, n.º 1, al. c)), é invariavelmente calcu-
lada assumindo uma imputação múltipla (ou
seja, relembra-se, uma imputação nos sentidos
ascendente, descendente e lateral). E o mesmo
se diga quanto à generalidade das comunica-
ções da aquisição e alienação de participa-
ções qualificadas.
5.2.3 A imposição da imputação múltipla
pela Directiva 2004/25/CE
O art. 5.º, n.º 1, da Directiva 2004/25/CE deter-
mina que os Estados Membros devem adoptar
regras que obriguem uma pessoa singular ou
colectiva que, na sequência de uma aquisição
efectuada por si ou por pessoas que com ela
actuam em concertação, venha a deter valores
mobiliários de uma sociedade cotada que, adici-
onados a uma eventual participação que já dete-
nha e à participação detida pelas pessoas que
com ela actuam em concertação, lhe confiram
directa ou indirectamente uma determinada per-
centagem dos direitos de voto nessa sociedade,
permitindo-lhe dispor do controlo da mesma, a
lançar uma oferta a fim de proteger os accionis-
tas minoritários dessa sociedade.
A definição de "pessoas que actuam em concer-
tação" consta do art. 2.º, n.º 1, al. d), da Direc-
tiva: são as "pessoas singulares ou colectivas
que cooperam com o oferente ou com a socie-
dade visada com base num acordo, tácito ou
expresso, oral ou escrito, tendo em vista, res-
pectivamente, obter o controlo da sociedade
visada ou impedir o êxito da oferta".
E o n.º 2 do mesmo artigo prescreve-se: "para
efeitos do disposto na alínea d) do n.° 1, as
pessoas controladas por outra pessoa, na acep-
ção do artigo 87.° da Directiva 2001/34/CE 41,
são consideradas pessoas que actuam em con-
certação com essa pessoa e entre si".
A Directiva 2004/25/CE obriga, portanto, a que
os Estados Membros consagrem regras que de-
terminem a imputação dos votos detidos por
determinada entidade tanto às sociedades que
ela domine (imputação downstream) como à
entidade de que seja dependente (imputação
upstream) como às outras sociedades também
dominadas por esta última entidade (imputação
sidestream)42/43. Talvez a letra do art. 2.º, n.º 2,
da Directiva, apenas seja totalmente inequí-
voca quanto à imputação lateral ("as pessoas
controladas por outra pessoa são consideradas
pessoas que actuam em concertação entre si"):
"mas como o fundamento da imputação das
participações de sociedades-irmãs só pode ser
o poder de direcção da mãe comum, a imputa-
ção downstream é forçosa44".
41- “Qualquer empresa em que uma pessoa física ou uma entidade jurídica tenha (a) a maioria dos direitos de voto dos accionistas ou
sócios, ou (b) o direito de nomear ou de destituir a maioria dos membros do órgão de administração, de direcção ou de fiscalização e seja
simultaneamente accionista ou sócio dessa empresa, ou (c) seja accionista ou sócio e, por força de um acordo celebrado com outros
accionistas ou sócios dessa empresa, tenha o controlo exclusivo da maioria dos direitos de voto dos seus accionistas ou sócios".
42- Entendido "domínio" na acepção do artigo 87.° da Directiva 2001/34/CE, correspondente à do art. 21.º, n.º 2, do CVM.
43- Confira-se, neste sentido, Wackerbarth, in Aktiengesetz, M eterminadativo".nmada de posiç e aos quais responsabilidade civil
(tirando a questünchener Kommentar, vol. 6, 3.ª edição, anotação 30 ao § 30, Hommelhof/Witt, ob.cit., anotação 28 ao § 35, Hilmer,
Die Übernahmerichtlinie und ihre Umsetzung in das deutsche Recht, 2007, pág. 93, Hopt/Mülbert/Kumpan, Reformsbedarf in
Übernahmerecht, in Die Aktiengesellschaft, 2005, pág. 111.
44- Wackerbarth, ult. lug. cit..
25 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
5.3 A lição do direito comparado:
a experiência alemã na vigência
da redacção do § 30, 1, da WpÜG
introduzida em Julho de 2006
A transposição da Directiva 2004/25/CE tinha
de ser efectuada pelos Estados-Membros até 20
de Maio de 2006. Com algum atraso, em 14 de
Julho de 2006, entrou em vigor na Alemanha a
lei destinada a proceder a essa transposição.
Para assegurar a conformidade do direito ale-
mão com os arts. 5.º, n.º 1 e 3.º, n.ºs 1, al. d) e
2, da Directiva, o § 30, I, 1, da WpÜG passou
a imputar ao "oferente" os "direitos de voto
pertencentes às empresas-filhas do oferente
[imputação ascendente], à pessoa controladora
do oferente [imputação descendente] e às
outras empresas-filhas da pessoa controladora
do oferente [imputação lateral]", e, por outro
lado, na definição de "pessoas actuando em
concertação", constante do § 2, V, da WpÜG
incluiu-se a frase "as empresas-filhas conside-
ram-se pessoas actuando em concertação com
a pessoa que as controla e umas com as
outras".
Rapidamente os alemães se deram conta das
consequências da alteração legislativa, nomea-
damente no que concerne ao seu impacto sobre
o mecanismo da desconsideração de direitos de
voto ao abrigo do § 36, III (aquisição de acções
em resultado de reestruturações no interior do
grupo)45.
Desde logo, a utilização desse mecanismo dei-
xou de fazer sentido nos casos de transmissão
da participação igual ou superior a 30% para
uma empresa dominada pelo transmitente, ou
realizada entre sociedades controladas pela
mesma entidade — o que é o mesmo que dizer
que deixou de fazer sentido nem mais nem me-
nos do que em todos os casos a que anterior-
mente se aplicava. A razão disto é simples:
como nessas hipóteses os votos já eram imputá-
veis ao adquirente (por força da imputação múl-
tipla), a todas as empresas do grupo já eram
afinal imputáveis direitos de voto acima do li-
miar relevante para efeitos do controlo, pelo
que, aconteçam as transferências que acon-
tecerem, nenhuma delas pode já ultrapassar (de
novo) esse limiar e adquirir o controlo46.
As hipóteses abrangidas passaram a ser outras,
a saber, os casos em que ao "grupo" é adiciona-
da uma sociedade, seja ela constituída de raiz
ou adquirida a terceiros (e independentemente
de a mesma ter ou não acções da sociedade vi-
sada ou de se situar num qualquer patamar in-
termédio entre as sociedades detentoras dessas
acções e a entidade cabeça do grupo).
Consoante refere Andreas Nelle47:
"esta regra de imputação conduz à situação
absurda em que qualquer nova empresa-
filha constituída por M2 [no topo do grupo]
preencherá a hipótese do § 35, I, da §
WpÜG, e portanto ficaria obrigada ao lan-
çamento de uma oferta pública de aqui-
sição dirigida a todos os accionistas da so-
ciedade visada. O mesmo valerá quando
uma das empresas-filhas (…) adquirir uma
nova sociedade-filha ou neta, uma vez que a
estas será imputada a globalidade dos direi-
tos de voto detidos pelo grupo. A uma nova
empresa-filha ou empresa-neta de M2, para
se furtar ao de-ver de oferta, apenas resta a
possibilidade de apresentar ao BaFin um
requerimento de desconsideração dos direi-
tos de voto imputados nos termos do § 36,
III, da WpÜG".
O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 25
45- Cfr. Arnold, Die neue konzernweite Stimmrechtszurechnung gemäß § 30, Abs. 1, Satz 1 Nr.1 WpÜG, in Die Aktiengesellschaft,
2006, pág. 569.
46- Cfr. supra o que dissemos acerca da irrelevância da alteração do título de imputação dos votos. 47- Stimmrechtszurechnung und Pflichtangebot nach Umsetzung der Übernahmerichtlinie, in ZIP – Zeitschrift für Wirtschaftsrecht, 2006, pág. 2059.
26 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
O que sucedeu foi que, conforme previsto, se
seguiu uma avalancha de tais requerimentos. A
situação era insustentável, tendo o legislador
alemão optado por uma solução radical: repris-
tinou a anterior redacção do § 31, Nr. 1, da
WpÜG (!), considerando as exigências da
Directiva 2004/25/CE cumpridas mediante a
mera qualificação das empresas-filhas como
pessoas actuando em concertação com a pessoa
que as controla constante do § 2, V —- que per-
maneceu intocado —, para outros efeitos que
não o de espoletar o dever de OPA.
5.4 A contrariedade à Directiva
da solução alemã, e a sua inviabilidade
no quadro do direito português constituído
Parece indiscutível que a Directiva 2004/25/CE
obriga a que, onde houver uma relação de do-
mínio ou de grupo, os votos detidos pela socie-
dade dependente sejam imputados à entidade
dominante e vice-versa48.
O legislador alemão, inicialmente dessa opini-
ão, mudou depois de ideia; mal, do ponto de
vista de diversos dos autores mais representati-
vos49, alguns dos quais consideram, inclusive,
que para assegurar a conformidade com a Di-
rectiva, a ultrapassagem do limiar de 30% dos
votos, para efeitos do dever de OPA, terá de
continuar a ser aferida na base de uma imputa-
ção múltipla, nos termos expostos50.
Como quer que seja, a via alemã não é segura-
mente trilhável em Portugal, de jure constituto.
É que ela consiste em distinguir entre a noção
de "pessoas que actuam em concertação com o
oferente", para efeitos do apuramento da exis-
tência de um dever de OPA, e a noção homóni-
ma usada pela Directiva para diversos outros
efeitos, e em sustentar seguidamente que apenas
para estes últimos se imporia a qualificação
tanto de uma empresa-filha como pessoa actu-
ando em concertação com a entidade que a con-
trola como vice-versa (e bem assim das empre-
sas-filhas de uma mesma entidade como pesso-
as actuando em concertação umas com as ou-
tras), procedendo depois a uma transposição da
Directiva de modo diferenciado, em consonân-
cia com essa distinção51.
Esses “outros efeitos” são as exigências:
a) de que o “preço equitativo” a que a OPA
obrigatória deve ser lançada atenda ao preço
mais elevado pago pelos valores mobiliários
pelo oferente ou por pessoas que com ele
actuem em concertação ao longo de deter-
minado período (art. 5.º, n.º 4, da Directiva);
b) de que se exija uma alternativa em dinheiro
se o oferente ou pessoas que com ele actuem
em concertação tiverem adquirido contra
numerário valores mobiliários que represen-
tem 5% ou mais dos direitos de voto da soci-
edade visada ao longo certo período (art. 5.º,
n.º 4, da Directiva); e
c) de que dos documentos da oferta conste in-
formação detalhada sobre os valores mobi-
liários que o oferente e as pessoas que com
ele actuam em concertação já detenham na
sociedade visada" (art. 6.º, n.º 3, al. g), da
Directiva), bem como a identidades dessas
pessoas (art. 6.º, n.º 3, al. m) da Directiva).
O CVM dá satisfação a essas imposições da
Directiva mediante utilização do conceito
"pessoas que estejam com o oferente em algu-
ma das situações previstas no artigo 20.º": cfr.,
respectivamente, o art. 188.º, n.º 1, al. a)), o n.º
5 do mesmo artigo e os art. 138.º, n.º 1, al. e) e
183.º-A, n.º 1, al. i).
48- Além de ser também obrigatória a imputação lateral, que para o caso sub judice não tem interesse. 49- Vide, por todos, os autores citados na nota 43. 50- Assim Wackerbarth, ob. cit., anotação 31 ao § 30. 51- Daí que, como se referiu, o legislador alemão tivesse repescado a redacção anterior do § 31, 1, da WpÜG, mas não a noção de pessoas actuando em concertação consagrada no § 2, VI, da WpÜG.
27 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Todas estas normas foram introduzidas pelo
Dec.-Lei n.º 219/2006, de 2 de Novembro, jus-
tamente destinado, conforme se assume no res-
pectivo Preâmbulo, a transpor "para o ordena-
mento jurídico interno a Directiva n.º 2004/25/
CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de
21 de Abril, relativa às ofertas públicas de
aquisição", sendo certo que o mesmo Preâmbu-
lo faz expressa referência a que "o dever de lan-
çamento de uma oferta pública de aquisição
surge assim que uma entidade ou grupo de enti-
dades actuando em concertação detenham va-
lores mobiliários da entidade visada em tal per-
centagem dos direitos de voto que lhes permi-
tam, directa ou indirectamente, dispor do con-
trolo da visada".
Ora o conceito de "pessoas que estejam com o
oferente em alguma das situações previstas no
artigo 20.º" usado no art. 188.º, n.ºs 1, al. a)), e
5 e nos art. 138.º, n.º 1, al. e) e 183.º-A, n.º 1,
al. i), tem, necessariamente, de abranger, sendo
o “oferente” uma sociedade, a pessoa, singular
ou colectiva, que domine o “oferente” (e todas
as demais sociedades igualmente dominadas
pela pessoa que domine o “oferente”) — assim
o impõe uma interpretação conforme com a
Directiva 2004/25/CE. Mas, como essa noção é
também a que é usada no art. 187.º, n.º 1, do
CVM, sobre o dever de OPA ("directamente ou
nos termos do art. 20.º"), é mister concluir que
os votos detidos por uma qualquer entidade são
também imputados a toda e qualquer sociedade
que ela domine para efeitos de se apurar se foi
ultrapassado por esta última algum dos limiares
de obrigatoriedade de OPA.
Por outras palavras:
sabendo-se que o legislador português, no
diploma destinado a adaptar o nosso direito à
Directiva, usou a locução "pessoas que este-
jam com o oferente em alguma das situações
previstas no artigo 20.º" nos lugares em que
a Directiva indiscutivelmente obriga a que
sejam abrangidas todas as pessoas agindo
em concertação com o oferente,
não há como deixar de concluir que a locu-
ção "pessoas com o oferente em alguma das
situações previstas no artigo 20.º" compre-
ende todas as pessoas que a Directiva consi-
dera como em concertação com o oferente,
sem excepção;
sendo certo que a Directiva 2004/25/CE
obriga a que as empresas-filhas e a
entidade que as domine sejam considera-
das como actuando em concertação
(independentemente de qual delas seja o
“oferente”).
5.5 A irrelevância da previsão
de uma cláusula derrogatória idêntica
à consagrada no art. 528-º-A, do Código
do Mercado de Valores Mobiliários;
o absurdo de se considerar inapelavelmente
obri-gada a OPA qualquer sociedade
que passe a inte-grar um grupo
de que façam parte sociedades cotadas.
Entre 2000 e o tempo presente muita água cor-
reu por debaixo das pontes.
Hoje em dia deveria ser incontroverso que o art.
20.º, n.º 1, al. b), do CVM, acolhe uma impu-
tação dos votos da sociedade dependente à
dominante e vice-versa. Essa é, de resto, a tra-
dição do nosso direito, pois assim sucedia já
no domínio do Código do Mercado de Valores
Mobiliários. Essa foi a interpretação que cedo
se generalizou, que mais não seja em conse-
quência justamente dessa tradição.
O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 27
28 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
E, para rematar, essa é a solução imposta pela
Directiva 2004/25/CE em matér ia de OPA
obrigatória, ou quando menos, a solução que o
legislador português confirmou, em 2006 (no
âmbito do diploma precisamente destinado a
transpor para o nosso direito a referida Directi-
va), ser a resultante das palavras "nos termos do
art. 20.º" constantes do art. 187.º, n.º 1, ao em-
pregar a locução "pessoas que com o oferente
se encontrem em alguma das situações do art.
20.º" como (pelo menos) equivalente à noção
de "pessoas actuando em concertação com ofe-
rente" em domínios em que a Directiva fora de
toda a dúvida obriga que entre essas pessoas se
contem sempre as empresas-filhas e a respecti-
va entidade dominante.
Não tem razão, por ex., Engrácia Antunes,
quando afirma, no parecer inédito a que acima
nos referimos, que "à ausência de previsão de
qualquer cláusula derrogatória semelhante no
atual CVM apenas poderá ser atribuído o senti-
do de o legislador português vigente ter preten-
dido recusar relevância às chamadas transmis-
sões intragrupo em sede da isenção de OPA
obrigatória", se com isso pretende significar
que a alienação de uma participação de mais de
50% a uma sociedade dependente do transmi-
tente constitui aquela num dever de OPA.
Efectivamente, tendo presente que o art. 20.º,
n.º 1, al. b) (aplicável ex vi do art. 187.º) consa-
gra uma imputação múltipla, os votos em causa
já eram imputáveis à sociedade dependente
anteriormente à transmissão, e, por via disso,
se a mesma não estava já constituída num de-
ver de OPA, tão pouco incorrerá nessa obriga-
ção em consequência da transmissão52.
A questão da obrigatoriedade de OPA coloca-
se em momento anterior, a saber, no momento
em que uma sociedade passa a estar na de-
pendência de uma entidade a quem sejam
imputáveis mais de 50% dos votos em socie-
dade aberta.
Se certa pessoa já detinha mais de 50% dos vo-
tos no momento em que a sociedade visada ad-
quiriu a qualidade de sociedade aberta, todas as
sociedades que a mencionada pessoa já domi-
nasse nesse momento não terão de lançar OPA
(tal como não tem a pessoa que as controla)
nem nessa altura nem na data ulterior em que
eventualmente venham a adquirir a titularidade
da participação em causa.
Segue-se daqui que uma cláusula como a que
constava do art. 528.º-A, n.º 1, al. e), do Código
do Mercado de Valores Mobiliários, inserida no
quadro de um sistema que consagre uma impu-
tação múltipla dos votos no seio de um grupo
societário, tem quando muito a utilidade limita-
da de eliminar dúvidas injustificadas quanto
à inexistência de um dever de OPA nos casos
de transmissões intra-grupo, tanto em senti-
do ascendente, como nos sentidos descenden-
te e lateral53.
52- O raciocínio é exactamente o mesmo que leva a considerar que a entidade dominante não fica constituída num dever de OPA pelo facto de adquirir a uma sociedade dependente uma participação superior a 50% em sociedade aberta (tais votos já lhe eram imputáveis e, portanto, a ultrapassagem do limiar dos 50% já tinha ocorrido anteriormente à transmissão). 53- Cfr., aliás, Ana Perestrelo de Oliveira, ob. cit., pág. 636: "no anterior regime jurídico, a regra privilegiadora do grupo havia sido aditada ao CMVM pelo decreto-lei n.° 261/95, de 3 de outubro para resolver dúvidas suscitadas no âmbito da versão original do Código" (sublinhado nosso).
29 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Repare-se, com efeito, que a dita cláusula só
cobria as hipótese de "aquisição por uma socie-
dade de valores detidos por outra sociedade
que com ela se encontre em relação de domínio
ou de grupo ou que seja dominada por uma
terceira sociedade que domine igualmente a
sociedade adquirente" — casos esses em que,
por força da imputação múltipla, repisa-se, os
votos já eram atribuídos à sociedade adquirente
e a transmissão nunca poderia, et pour cause,
importar na ultrapassagem de nenhum limiar54.
Falta faria uma norma diferente (if any...), que
esclarecesse antes não haver dever de OPA no
caso em que os votos de uma pessoa passarem a
ser imputados pela primeira vez a uma socieda-
de dela dependente, coisa que ocorre no mo-
mento em que a relação de domínio entre am-
bas se constitui (seja ou não a sociedade de-
pendente detentora a essa data de quaisquer
acções da sociedade visada).
O certo, contudo, é que essa norma também não
existia no Código do Mercado de Valores
Mobiliários, e nem por isso ocorreu alguma vez
a alguém, na vigência desse Código, clamar por
OPAs em cada ocasião em que uma sociedade
passou a ser depen-dente, directa ou indirecta-
mente, de pessoa que detivesse mais de 50%
dos votos em sociedade aberta. Isso terá levado
o legislador do Código dos Valores Mobiliários
a entender que uma tal norma se limitaria a
estatuir o óbvio.
Cabe aqui salientar dois pontos.
O primeiro é este: se, em lugar de ter constituí-
do a Sociedade Z, a pessoa singular do nosso
exemplo tivesse transmitido a sua participação
na Sociedade Y para uma qualquer sociedade
que ele já detivesse maioritariamente desde o
momento em que a Sociedade X adquiriu a qua-
lidade de sociedade aberta e lhe desse uns esta-
tutos iguais aos da Sociedade Z, a situação se-
ria em tudo igual à actualmente existente, sem
que, mesmo de acordo com a tese que rejeita-
mos, nenhum dever de OPA tivesse de ser cum-
prido. Isto porque os direitos de voto inerentes
à participação na Sociedade X na titularidade da
Sociedade Y já seriam imputáveis a essa outra
sociedade anteriormente à transmissão.
O segundo é que o problema trazido a juízo se
colocaria nos mesmos termos se a pessoa singu-
lar se tivesse mantido como titular da partici-
pação do capital social da Sociedade Y e tives-
se realizado o capital da Sociedade Z em di-
nheiro: na verdade, sendo esta uma sociedade
dominada por aquela pessoa, sempre lhe seriam
atribuídos os direitos de voto na Sociedade X
imputados àquela (mau grado não possuir uma
única acção da Sociedade X ).
Em duas palavras: a imposição de OPA nos
casos em apreço seria tão absurda que, de facto,
o argumento que usámos no nosso escrito de
2000 acaba por não passar de um argumentum
ad terrorem, que não procede. Sem rebuço se
estende aqui a mão à palmatória55.
5.6 A um sistema de imputação múltipla
subjaz uma consideração grupal unitária
Está fora de cogitação que, ao impor uma impu-
tação múltipla, tivesse sido propósito do legis-
lador comunitário obrigar ao lançamento de
OPAs nos casos a que nos vimos referindo.
Na Alemanha, onde a imputação múltipla, en-
quanto durou, era sobretudo fonte de inconveni-
entes burocráticos (necessidade para a nova
sociedade dependente de requerer ao BaFin a
desconsideração dos votos) Arnold sugeria
como saída uma interpretação do § 31, I, 1, da
O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 29
54- Como se adverte no artigo A imputação de direitos de voto no Código dos Valores Mobiliários, assumindo uma imputa-ção múltipla, "a eliminação da hipótese de derrogação da obrigatoriedade do lançamento de uma OPA prevista no art. 528º-A, n.º 1, al. e), do CodMVM (...) só pode ter ficado a dever‑se à circunstância de o legislador a reputar completamente dispensável". 55- Não será caso, julga-se, para citar Emerson: "A foolish consistency is the hobgoblin of little minds, adored by little statesmen and philosophers and divines (…). Speak what you think now in hard words, and tomorrow speak what tomorrow thinks in hard words again, though it contradict everything you said today”.
30 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
WpÜG que o reduzisse ao limite do razoável,
entendendo-se a imputação múltipla dele decor-
rente como traduzindo uma espécie de controlo
pelo grupo: "o controlo pertence ao grupo na
configuração que tem em cada momento" com
o que "a inclusão adicional de sociedades não
conduziria a uma 'obtenção do controlo'", e
não obrigaria a OPA56.
Este parece ser realmente o caminho indicado.
A imputação múltipla assenta numa considera-
ção unitária do todo formado por uma entidade
e pelas diversas sociedades que a mesma em
cada momento domine, directa ou indirecta-
mente; esse grupo é encarado como um organis-
mo cuja identidade se mantém enquanto for a
mesma a entidade controladora, não sendo
afectada por alterações ocorridas ao nível das
suas células componentes.
Nas palavras de Paulo Mota Pinto, no seu
parecer inédito a que tivemos acesso: "o domí-
nio relevante para efeitos de imputação deve
compreender todo o potencial de influência reu-
nido no seio desse grupo, e sob o controlo de
uma mesma entidade-cúpula — seja ela uma
pessoa singular ou colectiva, em face das re-
gras, bem assentes, sobre o âmbito pessoal de
aplicação. E deste modo, a inclusão adicional
de uma ou mais sociedades na cadeia de um
mesmo grupo, que não deixa de ser o mesmo
grupo por causa disso (uma vez que não surge a
partir dessa inclusão um novo controlador, um
novo potencial de influência), constitui-a em
mais um vaso comunicante de imputação dentro
do grupo (…). As regras de imputação de direi-
tos de voto, ao atuarem nos sentidos ascenden-
te, descendente e lateral, criam um sistema de
vasos comunicantes do controlo que torna des-
de logo irrelevantes, sem que a lei o tenha que
expressamente dizer, as 'realocações' intragru-
po de direitos de voto, fazendo com que se não
possa dizer que, por força de tal 'realocação', ou
de uma interposição de um novo elo na mesma
'cadeia de domínio', se passou a superar um li-
miar relevante para o dever de lançamento de
OPA (com uma 'mudança de controlo')".
5.7 A inexistência de interesses
dos accionistas minoritários dignos de tutela
A mera alteração de título de imputação, já o
vimos, não é constitutiva de um dever de
OPA, por maior e mais profundo que seja o
seu impacto dessa alteração sobre as
“condições de investimento” dos accionistas
minoritários — sendo certo que esse impacto
pode efectivamente ser bastante significativo,
como o ilustram algumas das hipótese por nós
figuradas supra sob 3.
Acompanhamos, neste passo, Thomas
Liebscher57: “em tais constelações os interes-
ses dos accionistas externos da sociedade visa-
da não são tão carecidos de protecção como
nos casos em que um terceiro que vem de fora
adquire uma participação de controlo. O risco
de transferências de participação dentro do
grupo das entidades domi-nantes na situação
de domínio anterior é intrínseco a essa situa-
ção e os accionistas externos encontram-se
[depois das transferências], como se encontra-
vam antes, diante de um dos anteriores titulares
do domínio, de tal forma que não parece exigí-
vel uma reapreciação da sua decisão de investi-
mento, tanto mais que o direito das tomadas de
domínio pura e simplesmente não pode oferecer
uma protecção completamente isenta de bre-
chas”. (sublinhado nosso).
Aqui é que bate o ponto: quem adquire acções
numa sociedade cotada já sabe de antemão
que a transmissão de acções dentro do círcu-
lo de accionistas a quem determinada parti-
cipação seja imputável não gera dever de
OPA e, portanto, não pode deixar de aceitar
56- Ob. cit., pág. 517. 57- Ob. cit., págs. 1015.
31 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
arcar com o risco correspondente (aliás inex-
pressivo), incorporando-o na sua decisão de
investimento.
6. Da inexistência do dever de OPA
mesmo pressupondo-se uma imputação
dentro de um grupo apenas em sentido
descendente
Admitamos, for the sake of argument, que a
imputação de votos decorrente do art. 20.º, n.º
1, al. b) operava apenas em sentido ascendente
e que a nossa lei não reconhecia o tal controlo
pelo grupo (ou seja, que " o controlo pertence
ao grupo na configuração que tem em cada
momento" com o que, logo por isso, "a inclusão
adicional de sociedades não conduziria a uma
'obtenção do controlo'", e não obrigaria a
OPA); mesmo assim não é legítimo sustentar
que a sociedade Z do nosso exemplo incorreu
num dever de OPA, em virtude da inter-
pretação restritiva de que, nessa hipótese, o art.
187.º, n.º 1, teria de ser objecto. Vejamos uma
vez mais.
6.1 Necessidade de uma interpretação
teleológica do art. 187.º, n.º 1, do CVM
Como bem salienta Paulo Mota Pinto no seu
citado parecer "nenhum dado (legislativo, da
prática do mercado de capitais ou qualquer ou-
tro) pode infirmar a necessidade de interpreta-
ção das normas jurídicas em causa à luz da res-
petiva teleologia, à luz do respetivo fim sócio-
jurídico, tendo aliás de, no quadro da interpreta-
ção dessas normas, ser atribuída proeminência a
tal 'elemento teleológico' (...). A interpretação
da norma do art. 187.º, n.º 1, à luz da teleologia
que lhe é ínsita, não dispensa que se indague, de
modo decisivo, em que medida alterações na
estrutura de domínio devem ou não ter conse-
quências ao nível da vinculação ao lançamento
de uma OPA obrigatória"58.
Hoje em dia é largamente dominante a opinião
que recusa uma interpretação literal e uniforme
dos critérios de imputação dos votos nos termos
do artigo 20.º do CVM (para os quais remete o
art. 187.º, n.º 1), e que conclui que, para efeitos
do dever de lançamento de OPA, as diversas
alíneas daquele preceito devem apenas ser con-
sideradas se, e na medida em que, à imputação
de direitos de voto corresponda uma situação de
efetivo domínio ou controlo da sociedade visa-
da. A CMVM afina pelo mesmo diapasão.
Não perfilhamos esta opinião. Mesmo a ser ver-
dade, porém, que se tem de interpretar as regras
sobre a imputação de direitos de voto sob a égi-
de da respetiva teleologia ou consequência —
no caso, por força da remissão do artigo 187.º,
n.º 1, a constituição de um dever de lançamento
de OPA —, “isso não dispensa, em rigor, que se
identifique a ratio legis (o surgimento do dever
de lançamento de OPA) que deva justificar a
consideração deste ou daquele aspecto de facto
e/ou de direito como integrante ou conducente
ao domínio para efeitos jurídico-mobiliários,
conforme computado por via das regras de im-
putação de direitos de voto"59.
Na Alemanha, diga-se en passant, a doutrina
divide-se sobre se o apelo ao telos do dever de
OPA para efeitos restritivos deve ser atendido
aquando da fixação do sentido das regras de
imputação de direitos de voto ou antes subse-
quentemente, quando se trata de apurar se a
ultrapassagem do patamar de votos relevante
(30%) é efectivamente geradora de um dever de
OPA60.
Não se pode é querer matar a discussão com o
argumento de que a situação examinada não é
subsumível a nenhum dos casos de derrogação
do dever de OPA previstos no art. 189.º do
CVM. Pois, como nota uma vez mais Paulo
Mota Pinto no seu parecer, "a eventual
O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 31
58- Na mesma linha cfr. Carlos Ferreira de Almeida, ob. cit., pág. 8: "Seguro é, pelo menos, que não existe no sistema jurídico qualquer princípio de in dubio pro opa e que a interpretação das normas sobre ofertas públicas segue os cânones hermenêuticos comuns". 59- Paulo Mota pinto, parecer citado. 60- Vide, por todos, Wackerbarth, ob. cit., anotações 5 e segs. ao § 30.
32 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
aplicação da exceção taxativa só pode ser discu-
tida no pressuposto de que antes a regra geral,
em momento lógico prévio, atuou no caso con-
creto, impondo pela sua previsão e teleologia
uma vinculação a um dever de lançamento de
OPA obrigatória (...). Ou por outras palavras:
não vale a pena, nem faz sentido, discutir a ex-
ceção se e quando é logo a regra geral que nem
sequer se aplica ao caso (e só se esta se aplicas-
se, num primeiro momento lógico, é que have-
ria, num segundo momento, que verificar se
essa aplicação cessaria ou não, em virtude das
exceções que lhe dizem respeito)”.
6.2 Os fundamentos do dever de OPA
Há no essencial acordo sobre os fundamentos
da consagração de um dever de OPA — a ratio
legis, aliás, é de uma "simplicidade cristalina";
trata-se de, havendo uma modificação do con-
trolo da sociedade, assegurar uma distribuição
equitativa do prémio que seja pago e de possibi-
litar que o accionista discordante com a altera-
ção possa sair da sociedade em condições jus-
tas.
A experiência mostrou que, tanto no caso de
passar a existir pela primeira vez um accionista
de controlo, como no caso de alteração desse
accionista, ocorre frequentemente uma mudan-
ça da política e da estratégia empresariais, po-
dendo tais eventos afectar negativamente a co-
tação das acções ou a política de distribuição de
dividendos; daí a necessidade de tutelar os acci-
onistas minoritários, assegurando-lhes a oportu-
nidade de reapreciarem e reverem a sua decisão
de investimento.
Por outro lado, "é ponto assente, na análise fi-
nanceira empresarial e mobiliária, que uma par-
ticipação social que permita ao seu adquirente a
obtenção do controlo não vale apenas tanto
quanto a soma do valor de mercado de cada
ação que a compõe: vale, sim, esse montante
somado a um valor acrescido, um plus que re-
presenta o chamado prémio de controlo"61: o
dever de OPA geral provê a que esse valor
acrescido seja repartido igualitariamente entre
todos os accionistas, em vez de ser apropriado
pelo titular da participação de controlo.
6.3 Os limites ao dever de OPA impostos
pelas garantias constitucionais da liberdade
negativa de contratar e da autonomia
privada
"O dever de lançar oferta pública, na medida
em que efetivamente tenha de conduzir a final a
aquisição forçosa de valores mobiliários por
determinado preço, fixado nos termos do CVM,
põe o oferente numa posição em que a sua auto-
nomia privada se encontra comprimida próxi-
mo do mínimo imaginável: não pode furtar-se à
celebração de contratos tendentes à aquisição
dos valores mobiliários, quer queira, quer não
queira"; ora configurando a imposição do de-
ver de lançamento de OPA uma significativa
restrição à liberdade negativa de contratar do
oferente, protegida também no plano constituci-
onal, ela só poderá ser justificada, também nes-
te plano, em situações em que se encontrem em
concreto interesses de acionistas/investidores
minoritários que, efectiva ou potencialmente
afectados por uma real aquisição ou transmis-
são do controlo, careçam desde já de ser tute-
lados, pelo surgimento de tão extenso e gravoso
dever jurídico".62
Mais: a protecção da posição jurídica e do patri-
mónio daquele a quem se queira impor um de-
ver de OPA não podem ser simplesmente obnu-
bilados, e o seu interesse inteiramente desconsi-
derado, em favor de uma irrestrita protecção
dos accionistas minoritários e dos investidores,
na hora de interpretar o artigo 187.º, n.º 1.
Razões jurídico-constitucionais, de respeito
pelo princípio da proporcionalidade na previsão
de restrições ou limitações legais a valores tão
61- Paulo Mota Pinto, parecer citado. 62- Paulo Mota Pinto, parecer citado (itálico acrescentado).
33 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
fundamentais como a liberdade negativa de
contratar e a garantia da propriedade privada
exigem que o dever de OPA se contenha dentro
dos limites do que seja adequado e exigível pa-
ra protecção dos interesses dos accionistas mi-
noritários em operações de tomada de controlo
das empresas.
6.4 Os limites ao dever de OPA impostos
pelo direito comunitário
As regras do CVM relativas às ofertas públicas
de aquisição têm hoje em dia de interpretar-se
em conformidade com a Directiva 2004/25/CE,
que os Estados Membros estavam obrigados a
transpor até 20 de Maio de 2006.
A Directiva tem indiscutivelmente como
finalidade a protecção dos interesses dos accio-
nistas nos casos de mudanças de controlo
(Considerandos 3 e 9). Mas a essa finalidade
junta-se outra, qual seja a criação de um merca-
do eficiente para a tomada de controlo de
empresas63. A protecção dos accionistas minori-
tários constante do art. 3.º, n.º 1, al. a), parte
final, da Directiva, não pode fazer-se a expen-
sas desse outro objectivo, tendo de recuar onde
o interesse de que exista um mercado de capi-
tais eficiente se lhe sobreponha de forma não
despicienda64.
A isto importa ajuntar que quaisquer intromis-
sões (provindas tanto dos direitos nacionais co-
mo do direito comunitário) na liberdade de cir-
culação de capitais e de estabelecimento — co-
mo é indiscutivelmente o caso da que se traduz
imposição de um dever de OPA — só são ad-
missíveis se preencherem quatro condições:
aplicarem-se de modo não discriminatório, jus-
tificarem-se por razões imperativas de interesse
geral, serem adequadas para garantir a realiza-
ção do objectivo que prosseguem e não ultra-
passarem o que é necessário para atingir esse
objectivo (vide o Acórdão do Tribunal de Justi-
ça de 30 de Novembro de 1995, Proc. C-55/94).
6.5 No domínio multi-escalonado,
só a entidade de topo é verdadeiramente
dominante, em termos substantivos
É incontrovertida a possibilidade de que a um
domínio directo venha juntar-se um domínio
indirecto (se B domina C, mas é por sua vez
dominada por A, C será dependente tanto de A
como de B); do ponto de vista substantivo, po-
rém, nessas hipóteses, só há na verdade uma
influência dominante (a de A). Assim, designa-
damente, Koppensteiner: “nos casos de depen-
dência indirecta a vontade de domínio decisiva
é em última instância formada por um único
sujeito de direito, e não por vários: a empresa-
mãe pode determinar os termos da influência da
empresa-filha sobre a empresa neta”65.
No mesmo sentido se pronunciou a CMVM:
"(…) numa cadeia de imputação quem domina,
em última análise, é “o respetivo ultimate bene-
ficial owner […] que tem o poder fáctico e jurí-
dico de determinar o sentido em que são exerci-
dos os direitos de voto na sociedade aberta, in-
dependentemente do número de entidades que
entre si e a sociedade aberta se interponham
[…]".
6.6 A razão de ser ou teleologia
do art. 187.º, n.º 1, do CVM, não está
presente nas hipóteses de restruturações
intra-grupo
A este respeito, há uma nota muito importante a
reter: na circulação intra-grupo que aqui se tem
em vista não podem entrar novas pessoas que
passem a partilhar com outras o domínio anteri-
ormente existente (pessoas a quem não eram
O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 33
63- Vide Martin Philipp Heuber, ob. cit., pág. 66 e segs: essa finalidade deduz-se, designadamente, de alguns dos preceitos da Directiva (assim, por ex., do art. 3.º, n.º 1. al. d), que proíbe a criação de "mercados artificais"), e do próprio facto de esse acto ser emanado ao abrigo do art. 44.º, n.º 1, do Tratado da Comunidade Europeia (correspondente ao art. 50.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia), segundo o qual a adopção de directivas se destina a "realizar a liberdade de estabelecimento". 64- Martin Philipp Heuber, ob. cit., pág. 72. 65- Kölner Kommentar zum Aktiengesetz, vol. I, 3.ª edição, anotação 32 ao § 17).
34 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
anteriormente imputados quaisquer direitos de
voto). Exige-se, pelo contrário, que em conse-
quência dela, os votos inerentes às acções trans-
mitidas não sejam imputáveis senão à pessoa
que estiver no vértice da pirâmide societária e
às sociedades integrantes desse grupo (e, por-
ventura, a outras entidades a quem já fossem
atribuídos, mas não a qualquer outra nova enti-
dade). "Está em causa a mera introdução de um
elo societário suplementar, inócua do ponto de
vista da prévia influência dominante, que se
mantém.
Pois bem. Na Alemanha, Fuhrman e
Oltmanns defendem que restruturações no seio
de um grupo assim entendidas não podem de-
sencadear um dever de lançamento de OPA,
na medida em que pressuposto desse dever é
que surja um “potencial de influência que
anteriormente não existisse”; ora “isso não é o
que se passa nos negócios entre um accionista
e aquelas pessoas cujos votos lhe sejam imputá-
veis (ou aliás também entre tais pessoas)”, não
havendo “nenhum interesse digno de tutela dos
accionistas externos em que lhes seja feita uma
(nova) oferta obrigatória”66.
O BaFin e a grande maioria dos outros autores
alemães recusa esse entendimento, mas com o
único argumento de que a sua adopção tornaria
“vazio” o § 36, III, da WpÜG, o qual justamen-
te, como se viu, permite que, mediante requeri-
mento formulado àquela entidade, não sejam
contados os votos inerentes às acções adquiri-
das em resultado de reestruturações no seio de
um grupo.
Este argumento, à primeira vista irrespondível,
não chega para desarmar os Fuhrman e
Oltmanns:
“esta concepção do BaFin é dificilmente
compreensível. Numa reestruturação no seio
de um grupo não há alteração prejudicial
aos accionistas externos. A influência decisi-
va continua a ser exercida como dantes pela
empresa mãe do grupo em causa. Nem o
valor nem a natureza da participação dos
accionistas externos na sociedade é substan-
cialmente alterada (…). A fundamentação
do BaFin, segundo a qual a regulamentação
do § 36, nr. 3, ficaria na prática esvaziada,
afigura-se não ser muito convincente diante
destas considerações baseadas nas finalida-
des da WpÜG”.
Convém não perder de vista que, na Alemanha,
o ponto não tem importância prática por aí
além: trata-se apenas de saber se a sociedade
do grupo adquirente está isenta do dever de
OPA sem mais, ou se tem de requerer a descon-
sideração dos votos ao BaFin (que não a pode
recusar). Entre nós, onde não existe regra seme-
lhante à do § 36, III, da WpÜG, não há nenhum
argumento para não retirar da razão de ser da lei
a consequência preconizada por Fuhrman e
Oltmanns. Como referem Noack/Zetsche, a
exigência de obter a desconsideração de votos é
totalmente inadequada, porque uma reestrutura-
ção na prática não muda em nada o controlo por
parte da sociedade de cúpula, e os accionistas
não carecem de protecção67.
Não são dignos de tutela, pelo menos, em ter-
mos que justifiquem um dever de OPA, ou seja,
uma restrição tão significativa à liberdade nega-
tiva de contratar do oferente, protegida também
no plano constitucional, e à liberdade de estabe-
lecimento e de circulação de capitais, protegida
no plano comunitário.
Assim o comprova a lição do direito compara-
do. Tem toda a razão quem afirme que "a análi-
se do Direito comparado permite compreender
que nesses ordenamentos o entendimento é o de
que a circulação entre pessoas relacionadas por
laços de domínio ou sociedades em relação de
66- Pflichtangebot bei konzerninternen Umstrukturierungen? Praktische Erfahrungen mit § 36 Nr. 3 und § 37 WpÜG, in NZG - Neue Zeitschrift für Gesellschaftsrecht, 2003, pág. 18. Em sentido idêntico Seibt/Heiser, Übernahme und Umwandlungsrecht, in Zeitschrift für das gesamte Handelsrecht und Wirtschaftsrecht, 2001, págs. 492 e seg.. 67- KapitalmarktrechtsKommentar, de Schwark/Zimmer, 4.ª edição, anotação 13 ao § 36 da WpÜG.
35 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
grupo recai (…) na previsão da obrigação de
lançamento de OPA, de forma que se preveem
exceções em determinados casos, o que de ou-
tra forma não faria sentido".
O que acontece, simplesmente, é que, pressu-
pondo embora a obrigatoriedade de OPA, do
ponto de vista da ratio legis, uma alteração ma-
terial do domínio, a maioria das legislações
socorre-se de uma noção formal para delimitar
o âmbito dessa obrigatoriedade (a ultrapassa-
gem de um certo número de votos, contados de
determinada maneira) — e daí precisamente a
necessidade de restringir o âmbito de aplicação
da norma que acolhe essa noção, de modo a
assegurar a conformidade entre o regime aplicá-
vel e o telos do dever de lançamento. As
"excepções" (recte: "restrições") são necessárias
porque a letra da lei vai além do seu espírito (é
por isso que elas surgem nas diversas legisla-
ções); se o próprio legislador não as prevê
caberá ao órgão aplicador do direito restringir o
teor literal, segundo os cânones hermenêuticos
gerais.
Não se objecte que a tese de que "a alteração do
domínio efetivo constitui um limite imanente
do dever de lançamento de OPA, que, por isso,
não tem de considerado como exceção a esse
dever"68 significaria a abrogação da presunção
legal inilidível de “alteração de domínio efecti-
vo” quando é ultrapassado o limite de 1/2, re-
sultante do artigo 187. n.º 1 do CVM, a abroga-
ção da presunção legal inilidível do domínio,
resultante do artigo 21.º n.º 2 al. a) do CVM, e a
equiparação dos regimes da ultrapassagem do
limite de 1/3 e 1/2, regimes que o legislador
quis expressamente distinguir".
Efectivamente, o que se alega para subtrair ao
campo de aplicação do art. 187.º, n.º 1, os casos
de restruturações intragrupo em que uma socie-
dade adquire da pessoa que a domina uma parti-
cipação que lhe confere mais de metade dos
votos numa sociedade aberta não é que a mes-
ma não lhe proporciona o domínio desta última
sociedade, antes que a influência dominante
veiculada por essa participação verdadeiramen-
te não pertence ao respectivo titular jurídico-
formal, sujeito que está, por sua vez, ao domí-
nio de outrem; não pode figurar-se sequer um
domínio conjunto, na medida em que para tanto
seria imprescindível que o seu exercício depen-
desse de uma vontade comum da entidade do-
minante e da sociedade dependente, para cuja
formação ambos pudessem contribuir de manei-
ra autónoma.
Dito de outro modo, a não obrigatoriedade de
uma OPA nestes casos não decorre de não ha-
ver aquisição do domínio, mas de este ser mera
correia de transmissão de um outro que lhe pré-
existia e que subsiste, não cobrando por isso
relevo, assim, no plano material ou dos interes-
ses em jogo.
Como quer que seja: o art. 187.º, n.º 1, do
CVM, interpretado como consagrando um de-
ver de OPA em casos em que não há alteração
substancial da situação de controlo, como ocor-
re no caso sub judice, seria inconstitucional, por
violação dos arts. 26.º, n.º 1 (que consagra um
direito ao desenvolvimento da personalidade do
qual decorre a tutela de uma liberdade geral de
acção), 61.º e 62.º da Constituição, e ilegal por
violação dos arts. 49.º e 63.º do Tratado sobre o
Funcionamento da União Europeia.
6.7 A inexistência no caso sub judice
de uma alteração significativa da situação
de domínio
O certo, porém, é que se invoca que a situação
de domínio da Sociedade X se modificou, e em
termos essenciais.
Engrácia Antunes, por ex., no seu parecer,
escrevia: "Em face do exposto, julgamos ter
O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 35
68- Carlos Ferreira de Almeida, ob. cit., pág. 11.
36 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
ficado claro que a situação de domínio preexis-
tente se alterou: no lugar de um domínio de na-
tureza individual (exercido por uma pessoa sin-
gular) e solitário (exercido por um único sujei-
to), a [Sociedade X] é hoje objeto de um domí-
nio de natureza societária (exercida através de
pessoa jurídica societária) e coletiva (em cuja
conformação participam vários sujeitos, na
qualidade de acionistas e membros dos órgãos
sociais dessa mesma sociedade)".
Esta asserção e os argumentos em que se es-
triba só fazem sentido no impecável
"legalês" em que são escritas. O domínio últi-
mo, “na cadeia de domínio” que já existia antes
da constituição da Sociedade Z, competia, co-
mo continua hoje a competir, à mesma pessoa
singular. E esse domínio era já então complexo,
na medida em que, embora a sua detenção últi-
ma coubesse a essa pessoa, o seu exercício exi-
gia já a passagem intermédia pelo outro elo do
domínio: a Sociedade Y .
Paulo Câmara, no parecer junto aos autos,
contrapõe que, com a criação da Sociedade Z,
"passa a existir um domínio conjunto da
[Sociedade X], exercido quer pela [Sociedade
Z], quer pelo accionista dominante desta últi-
ma69. Mas a tese é totalmente improcedente,
com o devido respeito.
Se a Sociedade Z tivesse sido constituída em
termos tais que o seu controlo fosse objecto de
uma partilha com alguma outra pessoa (a quem
não fossem anteriormente imputados os direitos
de voto) não se questiona que esse outro accio-
nista co-controlante estaria obrigado a uma
lançar uma OPA.
Só que não é isso o que se passa. A influência
dominante sobre a Sociedade Z pertence exclu-
sivamente à pessoa singular que anteriormente
já detinha o domínio indirecto da Sociedade X.
Essa pessoa tem a maioria suficiente para asse-
gurar a prevalência da sua vontade; parafrase-
ando Engrácia Antunes, graças à participação
quase totalitária do capital e votos que detém na
Sociedade Z, a referida pessoa singular está
“em condições de imprimir, de um modo juridi-
camente estável e permanente, o cunho da res-
pectiva vontade no seio da estrutura organizati-
va desta última sociedade, determinando o sen-
tido das decisões da respectiva Assembleia Ge-
ral e, mediatamente (em virtude do poder de
eleição, destituição e remuneração dos seus
membros), das decisões dos respectivos órgãos
de administração” — e nisso consiste precisa-
mente a influência dominante no quadro das
sociedades comerciais.
Se uma pessoa detém o poder de influência do-
minante sobre uma sociedade, não pode haver
mais ninguém com esse poder. Só uma influên-
cia pode ser dominante ("perante duas influên-
cias distintas, ou uma é dominante e desaloja a
outra, ou ambas se excluem mutuamente70"); na
hipótese de um controlo conjunto, o que aconte-
ce é que, havendo embora também uma só in-
fluência dominante, a mesma assenta na coor-
denação dos poderes de influência de 2 ou mais
sócios — o que, contudo, nada tem a ver com o
caso que analisamos.
Em suma: o poder de influência dominante
sobre a Sociedade X pertence hoje, em última
instância, à mesma pessoa singular que o deti-
nha anteriormente à constituição da Sociedade
Z. Improcede em absoluto a tese de que houve
“introdução na cadeia de controlo de nova hol-
ding em que um antigo accionista (…) partilha
o controlo com novos accionistas” — afirmar
isso é desconhecer em que consiste a figura da
partilha de controlo ou do controlo conjunto.
O preenchimento dos denominados requisitos
de “neutralidade e de coincidência das partes”
69- Segundo Paulo Câmara, à semelhança de Engrácia Antunes, a constituição da sociedade Z "inaugura (…) um processo de transferência do domínio sobre a (Sociedade X), de domínio individual, para co-domínio vertical". Não se chega a entender, na lógica destes autores, por que é que, anteriormente, a situação era de domínio individual da pessoa singular, e não de co-domínio vertical da pessoa singular e da sociedade Y. 70- Geßler, in AktG Kommentar, de Geßler, Hefermehl, Eckardt e Kropf, vol. I, anotação 71 e segs. ao § 17.
37 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
— se com isso se pretende significar que não é
suficiente a manutenção do mesmo accionista
último de controlo, e, designadamente, que é
necessário que este detenha 100% do capital da
sociedade que é adicionada à cadeia de domínio
— não se justifica no quadro do sistema erigido
pela nossa lei que apenas cuida de proteger os
accionistas minoritários no pressuposto de que
a situação de controlo se altera em termos
tais que surge um novo sócio controlador
(recorde-se que a mera alteração de título de
imputação não é constitutiva de um dever de
OPA, por maior e mais profundo que seja o seu
impacto dessa alteração sobre as “condições de
investimento” dos accionistas minoritários), e,
mais a mais, não serviria absolutamente para
nada: como a questão de obrigatoriedade ou não
obriga-toriedade de OPA se tem de resolver no
momento em que é ultrapassado um dos pata-
mares de direitos de voto legalmente relevantes,
nada impediria que o capital, detido integral-
mente naquele momento, fosse, sem obrigatori-
edade de OPA, transmitido parcialmente a ter-
ceiros no instante seguinte, de par, já agora,
com a atribuição a esses terceiros de “direitos
consagrados estatutariamente"; única condição
é que, por via disso, o terceiro não adquira o
domínio ou o co-domínio da sociedade (o que
não é o caso sempre que os votos inerentes às
acções da sociedade-alvo detidas pela tal socie-
dade adicionada à cadeia de domínio não se
tornem imputáveis a esse terceiro).
Não tem nenhum sentido não usar este mesmo
critério no próprio momento em que a socieda-
de passa a integrar a cadeia de domínio: não
haverá dever de OPA desde que o terceiro ou
terceiros que sejam sócios dessa sociedade in-
terposta e tenham direitos estatutários não parti-
cipem no domínio dessa sociedade, cabendo
antes esse domínio a quem já era, e continua a
ser, o accionista de controlo da sociedade aberta
em causa.
6.8 A certeza e segurança jurídica
Estamos plenamente convictos de que a inter-
pretação da lei que rejeitamos é completamente
errónea, mesmo que fosse possível desenvolver
a actividade hermenêutica fazendo abstracção
do modo como a lei tem sido uniformemente
entendida e aplicada ao longo de muitos anos.
O facto, porém, é que não é. O valor da segu-
rança jurídica (que em matér ia mobiliár ia
assume particular acuidade) postula que os des-
tinatários de uma norma possam confiar em que
os tribunais a aplicarão com o sentido que gene-
ralizadamente lhe é atribuído, salvo casos
excepcionalíssimos.
Isto é particularmente assim quanto a normas
que permanecem intocadas depois de o instituto
em que se integram ter sido objecto de uma in-
tervenção legislativa (como aconteceu com o
art. 187.º, n.º 1, do CVM, aquando designada-
mente da reforma do instituto das OPAs levada
a cabo pelo Decreto-Lei n.º 219/2006, de 2 de
Novembro), pois é legítimo ver nessa circuns-
tância um sinal de concordância do legislador
com a interpretação prevalecente (sinal esse
tanto mais forte quanto maior for o grau da pre-
valência: a lei não é lei se não encarnar na vida
que é suposta regular).
É pelo menos inusitado que, em nome da
certeza e da segurança jurídica — é dizer, da
previsibilidade das decisões —, se defenda
uma leitura literal da lei que, a ser acolhida e
aplicada, apanharia totalmente de surpresa o
nosso mercado de valores mobiliários e a ge-
neralidade dos seus agentes, lançando ondas
de choque sobre uma experiência pacata de
mais de dez anos sem notícia de qualquer inci-
dente relacionado com a questão em apreço e
criando no mercado um verdadeiro caos, pelas
repercussões daí decorrentes sobre um amplo
leque de operações transactas.
O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 37
38 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Inúmeras operações que implicaram a
"adveniência de novos sujeitos" à cadeia de
controlo tiveram lugar desde Abril de 2000 sem
que ninguém — positivamente ninguém — ti-
vesse aventado a obrigatoriedade de uma OPA.
Podem citar-se, sempre a título de meros exem-
plos, o que aconteceu com a Sonaecom em Ja-
neiro de 2007 (a Sontel BV passou a constituir
um elo adicional na cadeia existente entre o
Eng. Belmiro de Azevedo e a sociedade sua
dominada Sonaecom) e, ainda muito recente-
mente, com a Jerónimo Martins SGPS, S. A. (o
domínio directo que sobre ela exercia a Socie-
dade Francisco Manuel dos Santos, SGPS S.A,
passou a ser indirecto, mercê da interposição da
Sociedade Francisco Manuel dos Santos B.V.).
Isto para já não falar das dezenas ou centenas
de casos em que novas sociedades passaram
simplesmente a integrar grupos de que fazem
parte sociedades abertas, e a quem, por força da
imputação múltipla, passaram por esse mero
facto a ser imputáveis votos em percentagem
superior aos limiares de obrigatoriedade de
OPA.
Perante um consenso tão vasto, em que par-
ticipa a própria CMVM (a entidade a quem a
lei comete a supervisão e a regulação do merca-
do de valores mobiliários!), não é mini-
mamente admissível uma interpretação feita
em redoma de vidro — para mais, insiste-se,
em nome de “exigências imperativas de segu-
rança e de previsibilidade”. Estas exigências
postulam, sim, que se respeite a interpretação
prevalecente e não se introduza uma feroz litigi-
osidade onde tem imperado total harmonia71.
Essa harmonia é possível porque a interpretação
restritiva propugnada não abre a porta a discus-
sões a propósito de situações concretas, passí-
veis de minar a segurança na aplicação do direi-
to, pretendida pelo legislador. Nada há para
discutir: a recomposição de grupos que impli-
que a "adveniência de novos sujeitos" à cadeia
de controlo nunca gera obrigação de OPA, sem-
pre que se mantenha a cabeça do grupo e os
votos não se tornem imputáveis a qualquer enti-
dade alheia ao grupo (não é, pois, que umas
vezes a determine e outras não, de acordo com
uma qualquer ponderação das circunstâncias do
caso concreto que pudesse ser fonte de dúvidas
e incertezas).
6.9 Considerações finais
Não se pode falar de deveres de OPA, passe a
expressão, como quem bebe um copo de água!
A tutela dos accionistas minoritários consubs-
tanciada na imposição de um dever de OPA
representa um encargo tão oneroso para o obri-
gado que tem de ser reservada para os casos de
verdadeira alteração material do controlo (e,
aliás, nem para todos); trata-se de um remédio
poderoso e dispendiosíssimo para uma doença
grave, não de um placebo para pacientes hipo-
condríacos ou com a síndrome de Münchausen.
Tal tutela tem, por outras palavras, de ser man-
tida dentro de limites razoáveis. O interesse dos
minoritários não é o único que está em jogo. A
sua protecção não pode ir ao ponto de sacrificar
a liberdade do accionista de controlo de movi-
mentar a sua participação no interior do seu
grupo empresarial; enquanto se mantiver a
cúpula do grupo, os accionistas continuarão a
confrontar-se com a mesma situação de domí-
nio, em termos substanciais.
Mas, por força dessa liberdade, os sócios mino-
ritários sabem que, cessada a relação de domí-
nio entre a pessoa controladora e a sociedade
que seja a titular directa da participação, apenas
se tornará obrigatória uma OPA se e quando
essa sociedade vier a tornar-se dependente de
outra ou outras entidades. Assim o reconhece a
71- Como refere Paulo Mota Pinto (Parecer PMP, pág. 92): "E quanto à certeza jurídica ou segurança do mercado de valores mobiliários no seu todo, basta-nos remeter para a circunstância, suficientemente eloquente, de, em vários anos de aplicação do Código de Valores Mobiliários, em operações idênticas (ou pelo menos semelhantes em todos os aspectos relevantes) à que está agora em causa, nunca se ter concluído pela necessidade de lançamento de uma OPA geral — nem a CMVM a ter exigido, nem a doutrina ter reclamado a sua consagração, nem sequer o legislador, apesar de ter revisto o CVM, nunca ter vindo contrariar esta prática com uma alteração legislativa correspondente”.
39 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
a doutrina alemã: a empresa-filha não fica
obrigada a OPA no momento em que cessa a
relação de dependência e em que pela primeira
vez pode exercer de modo independente o seu
controlo directo sobre a sociedade visada72.
O Dever da OPA no Quadro das Transmissões Intra-grupo : 39
72- Ekkenga, in WpÜG - Kommentar, de Ehricke/Ekkenga/Oeschsler, anotação 27 ao § 27.
40 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
OPA Derrogatória A derrogação do dever de lançamento de OPA com fundamento no prévio lançamento de OPA voluntária: momento em que deve ser apreciada e requisitos de que depende Domingos Salgado e Juliano Ferreira *
Apresentação do Tema
A derrogação do dever de lançamento de Oferta
Pública de Aquisição (“OPA”), com fundamen-
to no lançamento prévio de OPA voluntária, por
via da qual o oferente tenha dado cumprimento
às exigências subjacentes àquele dever jurídico,
encontrou entre nós previsão legal mesmo antes
da entrada em vigor da Diretiva n.º 2004/25/
CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de
21 de abril de 2004 (“Diretiva das OPAs” ou
apenas “Diretiva”), de onde de resto se destaca
como a única exceção naquela expressamente
prevista.
O lançamento de OPA voluntária pode, cumpri-
dos determinados requisitos, eximir do dever de
lançamento de OPA aquele que, por aquela via,
vem a adquirir o controlo de determinada socie-
dade aberta.
Ainda que a norma legal em que esta assenta
não origine significativas dúvidas – a julgar
pelo pouco interesse que tem despertado na
doutrina especializada –, a verdade é que, no
âmbito da sua efetiva implementação, não raras
vezes surgem questões quanto ao alcance inter-
pretativo dos seus requisitos, bem como quanto
ao concreto procedimento a seguir por quem de
tal derrogação pretenda beneficiar. Na última
década, e com maior incidência em tempo
próximo daquele em que escrevemos, a previ-
são da natureza derrogatória da OPA voluntária
como condição de lançamento1, ou seja, sem
verificação da qual o respetivo registo da OPA
voluntária não deve ser concedido, tem posto a
nu algumas dúvidas e potenciais incoerências
do regime legal entre nós vigente.
Nesta sequência, e sem significativas preocupa-
ções de sistematização dogmática ou conceptu-
al, reservamos à figura da “OPA derrogatória”
– a OPA voluntária lançada em termos tais que
habilitam o oferente que assim venha a adquirir
o controlo a não ficar sujeito ao dever legal de
lançamento de OPA subsequente – as linhas
que se seguem, com o propósito exclusivo de,
partilhando as dúvidas acima mencionadas, (re)
lançar o debate sobre esta figura.
Não se estranhe, pois, que esta reflexão nos
conduza por um percurso entre o ser e o dever-
ser, ao nível do direito constituído e do direito
a constituir, tendo presente um confronto dialé-
tico entre o privilégio da certeza e segurança
jurídica, reclamada pelos potenciais oferentes, e
a primazia da solução materialmente justa e
equitativa, reivindicada pelos acionistas perante
OPA voluntária com pretensões derrogatórias.
* - Juristas do Departamento de Supervisão do Mercados, Emitentes e Informação da CMVM.
O presente texto expressa opiniões estritamente pessoais dos autores, que não podem ser legitimamente entendidas como manifestação da posição da CMVM sobre as matérias versadas. 1- Para uma análise das condições que legitimamente podem ser apostas às OPAs, v. Paulo Câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 609 a 611. Pelo relevo prático que esta questão assume, veja -se infra, nota 20.
41 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
1. Introdução
I. A aquisição do poder de exercer influência
dominante sobre determinada sociedade aber-
ta, revelada pelo controlo de mais de um terço
ou metade dos direitos de voto origina, em prin-
cípio, a constituição do dever de lançamento de
OPA, imposto como mecanismo de proteção
dos acionistas minoritários que se vêm confron-
tados com a superveniência de uma alteração de
controlo.
Em certas circunstâncias, porém, admite-se que
a aquisição daquele poder não dê lugar à exigi-
bilidade de cumprimento do dever a ele associa-
do. Admite-o, de resto, a própria Diretiva das
OPAs, ao conceder na previsão de específicas
exceções no direito interno dos Estados Mem-
bros, exigindo apenas a garantia de que, não
obstante a não imposição do dever, os acionis-
tas minoritários se encontrem protegidos2.
Mais: é a própria Diretiva que, de modo expres-
so, prevê o afastamento do dever «…quando o
controlo tiver sido adquirido na sequência de
uma oferta voluntária realizada em conformi-
dade com a presente diretiva, dirigida a todos
os titulares de valores mobiliários, para a tota-
lidade das suas participações»3.
Entre nós, encontra-se disposição similar no art.
189.º, n.º 1, al. a) do Código dos Valores Mobi-
liários4, que de resto precede a entrada em vigor
da Diretiva5. É pois aí que se encontra legal-
mente consagrada a figura da “OPA derrogató-
ria”, sobre que incidem as próximas linhas.
II. Não obstante a clareza com que já no pre-
âmbulo do Decreto-Lei n.º 261/95, de 3 de
outubro6 se previa que os casos de derrogação
seriam aqueles «…em que o fundamento da
obrigação de lançamento de OPA decorra da
mera verificação do facto previsto na norma»,
assim distinguindo aqueles da figura jurídica da
dispensa, a verdade é que cumprirá necessaria-
mente ao aplicador do direito a interpretação da
norma onde a derrogação se contém, sendo nes-
se campo que, não raras vezes, se têm levantado
dúvidas quanto i) aos factos de que depende a
derrogação prevista no art. 189.º n.º 1, al. a), e,
em concreto, quanto ii) ao período temporal
tomado como relevante para efeitos de determi-
nação da contrapartida que, uma vez paga na
OPA voluntária, contribuirá para o afastamento
da exigibilidade de cumprimento do dever de
lançamento de OPA.
OPA Derrogatória : 41
2- Assim decorre do art. 4.º/n.º 5 da Diretiva das OPAs: «[s]em prejuízo dos princípios gerais enunciados no n.º 1 do artigo 3.º, os Estados-Membros podem estabelecer, nas regras por eles aprovadas ou introduzidas em aplicação da presente directiva, derrogações a estas regras i) incluindo essas derrogações nas suas regras nacionais, a fim de ter em conta circunstâncias determinadas a nível nacional, e/ou ii) conferindo às suas autoridades de supervisão, caso estas sejam competentes na matéria, o poder de não aplicar as regras nacionais, por forma a ter em conta as circunstâncias mencionadas na alínea i) ou outras circunstâncias específicas, exigindo-se, neste último caso, uma decisão fundamentada». A conformidade das exceções previstas no direito interno dos Estados Membros com os princípios previstos na Diretiva é um dos aspetos que tem vindo a merecer a atenção da Comissão Europeia. Sobre este tema veja-se o “Report from the Commission to the European Parliament, The Council, the European Economic and Social Committee and the Committee of the Regions, Application of Directive 2004/25/EC on takeover bids”, COM (2012) 347, final, de 28 de junho de 2012 e o contributo preparado pelos membros do European Company Law Experts, Peter Böckii, Paul Davies, Eilis Ferran, Guido Ferrarini, José Garrido, Klaus J. Hopt, Alain Pietrancosta, Katharina Pistor, Rolf Skog, Stanislaw Soltysinski, Jaap Winter e Eddy Wymeersch, Response to the European Comission’s Report on the Applicattion of the Takeover Bids Directive, Oxford Legal Studies Research Paper n.º 5/2014, disponível em http://ssrn.com/abstract=2362192. 3- Cfr. n.º 2 do art. 5.º da Diretiva das OPAs. 4- Referindo-se a este Diploma todas as normas mencionadas sem expressa menção em contrário. 5- Do Anteprojeto de Diploma de Transposição da Diretiva das OPAs para o direito português decorria que os princípios previstos no diploma comunitário já se encontravam «consagrados no Código dos Valores Mobiliários quer directamente, quer por força da conjugação de diversas disposições», cfr. ponto 2.1 do referido documento, disponível em www.cmvm.pt. 6- Diploma que veio introduzir na ordem jurídica portuguesa a figura das derrogações, aditando o art. 528.º-A ao Código do Mercado dos Valores Mobiliários. Para uma ideia do regime de OPA que então se instituiu, v. Maria Luísa Azevedo, Maria do Rosário Azevedo, Luís Bandeira, Miguel Cunha, Código do Mercado de Valores Mobiliários e Legislação Complementar – Anotado e Comentado, Porto: Associação da Bolsa de Derivados do Porto, 1.ª edição, 1996, p. 507 e ss.
42 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
III. Procuraremos, de seguida, enunciar os
fatores que estão na origem de possíveis dúvi-
das interpretativas, apontando ideias que podem
auxiliar tantos quantos estejam envolvidos na
aplicação deste regime jurídico, ou nele possam
ter interesse. Cumprirá ter em particular atenção
a adequada definição do procedimento a seguir
quando em causa esteja a invocação desta cir-
cunstância derrogatória, procurando ainda evi-
denciar, em função das conclusões obtidas, o
momento em que competirá à Comissão do
Mercado dos Valores Mobiliários (“CMVM”)
apreciar o requerimento de derrogação, que pa-
ra o efeito tem de ser apresentado por quem
dela pretenda beneficiar.
Partindo da enunciação dos factos constitutivos
da derrogação (2.1.) e da descrição do procedi-
mento para obtenção da declaração da CMVM
(2.2.), procuraremos aferir, com base num con-
fronto dicotómico entre duas perspetivas inter-
pretativas possíveis, o sentido de se considerar
– quando em causa esteja apurar a adequação
da contrapartida oferecida –, os seis meses ante-
riores ao anúncio preliminar de OPA voluntária
(3.1.) ou os seis meses anteriores ao anúncio
preliminar de OPA obrigatória (3.2).
2. A derrogação do dever de lançamento
de OPA com fundamento na aquisição
de controlo por via de OPA voluntária
prévia
2.1 Os factos constitutivos da derrogação
I. No ar t. 189.º estão previstos os casos em
que, mediante a verificação dos factos e cir-
cunstâncias previstos na letra da lei, o dever de
lançamento de OPA poderá ser “derrogado”.
Ainda que o controlo tenha efetivamente sido
adquirido e que o correspondente dever de
lançamento de OPA se tenha constituído na
esfera jurídica do novo controlador, o facto de
tal se ficar a dever a alguma das circunstâncias
relativamente às quais o legislador ajuizou não
fazerem emergir a necessidade de proteção dos
minoritários, por via de OPA obrigatória,
permitem que aquele não fique adstrito ao cum-
primento de tal dever.
Por isso, quando em causa esteja a aplicação da
al. a) do n.º 1 do art. 189.º, haverá de se antever
que a OPA obrigatória constitui meio prescindí-
vel de proteção dos acionistas minoritários, al-
cançada já através da OPA voluntária. Uma vez
garantida a real e efetiva possibilidade de saída
dos acionistas mediante recebimento de contra-
partida equitativa, no âmbito de oferta voluntá-
ria destinada à aquisição de controlo – proteção
que a OPA obrigatória lhes concederia, uma
vez concretizada aquela intenção –, a imposição
do dever de lançamento de OPA encontrar-se-ia
esvaziada da racionalidade que tipicamente lhe
é subjacente, procurando afinal proteger quem
beneficiou já da oportunidade de sair da socie-
dade.
II. No ar t. 189.º n.º 1, al. a) encontra-se pre-
vista a derrogação do dever de lançamento de
OPA fundada na circunstância de o controlo da
sociedade ter sido adquirido por via de OPA
voluntária prévia. Ali se prevê que «(…) o dis-
posto no 187.º não se aplica quando a ultrapas-
sagem do limite de direitos de voto relevantes
nos termos dessa disposição resultar (…) da
aquisição de valores mobiliários por efeito de
oferta pública de aquisição lançada sobre a
totalidade dos valores mobiliários referidos no
artigo 187.º emitidos pela sociedade visada,
sem nenhuma restrição quanto à quantidade ou
percentagem máximas de valores mobiliários a
adquirir e com respeito dos requisitos estipula-
dos no artigo anterior».
Atenta a previsão da norma, é possível concluir
pela existência de três pressupostos de cuja
verificação cumulativa depende a respetiva
aplicação7:
7- Em sentido similar, v. Paulo Câmara, Manual…, ob. cit., p. 659, quando conclui que o oferente beneficiará da derrogação ao dever de lançamento de OPA se «o preço mínimo e a alternativa em dinheiro, nos termos do art. 188.º, tiver sido respeitado na sobredita oferta» e esta tiver a natureza de geral e total.
43 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
i) O oferente deve ter adquirido o controlo
da sociedade visada em resultado de uma
OPA por si lançada, assim preenchendo o
pressuposto de que depende a constitui-
ção do dever de lançamento de OPA, pre-
visto no art. 187.º n.º1;8
ii) A oferta voluntariamente lançada deve
ter-se qualificado como geral e totalitária,
i.e., deve ter sido dirigida à generalidade
dos acionistas e ter tido por objeto a tota-
lidade dos valores mobiliários não deti-
dos pelo oferente (ações e outros valores
mobiliários emitidos pela sociedade visa-
da que confiram direito à sua subscrição
ou emissão), sem restrições ao montante
máximo de valores mobiliários a adqui-
rir;
iii) A contrapartida oferecida deve ter respei-
tado os requisitos estabelecidos no art.
188.º, onde se preveem os critérios para
determinação da contrapartida mínima
legal a oferecer no âmbito de OPA
obrigatória.
III. Em consideração ao primeiro facto cons-
titutivo, cumpre salientar, ainda que sucinta-
mente, que este apenas se encontra verificado
quando o oferente, em resultado da oferta lan-
çada, obtenha o controlo da sociedade visada,
i.e., adquira um número de ações que, ultrapas-
sando um dos limites quantitativos previstos no
número 1 do art. 189.º, lhe atribua a possibilida-
de de exercer sobre ela influência dominante9.
Se ao oferente vierem a ser imputados direitos
de voto, por convocação dos critérios de impu-
tação do art. 20.º, em medida superior às fasqui-
as legalmente previstas, mas tal não lhe atribuir
o poder de exercer influência dominante (art.
21.º), a derrogação já não lhe aproveitará, pois,
sendo sua função a de afastar a exigibilidade de
cumprimento do dever de lançar OPA, ela só
poderá ser exercida se o dever em causa se tiver
efetivamente constituído10. Sintetizando, a der-
rogação apenas aproveita a quem efetivamente
se tenha constituído no dever de lançamento de
OPA, de acordo com o critério de identificação
de posições de domínio inerente ao art. 187.º
n.º1.
IV. No que diz respeito ao segundo facto
constitutivo (recorde-se, oferta geral e totalitá-
ria), ao mesmo está inerente o pressuposto de,
através da OPA, ter sido atribuída uma oportu-
nidade de “saída” à totalidade dos acionistas
minoritários. A alteração de controlo numa so-
ciedade acarreta uma pluralidade de riscos po-
tenciais para os acionistas minoritários11 que, de
acordo com a Diretiva das OPAs, estão na
origem da exigência de que o novo controlador
dirija, o mais rapidamente possível, uma oferta
de compra «…a todos os titulares de valores
mobiliários, para a totalidade das suas partici-
pações»12.
OPA Derrogatória : 43
8- Antecipa-se, desde já, que o anúncio relativo ao apuramento de resultados deverá, para que a derrogação venha a ser declarada, conter a informação relativa à quantidade de valores mobiliários e direitos de voto que o oferente passou a deter, calculados nos termos do art. 20.º (cfr. art. 16.º, n.º 2 do Regulamento da CMVM n.º 3/2006 [Ofertas e Emitentes]).
9- Em virtude de limitações de espaço, da complexidade do tema e por não ser um aspeto central para o problema que nos propomos tratar neste artigo, optámos por não desenvolver o tema da imputação do dever de lançamento de OPA obrigatória, em particular no que respeita aos critérios que devem presidir à identificação de situações de aquisição de controlo.
10- Em tais circunstâncias – que serão, por exemplo, as de quem ultrapasse a fasquia de um terço, havendo acionista(s) com participação superior –, ao participante já não poderá aproveitar a derrogação do dever de lançamento de OPA, pois na sua esfera jurídica não se chegou a sedimentar o poder de exercer influência dominante sobre a sociedade. Em tal circunstância, dever-se-á ao invés considerar encontrar-se o participante em condições que o colocam no âmbito da prova negativa de domínio, por se verificar que a imputação de direitos de voto que para si resulta, superior embora à fasquia de um terço, não lhe atribui o poder de exercer influência dominante sobre a sociedade. Em termos práticos, sucederá então que se verificará plenamente aplicável o regime dos n.os 2 e 3 do art. 187.º, não só no que respeita aos deve-res de comunicação de incrementos de 1%, como ao dever de lançamento de OPA logo que adquira uma posição que lhe permita exercer influência dominante sobre a sociedade visada (sem que possa ser para o efeito invocada a derrogação ao dever de lançamento de OPA).
11- Associados ao risco de apropriação de benefícios privados do controlo. Para um maior desenvolvimento desta problemática, v. Ana Perestrelo de Oliveira, Grupos de Sociedades e Deveres de Lealdade – Por um Critério Unitário de Solução do “Conflito do Grupo”, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 370 a 378 e Alessio M. Pacces, Control Matters: Law and Economics of Private Benefits of Control, ECGI, Law working paper n. 131/2009, 2009, disponível em www.ssrn.com/abstract=1448164.
12- Cfr. n.º 1 do art. 5.º da Diretiva das OPAs.
44 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
A ratio inerente a tal exigência é a de garantir à
totalidade dos acionistas minoritários a mesma
oportunidade que todos teriam, caso a oferta a
eles dirigida fosse subsequente à aquisição de
controlo, permitindo que cada um repondere a
manutenção do seu investimento.
V. Por último, o terceiro facto constitutivo (o
preço proposto respeitar os critérios de determi-
nação da contrapartida mínima a oferecer no
âmbito de OPA obrigatória) assenta na exigên-
cia de que a contrapartida consista num “preço
equitativo”13. A previsão de uma contrapartida
mínima legal tem como fundamento, no essenci-
al, assegurar aos acionistas minoritários, con-
frontados com uma mudança de controlo, uma
real e efetiva possibilidade de saída da socieda-
de, o que apenas se encontrará garantido se a
aceitação do valor proposto não os deixar em
circunstância significativamente pior do que
aquela em que puderam sair os acionistas que
tenham alienado o bloco de controlo14 ou, na
ausência de uma tal transação, se a contraparti-
da oferecida corresponder a um montante repre-
sentativo do valor da sociedade.
VI. Porém, a remissão que é feita na par te
final da alínea a) do número 1 do art. 189.º para
os critérios aplicáveis à fixação da contrapartida
mínima a oferecer no âmbito da OPA obrigató-
ria é suscetível de levantar dúvidas, em especial
quanto ao modo de contagem do período de seis
meses relevante para apuramento da cotação
média ponderada, ou do período em que rele-
vam as aquisições efetuadas pelo oferente (ou
por pessoas consigo relacionadas).
No art. 188.º, o legislador define o modo de
determinação da contrapartida, prevendo, no
seu número 1, os respetivos critérios em que
aquele assenta por referência à cotação média
ponderada e por referência ao maior valor pago
pelo oferente, um e outro atento o período de
seis meses anterior ao anúncio preliminar. Nos
números seguintes, o legislador prevê regras a
aplicar perante a impossibilidade de recurso aos
critérios mencionados – seja por não ser efeti-
vamente possível chegar a um valor por recurso
à sua aplicação, seja porque da mesma resulta-
ria contrapartida entendida pela CMVM como
não justificada ou não equitativa (por insufici-
ente ou excessiva).
Assim, de acordo com os critérios do art. 188.º,
n.º 1, a contrapartida não poderá ser inferior ao
valor mais elevado dos seguintes montantes:
a) Maior preço pago pelo oferente ou por
pessoas relacionadas (nos termos do art.
20.º), nos seis meses anteriores à data da
publicação do anúncio preliminar da
oferta;
b) Preço médio ponderado desses valores
mobiliários apurado em mercado regula-
mentado durante o mesmo período (seis
meses anteriores à data do anúncio preli-
minar).
Em comum, as duas alíneas partilham o período
temporal tido por relevante para aferição da
contrapartida mínima a pagar, os seis meses
imediatamente anteriores à data da publicação
do anúncio preliminar.
Em circunstâncias excecionais, o aplicador do
direito deverá afastar-se do referido regime,
caso em que restará apelar à intervenção de um
auditor independente para a fixação da contra-
partida devida. A determinação da contrapartida
passará então a circunscrever-se dentro dos
resultados do trabalho do auditor independente,
de acordo com as leges artis que o devem
orientar.
13- Cfr. n.º 1 do art. 5.º, in fine, da Diretiva das OPAs. Sobre o preenchimento deste conceito v. Silja Maul, Daniele Muffat-Jeandet e Joelle Simon, Takeover bids in Europe, The Takeover Directive and its implementation in the Member States, Memento Verlag, 2008, em particular p. 26 e ss. 14- Assim se prosseguindo o princípio da igualdade de tratamento, previsto do art. 3.º n.º 1, a) da Diretiva, e promovendo a distribuição do prémio de controlo (quando existente).
45 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
VII. É importante ter presente que, entre a
data do anúncio preliminar da oferta pública
voluntária (que “nasça” com a vocação de ser
qualificada como derrogatória) e a data do res-
petivo apuramento de resultados – momento em
que se poderá concluir ter o oferente efetiva-
mente adquirido o controlo da sociedade visada,
para aí assentar a constituição do dever de lan-
çamento de OPA (art. 187.º, n.º 1) e a inerente
obrigação de imediata divulgação de anúncio
preliminar (art. 191.º, n.º 1)15 – pode decorrer
um período de tempo considerável16.
O decurso desse tempo, mais ou menos longo,
pode não ser indiferente quando em causa esteja
determinar o período relevante para apuramento
do valor de uma contrapartida justificada e
equitativa que, recorde-se, não deve senão
corresponder ao valor da sociedade aberta,
aferido em função da avaliação do oferente
(refletida no mais elevado preço pago por este
pela aquisição de valores mobiliários), da
cotação de mercado, ou da avaliação de um
auditor independente.
Deve ainda ter-se em consideração que, num
contexto de interesses antagónicos – o interesse
do oferente em pagar o menos possível e o
interesse dos minoritários em vender pelo mais
elevado preço possível –, o legislador não pro-
curou, de forma neutra, uma perspetiva concili-
atória, tendo antes privilegiado o interesse dos
minoritários, num contexto em que estes são
colocados, individualmente, perante o dilema
de decidir na coletividade sem conhecimento da
decisão a tomar pelos demais membros que a
integram. Só assim se compreende que, resul-
tando da aplicação dos critérios do art. 188.º, n.º
1 dois valores diferentes, deva prevalecer o
mais elevado (leia-se, o mais benéfico para os
minoritários)17. Este constitui por isso um im-
portante contributo que não deve ser desconsi-
derado quando em causa esteja a invocação da
ratio inerente ao regime que propugna uma
contrapartida regulada.
Por isso, quando se estabelece que o dever não
mais precisa de ser cumprido, contanto que um
determinado preço tenha já sido oferecido a
todos os acionistas, cumprirá questionar se
esse preço deverá corresponder ao valor tempo-
ralmente determinado por referência ao período
que antecede a divulgação do anúncio prelimi-
nar da OPA voluntária – independentemente do
tempo que tenha então decorrido até ao apura-
mento dos resultados e dos eventos que possam
ter afetado, positiva ou negativamente, o valor
do objeto da oferta –, ou se haverá afinal mar-
gem para tomar em consideração o valor da
sociedade à data mais próxima da aquisição de
controlo, por ser esse o momento em que o
direito de saída adquire plena e efetiva razão de
ser18. O que antes existe é uma mera intenção
do oferente adquirir o controlo e uma mais ou
menos remota perceção dos acionistas quanto
ao facto de, vindo tal a acontecer, recaírem na
posição de minoritários.
Enunciadas em maior detalhe as dúvidas a que
inicialmente começámos por nos referir, avan-
çaremos sem mais demora para a descrição e
análise do procedimento tendente à declaração
de derrogação, na expectativa de se tornarem
claras as possíveis perspetivas em confronto.
OPA Derrogatória : 45
15- Onde se prevê que «a publicação do anúncio preliminar da oferta deve ocorrer imediatamente após a verificação do facto constitutivo do dever de lançamento». 16- Pense-se, por exemplo, no tempo necessário para obtenção das autorizações administrativas exigíveis (art. 115.º n.º 1, al. a), parte final). Tomando como exemplificativo o caso da OPA lançada pela Sonae SGPS, S.A e pela Sonaecom, SGPS, S.A. sobre a PT Telecom – SGPS, S.A e sobre a PT Multimédia – Seviços de Telecomunicações e Multimédia, SGPS, S.A., verificamos que o anúncio preliminar foi divulgado a 6 de fevereiro de 2006, tendo a oferta apenas sido registada, com a consequente divulgação do prospeto e do anúncio de lançamento, a 12 de janeiro de 2007. 17- Assim resulta do n.º 1 do art. 188.º, onde se estabelece que «[a] contrapartida de oferta pública de aquisição obrigatória não pode ser inferior ao mais elevado dos seguintes montantes…» (sublinhado nosso). 18- Sendo de resto esse o momento em que, se não existisse a derrogação, se haveria de proceder à imediata publicação de anúncio preliminar, de onde deveria constar contrapartida não inferior ao resultante da aplicação dos critérios do art. 188.º n. 1, aferido por referência aos seis meses imediatamente anteriores.
46 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
2.2 O procedimento para obtenção
da derrogação
I. A der rogação do dever de lançamento de
OPA depende da adoção de um ato administra-
tivo pela CMVM, consubstanciado na emissão
de uma declaração. Resulta do art. 189.º, n.º 2
que «[a] derrogação do dever de lançamento de
oferta é objeto de declaração pela CMVM,
requerida e imediatamente publicada pelo inte-
ressado».
A concretizar esta disposição, o art. 16.º do Re-
gulamento da CMVM n.º 3/2006 (Ofertas e
Emitentes), sob epígrafe “[d]errogação do de-
ver de lançamento de oferta pública de aquisi-
ção obrigatória”, dispõe que o anúncio em que
forem divulgados os resultados de uma OPA
que respeite os factos constitutivos previstos no
art. 189.º n.º 1, al. a), deverá conter, adicional-
mente, a quantidade de valores mobiliários e de
direitos de voto, calculados nos termos do art.
20.º, que o requerente passou a deter19.
Parece por isso incontornável que, dependendo
a derrogação dos resultados da oferta, a mesma
apenas possa ser apreciada pela CMVM após a
respetiva divulgação. Só então será possível
aferir se o oferente adquiriu uma percentagem
de valores mobiliários que, adicionados àqueles
cujos direitos de voto fossem por si já controla-
dos, lhe facultam a possibilidade de exercício
de influência dominante sobre a sociedade
visada.
II. Perguntar -se-á, em face do disposto, se não
seria possível a emissão da referida declaração
pela CMVM antes do apuramento dos resulta-
dos, pois o que em qualquer circunstância esta-
ria em falta seria um elemento, incerto, que ha-
veria de se concretizar assim que a OPA che-
gasse ao seu termo20. Perante esta possibilidade,
três seriam os desfechos possíveis: a OPA che-
garia ao seu termo e o oferente seria bem suce-
dido – caso em que a derrogação se poderia em
princípio aplicar –, a OPA chegaria ao seu ter-
mo e o oferente não seria bem sucedido – caso
em que não se verificaria o pressuposto de que
dependeria a perfeição da derrogação, e esta
revelar-se-ia inútil –, ou a OPA não chegaria ao
seu termo, pois por alguma vicissitude a mesma
seria revogada ou retirada, caso em que a derro-
gação pura e simplesmente valeria menos do
que o papel em que houvera sido escrita21.
Mas ainda que tal ideia possa parecer apelativa,
pergunta-se se não redundaria, afinal, no reco-
nhecimento prévio de que pode ser afastado um
dever em que o respetivo beneficiário não só
ainda não se constituiu (dever de lançamento de
OPA), como relativamente ao qual não reuniu
ainda as condições de que tal afastamento de-
pende. E, mais importante ainda, questiona-se
se tal não constituiria uma inevitável forma de
pressão para a venda, sabendo de antemão os
destinatários da oferta que a entidade responsá-
vel pelo seu registo (a CMVM) houvera já dado
o seu pré-acordo ao afastamento da OPA
obrigatória, subsequente à aquisição do contro-
lo, ainda que condicionada à verificação de
determinados requisitos não controláveis por
aqueles. Ao oferente, que veria deixar de im-
pender sobre si qualquer efeito dissuasor asso-
ciado à não concessão da derrogação senão
após o conhecimento do resultado da oferta,
restaria aguardar os efeitos da referida pressão e
esperar que a incerteza quanto à atuação dos
demais destinatários levasse à venda massiva de
19- Cfr. art. 16.º n.os 2 e 3 do Regulamento da CMVM n.º 3/2006. 20- Veja-se, a título de exemplo, a condição de lançamento constante do ponto 14 ii) do anúncio preliminar de oferta pública, geral e vo-luntária, de aquisição de ações representativas do capital social da Portugal Telecom, SGPS, S.A., divulgado pela Terra Peregrin - Partici-pações SGPS, S.A., no dia 9 de novembro de 2014, que condicionava o lançamento da oferta «à declaração pela CMVM da derrogação do dever de lançamento de oferta pública de aquisição subsequente, em resultado da aquisição de Ações no âmbito da presente Oferta, nos termos da alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 189.º do Código dos Valores Mobiliários, ainda que subordinada à subsistência dos res-pectivos pressupostos, em particular entendendo que a contrapartida oferecida se encontra devidamente justificada e é equitativa». 21- Usando a expressão atribuída ao Comissário para o Mercado Interno Frits Bolkestein – responsável pela negociação da Diretiva das OPAs, a propósito do produto final – e que deu igualmente título ao sugestivo texto de Vanessa Edwards, The Directive on Takeover Bids - Not Worth the Paper it's Written on?, in European Company and Financial Law Review, Vol. 1, n.º 4, 2004, disponível em http://ssrn.com/abstract=1035921.
47 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
ações, permitindo-lhe obter a almejada posição
de controlo.
III. Atento o exposto, e considerando ainda
que a derrogação constituirá em si meio que
coadjuva na tarefa de garantir que a OPA não é
concluída em desrespeito pelo princípio de tra-
tamento igualitário dos seus destinatários – pois
se, por exemplo, transações realizadas na sua
pendência fizerem com que uns recebam con-
trapartida superior aos outros, a declaração não
deverá ser emitida –, tendemos a concluir que a
mesma apenas pode ser apreciada depois de
divulgados os resultados da oferta, só então es-
tando a CMVM em condições de aferir o inte-
gral cumprimento dos pressupostos de que a
mesma depende.
IV. Identificado o momento do apuramento
de resultados como aquele a partir do qual a
CMVM estará em condições de se pronunciar
sobre a verificação dos factos constitutivos do
direito à derrogação, cumpre então retomar a
questão antes enunciada, e que constitui verda-
deiramente o aspeto controvertido que aqui pro-
curamos analisar – o período relevante para
aferição do valor da sociedade cotada.
Como hipóteses em confronto teremos a possi-
bilidade de a contrapartida ser aferida por refe-
rência ao período de seis meses que antecedeu a
publicação do anúncio preliminar da OPA vo-
luntária – independentemente do tempo, mais
ou menos longo, que tenha decorrido desde a
sua divulgação até ao termo da
oferta –, ou, em alternativa, por referência ao
período de seis meses que antecedeu o momen-
to em que, não fora a derrogação, o dever de
lançamento da OPA (e de imediata divulgação
de anúncio preliminar) se constituiria(m).
São estas as hipóteses que procuramos dissecar
no ponto seguinte.
3. A apreciação do pedido de derrogação
pela CMVM
3.1 Relevância dos seis meses anteriores
ao anúncio preliminar de OPA voluntária
I. Começando pela análise, necessar iamente
breve, da evolução histórica das exceções ao
dever de lançamento de OPA, é possível verifi-
car que, com a entrada em vigor do atual Códi-
go dos Valores Mobiliários, foi alterado o siste-
ma misto que até então vigorava, em que dis-
pensas e derrogações coexistiam.
O facto de se terem abolido as dispensas parece
indiciar o propósito de privilegiar a certeza e a
segurança, optando-se pela ponderação prévia
dos vários interesses em questão, concretizados
e refletidos num elenco taxativo e vinculativo
em função das circunstâncias do caso concreto,
retirando margem de discricionariedade à
CMVM.
Com isso, deixou de estar cometida à CMVM,
ao contrário do que sucedia com as dispensas, a
tarefa de analisar o mérito da questão, ainda que
por referência aos pressupostos valorativos pre-
vistos na lei. Nas dispensas, a atuação da autori-
dade de supervisão era pautada por uma discrio-
nariedade mitigada, de que o legislador preten-
deu abdicar22. Com o regime do atual Código, à
autoridade de supervisão competirá apenas o
juízo de verificação dos pressupostos e dos fac-
tos constitutivos previstos na lei, de acordo com
a interpretação que dos mesmos faça.
Nessa sequência, e como veremos de seguida, a
conclusão a alcançar quanto ao período de tem-
po relevante para determinação da contrapartida
não poderá deixar de ter como premissa a inten-
ção subjacente à referida alteração de paradi-
gma. Assim sendo, a solução que melhor cor-
responderá aos propósitos do legislador será
OPA Derrogatória : 47
22- Para uma perspetiva histórica da figura das derrogações e das dispensas, v. Jorge Brito Pereira, A OPA Obrigatória, Almedina, Coimbra, 1998, pp. 283 a 332.
48 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
aquela que melhor promova a certeza e segu-
rança jurídica23, ou seja, aquela que mais forte
apoio encontre nos elementos onde usualmente
tal certeza se enraíza (elemento literal).
II. Se atentarmos bem, a Diretiva das OPAs
não se limita a prever que, caso o controlo seja
obtido em sequência de OPA voluntária, reali-
zada em conformidade com as suas disposições,
o oferente não ficará adstrito ao dever de lança-
mento de OPA24. Foi mais além, concretizando
os elementos que permitem aferir se os termos
da oferta respeitam ou não as disposições da
Diretiva, relevantes para o efeito25.
Assim, depois de prever o requisito da oferta se
dirigir a todos os titulares dos valores mobiliá-
rios que seriam objeto da oferta obrigatória, a
Diretiva concretiza o que deve ser entendido
por preço equitativo. Embora deixe margem de
discricionariedade aos Estados Membros quan-
to à duração do período temporal a fixar, não
inferior a seis e não superior a 12 meses, e aos
critérios a utilizar para apuramento da contra-
partida, parece resultar claro que o momento ao
qual o período temporal e os critérios são apli-
cáveis é aquele “que preceda a oferta” que per-
mitiu ao oferente vir a adquirir o controlo da
sociedade e que, como tal, o obrigaria ao lança-
mento da OPA obrigatória subsequente26.
Em conformidade com a Diretiva, no art. 188.º
do nosso Código são concretizados os critérios
relevantes para determinação da contrapartida e
o período tido em consideração, prevendo-se,
como o momento adequado para a sua aplica-
ção, «os seis meses anteriores à data da publica-
ção do anúncio preliminar da oferta»27.
Tendo presente que a verificação daquele que
identificámos como o terceiro pressuposto
constitutivo da OPA derrogatória depende do
respeito pelos requisitos estipulados no art.
188.º, parece seguro afirmar, em atenção à sua
letra, que o critério temporalmente tido em con-
sideração para avaliar a sua efetiva verificação
será o mesmo, ou seja, os seis meses anteriores
à data da publicação do anúncio preliminar.
Ora, se a derrogação se aplica, nenhum dever
de OPA se chega a constituir, é dizer, nenhum
anúncio preliminar de OPA obrigatória chega a
ver a luz do dia, pelo que a remissão para
anúncio preliminar não pode deixar de corres-
ponder, neste contexto, à vontade de remeter
para o (único) documento que foi efetivamente
divulgado – o anúncio preliminar da OPA
voluntária28.
III. Conjugada a evolução histór ica das exce-
ções ao dever de lançamento de OPA (no que
respeita à superveniência das derrogações às
dispensas) com a letra das normas que susten-
tam esta concreta derrogação, haverá que lhes
juntar a identificação dos correspondentes fun-
damentos teleológicos, no sentido de aferir se a
derrogação de que ora tratamos deve efetiva-
mente assentar na determinação da contraparti-
da por referência ao momento em que é preli-
minarmente anunciada a OPA voluntária.
23- Note-se que, entre nós, vêm de longe os sinais de que os agentes do mercado anseiam por indicações que permitam antecipar as “regras do jogo”, como o demonstram as notas com pedido de disclosure das decisões da CMVM sobre os termos em que deveriam considerar-se ilididas determinadas presunções de atuação concertada, como sucede em José Miguel Júdice, Maria Luísa Antas, António Artur Ferreira, Jorge Brito Pereira, OPA: Ofertas Públicas de Aquisição (Legislação Comentada), Lisboa, 1992, nota 3, pág. 27 (nota ao art. 525.º, n.º 4 do Código do Mercado de Valores Mobiliários). 24- Cfr. n.º 2 do art. 5.º da Diretiva. 25- Cfr. n.os 2 e 4 do art. 5.º da Diretiva. 26- Cumpre salientar que o art. 4.º n.º 1 da Diretiva prevê «[p]or preço equitativo (…) o preço mais elevado pago pelos mesmos valores mobiliários pelo oferente, ou pelas pessoas que com ele atuam em concertação, ao longo de um período a determinar pelos Estados-Membros, não inferior a seis e não superior a 12 meses, que preceda a oferta prevista no n.º 1» (sublinhado nosso). 27- Cfr. art. 188.º n.º 1, a) e b). 28- Em sentido convergente, do art. 5.º, n.º 2 do Regulamento da CMVM n.º 7/2003 (Taxas) parece resultar a necessidade de a CMVM atender, para efeitos de apuramento do cálculo da respetiva taxa de supervisão a pagar, à potencial qualificação da OPA voluntária como derrogatória.
49 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Conclusão diversa importará, desde logo, a ine-
lutável imposição ao oferente de custos, quanto
mais não seja os decorrentes da situação de in-
certeza quanto aos critérios que lhe permitirão
(vir a) beneficiar da derrogação, podendo em
última análise motivar mesmo a sua paralisação
e o desinteresse em avançar para uma tal opera-
ção.
Se, associado a essa incerteza, se vier a final a
impor uma OPA subsequente, quando a primei-
ra tenha sido lançada em termos não menos
desfavoráveis do que o teria sido se a sua natu-
reza fosse a de oferta obrigatória, teremos então
um significativo encargo que as mais das vezes
se poderá revelar demasiado oneroso face ao
bem jurídico que o regime pretende proteger. E
tal seria assim porque a posição jurídica dos
acionistas minoritários encontra já na OPA vo-
luntária, lançada nos mesmos termos que teriam
de ser respeitados caso a sua natureza fosse
obrigatória, um mínimo de proteção, assente na
oportunidade de saída mediante o pagamento de
uma contrapartida considerada, à data, justifica-
da e equitativa.
Não pode desconsiderar-se que o lançamento de
uma OPA acarreta custos significativos, não
podendo corresponder para o oferente a um sal-
to no escuro. Sendo expectável que atue de for-
ma racional, não se lhe poderá negar a expecta-
tiva de ter antecipadamente presente os encar-
gos que lhe competirá suportar para adquirir o
controlo da sociedade visada. Deste modo, a
interpretação que se faça da presente derroga-
ção, porquanto poderá implicar a necessidade
de disponibilidades financeiras adicionais, não
poderá deixar de ter em consideração as legíti-
mas expectativas do oferente quanto ao mon-
tante associado à operação29.
O reforço da certeza e segurança jurídica, que
fundamenta e reforça a interpretação propugna-
da nas linhas antecedentes, permitirá ao oferen-
te saber de antemão quais os pressupostos com
que se terá de conformar, caso pretenda eximir-
se ao dever de lançamento de OPA obrigatória
subsequente. A consideração de momento e
procedimento distintos, pelo contrário, poderá
implicar que o oferente seja a posteriori con-
frontado com a necessidade de pagar um valor
com que podia não contar, vendo-se compelido
a oferecer uma contrapartida que poderia não
estar a prever.
Assim, crê-se que, nesta perspetiva, os funda-
mentos da lei apenas serão adequadamente
prosseguidos se, o mais tardar até ao momento
do registo da OPA voluntária, o oferente puder
conhecer se a contrapartida oferecida respeita,
naquela data, os critérios legalmente exigidos.
Prolongar a incerteza até ao final da oferta con-
traria tais propósitos e, em última análise, pode-
rá levantar problemas na formação da vontade
do oferente, uma vez que poderá não lhe permi-
tir antecipar os custos inerentes à obtenção do
controlo.
Admitir que o período a ter em consideração
para efeitos de fixação da contrapartida é outro
que não aquele que antecede a data de divulga-
ção do anúncio preliminar corresponderá a ad-
mitir o lançamento de OPA voluntária sem que
a formação da vontade do oferente esteja com-
pleta, em resultado da indefinição quanto ao
efetivo encargo que terá de assumir para adqui-
rir o controlo.
IV. Note-se que a consideração de um período
prévio à divulgação do anúncio preliminar não
deixará de ter simultaneamente em atenção os
interesses dos acionistas minoritários, uma vez
que a informação relativa à intenção do oferente
em vir a beneficiar da derrogação, bem como a
sua posição quanto ao cumprimento dos
requisitos de que depende a declaração da
mesma, maxime, no que toca ao respeito das
regras da contrapartida mínima legal, constitui
OPA Derrogatória : 49
29- É importante ter presente que um dos princípios gerais consagrado na Diretiva da OPAs, e que deverão ser respeitados na previsão das derrogações por parte dos Estados Membros, prevê que «[u]m oferente só deve anunciar uma oferta depois de se assegurar de que está em plenas condições de satisfazer integralmente qualquer contrapartida em numerário, caso a oferta tenha sido feita nesses termos, e depois de tomar todas as medidas razoáveis para garantir a entrega de qualquer outro tipo de contrapartida», cfr. art. 3.º n.º 1, al. f) da Diretiva.
50 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
informação essencial à formação de juízos fun-
dados sobre a oferta por parte dos destinatários.
Por esse motivo, trata-se de informação que
deverá constar dos documentos da oferta30, as-
sim informando os seus destinatários sobre a
expectável concessão de outra oportunidade de
saída, ou se ela se consubstanciará, para todos
os efeitos, na OPA voluntária.
Recorde-se ainda que, para além da informação
que reflita a posição do oferente face à verifica-
ção dos pressupostos de que depende a conces-
são da derrogação – refletida, em especial, no
prospeto31 –, o relatório do conselho de admi-
nistração da sociedade visada deverá conter
informação quanto ao montante da contraparti-
da e à sua adequação face às regras de contra-
partida mínima, como decorre do art. 181.º n.º
2, al. c). Nessa medida, cumprirá ao conselho
de administração, no âmbito dos seus deveres
fiduciários, pronunciar-se sobre a contrapartida
proposta, sabendo de antemão se esta pode ou
não fundamentar a derrogação do dever de
lançamento de OPA32.
Em suma, a possibilidade de a contrapartida ser
aferida por referência ao período de seis meses
que antecedeu a publicação do anúncio prelimi-
nar da OPA voluntária será apta a permitir con-
ciliar, com a certeza e segurança jurídica que se
impõe acautelar no mercado de capitais, os inte-
resses dos acionistas minoritários, que dispõem
durante a OPA de informação que lhes permite
formar a sua decisão, com os interesses do ofe-
rente, possibilitando a formação da sua vontade
de uma forma completa, em respeito pelas suas
legítimas expectativas.
V. Importa ter presente que, embora pareça
resultar da interpretação das normas anterior-
mente referidas que o período tido por relevante
para efeitos de aferição do respeito pelas regras
da contrapartida mínima sejam os seis meses
anteriores ao anúncio preliminar, tal não impe-
de que o mesmo venha a ser “ajustado” face,
designadamente, a aquisições por parte do ofe-
rente (ou por pessoas com este relacionadas nos
termos do art. 20.º), na pendência da oferta.
30- De resto, analisando alguns prospetos é possível encontrar referências que apontam no sentido de ser esse o entendimento dos oferentes em questão. Veja-se, v.g., em 2006 o prospeto da OPA anunciada pela Sonae sobre a Portugal Telecom SGPS, S.A., onde se referia que «[c]onsiderando que o objectivo dos oferentes, através do lançamento da Oferta, é o de beneficiar da derrogação ao dever de lançamento de uma oferta pública de aquisição obrigatória, prevista no art. 189.º, n.º 1, al. a), do Código de Valores Mobiliários, dever esse em que de outro modo incorreriam em consequência do sucesso da Oferta PT e da consequente imputação aos Oferentes dos votos inerentes às Ac-ções actualmente detidas pela PT, a contrapartida oferecida respeita os critérios enunciados no artigo 188º do CVM, sendo igual ao preço médio ponderado das Acções (9,03 Euros) verificado nos seis meses imediatamente anteriores ao anúncio preliminar de lançamento da oferta divulgado em 7 de Fevereiro de 2006» (sublinhado nosso). Mais recentemente, veja-se o prospeto da OPA anunciada pela Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A. sobre a Espírito Santo Saúde, SGPS, S.A. onde se referia que «[p]ese embora a Oferta Concorrente não seja uma oferta pública de aquisição obrigatória, a contrapartida da Oferta Concorrente cumpre os requisitos do artigo 188.º, n.º 1 do Cód.VM, por ser superior: (i) ao preço mais alto pago, direta ou indiretamente, pela Oferente ou por qualquer entidade ou pessoa que, em relação a ela, se encontra em alguma das situações previstas no n.º 1 do artigo 20.º do Cód.VM, durante os seis meses anteriores à Data do Anúncio Preliminar 4, o qual foi de € 3,857 por Ação 5; e (ii) o preço médio ponderado das Ações no mercado regulamentado da Euronext Lisbon durante os seis meses anteriores à Data do Anúncio Preliminar, o qual foi de € 3,984 por Ação 6. O Capítulo 3 contém uma descrição detalhada das transações sobre as Ações efetuadas pela Oferente e pelas entidades ou pessoas que, em relação a esta, se encontram em alguma das situações previstas no n.º 1 do artigo 20.º do Cód.VM» (sublinhado nosso). 31- A título de exemplo, veja-se no prospeto de OPA lançada pela Farminveste 3 – Gestão de Participações SGPS, Lda., sobre a Glintt – Global Intelligent Techonologies, S.A., divulgado em 2 de novembro de 2015, a forma como o oferente refere que, no seu entender, «…a Oferta é geral e cumpre, na presente data, os requisitos relativos à contrapartida mínima previstos no artigo 188.º do Cód.VM para as ofertas obrigatórias». Tenha-se presente que, na dinâmica da instrução do processo de registo de OPA, será sempre possível – e desejável – que o oferente possa desde cedo monitorizar a adequação da contrapartida por si proposta aos requisitos legais para a sua determinação, pois ainda que a derrogação só possa vir a ser declarada no termo daquela, não será de todo irrelevante (para o oferente e para os destinatá-rios) saber, ab initio, se a contrapartida proposta respeita já, ou não, os critérios do art. 188.º. 32- Pense-se, por exemplo, no caso de um oferente que anuncia preliminarmente a sua oferta, propondo-se a adquirir por preço que não respeita os critérios do art. 188.º, n.º 1. Em tal caso, não deve senão o conselho de administração da visada informar desse facto os acionis-tas e alertar para a circunstância de, vindo o controlo a ser obtido, dever ser concedido a quem tenha decidido não vender uma nova oportu-nidade de saída, a preço potencialmente superior (resultante da aplicação dos critérios inseridos naquele artigo). Tenha-se v.g. presente a atuação do conselho de administração da Portugal Telecom, SGPS, S.A., no âmbito da oferta pública de aquisição geral e voluntária anun-ciada pela Terra Peregrin – Participações, SGPS, S.A. em 9 de novembro de 2014, refletida no seu relatório divulgado a 10 de dezembro de 2014.
51 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Veja-se que, se, na pendência da oferta e de
forma a garantir a aquisição do controlo, o ofe-
rente vier a adquirir ações da mesma categoria
daquelas que integram o seu objeto, pagando
uma contrapartida superior à estabelecida nos
documentos da oferta, tal representará um trata-
mento diferenciado de titulares de valores mo-
biliários da mesma categoria (assumindo que
aquele não toma voluntariamente a iniciativa de
aumentar a contrapartida oferecida na OPA).
Em tal caso, se a CMVM tivesse já determina-
do, de forma definitiva, a natureza derrogatória
da OPA voluntária aquando do seu registo, es-
taria naquele momento e para de aí em diante a
admitir a desnecessidade de lançamento de
OPA obrigatória, mesmo que presenciasse
aquele tratamento diferenciado de acionistas, ao
qual estaria inerente uma repartição não equita-
tiva do prémio de controlo (contra a qual não
poderia já reagir mediante a não declaração da
derrogação).
Embora estes motivos pudessem por si só ser
suficientes para se advogar, afinal, que a toma-
da de decisão quanto à natureza derrogatória da
OPA não pode senão ocorrer depois de conheci-
das todas as transações com potencial relevo –
permitindo assim conhecer o concreto modo
como a mesma foi executada –, a verdade é
que, procurando colmatar esse “risco” (que se
repercutiria na esfera dos acionistas minoritá-
rios), o regime das transações na pendência da
oferta exige que qualquer aquisição realizada
pelo oferente (ou por pessoas com este relacio-
nadas nos termos do art. 20.º) seja comunicada
à CMVM (art. 180.º, n.os 2 e 3).
Se «[n]o âmbito de ofertas públicas de aquisi-
ção obrigatórias, o oferente é obrigado a au-
mentar a contrapartida para um preço não in-
ferior ao preço mais alto pago pelos valores
mobiliários assim adquiridos» (art. 180.º, n.º 3,
al. b)), «[n]o âmbito de ofertas públicas de
aquisição voluntárias, a CMVM pode determi-
nar a revisão da contrapartida se, por efeito
dessas aquisições, a contrapartida não se mos-
trar equitativa» (art. 180.º, n.º 3, al. a))
(sublinhado nosso).
De tal modo, competirá à CMVM – caso a tran-
sação a valor superior ao da OPA lhe venha a
ser comunicada – determinar o respetivo au-
mento da contrapartida, com isso assegurando
que a contrapartida oferecida pelo oferente per-
manece ao longo do período da oferta
“equitativa” e que esta qualificação não sai
afetada com a ocorrência de tais transações (não
pondo em causa a igualdade de tratamento dos
destinatários da oferta).
Feita esta monitorização das transações na pen-
dência da oferta, assegurando que a contraparti-
da oferecida se mantém equitativa, no seu ter-
mo, o art. 16.º, n.º 3, al. c) do Regulamento da
CMVM n.º 3/2006 vem tão só determinar que
seja assegurada a divulgação pública da infor-
mação em falta, a saber, a quantidade de valo-
res mobiliários e de direitos de voto, calculados
nos termos do art. 20.º, que o oferente passou a
deter em resultado da oferta. Deste modo, é ga-
rantida a divulgação ao mercado da verificação
do último facto constitutivo de que depende a
aplicação e a concessão da derrogação: a aquisi-
ção de valores mobiliários em quantidade sufi-
ciente que permitam ao oferente adquirir o con-
trolo da sociedade.
Ao contrário do que sucede para as demais der-
rogações33 – de onde resulta que quem pretenda
delas beneficiar «comunica à CMVM os factos
determinantes da derrogação, no prazo de cin-
co dias úteis após a verificação dos mesmos,
juntando os elementos de prova respectivos»34–
no que diz respeito à derrogação prevista na
alínea a) do n.º 1 do art. 189.º, poderia assim
sustentar-se a desnecessidade de comprovação
dos elementos constitutivos de tal direito, em
OPA Derrogatória : 51
33- Previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do art. 189.º. 34- Cfr. art. 16.º, n.º 1 do Regulamento da CMVM n.º 3/2006.
52 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
função de os mesmos serem já conhecidos do
supervisor, por constarem dos documentos da
oferta.
Isto dito, conclui-se que a referência ao período
de seis meses anteriores ao anúncio preliminar
de OPA voluntária, que temos vindo a apontar
como mais adequado, não encontraria no regi-
me das transações na pendência da OPA um
obstáculo, porquanto o legislador cuidou de
dotar a CMVM de mecanismos alternativos de
controlo da igualdade de tratamento, manifesta-
da na atribuição de contrapartida não diferenci-
ada aos acionistas em idênticas circunstâncias.
VI. Por outro lado, a convocação de um de-
terminado período de tempo para aferir a ade-
quação da contrapartida, com propósito de de-
clarar ou não a derrogação do dever de lança-
mento de OPA, não deverá desconsiderar os
efeitos que a divulgação do anúncio preliminar
tem na subsequente formação dos preços em
mercado.
Após a referida divulgação, a cotação tende a
aproximar-se do valor oferecido como contra-
partida na oferta, o que de resto se compreende,
por passar a ser esse o referencial do valor da
sociedade, aferido em função da valorização
que o oferente lhe atribui. A partir desse mo-
mento, a cotação de mercado tende deixar de
constituir medida fiel enquanto proxy do valor
(“real”) da empresa, em virtude de a sua forma-
ção passar a atender mais a aspetos relaciona-
dos com o grau de probabilidade de sucesso da
OPA, do que a variações do seu negócio e ativi-
dade. Esta situação, de resto, tende a acentuar-
se nos casos em que seja de aplicar ao conselho
de administração da sociedade visada as limita-
ções a que se refere o art. 182.º. Encontrando-se
este órgão, a partir do momento em que tome
conhecimento da decisão de lançamento de
OPA tendente à aquisição do domínio, impedi-
do de praticar «atos suscetíveis de alterar de
modo relevante a situação patrimonial da soci-
edade visada que não se reconduzam à gestão
normal da sociedade e que possam afetar de
modo significativo os objetivos anunciados pelo
oferente»35, menos provável se tornará que, até
ao termo da oferta, as variações da cotação se
fiquem a dever a determinados atos que, não
fora a limitação, poderiam de facto ter impacto
no valor da sociedade36.
Por outro lado, e uma vez que o valor usual-
mente oferecido em OPA destinada à aquisição
de controlo tenderá a incluir um sobrepreço
face a uma determinada cotação média ponde-
rada – constituindo maior ou menor incentivo à
venda quanto maior ou menor for esse sobre-
preço (ou prémio de controlo37), assim procu-
rando o oferente maximizar as suas probabilida-
des de sucesso –, poderá concluir-se que o re-
curso à cotação de mercado, utilizando para o
efeito um determinado período que se encontra-
rá já “afetado” pela inclusão nos pressupostos
da negociação de um elemento atípico (o preço
pelo qual alguém se dispõe a adquirir todos os
valores mobiliários detidos por terceiros), não
encontrará autonomia de relevo face ao outro
critério em que assenta a determinação da con-
trapartida em OPA obrigatória, o critério do
maior preço pago pelo oferente num determina-
do período. Nestes termos, haveria então de se
concluir que o relevo autónomo do critério da
al. b) do n.º 1 do art. 188.º implicará que para
ele se encontre um sentido que não o de, afinal,
se equivaler ao critério resultante da outra alí-
nea do mesmo artigo e número, o que será me-
lhor prosseguido se, para os efeitos de que cui-
damos, fizermos apelo a esse critério por refe-
rência a um período de negociação não
“afetado” pela divulgação de anúncio prelimi-
nar.
35 - Cfr. art. 182.º n.º 1. 36- Sobre este tema veja-se Orlando Vogler Guiné, Da Conduta (Defensiva) da Administração “Opada”, Almedina, Coimbra, 2009. 37- Prémio de controlo corresponderá, nas palavras de Paulo Câmara, Manual…, ob. cit., pág. 644, ao «…valor dos benefícios futuros decorrentes da tomada de uma empresa, descontando os custos implícitos decorrentes da transição de controlo».
53 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Note-se, por fim, que a atribuição de relevo a
um período temporal pós anúncio preliminar
poderia constituir um incentivo à adoção de
práticas de legalidade duvidosa, tendentes a
aumentar a cotação do título, por de tal circuns-
tância se pretender vir a retirar a possibilidade
de, no âmbito de uma OPA obrigatória subse-
quente, se poderem vir a alienar as ações em
causa pelo preço inflacionado. O pressuposto
seria então o de que, respeitando a contrapartida
oferecida na OPA os critérios de determinação
à partida (seis meses antes do anúncio prelimi-
nar), mas já não à chegada (seis meses antes do
anúncio preliminar que se deveria seguir à di-
vulgação dos resultados da OPA), a derrogação
não poderia ser concedida, vendo-se o oferente
obrigado a lançar nova OPA, oferecendo con-
trapartida determinada por referência ao segun-
do dos mencionados períodos.
VII. Em suma, considerar , para efeitos de
cálculo da contrapartida mínima, um período
temporal influenciado pela divulgação do anún-
cio preliminar de OPA, poderá revelar-se bas-
tante oneroso. O oferente lançará oferta (se o
vier a fazer…) na incerteza quanto à contrapar-
tida que terá de oferecer para não ficar adstrito
ao dever de lançamento de OPA subsequente. A
tal acrescerá o receio de que o sobrepreço que
se dispõe voluntariamente a pagar poderá, in-
clusivamente, em virtude do impacto que possa
ter na cotação, virar-se contra si, determinando
que em OPA subsequente venha a ter de pagar
mais. Os efeitos indesejados desta situação ten-
derão a alastrar-se, indiretamente, aos próprios
acionistas (minoritários), caso as incertezas
quanto ao verdadeiro custo da operação venham
a constituir obstáculo ao efetivo lançamento da
oferta (que para aqueles representaria sempre
uma oportunidade de saída38).
À luz do direito vigente, e tendo presente os
propósitos de certeza e segurança jurídica que
transversalmente o caracterizam, parece resultar
que o momento a ter em consideração para o
cálculo da contrapartida serão os seis meses
antecedentes à divulgação do anúncio prelimi-
nar de OPA voluntária, assim atendendo aos
interesses do oferente, sem com isso colocar em
causa as expectativas dos acionistas minoritá-
rios.
Os interesses dos acionistas minoritários ter-se-
ão então por salvaguardados por via da presta-
ção de informação, essencial à formação de juí-
zos fundados sobre a oferta, e por via da moni-
torização que é feita pela CMVM da contrapar-
tida oferecida, para que esta se mantenha equi-
tativa ao longo da oferta.
Esta monitorização deverá assegurar aos
acionistas minoritários uma oportunidade de
saída mediante o recebimento de uma contra-
partida equitativa, calculada tendo em conside-
ração o último momento em que a formação
dos preços no mercado não se encontra influen-
ciada pela proposta de contrapartida, apresenta-
da no anúncio preliminar.
Já quanto aos interesses do oferente, este terá de
conhecer, as regras a cumprir caso pretenda vir
a beneficiar da derrogação, sob pena do prolon-
gamento da incerteza causar dificuldades na
formação da sua vontade.
3.2 Relevância dos seis meses anteriores
ao anúncio preliminar de OPA obrigatória
I. Analisados os pressupostos de que depende
a concreta derrogação que tomamos como
objeto de reflexão, bem como o procedimento a
seguir para a emissão da correspondente decla-
ração pela CMVM, cumpre questionar, à luz
das conclusões a que chegámos no ponto ante-
rior, se o direito positivo permite efetivamente
dar por salvaguardada a posição jurídica dos
acionistas que, na sequência de uma OPA vo-
luntária, podem vir a tornar-se acionistas mino-
ritários de uma sociedade aberta sem que dis-
ponham de uma outra oportunidade de saída
para além da conferida por aquela oferta.
OPA Derrogatória : 53
38- V. Paulo Câmara, Manual…, ob. cit., p. 659, onde se descreve como um efeito positivo da presente derrogação, o funcionamento desta «…como contramotivação para ofertas voluntárias a preços inferiores aos que resultariam da aplicação do art. 188.º».
54 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Como se iniciou por dizer, o intuito primordial
da Diretiva é a proteção dos acionistas em caso
de mudança de controlo, pelo que as exceções
ao dever de lançamento de OPA apenas são
admissíveis se estiver garantido que, não obs-
tante o afastamento daquele dever, a posição
dos acionistas se encontra protegida39. A derro-
gação aplicar-se-á, portanto, quando os interes-
ses dos acionistas minoritários estiverem salva-
guardados, mesmo sem a exigibilidade de lan-
çamento de OPA subsequente.
A tal conclusão estará subjacente o juízo de que
a OPA obrigatória é meio dispensável de prote-
ção dos acionistas, alcançada já com a OPA
voluntária. Esta deve ter proporcionado uma
oportunidade real e efetiva de saída da socieda-
de, mediante o recebimento de uma contraparti-
da equitativa, pois não seria senão essa a prote-
ção que a OPA obrigatória concederia.
II. Ainda que se possa admitir que esta
derrogação visa atender também ao interesse do
oferente, desonerando-o de um dever em fun-
ção da circunstância de ter já lançado voluntari-
amente oferta com intuito de adquirir o contro-
lo, esse propósito é, dentro do espírito do
sistema40, necessariamente subalternizado ao
outro mencionado, o de se garantir a proteção
dos acionistas perante a alteração de controlo.
Nestes termos, mais correto do que fundamen-
tar esta exceção na necessidade de proteção do
oferente – quando procuramos a sua teleologia
– seria fundamentá-la na desnecessidade de
proteção dos acionistas, ou, melhor dizendo, na
circunstância de a posição jurídica em que re-
caem (minoritários) não carecer de ser protegi-
da pela imposição do dever de lançamento de
(nova) OPA, porquanto ela se considere ade-
quadamente tutelada pelo prévio lançamento de
oferta voluntária que tenha satisfeito as exigên-
cias e propósitos subjacentes à OPA obrigató-
ria.
Como corolário deste raciocínio, e por contra-
posição à ideia de que será derrogatória a OPA
voluntária lançada como se de obrigatória se
tratasse, teríamos assim a ideia de que a OPA
obrigatória não deverá ser imposta quando os
acionistas se devam considerar adequadamente
protegidos pela OPA voluntária, atentos os ter-
mos em que se verificou ter a mesma decorrido.
O que pode parecer mero jogo de palavras é,
afinal, reflexo da diferente perspetiva a partir da
qual a questão pode ser vista. Inerente estará,
por isso, uma diferença assinalável quanto ao
período de tempo relevante para aferir a ade-
quação da contrapartida, já não o período de
seis meses que antecede o anúncio preliminar
de OPA voluntária, mas o período de seis me-
ses prévio ao momento em que, não fora a der-
rogação, deveria ser divulgado anúncio preli-
minar de OPA obrigatória. E, em virtude da
razão de ser da derrogação, cumpre questionar
se não deverá ser esta a configuração que me-
lhor prossegue esse espírito.
III. Para melhor compreendermos esta pers-
petiva, pensemos, por momentos, que a norma
legal onde a derrogação assenta não existia. O
oferente que, através de OPA voluntária, viesse
a adquirir o controlo de uma sociedade aberta,
veria preenchido o pressuposto de que depende
a constituição do dever de lançamento de OPA
assim que os seus resultados fossem divulga-
dos. O dever impor-se-ia mesmo que a oferta
voluntária tivesse sido dirigida a todos os acio-
nistas e à aquisição da totalidade das ações por
si detidas, e mesmo que a contrapartida ofereci-
da tivesse respeitado os mais exigentes critérios
para a sua determinação (inclusivamente, os
critérios que determinariam a contrapartida em
OPA obrigatória).
Na sequência do apuramento e divulgação dos
resultados da oferta voluntária, e verificada
a aquisição de controlo, o oferente deveria
então divulgar um novo anúncio preliminar –
39- Cfr. art. 4.º, n.º 5 da Diretiva. V. supra, nota 2. 40- No que respeita à primazia dos interesses dos acionistas minoritários, para efeitos de determinação da contrapartida na concorrência entre dois critérios de onde decorram preços diferentes, v. supra, nota 17.
55 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
respeitante agora a uma OPA obrigatória –, de
forma a legitimar perante os minoritários a po-
sição de controlo, acabada de adquirir. A con-
trapartida a pagar seria determinada, por refe-
rência ao art. 188.º, nomeadamente, pelas tran-
sações realizadas no período de seis meses ante-
riores à data de divulgação do anúncio prelimi-
nar de OPA obrigatória.
Poderia então suceder que, em virtude de os
termos da oferta inicial terem sido determina-
dos em respeito pelas exigências, naturalmente
mais rigorosas, aplicáveis às ofertas obrigató-
rias (no que respeita ao seu objeto e contraparti-
da), a segunda oferta que o mesmo oferente
viesse a lançar, em cumprimento agora de dever
legal, fosse pautada por termos não distintos
daqueles em que foi lançada a oferta voluntária,
em particular no que à contrapartida diz respei-
to – e seria assim caso a aplicação do art. 188.º
conduzisse à determinação de uma contraparti-
da não superior àquela efetivamente paga na
OPA voluntária prévia41.
Oferta voluntária prévia e oferta obrigatória
subsequente seriam, portanto, ofertas não dis-
semelhantes quanto aos seus termos e condi-
ções, somente com natureza distinta (voluntária
a primeira, obrigatória a segunda).
Teríamos assim, por um lado, os acionistas da
sociedade visada, a quem seria concedida, em
duas ocasiões distintas e sucessivas, a possibili-
dade de reponderar o seu investimento e sair da
sociedade – ainda que em termos não disseme-
lhantes num e noutro caso –, e, por outro lado, o
oferente, que, tendo lançado OPA voluntária
em termos não distintos daqueles em que teria
de lançar oferta obrigatória (quando, apurados
os resultados da primeira, se viesse a revelar ter
aquele adquirido o controlo), se vê obrigado a
“cumprir duas vezes”, como se a primeira ofer-
ta não tivesse cumprido já o propósito de prote-
ger os acionistas discordantes da sua explícita
intenção de adquirir o controlo.
Em suma, os acionistas (minoritários) seriam
assim duplamente “protegidos” – podendo
vender na oferta obrigatória por preço não
superior àquele em função do qual decidiram
não vender na oferta voluntária –, e o oferente
“penalizado” por ter lançado OPA voluntária a
um preço que se viria a revelar não diferente
daquele que teria de pagar na OPA obrigatória
subsequente, no que seguramente representaria
um forte desincentivo ao lançamento de ofertas
voluntárias dirigidas à aquisição de controlo.
IV. A exceção legal vem assim tentar promo-
ver uma adequada e equilibrada composição
dos interesses das partes em “confronto”, dando
como satisfeitos os interesses dos acionistas
(minoritários) sempre que haja de se concluir
que a OPA obrigatória constituiria mera repeti-
ção da oportunidade de saída concedida já pela
OPA voluntária.
O juízo a fazer, dentro do espírito da Diretiva e
em função da necessidade de proteção dos acio-
nistas perante uma alteração de controlo, resul-
taria então de uma análise comparativa, objeti-
va, entre a oferta (voluntária) que conduziu à
alteração de controlo – e que, portanto, origina-
ria a necessidade de proteção que, não fora a
exceção, se haveria de prosseguir pela imposi-
ção do dever de lançamento de OPA – e a ofer-
ta obrigatória que de outro modo se imporia. A
derrogação dependerá, pois, da resposta à se-
guinte questão: a OPA obrigatória impõe-se
como meio indispensável à proteção dos acio-
nistas, agora minoritários, ou o facto de os ter-
mos em que teria de ser lançada não diferirem
OPA Derrogatória : 55
41- Ainda que a cotação média ponderada possa conduzir a resultados distintos consoante os períodos a que respeitam, afigurar-se-á pouco provável que, no período que antecede o anúncio de resultados de OPA voluntária (que permite ao oferente a aquisição de controlo), a negociação em mercado conduza a contrapartida superior ao oferecido na OPA (ainda que se venha a verificar superior à contrapartida determinada nos seis meses anteriores à divulgação de anúncio preliminar de OPA voluntária). Nesse caso, o critério prevalecente será o do maior preço pago pelo oferente, valor esse que, em princípio, não diferirá da contrapartida por si proposta e efetivamente paga na OPA voluntária.
56 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
(em termos de objeto e contrapartida) da oferta
voluntária permitem dar por satisfeita a neces-
sidade de proteção daqueles?
Colocada a questão nestes termos, facilmente se
depreenderá que o juízo inerente à concessão da
derrogação não se deveria centrar exclusiva-
mente nos termos da OPA voluntária, sem ter
em consideração os termos da OPA obrigatória
a cujo lançamento o oferente procura eximir-se.
Nesta perspetiva, a resposta só poderia ser en-
contrada em função do caso concreto, atenden-
do às circunstâncias em que foi lançada a oferta
voluntária e às circunstâncias em que teria de
ser lançada OPA obrigatória. A derrogação só
deveria, então, ser apreciada e concedida no
termo da oferta voluntária (como de resto já
hoje sucede), perante a tal análise comparativa
a que aludimos42.
V. Como vimos no ponto anter ior , porém, à
luz do direito constituído e numa perspetiva de
maior certeza e segurança jurídica – que nos
levam a sopesar o elemento literal na interpreta-
ção das disposições aplicáveis –, não pode me-
nosprezar-se a interpretação de que o juízo que
o aplicador deve fazer é afinal outro, já não o de
perceber que OPA teria de ser lançada depois
da aquisição de controlo – para perceber se a
OPA lançada antes já satisfez as suas exigên-
cias –, mas tão só, partindo da ficção de que a
oferta voluntária tinha a natureza de obrigató-
ria, verificar se foi lançada nos mesmos termos
em que teria efetivamente de o ter sido se a sua
natureza fosse mesmo a de oferta obrigatória.
De acordo com esta perspetiva, o momento em
que ocorre uma efetiva alteração de controlo já
não relevará para aferição do valor a pagar aos
acionistas que então passam a qualificar-se co-
mo minoritários, irrelevando os termos em que
teria de ser lançada OPA (obrigatória) para legi-
timar a posição assim adquirida: bastante será
que quem pré-anunciou a sua intenção de vir a
adquirir o controlo, tenha lançado OPA volun-
tária como se dele já fosse titular.
No confronto entre as duas perspetivas, havere-
mos então de concluir que as exigências (de
objeto e preço) previstas em ordem à tutela dos
acionistas minoritários que se deparam com
uma alteração de controlo têm como referencial
distintos momentos temporais. Adotando a pri-
meira – que privilegia a divulgação de anúncio
preliminar de oferta voluntária, por referência
ao período de seis meses que o precede (art.
188.º, n.º 1) –, admitir-se-á que ficarão tempo-
ralmente delimitados os factos que podem ter
relevância para apurar o valor da empresa, com
isso se cristalizando, para esses efeitos, o valor
da sociedade visada.
Contudo, imagine-se que, uma vez preliminar-
mente anunciada OPA voluntária, e fixada a
contrapartida de acordo com os critérios aplicá-
veis às ofertas obrigatórias, a sociedade que
dela é objeto vem a sofrer uma efetiva deprecia-
ção do seu valor43.
Compreende-se, com relativa facilidade, que a
desvalorização objetiva e quantificável da soci-
edade podem tornar inexigível que o oferente
mantenha a sua proposta, tal como plasmada no
anúncio preliminar. Por recurso às regras de
modificação da oferta, em caso de alteração das
circunstâncias44, será de elementar justiça que,
mantendo o oferente interesse em prosseguir
com o negócio, possa modificar a oferta,
42- Note-se, aliás, que interpretar o regime da OPA derrogatória atribuindo relevo exclusivo ao valor estabelecido por referência ao anún-cio preliminar divulgado, redundaria na afirmação de que aquele se deverá necessariamente presumir ser um preço justo, aí fundamentando o afastamento da exigibilidade de cumprimento do dever de lançamento de OPA. Ora, como se depreende do regime da aquisição potestati-va, o legislador (nacional e comunitário), apenas pretendeu atribuir esse carácter à contrapartida oferecida em OPA voluntária quando, em sua sequência, o oferente tenha adquirido mais de «90% do capital com direito de voto abrangido pela oferta» (art. 15.º, n.º 5 da Direti-va), erigido, de resto, sob a forma de mera presunção. 43- Originada por contingências do negócio ou por acontecimentos inesperados. 44- Nos termos em que a mesma releva para efeitos de aplicação do art. 128.º e ss.
57 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
ajustando (rectius, diminuindo) a contrapartida
proposta no anúncio preliminar, na medida pro-
porcional à “desvalorização” da sociedade.
Aplicando a este exemplo a teoria que sustenta
que todas as exigências (de objeto e preço) pre-
vistas em ordem à tutela dos acionistas
(minoritários) tendem a cristalizar-se com a
divulgação de anúncio preliminar de oferta
voluntária, por referência ao período de seis
meses que o precede, deveríamos então concluir
que, para a derrogação ser concedida, o oferente
deveria afinal ter pago na OPA não o valor de
contrapartida ajustado pela depreciação do va-
lor da empresa – valor esse que resultaria da
aplicação do regime dos arts. 128.º e ss.
(dependente de aprovação da CMVM) –, mas o
valor (mais elevado) previsto no anúncio preli-
minar, que em tempos poderia até ter sido o
valor mais fiel e representativo do que a socie-
dade valia, mas que perdeu atualidade em fun-
ção dos eventos entretanto ocorridos.
E agora imagine-se que sucedia afinal o inver-
so: uma vez preliminarmente anunciada oferta
voluntária e fixada a contrapartida de acordo
com os critérios aplicáveis às ofertas obrigató-
rias, a sociedade vem a sofrer uma real aprecia-
ção do seu valor, por contingências de negócio
ou de outra natureza. Nesse caso, perante a
perspetiva de adquirir por 100 aquilo que pas-
sou entretanto a valer 120, o oferente manteria
inalterada a sua oferta, sem que nenhuma nor-
ma impusesse a revisão.
Se a oferta viesse a ter sucesso, a derrogação
havia de ser concedida, pois o valor efetiva-
mente pago (100) correspondia ao valor da so-
ciedade antes do anúncio preliminar e antes do
facto que determinou o aumento do seu valor.
De acordo com a segunda teoria, se a sociedade
valia 120 quando a alteração de controlo se
concretizou, e se o controlo foi obtido pagando
apenas 100, não pode concluir-se ter a oferta
voluntária promovido o mesmo nível de prote-
ção que seria exigido na oferta obrigatória, es-
poletada pela aquisição de controlo.
O raciocínio é simples: a oferta obrigatória – se
não existisse derrogação –, nasceria com a ob-
tenção do controlo, momento em que o seu titu-
lar se apropria da faculdade do seu exercício,
sendo esse o único momento relevante para afe-
rir o valor a pagar aos acionistas minoritários
que não queiram continuar vinculados à socie-
dade, em face do novo quadro em que passam a
desenrolar-se as relações de poder no seu seio.
Se essa oferta teria, por qualquer motivo, de ser
lançada por 120, não se deverá poder afirmar
que uma oferta precedente voluntária, concluída
recentemente por 100, cumpriu integralmente
os propósitos de proteção dos acionistas minori-
tários que a Diretiva reclama.
VI. E note-se que o facto de os acionistas terem
uma palavra a dizer, podendo recusar vender
por 100 algo que julgam valer 120, não altera o
pensamento base deste raciocínio: uma coisa
são os mecanismos de que cada acionista se
servirá para se defender de uma eventual
injustiça – agravada pelos problemas decorren-
tes da incerteza quanto à atuação dos demais
acionistas e pelos inerentes receios de ficar
“preso” numa sociedade com acionista de con-
trolo45 –, outra é achar que esses mecanismos
dispensam, por si só, a existência de regras e a
atribuição de poderes à autoridade de supervi-
são, como forma de garantia adicional da posi-
ção jurídica dos investidores, em nome não só
da sua proteção mas da proteção da eficiência e
regularidade de funcionamento do mercado.
De resto, constituindo as duas realidades opos-
tas situações reflexas (numa o valor da socieda-
de desce, no outro, sobe), não fará sentido tratá-
las de forma diferenciada, só porque num dos
casos o eventual prejudicado disporá de alguns
meios para evitar ficar sujeito a um controlo
OPA Derrogatória : 57
45- Agravado ainda pelo efeito (de “pressão” para venda) que vimos poder estar associado à derrogação, caso a declaração viesse em algu-ma circunstância a ser emitida pela CMVM por ocasião do registo da OPA voluntária (ainda que condicionada à verificação ou não verifi-cação de determinados pressupostos).
58 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
com que não alinha. A solução da lei há de ser
idêntica nas duas circunstâncias, reservando
para o momento em que há que aferir se a ofer-
ta obrigatória se constitui, o dever de verificar
se a oferta voluntária cumpriu ou não, por com-
paração com os termos em que aquela deveria
ser lançada, o propósito de proteção dos acio-
nistas e do seu tratamento igualitário46.
Neste sentido, uma OPA voluntária não poderia
nascer como derrogatória, sendo-o apenas se e
quando se vier a concluir que a OPA obrigató-
ria deveria afinal respeitar idênticos termos e
condições. Tal verificar-se-ia em perfeita coe-
rência com o que supra se sustentou, no que
respeita ao único momento em que a CMVM se
pode pronunciar sobre um pedido de derroga-
ção. É por isso sempre a posteriori que, emitin-
do a declaração, a CMVM vai qualificar a OPA
voluntária como derrogatória.
VII. Em sentido inverso, e como foi avançado
supra, um argumento para sustentar a tese da
consolidação dos pressupostos da derrogação
no momento do anúncio preliminar, por refe-
rência aos seis meses anteriores, foi o de que, a
não ser assim, o oferente ficaria exposto a even-
tuais ataques especulativos que tivessem como
propósito e efeito aumentar artificialmente a
cotação das ações objeto da oferta voluntária,
de forma a afetar um dos critérios de determina-
ção do preço da futura e eventual OPA obriga-
tória.
Seria intelectualmente inapropriado invocar que
a exigência de as OPAs se deverem desenrolar
entre duas e dez semanas (art. 183.º) é suficien-
te para obstar a esse resultado, uma vez que o
valor de mercado se haveria de calcular sempre
por referência a um período de seis meses. Co-
mo sabemos, a circunstância de certas ofertas
não poderem ser registadas sem prévia obten-
ção de autorizações administrativas inderrogá-
veis tornam longo o processo de registo, ultra-
passando por vezes o período de seis meses re-
levante para o referido cálculo.
Contudo, a resposta poderá não passar pela sim-
ples e total desconsideração do que venha a
acontecer à sociedade – note-se, relativamente à
qual o oferente ainda não adquiriu o controlo
(pode até não ter ainda adquirido qualquer
ação), não estando por isso sujeito a qualquer
risco relacionado com a apreciação ou deprecia-
ção do valor da empresa –, devendo antes en-
contrar-se dentro do espírito do sistema e, em
concreto, das válvulas de escape que este ex-
pressamente prevê.
Nas circunstâncias em que haja de ocorrer tal
perturbação – quando, obviamente, enquadrável
nos requisitos do art. 188.º, n.º 2 – haverá que,
sem grandes dificuldades, recorrer a auditor
independente que há de aferir o valor da con-
trapartida que teria de ser paga na OPA obriga-
tória, por referência ao momento em que o con-
trolo é adquirido.
46- Note-se que em abono da perspetiva supra referida (ponto 3.1), sempre poderá ser referido que no caso de se verificar a existência de um acontecimento excecional, com um impacto negativo no valor da sociedade, a modificação ou retirada da oferta não dependerá, exclusi-vamente, da vontade do oferente, uma vez que tal depende da autorização da CMVM. O único ponto dependente, de forma exclusiva, do oferente, é o de fazer constar dos documentos da oferta os pressupostos em que se fundou para lançar a mesma, garantindo dessa forma a sua cognoscibilidade por parte dos destinatários. Contudo, é à CMVM que cabe a realização do juízo quanto à efetiva imprevisibilidade, substancialidade e capacidade do facto em alterar os fundamentos que levaram o oferente a lançar a oferta. Quanto à ocorrência de um acontecimento excecional, com um impacto positivo no valor da sociedade, estão previstos mecanismos que, perante o dinamismo dos acontecimentos na pendência da oferta, permitam aos destinatários ter total conhecimento dos factos ocorridos e do seu impacto no valor da sociedade. Desde logo, sendo tal facto um acontecimento suscetível de alterar o valor de mercado dos títulos, teria de ser divulgado ao mercado nos termos do art. 248.º. Caso o facto ocorra em momento posterior à divulgação do prospeto, o oferente deverá requerer à CMVM, imediatamente, aprovação da respetiva adenda (art. 142.º). Por último, o conselho de administração da socieda-de visada, mesmo que já o tenha feito, deverá pronunciar-se novamente sobre os termos e condições da oferta (de acordo com o ponto 4. do Parecer genérico da CMVM sobre os deveres de comportamento na pendência de oferta pública de aquisição OPA, disponível em www.cmvm.pt). Será assim possível concluir existirem mecanismos legais que habilitarão os destinatários da oferta, caso nisso demons-trem interesse, a aceder a informação que lhes permita formar a sua vontade de forma totalmente esclarecida, incluindo perante as novas circunstâncias.
59 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
E então, dois cenários seriam possíveis: i) a
sociedade não vale mais do que já foi pago na
oferta voluntária, caso em que a derrogação
pode ser concedida; ii) a sociedade vale intrin-
secamente mais do que já foi pago na oferta
voluntária, caso em que a derrogação não pode-
rá ser concedida.
VIII. Trata-se, este, de tema sensível. O seu
adequado tratamento e a sua correta aplicação
em concreto não podem desconsiderar os efei-
tos que se pretende estejam associados ao regi-
me jurídico da OPA obrigatória. A questão de
saber se as regras devem incentivar, desincenti-
var ou, simplesmente, ser neutras face à inten-
ção de usar as ofertas públicas como forma de
concentração societária tem sido objeto de estu-
do nos tempos mais recentes47, não podendo por
isso ser ignorado particularmente quando em
causa esteja a ponderação do regime vigente.
4- Conclusões
Nas páginas antecedentes, procurámos sumaria-
mente caracterizar a figura da OPA derrogató-
ria, delimitando os seus pressupostos e eviden-
ciando o procedimento conducente à sua decla-
ração pela CMVM. À conceptualização e dog-
matismo sobrepusemos preocupações da praxis,
a que procurámos dar resposta pela clarificação
do sentido das perguntas.
Conscientes do risco de gerar alguma confusão
no leitor menos versado em tema tão específico,
assumimos um dualismo por vezes provocató-
rio, testando até ao limite do razoável teorias e
perspetivas necessariamente contrapostas (por
vezes inconciliáveis), orientados pela razão de
ser da concreta exceção ao dever de lançamen-
to de OPA em análise.
Não chegámos por isso a conclusão que não a
de que, perante os dados normativos de que
dispomos, não há também aqui um sentido úni-
co e excludente pelo qual se deva pautar a inter-
pretação e aplicação do instituto, restando por
isso, em obediência a preocupações de seguran-
ça e certeza jurídica, adotar uma perspetiva cau-
telosa que tenha por base the worst case scena-
rio.
E porque a matéria das ofertas públicas de aqui-
sição constitui um dos poucos redutos onde os
legisladores nacionais gozam (ainda) de signifi-
cativa margem de modelação do quadro legal,
cumprirá tomar em conta, numa reforma já
(pre)anunciada, todos os contributos para o
aperfeiçoamento do regime jurídico português,
na expectativa de que, agora como no passado,
possa este constituir (também) catalisador da
promoção e dinamização do mercado de capi-
tais. Não constituiu senão esse o móbil deste
pequeníssimo contributo, que se algum mérito
vier a ter será seguramente o de provocar con-
tributos que ultrapassarão este em relevância,
em benefício de todos.
OPA Derrogatória : 59
47- Neste último sentido, embora problematizando os demais, veja-se Luca Enriques, R.J. Gilson e A.M. Pacces, The Case for an Unbiased Takeover Law (with an Application to the European Union), 2014, 4 Harvard Business Law Review, 85, disponível em http://ssrn.com/abstract=2258926 ou em http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2258926.
60 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
1. Delimitação positiva e negativa
do objeto
Nos últimos anos tem-se assistido no setor
financeiro mundial e nacional a uma constante
tensão entre a necessidade de assegurar a manu-
tenção do princípio da eficácia dos mercados2 e
a recuperação da confiança dos investidores3
nos prestadores de serviços financeiros4.
Na discussão que se impõe, o tema do conflito
Negociação por Conta Própria
e os Conflitos de Interesses
(Atuação por parte do intermediário financeiro como contraparte dos clientes)
Maria João Mateus *
“Costuma dizer-se, que a ética paga no longo prazo.
Deduz-se que, se vossa situação for de curto prazo,
nem sempre compensa ser ético. O que temos de
compreender é que cada um tem uma relação de
longo prazo consigo mesmo e que é por isso que
devem ser éticos sempre! A questão tem que ver com
o respeito que temos por aquele que vemos ao
espelho todos os dias de manhã e respeitarem quem
vêem do lado de lá.”1
* - Jurista da CMVM. O presente estudo tem por base a tese de mestrado elaborada pela signatária sob orientação da Professora Margarida Lima Rego, discutida na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, em outubro de 2015, perante um júri presidido pela Professora Ana Prata, tendo como arguente o Professor André Figueiredo. As opiniões expressas neste estudo são as da autora, e não necessariamente as da CMVM. 1- Neves, João César das, Introdução à Ética Empresarial, pp. 241 Dedico o presente estudo ao Dr. Amadeu Ferreira, que não tendo conseguido convencer – me em 1995 a realizar este projeto, me obrigou, em 2013 a retomá-lo: a sua mudança de “estado”, em março de 2015 fez a diferença, tanto na ausência de opinião como na obrigatoriedade de o concluir. 2- Continua atual o entendimento de Amadeu José Ferreira, Direito dos … pp. 39-40: “Será eficiente o mercado que funcione de acordo com aquele equilíbrio permitindo que todos os interesses que concorram no mercado encontrem a mais adequada realização”. Vide em particular à apresentação de José Bracinha Vieira referenciada no presente estudo. 3- Ferreira, António Pedro A. O Governo das Sociedades…, pp. 188 salienta: “Um dos maiores perigos derivados da subsistência da actu-al crise radica, precisamente, na possibilidade de a deterioração desse clima de confiança atingir níveis que ponham em causa a própria subsistência da actividade financeira, pelo menos tal como ela vem sendo exercida de acordo com os padrões tradicionais". 4- Roche, Marc, O Banco, pp. 72, transmite a seguinte imagem: “O Goldman Sachs põe o acento não só sobre o serviço dos seus clientes como cria as suas próprias estruturas concorrentes… um com-portamento original. Dentro da legalidade, as informações obtidas junto destes permitem alimentar as outras actividades do Banco. (…) A evolução dos lucros ao longo dos anos ilustra a transformação do Goldman. Em 1999, o trading representava 43% do rendimento líquido, as actividades de banco de investimento 33% e as de gestão de património 24%. (…) Em 2009, 77%, 10% e 13%. Como explicar este domínio do trading? Em primeiro lugar, a concorrência feroz que opõe os bancos no aconselhamento ou na gestão de fortuna reduz as margens, enquanto o negócio – comprar, vender – é guiado pelos volumes, «o volume de negócios». Depois, a cultura da casa muito particular – espírito de equipa, pressão constante, culto da vitória a qualquer preço, arrogância – faz maravilhas no universo selvagem do trading. Finalmente, graças à sua rede de influências única nos círculos do poder do planeta. (…) Ao mesmo tempo juiz e parte interessada, o banco joga em todas as frentes para tirar proveito com conhecimento de causa”.
61 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
de interesses na intermediação financeira
assume particular importância5, sobretudo pela
distância entre “boas normas” e as “más
práticas”6.
As “boas normas” resultam das alterações re-
gulamentares comunitárias, patentes quer na
primeira Diretiva Relativa ao Mercado de Ins-
trumentos Financeiros7, DMIF 1 - complemen-
tada pela Diretiva de Execução da Diretiva Re-
lativa ao Mercado de Instrumentos Financeiros
8, e pelo Regulamento (CE) n.º 1287/2006 da
Comissão, de 10 de Agosto de 20069 - quer na
segunda Diretiva Relativa ao Mercado de Ins-
trumentos Financeiros10, DMIF 2, em fase de
transposição.
As “más práticas” são confirmadas pelas insol-
vências de instituições de crédito consideradas
“demasiado grandes para falir”, como aconte-
ceu em Portugal11.
Atendendo à amplitude do tema do conflito de
interesses na intermediação financeira, optei
por estudar o conflito de interesses associado à
intervenção dos intermediários financeiros,
autorizados a negociar por conta própria, que
atuam como contraparte dos clientes.
Não sendo possível uma abordagem das ques-
tões económicas, psicológicas ou sociológicas,
circunscrevo-me às questões jurídicas, anali-
sando primeiro as características dos negócios
jurídicos celebrados pelo intermediário finan-
ceiro e a sua relação com a figura do negócio
consigo mesmo do direito civil, e depois o con-
flito de interesses associados a estes negócios.
Excluo assim, quaisquer outras matérias intrín-
secas às relações societárias estabelecidas entre
os administradores e as sociedades (como por
exemplo, o crédito a membros dos órgãos soci-
ais e outras operações).
Neste estudo considerei necessário identificar
mecanismos de mitigação desse conflito.
O sistema do controlo interno, tendo diversas
funções na prevenção de riscos no exercício da
atividade de intermediação financeira, deverá
ser implementado de forma eficaz como forma
de mitigação.
Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 61
5- Cf. Câmara, Paulo “Conflitos de interesses…”, p. 20-22 6- Goleman, Daniel e outros, Transparência-Como os Lideres podem…, pp. 16, defende: “(…) muitas organizações lisonjeiam os valores da abertura e sinceridade, chegando mesmo a inscrever o seu compromisso com eles nas declarações de intenções. Demasiadas vezes trata-se de documentos vazios, que não conseguem descrever a verdadeira intenção da orga-nização e inspiram frustração, mesmo cinismo, aos seus empregados, todos eles demasiado cientes de uma realidade organizacional muito diferente”. 7- Diretiva 2004/39/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de abril, alterada pelas Diretivas n.ºs 2006/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 5 de abril de 2006; 2007/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 5 de setembro de 2007; 2008/10/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de março de 2008, e 2010/78/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 24 de novembro de 2010. As referências serão feitas à versão consolidada disponível em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2004:145:0001:0044:FR:PDF 8- Diretiva 2006/73/ da Comissão, de 10 de agosto, que veio especificar os requisitos e procedimentos concretos em matéria de organiza-ção, concretizando os princípios fixados pela Diretiva Relativa ao Mercado de Instrumentos Financeiros - versão disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2006:241:0026:0058:ES:PDF 9- Regulamento n.º 1287/2006 da Comissão, de 10 de agosto de 2006, versão disponível em seghttp://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:32006R1287 10- Diretiva 2014/65 do Parlamento e do Conselho, de 15 de maio de 2014, versão disponível em http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:32014L0065 11- A existência de compilações de extensas normas internas e de relatórios de controlo interno muito documentados, asseguraram uma aparente normalidade, mas não evitaram a insolvência do Banco Privado Português, S.A., do Banco Português de Negócios, S.A. e a recente intervenção no Banco Espirito Santo, S.A..
62 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
2. Estrutura de análise do tema
O presente estudo circunscreve-se ao regime
previsto no Código dos Valores Mobiliários12,
que consagrou no Capítulo da intermediação
financeira o artigo 309.º ao “Conflitos de inte-
resses” e no Capítulo da “Negociação por con-
ta própria”, os conflitos de interesses associa-
dos à atuação como contraparte do cliente (art.º
346.º do CVM)13.
Assinala-se que, tendo o regime dos conflitos
de interesses sido objeto de uma profunda mo-
dificação em 2007 - com a transposição da
DMIF I, da Diretiva de Execução e do Regula-
mento n.º 1287/2006, operada pelo DL n.º 357-
A/2007, de 31 de outubro – o artigo 346.º do
CVM não sofreu diretamente significativas mo-
dificações.
Contudo, as alterações estruturais “pós-DMIF”
acarretaram uma mudança na identificação,
registo e mitigação de conflitos de interesses,
urgindo estabelecer uma maior articulação com
esse regime legal (art.º 309.º e seguintes do
CVM).
3. Negociação por conta própria
Impõe-se uma prévia referência à classificação
que tem sido proposta pela doutrina relativa-
mente às atividades e serviços de investimento.
Em termos de sistematização das atividades e
serviços de investimento principais e serviços
auxiliares, Carlos Ferreira de Almeida agrupa-
as, “conforme o conteúdo e função a que se
destinam”14, em: (i) “prestações de servi-
ços” (incluindo a gestão de carteira); (ii)
“operações de conta alheia” (nas quais se in-
cluem os serviços de receção e execução de
ordens de clientes, “agindo os intermediários
financeiros por conta e ordem dos seus clien-
tes”) e, (iii) “operações por conta própria”.
Engrácia Antunes sintetiza a atuação dos inter-
mediários financeiros afirmando: “A actividade
negocial dos intermediários financeiros no âm-
bito do mercado de capitais pode ser realizada
por conta alheia ou própria: no primeiro caso,
o intermediário (“broker”) actua por ordem e
conta dos seus clientes (destinando-se os bene-
fícios e riscos dos negócios jusfinanceiros cele-
brados a projectar-se exclusivamente na esfera
destes), assumindo aquele a função primordial
de mediação entre oferta e procura no mercado
de capitais; no segundo caso, pelo contrário, o
intermediário (“dealer”) atua por sua própria
conta e risco, repercutindo-se os efeitos jurídi-
cos e económicos dos negócios sobre o seu pró-
prio património, com vista à realização de uma
pluralidade de finalidades”15.
Nas operações por conta própria incluem-se
as operações de “cruzamento de ordens
dos clientes com a carteira própria do interme-
diário”16 e, as operações “incentivadas
como instrumento para assegurarem a fluidez e
a liquidez do mercado”17, com um fim
“puramente especulativo, de forma a beneficiar
da margem entre o preço de compra e o de
12- Aprovado pelo Decreto-Lei nº 486/99 de 13 de novembro, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.ºs 61/2002, de 20 de março, 38/2003, de 8 de março, 107/2003, de 4 de junho, 183/2003, de 19 de agosto, 66/2004, de 24 de março, 52/2006, de 15de março, 219/2006, de 2 de novembro, 357-A/2007, de 31 de outubro, que o republica (retificado pela Declaração de Retificação nº 117-A/2007, de 28 de dezembro), 211-A/2008, de 3 de novembro, pela Lei nº 28/2009 de 19 de junho, pelo Decreto-Lei nº 185/2009, de 12 de agosto, pelo Decreto-Lei nº 49/2010, de 19 de maio, pelo Decreto-Lei nº 52/2010, de 26/05, pelo Decreto-Lei nº 71/2010, de 18 de junho, pela Lei nº 46/2011, de 24 de junho, pelo Decreto-Lei nº 85/2011, de 29 de junho, pelo Decreto-Lei nº 18/2013, de 6 de fevereiro, pelo Decreto-Lei nº 63-A/2013, de 10 de maio, pelo Decreto-Lei nº 29/2014, de 25 de fevereiro e pelo Decreto-Lei nº 40/2014, de 18 de março, pelo Decreto-Lei nº 88/2014, de 6 de junho, pelo Decreto-Lei nº 157/2014, de 24 de outubro e pela Lei nº 16/2015, de 24 de fevereiro. 13- Sobre o regime anterior vide Rodrigues, Sofia Nascimento, “A regulação geral dos conflitos…”, pp. 69 e Ss., e “O conflitos de interes-ses…”, pp. 334 e seguintes 14- Almeida, Carlos Ferreira, “Transações de conta alheia…”, pp. 292 15- Antunes, José A. Engrácia, Direito Dos Contratos…, pp. 301 16- Antunes, José A. Engrácia, Direito Dos Contratos…, pp. 302 17- Almeida, Carlos Ferreira, “Transações de conta alheia…”, pp. 294
63 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
venda”18 (as operações de fomento do mercado
e de estabilização dos preços e o empréstimo de
valores mobiliários).
Esta classificação resulta da arrumação do
CVM que, no seu Capitulo III, sob a epígrafe de
“Negociação por conta própria”, regula:
A intervenção do intermediário financeiro
como contraparte do cliente (art.º s 346.º);
O regime de conflito de interesses em situa-
ções de antecipação na negociação (art.º
347.º);
A enunciação de típicas operações por conta
própria: as operações de fomento de merca-
do19 (art.º 348.º do CVM); as operações de
estabilização de preços de uma determinada
categoria de valores mobiliários (art.º 349.º
do CVM), e o empréstimo de valores mobi-
liários (art.º 350.º do CVM).
Em 2008 foi aditado neste capítulo do CVM o
artigo 350.º-A20, nos termos do qual o interme-
diário financeiro autorizado a atuar por conta
própria está obrigado a comunicar à CMVM os
ativos que detém - diretamente ou por socieda-
de por si dominada - que se encontrem domici-
liados ou sejam geridos por entidade sedeada
em Estado que não seja membro da União Eu-
ropeia, visando o reforço da transparência de
ativos detidos.
Circunscrevo-me às operações previstas no
artigo 346.º do CVM.
4. Dos conflitos associados atuação
como contraparte
A atuação como contraparte do cliente constitui
uma das múltiplas situações identificadas pela
doutrina em que o intermediário financeiro aca-
ba por se envolver em situações geradoras de
conflitos entre os seus interesses e os interesses
dos clientes.
Segundo Luís Menezes Leitão21 “sendo-lhe
permitido atuar como contraparte, o interme-
diário terá sempre ínsito à sua atuação um
interesse diretamente oposto ao do cliente.
Essa oposição direta faz colocar ao intermediá-
rio a interrogação de se deverá atuar em
prossecução do interesse do investidor, ou se
atuará de acordo com os seus interesses ”.
Nas transações de instrumentos financeiros
entre carteira própria e dos clientes várias situa-
ções se poderão equacionar: ao atuar como
contraparte dos contratos em que intervém, em
nome próprio e em nome dos clientes, poderá o
intermediário financeiro entender que as ordens
que lhe são transmitidas para execução são as
mais convenientes para os seus interesses,
desconsiderando ou minimizando os efeitos que
ocorrerão na esfera dos ordenadores.
Outro exemplo, quando perante uma ordem de
venda de um cliente, o intermediário não segue
a política da execução nas melhores condições
(art.º 330.º do CVM), optando por vender
valores mobiliários que estão na sua carteira.
Noutra situação poderá desejar colocar obriga-
ções de curto prazo, fazendo-o por imputação à
conta de um cliente que pretende adquirir esses
instrumentos financeiros.
Estarão em causa situações que geram, necessa-
riamente, um conflito entre os interesses que
carece de ser tutelado?
Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 63
18- Leitão, Luís Menezes, “Actividades de Intermediação Financeira …”, pp. 136 19- Nos termos do artigo 348.º do CVM, na redação inicial estas operações “visam a criação de condições para a comercialização regular num mercado de uma determinada categoria de valores mobiliários, nomeadamente o incremento da liquidez”. 20- DL n.º 211-A/2008, de 3 de novembro 21- Leitão, Luís Menezes, “Atividades de Intermediação Financeira…”, pp. 137
64 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
A resposta a esta questão exige uma precisão do
conceito de “conflito” e de “interesses” que
releva para o presente estudo.
5. Noção de conflitos de interesses
5.1 Noção de Conflito
O conceito “conflito” tem uma realidade extra-
jurídica de “embate” ou “oposição” que implica
a existência de duas ou mais forças em oposi-
ção.
O legislador comunitário balizou da seguinte
forma o conceito relevante que visa tutelar:
“As circunstâncias que devem ser considera-
das como originando um conflito de interesses
devem abranger os casos em que se verifica um
conflito entre os interesses da empresa ou de
certas pessoas relacionadas com a empresa ou
com o grupo a que pertence e os deveres da
empresa face a um cliente, ou entre os interes-
ses divergentes de dois ou mais dos seus clien-
tes, perante os quais a empresa tem, em cada
caso, um dever. Não é suficiente que a empresa
possa vir a obter um benefício no caso de não
se verificar igualmente uma possível desvanta-
gem para um cliente ou que o cliente perante o
qual a empresa tem um dever possa vir a obter
um ganho ou a evitar um prejuízo, sem se veri-
ficar um possível prejuízo concomitante para
um outro cliente”22.
Sendo defensável que “embora não obrigue à
demonstração de uma incompatibilidade de
interesses – no sentido de que não se possa sa-
tisfazer um sem o outro sai a lesado -, dispõe-se
directamente que tais conflitos apenas relevam
se implicarem prejuízo para uma das partes.
Assim, se uma parte tem um benefício sem que
a outra sofra uma desvantagem, não há tecni-
camente conflito para efeitos do regime comu-
nitário”23.
Resulta do exposto que o conceito de conflito
se confina à existência de duas ou mais forças
com sentidos contrários, a que se associa a pos-
sibilidade de ocorrência de um dano.
5.2 Noção de Interesse
O conceito de “interesse” reconduz-se, em ter-
mos semânticos, à “atenção”, à “importância”
dada por um sujeito a um objeto ou a uma fina-
lidade.
Na teorização do conceito de “interesse” consi-
dero útil a referência ao pensamento de
Savigny, que “construíra todo um sistema de
direito privado assente na vontade humana co-
mo expressão última de liberdade, que teria
como seu instrumento privilegiado o direito
subjetivo enquanto «poder da vontade» 24.
Em sentido contrário, Jhering “rejeitaria a defi-
nição de direito subjetivo com base na ideia de
vontade. Para o autor, uma vez que uma tal
definição implica que a vontade esteja de algu-
ma forma presente em todo o direito, esta teria
como consequência necessária, desde logo, o
não reconhecimento da existência de verdadei-
ros direitos em pessoas totalmente privadas de
vontade racional, ou a existência de diretos
que os seus titulares desconhecem, não poden-
do, por isso ter qualquer espécie de vontade a
seu respeito”25.
Para este Autor os “direitos não existem para
realizar a ideia de vontade jurídica abstrata,
22- Considerando 24 da Diretiva de Execução 23- Câmara, Paulo, “A Regulação baseada…”, pp. 24 24- Rego, Margarida Lima, Contrato de Seguro…, pp. 173 25- Rego, Margarida Lima, Contrato de Seguro…, pp. 174, 175
65 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
mas antes para servir os interesses, as necessi-
dades, os fins do tráfego. (…) Os direitos não
produzem nada de inútil. A utilidade - não a
vontade - é a substância do direito” 26.
Pedro Pais de Vasconcelos salienta que Jhering
inverte o pensamento que “situava o direito
subjetivo na liberdade, na faculdade, no poder
que o seu titular tinha de exercer o poder sobre
um bem e define-o de modo radicalmente novo:
Os direitos subjetivos são interesses juridica-
mente protegidos.
O direito subjetivo deixa de ser algo que é inato
e inerente à qualidade humana e passa a ser
uma concessão da ordem subjetiva. O ponto de
ancoragem da noção de direito subjetivo muda
do poder para o interesse.” (…) Os direitos
transformam-se ao logo da vida. O titular do
direito subjetivo não deixa de o ser em caso de
falta ou deficiência do seu discernimento ou
vontade”27.
Há assim uma “diferença entre a
«subjetividade» da vontade e a «objetividade»
do interesse» ”28.
“A partir da construção de Jhering, a doutrina
passa a expor a alternativa entre a teoria da
vontade, que situa geralmente em Savigny e
Windscheild e a teoria do interesse, que atribui
a Jhering”29.
Na apreciação das teorias expostas, conclui
Margarida Lima Rego que: “A teoria do inte-
resse contrasta com a teoria da vontade: por
um lado, temos os que reconduzem a caracte-
rística primordial do direito subjetivo a um es-
paço de liberdade, a uma oportunidade de es-
colha atribuída ao seu titular, por outro lado
aqueles que instrumentalizam o conceito de
direito subjetivo à prossecução de um determi-
nado fim, à proteção de determinados aspetos
do bem-estar do seu titular, ou que buscam a
fundamentação última da vinculatividade dos
negócios jurídicos em princípios extrínsecos à
autodeterminação das partes”30.
Salientando diversas posições - nomeadamente
a de Pessoa Jorge para quem o interesse é "um
ponto de vista de relação entre a situação de
necessidade ou carência de determinada pes-
soa e o bem lato sensu capaz de preencher essa
carência"31 – Margarida Lima Rego faz refe-
rência ao seguinte entendimento:
“Em sentido diverso se fala em interesse quan-
do se define o conceito como relação entre um
sujeito e um bem” (…) “É este um sentido de
sabor jheringuiano: o interesse como aptidão
ou utilidade de um bem para satisfação de uma
necessidade de um determinado sujeito. Nesse
sentido se diz por vezes que o dano - o dano
real - corresponde à negação ou lesão de um
interesse”32.
Pedro de Albuquerque opta pela definição de
interesse como “relação entre o sujeito e o bem
apto a satisfazer tal necessidade, determinada
na previsão ou valoração que dela faz o
ordenamento jurídico”33.
Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 65
26- Rego, Margarida Lima, Contrato de Seguro… pp. 175 27- Vasconcelos, Pedro Pais, Teoria Geral…, pp.252 28- Múrias, Pedro, http:muriasjuridico.no.sapo.pt/InteresseOOQueE.pdf, pag.26 29- Vasconcelos, Pedro Pais, Teoria Geral…, pp.255 30- Rego, Margarida Lima, Contrato de Seguro…, pp. 178, 179 31- Rego, Margarida Lima, Contrato de Seguro…, pp. 187, nota 414 32- Rego, Margarida Lima, Contrato de Seguro…, pp. 186, 187 e 188 33- Albuquerque, Pedro de, A representação voluntária…, pp.935, nota 1477
66 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Sigo a proposta de definição “interesse como a
relação entre o sujeito de uma necessidade e o
bem que necessita”, considerando a “distinção
entre os conceitos de interesse objectivo e de
interesse subjectivo, correspondendo o primei-
ro à «virtualidade que determinados bens têm
para a satisfação de certas necessidades» e o
segundo à «relação de apetência que se estabe-
lece entre o sujeito carente e as realidades ap-
tas a satisfazê-lo»”34.
Conclui-se que o conceito de conflito (ou con-
flitos) de interesses:
Assenta na existência de relações entre os
sujeitos – clientes e intermediários financei-
ros – e os bens aptos a satisfazer as suas ne-
cessidades (valores mobiliários ou instru-
mentos financeiros que pretendem adquirir
ou alienar);
Sendo valorado o facto de se tratar de rela-
ções juridicamente protegidas estabelecidas
em sentidos contrários, a que associa a pos-
sibilidade de ocorrência de danos.
6. Intervenção como contraparte
dos clientes
Nos contratos referidos no art.º 346.º, nº1 do
CVM o intermediário financeiro atua em nome
do cliente “agindo como comprador ou vende-
dor por conta própria, isto é, como contraparte
no negócio de execução. Esta operação é co-
nhecida no direito alemão, como Kommission
mit Sebsteintritt, expressão que, na literatura
espanhola, foi traduzida por “autoentrada del
comissionista”35.
O intermediário financeiro “toma a decisão, de
negociar directamente com o cliente, fora de
mercado, comprando-lhe os valores que ele
pretende vender ou alienando-lhe os valores
que pretende adquirir”36.
A doutrina tem reconduzido estas situações à
figura do contrato consigo mesmo (art.º 261.º
do CC) ou da “auto-entrada do comissário”37
do direito comercial.
No contrato consigo mesmo “intervém uma só
pessoa que age simultaneamente na qualidade
de parte e na qualidade de representante da
outra parte ou na qualidade de representante
de todos as partes”38.
A aceitação da figura jurídica dos negócios con-
sigo mesmo no direito civil não foi consensual
na doutrina estrangeira39 nem na doutrina portu-
guesa, questionando-se mesmo se haveria um
verdadeiro contrato40.
Partilho da opinião de que a figura do “contrato
consigo mesmo” é “um instituto relevante
33- Albuquerque, Pedro de, A representação voluntária…, pp.935, nota 1477 34- Rego, Margarida Lima, Contrato de Seguro…, pp. 188 35- Almeida, Carlos Ferreira, “Transações de conta alheia…”, pp. 298 e Neto, Abílio “Código Civil Anotado”, pp.180 36- Borges, Sofia Leite, “O conflito de interesses …”, pp.397 37- Almeida, Carlos Ferreira, Contrato I …,pp. 147 38- Almeida, Carlos Ferreira, Contrato I …,pp. 146 39- Albuquerque, Pedro, A representação voluntária … pp. 390 e 391, refere que na Alemanha, na discussão dos anteprojetos que antecederam o BGB, enquanto no primeiro anteprojeto se decidia favoravelmente não obstante a possibilidade de eventuais conflitos, no 2º anteprojeto impunham-se restrições. 40- Vide Serra, Adriano Vaz “Contrato Consigo mesmo” pp. 179 afirma “É discutida a possibilidade jurídica destes contratos. Antes de mais, pode perguntar-se se haverá então verdadeiro contrato “; concluindo (pp. 180) que “não é essência do contrato a existência de duas ou mais vontades, produto psicológico de duas ou mais pessoas, mas apenas de duas ou mais declarações de vontade, representando inte-resses diferentes”. Este Autor assinalava a perigosidade do contrato consigo mesmo (pp. 180) dado que: “Se todos os interesses das duas partes são opostos, pode ser temer que o representante sacrifique os do representado a favor dos seus ou, no caso de dupla representação, sacrifique um dos representados em benefício de outro”.
67 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
para a regulação de conflitos de interesse
gerados por efeito da atribuição, de poderes de
representação. Conforme as circunstâncias, o
contrato é válido ou anulável”41.
No artigo 261.º do Código Civil preveem-se
duas situações42:
“ou alguém representa em simultâneo ambas
as partes de determinados negócios – é a
chamada dupla representação”43;
“ou o representante atua nessa sua qualida-
de, e ao mesmo tempo, em nome próprio e
portanto como contraparte – trata-se do au-
tocontrato ou autonegócio”.
Aproximam-se as situações subjacentes ao regi-
me do art.º 346.º do CVM do “autocontrato ou
autonegocio”44, do contrato de comissão45.
Nos termos do disposto no artigo 266.º do Có-
digo Comercial o mandatário executa o manda-
to mercantil sem menção ou alusão ao man-
dante, contratando por si e em seu nome, como
principal e único contraente (aplicando-se as
regras do mandato sem representação prevista
no art.º 1180.º e Ss. do Código Civil). No artigo
274.º do mesmo diploma regula-se a compra e
venda ao comitente atuando por conta própria.
As consequências da não-aceitação dos efeitos
dos contratos celebrados, por parte dos Repre-
sentados tem, no entanto, regimes jurídicos di-
versos no direito civil, comercial e dos valores
mobiliários, conforme se analisará nos n.º 9.1 a
9.3.
7. Regime comunitário – regulação geral
7.1 DMIF 146
A DMIF 1 ao eleger como um dos seus princi-
pais objetivos a proteção dos Investidores47 im-
põe às empresas de investimento e instituições
de crédito que atuem de forma honesta, equita-
tiva e profissional, em função do interesse dos
clientes (art.º 19.º / 1 da DMIF 1).
Para tal, terão de “adotar e manter mecanismos
organizativos e administrativos eficazes por
forma a tomar todas as medidas razoáveis des-
tinadas a evitar que conflitos de interes-
ses” (art.º 13.º/3 DMIF 1), o que pressupõe a
sua identificação (art.º 18/1 DMIF 1).
Caso as medidas adotadas não sejam suficien-
tes para garantir com um “grau de certeza ra-
zoável, que serão evitados os riscos de os inte-
resses dos clientes serem prejudicados”, o in-
termediário financeiro deve “informar clara-
mente o cliente, antes de efetuar uma operação
em seu nome, na natureza genérica e/ou das
fontes desses conflitos de interesses” (art.º18/2
DMIF 1).
Sendo a DMIF 1 essencialmente programática -
“designada como uma maximum harmonization
directive e caraterizada como uma regulação
Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 67
41- Almeida, Carlos Ferreira, Contrato I …,pp.146 42- Albuquerque, Pedro, A representação voluntária …, pp. 935 e 936 43- Relativamente ao duplo mandato ou dupla comissão vide Borges, Sofia Leite, “A regulação Geral dos Conflitos…”, pp. 75. A Autora enuncia como situação típica do conflito entre clientes investidores a “decorrente das ordens transmitidas pelos clientes poderem ser cru-zadas fora do mercado, com eventual benefício de um cliente e em detrimento de outro”. Sendo uma situação abrangida pelo art.º 261.º do Código Civil “implica que o intermediário actue por conta de vários clientes com interesses contrapostos, recebendo e executando as ordens por aqueles transmitidas ou gerindo as respetivas carteiras”. 44- Almeida, Carlos Ferreira, Contrato I …,pp.147-148. O Autor afirma: “Afins dos contratos consigo mesmo (ou, num conceito lato, uma especial classe destes) são os contratos celebrados pelo comissário com o seu comitente, no âmbito dos poderes atribuídos pelo comitente para actuação por sua conta mas em nome do comissário”. 45- Almeida, Carlos Ferreira, Contrato I …,pp.148. O Autor salienta que existem diferenças entre o contrato consigo mesmo e o contrato de comissão, regulado no artigo 266.º Ss. do Código Comercial já que no primeiro “há duas declarações do representante; na auto-entrada do comissário, este emite apenas a sua própria declaração, sendo a função da outra substituída pelo contrato de comissão”. 46- A DMIF 1 consagra a regulação geral dos conflitos de interesses nos artigos 13.º /3 e 18.º. 47- Cf. Considerando 29
68 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
baseada em normas bastante amplas”48 – veio
impor:
A identificação de possíveis conflitos de in-
teresses de dois níveis: entre o intermediário
financeiro e seus clientes e entre estes (art.º
18.º DMIF 1);
A adoção de medidas de organização interna
de segregação de atividades e funções - com
separação entre as diferentes áreas para que
seja realizável uma limitação da circulação
de informações - assim como uma delimita-
ção do poder decisório, a par da implementa-
ção de mecanismos de controlo interno desta
segregação (art.º 13/3 DMIF 1);
A divulgação junto dos clientes - antes de
efetuar uma operação em seu nome - da na-
tureza dos conflitos de interesses contrapos-
tos, ou meramente perturbadores do exercí-
cio correto e determinado da prestação con-
tratada (art.º 18º/2 DMIF 1).
Decorre do disposto no artigo 18.º da DMIF 1
que a identificação inclui:
As relações internas verticais ou horizontais
(entre colaboradores e entre dirigentes e co-
laboradores);
As relações dentro do grupo financeiro em
que o intermediário se insira;
As relações entre os clientes.
Relativamente às medidas de organização e se-
gregação orgânica e funcional serão menciona-
dos em capítulo subsequente, a propósito da
mitigação dos conflitos, exemplos das mesmas.
Salienta-se, no entanto, que “as medidas de or-
ganização e funcionamento actuariam assim
quer ao nível da circulação da informação,
quer ao nível da autonomia decisória entre ac-
tividades, evitando o contágio por interesses”49,
que decorrem do exercício de outras atividades
ou prestação de serviços.
7.2 Diretiva de Execução
A Diretiva de Execução - Diretiva de Nível 250
-concretizando os deveres previsto na DMIF 1,
estabeleceu novos requisitos em matéria de or-
ganização e condições de exercício das ativida-
des das empresas de investimento (art.º s 21º a
23º), passando a ser determinante:
O grau de independência das atividades den-
tro o intermediário, e entre estas e outras
entidades do mesmo grupo51 (art.º 22º/3 Di-
retiva de Execução);
A obrigação de registo de todos os tipos de
atividades ou serviços de investimento nos
quais teve origem um conflito de interesses
que implicou um risco significativo de que
os interesses de um ou mais clientes fossem
afetados, ou no caso de uma atividade ou
serviço em curso, em que tal seja suscetível
de ocorrer (art.º 23º Diretiva de Execução);
A identificação e registo de operações em
que intervêm “Pessoas Relevantes” (art.º
22/3 da Diretiva de Execução).
Os intermediários financeiros ficaram obriga-
dos a manter registos atualizados de serviços ou
atividades que originam conflitos de interesses
(art.º 23.º da Diretiva de Execução, em comple-
mento do art.º 13º/5 da Diretiva DMIF 1).
Relativamente à negociação por conta própria, a
Diretiva de Execução elegeu esta atividade
48- Câmara, Paulo, “A Regulação baseada…”, pp. 62 49- Borges, Sofia Leite, “A Regulação geral…”, pp. 83 50- Catarina Trigacheiro sintetiza o processo de decisão comunitária, “Comitologia”, pp. 34, referindo as conclusões do Relatório de Lamfalussy publicado a 15 de fevereiro de 2001, sugerindo a implementação de um processo de regulamentação em quatro níveis, o 1º baseado em princípios e normas de carácter geral”; o 2.º “consiste, em medidas de execução, que concretizam os princípios gerais defini-dos no Base”; o 3.º pretende-se atingir uma “cooperação estreita entre as várias entidades nacionais de supervisão” e o 4.º relacionado “com o cumprimento das normas comunitárias”. 51- Se o intermediário financeiro estiver no âmbito de um grupo de sociedades a sua política terá de agrupar todas as possibilidades de conflitos de interesses em razão de quaisquer circunstâncias que possam suscitar de acordo com a estrutura e atividades comerciais de outros membros de grupo (art.º 22.º/2 da Diretiva de Execução).
69 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
como uma das que apresentam uma maior
probabilidade de gerar potenciais conflitos de
interesses, relevando em particular o exercício
de várias atividades de intermediação em con-
junto com esta52.
7.3 DMIF 253
O legislador comunitário considerou que a
“crise financeira revelou deficiências no funci-
onamento e na transparência dos mercados
financeiros”54, sendo oportuno a revisão de to-
do o regime anterior.
A DMIF 2 procura acompanhar a evolução re-
gistada na negociação, em particular na negoci-
ação algorítmica, e de novos instrumentos fi-
nanceiros derivados de mercadorias, incluindo
contratos de energia, negociados num sistema
de negociação organizado (OTF, organised tra-
ding facility), o surgimento de novas platafor-
mas de negociação.
Inclui ainda a regulação aplicável aos depósitos
estruturados.
Em matéria de conflito de interesses reitera-se a
necessidade de prevenir, mitigar e informar os
clientes de possíveis conflitos de interesses55, e
introduz-se uma referência expressa à sua
origem com base na “combinação de serviços,
incluindo os causados pela aceitação de incen-
tivos de terceiros ou pela própria remuneração
da empresa de investimento e demais estrutu-
ras de incentivos” (art.º 23.º /1).
Salienta-se a regulação da estruturação da re-
muneração dos colaboradores56, e do regime de
incentivos e comissionamento57.
8. Regime nacional
A transposição da DMIF 1 e da Diretiva de
Execução exigiram aos intermediários financei-
ros:
Um conhecimento profundo do modelo de
negócio adotado, de modo a ser possível
identificar, em concreto, e para cada ativida-
de de intermediação prestada, potenciais
conflitos;
A identificação das áreas operativas com
maior probabilidade de ocorrerem situações
de conflitos potenciais ou efetivos58;
A fixação de mecanismos operacionais de
prevenção e mitigação desses conflitos;
A avaliação da eficácia deste sistema pelos
órgãos de fiscalização interna, e
A demonstração interna e externa dessa
avaliação.
Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 69
52- Considerando 24: “Em especial, considera-se que essa atenção especial é adequada sempre que a empresa ou a pessoa, directa ou indiretamente vinculada à empresa por uma relação de controlo, realize uma combinação de duas ou mais dessas atividades”. 53- Esta diretiva que revoga a DMIF 1 com efeitos a partir de 03 de janeiro de 2017 (art.º 94.º), é complementada pelo Regulamento (UE) n.º 600/2014, do PE e Com., de 15 de maio de 2014. 54- No Considerando 4, salienta-se a necessidade de regular as situações em que a negociação ocorre em mercado de balcão (OTC, over-the-counter) de modo “a aumentar a transparência, melhor proteger os investidores, reforçar a confiança, fazer face às áreas não regulamentadas e assegurar que sejam concedidos às autoridades de supervisão poderes adequados para o desempenho das suas tarefas”. Caso não exista garantia de que se serão evitados esses riscos os clientes deverão ser informados, devendo a informação ser efetuada num suporte duradouro e ser suficientemente detalhada, de modo a permitir uma decisão esclarecida (art.º 23/ 2 e 3). 55- Considerando 56: “Caso, no entanto, subsista algum risco residual de prejuízo para os interesses do cliente, será necessário informar claramente o cliente da natureza genérica e/ou das fontes do conflito de interesses e das medidas tomadas para mitigar esses riscos, antes de efetuar uma operação em seu nome.” 56- Considerando 77 e artigo 9. 3 / al. c) da Diretiva. 57- Nos termos do disposto no art.º 24/ 10:“Uma empresa de investimento que preste serviços de investimento a clientes deve assegurar que o seu pessoal não é remunerado nem o seu desempenho avaliado de forma a entrar em conflito com a sua obrigação de atuar no inte-resse dos seus clientes. Em particular, não deve tomar medidas relativas a remuneração, objetivos de vendas ou de outro tipo suscetíveis de criar um incentivo ao seu pessoal a recomendar um determinado instrumento financeiro quando a empresa de investimento poderia propor um instrumento financeiro diferente que melhor correspondesse às necessidades desse cliente”. 58- Uma das principais alterações está relacionada com a necessidade de autonomização de áreas operacionais e comerciais e segregação de funções, com especial exigência, em termos de negociação por conta própria, para a delimitação das tarefas de execução de front office e verificação por parte das áreas de back office.
70 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Complementarmente, foram reforçados os de-
veres de segregação patrimonial e de separação
contabilística, bem como as proibições impos-
tas ao intermediário financeiro de dispor dos
valores mobiliários pertencentes aos seus Clien-
tes ou exercer os direitos a eles inerentes, salvo
acordo escrito dos titulares (art.º 306.º do
CVM).
Temos assim59:
A delimitação subjetiva, ou seja, o perímetro
das pessoas cujos interesses relevem para
efeitos de aplicação do regime – art.º s 309.º-
E e 309.º-F do CVM – distinguindo-se con-
flitos entre intermediário e clientes (não ape-
nas entre o cliente e a pessoa coletiva presta-
dora do serviço, mas também entre os clien-
tes e os dirigentes do intermediário, colabo-
radores e agentes vinculados ou quaisquer
pessoas em relação de domínio com o inter-
mediário financeiro) e conflitos de interesses
entre os diferentes clientes;
A delimitação objetiva, relevando a incom-
patibilidade de interesses e não a simples
concorrência de interesses contrapostos.
Até 2007 decorriam do regime geral de conflito
de interesses previsto no artigo 309.º do CVM:
O dever imposto ao intermediário financeiro
de se “organizar e atuar de modo a evitar ou
reduzir ao mínimo o risco de conflito de in-
teresses” (art.º 309.º /1 na redação original);
Em situação de conflito, o dever de “agir
por forma a assegurar aos seus clientes um
tratamento transparente e equitativo” (art.º
309.º /2 na redação original);
O dever de prevalência dos interesses dos
clientes (art.º 309.º/ 3 na redação original);
A obrigação de colocar à disposição dos cli-
entes os valores mobiliários pelo preço de
aquisição, quando o intermediário realize
operações para satisfazer ordens de clientes
(art.º 309.º/ 4 na redação original).
Com a transposição da DMIF 1 e da Diretiva de
Execução, operada pelo DL n.º 357-A/2007, 31
de outubro, este regime sofreu uma profunda
alteração, passando o artigo 309.º do CVM a
conter os “Princípios gerais”, tendo sido intro-
duzidos novos artigos – art.º s 309.º- A a 309.º
G do CVM - com “deveres instrumentais”60:
a) De organização;
b) De planeamento e execução da política
de conflitos de interesses;
c) De recenseamento e de comunicação.
a) Deveres de organização61
Na referência à natureza da política em matéria
de conflitos de interesses impõe-se que esta
deve ser adequada à dimensão e organização do
59- Câmara, Paulo “Conflitos de interesses …”, pp. 24 60- Câmara, Paulo “Conflitos de interesses …”, pp. 26 61- A par do regime referido, a reformulação de toda a Seção III (Organização e exercício) do Capitulo VI do CVM, reflete a preocupação de limitar a ocorrência de conflitos de interesses entre o intermediário financeiro e os Clientes, em particular na negociação por conta própria, salientando-se:
A imposição do princípio da segregação patrimonial com a clara distinção em todos os atos que pratique e nos registos contabilísticos e de operações entre os bens pertencentes ao seu património e os bens pertencentes ao património de cada um dos clientes (art.º 306.º /1 do CVM);´
A obrigatoriedade de conservação dos registos e contas de modo a permitir, em qualquer momento e de modo imediato, distinguir os bens pertencentes ao património de um cliente, dos pertencentes ao património de qualquer outro cliente, bem como dos bens perten-centes ao património do intermediário financeiro (art.º 306.º /5/al a) e 307.º do CVM);
O dever de manter os registos e contas organizados de modo a garantir a sua exatidão e, em especial, a sua correspondência com os instrumentos financeiros e o dinheiro dos clientes (art.º 306.º /5/al b) do CVM);
A necessidade de autorização expressa dos Clientes para que o intermediário financeiro possa dispor, no seu interesse ou no interesse de terceiros dos instrumentos financeiros pertencentes aos Clientes, (art.º 306.º /3 e 306.º B do CVM);
O dever de colocar à disposição dos Clientes os instrumentos ou dinheiro de/para operação sobre os mesmos no próprio dia em que esses valores estejam disponíveis na conta do intermediário ou até ao dia seguinte se as regras do sistema de liquidação não o permi-tirem mais cedo (art.º 306.º D/ 1 do CVM);
O dever de abstenção de incitar os seus clientes a efetuar operações repetidas sobre instrumentos financeiros, incluindo a concessão de crédito, ou de as realizar por conta deles, quando tais operações tenham como fim principal a cobrança de comissões ou outro objetivo estranho aos interesses do cliente (art.º 310/1 do CVM);
A proibição de receção/oferta por parte do intermediário de financeiro de “benefícios ilegítimos” remuneração, comissão ou benefício não pecuniário - relativos à prestação de serviço em causa (art.313.º do CVM).
71 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
intermediário financeiro (art.º 309.º- A/1 do
CVM).62.
Assumirá particular relevância a estrutura so-
cietária adotada e a existência de sociedades
dominadas pelo intermediário financeiro fora
de território comunitário, atendendo à negocia-
ção de instrumentos financeiros e respetiva
contabilização, quer na casa mãe quer nesses
estabelecimentos.
b) Deveres de planeamento e execução da
política de conflitos de interesses
Os intermediários financeiros passaram a ser
obrigados a adotar uma política de conflitos de
interesses, reduzida a escrito (art.º 309.º-A/ 1 e
3 do CVM):
Adequada à sua dimensão, à sua organização
e aos serviços efetivamente prestados, com
especial atenção para a complexidade das
atividades desenvolvidas (art.º 309.º-A/ 1 do
CVM);
Com identificação, relativamente às ativida-
des de intermediação financeira específicas,
das circunstâncias que constituem ou podem
dar origem a um conflito de interesses (art.º
309.º-3/ al. a) do CVM);
Especificando os procedimentos a seguir e
as medidas a tomar, a fim de gerir esses con-
flitos (art.º 309.º-3/ al. b) do CVM).
A política de conflitos de interesses aplica-se a
todos os colaboradores que atuem em nome do
intermediário financeiro, de forma direta ou
indireta (subcontratados ou outros em regime
de prestação de serviços).
c) Deveres de registo e de comunicação
Fixou-se a implementação de procedimentos
para manter e atualizar regularmente os registos
de todos os tipos de atividades de intermediação
financeira, realizadas diretamente pelo interme-
diário financeiro ou em seu nome (com especial
atenção para o regime de subcontratação previs-
to nos artigos 308.º e seguintes do CVM) - que
poderão originar um conflito (Art.º 309.º-C do
CVM).
Em matéria de deveres de comunicação o inter-
mediário passou a estar obrigado a:
a) Prestar informação quando à “origem e à
natureza de qualquer interesse” que tenha
ou que qualquer pessoa, que em nome dele
aja possa ter, no serviço a prestar, sempre
que as medidas organizativas adotadas em
matéria de conflito de interesses “não sejam
suficientes para garantir, com um grau de
certeza razoável, que serão evitados o risco
de os interesses dos clientes serem prejudi-
cados” (art.º 312.º/1/c) do CVM);
b) Efetuar uma descrição “ainda que apresen-
tada sinteticamente, da política em matéria
de conflitos de interesses seguida”, para
além de ter de prestar todas as informações
adicionais que lhe sejam solicitadas (art.º
312.ºC/1/h) do CVM), quando negocie com
investidores não qualificados.
9. Conflitos associados à intervenção
como contraparte
A prevenção de conflito dos interesses dos in-
termediários e dos clientes, nas situações em
que os primeiros intervêm como contraparte
dos segundos, passa pela autorização ou confir-
mação dos negócios celebrados por parte dos
Clientes (art.º 346/ 1 do CVM).
No direito dos valores mobiliários existe uma
situação de conflito dado que, “sendo-lhe per-
mitido atuar como contraparte, o intermediário
terá sempre ínsito à sua atuação um interesse
diretamente oposto ao do cliente. Essa oposi-
ção direta faz colocar ao intermediário a inter-
rogação de se deverá atuar em prossecução do
interesse do investidor, ou se atuará de acordo
com os seus interesses ” 63.
Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 71
62- Atendendo à integração do intermediário financeiro em grupos societários foi imposto que a política de conflitos deve ter em conta “quaisquer circunstâncias que são, ou deveriam ser, do conhecimento” do intermediário que sejam “suscetíveis de originar um conflito de interesses decorrente da estrutura e atividades comerciais de outras sociedade do grupo” (art.º 309.º-A/2 do CVM). 63- Leitão, Luís Menezes, “Atividades de Intermediação Financeira…”, pp. 137
72 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
9.1 Negócio consigo mesmo
No direito civil esta matéria reduz-se à figura
do “contrato consigo mesmo” (261.º Código
Civil), sendo anulável o negócio celebrado pelo
representante consigo mesmo.
A título excecional, o negócio será válido desde
que:
O representado tenha especificadamente
consentido na celebração64, ou
O negócio exclua por sua natureza a possibi-
lidade de um conflito de interesses.
A consagração das exceções enunciadas leva a
que o “conflito de interesses deva ser entendi-
do, no fundo, como um conflito entre vontades
ou fins predeterminados pela vontade predeter-
minada do representado” (…) e os potenciais
visados pelo representado (no sentido de que o
conflito de interesses entre o representante e o
representado) sendo, na verdade, um conflito
entre vontades”65.
9.2 Autorização do negócio
No direito dos valores mobiliários, o legislador
consagrou a permissão do negócio desde que o
cliente, “por escrito”, o tenha “autorizado ou
confirmado” (art.º 346/1 do CVM).
O regime da autorização prévia ou da confirma-
ção do negócio tem subjacente o cumprimento
do dever de transparência previsto no art.º
309.º/2 do CVM, uma vez que o intermediário
terá sempre de interagir com o cliente, cumprin-
do esse dever antes ou depois da realização do
negócio.
“Assim, quando pretenda obter a autorização
prévia do cliente, o intermediário financeiro
deve informá-lo de que pretende agir como sua
contraparte no negócio fora de mercado,
indicando o preço pelo que está disposto a
comprar ou a vender os valores, bem como o
preço de mercado dos mesmos, caso este seja,
respetivamente, superior ou inferior àquele. O
cliente deve ficar perfeitamente esclarecido
quanto aos termos da operação e suas implica-
ções designadamente, patrimoniais” 66.
Relativamente ao regime da autorização, consi-
dero útil a seguinte precisão concetual efetuada
por Pedro Leitão Pais de Vasconcelos67, no sen-
tido de estarmos perante uma autorização cons-
titutiva, enquanto “ato destinado especifica-
mente a provocar, em conjunto com a autono-
mia privado do autorizado, a aquisição de legi-
timidade por parte deste, através da paralisa-
ção dos efeitos de defesa da situação jurídica
do autorizante e da reflexa constituição, na es-
fera jurídica do autorizado, de uma posição
jurídica de beneficiário dessa paralelização, o
que possibilita a sua atuação”.
Este Autor efetua a distinção entre o regime
jurídico da autorização e o regime jurídico sub-
jacente à representação típica de emissão de
uma procuração, nos seguintes termos:
Enquanto o autorizado atua em nome próprio, o
representante age em nome alheio e não por sua
própria conta, declarando “que os efeitos do
negócio são dirigidos à esfera do dominus”68.
Por outro lado, a confirmação do negócio apro-
xima-se da aprovação, dado que ocorre posteri-
ormente à sua realização, e não se confunde
64- Serra, Adriano Vaz “Contrato Consigo mesmo” pp.227, “Afigura-se conveniente exigir uma autorização clara e específica do repre-sentado, pois qualquer não monstra suficientemente que este quis autorizar o contrato do representante consigo mesmo e teve consciência do risco que corria”. 65- Albuquerque, Pedro, A representação voluntária … pp. 935, nota 1477 66- Borges, Sofia Leite, “O conflito de interesses…”, pp. 400 67- Vasconcelos, Pedro Leitão Pais de, “ A Autorização”, pp. 152 68- Vasconcelos, Pedro Leitão Pais de, “ A Autorização”, pp. 287
73 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
com a ratificação, “especificamente destinada a
cessar a ineficácia causada pela falta de pode-
res de representação”69.
Cumpre com o disposto no citado artigo 346.º/1
do CVM o intermediário financeiro que obte-
nha autorização (prévia) do cliente para a cele-
bração do negócio ou a sua confirmação
(aprovação).
A autorização ou confirmação do negócio jurí-
dico por parte do Investidor não o impede de vir
a questionar o intermediário financeiro pelos
efeitos jurídicos desse mesmo negócio.
Por exemplo, quando toma conhecimento de
que o preço de compra ou venda era superior ao
preço de mercado. Nesse caso, o cliente pode
recorrer judicialmente, invocando a ilicitude do
ato porque contrário ao principio da prevalência
dos interesses do intermediário sobre os seus
interesses70.
9.3 Da invalidade e da ineficácia
E se o cliente não autorizar o negócio?
Poderá questionar-se se estaremos perante uma
situação de invalidade ou de ineficácia.
Tratando-se de uma situação de invalidade, o
negócio será nulo ou anulável?
A opção por uma situação de nulidade poderá
ser considerada excessiva tendo em conta: (i) a
natureza dos interesses em causa, já que não se
trata de questões de ordem pública; (ii) o facto
de estar em causa a tutela de interesses privados
e não públicos; e (iii) a ausência de uma solu-
ção idêntica para situações semelhantes no di-
reito civil.
Será então o negócio anulável?
Verificando-se que em situações paralelas no
direito civil, a propósito do negócio consigo
mesmo, o legislador optou pela anulabilidade
(art.º 261.º Código Civil).
Esta opção seria consentânea com o direito co-
mum, aplicando-se analogicamente do regime
do contrato consigo mesmo (art.º 261.º do
Código Civil):
Os interesses do cliente estariam sempre
acautelados, já que, antes de intentar a ação de
anulabilidade poderia, se o entendesse oportu-
no, concluir pela confirmação do negócio,
sanando assim a invalidade (art.º 288.º do
Código Civil)71.
Salienta-se, no entanto, que sendo o regime em
análise datado de 1999, o legislador não optou
pela consagração de um regime da invalidade
idêntico72.
Uma última hipótese será a arguir da ineficácia
do negócio.
Em termos da discussão em torno do negócio
consigo mesmo, a ineficácia chegou a ser
Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 73
69- Vasconcelos, Pedro Leitão Pais de, “ A Autorização”, pp. 321 Refere o Autor a propósito da ratificação: “se falta a titularidade do poder de representação o agente não terá legitimidade para praticar o ato de representação pelo que o ato será parcialmente ineficaz na parte afetada pela ilegitimidade, não sendo os seus efeitos dirigidos à esfera jurídica do dono do negócio. Ou seja, o ato será ineficaz relativamente ao dono do negócio” (pp. 297). 70- Borges, Sofia Leite, “O conflito de interesses…”, pp. 402 71- Neste sentido Borges, Sofia Leite, “O conflito de interesses…”, pp. 403 72- Carlos Ferreira de Almeida, presidente dessa Comissão, discorda da opção pela anulabilidade dos negócios com a seguinte argumenta-ção, no âmbito do anterior Código do Mercado dos Valores Mobiliários: “Não há fundamento para a sua aplicação directa, porque, não agindo o intermediário financeiro como representante, o acto não se configura como contrato consigo mesmo em sentido técnico. Também não se justifica a sua aplicação analógica, porque a razão de ser da anulabilidade cominada por aquele preceito reside na existência potencial (ex ante) de conflito de interesses e não no modo como tal conflito em concreto se resolve (ex post). (…) A violação das aludidas regras não tem aliás qualquer efeito jurídico directo sobre o contrato de compra e venda. Admitida a licitude deste, o comissário intervém nele sob as vestes e com a liberdade negocial de qualquer comprador. O efeito da inobservância dos referi-dos “deveres gerais” incide antes sobre as obrigações decorrentes dos contratos de mandato celebrados pelo intermediário financeiro com os seus clientes, podendo envolver cumprimento defeituoso das obrigações deles decorrentes. Em relação ao cliente que é contraparte no contrato de compra e venda, se o preço do contrato for pior do que o preço corrente do mercado. Em relação a outros clientes, se o contrato tiver por efeito a perda de oportunidade de negócio. Em qualquer caso, a eventual obrigação de indemnizar deve ser considerada no âmbito da responsabilidade civil contratual.”, in “Transacções por conta alheia…”, pp.300.
74 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
considerada a melhor solução: Vaz Serra defen-
dia, antes da elaboração do Código Civil em
1966, a propósito do negócio consigo mesmo,
que seria a desconsideração do negócio a me-
lhor solução, salientando que a anulação consti-
tuiria “um incómodo para o representado, que
se verá muitas vezes levado a abster-se de fazer
anular o contrato”73.
Em matéria de representação sem poderes, con-
sidera-se ineficaz em relação ao representado, o
negócio que “uma pessoa, sem poderes de re-
presentação, celebre” em seu nome, que aquele
não o ratificar (art.º 268.º / 1 do Código Civil).
Refere Pedro Leitão Pais de Vasconcelos a pro-
pósito do regime subjacente ao art.º 268.º do
Código Civil:
“Se faltar a titularidade do poder de represen-
tação o agente não terá legitimidade para pra-
ticar o ato em representação pelo que o ato
será parcialmente ineficaz na parte afetada
pela ilegitimidade, não sendo os seus efeitos
dirigidos à esfera jurídica do dono do negó-
cio”74.
(…)
“ A ratificação provoca, à posteriori, mas com
efeito retroativo, o efeito de vinculação da pes-
soa em nome de quem o agente praticou o ato.
Não se trata de uma concessão retroativa de
poder de representação, mas sim de uma ratifi-
cação que torna certa a situação jurídica”75.
Considero que, na situação em análise, caso o
intermediário financeiro, autorizado a atuar por
conta própria, celebre contratos como contra-
parte do cliente, sem que este autorize ou con-
firme o negócio, poder-se-á aplicar o regime do
direito civil da representação sem poderes, con-
siderando-se o negócio jurídico ineficaz relati-
vamente ao cliente.
Esta solução permitirá a manutenção dos diver-
sos negócios jurídicos celebrados num mercado
em que vários operadores atuam numa plurali-
dade de negócios por segundo.
9.4 Outras situações
Os negócios celebrados pelo intermediário fi-
nanceiro como contraparte de um investidor
qualificado não carecem de ser autorizados nem
confirmados (art.º 346.º / 2 - 1ª parte).
Tratando-se de um investidor qualificado (nos
termos do disposto no art.º 30º do CVM), pre-
sume-se que terá conhecimentos e experiência
suficientes para avaliar da bondade do negócio.
O mesmo se aplicará nos casos em que as ope-
rações devam ser “executadas em mercado re-
gulamentado, através de sistemas centralizados
de negociação” (art.º 346.º / 2 - 2ª parte).
Quando as operações sejam executadas em
mercado regulamento presume-se, que pela in-
tegridade das cotações e transparência que cara-
terizam essa forma de negociação, serão neutra-
lizados os efeitos prejudiciais do conflito de
interesses.
9.5 Cláusula geral de autorização
Uma última reflexão quanto à possibilidade de
consagrar o regime de autorização ou confirma-
ção do negócio sob a forma de cláusula geral,
inclusa nos contratos de intermediação financei-
ra celebrados entre os intermediários e os seus
clientes.
73- Serra, Adriano Vaz “Contrato Consigo mesmo”, pp. 246 74- Vasconcelos, Pedro Leitão Pais de, A Autorização, pp. 297 75- Vasconcelos, Pedro Leitão Pais de, A Autorização pp. 315 Refere ainda o Autor que “a ratificação provoca a eficácia do ato, mas não a aquisição superveniente e retroativa da legitimidade. A eficácia do ato ratificado sobre a esfera jurídica da pessoa em nome de quem foi praticado resulta da vontade desta. O titular da esfera jurídica afetada declara aceitar a eficácia vinculativa retroativa desse ato. Ou seja, ratifica o ato, assim se verificando a sua eficácia típica na esfera jurídica a que foi dirigido” (pp. 316).
75 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Tratando-se de situações que geram sempre
conflitos entre os interesses dos clientes e dos
intermediários, em que o legislador decidiu
consagrar um regime excecional de autorização
prévia ou confirmação do negócio, a aceitação
de uma cláusula geral dificilmente se aceita.
Acresce que:
a) Estamos perante um regime excecional;
b) Não foi prevista a possibilidade de ser inclu-
ída essa cláusula geral ao contrário de outras
situações em que o legislador o referiu ex-
pressamente (art.º 321.º /2 do CVM);
c) A referência é feita de modo expresso à in-
tervenção do cliente que por escrito, autoriza
ou confirma “o negócio”;
d) A inclusão de cláusulas standard de negocia-
ção massificada não permitiria aos clientes a
tomada de consciência de forma esclarecida,
sobre o negócio a celebrar ou celebrado.
Face ao exposto, considero que não será aceitá-
vel uma autorização genérica de atuação com
contraparte do cliente.
10. Mecanismos de mitigação
dos conflitos de interesses associados
ao art.º 346.º do CVM
10.1 Procedimentos e medidas de segregação
orgânica e funcional
Considero útil equacionar as seguintes situa-
ções:
O departamento que gere a carteira própria
do intermediário partilha sistemas informáti-
cos e de registo de instrumentos financeiros
com o que gere a negociação por conta de
clientes e, ambos os departamentos reconci-
liam várias operações com o departamento
de gestão de carteiras.
O departamento que gere a negociação para
a carteira própria do intermediário tem co-
nhecimento de que o departamento de análi-
se está a efetuar um estudo sobre uma deter-
minada sociedade ou instrumento financeiro
tencionando recomendar aos respetivos cli-
entes ou ao público em geral, a compra des-
se título, e um dos diretores da área participa
no Comité semanal onde se tomam decisões
sobre recomendações de investimento.
Resulta claramente que, perante a ausência de
segregação orgânica e funcional, o departamen-
to que gere a carteira própria procurará tirar
partido dos conhecimentos que possui quanto às
ordens transmitidas pelos clientes, em particu-
lar, quando venha a atuar como contraparte.
Ainda que a transposição da legislação comuni-
tária não tenha trazido qualquer modificação no
regime específico dos conflitos associados à
atuação como contraparte dos clientes, por in-
termediários financeiros registados para a nego-
ciação por conta própria, as modificações men-
cionadas em capítulos anteriores, em particular,
no regime nacional da regulação dos conflitos
de interesses, provocaram alterações no exercí-
cio das atividades e serviços de intermediação
financeira.
Já antes de 2007 o intermediário financeiro es-
tava obrigado a incluir nos contratos de inter-
mediação financeira76 um capítulo sobre poten-
ciais conflitos potenciais ou existentes (art.º
321.º /5 do CVM).
10.2 Regime após DMIF
Após 2007, a par da identificação dos conflitos
de interesses, passou a ser necessário imple-
mentar mecanismos de mitigação e comunica-
ção aos investidores desses mesmos conflitos.
A mitigação de potenciais conflitos, em cada
uma das áreas de intermediação financeira, pas-
sou a exigir:
Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 75
76- Almeida, José Queirós, “Contratos de Intermediação Financeira …”, pp. 300
76 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
A segregação funcional e orgânica;
A delimitação das competências de colabo-
radores e responsáveis pelas diferentes áreas;
A identificação de mecanismos de verifica-
ção e reporte, de modo a impedir a circula-
ção da informação de cada uma das áreas
operativas ou de negociação.
Em particular, na negociação por conta própria,
a mitigação de potenciais conflitos resulta:
De uma segregação orgânica entre essa área
e todas a outras, sem comunicação de opera-
ções ou reportes de valores mobiliários;
De uma delimitação detalhada das funções
dos respetivos colaboradores e dirigentes,
que não poderão participar em decisões de
investimento relacionados com outros servi-
ços financeiros;
Da implementação de mecanismos de verifi-
cação e controlo com reporte de eventuais
conflitos às áreas de compliance;
Da criação de procedimentos que obstem à
comunicação da informação existente nesta
área a outras áreas operativas ou de negocia-
ção geradoras de conflitos.
Salienta-se que tão importante como identificar,
registar e gerir os interesses conflituantes é co-
municar a ocorrência, (ou potencial ocorrência),
destas situações aos Clientes, tendo em conta
que a informação “é função de um mercado
transparente, eficiente e credível”77, defenden-
do Eduardo Paz Ferreira que a “ausência de
informação poderá pôr em causa o funciona-
mento do mercado criando um risco sistémico
que retrairá os Investidores”78.
10.3. Mitigação de conflitos de interesses e
regras de transparência
A mitigação de possíveis conflitos só será pos-
sível com o cumprimento de regras de indepen-
dência.
Foi a propósito do conteúdo da política em ma-
téria do conflito de interesses que o legislador
impôs que, “na medida do necessário para as-
segurar o nível de independência requeri-
do” (art.º 309.º 5 do CVM), devem ser criados
e mantidos procedimentos:
Eficazes, para impedir ou controlar a troca
de informação entre as pessoas relevantes
(referidas no art.º 304.º /5 do CMV), sempre
que essa troca possa prejudicar os interesses
de um ou mais clientes (art.º 309.º /5/al. a)
do CVM): por exemplo, a troca de informa-
ção entre os colaboradores que desenvolvem
atividades de negociação por conta própria
e os que prestam consultoria para investi-
mento79;
De fiscalização distinta destas pessoas quan-
do as suas funções envolvam a realização de
atividades por conta de clientes e a atuação
em conformidade com os interesses do pró-
prio intermediário financeiro, situação típica
da negociação por conta própria (art.º
309.º /5/al. b) do CVM);
De eliminação de qualquer relação direta
entre a remuneração de umas e de outras
destas pessoas, quando envolvidas em ativi-
dades distintas, e sempre que possa surgir
um conflitos de interesses entre essas ativi-
dades (art.º 309.º /5/al. c) do CVM): por
77- Ferreira, Amadeu José, Direito dos …, pp. 333 78- Ferreira, Eduardo Paz, “Informação e mercado …”, pp. 14, reforçando o autor que “é a existência de uma informação tão completa, verosímil e clara quanto possível que constitui a garantia essencial de funcionamento regular dos mercados”.
77 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
exemplo, da relação direta entre remunera-
ção dos colaboradores afetos à negociação
por conta própria e os que estão afetos à
emissão de recomendações de investim
ento80.
Devem ainda ser implementadas medidas:
a) Destinadas a impedir ou a limitar qualquer
pessoa de exercer uma influência inadequada
sobre o modo como as pessoas relevantes
prestam atividades de intermediação finan-
ceira (art.º 309.º /5/al. d) do CVM);
b) Destinadas a impedir ou a limitar o envolvi-
mento simultâneo ou sequencial dessas pes-
soas em diferentes atividades de intermedia-
ção financeira, quando esse envolvimento
possa impedir a gestão adequada dos confli-
tos de interesses (art.º 309.º /5/al. e) do
CVM.
Se a “independência” for um valor consciencia-
lizado na cultura empresarial do intermediário
financeiro, e estiver ao nível do objetivo de
“obtenção de lucro”, será possível manter uma
eficaz segregação orgânica e funcional, com
mecanismos efetivos de mitigação e comunica-
ção de conflitos de interesses na negociação por
conta própria e por conta dos clientes.
11. O sistema de controlo interno81
na identificação e mitigação de conflitos
Os intermediários financeiros estão obrigados a
adotar e manter a sua organização empresarial
“equipada com os meios humanos, matérias e
técnicos necessários para prestar os seus servi-
ços em condições adequadas de qualidade, pro-
fissionalismo e de eficiência e por forma a evi-
tar procedimentos errados”82 (art.º 305.º /1 do
CVM).
Se mais nenhuma disposição existisse, poder-se
-ia retirar deste preceito que um sistema de con-
trolo eficaz e eficiente resulta uma organização
empresarial dotada:
Em termos de meios humanos – de colabora-
dores idóneos (i) em número ajustado aos
serviços de intermediação a prestar, (ii) com
conhecimentos profundos da organização e
das regras da intermediação financeira
(incluindo das práticas criminais e contra
ordenacionais); (iii) com competência técni-
ca relevante e (iv) um espirito de formação
contínua;
Relativamente aos meios materiais e técni-
cos83 – de sistemas informáticos e procedi-
mentos de transmissão de informação ajusta-
dos às necessidades e em contínuo aperfei-
çoamento em razão das prestações de servi-
ços a assegurar;
De procedimentos de segregação de funções,
mecanismos de controlo e de reporte efeti-
vos84, de forma a evitar o fluxo de informa-
ção de uma área para outra.
Ao nível da organização interna a mitigação
de conflitos de interesses em entidades inte-
gradas em “grupos financeiros” passa pela
adoção de estruturas societárias transparentes,
com uma clara identificação:
Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 77
80- Emissão de relatórios de análise financeira em que se formule, directa ou indiretamente, uma recomendação ou sugestão de investimen-to ou desinvestimento sobre um emitente de valores mobiliários, valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros e que se destinem a canais de distribuição ou ao público (art.º 12.º A do CVM). 81- O sistema de controlo interno engloba, na organização das atividades financeiras, a existência de um sistema de controlo do cumpri-mento (art.º 305.º-A), de Gestão de ricos (art.º 305.º B do CVM) e de Auditoria interna (art.º 305.º C do CVM). Vide sobre a matéria doutrina citada sobre Controlo Interno. 82- Refere Paulo Câmara, “Conflito de interesses…”, pp. 36 “Subjaz a estas orientações a ideia de que uma estrutura organizativa afinada contribui para a eficácia do desempenho e previne irregularidades. Mas não basta montar a estrutura; importa aplicar os esquemas orga-nizativos desenhados – isto é: fazê-los funcionar na prática”. 83- Salvaguarda-se a necessidade de ter em conta que os requisitos em matéria de meios informáticos e humanos (previstos nos art.º s 4.º e 5º do Regulamento da CMVM n.º 2/2007), exigidos a quando da concessão do registo, terão de ser observados ao longo do desenvolvimen-to das atividades e serviços e assumindo, nesta matéria, particular importância. 84- Santos, Gonçalo Castilho dos, A Responsabilidade Civil …. pp. 147, refere que estes deveres consistem na “criação de procedimentos de controlo interno relativamente ao acesso restrito à informação recolhida e produzida no seio da organização do próprio intermediário financeiro”.
78 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Relativamente a cada entidade, das ativida-
des e serviços de intermediação prestados,
bem como das pessoas afetas á execução e
respetivo controlo;
De potenciais conflitos – sua origem e forma
de mitigação dentro do grupo financeiro;
Dos colaboradores afetos ao exercício de
cada uma das funções, em cada uma das en-
tidades, com particular relevo quanto funcio-
namento dos mecanismos de reporte hori-
zontal e vertical;
De regras limitativas de acumulação de car-
gos ou funções desempenhadas pelos mem-
bros dos órgãos de administração ou direção
nas várias sociedades do grupo.
A identificação dos conflitos em cada interme-
diário financeiro exigirá não só, o mapeamento
pormenorizado de todas as atividades e serviços
financeiros que está autorizado a prestar, mas
também o cruzamento de operações e colabora-
dores afetos às mesmas.
Em particular, na definição das regras de nego-
ciação como contraparte dos Clientes, o cum-
primento do disposto no art.º 346.º do CVM
passa pela obtenção da autorização ou confir-
mação de cada um dos negócios celebrados co-
mo contraparte do Cliente, conforme definido
anteriormente.
Definidos os mecanismos de prevenção e miti-
gação de conflitos de interesses:
Carecem de ser periodicamente verificados
os procedimentos de reporte e registo desses
mesmos conflitos (monotorização);
É necessário assegurar a existência de uma
fiscalização interna contínua - assegurada
pelas áreas do controlo do cumprimento, de
auditoria e órgão de fiscalização que funcio-
ne junto do Conselho de Administração –
dos procedimentos implementados tendo
como fim identificar, antes de qualquer outra
entidade, situações de conflito ou ausência
do cumprimento do disposto no art.º 346.º
do CVM.
Por último, reforça-se a necessidade de consci-
encialização (diária) imposta aos “titulares do
órgão de administração” de que, não estando
só ao serviço dos acionistas, desempenham fun-
ções em entidades de interesse público85.
Um sistema de controlo interno assente numa
efetiva segregação orgânica e funcional, com
um detalhe ajustado de procedimentos operati-
vos a observar por todos os colaboradores -
com especial atenção para a área de negociação
por conta própria - permitirá uma mitigação
efetiva do conflito de interesses entre interme-
diários financeiros e os seus clientes, sob super-
visão das diversas áreas de fiscalização interna
e externa.
A lei estabelece que os titulares do órgão de
administração devem avaliar a ”eficácia das
políticas, procedimentos e normas internas
adotados para cumprimento dos deveres referi-
dos nos artigos 305.º-A a 305.º-C”, de modo a
tomarem “medidas adequadas para corrigir
eventuais deficiências detetadas e prevenir a
sua ocorrência futura” (art.º 305.º D/ 2 do
CVM).
A manutenção do negócio passa por querer
cumprir a lei.
85- Nos termos do disposto no art.º 1/al. f) Da Diretiva 2014/56/EU de 16 são consideradas entidades de interesse pública as” Instituições de crédito” nos termos e definições respetivos.
79 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Bibliografia
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Negociação por Conta Própria e os Conflitos de Interesses : 81
82 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Introdução e Razão de Ordem
A recente transposição para o ordenamento
jurídico nacional da diretiva relativa aos
gestores de fundos de investimento alternativo
(“GFIA”) através do regime geral dos organis-
mos de investimento coletivo veio redefinir o
quadro regulatório a que os GFIA e, indireta-
mente, os próprios fundos de investimento
alternativo (“FIA”), se encontram sujeitos.
A referida alteração legislativa carece, pelo im-
pacto imediato no enquadramento legislativo
nacional aplicável aos GFIA, de identificação
das principais alterações introduzidas ao regime
jurídico anteriormente em vigor e da correspon-
dente reflexão sobre o caminho adotado pelo
legislador nacional na transposição da referida
diretiva.
Atendendo ao elevado número de disposições
em causa e à extensão e profundidade com que
as mesmas são tratadas nos diplomas legais re-
levantes, reconhecemos a impossibilidade de
elaborar um trabalho que trate de forma exausti-
va o manancial de questões levantadas com a
aprovação da diretiva e com a correspondente
transposição, motivo pelo qual considerámos
preferível limitar o escopo do presente trabalho
à análise de questões selecionadas, esperando
ser esta a melhor opção, por se nos afigurar
conferir ao presente trabalho uma maior utilida-
de prática, por um lado, e um maior interesse
académico, por outro lado.
Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo ao Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo: Regime Atual e Perspetivas Futuras
Alexandre Norinho de Oliveira
83 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Capítulo I. O Contexto da Diretiva
1. O Contexto da Diretiva
As raízes da regulação dos fundos de investi-
mento harmonizados remontam à primeira ver-
são da Diretiva UCITS1. No entanto, a referida
Diretiva deixou de parte os fundos de investi-
mento não harmonizados (fundos de investi-
mento mobiliários não harmonizados, fundos de
investimento imobiliário e fundos de capital de
risco), os quais, pela sua elevada heterogeneida-
de, se revelam de regulação bem mais comple-
xa e têm sido, até bem recentemente, deixados à
margem da legislação da UE, um pouco à seme-
lhança do que acontece um pouco por todo o
mundo2. De facto, os fundos de investimento
não harmonizados, ou FIA, caracterizam-se por
serem um fenómeno praticamente desconhecido
ou ignorado pelos legisladores das várias juris-
dições do globo3/4.
No entanto, os organismos de investimento al-
ternativo são figuras incontornáveis do sistema
financeiro global pelo volume de ativos geridos,
por representarem uma parte significativa da
negociação em mercados de instrumentos finan-
ceiros e pelo elevado dinamismo e influência
que têm no governo societário das empresas5.
Contudo, a crise financeira global veio expor a
extensão de um conjunto de riscos associados à
atividade de gestão de fundos de investimento
alternativo. Estes riscos variam, inter alia, entre:
(i) riscos sistémicos ou macro-prudenciais, en-
tre os quais destacamos a exposição direta do
sistema bancário ao setor da gestão de FIA; (ii)
riscos micro-prudenciais; (iii) inadequada sal-
vaguarda da proteção do investidor, designada-
mente ao nível da transparência na política de
investimento, política de gestão de riscos e pro-
cedimentos internos; (iv) eficiência e integrida-
de do mercado; e (v) impacto nas sociedades
controladas pelos GFIA6.
O reconhecimento de tais riscos veio redobrar a
perceção da necessidade de regulação da respe-
tiva atividade.
A criação de um quadro legal europeu aplicável
aos GFIA dá um passo decisivo com a publica-
ção do Livro Verde da Comissão Europeia so-
bre o reforço do enquadramento que rege os
fundos de investimento na UE7.
Todavia, a crise financeira associada ao
sub-prime é a verdadeira responsável por uma
notável aceleração na reforma legislativa de
todo o setor financeiro destinada a reforçar o
quadro regulatório que lhe é aplicável, incluin-
do aos organismos de investimento coletivo.
Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 83
1- Diretiva 85/611/CEE do Conselho, de 20 de dezembro de 1985, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrati-vas respeitantes a alguns organismos de investimento coletivo em valores mobiliários (OICVM). 2- Bessa, T., Crise, regulação e supervisão de hedge funds, Revista de Direito das Sociedades, n.º 3-4, Ano II, Almedina, 2010, p. 889. 3- Engrácia Antunes, J., Os “Hedge Funds” e o Governo das Sociedades, Direito dos Valores Mobiliários, Vol. IX, Coimbra Editora, 2009, p. 33. 4- Pela clareza da exposição, citamos Calvão da Silva, que indica que fundos deverão ser considerados como englobados pelos fundos de investimento não harmonizados, pelos fundos de investimento alternativo: “Por isso mesmo, porque não harmonizados pela Directiva, estes organismos são conhecidos como Fundos de Investimento Alternativo (FIA), em que se incluem hedge funds, fundos de capitais de investimento em participações privadas (private equities) e outros organismos de investimento em capital de risco, fundos imobiliários (real estate funds), fundos de matérias- -primas (commodity funds), fundos de investimento em infra-estruturas (infrastructure funds), etc”. Calvão da Silva, J., OICVM – Organismos de Investimento Colectivo em Valores Mobiliários, Revista Online da Banca, Bolsa e Seguros, n.º 1, outubro de 2014, p. 30. 5- Considerando (1) da Diretiva. 6- Comissão Europeia, Proposal for a Directive of the European Parliament and of the Council, on Alternative Investment Fund Managers and amending Directives 2004/39/EC and 2009/../EU, COM(2009), p. 2-3. 7- Livro Verde da Comissão Europeia sobre o reforço do enquadramento que rege os fundos de investimento na UE (SEC(2005)947), que poderá ser consultado através do seguinte link, acedido no dia 06.07.2015: http://www.cmvm.pt/pt/Legislacao/ConsultasPublicas/ComissaoEuropeia/Documents/aa85ed58f4564d33b1e8dd786fbb96cb050714_pt.pdf
84 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
De facto, sob o impulso do G20, desde a Cimei-
ra de Washington, realizada no final do ano de
2008, o Conselho de Estabilidade Financeira
propôs diversas medidas destinadas a aumentar
a estabilidade do sistema financeiro, entre as
quais se conta a extensão da regulação aos or-
ganismos de investimento alternativo.
Ao nível da UE, o quadro legal que viria a ser
proposto e aprovado tem como objetivo dar
resposta às preocupações manifestadas ao mais
elevado nível8 na sequência da crise financeira
global, relativamente à eficácia do quadro legal
da UE em vigor aplicável aos FIA e, em parti-
cular, à alegada falta de regulação da atividade
desenvolvida pelos gestores de FIA9. A elevada
heterogeneidade dos FIA e a consequente difi-
culdade em alcançar a sua harmonização foi um
dos motivos que levou o legislador da UE a
optar por regular a atividade dos GFIA, ao in-
vés de regular diretamente os FIA, cuja regula-
ção é, ainda hoje, confiada aos vários EM.
Com efeito, como parte do esforço reformista
do ambiente regulatório na UE e no contexto
de idênticas reformas levadas a cabo à escala
global10, a Comissão apresentou uma proposta
de diretiva11, a qual viria a ser aprovada, no fi-
nal de um longo processo legislativo, como Di-
retiva 2011/61/UE, do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 8 de junho de 2011, relativa aos
gestores de fundos de investimento alternativos
e que altera as Diretivas 2003/41/CE e 2009/65/
CE e os Regulamentos (CE) n.º 1060/2009 e
(UE) n.º 1095/2010 (a seguir, a “Diretiva”).
Sensivelmente um ano e meio após a aprovação
da Diretiva, foi aprovado o Regulamento Dele-
gado (UE) n.º 231/2013 da Comissão, de 19 de
dezembro de 2012, que complementa a Diretiva
2011/61/UE (a seguir, “Regulamento Delega-
do”). E o dia 15 de maio de 201 viu a aprova-
ção do Regulamento de Execução (UE) n.º
447/2013 da Comissão, que estabelece os pro-
cedimentos para os GFIA que optem por ser
abrangidos pela Diretiva 2011/61/UE do Parla-
mento Europeu e do Conselho, bem como do
Regulamento de Execução (UE) n.º 448/2013
da Comissão, que estabelece um procedimento
para determinar o Estado-Membro de referência
de um GFIA extra-UE nos termos da Diretiva
2011/61/UE do Parlamento Europeu e do Con-
selho.
Um dos principais objetivos da Diretiva é o es-
tabelecimento de um quadro regulatório único
aplicável aos gestores de organismos de investi-
mento alternativo, capaz de assegurar a prote-
ção dos investidores, de promover a transparên-
cia em relação aos investidores e entidades su-
pervisoras, de criar as bases para uma eficaz
monitorização dos riscos sistémicos, com vista
a contribuir para uma maior solidez do sistema
financeiro e de desenvolver o mercado interno
dos GFIA com recurso ao regime de passaporte.
8- Cfr., em particular, o relatório Rasmussen, 2008, acessível através do seguinte link, consultado em 11.07.2015:
http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//NONSGML+REPORT+A6-2008-0338+0+DOC+PDF+V0//EN
9- A declaração de José Manual Durão Barroso, de 11 de novembro de 2010, à data Presidente da Comissão Europeia, é demonstrativa dos
objetivos na base da iniciativa legislativa em causa: “The adoption of the directive means that hedge funds and private equity will no longer
operate in a regulatory void outsider the scope of supervisors. The new regime brings transparency and security to the way there funds are
managed and operate, which adds to the overall stability of our financial system” (sublinhado da nossa autoria). “European Commission
Statement at the Occasion of the European Parliament Vote on the Directive on Hedge Funds and Private Equity” (Referência:
MEMO/10/573).
10- Refira-se, por exemplo, que disposições similares foram adotadas nos Estados Unidos da América com a entrada em vigor do
Dodd-Frank Act.
11- A versão inglesa da proposta apresentada pela Comissão poderá ser consultada através do seguinte link, acedido no dia 06.07.2015:
http://ec.europa.eu/internal_market/investment/docs/alternative_investments/fund_managers_proposal_en.pdf
85 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
2. A transposição da Diretiva
para o ordenamento jurídico português
A Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro, transpõe
parcialmente a Diretiva, procede à revogação
do regime jurídico dos organismos de investi-
mento coletivo, aprovado pela Decreto-Lei n.º
63-A/2013, de 10 de maio, revoga o regime
jurídico dos fundos de investimento imobiliário,
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 60/2002, de 20
de março, e aprova o regime geral dos organis-
mos de investimento coletivo (a seguir referido
como “RGOIC”).
O regime previsto no RGOIC é, por sua vez,
desenvolvido pelo Regulamento da CMVM n.º
2/2015 sobre organismos de investimento cole-
tivo (mobiliários e imobiliários) e comercializa-
ção de fundos de pensões abertos de adesão
individual (a seguir, “Regulamento 2/2015”)12.
A Diretiva também foi transposta para o orde-
namento jurídico nacional com a entrada em
vigor da Lei n.º 18/2015, de 4 de março, que
aprova o regime jurídico do investimento em
capital de risco, em empreendedorismo social e
em investimento alternativo especializado (a
seguir, “RJCR”). Para efeitos do presente traba-
lho, o impacto da transposição da Diretiva no
que concerne ao capital de risco não será abor-
dado. No entanto, e uma vez que as mesmas
disposições tiveram que ser transpostas para
ambos os diplomas, será legítimo considerar
que, pelo menos, parte das considerações do
presente trabalho também serão aplicáveis nu-
ma leitura do RJCR.
Capítulo II. Âmbito de Aplicação
do regime da Diretiva
1. Âmbito subjetivo
A Diretiva visa regular a atividade desenvolvi-
da pelos GFIA, i.e., visa regular o exercício da
atividade de gestão de FIA e não os FIA
propriamente ditos. A atividade de gestão
poderá ser exercida por uma entidade diferente
do FIA (heterogestão), ou pelo próprio FIA
(autogestão), sendo que no primeiro caso a refe-
rida legislação será aplicável à entidade terceira
à qual é confiada a gestão, enquanto no segundo
caso será aplicável ao próprio FIA, mas apenas
na medida em que exerce a atividade de gestão.
Por conseguinte, os FIA (excluindo, como
vimos, o exercício da atividade de gestão no
caso de FIA autogeridos) continuam a ser regu-
lados maioritariamente a nível nacional. A mo-
tivação subjacente a tal opção legislativa prende
-se com a dificuldade em harmonizar os FIA
atendendo à sua grande heterogeneidade, com o
simples facto, de índole prática, de a maior par-
te dos FIA terem sido constituídos e estarem
sediados fora do espaço europeu, e, ainda, com
o facto de boa parte das decisões que poderão
implicar riscos sistémicos serem adotadas pelas
entidades gestoras13.
A Diretiva aplica-se aos GFIA da UE e aos
GFIA extra-UE, independentemente de gerirem
FIA-UE ou FIA extra-UE14. Revela-se, para o
efeito, irrelevante o facto de estar em causa um
FIA de tipo aberto ou fechado e, bem assim, a
forma jurídica dos GFIA15.
12- Publicado em Diário da República, 2ª série, n.º 138, de 17 de julho de 2015. 13- Bessa, T., Crise, regulação e supervisão de hedge funds, Revista de Direito das Sociedades, n.º 3-4, Ano II, Almedina, 2010, p. 899. 14- Art. 2.º/1 da Diretiva. 15- Art. 2.º/2 da Diretiva.
Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 85
86 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Contudo, embora a diretiva não seja aplicável
diretamente aos FIA, mas antes aos GFIA, a
definição de FIA afigura-se extremamente
abrangente e reveste uma elevada importância
prática. Senão vejamos.
Nomeadamente com vista a evitar a arbitragem
regulamentar (regulatory arbitrage) e de forma
a não deixar diferentes tipos de FIA de fora da
definição, o legislador optou por estabelecer
uma definição pela negativa, de acordo com a
qual estaremos perante um FIA sempre que não
esteja em causa um fundo harmonizado e seja
reunido “capital junto de um certo número de
investidores, tendo em vista investi-lo de acor-
do com uma política de investimento definida
em benefício desses investidores”16. A defini-
ção escolhida, ao ser tão abrangente, levanta um
conjunto de questões e coloca a dúvida sobre se
determinados produtos cairão no seu âmbito.
Determinar os contornos exatos da definição de
FIA revela-se particularmente determinante na
medida em que nela assenta, ainda que indireta-
mente, o próprio âmbito de aplicação da Direti-
va, dirigida aos GFIA. Aguarda-se, por isso,
uma importante contribuição da ESMA ao lon-
go do período de vida da Diretiva (e dos regi-
mes nacionais aprovados para proceder à cor-
respondente transposição), e também das pró-
prias autoridades de supervisão nacionais, em
coordenação com a ESMA, a este nível, de for-
ma a assegurar o aperfeiçoamento da definição
em causa17.
O âmbito subjetivo de aplicação da Diretiva
também deixa de fora as Sociedades Gestoras
de Participações Sociais (“SGPS”) e as entida-
des com fins específicos de titularização (art.
2.º/3 da Diretiva).
Escapam também ao âmbito de aplicação da
Diretiva os GFIA que giram um ou vários FIA
no quadro restrito de relações de grupo, i.e.,
cujos exclusivos investidores sejam o GFIA e a
respetiva subsidiária ou empresa mãe, sob con-
dição de nenhum dos investidores ser um FIA
(art. 3.º/1 da Diretiva). Contudo, assinala-se o
facto de o legislador nacional não ter consagra-
do esta disposição no RGOIC. Está em causa
uma opção legislativa questionável na medida
em que os principais valores que o regime que a
Diretiva visa tutelar, em particular a proteção
dos investidores e a prevenção dos eventuais
riscos sistémicos decorrentes da atuação dos
GFIA, não se deverão considerar ameaçados
pela atividade de gestão no âmbito exclusivo de
uma relação de grupo. Por este motivo, conside-
ramos que se revelaria mais adequado e propor-
cional aplicar um regime simplificado aos
GFIA neste caso específico, e eximi-los do
cumprimento de um conjunto de disposições
que resultam de transposição da Diretiva, e que
não se encontravam já anteriormente previstas
no RJOIC. No entanto, sublinhe-se que, em
bom rigor, a referida opção legislativa tem um
alcance prático limitado uma vez que várias
disposições e exigências que passaram a ser
aplicáveis às entidades gestoras com a imple-
mentação da Diretiva, já decorriam da própria
DMIF, tendo sido implementadas na ordem
jurídica nacional através do CdVM.
Em qualquer caso, independentemente de con-
siderações de fundo sobre a opção legislativa
adotada, importa reter que as relações de gestão
de FIA de escopo estritamente intragrupo não
escapam ao regime previsto no RGOIC, nem
beneficiam de um regime simplificado.
16- Art. 4.º/1, a) da Diretiva. 17- A título de exemplo, sublinhe-se o caso em que a ESMA, reconhecendo a elevada importância de especificar em maior detalhe os contornos da definição de FIA, esclareceu que, “[n]os casos em que um compartimento de investimento de uma empresa apresente todos os elementos presentes na definição de «FIA» no artigo 4.º, n.º 1, alínea a) da DGFIA (i.e. «organismos de investimento coletivo», «angariação de capital», «número de investidores» e «política específica de investimento»), tal facto deverá ser considerado suficiente para considerar que uma determinada empresa na sua totalidade é «FIA» nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea a) da DGFIA”. ESMA, Orienta-ções sobre conceitos-chave da Diretiva GFIA, ESMA/2013/611, p. 5, acessível através do seguinte link, consultado no dia 04.07.2015: http://www.esma.europa.eu/system/files/esma_2013_00600000_pt_cor.pdf
87 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
2. De minimis: a aplicação de um regime
regulatório simplificado
A Diretiva prevê um regime simplificado para
os GFIA que giram carteiras de ativos que não
excedam determinados limiares, a saber, (i) de
100 milhões de EUR, independentemente do
recurso a alavancagem e (ii) de 500 milhões de
EUR (art. 3.º/2 da Diretiva).
A Diretiva impõe aos GFIA abrangidos pelo
regime simplificado o cumprimento das seguin-
tes obrigações: (i) registo; (ii) identificação no
momento de inscrição junto das autoridades de
supervisão competentes do EM de origem; (iii)
prestação de informações sobre as estratégias
de investimento dos FIA geridos no momento
de inscrição junto das autoridades competentes
do EM de origem; (iv) prestação regular de in-
formações às autoridades de supervisão, desig-
nadamente sobre as principais posições de ris-
co; e (v) notificação às autoridades de supervi-
são competentes sempre que deixem de estar
abaixo dos limiares relevantes para a aplicação
do regime simplificado de minimis (art. 3.º/3 da
Diretiva). Refira-se que as autoridades compe-
tentes dispõem de competência de supervisão e
de investigação adequada para garantir o cum-
primento das obrigações referidas (art. 46.º da
Diretiva).
Todavia, apesar de o leque de obrigações cons-
tante do regime simplificado ser claramente
menos exigente que o regime da Diretiva apli-
cado na íntegra, os GFIA abrangidos pelo regi-
me simplificado não beneficiam dos direitos
decorrentes da Diretiva (designadamente do
regime de passaporte18). Por este motivo, a
Diretiva deixa a porta aberta a que os GFIA,
uma vez ponderadas as vantagens e desvanta-
gens que daí possam decorrer, optem pela sub-
missão na íntegra ao seu regime19.
No momento de proceder à transposição do re-
gime da Diretiva, o legislador nacional optou
por não prever um regime simplificado no
RGOIC, tendo apenas previsto um regime com
tais características para as sociedades de capital
de risco, no RJCR20.
Consideramos que se trata de um ponto em que
a transposição em Portugal poderia ter ido mais
longe. Ao prever a aplicação do mesmo regime
regulatório a todos os GFIA, independentemen-
te do valor da carteira de FIA sob gestão, poder
-se-á ter previsto um regime que, ao aplicar a
mesma carga regulatória independentemente da
dimensão do GFIA em causa, peca pela despro-
porcionalidade para com os GFIA de reduzida
dimensão, sobretudo os GFIA que apenas pre-
tendem comercializar numa lógica interna, ex-
clusivamente no mercado português.
A razão de ser da previsão de um regime
simplificado pelo legislador europeu passará
pela conclusão de que a probabilidade de os
GFIA que se encontrem abaixo dos limiares
definidos darem origem a sérios problemas para
a estabilidade financeira é, atendendo à reduzi-
da dimensão da carteira de FIA sob a sua
alçada, particularmente reduzida21. Por este
motivo, o legislador europeu considerou
apropriado permitir a redução, por um lado,
dos custos transacionais (e.g., custos contratu-
ais) suportados pelas sociedades em causa,
bem como, por outro lado, dos custos
18- Todavia, tal não significa que o GFIA não possa comercializar FIA em outro EM, desde que o direito do EM de origem e do EM de destino permitam a referida comercialização. Cabe ainda a cada EM determinar se tal GFIA pode comercializar junto de investidores não profissionais. 19- Art. 3.º/4 da Diretiva. 20- Refira-se que, embora o RGOIC não preveja um regime de minimis, prevê a possibilidade de as próprias instituições de crédito levarem a cabo a atividade de gestão do FIA. Com efeito, em conformidade com o art. 65.º/2 do RGOIC, os FIA fechados também podem ser geridos por instituições de crédito, desde que disponham de fundos próprios não inferiores a €7,5 milhões, e os ativos que compõem as respetivas carteiras sob gestão não excedam no total o limiar de €100 milhões, independentemente do recurso ao efeito de alavancagem ou de €500 milhões. 21- Considerando 17 da Diretiva.
Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 87
88 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
administrativos e burocráticos para as próprias
autoridades de supervisão22 em situações em
que estejam em causa acumulações de capital
de reduzida dimensão.
Para além do reduzido impacto sistémico de tais
sociedades, tem sido defendido que a imposição
da mesma carga regulatória aos GFIA com um
portfolio de menor dimensão é suscetível de
provocar um impacto negativo no seu cresci-
mento23. Com efeito, poderá revelar-se na práti-
ca particularmente difícil assegurar o cumpri-
mento do regime regulatório previsto na Direti-
va, que tem sido apontado como bastante exi-
gente24, em particular para sociedades de menor
dimensão. Acresce ao exposto o facto de, na
perspetiva de uma sociedade, os custos relacio-
nados com o exercício da função de compliance
apresentarem importantes economias de escala,
o que certamente contribui para conferir uma
vantagem competitiva acrescida a sociedades de
maior dimensão. Por estes motivos poderá ser
defendido que a não previsão de um regime
simplificado revelar-se-á, no mínimo, despro-
porcional.
Concebemos como alternativa à não previsão
tout court do regime de minimis o estabeleci-
mento de limiares inferiores aos da Diretiva,
adaptados à realidade económica portuguesa, à
semelhança, de resto, do que foi feito em rela-
ção ao RJCR. Todavia, a pura e simples elimi-
nação de tal regime simplificado não parece,
salvo meliore, ter sido a solução mais acertada.
3. Definições
Relativamente às várias definições constantes
quer da Diretiva, quer do RGOIC (resultado da
correspondente transposição), consideramos
necessário, pelo papel central que ocupa no
quadro legal em causa, analisar o conceito de
comercialização.
Comercialização vem definida no RGOIC como
“a atividade dirigida a investidores, no sentido
de divulgar para efeitos de subscrição ou propor
a subscrição de unidades de participação ou de
ações em organismo de investimento coletivo,
utilizando qualquer meio publicitário ou de co-
municação” (sublinhado nosso)25. Sublinha-se
que o conceito de comercialização para efeitos
do RGOIC (bem como da Diretiva) se encontra
limitado a valores mobiliários representativos
de capital social (equity issue), não abrangendo
emissão de dívida (debt issue)26.
Sublinhamos igualmente que o conceito de
comercialização parece deixar de fora situações
em que o investidor tenha expressado, por sua
livre iniciativa, vontade de ser contactado
pela entidade que comercialize fundos de inves-
timento com vista a ficar a conhecer os produ-
tos e serviços que tal entidade comercialize
(reverse solicitation exemption). A relação es-
tabelecida tendo por base tal manifestação de
interesse não solicitada parece escapar ao esco-
po das regras aplicáveis à atividade de comerci-
alização. Notamos, contudo, que tal exceção
22- Bernhardt, T., The European Alternative Investment Fund Managers (AIFMD) – an appropriate approach to the global financial crisis?, Faculdade de Direito da Universidade de Glasgow, 2013, p. 113. 23- Nabilou, H., The Alternative Investment Fund Managers Directive and Hedge Funds’ Systemic Risk Regulation in the EU, 2013, p. 26. 24- Antunes, M., Hedge Funds e o Activismo Societário, Faculdade de Direito da Universidade Católica de Lisboa, tese de mestrado não publicada, 2012, p. 35; Aramendía, M., Implementing the AIFMD: Success or Failure?, European Capital Markets Institute, n.º 34, março de 2013, p. 1. 25- Art. 2.º/1 c) do RGOIC. 26- Neste sentido, a Comissão pronunciou-se no seguinte sentido: As a matter of principle, the Commission considers the term "units and shares" to be generic and inclusive of other forms of equity of the fund, i.e. a stock or any other security representing an ownership interest in the fund. A resposta da Comissão indicada pode ser consultada através do seguinte link, acedido no dia 05.07.2015: http://ec.europa.eu/yqol/index.cfm?fuseaction=question.show&questionId=1169
89 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
deverá ser interpretada como tendo um âmbito
estritamente coincidente com o âmbito da livre
manifestação de interesse por parte do investi-
dor, i.e., deverá estar limitada aos produtos e
serviços relativamente aos quais o investidor
manifestou interesse em ser contactado.
Capítulo III. Regras
de funcionamento dos GFIA
1. Autorização
De forma a assegurar uma supervisão efetiva de
todos os GFIA a operar na UE, de acordo com a
Diretiva as entidades que pretendam exercer a
atividade de gestão de organismos de investi-
mento alternativo deverão registar-se27 junto
das autoridades de supervisão competentes. Tal
pedido de autorização deverá ser dirigido à au-
toridade de supervisão do EM de origem, inde-
pendentemente do domicílio legal do FIA28/29,
seguindo-se, deste modo, o modelo de regula-
ção mais comum, que consiste em controlar na
fonte o exercício de atividade do gestor, i.e. no
local onde tem a sua sede social30.
As sociedades gestoras de FIA deverão apre-
sentar a seguinte documentação em relação a
cada organismo de investimento coletivo que
vise gerir31: (i) informações sobre a correspon-
dente estratégia de investimento, indicando a
política do GFIA no que concerne à utilização
de efeito de alavancagem, perfis de risco e ou-
tras características, bem como informação sobre
os EM ou países terceiros nos quais os FIA em
causa se encontrem, ou se espera que serão,
estabelecidos; (ii) informação sobre o local no
qual o FIA se encontra estabelecido; (iii) respe-
tivos documentos constitutivos; (iv) informação
quanto aos mecanismos de contratação de depo-
sitário; e (v) informações adicionais que devam
ser divulgadas aos investidores nos termos do
art. 221.º do RGOIC.
2. Avaliação de ativos
De entre os vários deveres fiduciários que o
GFIA deverá observar no exercício da sua ativi-
dade, encontra-se o dever de cuidado na gestão
dos fundos, o qual passa, designadamente, por
uma correta valorização do valor das UPs e a
sua correspondente divulgação.
Com vista a cumprir o referido dever fiduciário,
os GFIA devem implementar procedimentos
internos que permitam uma avaliação correta e
independente dos ativos sob gestão32. A avalia-
ção em causa deverá seguir as leis do país onde
o FIA esteja estabelecido e o regulamento ou
documentos constitutivos do FIA, devendo,
ainda, seguir o disposto no Regulamento Dele-
gado, visto que a Comissão, no uso da compe-
tência reconhecida na Diretiva33, adotou, no
Regulamento Delegado, medidas destinadas a
especificar e harmonizar as políticas e procedi-
mentos para a avaliação dos ativos dos FIA de
forma a garantir a aplicação de procedimentos
de avaliação sólidos, abrangentes e devidamen-
te documentados34.
27- Sublinhe-se que, por força do art. 5.º da Lei n.º 16/2015, as entidades responsáveis pela gestão de FIA já em atividade no momento da entrada em vigor do novo quadro legal tiveram que voltar a registar-se junto da CMVM e do BdP. 28- Arts. 6.º e 7.º da Diretiva. 29- De acordo com o art. 7.º da Diretiva, a ESMA mantém um registo público de todos os GFIA autorizados ao abrigo da Diretiva. 30- Bessa, T., Crise, regulação e supervisão de hedge funds, Revista de Direito das Sociedades, n.º 3-4, Ano II, Almedina, 2010, p. 922. 31- Art. 70.º do RGOIC. 32- Art. 19.º da Diretiva. 33- Art. 19.º/11 da Diretiva. 34- Art. 67.º ss. do Regulamento Delegado.
Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 89
90 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
A Secção IV do Título II do RGOIC regula o
exercício da função de avaliação de ativos. A
função de avaliação deverá ser desempenhada
com zelo, competência e independência35 por
um avaliador externo, independente do FIA e
do GFIA, ou pelo próprio GFIA quando este
faça uma separação funcional da gestão de car-
teiras e da função de avaliação e se assegure
que os evidentes conflitos de interesses que re-
sultarão de ter uma única entidade a desempe-
nhar ambas as funções sejam devidamente ate-
nuados36.
Justamente pelos interesses conflituantes em
presença, acreditamos que a primeira solução,
de votar a função de avaliação a um avaliador
externo, parece ser mais garantística dos inte-
resses dos investidores. Aliás, o facto de se pre-
ver expressamente, quando a avaliação de ati-
vos seja desempenhada pelo próprio GFIA, a
possibilidade de a CMVM exigir que os proce-
dimentos de avaliação utilizados sejam verifica-
dos por um auditor externo registado junto da
CMVM ou por outro avaliador externo37, cons-
titui claro reconhecimento de que tal opção de-
termina uma maior necessidade de salvaguarda
dos interesses dos investidores. A entidade ges-
tora será, desta forma, responsável pela correta
avaliação de ativos, bem como pelo cálculo do
valor global do FIA, independentemente de as
funções de avaliação de ativos terem sido confi-
adas a um avaliador externo38.
Sublinhe-se ainda a situação particular dos peri-
tos avaliadores de imóveis, que motivou a apro-
vação de regras próprias para o exercício de
atividade39.
3. Capital inicial e fundos próprios
Os requisitos de fundos próprios visam acaute-
lar a continuidade e regularidade do desempe-
nho da atividade pelos GFIA e, bem assim, co-
brir a responsabilidade profissional no exercício
de tal atividade40. Exige-se aos FIA que tenham
um capital mínimo de €300 000 ou de
€125 000, consoante sejam geridos interna ou
externamente41.
Sempre que o valor líquido global da carteira
sob gestão do GFIA ultrapasse o montante de
€250 milhões, recai sobre os GFIA a obrigação
de constituir uma reserva de fundos próprios
suplementares que equivalerá a 0,02% do mon-
tante em que a carteira exceda o referido limi-
ar42. No entanto, a soma da referida reserva su-
plementar com o capital inicial tem como limite
máximo o montante de €10 milhões43.
Com vista a cobrir eventuais riscos de responsa-
bilidade civil profissional decorrentes de atua-
ção negligente, os GFIA devem deter fundos
próprios suplementares suficientes, ou celebrar
um contrato de seguro para o efeito44.
35- Art. 93.º/2 do RGOIC. 36- Art. 94.º/1 do RGOIC. 37- Art. 94.º/3 do RGOIC. 38- Art. 95.º do RGOIC. 39- Aprovado pela Lei n.º 153/1025, de 14 de setembro, que regula o acesso e o exercício da atividade de peritos avaliadores de imóveis que prestem serviços a entidades do sistema financeiro nacional. 40- Considerando 23 da Diretiva. 41- Art. 50.º e 99.º/1 h) do RGOIC, que transpõem o disposto no art. 9.º/1/2 da Diretiva. 42- Art. 71.º/1 do RGOIC, o qual procede à transposição do art. 9.º/3 da Diretiva. 43- Art. 71.º/3 do RGOIC, que transpõe o art. 9.º/3 da Diretiva. 44- Art. 71.º/7 do RGOIC, que transpõe o art. 9.º/7 da Diretiva.
91 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Refira-se, ainda, que a Comissão regula, no
exercício da competência que lhe é concedida
pela Diretiva45, relativamente aos fundos pró-
prios suplementares e/ou ao seguro de respon-
sabilidade civil profissional, as seguintes maté-
rias: (i) os riscos que deverão cobrir, (ii) requi-
sitos qualitativos em matéria de riscos de res-
ponsabilidade profissional; e (iii) cobertura de
riscos de responsabilidade profissional através
de fundos próprios complementares ou através
de seguro46.
4. Alavancagem
Com vista a acompanhar e monitorizar o recur-
so a técnicas de exposição ao risco e a evitar
que a utilização a tais procedimentos aumente o
risco sistémico do sistema financeiro, o quadro
legal aprovado pela Diretiva dedica particular
atenção ao efeito de alavancagem.
Os GFIA devem estabelecer os níveis máximos
de alavancagem em relação a cada FIA que ge-
rem, informação que deverá ser disponibilizada
quer aos investidores47, quer às entidades de
supervisão do EM de origem48. Tais obrigações
de comunicação visam promover a transparên-
cia em relação aos investidores, bem como a
capacidade das autoridades de supervisão de
controlarem eventuais riscos sistémicos49.
Caberá ao GFIA demonstrar que os limites no
que respeita ao recurso ao efeito de alavanca
para cada FIA são razoáveis e que são cumpri-
dos numa base contínua, enquanto, por seu tur-
no, as autoridades de supervisão do EM de ori-
gem do GFIA deverão determinar se, e em que
medida, o recurso ao efeito de alavanca contri-
bui para aumentar o risco sistémico no sistema
financeiro50. No entanto, na eventualidade de as
autoridades de supervisão competentes conside-
rarem excessivo o recurso ao nível de alavanca-
gem, poderão ser impostos, após terem notifica-
do a ESMA, o ESRB e as autoridades de super-
visão competentes do FIA em questão, e apenas
quando tal se revele necessário para assegurar a
estabilidade do sistema financeiro, limites ao
recurso a tal técnica de exposição ao risco ou
outras restrições à gestão que se revelem ade-
quadas51.
Capítulo IV. As entidades
relacionadas com os GFIA
1. Depositário
A separação entre a função de gestão e a função
de depósito tem sido apontada como uma im-
portante medida destinada a salvaguardar os
interesses dos investidores e justificada pelo
importante papel desempenhado pelos depositá-
rios na governação dos fundos de investimento
e pela natureza fiduciária da sua posição52. No
contexto desta divisão, é confiado ao depositá-
rio um papel essencial de custódia dos ativos
que lhes são confiados, e é estabelecido um
conjunto alargado de normas e de condições
que o depositário deverá observar no exercício
da função que lhe é confiada.
45- Art. 9.º/9 da Diretiva. 46- Arts. 12.º a 15.º do Regulamento Delegado. 47- De acordo com o art. 23.º/1 a) da Diretiva, deverão ser divulgados aos investidores as circunstâncias em que os GFIA poderão recorrer a alavancagem, tipos e fontes de efeito de alavanca permitidos e os riscos que lhes são inerentes. 48- De acordo com o art. 24.º/4 da Diretiva, os GFIA que giram FIA com recurso substancial a alavancagem deverão informar as autoridades de supervisão do EM de origem quanto ao nível global de recurso ao efeito de alavanca em relação a cada FIA sob sua gestão. 49- Baffi, E., Lattuca, D., e Santella, P., Extending the EU Financial Regulatory Framework to AIFM, Credit Derivatives, and Short Selling, 2011, p.8. 50- Art. 25.º/1 da Diretiva. 51- Art. 25.º/3 da Diretiva. 52- Câmara, P., Manual de Direito dos Valores Mobiliários, 2ª Ed., Almedina, 2011, p. 782.
Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 91
92 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Para além do regime da Diretiva, transposto
para o RGOIC, o Regulamento Delegado por-
menoriza as funções e obrigações dos depositá-
rios de FIA e detalha as normas previstas na
Diretiva. Visto que o Regulamento Delegado é
uma fonte de direito com aplicabilidade direta,
as normas aí previstas deverão ser tidas em con-
sideração juntamente com as normas previstas
no RGOIC, motivo pelo qual serão indicadas
infra em conjunto com as normais nacionais
aplicáveis.
São confiados a um único depositário os ativos
que fazem parte da carteira dos organismos e
investimento coletivo (art. 120.º/1 do RGOIC)53, podendo exercer as funções de depositários
instituições de crédito e empresas de investi-
mento, desde que autorizadas a prestar os servi-
ços de registo e de depósito de instrumentos
financeiros por conta de clientes, sujeitas a su-
pervisão prudencial numa base contínua54.
A Diretiva prevê (art. 21.º/3) que os EM pode-
rão permitir, quando estiverem em causa FIA
sem direitos de reembolso que possam ser exer-
cidos durante o período de cinco anos (a contar
da data do investimento inicial), que as funções
de depósito possam ser desempenhadas por pro-
fissionais que desempenhem a função de depo-
sitário como parte das suas atividades profissio-
nais ou empresariais, relativamente às quais
estejam sujeitos à obrigação de registo profis-
sional (referido normalmente como depositary
lite-regime). Todavia, o legislador nacional
optou por não prever esta possibilidade, infeliz-
mente, a nosso ver, porquanto tratar-se-ia de
uma interessante oportunidade de retirar (ainda
que a título indireto) parte da pressão regulató-
ria que o novo regime veio colocar sobre os
GFIA.
Os depositários que atuem em Portugal deverão
estar estabelecidos em Portugal55/56 e deverão
cumprir, inter alia, os seguintes deveres (art.
121.º do RGOIC): (i) garantir o cumprimento
da lei, dos regulamentos e do disposto nos do-
cumentos constitutivos do FIA; (ii) guardar os
ativos, mantendo um registo atualizado dos
mesmos; (iii) executar as instruções emitidas
pela entidade gestora; (iv) assegurar que os par-
ticipantes recebem a contrapartida e rendimen-
tos que lhes sejam devidos; e (v) elaborar uma
relação de todas as operações levadas a cabo
por conta do FIA e um inventário discriminado
dos correspondentes ativos e passivos57.
Note-se que os deveres do depositário, no que
concerne à diligência com que deverão exercer
as funções que lhe são confiadas e segregar os
ativos sob custódia, encontram-se previstos em
maior detalhe nos arts. 85.º a 99.º do Regula-
mento Delegado. De entre os vários deveres do
depositário, previstos na Diretiva e especifica-
dos ou mesmo alargados no Regulamento Dele-
gado, consideramos particularmente esclarece-
dor da elevada importância conferida à figura
do depositário no contexto da relação entre in-
vestidor, entidade gestora e depositário, e da
função de verdadeiro censor58 da atividade de-
senvolvida pelo próprio gestor que é chamado a
53- O art. 21.º/1 da Diretiva dispõe expressamente que constitui obrigação do GFIA assegurar a nomeação de um único depositário para cada um dos FIA por si geridos. 54- Art. 120.º/2 do RGOIC. 55- No art. 120.º/3 do RGOIC o legislador nacional optou por não estabelecer o período transitório previsto no art. 61.º/5 da Diretiva, no qual se prevê a possibilidade de os EM permitirem a possibilidade de os GFIA recorrerem a depositários estabelecidos noutro EM até 22 de julho de 2017. Visava-se com a previsão do referido período transitório permitir aos EM o desenvolvimento de um corpo de entidades depositárias nacionais suficiente para responder às exigências a este respeito, em particular em EM onde o recurso a entidades depositárias estabelecidas noutros EM numa base regular teve como consequência o não desenvolvimento de depositários nacionais do EM em que o FIA esteja, também ele, estabelecido. Todavia, a aludida opção do legislador português ter-se-á prendido com o simples facto de os deposi-tários estrangeiros a atuar em Portugal o fazerem através de uma sucursal, o que significa que a preocupação que o legislador da UE visava acautelar não se justificava no caso específico de Portugal. 56- O art. 2.º/1, al. l) do RGOIC, define o conceito de “Estado em que se encontra estabelecido ou constituído” da entidade depositária como correspondendo ao Estado no qual se encontre a respetiva sede social ou sucursal. 57- O elenco de deveres enunciados no art. 121.º do RGOIC corresponde ao disposto no art.21.º/7/8/9 da Diretiva. 58- Aramendía, M., Implementing the AIFMD: Success or Failure?, European Capital Markets Institute, n.º 34, março de 2013, p. 3.
93 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
a desempenhar, o facto de, para além de o ges-
tor ter que apresentar ao depositário todas as
informações relevantes para o exercício das
suas funções, ser-lhe concedida a prorrogativa
de aceder à contabilidade da entidade gestora e,
mesmo, de realizar visitas às instalações do ges-
tor (e às de qualquer prestador de serviços sub-
contratado pelo gestor, como por exemplo ava-
liadores externos). Apesar de ser possível consi-
derar que as competências de monitorização
poderão vir a ter um reduzido alcance prático, o
que, em todo o caso, apenas poderá confirmado
decorrido um suficiente período de tempo sobre
o início da implementação do presente regime
jurídico, a verdade é que a consagração de tais
competências simboliza a profunda alteração no
espírito regulatório na origem da própria apro-
vação do quadro legal em análise.
Recai sobre o depositário a responsabilidade,
perante o GFIA e os participantes, em caso de
perda dos instrumentos financeiros sob sua cus-
tódia (art. 122.º/1 do RGOIC), de devolver ao
GFIA um instrumento financeiro do mesmo
tipo ou o montante correspondente (art. 122.º/2
do RGOIC)59. O depositário responde ainda em
caso da ocorrência de qualquer prejuízo sofrido
pelos participantes que resulte de incumprimen-
to das obrigações que sobre ele impendam, em
caso de dolo ou negligência60.
O regime de responsabilidade do depositário
consagrado no RGOIC representa uma verda-
deira mudança relativamente ao Regime Jurídi-
co dos Fundos de Investimento Imobiliário,
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 71/2010, de 18
de junho, e revogado com a entrada em vigor
do RGOIC, onde se dispunha que a sociedade
gestora e o depositário respondiam solidaria-
mente perante os participantes.
Resulta do exposto que assume uma importân-
cia acrescida determinar que instrumentos fi-
nanceiros, apesar de não poderem ser fisica-
mente entregues ao depositário, deverão ser
incluídos no âmbito das obrigações de custódia,
uma vez que estes estarão, como tal, sujeitos ao
regime de responsabilidade objetiva indicado.
De acordo com o art. 88.º do Regulamento De-
legado deverão ser incluídos no âmbito das
obrigações de custódia os seguintes instrumen-
tos financeiros: valores mobiliários que incluam
os que incorporam instrumentos derivados, ins-
trumento do mercado monetário ou unidades de
participação de organismos de investimento
coletivo. Estão em causa instrumentos que po-
derão ser mantidos numa conta em nome do
depositário e sobre os quais o depositário terá
controlo. Se é claro que os derivados financei-
ros admitidos à negociação em mercado regula-
mentado (listed derivatives) estarão abrangidos
pelo dever de custódia, já menos claro será o
caso específico em caso de acordos de garantia,
empréstimo de títulos e acordos de recompra. O
enquadramento a dar a estes casos torna-se par-
ticularmente problemático tendo em considera-
ção que o Regulamento Delegado faz depender
o dever de manter em custódia um instrumento
financeiro da sua titularidade por parte do FIA,
pelo que se conclui que o dever de custódia
apenas não será aplicável caso se verifique uma
verdadeira transferência da sua titularidade do
FIA para uma entidade terceira. Por este moti-
vo, será necessário analisar cada transação em
concreto para determinar a verificação de uma
verdadeira transferência da titularidade para
apurar o regime de responsabilidade aplicável.
Na falta de legislação harmonizada, esta ponde-
ração poderá revelar na prática uma dificuldade
acrescida e é assinalável o claro risco de ser
59- As regras em matéria de responsabilidade do depositário resultam da transposição do art. 21.º/12/13/14/15 da Diretiva. 60- O regime de responsabilidade do depositário é complementado pelas normas constantes dos arts. 100.º a 102.º do Regulamento Delega-do. O art. 100.º do Regulamento Delegado clarifica as situações em que se considera ter ocorrido uma verdadeira perda, ao passo que o art. 101.º do Regulamento Delegado identifica o elenco de requisitos cujo preenchimento é necessário para que o depositário possa afastar a responsabilidade pela perda, a saber, (i) que o evento que originou a perda não resulte de ato ou omissão do depositário ou de terceiro a quem a custódia tenha sido confiada; (ii) que o depositário não pudesse, razoavelmente, ter evitado o evento em causa; e (iii) que, pese embora o exercício das respetivas funções com a exigida diligência, o depositário não pudesse impedir a perda.
Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 93
94 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
aplicado de forma não harmonizada em diferen-
tes EM, pelo que está em causa um ponto que
deveria merecer uma atenção acrescida por par-
te da ESMA, de forma a assegurar, sempre que
possível, uma interpretação o mais convergente
possível.
A introdução de um regime de responsabilidade
particularmente abrangente é suscetível de dar
origem a profundas alterações às práticas de
mercado em vigor61. De entre os vários desafios
lançados pela Diretiva a este nível, destacamos
o impacto da modificação do regime de respon-
sabilidade nos acordos relativos à delegação da
função de custódia. Com efeito, a prática de
mercado de os depositários delegarem o exercí-
cio da função de custódia nos corretores princi-
pais (prime broker), poderá conhecer importan-
tes alterações. O facto de o depositário ser o
responsável final pela devolução dos ativos sob
custódia significa, em termos práticos, que se
encontra exposto à possibilidade de o corretor
principal não devolver o instrumento financeiro
que lhe foi confiado, pelo que terá que precaver
tal possibilidade, o que terá, necessariamente,
impacto nos custos associados à prestação de tal
serviço. A existência de um acréscimo de cus-
tos resultante de uma maior exposição ao risco
e do facto de o cumprimento do regime aplicá-
vel ser mais exigente, surge como uma inevita-
bilidade. Resta apenas saber se tais custos serão
repercutidos no investidor final, GFIA, deposi-
tário ou próprio corretor principal.
Neste contexto, os depositários poderão encon-
trar nas delegações intragrupo uma resposta a
um eventual acréscimo de custos, em virtude
das quais poderão beneficiar de importantes
sinergias e, possivelmente, de um maior contro-
lo por força da harmonização das políticas e
procedimentos internos implementados nas
várias sociedades no âmbito de determinado
grupo económico. Assumirá neste quadro uma
importância digna de realce a necessidade de
prever, expressamente, nos contratos a celebrar
(e nos contratos atualmente em vigor) a possibi-
lidade de transferência da custódia sempre que
existam dúvidas quanto à capacidade de o cor-
retor principal contratado cumprir as disposi-
ções legais aplicáveis62.
Por último, o referido regime de responsabilida-
de justifica uma maior cautela com a seleção
dos corretores principais aos quais o depositário
confiará as funções de custódia. Por este moti-
vo, fará particular sentido ter um cuidado acres-
cido com a contratação de corretores principais
com elevada reputação (top tier), uma vez que
oferecerão acrescidas garantias no respetivo
exercício de atividade. Tal mudança tem poten-
cial para provocar um verdadeiro realinhamento
no setor.
O depositário apenas pode subcontratar em ter-
ceiro, através de delegação, o exercício das fun-
ções de guarda de ativos e apenas se as seguin-
tes condições forem verificadas: (i) não se tratar
de uma tentativa de evitar o cumprimento do
regime previsto no RGOIC; (ii) o depositário
demonstrar existirem razões objetivas para pro-
ceder a tal subcontratação63; (iii) a seleção e
contratação da entidade subcontratada tenha
sido realizada de forma diligente; e (iv) o depo-
sitário conseguir assegurar que a entidade sub-
contratada dispõe das estruturas e competências
necessárias e adequadas à complexidade das
funções em causa, esteja sujeita a regulamenta-
ção prudencial no que concerne à guarda de
instrumentos financeiros, segregue os ativos
dos clientes do depositário dos seus próprios
ativos e apenas reutilize os ativos em determi-
nadas circunstâncias64.
61- JP Morgan, AIFMD Depositary Liability – Perspectives, Investor Services, Whitepaper, julho de 2013, p. 1. 62- JP Morgan, AIFMD Depositary Liability – Perspectives, Investor Services, Whitepaper, julho de 2013, p. 3. 63- A título exemplificativo, o Regulamento Delegado refere, no art. 76.º/1, as seguintes razões objetivas: (i) otimização das funções e processos operacionais; (ii) poupança; (iii) conhecimento da entidade que beneficie da delegação quanto a mercados específicos; e (iv) acesso da entidade delegada a capacidades de negociação mundiais. 64- Art. 124.º do RGOIC, o qual procede à transposição do disposto no art. 21.º/11 da Diretiva.
95 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
A nomeação de depositário pelo GFIA deve ser
realizada através de contrato sujeito a lei portu-
guesa (art. 127.º/1 do RGOIC), no qual deverá,
necessariamente, ser fixado o conjunto de ele-
mentos elencados no art. 128.º/1 do RGOIC e
no art. 83.º do Regulamento Delegado.
As profundas alterações introduzidas com a
entrada em vigor do regime descrito supra rela-
tivamente ao investimento alternativo e as ga-
rantias acrescidas que a segregação de ativos
representam para o investimento, poderão lan-
çar o mote para uma forte expansão da ativida-
de de gestão de fundos na UE, na medida em
que visam contribuir para a criação uma forma
mais simples e segura através da qual a banca
tradicional e setor segurador poderão canalizar
poupanças para investimento65.
2. Delegação
A delegação de funções de gestão deverá ser
justificável com base em razões objetivas66 e
não deverá, em caso algum, colocar em causa a
eficácia da supervisão do GFIA. Por outro lado,
a entidade na qual sejam delegadas funções no
contexto do presente regime deverá dispor de
recursos suficientes para desempenhar as fun-
ções que lhe são confiadas e estar registadas ou
autorizadas para o exercício de tais funções67.
Para não contornar a separação de funções im-
posta pelo quadro legal em causa, as entidades
que desempenhem funções de depósito em vir-
tude de uma delegação não poderão beneficiar
de delegação das funções de gestão.
3. Auditores
De forma a garantir a transparência e o rigor
dos relatórios anuais dos GFIA, a informação
contabilística aí apresentada deverá ser objeto
de relatório de auditoria68, preparado por audi-
tor registado na CMVM.
Recai sobre o GFIA o dever de garantir a rotati-
vidade dos auditores, de forma a acautelar situ-
ações de conflitos de interesses entre auditores
e FIA69. Não tendo sido previsto um regime
transitório durante o qual as novas regras não
seriam aplicáveis aos mandatos ainda em curso
dos membros dos órgãos sociais das sociedades
gestoras e dos auditores à data de entrada em
vigor do diploma. Assim sendo, dada a falta da
previsão de tal período transitório para os man-
datos dos membros dos órgãos sociais ou audi-
tores em curso, deverá considerar-se que as re-
gras previstas no RGOIC lhes serão automatica-
mente aplicáveis70.
Capítulo V. A Regulação
do Governo Societário dos GFIA
O bom funcionamento do governo dos fundos
de investimento passa, em boa medida, pelo
regular exercício de atividade da própria
entidade gestora, sobre a qual recai a responsa-
bilidade pela gestão eficaz e diligente do fundo.
Por este motivo, a promoção de um equilibrado
governo societário das entidades gestoras de
FIA enquadra-se numa clara intenção do legis-
lador em assegurar a promoção dos interesses
dos investidores e que qualquer decisão de
65- Aramendía, M., Implementing the AIFMD: Success or Failure?, European Capital Markets Institute, n.º 34, março de 2013, p. 3. 66- Art. 20.º da Diretiva. 67- Cumpre sublinhar que são igualmente aplicáveis as regras gerais em matéria de delegação previstas no CdVM. 68- Art. 22.º/3 da Diretiva e art. 131.º do RGOIC. 69- Art. 132.º do RGOIC. 70- Designadamente as disposições previstas no art. 132.º do RGOIC, onde se encontra prevista a rotatividade de mandatos dos auditores, e no art. 75.º do RGOIC, onde se encontra prevista a independência e regime de impedimentos aplicáveis aos membros dos órgãos sociais da sociedade gestora, bem como aos auditores.
Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 95
96 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
investimento é adotada de forma esclarecida e
que é objeto de escrutínio interno, de forma a
assegurar o seu alinhamento com a política de
investimento da sociedade, evitar uma excessi-
va exposição ao risco e promover uma relação
de confiança entre entidade gestora e partici-
pantes dos fundos.
No presente capítulo são analisadas as princi-
pais alterações para o governo societário dos
GFIA resultantes da aprovação da Diretiva e da
correspondente transposição para o RGOIC.
1. Políticas de Remuneração
A previsão de políticas de remuneração desa-
justadas ao perfil de risco das entidades em cau-
sa tem sido apontada como um dos elementos
na origem da crise financeira71, na medida em
que influencia diretamente a agressividade das
estratégias de risco seguidas pelos gestores de
fundos. Com esta preocupação em mente, a Di-
retiva procurou lançar as bases para a previsão
de políticas de remuneração equilibradas e que
promovam uma gestão sã e eficaz.
Os GFIA devem dispor de políticas remunera-
tórias para os seus colaboradores, que deverão
abranger os membros dos órgãos de administra-
ção, responsáveis pela assunção de riscos e pelo
exercício das funções de controlo72. O Anexo II
da Diretiva concretiza tal dever, indicando em
maior detalhe as linhas ao longo das quais os
GFIA deverão fixar as políticas de remunera-
ções internas. A ESMA, por seu turno, deve
assegurar a existência de orientações que con-
tribuam para dar corpo às indicações constantes
do Anexo II da Diretiva.
Esta disposição foi transposta para a ordem jurí-
dica nacional pelo art. 78.º do RGOIC. De acor-
do com esta disposição, as políticas de remune-
ração dos GFIA não deverão encorajar a assun-
ção de riscos incompatíveis com o perfil de ris-
co do FIA, devendo a política de remuneração
incidir, inter alia, sobre as remunerações e be-
nefícios dos colaboradores responsáveis pela
assunção de riscos. Numa palavra, procura-se
regular as políticas de remuneração seguidas no
que respeita em particular aos colaboradores
que desempenhem funções com impacto no
perfil de risco das sociedades responsáveis pela
gestão de fundos, visando-se desse modo pro-
mover uma gestão sólida e eficaz dos riscos e
que não encoraje uma assunção de riscos exces-
siva e agressiva73.
É digna de realce a preocupação demonstrada
pelo legislador ao prever, ao longo do RGOIC,
várias disposições destinadas a promover a
transparência da política de remunerações prati-
cada pelos GFIA e, deste modo, sindicar o cum-
primento dos parâmetros definidos no art. 78.º
do RGOIC, no Anexo I do RGOIC e em Regu-
lamento da CMVM, de entre as quais destaca-
mos as seguintes:
a) Relatório e contas deverá revelar o montante
total das remunerações do exercício econó-
mico, separando de forma clara remunera-
ções fixas e variáveis e eventuais comissões
de desempenho (art. 160.º/1 a) do RGOIC);
e
b) Dever de divulgação de informação aos in-
vestidores quanto à descrição de todas as
remunerações suportadas pelos investidores
e indicação do correspondente valor máximo
possível (art. 221.º/1, m) do RGOIC).
71- Considerando 24 da Diretiva. 72- Art. 13.º da Diretiva. 73- Pelo contrário, o art. 24.º do Regulamento Delegado indica vários exemplos de incentivos que deverão ser considerados aceitáveis.
97 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
O Anexo I do RGOIC atribui ao comité de re-
munerações a fiscalização da remuneração de
colaboradores que desempenhem funções de
controlo de risco, prevendo o n.º 3 do referido
Anexo a nomeação de um comité de remunera-
ção no caso das “entidades gestoras significati-
vas em termos da sua dimensão ou da dimensão
dos organismos de investimento coletivo por si
geridos, de organização interna e da natureza,
âmbito e complexidade das respetivas ativida-
des”. Coloca-se aqui a questão de determinar,
em concreto, o ponto a partir do qual um GFIA
terá dimensão que justifique a criação de um
comité de remuneração74.
As Orientações da ESMA de boas práticas de
remuneração ao abrigo da Diretiva (a seguir,
“Orientações da ESMA sobre Remuneração”)75
contribuem significativamente para concretizar
em maior detalhe o disposto no Anexo II da
Diretiva e definem as linhas orientadoras que
deverão ser seguidas para determinar a partir de
que momento um GFIA deverá criar um comité
de remuneração76/77. No entanto, a ESMA indi-
ca, a título meramente exemplificativo, que não
será necessário criar um comité de remuneração
no caso específico de GFIA que sejam parte de
grupos de bancos, seguradoras ou grupos de
investimento dentro dos quais exista uma enti-
dade que desempenhe a função de comité de
remuneração para todo o grupo económico, des-
de que cumpram as disposições da Diretiva
aplicáveis (relativamente à composição e fun-
ção de tais comités)78.
As Orientações da ESMA salientam a necessi-
dade de estender as disposições relativas à polí-
tica de remuneração dos GFIA às entidades às
quais nas quais seja delegada a gestão dos FIA,
que deverão ser igualmente eficazes e previstas
expressamente disposições contratuais que não
as disposições da Diretiva e das Orientações
da ESMA sobre Remuneração não sejam
contornadas79. Não obstante, tem sido defendi-
do que a extensão da aplicação às entidades às
quais é delegada a gestão de FIA recomendada
nas Orientações poderá, em particular em virtu-
de das diferenças legislativas em matéria de
remuneração entre a UE e o resto do mundo,
dar azo a sérias dificuldades no estabelecimento
de estruturas de delegação nas quais o delegado
esteja estabelecido fora da UE80.
2. Conflitos de Interesses
Com o objetivo de assegurar, numa base contí-
nua, uma gestão eficaz dos riscos associados à
atividade de gestão de fundos de investimento
alternativos, a Diretiva prevê um conjunto de
disposições que visam impor e regular a imple-
mentação interna de procedimentos de controlo
de conflitos de interesses.
De acordo com o art. 14.º da Diretiva, os GFIA
deverão adotar medidas razoáveis para detetar
situações de conflitos de interesses entre o
GFIA, o FIA, os seus investidores e clientes.
Deverá igualmente ser mantida uma clara
separação entre as funções que possam ser
74- A este respeito, é indicado nas Orientações da ESMA sobre Remuneração que o estabelecimento de um comité de remuneração constitui uma boa prática, independentemente da dimensão de cada GFIA. 75- As Orientações da ESMA podem ser consultadas através do seguinte link, acedido no dia 30 de junho de 2015: http://www.esma.europa.eu/system/files/2013-232_aifmd_guidelines_on_remuneration_-_en.pdf 76- De acordo com as Orientações da ESMA sobre Remuneração, para determinar se o GFIA tem uma dimensão significativa, que determine a obrigatoriedade de criar um comité de remuneração, dever-se-á atender aos seguintes critérios: (i) a sua dimensão ou a dimensão dos FIA que gere; (ii) a sua organização interna; e (iii) a natureza, escopo e complexidade das atividades que desenvolva. 77- A conjugação do dever de estabelecer um comité de remuneração poderá suscitar diversas questões 78- Idem, ponto 55, p. 16. 79- Idem, ponto 18, p. 8. 80- Buttigieg, C., The Alternative Investment Fund Managers Directive in Malta: Past, Present…What next?, ID-DRITT, Vol. XXV, 2015, p. 18.
Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 97
98 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
consideradas incompatíveis entre si e que pos-
sam dar origem a conflitos de interesses siste-
máticos e os investidores informados da exis-
tência do risco de os seus interesses serem pre-
judicados e da aplicação de procedimentos
apropriados para o efeito.
A adoção de procedimentos destinados a identi-
ficar e evitar situações de conflitos de interesses
constitui uma condição de funcionamento dos
GFIA (art. 12.º/1, d), art. 18.º da Diretiva) e
uma medida de gestão dos riscos (art. 15.º/5, d)
da Diretiva).
Assume ainda uma assinalável importância no
quadro da delegação das funções de gestão de
carteiras ou de riscos, na medida em que consti-
tui uma condição que deverá ser observada pela
entidade na qual estas sejam delegadas (art.
20.º/2, b) da Diretiva e art. 80.º do Regulamento
Delegado).
O regime constante da Diretiva procura assegu-
rar a independência do depositário81 e a particu-
lar preocupação em garantir que o depositário
evita situações de conflitos de interesses, em
relação ao, ou em nome do, FIA, constitui uma
clara manifestação de tal objetivo82. A identifi-
cação e gestão de potenciais situações de confli-
tos de interesses constitui condição da nomea-
ção de depositário de determinado FIA como
avaliador externo do mesmo FIA (art. 19.º/4 da
Diretiva), condição essa a acrescer à separação
funcional e hierárquica do exercício das duas
funções e que deverá ser divulgada aos investi-
dores (art. 23.º/1, f), o), art. 28.º/2, b), ambos da
Diretiva).
O Regulamento Delegado, no art. 30.º, avança
várias situações a ter em consideração para
identificar eventuais situações de conflitos de
interesses, ao passo que o art. 31.º do Regula-
mento Delegado dispõe que a política de confli-
to de interesses deve ser reduzida a escrito e
adaptada à dimensão e natureza de cada
GFIA83. Define ainda situações de conflitos de
interesses relacionados com o resgate de inves-
timentos (art. 32.º do Regulamento Delegado),
bem como procedimentos e medidas destinadas
a prevenir e a gerir conflitos de interesses (art.
33.º do Regulamento Delegado). Sempre que os
procedimentos administrativos não se revelem
suficientes para acautelar os interesses dos in-
vestidores, a direção, ou outro organismo inter-
no do GFIA, deverão ser prontamente informa-
dos para que possam adotar as decisões que se
revelem adequadas para o efeito (art. 34.º do
Regulamento Delegado). Prevê também que
seja colocado em prática um procedimento de
acompanhamento dos conflitos de interesses,
designadamente através da manutenção de um
registo atualizado das atividades realizadas (art.
35.º do Regulamento Delegado). Por último, a
existência de situações de conflitos de interes-
ses também poderá ter impacto na definição das
estratégicas relativas ao exercício dos direitos
de voto (art. 37.º do Regulamento Delegado).
Com a transposição da Diretiva, é notório que
as cautelas com situações de conflitos de inte-
resses previstas no RGOIC foram redobradas.
Referimo-nos, nomeadamente, à introdução da
obrigação de manutenção de um registo atuali-
zado das atividades que originem conflitos de
interesses84, sempre que se considere que os
81- PriceWaterHouseCoopers, Depositaries AIFMD Newsbrief – A closer look at the impact of the AIFMD on depositaries, fevereiro de 2013, p. 4. 82- A preocupação indicada justifica-se nomeadamente no contexto em que depositários pertençam a grandes grupos financeiros, pese embora a existência de interesses muitas vezes antagónicos quando comparados com os diferentes agentes do grupo económico em causa, por um lado, e o interesse dos FIA e dos respetivos investidores, por outro lado. Neste sentido, cfr. Hooghiemstra, S., Depositary Regulation, p. 417, citado por Berghe, H., Custody Risk and Investors’ Protection: the EU Response and its Implementation in Belgium, Faculdade de Direito da Universidade Católica de Leuven, 2014. 83- Cumpre, a este respeito, sublinhar que a obrigatoriedade de apresentar, e de reduzir a escrito, uma política de conflito de interesses já decorria do CdVM. 84- Art. 89.º do RGOIC.
99 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
procedimentos internos destinados a acautelar
situações de conflitos de interesses se revelem
insuficientes. Nestes casos, o órgão de adminis-
tração ou de fiscalização da entidade gestora
deverão ser prontamente informados de tal fac-
to para que possam adotar as medidas que con-
siderem adequadas ao caso concreto, decisão
essa que deverá ser comunicada aos participan-
tes do organismo de investimentos coletivo em
causa (art. 89.º do RGOIC).
Sublinhe-se ainda a preocupação vertida no
novo quadro legal em evitar situações de confli-
tos de interesses entre depositário, gestor e FIA,
de molde a garantir a independência do deposi-
tário, manifestada em particular com a previsão
das seguintes proibições85: (i) as entidades res-
ponsáveis pela gestão não poderão desempe-
nhar a função de depositário; e (ii) o corretor
principal que atue como contraparte de um FIA
não poderá ser depositário de tal FIA se o de-
sempenho de ambas as funções não obedecer a
uma separação funcional e hierárquica86. Preo-
cupações essas que são adicionalmente acaute-
ladas com o estabelecimento do elenco de
operações vedadas às entidades gestoras, pre-
visto no art. 147.º do RGOIC.
3. Gestão de riscos e de liquidez
De acordo com o novo quadro legal os GFIA
deverão implementar uma separação funcional
e hierárquica entre as funções de gestão de ris-
cos das unidades operacionais, incluindo a ges-
tão de carteiras, devendo, ainda, implementar
procedimentos internos, sujeitos a revisão e
atualização regular, que permitam detetar e
acompanhar riscos relevantes para a estratégia
de investimento do GFIA87.
Numa outra vertente, os GFIA deverão adotar
procedimentos de acompanhamento de riscos
de liquidez do FIA, designadamente do perfil
de liquidez dos investimentos do FIA, relativa-
mente a cada um dos FIA sob gestão88. Assume
particular relevância a este nível o dever de os
GFIA levarem a cabo, numa base regular, testes
de esforço, que permitam tomar o pulso a cada
FIA e apurar os riscos de liquidez em causa.
O art. 79.º do RGOIC dispõe um conjunto de
mecanismos, técnicas e processos que permitem
efetuar uma avaliação de ativos, gestão de ris-
cos e de liquidez, entre os quais destacamos os
seguintes: (i) dever de realização, sempre que
considerado adequado, de testes periódicos com
vista a avaliar a validade dos mecanismos de
avaliação do risco (backtesting); e (ii) levar a
cabo a realização de testes de esforço (stress
tests) periódicos, relativamente aos FIA (com
exceção dos que sejam fechados não alavanca-
dos), bem como análises de cenários em que se
verifiquem possíveis modificações das condi-
ções de mercado que possam colocar em causa
os organismos de investimento coletivo, desig-
nadamente que permitam avaliar o risco de li-
quidez em condições excecionais.
4. Transparência
São várias as obrigações impostas pela Diretiva
para fomentar a transparência no exercício da
função de gestão de FIA. Merecem destaque os
seguintes deveres: (i) de disponibilização dos
relatórios anuais para cada exercício em relação
a cada FIA que giram89; (ii) de divulgação de
85- Art. 123.º do RGOIC. 86- Tal separação funcional e hierárquica deverá ser efetuada com observância de todas as condições enunciadas no art. 43.º do Regulamento Delegado. 87- Art. 15.º da Diretiva, cujas disposições são objeto de especificação nos arts. 38.º a 45.º do Regulamento Delegado. Destacamos em particular o art. 42.º do Regulamento Delegado, no qual são objeto de concretização as condições a preencher para que se verifique uma verdadeira separação funcional e hierárquica. 88- Art. 16.º da Diretiva, cujas disposições são objeto de concretização nos arts. 46.º a 49.º do Regulamento Delegado. 89- Art. 227.º do RGOIC, que procede à transposição do art. 22.º da Diretiva.
Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 99
100 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
informações aos investidores (inter alia, descri-
ção da estratégia e dos objetivos de investimen-
to do FIA, limitações aplicáveis aos investimen-
tos e descrição dos procedimentos através dos
quais poderão alterar as respetivas estratégias
de investimento)90; e (iii) de apresentação de
informações, numa base regular, à CMVM
(designadamente sobre os mercados e instru-
mentos em que negoceiam, perfil de risco dos
FIA e principais categorias de ativos em que o
FIA investiu)91.
A obrigação de divulgação das remunerações
auferidas é digna de realce na medida em que
constitui uma clara manifestação da preocupa-
ção legislativa quanto às políticas de remunera-
ção praticadas92.
Todavia, a grande amplitude dos deveres de
transparência tem suscitado fortes preocupações
num setor tradicionalmente caracterizado por
uma maior opacidade93. Na verdade, ao abrigo
do novo quadro legal a comercialização de FIA
assenta e depende do tratamento equitativo en-
tre investidores94, pelo que o tratamento prefe-
rencial de determinados investidores apenas é
possível desde que não dê origem a uma des-
vantagem material em relação a outros investi-
dores, sem prejuízo, claro está, da possibilidade
de prever UPs de diferentes categorias.
Adicionalmente, os GFIA deverão também di-
vulgar as suas estratégias de investimento e,
bem, assim, demonstrar a solidez das respetivas
estratégias de investimento de cada FIA, a coe-
rência do perfil de liquidez e da política de
reembolsos relativamente a cada um dos FIA
geridos95. Não obstante, historicamente o pró-
prio ethos dos FIA assenta na adoção de estraté-
gias de investimento caracterizadas pela sua
confidencialidade e privacidade96. Acresce, ain-
da, o facto de os FIA darem, tradicionalmente,
um tratamento preferencial a investidores que,
designadamente pela sua dimensão ou peso es-
tratégico, possam ser considerados determinan-
tes (key investors) e que desempenhem um pa-
pel decisivo na obtenção de investimentos mais
significativos. Por esse motivo, a obrigação de
não permitir que determinados investidores be-
neficiem de tratamento preferencial poderá re-
velar-se particularmente difícil de assegurar na
prática.
Adicionalmente, os deveres destinados a asse-
gurar a transparência poderão motivar sérias
preocupações quanto à segurança da informa-
ção divulgada e o risco de a mesma ser
objeto de espionagem empresarial (ou simples-
mente conferir vantagem concorrencial a outros
players no mercado). Estas e outas preocupa-
ções poderão, no limite, motivar um menor in-
teresse no exercício da atividade de GFIA na
UE e reduzir a correspondente atratividade, vis-
ta de fora da União97.
5. Independência
Os GFIA (bem como os depositários e as enti-
dades que comercializem um FIA) devem atuar
no exclusivo interesse dos participantes98.
90- Art. 221.º do RGOIC, que procede à transposição do art. 23.º da Diretiva. 91- Art. 222.º do RGOIC, que procede à transposição do art. 24.º da Diretiva. 92- Art. 107.º do Regulamento Delegado. 93- Engrácia Antunes, J., Os “Hedge Funds” e o Governo das Sociedades, Direito dos Valores Mobiliários, Vol. IX, Coimbra Editora, 2009, p. 26. 94- Art. 23.º do Regulamento Delegado. 95- Art. 16.º/2 da Diretiva. 96- Zepeda, R., To EU, or not to EU: that is the AIFMD question, Journal of International Banking Law and Regulation, 2014, p. 14. 97- A seguinte passagem é elucidativa do modus operandi dos FIA: “Hedge Funds are more like private clubs. They choose who comes in, and they don’t want to make it too easy. There’s this mentality that if you have a great club, then it should be difficult to get into”, da autoria de Devasabi, K., Hedge funds face automation challenge, Risk Magazine, outubro de 2013. 98- Art. 15.º do RGOIC.
101 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
Os órgãos de administração da entidade gestora
devem conter um número mínimo adequado de
membros independentes, tendo em considera-
ção a dimensão da entidade gestora e a do pró-
prio órgão de administração99. Considera-se
independente o membro que não se encontre
associado a algum grupo de interesses na enti-
dade gestora, nem se encontre em posição ou
circunstância suscetível de afetar a sua isenção
e que não preste serviços ou mantenha relação
comercial significativa com a entidade gestora
em causa ou com entidade que com esta se en-
contre em relação de domínio ou grupo.
A avaliação da independência dos membros dos
órgãos de administração da sociedade gestora
deverá ser efetuada tendo em consideração o
elenco exemplificativo de situações suscetíveis
de afetar a independência constante do art. 31.º-
A do RGICSF, e as exigências decorrentes do
art. 414.º do CSC, designadamente a exigência
de nomear alguns membros não executivos e
que não sejam acionistas da sociedade. Não
obstante, as proibições aí previstas deverão ser
interpretadas à luz do princípio da proporciona-
lidade, de forma a ter em devida consideração
as particularidades de cada caso concreto que a
autoridade de supervisão for chamada a apreci-
ar e deverão, consequentemente, ser interpreta-
das de forma evolutiva, sob pena de afetar de
forma desproporcional as sociedades reguladas
face aos interesses que a lei visa proteger.
Capítulo VI. O regime do passaporte
Europeu: o nascimento de um mercado
único para os Fundos de Investimento
Alternativo
O regime de passaporte dos GFIA constitui um
dos pontos mais relevantes do regime introduzi-
do pela Diretiva. A atribuição de um passaporte
constitui, no geral, um dos elementos de harmo-
nização de maior peso no seio da União, em
boa medida porque assenta numa paridade entre
os EM, ao nível das condições praticadas, re-
quisitos de exercício de atividade exigidos e
garantias concedidas, neste caso aos investido-
res, dessa forma contribuindo para fomentar a
liberdade de circulação de capitais e de presta-
ção de serviços.
A vantagem automática da implementação do
regime de passaporte consistirá em permitir aos
GFIA beneficiar do sistema de notificação entre
autoridades de supervisão para os efeitos de
comercializar junto de investidores qualificados
na UE. O sistema de notificação entre autorida-
des replica, em boa medida, o sistema desenha-
do com a diretiva UCITS, o qual se revelou um
verdadeiro sucesso100.
Tem sido defendido que a introdução de um
regime de passaporte, ao estabelecer as condi-
ções para que GFIA ofereçam livremente os
seus serviços a investidores qualificados em
toda a União Europeia, poderá contribuir para
estimular o volume de investimento em FIA no
mercado interno da UE, para promover a trans-
parência do mercado de comercialização de
FIA e para simplificar os procedimentos a ob-
servar com vista à comercialização de AIF.
Num contexto económico marcado pela cres-
cente globalização, espera-se que o passaporte
seja visto pelos investidores como uma garantia
acrescida de proteção dos investidores101, funci-
onando como um verdadeiro padrão de qualida-
de internacional102.
Com vista a permitir uma correta colocação em
prática deste regime, a sua implementação é
99- Art. 75.º do RGOIC. 100- S. Lydon, Marketing in Europe: Life after the AIFMD for non-EU managers, Offshore Investment Magazine, n.º 242, janeiro de 2014, p. 3. 101- Bernhardt, T., The European Alternative Investment Fund Managers (AIFMD) – an appropriate approach to the global financial crisis?, Faculdade de Direito da Universidade de Glasgow, 2013, p. 136. 102- S. Lydon, Marketing in Europe: Life after the AIFMD for non-EU managers, Offshore Investment Magazine, n.º 242, janeiro de 2014, p. 3.
Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 101
102 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
prevista de forma faseada. Com efeito, no
momento da transposição da Diretiva o regime
de passaporte será aplicável ao GFIA que giram
FIA UE e poderá estender-se, em momento
posterior, aos GFIA extra UE que giram FIA,
bem como à comercialização de FIA extra-UE,
independentemente de onde o GFIA estiver es-
tabelecido.
1. O Regime em Vigor
a. GFIA da UE
i. Comercialização de FIA da EU
A Diretiva estabelece, nos artigos 31.º e 32.º,
condições para que um GFIA autorizado possa
comercializar UPs ou ações de FIAs da UE jun-
to de investidores profissionais, quer no EM de
origem do GFIA, quer noutros EM da UE.
No caso da comercialização por GFIA autoriza-
do no seu EM de origem, o artigo 31.º da Dire-
tiva prevê a aplicação de um regime simplifica-
do, segundo o qual o GFIA deverá notificar as
autoridades de supervisão competentes da sua
intenção de comercializar, apresentando toda a
documentação indicada no Anexo III da Direti-
va (art. 31.º/2)103, ao passo que a autoridade de
supervisão competente disporá de um prazo de
vinte dias úteis para informar o GFIA da possi-
bilidade de comercializar o FIA em causa.
O artigo 32.º, por seu turno, prevê a comerciali-
zação de FIA da UE em EM distintos do EM de
origem do GFIA da UE. Importa aqui destacar
o facto de o regime de passaporte previsto nesta
disposição ser limitado à comercialização junto
de investidores profissionais.
Para que possa beneficiar do regime de passa-
porte, o GFIA deverá notificar a autoridade de
supervisão competente do seu EM de origem,
indicando, relativamente a todos os FIA que
pretenda comercializar, a documentação e in-
formações constantes do Anexo IV da Diretiva
(art. 32.º/2). Uma vez notificada, a autoridade
de supervisão do EM de origem deverá transmi-
tir o processo completo de notificação às autori-
dades de supervisão do EM de destino, i.e. onde
o GFIA pretenda comercializar os FIA em cau-
sa, dentro de um prazo de vinte dias úteis conta-
dos desde a respetiva receção. Em paralelo,
quando a notificação entre autoridades de su-
pervisão tiver ocorrido, o GFIA deverá ser noti-
ficado em conformidade, podendo dar início à
comercialização a partir desse preciso momento
(art. 32.º/4 da Diretiva).
O art. 230.º do RGOIC regula a comercializa-
ção de FIA da UE em Portugal por GFIA aí
autorizados junto de investidores qualificados.
Nos termos do disposto no art. 230.º/1 do
RGOIC, os GFIA da UE autorizados em Portu-
gal podem comercializar em Portugal. Para o
efeito deverão notificar a CMVM, indicando os
FIA da UE que pretendem comercializar (art.
230.º/2 do RGOIC). A CMVM disporá de um
prazo de vinte dias, a contar da receção do pro-
cesso de notificação completo, para notificar os
GFIA relevantes (art. 231.º do RGOIC). O pro-
cesso de notificação deverá ser instruído com as
informações e documentos listados no art.
230.º/3 do RGOIC.
Ao passo que o art. 230.º do RGOIC regula a
comercialização em Portugal por entidades ges-
toras aí autorizadas, o art. 233.º do RGOIC
transpõe para o ordenamento jurídico português
os termos em que um GFIA da UE poderá co-
mercializar FIA da UE em Portugal ao abrigo
do regime do passaporte. Para que um GFIA da
UE autorizado noutro EM possa iniciar a co-
mercialização exclusivamente junto de investi-
dores qualificados em Portugal, a CMVM deve-
rá receber da autoridade de supervisão compe-
tente do EM onde o GFIA se encontrar autori-
zado, a seguinte documentação: (i) processo
103- Qualquer intercâmbio de informações entre autoridades de supervisão deve respeitar o direito à proteção de dados pessoais, consagrado no artigo 16.º do Tratado de Lisboa e no art. 8.º da Carta de Direitos Fundamentais. Cfr., designadamente, Considerando 76 da Diretiva.
103 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
completo de notificação; (ii) certificado que
comprove que o GFIA está habilitado para gerir
FIA com a estratégia de investimento em causa;
e (iii) informação sobre qualquer alteração sub-
sequente aos elementos referidos em (i). O pro-
cesso completo de notificação poderá ser elabo-
rado em português ou em língua de uso corrente
no mundo financeiro e ser enviado por via ele-
trónica (art. 233.º/4 do RGOIC).
Finalmente, caberá às autoridades de supervisão
do EM de origem transmitir às autoridades de
supervisão do EM onde é pretendida a comerci-
alizaçã, as informações necessárias para o efei-
to. Após a referida transmissão de informações
o GFIA da UE será notificado e, a partir desse
momento, poderá imediatamente iniciar a co-
mercialização ao abrigo do regime de passapor-
te.
ii. Comercialização de FIA extra-EU
Conforme referido supra, encontra-se prevista
uma implementação do regime de passaporte
faseada. Na verdade, a Diretiva não prevê a ex-
tensão do regime de passaporte à comercializa-
ção dos FIA de país terceiro por GFIA da UE
no momento da sua transposição pelos diferen-
tes EM, a qual terá que ser realizada com recur-
so ao regime de colocação particular (art. 36.º
da Diretiva). Para que tal comercialização seja
possível, os GFIA da UE em causa deverão pre-
encher os requisitos indicados nessa disposição,
para além dos quais os diferentes EM poderão
impor regras mais rigorosas (gold-plating) (art.
36.º/2 da Diretiva).
No RGOIC, o regime em causa foi
vertido no artigo 237.º. De acordo com esta
disposição, os GFIA da UE podem comerciali-
zar (exclusivamente junto de investidores quali-
ficados) FIA extra-UE (art. 237.º/1 do RGOIC),
desde que seja concedida autorização pela
CMVM para o efeito (art. 237.º/2 do RGOIC).
A autorização da CMVM depende da verifica-
ção de um conjunto de condições, que corres-
pondem às condições previstas no art. 36.º da
Diretiva: (i) cumprimento dos vários requisitos
previstos no RGOIC que lhe sejam aplicáveis
(exceção feita às normas relativas aos depositá-
rios); (ii) existência de mecanismos de coopera-
ção entre as entidades de supervisão do EM de
origem do GFIA e do país terceiro onde o FIA
se encontra estabelecido; e (iii) que o país ter-
ceiro onde o FIA esteja estabelecido não integre
a lista de Países e Territórios Não Cooperantes
do Grupo de Ação Financeira contra o branque-
amento de capitais e o financiamento do terro-
rismo.
b.GFIA extra-EU
iii. Comercialização de FIA da UE
e de FIA extra-EU
Atualmente os GFIA extra-UE (i.e., de países
terceiros) podem comercializar em Portugal
exclusivamente perante investidores qualifica-
dos UP de FIA por si geridos (sejam estes da
UE ou extra-UE) (art. 237.º/4 do RGOIC), me-
diante a verificação de um conjunto de condi-
ções (art. 237.º/5 do RGOIC). As condições em
causa, que terão que ser observadas pelo GFIA
extra-UE são as seguintes:
a) Cumprimento de normas de direito aplicá-
veis à constituição e funcionamento de FIA
(art. 115.º do RGOIC), à colaboração de au-
ditor (art. 131.º do RGOIC), à elaboração e
prazos de divulgação dos relatórios e contas
(art. 160.º do RGOIC), ao conteúdo dos rela-
tórios e contas e relatórios de auditores (art.
161.º do RGOIC), à divulgação de prospeto,
contas anuais e semestrais e demais docu-
mentos com informações fundamentais des-
tinadas aos investidores (art. 163.º do
RGOIC), à divulgação de informações aos
investidores (art. 163.º, art. 221.º e art. 229.º,
todos do RGOIC) e à prestação de informa-
ções à CMVM (art. 222.º do RGOIC);
b) Previsão de mecanismos de cooperação
entre a CMVM e as autoridades de supervi-
são de país terceiro onde o GFIA está
estabelecido, com vista ao controlo do risco
sistémico e de forma a assegurar uma troca
Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 103
104 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
de informações eficaz que permita à CMVM
a prossecução das suas competências; e
c) O país terceiro onde o GFIA estiver estabe-
lecido não integrar a lista de Países e Terri-
tórios Não Cooperantes do Grupo de Ação
Financeira contra o branqueamento de capi-
tais e o financiamento do terrorismo.
Em conformidade com o disposto no art. 36.º/2
da Diretiva, os diferentes EM têm a possibilida-
de de impor regras mais rigorosas quanto à
comercialização de FIA extra-UE no seu
território104. Ora, uma vez que o art. 237.º do
RGOIC estabelece as mesmas condições que
as previstas no art. 36.º da Diretiva, verificamos
que o legislador português optou por não impor
condições mais rigorosas (gold-plating).
c. Comercialização junto de investidores
não profissionais: o regime
de colocação particular
Os EM podem permitir aos GFIA a comerciali-
zação nos seus respetivos territórios junto de
investidores não qualificados, independente-
mente de estarem em causa FIA da UE ou extra
-UE (art. 43.º/1 da Diretiva), e poderão prever
requisitos mais rigorosos do que os previstos
em relação aos investidores qualificados, o que
se compreende atendendo à acrescida necessi-
dade de proteção de que tais investidores care-
cem. Todavia, a imposição de regras mais rigo-
rosas não poderá traduzir-se na imposição de
requisitos mais rigorosos na comercialização de
FIA da UE, sob pena de violação de vários
princípios do Direito da União Europeia, entre
os quais o princípio de não discriminação, o
princípio da liberdade de estabelecimento e o
princípio da liberdade de prestação de serviços
e de capitais.
O artigo 237.º/3 do RGOIC prevê que a comer-
cialização de FIA (da UE e extra-UE) em Por-
tugal junto de investidores não qualificados está
sujeita a autorização da CMVM, que seguirá os
termos definidos em regulamento da CMVM.
E, com efeito, o art. 54.º do Regulamento
2/2015 especifica as condições a observar para
a comercialização em regime de colocação par-
ticular, em Portugal, junto de investidores não
qualificados de FIA. Pese embora a epígrafe da
referida disposição fazer referência expressa à
comercialização de organismo de investimento
alternativo “de país terceiro”, a mesma tratar-se
-á de um lapso porquanto o art. 273.º/3 do
RGOIC, a norma que este artigo visa especifi-
car e complementar, é relativo quer a FIA da
UE, quer a FIA extra-UE, pelo que se revelaria
questionável limitar o âmbito de tal disposição
aos FIA extra-UE. De facto, o próprio art. 54.º
do Regulamento 2/2015 indica quer a documen-
tação que deverá acompanhar o pedido de
autorização para a comercialização de FIA “não
constituídos em Portugal”105 (art. 54.º/1 do Re-
gulamento 2/2015), quer a documentação relati-
va aos FIA “de país terceiro”106 (art. 54.º/5 do
Regulamento 2/2015), aos quais é exigida a
104- A previsão de idêntica possibilidade em relação aos FIA da UE revelar-se-ia suscetível de violar o Direito da União Europeia, em particular o princípio de não discriminação. 105- A documentação a apresentar é, no caso de FIA não constituído em Portugal, a seguinte: (i) certificado ou documento equivalente, emitido pela autoridade de supervisão do Estado de origem do FIA, atestando que este foi constituído e funciona regularmente e que é sujeita a supervisão; (ii) regulamento de gestão; (iii) modalidades previstas para a comercialização e projeto de contrato de comercializa-ção; (iv) último relatório anual e semestral, se aplicável; e (v) a lei do país onde o FIA esteja constituído e a identificação da entidade responsável pela sua gestão. 106- A documentação a apresentar é, no caso de FIA de país terceiro, a seguinte: (i) existência de reciprocidade de FIA em Portugal; (ii) existência de mecanismos de cooperação entre a CMVM e a autoridade de supervisão relevante do país terceiro; (iii) o país não fazer parte da Lista de Alto-Risco e de Jurisdições com Deficiências Estratégicas do Grupo de Ação Financeira contra o branqueamento de capitais e financiamento de terrorismo; e (iv) sempre que o depositário também esteja estabelecido em país terceiro diferente do Estado de estabelecimento do FIA, deverão verificar-se as condições (ii) e (iii) quanto a este Estado.
105 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
a apresentação de documentação adicional.
2. Alterações no horizonte:
o impacto das recomendações da ESMA
A Diretiva prevê com detalhe um conjunto de
disposições transitórias que prometem mudar
radicalmente o regime atualmente em vigor,
através da criação a médio prazo de um merca-
do único de comercialização de FIA na UE107.
Em conformidade com o art. 67.º da Diretiva, a
ESMA deverá adotar um parecer sobre o funci-
onamento da Diretiva e transmiti-lo ao Parla-
mento Europeu, ao Conselho e à Comissão Eu-
ropeia, até 22 de julho de 2015. O parecer da
ESMA deverá incidir sobre (i) a comercializa-
ção transfronteiriça de FIA dentro da UE e
apreciar o funcionamento do regime de passa-
porte do qual os GFIAs da UE que giram ou
comercializem FIAs da UE beneficiam desde a
transposição da Diretiva; (ii) o funcionamento
da comercialização de FIA extra-UE por GFIA
da UE; e (iii) a gestão e comercialização de FIA
por GFIA extra-UE.
Nesta fase do percurso conducente à implemen-
tação total do regime de passaporte pede-se à
ESMA uma avaliação do percurso percorrido
desde a transposição da Diretiva nos vários EM
e que, com base nos elementos que resultem da
referida avaliação, efetue um balanço com base
nas quais deverá emitir recomendações dirigi-
das às instituições europeias sobre as próximas
medidas a adotar.
a. Eventual alargamento do regime
de passaporte
De acordo com o art. 67.º da Diretiva, recai so-
bre a ESMA a obrigação de apresentar reco-
mendações ao Parlamento Europeu, ao Conse-
lho e à Comissão relativamente à possibilidade
de extensão da aplicação do regime de passa-
porte à comercialização de FIA extra-UE por
GFIA da UE, por um lado, e sobre gestão e co-
mercialização de FIA por GFIA extra-UE, por
outro lado108/109. Ora, importa sublinhar que a
extensão do regime de passaporte está depen-
dente do sentido do parecer da ESMA quanto à
existência de obstáculos significativos, designa-
damente em matéria de concorrência, ao nível
de controlo do risco sistémico, que impeçam a
extensão do regime de passaporte (art. 67.º/4 da
Diretiva) e às recomendações adotadas.
E, com efeito, no dia 30 de julho de 2015, a
ESMA apresentou um documento com as refe-
ridas recomendações110, ao longo do qual um
conjunto de fatores111, em particular a proteção
de investidores, a existência de boas relações de
cooperação entre as autoridades de supervisão
da UE e de países terceiros, bem como a inexis-
tência de obstáculos que impeçam uma autori-
dade de supervisão da UE de levar a cabo as
suas competências de supervisão, designada-
mente obstáculos legais à partilha de informa-
ções entre autoridades, são avaliados. Foi igual-
mente tido em linha de conta, na análise da
ESMA, a existência de risco de perturbação de
107- O Considerando 4 da Diretiva identifica expressamente o estabelecimento de “um mercado interno dos GFIAs e um enquadramento regulamentar e de supervisão harmonizado e rigoroso das actividades exercidas na União por todos os GFIA” como um dos seus principais objetivos. 108- Pode ler-se no Considerando 4 da Diretiva a seguinte passagem, elucidativa quanto aos diferentes passos a dar com vista a um alargamento do regime de passaporte: “[p]revê-se que, após um período transitório de dois anos, seja aplicável, após a entrada em vigor de um acto delegado adoptado pela Comissão para esse efeito, um sistema de passaporte europeu harmonizado aos GFIAs extra-UE que desenvolvam actividades de gestão ou comercialização na União e aos GFIAs da UE que giram FIAs extra-UE. Este regime harmonizado deverá coexistir, durante um período transitório suplementar de três anos, com os regimes nacionais dos Estados-Membros, sob reserva de algumas condições harmonizadas mínimas. Após este período de coexistência de três anos, deverá cessar a vigência dos regimes nacionais após a entrada em vigor de um novo acto delegado adoptado pela Comissão para este efeito.” 109- Tem sido defendido que o alargamento do âmbito de aplicação do regime de passaporte tem por objetivo promover a deslocalização para a UE de fundos estabelecidos em países terceiros. Neste sentido, Bessa, T., Crise, regulação e supervisão de hedge funds, Revista de Direito das Sociedades., n.º 3-4, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2010. 110- ESMA, ESMA’s advice to the European Parliament, Council and Commission on the application of the AIFMD passport to non-EU AIFMs and AIFs, ESMA/2015/1236, 30 de julho de 2015. 111- ESMA, AIFMD passport and third country AIFMs, Call for evidence, ESMA/2014/1340, novembro de 2014, p. 7.
Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 105
106 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
mercado e de violação das regras de concorrên-
cia, suscetíveis de representar uma desvanta-
gem concorrencial para os FIA estabelecidos na
UE e, bem assim, a existência e adequação dos
mecanismos de monitorização de riscos sistémi-
co em vigor no país terceiro.
Ora, o sentido das aludidas recomendações não
é, de todo, linear, na medida em que, das várias
jurisdições de países terceiros analisadas, ape-
nas algumas foram consideradas como assegu-
rando um grau de proteção adequado que lhes
permitisse estender o regime de passaporte. No
entanto, em vários casos, designadamente no
caso da jurisdição dos Estados-Unidos da Amé-
rica, a ESMA recomenda as instituições euro-
peias a adiar a respetiva decisão de extensão
do regime de passaporte até que sejam assegu-
radas condições de proteção dos investidores e
adotadas medidas que lidem adequadamente
com as distorções de concorrência registadas112.
Aguarda-se que, relativamente às jurisdições
onde foram identificados alguns obstáculos à
aplicação do regime de passaporte, sejam adota-
das medidas destinadas a acautelar as preocupa-
ções manifestadas pela ESMA, evolução essa
que será monitorizada pela ESMA, com vista a
adotar novas recomendações, uma vez decorri-
do um período adequado.
No seguimento de recomendações por parte da
ESMA em sentido favorável, caberá à Comis-
são adotar os correspondentes atos delegados
(art. 67.º/5 da Diretiva) no prazo de três meses
sobre o recebimento de recomendação e parecer
favorável da ESMA. Ao adotar os atos delega-
dos em conformidade com a recomendação da
ESMA, deverá fixar uma data para que os vá-
rios EM procedam à aprovação ou entrada em
vigor de regras que permitam que as normais
relativas à comercialização com passaporte por
parte de FIA extra-UE por GFIA da UE (arts.
35.º, 37.º a 41.º, todos da Diretiva) passem a ser
aplicáveis em toda a UE.
Os procedimentos previstos na Diretiva para a
comercialização na UE (de FIA extra-UE e de
FIA da UE por GFIA extra-UE) ao abrigo do
regime de passaporte – no futuro e apenas após
emissão de recomendação favorável por parte
da EMSA e da subsequente adoção pela Comis-
são de ato delegado que lhe dê seguimento –
segue as mesmas linhas do regime de passapor-
te atualmente em vigor para a comercialização
de FIA da UE por GFIA da UE. De acordo com
este regime, quando um GFIA da UE pretender
comercializar um FIA extra-UE (art. 35.º da
Diretiva) ou um GFIA de país terceiro pretenda
comercializar FIA da UE (art. 39.º da Diretiva)
ou um FIA extra-UE (art. 40.º da Diretiva),
sempre junto de investidores profissionais, de-
verá notificar a autoridade de supervisão do seu
EM de origem (no caso dos GFIA da UE) ou de
referência (no caso dos GFIA de países tercei-
ros). Tal notificação deverá sempre vir acompa-
nhada de toda a documentação listada no Anexo
IV da Diretiva, a qual será transmitida à autori-
dade de supervisão do EM de destino, no prazo
de vinte dias úteis.
Conforme resulta do exposto, o regime de noti-
ficação entre autoridades de supervisão compe-
tentes segue o regime de passaporte atualmente
previsto para a comercialização por GFIA da
UE de FIA da UE. Importa, apesar de tudo, des-
tacar um conjunto de diferenças assinaláveis.
Antes de poderem beneficiar do regime de pas-
saporte, os GFIA da UE e de país terceiro, con-
soante aplicável, deverão encontrar-se devida-
mente autorizados. Para além disso, os seguin-
tes requisitos adicionais deverão ser cumpridos:
(i) terem sido acordados mecanismos de coope-
ração entre as entidades de supervisão do EM
112- ESMA, ESMA’s advice to the European Parliament, Council and Commission on the application of the AIFMD passport to non-EU AIFMs and AIFs, ESMA/2015/1236, 30 de julho de 2015, p. 24.
107 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
de origem (ou de referência, consoante aplicá-
vel), do GFIA e do país terceiro onde o FIA se
encontra estabelecido; (ii) o país terceiros onde
o FIA está estabelecido não fazer parte da lista
de Países e Territórios Não Cooperantes do
Grupo de Ação Financeira contra o branquea-
mento de capitais e o financiamento do terroris-
mo; e (iii) o país terceiro vertente ter assinado
com o EM de origem (ou de referência, conso-
ante aplicável) do GFIA autorizado e com cada
um dos EM onde pretende comercializar um
acordo em conformidade com o Modelo de
Convenção Fiscal sobre o Rendimento e o
Património da OCDE (arts. 35.º, 39.º e 40.º).
Acresce ao exposto a elevada relevância que a
autoridade de supervisão do EM de referência
assume neste contexto. É-lhe confiada a impor-
tante incumbência de conceder a autorização
aos GFIA de países terceiros, a qual assume um
peso claramente acrescido na eventualidade de
o regime de passaporte ser, conforme se aguar-
da, alargado aos GFIA de países terceiros. Nes-
te contexto, o EM de referência assumirá a fun-
ção de porta de entrada no mercado único da
UE e sobre os seus ombros recairá a responsa-
bilidade de controlar o cumprimento integral do
disposto na Diretiva.
A determinação do EM de referência competen-
te poderá introduzir alguma incerteza para os
GFIA extra-UE, os quais, para além das autori-
dades de supervisão dos seus países de origem,
serão regulados pelo EM de referência. Tal ele-
mento poderá nomeadamente ter como conse-
quência prática que os GFIA não escolham os
EM de referência que lhes seriam eventualmen-
te mais favoráveis113.
Os GFIA de país terceiro que pretendam comer-
cializar FIA na UE deverão ter um representan-
te legal estabelecido no EM de referência, que
servirá de ponto de contacto oficial do GFIA no
seio da UE (art. 37.º/3 da Diretiva). Assim, e
atenta a elevada relevância que assume como
porta de entrada no mercado único da UE, com-
preende-se a exaustividade com que o legisla-
dor da UE procurou gizar os critérios aplicáveis
para a determinação do EM de referência com-
petente (art. 37.º/4 da Diretiva)114. E compreen-
de-se que o legislador tenha previsto que, na
eventualidade de discordância por parte de uma
autoridade de supervisão de outro EM, as auto-
ridades de supervisão relevantes possam sub-
meter a questão à apreciação da ESMA.
Visa-se, deste modo, estabelecer um mecanis-
mo que permita, por um lado, garantir a harmo-
nização da interpretação das normas em causa
e, ao mesmo tempo, prevenir eventuais entraves
às liberdades de circulação que, de outra forma,
poderiam decorrer de uma interpretação da Di-
retiva não conforme com o Direito da União
Europeia. Uma vez trazida a questão perante a
EMSA, esta entidade poderá fazer uso da com-
petência que resulta do art. 19.º do Regulamen-
to 1095/2010, a saber, a resolução de diferendos
entre autoridades competentes em situações
transfronteiriças. Ao abrigo destas competên-
cias, a ESMA prestará assistência às autorida-
des de supervisão em causa na procura de um
acordo, fixando um prazo para que se chegue a
um consenso, findo o qual poderá adotar uma
decisão vinculativa que ponha termo ao diferen-
do.
No caso do RGOIC, a adaptação à adoção do
referido ato delegado pela Comissão far-se-á,
como decorre do artigo 5.º da Lei n.º 16/2015,
que aprova o RGOIC, com a entrada em vigor
dos arts. 234.º e 235.º do mesmo diploma, arti-
gos esses que procederão à transposição do
113- Jaecklin, S, Gamper, F., e Shah, A., Domiciles of Alternative Investment Funds, Oliver Wyman, Financial Services, 2011, p. 6. 114- A Comissão esclarece que, na eventualidade de mudar o EM de referência, nomeadamente por força de uma alteração da estratégia de comercialização do GFIA, não recai ainda sobre o GFIA a obrigação de apresentar um novo pedido de autorização à autoridade de supervisão do novo EM de referência. Isto porque, na sequência da notificação efetuada para o efeito pelo GFIA à autoridade de supervisão junto da qual se encontra autorizado, a autoridade de supervisão do antigo EM de referência terá que transmitir à autoridade de supervisão do novo EM de referência uma cópia do processo de autorização (art. 37.º/11). Deverá considerar-se que uma autorização nova apenas se revelará necessária quando a autorização inicial já não cubra as atividades desenvolvidas pelo GFIA. A aludida resposta da Comissão poderá ser consultada através do seguinte link, acedido no dia 27 de junho de 2015: http://ec.europa.eu/yqol/index.cfm?fuseaction=question.show&questionId=1197
Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 107
108 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
regime jurídico que vimos descrevendo e ao
correspondente alargamento do regime de pas-
saporte.
b. Eventual extinção do regime
de colocação particular junto
de investidores profissionais
Assumindo que no seguimento da recomenda-
ção da ESMA o regime de passaporte será alar-
gado, conforme descrito supra, durante um perí-
odo transitório o regime de passaporte e o regi-
me de colocação nacional coexistirão.
No entanto, a Diretiva prevê a cessação de apli-
cação da legislação dos EM que consagre a pos-
sibilidade de comercializar FIA através dos re-
gimes nacionais de colocação particular após o
referido período, nos termos de ato delegado a
adotar pela Comissão (art. 66.º/4). Na verdade,
três anos sobre a (possível) entrada em vigor do
ato delegado da Comissão referido supra (i.e.,
até julho de 2018), a ESMA transmitirá ao Par-
lamento Europeu, ao Conselho e à Comissão (i)
um parecer no qual fará uma apreciação da ex-
tensão do regime de passaporte referida supra e
(ii) deverá recomendar as instituições referidas
quanto à cessação da existência de regimes na-
cionais de colocação particular de FIA nos dife-
rentes EM (art. 68.º/1).
Num cenário em que a recomendação referida
em (ii) aconselhe a eliminação dos regimes na-
cionais de colocação particular de FIA, a Co-
missão deverá adotar, dentro de um prazo de
três meses, os atos delegados necessários para
lhe dar seguimento (art. 68.º/5 da Diretiva). Os
atos delegados referidos deverão indicar o pra-
zo concedido aos EM para que cessem o regime
de colocação particular. Por outras palavras,
findo o referido período a comercialização de
FIA nos diferentes EM apenas será possível ao
abrigo do regime de passaporte (art. 68.º/6 da
Diretiva).
Capítulo VII. Balanço Final
e Conclusão
1. O debate relativo à responsabilidade dos
organismos e investimento alternativo pela
crise financeira do sub-prime parece estar
longe de ter uma resposta final. Contudo,
independentemente da conclusão resultante
de tal discussão, é inegável a importância da
crise financeira como catalisador para a ver-
dadeira reforma regulatória que transfigurou
o sistema financeiro e que não deixou de
parte os organismos de investimento alterna-
tivos.
2. Neste contexto, a aprovação da Diretiva,
vista como um dos diplomas legislativos da
UE dos tempos recentes com maior impacto
no sistema financeiro, veio estabelecer um
elevado nível de regulação do exercício da
atividade de gestão de organismos de inves-
timento alternativos.
3. A regulação prevista na Diretiva tem duas
vertentes: regula a dinâmica do governo so-
cietário da própria sociedade gestora e regu-
la a atuação desta sociedade no âmbito do
sistema financeiro e, designadamente, a sua
interação com o investidor.
4. A Diretiva foi recentemente transposta para
o ordenamento jurídico nacional através da
aprovação do RGOIC. No entanto, tem sido
considerado que tal transposição não teve
em Portugal o impacto particularmente
significativo que teve noutros EM, uma vez
que a atividade de gestão já se encontrava
regulada no RJOIC e no RJFII, ambos revo-
gados com a entrada em vigor do RGOIC.
5. Todavia, é inegável a importância das altera-
ções introduzidas nas normas reguladoras da
atuação dos gestores de fundos de investi-
mento alternativo com a entrada em vigor do
RGOIC, que veio prever um regime conside-
ravelmente mais garantístico, na perspetiva
do investidor, introduzindo importantes
109 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
deveres de transparência, que têm o potenci-
al para modificar o próprio modus operandi
das entidades gestoras. Por outro lado, a in-
trodução de uma apertada malha regulatória
acarreta consideráveis compliance costs, que
poderão ter um impacto nos retornos dos
investidores.
6. O regime introduzido pela Diretiva parece
dividir atenções entre a tutela dos direitos do
investidor e a garantia da estabilidade do
sistema financeiro. Sendo o primeiro objeti-
vo, à partida, menos premente, tendo em
consideração o facto de a comercialização
cujas portas o regime de passaporte vem
abrir ser destinada em exclusivo aos investi-
dores qualificados, já a estabilidade do siste-
ma financeiro revelar-se-ia, a nosso ver, um
valor fundamental mais relevante. Ora, a não
definição de forma clara de qual o valor fun-
damental preponderante que o regime sob
análise visa tutelar tem o potencial para re-
duzir significativamente a correspondente
eficácia regulatória. Refira-se, designada-
mente, que se o objetivo principal tutelado
fosse o da estabilidade financeira, seria ques-
tionável se não se revelaria suficiente limitar
o regime em causa aos fundos e entidades
gestoras sistemicamente relevantes, i.e., fun-
dos com elevada dimensão, altamente ala-
vancados, com caráter transfronteiriço.
7. Não obstante, independentemente das críti-
cas que lhe possam ser apontadas, a abertura
do mercado interno para a comercialização
de FIA com a implementação do regime de
passaporte constitui o inegável trunfo do
regime em causa e que poderá conhecer uma
importante extensão no seguimento das re-
comendações da ESMA.
8. A implementação do regime analisado ao
longo do presente trabalho veio contribuir
para robustecer o sistema financeiro e para
harmonizar um setor até então deixado de
parte da legislação europeia. Resta, contudo,
ainda muito caminho pela frente na tentativa
de harmonizar a legislação dos vários EM e
deste modo abrir os mercados nacionais, a
começar pela harmonização da regulação
diretamente aplicável aos próprios fundos de
investimento alternativo. Mas um passo de
cada vez.
Da Diretiva dos Gestores de Fundos de Investimento Alternativo...: 109
110 : Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
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52ª Edição dos Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários
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