cadernos de fotografia nº2

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Cadernos de Fotografia O Tempo na Fotografia volume 2

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O Tempo na Fotografia

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Cadernos de Fotografia

O Tempo na Fotografia

volume 2

Organizadores

Sinara SandriCarlos Carvalho

Cadernos de FotografiaFestival Internacional de Fotografia de Porto Alegre

O Tempo na Fotografia

Volume 2

Brasil ImagemPorto Alegre, 2010

Cadernos de Fotografia 5

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

T288 O Tempo e a Fotografia / organizadores : Sinara Sandri, Carlos Carvalho – Porto Alegre : Brasil Imagem, 2010. 88 p. (Col. de Fotografia, v. 2)

1. Fotografia – Eventos. 2. Tempo – Fotografia. I. Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre (4 : 2010 : Porto Alegre). II. Sandri, Sinara. III. Carvalho, Carlos. IV. Série CDU – 77(061.3)

Bibliotecária Maria Amazilia Penna de Moraes Ferlini – CRB-10/449

Distribuição gratuita. O conteúdo pode ser reproduzido mediante autorização e citando a fonte. Todos os direitos reservados a Brasil ImagemRua Sofia Veloso, 168. 90.050-140 – Porto Alegre – BrasilTel: + 55 51 [email protected]

O 4º FestFotoPoA foi realizado em abril de 2010, no Santander Cultural, em Porto Alegre. Teve como patrocinador máster o Banco Santander e como patrocinadora a Funarte, através de convênio Funarte/Alice.

Os textos dos seminários tiveram como base a transcrição das palestras. Qualquer imprecisão nas intervenções de Pio Figueroa, Rosangela Rennó e Rubens Fernandes Junior são responsabilidade da editora, já que não passaram pela revisão dos autores. Impresso no BrasilPrimavera de 2010

Apresentação ..........................................................................................................................................7

1 - Quantos tempos tem a fotografia?

Rubens Fernandes Junior ...................................................................................................................9

2 - Por onde andará Henri Cartier-Bresson?

Zeca Linhares ..........................................................................................................................................13

Eder Chiodetto .......................................................................................................................................23

3 - O tempo e o espaço no território da fotografia

Rubens Fernandes Junior ...................................................................................................................33

Cláudia Linhares Sanz ..........................................................................................................................34

Pio Figueroa ............................................................................................................................................44

4 - O Arquivo Universal

Rosangela Rennó ...................................................................................................................................57

TEXTOS

5 - Tempo para nada, só para fazer fotografias

Cláudia Linhares Sanz ..........................................................................................................................69

6 - Tempos pela fotografia, mesmo que intempestivos

Cia de Foto ...............................................................................................................................................83

Capa e projeto gráfico: Santo Expedito Design e Editoração

Revisão e edição – Sinara Sandri (Reg. Prof. 8073 – DRT/RS)

Texto de acordo com a nova ortografia

Foto da capa: Glyndebourne, Inglaterra (1955) / Henri Cartier-Bresson (Fondation HCB)

Cadernos de Fotografia 7

Apresentação

A fotografia atravessou séculos protagonizando polêmicas. Como é próprio de sua natureza, continua inquieta e desafiadora, cumprindo com empenho o destino de borrar fronteiras. Seu estatuto vem sendo sistematicamente vasculhado e, a cada nova investida, abrem-se caminhos inéditos. Aliando-se ao esforço de pensadores, críticos e fotógrafos, o Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre colocou-se o desafio de pensar o tempo como elemento indutor da realização fotográfica e abriu espaço para uma conversa que demonstrou enorme potencial criativo.

A abordagem ao tema começou com um artigo de Rubens Fernandes Junior, publicado na imprensa local como texto preparatório à quarta edição do Festival. Durante o seminário “O Tempo na Fotografia”, tivemos a participação de Eder Chiodetto e Zeca Linhares discutindo a atualidade da presença fundadora e incontornável de Cartier-Bresson na fotografia mundial. Cláudia Sanz mostrou a fotografia como fundadora de uma nova temporalidade, enquanto Pio Figueroa apresentou os caminhos de experimentação da Cia de Foto, em um debate que também teve a participação de Rubens Fernandes Junior. Para fechar a série, a criadora Rosangela Rennó percorreu seu trabalho deixando ver motivações do seu processo de resignificação de imagens.

Cláudia Sanz e a Cia de Foto colaboraram ainda com dois artigos relacionados ao tema e incluídos nesta publicação como anexo. É imprescindível agradecer a fotógrafa Martine Franck, presidente da Fundação Henri Cartier-Bresson, por autorizar a exibição e publicação das 11 imagens de Bresson, selecionadas por Zeca Linhares e que constam neste caderno. A gentileza proporcionou um momento de fruição da obra de Bresson e aumentou nossa já notória admiração por Martine.

Boa leitura.

Cadernos de Fotografia 9

Quantos tempos tem a fotografia?1

A terceira margem do tempo fotográfico. O território da fotografia é o tema geral escolhido pela curadoria da quarta edição do Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre. Considerou-se como a primeira margem o conceito de “instante decisivo”, de Henri Cartier-Bresson, e como a segunda margem, “o tempo alongado” da experiência construtivista da modernidade tardia da fotografia brasileira. Como a terceira margem, o FestFotoPoA propõe uma reflexão sobre a noção do tempo na fotografia contemporânea, fruto não só das novas tecnologias de captação, tratamento de imagem e distribuição, mas também dos diferentes procedimentos adotados atualmente para a criação da imagem.

A representação fotográfica associa-se ao tempo. Temos o tempo material, histórico, que nos remete ao tempo da realização da obra. Olhamos uma paisagem de Marc Ferrez e nos deslocamos para aquele tempo mágico que podemos momentaneamente experimentar. Aliás, esse pode ser o tempo da contemplação da paisagem que tem o tempo material, responsável pelo deslocamento. O pesquisador português Pedro Miguel Frade defende a existência de uma fotografia do “espanto”,

1- Texto publicado no Caderno Cultura, do jornal Zero Hora (9 de abril de 2010).

Rubens Fernandes JuniorPesquisador e crítico de fotografia

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pois entende que os primeiros daguerreótipos exigiam um tempo alongado de exposição que obrigava os retratados a se postarem de olhos arregalados para a estranha máquina de captação. Esse olhar construído, decorrente das exigências tecnológicas, nos permite ter a percepção exata do longo tempo de exposição.

Se adentrarmos um pouco mais pela história da fotografia, encontramos as experiências de Edward Muybrigde (1830-1904) e Étienne-Jules Marey (1830-1904) que buscavam uma fotografia que iconizasse o tempo. Ou seja, no caso de Muybridge o movimento flagrado em sequências de imagens que anunciavam o pré-cinema e, no caso de Marey, o movimento no mesmo suporte, dispositivo denominado de cronofotografia que antecipou o futurismo italiano e seu fotodinamismo e, posteriormente, as experiências de Marcel Duchamp. Na realidade, os fotógrafos buscavam pela decomposição da imagem, pela análise do movimento e pela multiplicação e seriação de sequências, tornar visível aquilo que o olho não vê, mas a câmera registra, com a finalidade de congelar o instante preciso. Tratava-se das primeiras experiências de reduzir ao máximo o tempo de exposição para aproximar-se da mítica ideia da instantaneidade da fotografia.

A fotografia inaugurou a era das imagens técnicas, trazendo novas conceituações e questionamentos sobre como e por que olhar o mundo visível. E claro que flagrar o tempo mínimo fazia parte dessas propostas. Mas nosso questionamento é tentar entender como o tempo é percebido pelo espectador. Por exemplo, a experiência de ver um álbum de fotografia familiar, que reúne cronologicamente as imagens de uma vida inteira, produz uma sensação incrível de deslocamento e uma emoção particular, já que a fotografia permite reviver uma história não vivida. O movimento de ir ao passado e voltar ao presente nos dá uma consciência histórica do tempo que nos permite confrontar os tempos das fotografias com o tempo presente. Uma dolorosa e imperdível experiência. Por isso mesmo, Denis Roche acredita que a fotografia é um “depósito do saber” que permite visualizar as diferentes camadas - não só dos tempos congelados, mas também a diversidade dos materiais empregados - e perceber a força da criação autônoma a serviço da informação, da fabricação de imagens, da memória, da resistência, do desejo.

Depois disso, podemos saltar para a experiência do “instante decisivo”. Defendida por Henri Cartier-Bresson, a famosa articulação entre a geometria da cena e o momento do registro, traz a noção complexa do caráter instantâneo da fotografia, potencialidade até então dormente da linguagem, que foi explorada exaustivamente pelo fotojornalismo engajado com as certezas do documento. Por outro lado, quando revisitamos as fotografias de André Kértèsz e Robert Doisneau, é perceptível o controle excessivo do tempo da cena sem descaracterizar a beleza do registro. Roland Barthes não apreciava esses fotógrafos justamente por esse excesso de controle. Lembramos que, no livro “A Câmara Clara”, Barthes discorre que, em relação ao tempo, “o nome da fotografia é simples, banal, sem profundidade: isto foi”. Ele percebeu a diferença exata da diferença entre a fotografia do fotógrafo e a do espectador.

A fotografia moderna e a contemporânea exploram diferentemente a noção do tempo. Se tomarmos o dadaísmo, por exemplo, podemos entendê-lo na fotomontagem, como uma superposição de tempos – o tempo da metrópole, o tempo das máquinas, o tempo da simultaneidade. A síntese e o caos propostos pela fotomontagem representam a metrópole moderna e buscam provocar uma sensação múltipla – explosão de pontos de vista e de níveis imagéticos emaranhados e complexos.

Por outro lado, a fotografia contemporânea exercita o tempo de diferentes maneiras. Duane Michals preferiu estender a ideia de tempo criando sequências de fotografias, na verdade pequenas narrativas que obrigam o espectador, ao passar de uma imagem para outra, a concretizar o tempo de passagem. Anteriormente, a fotógrafa americana Berenice Abbott defendeu a ideia de que “o fotógrafo é o ser contemporâneo por excelência; através de seus olhos, o presente se torna passado”. Diante dos nossos olhos, o tempo passado se torna presente e nos permite mergulhar numa paisagem desconhecida para explorarmos avidamente o tempo não vivido. Por outro lado, Robert Frank defende magistralmente a ideia que fotografia é o registro de “momentos intermediários”, ou seja, o momento em que o fotógrafo revela o equilíbrio e surpreende a realidade desprevenida.

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Com toda essa argumentação, podemos entender a abrangência e a atualidade do tema escolhido para perpassar a quarta edição do FestFotoPoA. Ao conhecermos os trabalhos dos artistas presentes no festival – Thomaz Farkas, Walter Carvalho, Jacqueline Joner, Guy Veloso, Denise Helfestein, Felipe Hellmeister, Fernando Schmitt, João Castilho, Cia de Foto, entre outros –, entramos em contato com os diferentes tempos da fotografia enquanto momento de interrupção, de deslocamento, de interrogação, de ruptura cognitiva, vai se perdendo para dar vez a uma fotografia perspicaz, que abdica o seu papel memorialístico e documental para dar espaço para pulsações visuais provocativas e comoventes. Quase sempre atemporais.

Por onde andará Henri Cartier-Bresson?

A ideia que norteou a realização de uma pequena seleção da obra de Cartier-Bresson foi a busca do que seria eterno ou atual no seu trabalho. Que imagens do Cartier-Bresson estariam presentes ou poderiam ser vistas como uma foto atual, feita por esses dias? Fiz uma seleção de algumas imagens e o trabalho me levou a pensar sobre questões de linguagem.

Cartier-Bresson sempre se colocou como fotojornalista. Para o fotojornalista, pensar em uma imagem eterna é pensar em uma imagem sem legenda, uma fotografia que exista por ela mesma. Pensar nessas imagens me fez avaliar o que é eterno e o que é vício. Assim como todo fotógrafo, Cartier-Bresson possui seus vícios de linguagem: o respeito absoluto pelo negativo e uma milimétrica perfeição. Não há corte posterior ou em laboratório e as imagens sempre têm uma margem preta significando que todo o negativo foi ampliado. Tem uma ordem geométrica bem renascentista já que a origem dele está na pintura. Quando jovem frequentou o ateliê de André Lhote, entre 1927 e 1928, e toda pintura que aprendeu era clássica com ênfase na divina proporção e na sequência numérica de Fibonacci1. Todo fotógrafo tem vícios que podemos pensar que é estilo. Entretanto, vício é uma coisa e linguagem é outra. Pensar em uma fotografia que possa ser eterna é pensar na sua essência.

Zeca LinharesFotógrafo, professor e mestre em História pela UFRJ

1- Sequência numérica proposta pelo matemático Fibonacci (1170-1240) em que o terceiro número é resultado da soma dos dois anteriores. A divisão dos termos resulta em um número constante, o número de ouro (1,61) e em uma

proporção presente em vários elementos da natureza que garante o melhor aproveitamento do espaço horizontal.

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Cartier-Bresson é muito transparente por ser um dos raros fotógrafos que escreveu e pensou a sua fotografia. Em 1952, lançou o livro “Images à la Sauvette” (Paris, Editions Verve, 1952) onde definiu no prefácio o que é e como se faz fotojornalismo - ou fotoreportagem como gostava de afirmar - e porque contar uma história com imagens. O título, imposto ou não imposto, vem com a ideia do instante decisivo.

Durante muito tempo, pensou-se que o instante decisivo tinha alguma relação com emoção, algo como alguém caindo de um prédio e se esborrachando no chão. Contudo, não era esse o seu instante. Para ele, o instante decisivo era uma espécie de organização geométrica perfeita, algo que só poderia ser visto por um único olho em função da perspectiva percebida e de um posicionamento geométrico. Essa ideia veio um pouco da sua juventude de pintor nos anos 20, quando participou do movimento surrealista frequentando cafés e fazendo andanças por Paris.

A procura dos surrealistas é pelo objeto perfeito, pela obra perfeita. É sempre a procura pelo “maravilhoso”, pela busca do acaso de linhas e formas. A ideia do instante decisivo do Cartier-Bresson é o instante do maravilhoso, momento em que percebemos uma harmonia geométrica. Tudo fica enquadrado, sem intervenções ou poluições na imagem. Ele consegue arrancar do todo que enxerga uma proporcionalidade surrealista que remete muito à proporcionalidade do Renascimento e ao objeto dito perfeito.

O segundo ponto importante para pensarmos a essência de Cartier-Bresson é ele próprio. Formado numa escola católica, sempre teve horror a padres e religiões tendo mencionado em várias entrevistas e artigos que odiava aquela escola, suas obrigações e hábitos. Talvez por isso tenha refutado durante toda a sua vida qualquer engajamento político e partidário. Sempre se apresentava como um humanista. No final da vida, disse brincando e finalizando uma das últimas entrevistas “Viva Bakunin!”, porém odiava tudo que era moldado e preso.

Por volta de 1954, caiu em suas mãos o livro escrito por um alemão, Eugen Herrigel, que foi para o Japão nos anos 20 ensinar filosofia como parte de um intercâmbio universitário. Herrigel tentou entender a sociedade japonesa a partir da prática do Kyudô (arco e flecha), uma das sete artes do Japão. Bresson trouxe esse pequeno livro, traduzido no Brasil como “A

Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen” (Editora Pensamento), e introduziu essa ideia na fotografia. Nos anos 60, quando comecei a fotografar, esse pequeno livro era bíblia de todo fotógrafo iniciante. Todo mundo lia e nos imaginávamos no mundo, nas ruas, na Magnum.

Cartier-Bresson incorpora um pouco dessa prática zen do arco e flecha, de esticar a flecha e acertar o alvo. A ideia do zen de que o alvo e o arqueiro se transformam numa mesma coisa e, por isso, a flecha dispara. Acertar o alvo não é importante, importante é conhecer o objeto. Esse conceito terá grande influência em toda a sua vida. O horror por qualquer pessoa engajada política ou religiosamente o leva a ser um humanista e, sobretudo, a retratar o ser humano sempre numa posição digna. Na sua fotografia, não há muito conflito ou mortes e lamentações, mas apenas essa relação humana entre o objeto e o fotógrafo, o alvo e a flecha.

Ele tem um livro belíssimo sobre a China2, editado com o material feito em 1949. Foi praticamente todo feito em Xangai, quando a cidade estava sendo atacada pelas tropas de Mao Tsé-tung. A cidade de Xangai sofreu o maior bombardeio que se conhece na história de todas as guerras. Foram três dias consecutivos de bombas caindo do céu. Ele era o único fotografo estrangeiro lá e não há nenhuma morte no livro, nenhuma tragédia. Tem gente dormindo, um homem comendo no meio da rua, pessoas andando, a cidade funcionando... Há sempre essa intenção, esse olhar muito confiante e muito amigo do ser humano.

Ele achava que, para fotografar, era preciso ter certa compreensão, uma relativa confiança mútua, uma ligação entre a flecha e o alvo. O seu texto, O Instante Decisivo, prefácio de seu primeiro livro inteiramente fotográfico, Images à la Sauvette, inicia com uma declaração de que nunca foi um globetrotter e que não sabia chegar a um lugar, tirar a bolsa de fotógrafo e sair fotografando. Precisava chegar, sentar em um boteco, tomar uma cerveja, passar uns dois dias, conhecer o lugar e as pessoas para poder fotografar.

2 - 1964. China. Fotos e notas sobre os 15 meses em que esteve na China. Texto de Barbara Muller. Bantam Books, New York.

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Para demonstrar esta ideia, selecionei 11 fotografias do Cartier-Bresson capazes de ultrapassar esse tempo. Fiz essa seleção pensando no que existe ainda hoje de Bresson e no que ele deixou. Sem dúvida, foi o maior fotógrafo da história da fotografia. Talvez não o mais completo. Penso, sobretudo, em André Kertèsz (1894-1985) que foi um fotógrafo mais completo por ter feito um pouco de tudo, fotografia de rua e fotografia de estúdio. Entretanto, sem a menor dúvida, Cartier-Bresson foi o maior fotógrafo da história da fotografia. Era uma pessoa extremamente humana e apaixonada pelo ser humano, com um olhar sempre positivo sobre o destino dos homens. É muito interessante ouvir que determinado fotógrafo é “bressoniano”. Na minha opinião, não há “bressoniano”. Pode haver pessoas com os mesmos vícios e a mesma estética, mas não com a mesma essência. A essência de Cartier-Bresson passa por essa procura do maravilhoso e, sobretudo, pelo respeito ao objeto fotografado. Passa por criar uma relação com o objeto fotografado, um vínculo, uma flecha em harmonia com o alvo.

O instante único (Paris, 1932)

O instante único de um horizonte. Sem dúvida alguma, Cartier-Bresson trabalhava como se tivesse um “nível de bolha” de pedreiro sobre a cabeça. A grade ao fundo sugere uma linha de infinito e nos leva a perceber que o homem está saltando a poça.

O recorte (Inglaterra)

Ponto de interrogação, do recorte. Ao arrancar essa parte de um todo, ele provoca no recorte esse ponto, sugere caminhos e destinos da aristocracia inglesa, no sempre belo gramado inglês.

A espera (Hyères, França 1932)

A espera, o arqueiro, o instante perfeito, o equilíbrio. Aqui temos a ideia do maravilhoso, uma escada perfeita e tudo mais ou menos definido, todos os espaços preenchidos.

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O ambiente (escultor Bruno Giacometti e sua estátua, França 1971)

Bruno Giacometti era seu grande amigo. Temos a ideia do ambiente, ou seja, jogar com os planos. Isso é extremamente atual e lembra uma fotografia do Flávio Damm.

Fotografia é Luz (México, 1964)

Fotografia é Luz, no México. É um corte perfeito e um jogo de luz onde a menina só existe onde há somente uma parede. Forma, volume, um jogo perfeito de luz e sombra, a passagem claro-escuro renascentista.

O recorte 2 (México, 1934)

Um recorte também bem surrealista, com objetos e recortes onde o que mais importa é a forma.

A Espera 2 (Yvry sur Seine, França 1955)

A Espera 2 é muito parecida com aquela da bicicleta. Passa um cachorro e preenche o canto esquerdo. Sentimos o nível do pedreiro na cabeça. Os seus horizontes, mesmo os imaginários, são sempre retos.

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A grande angular (rio Marne, Paris 1938)

Uma das raras fotografias de Cartier-Bresson em grande

angular. Para ele, a grande angular é a 35 mm, uma das

tradições que vem do André Lhote e da sua escola de

pintura, pelo menos dos quatro anos iniciais como jovem

pintor. Ele voltaria a pintar, quando se aposentou. A

ideia bem renascentista de representar o que estamos

habituados a ver e que passa pelo olhar de um olho

humano. A lenta normal para o filme 35 mm é a lente 50

mm. Cerca de 90 por cento do material do Cartier-Bresson

é feito com o olhar do olho humano, os 46° da visão

humana. Essa é uma das raras imagens que não é feita

em 50 mm, mas tem o equilíbrio perfeito. Se medirmos

exatamente a localização do copo de vinho, perceberemos

que ele é central: a distância entre o copo de vinho e os

extremos das duas fotos é o meio milimétrico. O copo e o

vinho iniciam a leitura com o barco supondo o horizonte.

Amarras geométricas (Atenas, Grécia 1953)

As amarras geométricas. Para alcançar este maravilhoso objeto perfeito, sempre utilizava alguma coisa amarrada. Nesse caso, as duas portas estão amarradas bem no canto, dando impressão que o prédio está torto e que a rua desce porque as portas estão retas, formando um ângulo de 90 graus. Observamos que são duas mulheres, duas portas, duas estátuas como, ainda, a porta que amarra a fotografia também é dupla.

Sem drama (Índia 1947)

Sem drama. É uma das únicas em que percebemos o seu humanismo. Hoje em dia, o fotógrafo iria jogar uma grande angular no o rosto da mulher para retratar a sua expressão de dor, de choro daquela mãe com a criança passando fome porque essa é a linguagem atual. Ele não, ele faz a criança e coloca magnificamente uma roda lá no alto preenchendo o canto superior. O drama e a dor passam a ser uma suposição do leitor.

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O tiro (Torcello, Itália 1954)

É o tiro zen budista. A torre é central e se passarmos duas

diagonais elas irão cruzar a torre. Ele está dentro de uma

gôndola e o balanço da água oferece uma dificuldade

extra, mas o horizonte imaginário é retilíneo. Observamos

a espera pelo clique, o tiro perfeito do arqueiro que

estica o arco e espera o momento para soltar a flecha. O

momento acontece quando as distâncias entre a ponta

da gôndola, a torre e a menina são exatamente iguais.

Se colocarmos uma régua, poderemos ver que elas são

iguais. Há um momento preciso de espera que está entre

a gôndola, a torre e a menina.

O instante decisivo e o negativo inteiro são os seus vícios

de linguagem. Selecionei algumas fotos que mostram

esses vícios de linguagem e fazem parte do clássico de

sua obra. Saímos do maravilhoso e entramos no instante.

Falar sobre Cartier-Bresson virou um pouco uma sina na minha vida desde que fiz a curadoria da exposição no SESC Pinheiros, em São Paulo, no final de 2009. Foi uma grande mostra que ficou em cartaz durante três meses. Além da exposição de fotos do Bresson, fizemos um ciclo de filmes com algumas entrevistas do artista. Em um dos filmes tinha o Robert Delpire, grande diretor e amigo íntimo do Cartier-Bresson durante 50 anos, comentando o trabalho dele. Em paralelo, fizemos uma exposição de fotógrafos brasileiros influenciados pelo fotógrafo francês, chamada “Bressonianas”.

Quando me propus a correr esse risco de encontrar alguma sincronicidade entre os brasileiros e o francês, tentei perceber o que era referência, cópia e pastiche. Talvez o Cartier-Bresson seja um dos fotógrafos mais copiados do mundo. Foi uma tarefa bastante difícil que resolvi enfrentar por não me relacionar muito bem com os mitos intocáveis da história. É preciso sacudir esses mitos para saber o que a obra tem de perene e universal, simbolicamente falando, para que se perpetue no tempo e não fique cristalizada em torno de alguns clichês. É preciso recontextualizar a ideia do instante decisivo no contemporâneo para saber até que ponto a obra sobrevive nos dias de hoje.

Uma das respostas mais enfáticas que tive quanto à pregnância da obra do Cartier-Bresson foi a repercussão desta exposição que fizemos em São Paulo. O público foi uma grande surpresa, um recorde para mostras de artes visuais no SESC São Paulo. Mais de 160 mil pessoas visitaram a

Eder ChiodettoFotógrafo, crítico de fotografia e mestre em Comunicação e Artes pela USP

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exposição. Obviamente, a presença maciça foi de um público formado por não especialistas e que hoje tem mais contato com uma fotografia bem diferente do trabalho de HCB. Então me perguntei: por onde Cartier-Bresson continua capturando as pessoas? O que há de tão envolvente em sua obra que gera, ainda hoje, uma quase catarse coletiva?

Comecei a pensar na obra de Bresson em confronto com o mundo contemporâneo, com essa geração quase espontânea de imagens resultante da aceleração dos processos de circulação das imagens, da massificação das câmeras digitais e dos celulares que fotografam. Parece que ele fala de um tempo – aqui temos uma questão quase nostálgica - que tende ao desaparecimento. Um tempo que, aos poucos, vai saindo do foco da possibilidade de apreensão do mundo visível. É como se suas imagens falassem do passado a partir de uma forma de ler a paisagem e a vida cotidiana que já não temos mais capacidade de fazer.

Na pesquisa para a curadoria, pensei o tempo todo em sacudir um pouco o Cartier-Bresson para vê-lo fora dos clichês e mitos que a história foi depositando sobre ele. Acredito que, quanto mais passa o tempo, mais cristaliza essa visão quase mitológica que temos dele e da sua obra. Conversei com Agnès Sire, diretora da Fundação Cartier-Bresson, porque pretendia propor um debate sobre o instante decisivo e discutir esse ideário criado pelo Bresson em contraponto ao mundo mais tecnológico de hoje. Agnès deu um grito ao telefone e disse: “Não faça isso! Não escreva nada que ligue Cartier-Bresson a essa ideia ridícula de instante decisivo!”. Levei um susto. Então, ela enviou um texto esclarecendo essa ojeriza pelo termo “instante decisivo” que usei como base para a discussão no SESC Pinheiros. Convidei dois curadores franceses, Jean-Luc Monterosso e o Gabriel Bauret, a curadora do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, Helouise Costa, e o Maurício Lissovsky que é professor da UFRJ para discutir a existência ou não do instante decisivo, a partir desse texto. Eu queria cutucar esses conceitos cristalizados pelo tempo e confesso que passei a gostar um pouco mais da obra de Bresson a partir dessa discussão.

Esse texto foi apresentado por Agnès em um colóquio em Paris para introduzir essa discussão acerca do momento decisivo. “Essa expressão que fez escola a tal ponto de ter se transformado numa espécie de definição do ato fotográfico é tão forte para certos fotógrafos que será preciso colocá-la abaixo nos próximos anos”, dizia ela.

Na continuação do texto ela dizia: “no início dos anos 1980, surgiu a noção de ‘tempo fraco’ por oposição ao ‘tempo decisivo’”, noção magistralmente desenvolvida no texto de Alain Bergala que introduz a obra de Raymond Depardon, “Correspondance New Yorkaise”3. Esse ensaio intitula-se “As distrações do fotógrafo”: “Esses momentos (as distrações do fotógrafo) parecem igualar esses supostos caçadores de aparências aos pintores que montam seu cavalete diante de uma paisagem e pintam, em um momento de distração, uma odalisca”. Uma imagem que é, ao mesmo tempo, a imagem do seu desejo e de sua cultura. Para além do que se quis ver como ato automático da captação do instante decisivo, ocorre a percepção de que o real escapa e que o ato fotográfico lhe revela a angústia dessa verdade. Real é aquilo que a foto está condenada a perder.

Agnès pregunta, a partir dessa reflexão, “se a impaciência de Cartier-Bresson estaria ligada à angústia de perder aquilo que está destinado a sempre faltar na fotografia? Quem não o viu enquadrar sem máquina algo que poderia ter se tornado uma foto? Quem não sentiu essa intensidade feliz que ele possuía até o momento em que escolheu dedicar-se exclusivamente ao desenho? A fotografia é uma ação imediata, o desenho é uma meditação”.

Ele repetia regularmente no fim de sua vida o seu texto para “Images à la Sauvette”: “a fotografia é, para mim, o reconhecimento na realidade de um ritmo de superfícies de linhas ou de valores. O olho recorta a matéria e o aparelho só tem que fazer o seu trabalho que é imprimir sobre a película a decisão do olho”. Nós estamos, portanto, diante do encaminhamento de um olho errante frequentemente rodopiante, onde repentinamente a decisão do olho vai registrar pela pressão do dedo sobre o obturador de maneira fulgurante um deslumbramento repentino. Este momento decisivo existe em todo fotógrafo, é o momento do clique, ele é mais ou menos longo, segundo o tipo de tomada de vista. Rápido na Leica, mais longo no estúdio. Mesmo nos

3 - “New York - Correspondance new-yorkaise – Les absences du photographe”, de Raymond Depardon e Alain Bergala. Cahiers du Cinema, 2006

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tempos fracos. Robert Frank - The Americans4 é um grande exemplo desse tempo fraco, que seria o antimomento decisivo - ou Depardon produziram um momento decisivo, o erro.

A questão a respeito desse instante decisivo, associado ao nome de Cartier-Bresson, está no fato de ter se tornado uma espécie de norma, como se não existisse senão um momento bom, aquele em que tudo se posiciona de maneira geométrica e equilibrada. Numerosos fotógrafos se enganaram tentando imitar esse equilíbrio e omitiu-se com frequência a ocorrência da impetuosidade de um desejo, da angústia pessoal diante de um instante que devia ser conservado. Poucos historiadores reexaminaram essa noção para lhe restabelecer o sentido.

Na sequência, Agnes faz uma comparação interessante entre algumas fotos do Bresson. Na verdade, o próprio Cartier-Bresson descreve a foto tomada na Isla de Sifnos, Ciclódes (Grécia, 1961), de forma a ajudar a entender essa questão turbulenta sobre o instante decisivo. Este instante decisivo visto do exterior pode se tornar uma armadilha. Uma receita até para Cartier-Bresson. Em uma conferência em Nova York, em 1973, ele explicou que havia encontrado um enquadramento que parecia interessante e esperou que acontecesse algo naquele lugar. Um padre apareceu, depois uma menina subiu a escada correndo. Bresson tirou 36 fotos dessa situação, o que é raro para ele que nunca fotografava metralhando. Ele diz: “Às vezes, como nessa foto na Grécia, visualizei o enquadramento do conjunto e esperei que alguma coisa acontecesse e tirei duas fotografias ... (Fez 36 fotos, mas considerou duas: a que passou o padre e essa que passou a menina) ... Uma representava um padre ortodoxo com seu chapéu cilíndrico, a outra a menina. A menina estava em relação perfeita com as outras formas, mas o homem tinha alguma coisa de desajeitado, era uma outra concepção”.

4 - The Americans - livro do fotógrafo suíço Robert Frank, lançado em 1959, resultado de uma longa viagem pelos Estados Unidos realizada em 1955 e 1956. Em 2009, o Metropolitan Museum of Art (NY) realizou uma exposição comemorativa aos 50 anos do lançamento do livro. Algumas imagens estão disponíveis para visualização: http://www.metmuseum.org/special/robert_frank/images.asp

Essa foto é citada frequentemente como exemplo de equilíbrio. De fato é, mas também é um pouco retórica. Falta ali o sopro da surpresa, a fulgurância do olho desvanecido que decide, como no caso de outras célebres imagens de Cartier-Bresson. Fornece uma espécie de receita que será largamente partilhada pelos fotógrafos que ele não teve tempo de pôr à prova na célebre imagem da estação de trens Gare Saint Lazare (1932), mas sente-se a diferença entre o olho surpreendido e a aplicação de um método às vezes útil para o ofício. É curioso perceber que o instante decisivo dessa foto é fruto de um tempo muito estendido. O disparo é mais ou menos como armar, fazer a armadilha para pegar o passarinho e ficar ali de tocaia esperando que entre na gaiola. É mais ou menos o que acontece aqui.

Em outra passagem do texto, Agnès diz que deveríamos pensar não mais como o instante decisivo porque a decisão é o momento do clique de qualquer fotógrafo, mas pensar a partir do conceito do acaso objetivo. Tem a objetividade de preparar racionalmente a armadilha, mas também a contribuição do acaso, que a depender da imprevisibilidade da vida pode gerar um acontecimento que incendeie a composição e crie uma inesperada potência simbólica e poética.

Em outra situação, Cartier-Bresson arma a composição e fica aguardando que algo venha desorganizar a calmaria da imagem. Comumente, o ser humano é o fator desestabilizador dessas composições. Aqui, temos uma fotografia de outro caráter que possibilita ver como é interessante desconstruir um pouco essa ideia do instante decisivo para pensar que existem várias artimanhas possíveis para chegar a um resultado desses. É uma agência bancária em Nova York. Ele está ali esperando para ser atendido e como tem esse olho muito atento para geometria e para a organização das formas, emprestado da pintura e do desenho, percebe esse ritmo de verticais. Os pés da mesa, os batentes da porta e as outras portas no segundo plano. Tudo se organiza nas verticais. Quando a secretária entra na sala do chefe e Cartier-Bresson paralisa o fluxo temporal no instante em que a perna dela descreve uma diagonal, o ritmo formal, até então entediante, quebra-se totalmente. O humor, a sensualidade, a partícula de rebeldia se estabelecem conferindo à fotografia uma leveza e uma graça que jamais haveria numa fotografia do mesmo local sem o gesto feminino, que de fato é o que destoa neste espaço masculino sem curvas e sisudo. É mais do que um tiro certeiro. É toda uma ideologia de vida, uma crença, uma herança estética que

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toma forma num átimo. Toda fotografia é meio como uma fração de segundo mais décadas de dedicação, estudo e exercícios de sensibilização. Diante de um “momento decisivo” se sobrepõem muitos instantes de indecisão…

Bressonianas “Bressonianas” foi um risco que corri conscientemente. Tão logo alguns fotógrafos ficaram sabendo que eu estava fazendo essa busca de fotógrafos brasileiros influenciados pelo Cartier Bresson, comecei a receber fotos de pessoas pulando poça de água ou outras que imitavam clássicos bressonianos. Obviamente, não era isso que procurava. Eu buscava fotógrafos que assumiam que Bresson tinha sido uma referência importante na sua trajetória e que fosse possível perceber algum gene bressoniano em suas obras. O que mais me interessava era muito menos essa ideia genérica do instante decisivo, mas a injeção de uma certa subjetividade e uma capacidade de dotar os momentos mais prosaicos da vida de uma beleza infinita. Se há algo que Cartier-Bresson deixa na sua obra é essa capacidade, este aviso: viva o tempo presente na sua intensidade porque o mais belo está nas coisas mais corriqueiras que fazemos. O beijo dado no filho antes de trabalhar, nas festas familiares, no encontro com os amigos. A obra dele é uma grande ode, uma grande celebração do cotidiano e dos gestos mais simples. Foi isso que pautou minha pesquisa entre os fotógrafos brasileiros e acabei selecionando sete deles: Carlos Moreira, Cristiano Mascaro, Orlando Azevedo, Juan Esteves, Tuca Vieira, Marcelo Buainain e Flávio Damm.

O Carlos Moreira consegue dotar suas fotografias de ritmo. Ele tem um trabalho muito refinado nas gradações do preto e branco e uma composição sempre muito delicada. Não me interessava simplesmente detectar algo da estética do Bresson, mas perceber de que forma esses fotógrafos conseguiram adicionar algo original sobre essa escola.

Algumas fotos da mostra acrescentam um olhar mais matreiro, tropical, jocoso. Grosso modo, é como se vissemos um Bresson mestiço atuando sob um sol tropical.

O Flávio Damm é um dos mais adoráveis personagens da fotografia brasileira. Gaúcho, vive no Rio de Janeiro há muitos anos e foi um

célebre fotógrafo do tempo áureo da revista “O Cruzeiro”. Hoje, é um “garoto” de 84 anos que segue produzindo diariamente. Todos esses fotógrafos têm muito claro esse conceito do “street photographer” de constituir boa parte de suas obras caminhando pelas cidades. É um pouco como Bresson e como o “flâneur” do Baudelaire na questão da errância pelas cidades. O Flávio diz sempre que para ser bom fotógrafo há que ser vagabundo. Só tendo tempo, só sendo vagabundo, você terá tempo. É a ideia do distraidamente venceremos, do Paulo Leminsky5. Você precisa estar de guarda baixa para perceber essa visualidade. Ele também tem esse olhar irônico, bem humorado. A foto em que duas pessoas despem um manequim é uma piada visual. Ele tem uma coleção de fotografias de freiras. Em uma entrevista, perguntei sobre essa mania de ficar perseguindo freiras pela rua. Ele respondeu que “as freiras são incríveis porque além de serem personagens em preto e branco, já são geométricas”.

O Cristiano Mascaro é arquiteto de formação e seus trabalhos selecionados primam pelas linhas da geometria, dos paralelismos. Seu trabalho é fruto de uma percepção que não é comum nas pessoas que não estão preocupadas com essas relações.

5 - Referência à obra “Distraídos Venceremos”, do poeta Paulo Leminski. Ed. Brasiliense.

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6 - “Henri Cartier-Bresson: Point d´Interrogation”, de Sarah Moon, produzido pela Production Take Five (1994).

Debate Paulo Backes – Achei bastante interessante essa ideia de um olhar vagabundo.

Eder Chiodetto – Pensamos o trabalho a partir de premissas tão duras que esquecemos que trabalhamos com uma linguagem, com arte. É muito importante oscilar momentos de extrema concentração com momentos mais líricos, oníricos e de distração. Sempre uso a frase do Paulo Leminsky “distraidamente venceremos” por achá-la fundamental. É nesse momento de relaxamento, também um momento de interioridade, que as ideias surgem e tomam forma. No caso do fotógrafo, essa percepção é um caminho. Caminhar pela rua de forma muito mais errática, olhando coisas que não olharíamos quando não estamos voltados para isso. Diariamente, o Flávio Damm acorda e faz uma caminhada no Leme, sempre com a Leica no bolso. É sempre uma espera absolutamente excitada de que uma feira cruze o seu caminho.

Zeca Linhares – Na minha opinião, Cartier-Bresson não se via muito como um pintor ou um desenhista. Para ele, a única coisa a que sua atividade fotográfica se assemelhava era a do maestro de uma orquestra sinfônica. Ele dizia que o fotógrafo trabalha no tempo e tem que estar no tempo. Os 44 violinos à direita e os 16 violoncelos à esquerda, por exemplo, devem ser executados todos ao mesmo tempo para a coisa acontecer. Ele termina o vídeo feito pela Sarah Moon6, fotógrafa de moda importantíssima por introduzir novos conceitos de linguagem, dizendo: “não sou um pickpocket, um batedor de carteira, sou sobretudo um maestro de uma orquestra sinfônica”.

Teria outra coisa a falar sobre os bressonianos. No Brasil, temos pouquíssimos. Aqui, temos presente um bressoniano que é o J.R. Ripper. Ele é o nosso exemplo mor de bressoniano que é ter um olhar vagabundo. O Ripper tem esse olhar vagabundo, mas feito de maneira consciente. O chamado “olhar vagabundo” não é algo pejorativo nem significa “preguiçoso”. Olhar vagabundo se relaciona à simplicidade surrealista: sair à toa e se relacionar com o mundo para capturar imagens que contam uma estória.

Tem muita gente com a forma do Cartier-Bresson, o tipo de apresentação do Cartier-Bresson, as linhas, o respeito ao negativo ou o trabalho com o 35mm. Muita gente faz isso, mas essa ideia de que você precisa fotografar, respeitar o que está na sua frente, ter uma relação com o objeto, ser o maestro de uma orquestra em meio a uma confusão enorme de coisas acontecendo naquele momento - no caso do Ripper, em um acampamento - e conseguir um detalhe, arrancar um pedaço sem poluição e com direção. Considero o trabalho do Ripper como um de nossos únicos bressonianos.

Doze anos atrás, escrevi uma tese de mestrado chamada “O acaso objetivo”. Na época, não existia a Fundação Cartier-Bresson e a Agnès Sire era simplesmente a arrumadora dos arquivos do Bresson. Dei um exemplar para ela e trocamos uma conversa sobre a ideia do instante decisivo, a mística do Cartier-Bresson. Falei que a minha tese pensava sobre outro aspecto, um pouco sobre o acaso, a procura do acaso. Volto um pouco à ideia do ser bressoniano onde é preciso ter respeito e criar uma relação com o que está acontecendo, pensar naquilo que está vendo. Vemos um todo e arrancamos parte dele. Qual parte eu arranco? O bressoniano arranca aquela parte inteira, não edita, mas precisa que exista uma harmonia. Precisa ter um interesse e a sua harmonia vale o tudo. Aí a ideia do objeto maravilhoso surrealista, algo que você arranca de um contexto e funciona quando coloca em outro contexto. Vou pegar um ferro de passar roupa pendurar no meio dessa sala e se transformará em um objeto de arte, isso é um pouco a ideia do maravilhoso surrealista, aquele objeto perfeito fora do seu contexto.

Público – Eder, na seleção que você fez para as bressonianas, todos os fotógrafos estão com imagens em preto e branco. Para ser bressoniano é preciso ter essa estética do preto e branco ou foi só coincidência?

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Eder Chiodetto – A minha pesquisa não se pautou pelos aspectos formais da fotografia do Bresson. O DNA dessa herança do Bresson de enxergar a vida por esse prisma que inclui o maravilhoso do surrealismo e desse deslocamento do conceito do belo, integrado a qualquer tipo de fotografia, não fica necessariamente dentro desse rigor que ele criou dos 50mm, do não corte. Essas produções muitas vezes são o arquivo B desses fotógrafos. O Cristiano Mascaro tem a produção de arquitetura e quando faz em 35 mm, temos uma outra produção. Muitas vezes é o lado B desses fotógrafos, produzido geralmente em viagem quando tem esse olhar mais perdido, vagabundo.

Público – Como ser bressoniano, ser vagabundo se você esta sendo pressionado a sobreviver?

Eder Chiodetto – A melhor forma é tentar achar uma fonte de patrocínio que permita ser vagabundo. Não tem como refletir muito sobre isso. A nossa correria aumentou a partir do momento em que inventaram internet, e-mail e celular. Parece que não existe mais o tempo de respirar, chegar em casa e de fato se despir das questões do trabalho. Trabalhando como autônomo é bem mais difícil ser vagabundo, mas se você necessita disso para o trabalho, tem que conseguir viabilizar de alguma forma.

Zeca Linhares – No livro do Bresson, há uma epígrafe onde ele diz: “Não continue esse livro se não é geômetra”. Depois ele diz: se o início é um ponto e, se pensarmos que somos um ponto apenas e que o nosso universo é um ponto em expansão, já é possível ser bressoniano. Eu começo a pensar no ponto, o meu ponto de vista, o meu ângulo de visão, o que eu quero ver. Aí você já começa a ser um pouco bressoniano e a pensar que o mundo se inicia no ponto e se encerra no ponto. Acho que é por aí.

O tempo e o espaço no território da fotografia

Aparentemente a questão do tempo e do espaço, particularmente a do tempo, pode nos parecer um pouco óbvia porque tanto na modernidade quanto na contemporaneidade, a discussão do tempo é forte no mundo das imagens técnicas. Entretanto, se olharmos para o período do advento da fotografia, perceberemos que ela não surge para discutir o tempo. Surge com outra característica, com outra função. É importante observar que a fotografia foi anunciada na academia de artes e ciências e surgiu para fazer um registro puro e simples do mundo visível ou mesmo para copiar a realidade.

Ao observar aquelas imagens com os olhos de hoje, é possível compreender o tempo que colou naquela imagem e a impregnou de história e de conteúdos diversos. Entretanto, esta seguramente não era a preocupação daqueles fotógrafos. Antes de tudo, era preciso dar conta dos processos técnicos, físicos e químicos para concretizar a imagem, ou seja, tirar a imagem da sua tridimensionalidade e jogar na bidimensionalidade do papel. Quando vemos hoje uma fotografia do século XIX, vemos a importância do tempo histórico.

Ao analisar a história da fotografia, temos a discussão e a percepção sobre o tempo em diferentes momentos, logo a partir das primeiras manifestações de Muybridge e Moholy. Na virada do século XX, entram as vanguardas históricas e a própria noção da fotomontagem de tempos superpostos. Ao avançar um pouco mais, temos a ideia da Berenice Abbott de que o fotógrafo é o ser contemporâneo por excelência porque através dos seus olhos o presente se torna passado. Enfim, temos a possibilidade de discutir diferentes momentos e diferentes tempos.

Rubens Fernandes Junior

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Gostaria de contribuir para o debate trazendo um pouco do que venho estudando nos últimos anos, num percurso em que o tema do tempo se tornou central, sendo objeto de estudo tanto no curso de mestrado quanto no doutorado. Estar aqui é uma maneira de compartilhar uma reflexão teórica muito solitária e, para isso, gostaria de remontar um pouco dessa história que o professor Rubens Fernandes acaba de lançar. Pretendo, nesse sentido, criar referências teóricas e históricas para refletir sobre as imagens contemporâneas de um ponto de vista um pouco mais aprofundado do que normalmente é feito.

Para começar, queria retomar uma ideia de Didi-Huberman, dita em “Ante el tiempo. Historia de arte y anacronismo de las imagens”. Para o autor, “diante da imagem, estamos diante do tempo”. Que espécie de tempo Huberman estaria tratando? Que tempo é esse frente ao qual nos colocamos quando estamos diante de uma imagem?

Poderíamos levar esta reflexão para o campo específico da fotografia. E a fotografia? Estaríamos diante do tempo quando estamos diante de uma foto? Numa fotografia o tempo seria visível? Como e quando o tempo se faz visível?

Apesar de parecer uma questão simples, a conexão entre tempo e fotografia não é uma reflexão muito fácil de ser realizada. Primeiro, porque normalmente a fotografia é pensada como uma representação bidimensional, como se fosse principalmente uma captura do espaço. Não é raro parecer mais concreto pensar a fotografia a partir do espaço do que do tempo, como se ela fosse, no máximo, um instante fora da

Cláudia Linhares SanzFotógrafa, professora e doutora em Comunicação pela UFF

duração, um instante constituidor de cronologia. Nem simultaneidade, nem complexidade temporal, tampouco virtualidade. Geralmente, pensamos na fotografia como uma superfície oca, fundamentalmente espacial.

É muito comum confundir tempo com movimento e julgar que apenas as imagens borradas podem falar do tempo. Nelas, o tempo compareceria. No entanto, no instante fotográfico não haveria tempo. O cinema seria a duração e a fotografia, a paralisia. Sua contração plana: o instantâneo. Não haveria tempo nas fotografias, haveria fotografias no tempo. Portanto, não haveria comunhão possível entre fotografia e tempo. Nessa perspectiva, o instante se insurgiria exatamente contra a duração. A fotografia estaria num campo de representação assentada. O que definiria a fotografia seria a moldura, o quadro e nunca poderia ser uma experiência, apenas fruto de experiência.

Carolyn Bailey Gill, na introdução do livro que organizou “Time and the image”, afirma que “o instantâneo retira o tempo das relações internas da fotografia. O que isso significa?” questiona. “Mesmo que a fotografia envolva a exposição de um filme à luz num certo período de tempo, essa duração pertence a uma ordem técnica, nunca à experiência da fotografia. Tal experiência é denominada por um momento, uma unidade mínima de tempo para suportar a categoria do evento. Nós experimentamos isso não como o tempo, mas como um clique da câmera, um ponto fugitivo da duração. Um evento que acontece no tempo, mas não é representado pelo tempo. O que chamamos de momento capturado na fotografia é, na verdade, um momento capturado no espaço. O que achamos que a fotografia materializa não é o tempo, é o espaço”1.

Análises como a dela são muito recorrentes. De certo modo, porque pouco se pensa o tempo na fotografia e quando se pensa, usam-se metáforas do espaço. É difícil pensar o tempo por ele mesmo. Hannah Arendt, citando Bergson, falou bastante acerca disso. Quando queremos falar no tempo, nos apoiamos no espaço e, por essa razão, confundimos tempo e movimento.

Ao contrário desse tipo de análise, acredito que as relações entre tempo e fotografia se constituem de modo bem mais complexo sendo necessário

1 - Gill, Carolyn Bailey (org). Time and the image. Manchester: Manchester University Press, 2001: 5.

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pensar a fotografia fora de uma exclusiva pontualidade. Nessa medida, tento me diferenciar (ou ampliar) reflexões como as de Roland Barthes que mesmo quando trata a fotografia como experiência temporal, o faz a partir do conceito do “isso-foi” – um modo barthesiano de pontualidade.

Na realidade, tratar esse tema demanda uma problematização de conceitos como experiência e tempo. O pensamento de Walter Benjamin sobre a origem e a memória e os conceitos de duração em Henri Bergson ajudam muito. Estas formulações permitem pensar as imagens como propagadoras de índices temporais, materializações de temporalidade e de experiência histórica, numa tensão dialética criativa e produtiva de efeitos de saber.

Para perceber o tempo na fotografia poderíamos visualizar a imagem de um escombro. O visível do tempo na fotografia é uma espécie de escombro: a ruína de um edifício em permanente e eterna demolição. Através da fumaça, vemos a presença do prédio e, simultaneamente, a sua contundente desconfiguração. O tempo está ali e não está, desaparecendo em permanência. Ele emerge e desaparece, em constante oscilação, como a imagem do prédio que não para de ser arruinado, mas nunca é destruído inteiramente. Se olharmos bem, o tempo aparece na fotografia como uma espécie de miragem ilusionista, oscilante e conflituosa, atrás de uma poeira, algumas vezes invisível, outras vezes absolutamente nítida.

Apesar de nebulosa e oscilante, parece ter sido essa relação entre tempo e fotografia que fez (e ainda faz) a fotografia ser o que ela veio a ser. No meu modo de perceber, a despeito dessa falta de clareza, obscuridade e desse caráter desfigurado, provavelmente, a estreita conexão entre experiência temporal e experiência fotográfica foi responsável por fazer a fotografia ocupar os espaços que ocupou. Não somente no campo da arte, mas de forma mais significativa, na nossa vida cotidiana. Foram a capacidade da fotografia produzir e ser temporalidade, a solidariedade entre tempo e fotografia, a contiguidade histórica entre imagem fotográfica e tempo moderno que constituíram o lugar da fotografia.

Em sua história, é possível perceber que a fotografia foi sendo impregnada de relações temporais e o próprio tempo parece ter sido pensado, vivenciado e experimentado, desde a modernidade, através de fotografias. Constituiu-se uma certa contiguidade foto-tempo, a partir

de uma relação conflituosa que, por um lado, promove sua permanente banalização, mas que por outro, manteve em seu gesto uma atitude misteriosa, algo que, em transformação, teimava em reaparecer, em revigorar a força da fotografia. Na minha opinião, há um mistério na persistência do tempo na fotografia e da persistência da fotografia no tempo. Esse mistério aparece como um escombro, como uma vertigem.

Na experiência histórica da fotografia, o tempo foi uma peça fundamental. O tempo produziu a fotografia e, mais importante ainda, a fotografia produziu um tempo inédito, uma experiência temporal que não existia antes dela. Na história da fotografia, talvez esse escombro possa aparecer de forma mais evidente. Na história, essa miragem deixa de ser tão fugaz e passa a ter uma consistência própria.

O advento da fotografia pode ser pensado, fundamentalmente, em decorrência de uma mudança na experiência do tempo. Como sabemos, o mais interessante da história da fotografia é o fato dela não ter sido inventada antes e quando foi, aconteceu por uma série de inventores pulverizados e simultâneos. A câmera obscura e as experiências ópticas já existiam. Parte das experiências químicas, apresentadas em 1839, já tinham sido realizadas antes e colocadas de lado por não serem consideradas significativas. Portanto, o advento não materializa uma questão meramente tecnológica, mas é produto e produtor de uma temporalização da história, do corpo e da imagem. Um temporalização do mundo e da vida. Quando essa temporalização acontece (na passagem do século XVIII para XIX) o tempo se torna agente absoluto de mudança e a pintura já não dá mais conta de apresentar o mundo. Passa a ser necessária uma série de dispositivos capazes de frear essa temporalização e essa aceleração do progresso.

Trata-se de uma significativa alteração na experiência do tempo, uma mudança epistemológica – transformação nos sistemas de produção e enunciação do conhecimento - que produz uma espécie de “necessidade da imagem fotográfica”. Talvez seja este o motivo do advento da fotografia ter sido tão pulverizado e simultâneo. São inúmeros os “inventores” da fotografia. Não apenas três ou quatro que se comunicavam entre si, mas dezenas de inventores que, muitas vezes, não tinham sequer conhecimento um do outro.

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Peço um pouco de paciência a vocês para que, numa retomada histórica, seja possível perceber esse tempo emergindo da fotografia, esse escombro nebuloso.

Geralmente, pensamos o advento da fotografia como uma necessidade de fidelidade e objetividade, mas essa fidelidade só pode ser entendida quando identificamos as alterações epistemológicas circunscritas na transformação da experiência do tempo. Nesse momento (e só nesse momento), passa a ser preciso uma imagem capaz de apreender a efemeridade. Tal efemeridade é resultado de uma série de mudanças do conhecimento humano, na forma de contar a história, de integrar o progresso e é isso que parece fazer a fotografia surgir na primeira metade do século XIX. Não antes, nem depois.

Gosto muito de um autor português chamado Pedro Miguel Frade. Para ele, seria um erro entendermos os inventores da fotografia como pessoas ingênuas. Não é raro ouvirmos que entender a fotografia como “o lápis da natureza” era uma reflexão ingênua. No entanto, não eram ingênuos, nem inocentes. Na realidade, traduziam um sentimento de época que, para citar Pedro Miguel Frade, era “um espanto diante do novo tempo”. Talbot, o famoso fotógrafo inventor do negativo e autor desse brilhante termo “pinturas do sol”, conta que estava olhando uma bela paisagem de praia através da câmera obscura quando percebeu que seria “fascinante se fosse possível fazer com que essas imagens naturais imprimissem uma forma duradoura e se mantivessem fixadas no papel”. Essa era a questão: duradoura e fixadas.

Mas as pinturas não eram duradouras e fixadas?

Todos os depoimentos dos inventores da fotografia tratam dessa luta contra a efemeridade, contra o tempo. Como produzir uma imagem duradoura e instantânea. A partir dessa investigação, surgiu o conceito de fotografia de Talbot – anos antes de 1839 – e, provavelmente, quase todos os projetos fotográficos da época. Na verdade, o advento da fotografia está ligado a um novo sentimento de tempo, a um desejo temporal próprio, a um querer deixar a imagem durável de uma forma que a pintura não conseguia mais fazer.

As imagens fotográficas da primeira metade do século XIX são, assim, projetos de tempo, inscrições de futuro. Já na segunda metade do século, esse projeto se transforma num programa de instantaneidade guiando

massivamente a produção e a pesquisa fotográfica. É muito curioso o modo como esse programa se estabelece. As fotografias não eram instantâneas, mas os fotógrafos desejavam que fossem. Nesse sentido, o desenvolvimento tecnológico não era suficiente para estabelecer tal conquista. O programa do paradigma da instantaneidade envolveu também uma reflexão acerca do que seria uma imagem instantânea e do que seria o próprio instante. Estes debates foram muito mais que simples conversas sobre fotografia, são reflexões sobre a própria natureza do tempo, a natureza do instante e da velocidade. São debates sobre o que seria a lentidão e, por outro lado, o que deveria ser entendido como algo instantâneo.

A princípio, imagens como crianças chorando, circo e ondas no mar integravam as listas do que deveria ser considerado instantâneo. Aos poucos, essas definições estéticas que diferenciavam uma fotografia muito rápida de uma instantânea já não eram mais suficientes para estabelecer a instantaneidade como paradigma. O projeto de instantaneidade adquire contornos de um programa, balizado por experimentações e manifestações parciais. Esse programa só se efetiva nas últimas décadas do século quando, em sua relação com a ciência, articulam-se técnicas e quadros interpretativos produzindo regimes fototemporais capazes de instituir relações inéditas entre tempo e fotografia, fundamentais na constituição da fotografia instantânea como gênero.

A fotografia não é apenas fruto de concepções de tempo, também produz suas próprias concepções de tempo. Aliás, é muito interessante verificar que grande parte dos debates do final do século XIX sobre o tempo estão ligados, de alguma forma, à fotografia. Desse modo, a fotografia participa de uma reelaboração do tempo. A adoção da instantaneidade como linguagem depende da conquista de quadros interpretativos da fotografia científica, principalmente da contiguidade entre instante e fotografia, promovida pelas cronofotografias de Janssen, Marey e Muybridge. Essa fotografia científica criou um elo estruturante entre o instante fotográfico e o instante de tempo, algo que nunca mais abandonaria a experiência fotográfica.

Nossa experiência de tempo teve na fotografia, talvez como nenhuma outra tecnologia da imagem, um dos seus pilares significativos. A fotografia participou da constituição de um tempo formado por instantes,

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ocos e equidistantes, tornando-se peça importante na formulação do tempo métrico científico. O que pode ser averiguado, por exemplo, na crítica à especialização do tempo, promovida por Bergson quando refere-se claramente às fotografias instantâneas de Muybridge como metáforas para o instante. Quando Bergson deseja mostrar que o tempo da experiência nunca poderia ser constituído por instantes, ele utiliza, não poucas vezes, a fotografia como metáfora desse falso instante. As cronofotografias materializavam de modo categórico o ideário científico a que o filósofo se contrapôs. Tais citações atestam como a imagem da fotografia participa da formulação espacializada do tempo, adquirindo sentidos de “aniquilamento da duração” ou paralisia do tempo.

Por outro lado, a fotografia também participa da reação a essa espacialização, da produção de um tempo heterogêneo, tempo denso formado por instantes especiais – em que algo diferente pode e deve acontecer, o tempo do acontecimento, da expectação. Se ela constitui um tempo quantitativo, também produz um tempo potencialmente heterogêneo, denso e qualitativo. Tempo que dura e não pode ser aniquilado.

Podemos lembrar, por exemplo, das imagens do francês Albert Londe, realizadas por um aparelho de cronofotografia para fotografar as histéricas do Salpêtrière, em Paris. As 24 lentes do aparelho de Londe não disparavam automaticamente e eram acionadas apenas quando o observador decidia, distanciando-se profundamente do tempo métrico espacializado da cronofotografias de Muybridge. Em seu método, o fotógrafo precisava decidir quando disparar cada uma dessas lentes e optar pelo instante exato para disparar. Seu método instaura uma coisa muito interessante que é, dentro desta contiguidade entre instante e fotografia, a possibilidade de um tempo especial, o tempo do acontecimento, produto da expectação do fotógrafo num tempo potencialmente heterogêneo.

Existe uma ambiguidade histórica na relação entre tempo e fotografia. Se, com a fotografia, há a produção de uma espacialização temporal (se cada instante fotográfico constitui um ponto cronológico como o dos relógios), há também a participação da fotografia na constituição do tempo do acontecimento. Ao fotografar um “certo instante”, decalcamos nesse instante uma distinção especial que destaca o instante do fluxo, mas que agrega tempos sobrepostos, expectativas de futuro e percepções do passado.

Essa complexidade de tempos concorrentes, heterogêneos e homogêneos, contínuos e descontínuos, iguais e diferentes constitui a ambivalência histórica da temporalidade fotográfica. Não se trata de uma contradição, mas de uma complexidade que está na fotografia como uma constituição primária, como uma fundação, algo que carregará consigo como uma espécie de sombra. Talvez esteja aí o motivo de tamanha dificuldade para entender o tempo na fotografia.

O tempo da fotografia não é só o tempo pontual, o instante em que o tempo parou; é também um tempo tenso próprio desse permanente conflito. Não é um tempo que apenas diz (pelo menos na fotografia moderna) “aquilo aconteceu”. É um tempo que diz, como Walter Benjamin percebeu, o que poderia ter acontecido. Não congela só uma inscrição do presente que se torna passado. Condensa também a inscrição do futuro que poderia ter acontecido, condensa o fluxo temporal sem aniquilá-lo totalmente. O que foi e o que poderia ter sido estão simultaneamente presentes, oscilando e disputando entre si.

Assim, a experiência fotográfica é uma experiência muito rica e na história da fotografia é possível perceber de que modo se transformou num agregado vivo de tensões temporais.

Gostaria de lembrar a experiência de Proust e Virgínia Woolf com a fotografia. Ambos gostavam muito de colecionar fotos. Proust mandava bilhetes e cartas aos amigos, insistindo para que, caso fossem realmente seus amigos, enviassem fotografias. Brassaï conta em seu livro “Proust e a Fotografia” muitas dessas histórias. Quando as pessoas não mandavam, Proust ficava extremamente irritado e insistia para que enviassem. Quando o escritor estava morrendo, tinha no quarto uma cômoda cheia de fotos e, a todo momento, pedia para vê-las.

Virgínia Woolf também fazia coleções intermináveis de fotografia. Contam que ao saber da morte de um amigo pintor, a escritora escreveu à sua esposa pedindo que enviasse uma fotografia para que pudesse continuar conversando com ele. Não fazia isso por ter delírios, mas por entender que a experiência fotográfica não era uma experiência pontual que petrificava uma fisionomia ou um instante que foi e acabou. Havia uma presença que continuava durando na fotografia.

Interessante notar que tanto no discurso de Woolf quanto no de Proust havia um desdém da fotografia, um entendimento de que a fotografia

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era o objeto de uma memória pobre, de um tempo cronológico exato. Por outro lado, na sua vida pessoal, essa verdadeira obsessão por colecionar fotografias pode ser avaliada como uma experiência distinta: a fotografia (na prática) possuía um encantamento relacionado à riqueza de sua temporalidade. Se as imagens fotográficas foram frequentemente destituídas de valor em suas análises críticas, sendo muitas vezes relacionadas à incapacidade criativa, também constituíram objetos preciosos em suas vidas.

Para pensar a experiência moderna foto-temporal, a relação de Proust com a fotografia nos parece especialmente interessante. Isso se dá não porque caracterize de modo preciso a fotografia, mas porque estabelece uma relação absolutamente ambivalente com ela. Ele a guarda como objeto valioso, exige de seus amigos presentes fotográficos e coleciona em seu leito de morte tais fotografias. Entretanto, relaciona a fotografia a uma memória pobre, vulgar, pontual e incapaz de produzir as verdadeiras reminiscências da imaginação.

Nessa ambiguidade, há uma experiência de duração na fotografia. Proust, apesar de seu frequente desdém da fotografia, oferece uma ótima descrição dessa complexidade temporal. O trecho a que nos referimos está em “O caminho de Guermantes” e, como muitas vezes a literatura é capaz de fazer, sintetiza de modo muito instigante e valioso uma experiência, nesse caso, a experiência fotográfica moderna. Um dia, ao entrar sem ser percebido no quarto da avó, Proust é surpreendido pela materialidade de sua ausência, pela presença de seu próprio vazio. O narrador descreve tal vertigem do seguinte modo: “Infelizmente, foi esse mesmo fantasma que vi quando tendo penetrado no salão sem que a minha avó estivesse avisada do meu regresso, eu a encontrei lendo. Ali estava eu, ou antes, ainda não estava, visto que ela não o sabia, como uma mulher surpreendida a fazer um trabalho que ele ocultará ao entrarmos. Estava entregue a pensamentos que jamais havia mostrado diante de mim. Por esse privilégio, que não dura, durante o curto instante do regresso, sofri a faculdade de assistir bruscamente a minha própria ausência. Não havia ali mais que a testemunha, o observador de chapéu e capa de viagem, o estranho que não é de casa, o fotógrafo que vem tirar uma chapa dos lugares que nunca tornará a ver. O que mecanicamente se efetuou naquele instante em meus olhos, quando avistei minha avó, foi uma fotografia”.

A presença do tempo na fotografia se dá em modo de ausência. Essa tensão é, na verdade, uma tensão que produz uma verticalidade: a profundidade temporal da fotografia. O que se vê numa fotografia é aquilo para sempre, mas algo que também não deixa de mudar nunca. É uma chaga do tempo.

Segundo Pedro Miguel Frade, nenhum trabalho ou esforço poderá jamais sarar o tempo que continua jorrando na fotografia. Trata-se do desdobramento do corte fotográfico no tempo. Instituição de uma separação temporal que “não cessa de se aprofundar, como uma espécie de chaga do tempo que nenhuma coisa ou desejo, trabalho ou esforço poderão, a partir de então, jamais sarar”.

É como se, “por esse privilégio que não dura”, por instante fotográfico tivesse se realizado uma espécie de desprega do vinco do tempo, um desfolhamento da latência temporal: confinada e transbordante, a temporalidade retida pela fotografia é, simultaneamente, uma duração sustida e vital. É um prédio que desaba e permanece em pé, simultaneamente. É o escombro que materializa o que deixa de ser e, ao mesmo tempo, o que ainda é. Para vermos o tempo na fotografia é necessário entender essa coexistência. Não que haja um instante fora da duração e outro instante dentro da duração; é que, na fotografia, congelar e fixar não estanca a duração. Há sempre alguma coisa durando infinitamente. Um na sombra do outro. Coexistentes.

É um pouco como a análise de Deleuze acerca de “Alice do outro lado do espelho”.

“Quando digo Alice cresce, quero dizer que ela se torna maior do que era, mas por isso mesmo ela também se torna menor do que é agora. Sem dúvida, não é ao mesmo tempo que ela é maior ou menor, mas é ao mesmo tempo que ela se torna um e outro. Ela é maior agora e era menor antes. Mas, ao mesmo tempo, no mesmo lance que nos tornamos maiores do que éramos e nos fazemos menores do que nos tornamos. Tal é a simultaneidade de um devir”.

Na minha opinião, a temporalidade da fotografia moderna se caracteriza por uma espécie de conflito constituidor. Conflito que, na atualidade, parece estar se transformando. As tensões que conformaram a fotografia moderna talvez não sejam as mesmas tensões que conformam hoje a temporalidade da fotografia contemporânea.

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Função ingrata para um fotógrafo entrar em outro tempo. O pensamento na fotografia contemporânea brasileira é muito interessante e considero um grande trabalho dos fotógrafos procurar esse link ou trazer para perto esse pessoal que resolveu pensar fotografia.

No nosso tempo, ser fotógrafo é se comportar como pirata que opera também por apropriação. Aquilo que é essencial à criação fotográfica não exige uma máquina. Em princípio, as imagens estão por aí e são de todos, de quem as usa e de quem as edita. Na verdade, somos intérpretes desse mundo em que o fotógrafo se faz acima de tudo no pensamento. O nosso tempo se faz no espaço que dedicamos à compreensão desses fluxos, dos atravessamentos que se criam naquilo que procuramos entender. Esse tempo nos diz que há muita coisa legal fora dos compartimentos inventados nos tempos de outrora. Pensar revela o quanto tudo pode ser visto a partir do fotográfico. Nosso trabalho talvez seja essa busca, por “extra quadros” sucessivos, o fotográfico que existe além das bordas de uma imagem. Nossos ídolos migraram do click para a escrita, do quadro para a oralidade. Para além dos clicks, nossos mestres da fotografia estão também na escrita. Os melhores fotógrafos de nosso tempo são Mauricio Lissovsky, Arlindo Machado, Rubens Fernandes Júnior e Ronaldo Entler.

Os fotógrafos de outros tempos são Borges e Calvino. Junto a nós, nessa mesma busca, ainda temos Claudia Linhares Sanz, Georgia Quintas e Lívia Aquino, não só pelo discurso, mas pela relação criativa com a fotografia. Para a Cia, o tempo é um estímulo criativo para subverter o que se apresenta como fotografia.

Vou começar mostrando um trabalho feito a pedido de um grande parceiro, o curador espanhol Claudio Carreras. Ele pediu um trabalho sobre a Tríplice Fronteira Paraguai, Argentina e Brasil. Onde há tempo

Pio FigueroaFotógrafo, integrante da Cia de Foto

nisso? Começamos a tentar entender porque Paraguai é sinônimo de produto para os brasileiros. Tentamos criar um argumento aparentemente rasteiro para entender isso. Por que esquecemos os compromissos ou as desgraças históricas que operamos contra esse país e os elegemos como um produto?

Descobrimos que isso ocorre por conta de Cidade do Leste. Para os paraguaios, Cidade de Leste também é um anexo, semelhante à Rua 25 de março, área que concentra o comércio popular na capital paulista. Na verdade, é uma invenção brasileira. Chineses e árabes na década de 50 que precisavam dessa fronteira fácil para abastecer o mercado popular, principalmente brasileiro, com produtos “Made in Paraguai” e atualmente “Made in China”.

Resolvemos tocar nessa questão jornalística, mas fazendo uso de um instrumento de ficção. Definimos um personagem. Um cearense que mora na região da Rua 25 de Março, trabalha como segurança em uma loja de chineses e mora de aluguel no flat do patrão. Somos três fotógrafos na Cia de Foto e sincronizamos as câmeras para obter imagens simultâneas. O primeiro fotógrafo ficou com nosso “personagem” na 25 de Março e continuou fotografando depois que ele foi embora, fazendo o que seria o rastro desse cara. O segundo fotografo viajou até o Paraguai e o terceiro o recebeu lá. O morador da 25 e Março não foi ao Paraguai e a segunda e terceira câmeras viraram subjetivas, com fotos feitas no mesmo tempo. Esse trabalho mostra a nossa investigação usando o tempo como objeto criativo, como estímulo.

Em outra situação, fizemos um trabalho por encomenda para o jornal Folha de São Paulo. Pediram uma cobertura diferenciada da campanha eleitoral municipal. Propusemos fotografar um ato rotineiro da campanha, um evento sem grande elaboração, a partir de três ângulos, sincronizando os instantes. O primeiro que encontramos foi o Geraldo Alckmin, candidato do PSDB. Antes do Alckmin chegar na Mooca (bairro da zona leste de São Paulo), um fotógrafo comentou: “É aqui que ele toma café pra embaçar os óculos”. Por que ele precisa embaçar os óculos? Porque quando o fotojornalista vê o candidato de óculos embaçado, acha interessante e fotografa. O editor continua achando interessante, o editor da primeira página acha ainda mais interessante e o Alckmin é primeira página no outro dia. Isso garante a primeira página, apesar de ser um teatro ridiculamente mal feito.

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Em um segundo momento, fomos fazer a Marta Suplicy, candidata do PT. A Marta é a candidata preferida dos fotógrafos e talvez dos jornalistas. A diretoria da Folha não, mas o corpo de redação vota na Marta e no PT. Acaba sendo uma coisa “meio nossa”, do pessoal de comunicação. A foto que saiu no outro dia em todos os jornais foi a Marta no meio do povo, no meio de crianças e bandeiras. É o ângulo um. No ângulo dois, vocês observam que não tinha tanta gente, não há uma multidão. Na verdade, há imprensa e militantes. Como fotojornalista, fotografamos a Marta no estilo “corredor polonês”, no meio da aclamação popular. Talvez seja um mistério relacionado ao condicionamento. Aqui, o tempo foi usado como ferramenta, um coeficiente criativo que garantiu uma ideia de fotografar a fotografia. Nesse caso, fotografamos um evento onde a fotografia é usada.

O terceiro é o atual prefeito, Gilberto Kassab (DEM). Nesse momento, os colegas que estavam em campo ficaram bravos porque nós três estávamos fotografando ao mesmo tempo. Não entendiam o que estava acontecendo e começaram a nos fotografar. Diziam que estavam fotografando para nos denunciar e começou um movimento relativamente agressivo principalmente para o João Kehl que é mais novo e mais inexperiente nestas empreitadas de rua. A situação foi bem agressiva. Uma fotógrafa nos fotografou para nos denunciar, não sei o que nem a quem, pois não existe obviamente essa função jornalística de denunciar outro jornalista trabalhando. Rendeu uma bela imagem feita por mais uma pessoa fotografando. No caso, nos fotografou e fotografou a fotografia por assim dizer.

A Folha deu esse caderno num políptico, usando um título dado pelo professor Rubens Fernandes. Publicaram nove fotos cobrindo toda a página de um caderno chamado DNA. Um repórter ligou para apurar e escreveu que só conseguimos fazer esse trabalho porque lançamos mão de um equipamento tecnológico de última geração. Ele ajudou a construir nossa ficção. Não dissemos isso para ele, mas ele lançou essa história em mais um trabalho relacionado ao tempo.

O outro trabalho foi exibido na Sala Hélio Oiticica, na edição 2010 do FestFotoPoA. Toda vez que éramos contratados para fazer um retrato para algum veículo, colocávamos a câmera e dizíamos que faríamos um retrato, mas durante a espera da pose, deixávamos a câmera gravando. Atualmente, as câmeras gravam. Está difícil se dizer fotógrafo ou é

cada vez mais urgente se afirmar como tal. Essa convergência tem garantido um campo muito bacana e instigante graças a nossos amigos engenheiros que inventam essa possibilidade de libertação. Neste trabalho, o personagem não sabe que foi fotografado. A brincadeira é justamente a distensão da performance do retrato. O Eder Chiodetto participou e usou da autoridade dele para dar um grito na gente. A frase dele é maravilhosa: “Isso é foto ou vídeo, caralho?”. Podia muito bem titular o trabalho. Acho essa pergunta legal. Perguntar que lente está usando é muita falta de assunto.

Outra questão do tempo talvez seja voltar um pouco a uma espécie de tempo de manifesto, um tempo que estamos fazendo, um movimento que estamos aprendendo a fazer na fotografia brasileira que é conexão, compartilhar ideias, esquecer aquele cacoete moderno de procurar o novo e fazer o uso daquilo que está por aí. Construir redes e relações. No começo do ano, fomos chamados pela Revista da Folha (jornal Folha de São Paulo) para fazer uma página dupla sobre o aniversário da cidade de São Paulo. Eles chamaram quatro coletivos de fotógrafos de São Paulo. Quando recebemos o convite, fizemos uma contraproposta que era usar as oito páginas da revista para os quatro coletivos desenvolverem um trabalho. A ideia foi recusada, pois os coletivos não acharam muito objetiva. Alguns queriam usar o espaço para divulgar um trabalho próprio. Fácil de entender, pois para o mercado editorial, uma página dupla é algo que realmente tem um sentido de valor interessante. A editora pediu uma sugestão, dizendo para não desistirmos. Colocamos uma foto nossa no blog explicando que tínhamos a função de preencher uma página dupla com fotos de São Paulo e que a tarefa não poderia estar restrita à Cia já que São Paulo é uma cidade de muitos. Por isso, abrimos a participação dos leitores. Tínhamos cinco dias para realizar o trabalho. A trilha foi feita pelo Guabi, um cara que não queria participar com foto. Para a Cia, esse trabalho foi muito especial. Tivemos a participação de pessoas que já estão próximas como Eder Chiodetto e Iatã Canabrava. Fizemos o Rubens Fernandes ir para a rua fotografar. Nair Benedito, Juca Ferreira e o Du Ribeiro que mandou fotos feitas na década de setenta e fotos atuais. Disparamos este post na quarta-feira, às cinco horas da tarde. Também mandamos cerca de 15 e-mails para alguns amigos, pedindo a participação. Achávamos que chegaríamos a vinte contribuições. Na sexta-feira, pipocava um e-mail a cada sete minutos. Do ponto de vista operacional, foi uma loucura porque bagunçou um pouco a nossa vida nessa semana, mas acho que valeu a movimentação.

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Para finalizar, queria voltar rapidamente a dois trechos do texto que montei. “No tempo em que queremos viver, os espaços se misturam, o jogo se faz nas bordas, nas sobreposições daqueles compartimentos que são criados pela sociedade moderna. É esse o tempo que queremos como matéria de construção de nossa história. As ideias vão se criando no atravessamento das fronteiras. É um prazer imenso chamar Rodrigo Braga de fotógrafo e João Castilho de artista. Se é para pensar no tempo, que seja nesse em que vivemos. Que se torne política nossa expressão pessoal e que assim a gente possa afirmar que o melhor de nossa fotografia está no pensamento. Portanto, trata-se de uma fotografia que existe como ideia, mais do que efetivamente como técnica. Se é para escrever um texto, que se torne um manifesto, que provoque nossa disposição para aprender, porque até agora não vivemos senão a dislexia de uma incapacidade, uma fotografia que somente soube repetir. O valor de escrever sobre o tempo é constatar que há muito a fazer na compreensão do fotográfico, além da oportunidade de registrar nossas surpresas diante desse tempo em que nem todos são fotógrafos, mas todo mundo fotografa”.

Debate Rubens Fernandes – No livro “Figuras do Espanto, a fotografia antes da sua cultura” (Lisboa, Edições Asa, 1992), o pesquisador português Pedro Miguel Frade fala sobre o que seria o tempo primeiro da fotografia, quando as pessoas iam a um daguerreotipista para serem “fotografadas”. O tempo de exposição era muito longo e as pessoas não podiam piscar os olhos ou se mexer, não podiam fazer absolutamente nada. Ele chama esse instante, que é um pouco o trabalho de longa exposição mostrado pelo Pio, de figuras do espanto. Ao olhar para esse conjunto de retratos produzidos por volta de 1840, as pessoas são muito estranhas, o retrato é muito estranho justamente porque o tempo de exposição é muito longo. Então esse primeiro tempo é o tempo exigido pelo equipamento, pela técnica e obrigava os retratados a se postarem daquela maneira.

Outro tempo, discutido no debate “Por onde andará Cartier-Bresson” pelo Eder Chiodetto e Zeca Linhares, é o do instante decisivo. No limite, o instante decisivo é aquela famosa articulação entre a geometria da cena e o momento do registro e tem como representantes Cartier-Bresson, depois André Kertész e Robert Doisneau que não foram em busca do instante decisivo, mas têm uma fotografia muito precisa. O Roland Barthes disse que não gostava desses fotógrafos porque existe um excesso de controle sobre o tempo, fazendo com que a espontaneidade da imagem se perdesse e se diluísse na força que eventualmente poderia ter.

Depois, salto para Duane Michals, fotógrafo norte-americano, que preferia ligar a ideia do tempo à recepção e não à produção da imagem. Na sua opinião, à medida em que forma sequências e cria pequenas narrativas, quem dá o movimento e o tempo de movimentação é o expectador que vê a obra e, ao passar de uma imagem a outra, concretiza esse tempo de passagem que é diferente dos tempos que coloquei anteriormente.

Finalmente, o Robert Frank defende a ideia de um registro e fala de momentos intermediários, ou seja, o momento em que o fotógrafo revela o equilíbrio e surpreende a realidade desprevenida. Então são quatro tempos. Fui revisar a obra do filósofo francês Henri Bergson e outros autores para conduzir o texto, mas em nenhum momento relativizei a questão do espaço. Fiquei pensando na ação temporal da imagem e a Cláudia Linhares trouxe essa colaboração sobre o espaço dentro daquela imagem. Se possível, gostaria que você falasse algo sobre essa relação entre tempo e imagem, pensando um pouco em alguns desses momentos que coloquei.

Cláudia Sanz – Para pensar essa diferença entre a longa exposição das primeiras fotografias e a fotografia instantânea, não vejo ninguém melhor que Walter Benjamin. Podemos pensar essa distinção a partir da curva histórica que realiza no famoso texto “A Pequena história da fotografia” (ensaio publicado em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”). O ápice da fotografia estaria no período de seu surgimento, momento sucedido por uma espécie de decadência total em consequência de ter se tornado produto comercial. Depois, num terceiro momento, haveria uma espécie de restauração. Trata-se de um pensamento muito próprio do Walter Benjamin que fala a partir da ideia de declínio da experiência. Houve um apogeu, um declínio, mas

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também há saídas. Na realidade, podemos pensar “A pequena história da fotografia” a partir de diferenciais do tempo. Segundo Benjamin, nessas fotografias de longas exposições, havia uma espécie de inscrição do futuro, algo muito distante daquela ideia do Barthes do “isto foi”. Mesmo que a fotografia esteja muito marcada pelo “isto foi”, Benjamin nos permite pensar que ela também está marcada pelo que poderia ter sido, ou seja, cada fotografia é uma espécie de projeto de futuro. Isto fica muito evidente nessas imagens dos retratos filmados da Cia de Foto. Trata-se de uma espécie de dilatação do instante. Quando vejo um instante, penso nele como a contração de uma duração. Não uma contração que estanca a duração, mas uma contração onde estão contidas tensões. O que a Cia faz nos retratos gravados? Transforma aquele instante numa dilatação e percebemos que o personagem está olhando e negociando o que vai mostrar para a câmera. Nessa negociação, inscreve-se o que poderia ter sido. Benjamin usa uma imagem linda de uma vendedora de peixes para dizer que o olhar dela está falando do futuro, mas não o futuro que aconteceu. O futuro do qual fala não é o passado para nós. O futuro do qual fala é um futuro que poderia ter sido, é aquilo que significa a abertura do tempo, algo que poderíamos ver na fotografia exatamente por esse poder de contração. Não temos como não pensar no Niépce tentando imprimir uma imagem durante oito horas sobre o telhado. Essas longas exposições são explicitamente projetos de futuro.

No caso da fotografia instantânea, podemos recorrer a Mauricio Lissovsky que pensa muito bem a passagem dessa longa exposição para a linguagem do instantâneo. Na sua opinião, a fotografia moderna surgiu quando se tornou instantânea. Ele tem razão ao dizer que toda a linguagem da fotografia do século XX está calcada no instantâneo. Por mais que haja diferenças entre autores como o Cartier-Bresson e outros, de alguma maneira, estão produzindo diferenças a partir do modo de expectação. Falar sobre expectação é considerar o tempo anterior a uma fotografia distinto do tempo anterior a qualquer outro evento. A ação e a maneira de experimentar o tempo são produzidas pelo horizonte fotográfico de instantaneidade. O horizonte do instantâneo produz a expectação: maneira de estar diferente no tempo.

Meu estudo é sobre a gênese histórica da fotografia a partir do tempo. Isso não significa que esteja tentando pensar uma origem da fotografia, mas uma origem histórica, o modo histórico em que ela foi agregando tensões temporais. Havia uma tensão temporal nas primeiras fotografias

de longa exposição, uma tensão que se dá entre o presente e o projeto de futuro. Com o advento da fotografia instantânea, começa a ocorrer um tipo de tensão diferente, agora entre o instante homogêneo, espacializado, e um instante heterogêneo; entre o contínuo e o descontínuo do tempo; entre uma memória fisionômica e uma memória aberta a fissuras, produtora de experiência.

Para Lissovsky, quando instaura-se o instantâneo, o tempo da longa exposição reflui para fora da fotografia produzindo, de certa maneira, uma expectação. Para mim, trata-se de uma contração, a contração temporal própria do instante. É isso que os fotógrafos modernos vão trabalhar. Apesar de suas diferenças, eles têm em comum esse fundamento da fotografia moderna, o fundamento da expectação e de um tempo denso.

Cláudia Sanz – Entre os trabalhos apresentados pela Cia, o que mais discute o problema do tempo é este de longa exposição porque tira o horizonte do instantâneo. Está lá como horizonte, mas ao mesmo tempo não acontece, não procede. É a expectativa que aparece, a expectação de quem está sendo fotografado, a expectação irônica de quem está fotografando e a nossa expectação sobre o que vai acontecer e surgir. Como se, de alguma maneira, cada imagem pudesse dilatar o instante sem fazê-lo desaparecer. O que produz essa temporalidade é uma duração, um conflito entre uma duração que está acontecendo e uma possibilidade de corte. Por outro lado, essa dilatação parece não durar em nossa cabeça. Quando acaba, a imagem parece desaparecer, como se o instante tivesse durado o suficiente para não nos impregnar mais da mesma maneira. Vamos tentar imaginar que vemos a mesma imagem, mas ao invés de ter durado, ela parece ser uma imagem instantânea. Que tipo de duração seria? Tentar pensar a diferença entre a duração da imagem que aparentemente não dura, uma imagem instantânea, e a duração de uma imagem que deveria durar, mas é instantânea. Minha sensação é que há uma virtualidade maior em termos de duração em uma imagem parada que em uma imagem que é “realmente” durável. Na verdade, trata-se daquela discussão sobre cinema e fotografia, mas ali está a brincadeira da fotografia.

O segundo trabalho é um vídeo de imagens instantâneas colocadas umas sobre as outras que possibilita pensar as diferenças entre a fotografia moderna e a fotografia contemporânea. Uma fotografia moderna que

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pretendia parar o mundo e se fez em uma apreensão do efêmero. Nessa fotografia, há tensão entre a duração e o instantâneo. Na contemporânea, é um instantâneo em um mundo que não quer parar. Lissovsky fala da fotografia como uma máquina de esperar, mas será possível termos hoje uma máquina de esperar? Parece que a fotografia não é mais uma máquina de esperar. É uma máquina de acelerar. Se antes havia uma pretensão, um conflito entre parar e continuar, entre transitório e eterno, hoje é como se um instante não pudesse parar mais nada e a tensão fosse outra. Não sei qual é, mas penso sobre essa relação entre velocidade e tempo da fotografia.

Pio Figueroa – Posso falar um pouco de motivação na lida fotográfica. Na nossa entrada na fotografia, há um gesto de subversão porque o que dão como repertório de trabalho fotográfico é sempre pouco. A ideia da longa exposição bate numa questão que é termos sido educados a fazer um retrato por um pacto, um teatro que se faz numa fração de segundo. Então as pessoas, principalmente as que vivem de imagem, celebridades e demais, têm um gestual gráfico que dá uma intenção. Dessa forma, fazemos um retrato em quinze minutos. Na hora em que a gente abre a câmera e deixa gravando, é muito desconfortável, é outra mentira que se estabelece na performance. Por outro lado, é tão impossível ser verdadeiro e ficar natural diante de uma câmera que o referente se vinga com uma ficção. Temos uma herança de poses e de performances, diferente do que uma câmera provoca que vem de uma vingança do referente, uma vingança de dizer assim “eis aqui a minha moeda pra vocês”. Esse trabalho começa com uma piada que vai formalizando um processo de estudo. Como é transformar o que está estudando, tentando conceber num resultado fotográfico? É através da conexão de histórias, sendo o repertório que temos, um repertório comercial.

A questão do outro lado, do outro tempo toca numa questão contemporânea que é a fotografia como documento, como gesto, como instrumento de sociabilidade. Nesse trabalho tem um excesso de imagens e a fotografia se manifesta muito mais como gesto do que como objeto. É uma expressão quase idílica, é uma ansiedade.

José Benedito de Oliveira, fotógrafo e integrante do grupo Paralelo (Porto Alegre) - É possível chegar a alguma conclusão sobre o que é o tempo? É um ente mensurável? Sobre a relação do tempo com o surgimento da fotografia: até que ponto a fotografia surgiu por

um momento tecnológico propício da humanidade assim como o surgimento da máquina a vapor? A outra questão colocada, na minha visão, de uma forma não muito adequada, é a ideia do “se não fosse” e suas implicações na interpretação de uma fotografia. O “se” leva para um aspecto de discussão temporal onde tudo é possível. Com relação à intervenção da Cia da Foto, não poderia ser considerado falta de ética omitir que a pessoa está sendo gravada e não fotografada. Nada mais é que a intimidade roubada, além de deixar de ser fotografia e ser filme.

Cláudia Sanz – Quem fala sobre “se fosse” é Walter Benjamin. Não é uma questão sobre a possibilidade de ser qualquer coisa. Somos não só aquilo que aparentemente nos acontece, somos aquilo que imaginamos que nos poderia acontecer. Somos formados pelos nossos sonhos. É disso que Benjamin está falando. Os nossos sonhos aparecem na fotografia e se inscrevem como projeto de futuro. Para Benjamin, poder pensar assim é poder pensar em algo além da história dos vencedores. Ele está pensando principalmente em relação aos nazistas e à história contada pelo nazismo. Benjamin era alemão e se suicidou porque não tinha outra saída, mas estava dizendo que outra história poderia ser contada, diferente daquela dos arquivos: uma história do que poderia ter sido. Pensar o que poderia ter sido é pensar também nas possibilidades de sonhos na atualidade.

Não tenho a menor ideia sobre o que seja o tempo. Santo Agostinho dizia que se lhe perguntassem o que era o tempo, ele não saberia responder, mas saberia viver. Muitos filósofos pensaram assim. A partir da modernidade, surgiram vários tempos e a pergunta “o que é o tempo?” não aparece mais. Questiona-se sobre o que é o tempo físico, o que é o tempo histórico, o que é o tempo individual, o que é o tempo coletivo. A partir do século XIX, houve uma experiência histórica do tempo diferente da experiência anterior à modernidade e que está relacionada à própria experiência fotográfica. Se a experiência fotográfica é fruto de uma certa experiência do tempo e, neste ponto, discordo totalmente da ideia de que o advento da fotografia tenha sido uma questão tecnológica. Não foi uma questão tecnológica, foi produto de uma mudança muito mais ampla no campo subjetivo. A experiência fotográfica não apenas surgiu de uma certa experiência do tempo como também a alterou.

Pio Figueroa – A questão ética não deve ser seguida como doutrina, devemos usá-la para discutir e ampliar essa percepção. Geralmente,

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encaro a noção de intimidade roubada. Temos uma forma de fotografar que é muito mais uma exposição que uma apropriação de intimidade. A leitura do que é intimidade roubada cai bem no trabalho. O sistema que faz alguém posar para mim não merece o meu respeito sobre este íntimo. Ele está posando no sentido mais comercial do termo, na construção desse retrato. Não está sendo íntimo comigo quando se expõem para ser retratado, mas gosto da opinião e discordo um pouco no dizer que não é fotografia, mas filme. Não foi usado filme, não é uma filmagem. Não é filme simplesmente porque não há filme, não há essa matéria entre o que foi gerado de imagem, entre nós e o referente. Para nós na Cia de Foto, o filme deixou de existir no ano 2000, sem nenhuma análise de valor em relação a isso. Essa convergência, esse atravessamento de fronteiras é o ponto máximo de discussão e deveríamos sofrer menos com essas definições. A definição é uma necessidade da sociedade moderna. A questão do movimento ligado ao tempo é uma coisa fundamental, quando a gente se apóia num espaço para pensar sobre isso.

Sinceramente, o trabalho dos retratos com longa exposição está em processo e gera um desconforto brutal. É muito chato quando uma pessoa não reage a sua câmera durante um minuto. Uma das coisas que não vamos esquecer do Barthes é a explicação sobre os personagens envolvidos num retrato. Tenho amigos fotógrafos, retratistas brilhantes que fazem uma performance do tipo cafona, algo como “te mostra pra mim”, “quero te ver”. Se você não usa esse artifício, gera uma tensão e elege a câmera fotográfica como pivô de algo extremamente tenso e desconfortável. Não é fácil ficar dois minutos parado na frente do Hector Babenco. Não tenho nenhum tipo de juízo de valor em relação a ele. Acho interessante sua história no cinema, mas não sou fã. É um cara que não dá vontade de criticar. A gente fez a foto com o J.R. Duran que faz parte de uma escola de fotografia completamente diferente da nossa. De certa forma, ele vive em cima do personagem fotógrafo e dessa performance de como é ser um fotografo. Então, como pegar esse cara, como é trazer esse tipo de coisa? São poucos os que conseguem ter uma explosão espontânea e bacana, geralmente as pessoas se disfarçam ali.

J.R. Ripper – Gostaria de ouvir se há uma relação entre a longa exposição e a questão do fotógrafo e do outro, em termos do cotidiano fotográfico, ou seja, dar tempo ao tempo para que o tempo se volte a seu favor. Inúmeras vezes, não damos tempo quando chegamos a um trabalho e às vezes apressamos um pouco. Como não deu tempo ou não

esperou o retorno desse tempo, a imagem que vem não retrata aquela alma, aquele sentimento, aquilo que estamos vendo. Quando assisti a um desses trabalhos, pensei que, independente do resultado obtido na longa exposição, como também poderíamos trazer para o nosso proceder fotográfico uma longa exposição de espera?

Pio Figueroa – É uma questão linda. Sou de uma geração que perdeu muito tempo porque viemos depois do Sebastião Salgado. Durante dez anos, não consegui fazer nada que não fosse um trabalho atrelado a ele. Então os tempos fotográficos que aprendi como coeficiente criativo do meu trabalho estão lincados a essa escola. Hoje, o que acontece no nosso meio e na Cia de Foto é que o convívio com a fotografia é super intenso, é um ambiente. Muita gente vivendo junto com uma relação muito forte e intensa, afetiva. Essa fotografia está acontecendo ali, generalizamos o nosso trabalho de campo e o click tem um tempo reduzido em relação ao resto. Também temos um trabalho muito forte na edição para trabalhar o que captamos em um arquivo cru digital e reinterpretar esse trabalho. A Cia de Foto tem sete anos e fica difícil avaliar como resultado tudo que estamos vivendo em tão pouco tempo. Arriscaria dizer que sofisticamos o repertório que tínhamos. Não sei se é o melhor e o quanto ainda vamos amadurecer, mas alongamos isso. Esse trabalho é um exemplo desse alongamento. Em alguns outros trabalhos, é a produção intelectual e a visão do trabalho. Não consigo citar algum trabalho que tivemos uma espera no campo, é algo que não fazemos muito. Geralmente, quando chegamos é quase ridículo de frenético. É um ato fotográfico meio absurdo e violento. Não esperamos, somos invasivos. Não sei julgar, mas seria interessante refletir sobre o tempo que se estabelece pra construir um trabalho. Em que fase esse tempo, essa duração no trabalho se estabelece e como valorizamos. Quando comecei, não me davam esse tempo e nem o valor de construção epifânica desse tempo. Isso foi algo tirado da minha geração.

Cláudia Sanz – Não vou falar do ponto de vista da fotografia diária, pois tenho feito um movimento de parada, um recuo teórico para produzir uma outra temporalidade. Fazer mestrado e doutorado é uma resistência. Discutir e conversar como fazemos aqui é uma resistência ao mundo, é uma atitude política. O tempo se tornou uma questão política mesmo. Talvez o que caracterize o mundo hoje e possa diferenciar a alteridade do atual é exatamente uma mudança na experiência temporal. Um ritmo frenético em todas as dimensões da nossa vida, mas não só o ritmo, não

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só uma aceleração inédita, também uma maneira de ver o futuro muito diferente. Não temos projetos de futuro ou estamos tentando adiá-los. Tentamos adiar o envelhecimento e o futuro. Como informa o comercial do cartão de crédito “a vida é agora”. Entretanto, essa vida agora deve ser vivida de forma que não pode ser vivida com substância porque, a todo momento, é preciso mudar.

O problema do fotógrafo contemporâneo é lidar com uma enxurrada de imagens e com o frenético ritmo de sua produção. É muito importante dar essa parada e não importa se é no momento da tomada ou se é posterior. Diante dessa profusão de imagens, só uma imagem que possa se separar de alguma maneira pode reverberar alguma questão.

Rubens Fernandes – A fotografia inaugurou a era das imagens técnicas trazendo novas conceituações e questionamentos sobre como e porque olhar o mundo. A experiência de ver um álbum de fotografias familiar que reúne imagens de vidas inteiras produz uma incrível sensação de deslocamento e uma emoção particular já que a fotografia permite reviver aquele tempo não vivido. O movimento de ir ao passado e voltar ao presente dá exata ideia de uma consciência histórica do tempo e nos permite confrontar os tempos da fotografia com o tempo presente. Isso sem dúvida é uma dolorosa e imperdível experiência.

Gosto muito da ideia do fotografo Denis Roche que considera a fotografia como depósito de saber. É interessante porque está dizendo que toda fotografia nos permite visualizar as diferentes camadas de tempo que ela contém. Não só o tempo físico, vivido e flagrado, mas também o tempo tecnológico. Ver um albúmen é diferente de ver um daguerreótipo e diferente de ver uma imagem digital. Além do tempo detido na imagem, temos um tempo tecnológico que faz com que sua experiência seja única.

Vimos que a questão do tempo contemporâneo talvez seja aquilo que mais nos massacra cotidianamente. No fundo, em todas as situações, reclamamos da falta de tempo. Segundo Michel Foucault, o tempo não pertence ao homem, o tempo pertence ao sistema. Pensando no sistema fotográfico, no tempo do daguerreótipo, no tempo dos retratos da Cia de Foto, no tempo do fazer contemporâneo, nos diferentes tempos que trabalham em função do sistema que a gente está utilizando e do sistema que nos oprime e que nos impõem determinadas velocidades e determinadas ações e que faz com que a gente a todo tempo reclame do tempo.

O Arquivo Universal

Estou sendo forçada a fazer certas revisões na minha prática. São mais de 20 anos de trabalho e estou começando a entender algumas coisas e realizando uma leitura do caminho que percorri. A pergunta sobre ser fotógrafa ou artista me acompanhou por 15 ou 20 anos e talvez tenha incomodado mais o público que a mim. Nunca respondi de forma precisa por ser algo que não me afetava enquanto produtora de ideias e imagens.

Descobri que sempre dei mais importância à relação que o ser humano tem com as fotografias. Tive um envolvimento com a fotografia tanto a partir da arquitetura quanto das artes plásticas. Sempre produzi imagens e nunca me satisfiz com o que eu mesmo produzia. Acabei descobrindo que o meu maior interesse era a fotografia como sistema. Sempre gostei mais de me envolver com o que a fotografia significa na sociedade contemporânea e com o papel que cumpre no mundo.

Dessa forma, se tomarmos a fotografia como sistema de representação no mundo, veremos que ela cumpre uma finalidade para o ser humano. Qual? O que o ser humano faz desta fotografia? Qual é o julgamento de valor, qual o sistema? Qual a importância da representação fotográfica

Rosangela Rennó1

Arquiteta, Artista Plástica e Doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da USP.

1 - Informações sobre a autora estão disponíveis no endereço: http://www.rosangelarenno.com.br/biografia/pt

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para o indivíduo e em que medida as imagens produzidas cumprem uma determinada função. Quando deixam de cumprí-la, as imagens vão para lata do lixo, arquivo morto ou simplesmente são queimadas ou apagadas do computador. Sempre me interessou muito mais a relação entre o ser humano e a representação de si como sistema.

A partir da década de 80, comecei a construir a ideia de que as fotografias tinham uma autonomia, como se pudessem ser descoladas do referente e pudessem significar, sustentar um ciclo de vida próprio. São os delírios que construo quando lido com fotografia usada ou feita pelos outros e que vem para minha mão como um signo vazio, onde posso construir e injetar um personagem, um nome ou a persona que quiser.

Neste sentido, comecei a trabalhar com a apropriação de imagens de anônimos. Como decorrência desta minha obsessão em trabalhar com imagens já produzidas, acabei descobrindo o território fantástico dos arquivos que, ao deixarem de cumprir determinada função, se tornam arquivos mortos. Os arquivos guardam uma pulsão de morte, mas tem algo que lhes segura ali, aguardando que alguém possa dar uma segunda significação ou uma sobrevida a eles.

São questões que povoam ou assombram meu imaginário há vários anos. Trabalho não só com imagens de autores que acabam se tornando anônimos, pois não posso nomeá-los mais, como também com fotógrafos que convido para dividir ou compartilhar autoria. Tanto projetos em que compartilhamos a autoria de uma imagem nova, um objeto novo, quanto trabalhos que nascem a partir de imagens produzidas por um fotógrafo profissional, alguém que vive da produção de imagens publicitárias, jornalística ou que tem uma prática artística definida.

Fotógrafa ou artista?

Mudava a resposta a esta pergunta em função da plateia. Para uma plateia de artistas, dizia que era mais fotógrafa, para fotógrafos dizia que era mais artista. Nos anos 90, esta pergunta tinha um significado e algumas respostas possíveis. Hoje, esta questão não cabe mais porque finalmente entendeu-se que estamos todos dentro do mesmo caldeirão, o caldeirão de imagens que mudam de contexto a todo momento. A prática fotográfica se tornou muito fácil e simples e a ideia de especialização do fotógrafo caiu por terra com a imagem digital. Com alguma habilidade, todo mundo pode virar fotógrafo da noite para o dia.

Agora, a pergunta que recebo com frequência é: por que não fotografo? Por que não faço minha própria imagem? Se é tão fácil, por que precisa se apoiar em outro produtor?

Houve um deslocamento na pergunta, mas continua o problema. Respondo da forma mais simples possível: para que ir até o sertão, no norte de Minas, fotografar um redemoinho se tem gente muito mais competente que vai lá e fotografa e posso convidar para compartilhar um trabalho comigo? Meu grande interesse é pelo sistema da representação da fotografia na sociedade contemporânea, seu papel no mundo. Sou muito mais eficiente resignificando ou agregando significados e sentidos na fotografia de outro fotógrafo – amador ou profissional – que produzindo esta mesma imagem. Tenho mais riqueza fazendo esta espécie de segunda operação que é agregar sentido. A imagem feita pelo fotógrafo não carece de qualquer sentido. Ela tem, é tão boa que quero roubar, quero incorporá-la ao meu repertório. Aquela imagem tem um significado único ou primeiro ao qual posso agregar vários outros. É possível resignificar esta imagem e fazer com que ganhe amplitude. Sou muito mais eficiente fazendo isso que simplesmente reproduzindo o mesmo gesto de fotografar.

Estamos em um vértice louco de produção, há tantas formas de fazer circular imagem, o mundo já está muito povoado de fotografia. Por que não discutir questões como o direito de imagem, o direito do autor, essa vertigem sobre a excessiva produção? A produção de imagem está em uma escala tão grande que compete ou já ultrapassou nossa capacidade de absorver a própria imagem produzida. Não faz sentido repetir algo que outra pessoa pode fazer muito melhor que eu. Se puder compartilhar ou discutir com o autor desta imagem produzida, é mais gratificante e mais rico.

Texto e imagem

Neste território que diz respeito ao papel da fotografia ou da imagem no mundo, sempre tive como orientação a produção de um tipo de imagem que dialogasse ou antecipasse a leitura que poderia ser feita da imagem proposta. O texto entra como uma linguagem paralela muito forte. Desde a infância, lidamos com livros ilustrados, aprendemos a ler com o suporte da imagem e muitas vezes com imagem fotográfica. A história da fotografia está povoada com grandes lições. Não penso só no texto escrito, penso na narrativa que é uma forma de ampliar o alcance ou a significação da imagem fotográfica. Para mim, o texto sempre foi uma

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espécie de catalisador da imagem. Aprendi muito com a publicidade que oferece muitas ferramentas e muito instrumental. Eles aprenderam como fazer a imagem ser mais eficiente com o texto. Sempre gostei de brincar com esta possibilidade de fazer o texto conviver e, potencializar a imagem. Sempre gostei, dependendo da série ou do projeto, de usar texto jornalístico, literatura, título de filmes, legenda e dialogar com todas as possibilidades de veiculação e com todas as possibilidades de narrativa.

O Arquivo Universal surgiu em 1992, a partir de textos jornalísticos que mencionavam de alguma forma uma fotografia, um sistema, um conjunto ou um arquivo. Muitas vezes este texto não vinha associado à imagem em questão, substituía a imagem. O Arquivo Universal começou com uma brincadeira, uma ideia irônica de ter um arquivo infinito. Quando alguém lê um texto, gera uma imagem mental própria que não pode ser igual a de outra pessoa porque conta com uma experiência de memória diferente. É como se houvesse um arquivo de infinitas possibilidades visuais a partir de um dado texto.

Para mim, o texto sempre foi tão importante quanto a imagem. Houve muitos momentos em que participei de exposições só com texto. Sempre editei estes textos com o mesmo rigor e da mesma forma que edito uma série fotográfica.

Suporte

O suporte é uma das coisas que mais me moveu na busca pelo entendimento do que é o sistema fotográfico. Sempre gostei de investigar possibilidades que permitissem abrir mão do papel fotográfico ou entender como lidamos com o sistema bidimensional. Neste terreno, é importante colocar o trabalho “Realismo Fantástico” (1991). Comprei um abajur infantil giratório e copiei o dispositivo de movimento no cilindro da imagem para substituir por negativos. Fiz uma instalação baseada em fantasmagorias projetadas na parede. Estes trabalhos são como rituais na minha forma de criar os projetos. De cinco em cinco anos, aparece um fantasma deste tipo.

Fiz quatro ou cinco trabalhos buscando estes fantasmas através da imagem fotográfica. Recentemente, fiz um trabalho de projeção de imagem sobre fumaça, “Experiência de Cinema”. A imagem tinha a mesma duração da cortina de fumaça. Quando a fumaça se desfazia, a imagem se desfazia

junto. Um dispositivo de vídeo foi associado a uma máquina que produz fumaça. O dispositivo fica visível para mostrar que estas fantasmagorias são inventadas, assim como todo o sistema fotográfico que é um processo derivado de questões óticas, químicas e mecânicas.

Arquivos

Meu envolvimento com arquivos cresceu, comecei a enveredar para formas de arquivamento e apresentação de imagem. Estava chocada com as visitas a museus que são tão direcionadas que o objeto em si perde importância. Em 2002, fiz um trabalho que chamava “Biblioteca”, um híbrido de biblioteca, museu e arquivo para guardar uma coleção de 100 álbuns de fotografia que juntei ao longo de 10 anos. Sempre juntei material fotográfico para povoar meu atelier. Criei a série com 37 vitrines organizadas segundo um código de cores em 10 grupos como se fossem continentes. Criei um projeto para abordar a biblioteca em três níveis. No primeiro, é possível circular em torno das vitrines e ver a reprodução do objeto que está dentro. Também é possível buscar informação no mapa sobre o local onde os objetos foram encontrados ou no arquivo de fichas que contém dados sobre objetos e algumas deduções feitas a partir da observação. São as informações que forneço sobre aquelas narrativas visuais que não podem mais ser tocadas, estão fechadas nas vitrines. Além disso, o código de cores permite entender a origem e o destino do álbum, contando um pouco a diáspora daquele objeto.

Autoria compartilhada

Em 2006, convidei 42 fotógrafos para compartilhar a autoria do projeto “A Última Foto”. A proposta era vir ao meu atelier, escolher uma câmera fotográfica analógica da coleção que fiz para este trabalho e fotografar o Cristo Redentor. Havia várias ideias que culminariam na apresentação da imagem capturada pelo fotógrafo e da câmera usada. O fotógrafo foi o produtor e editamos juntos, mas tive a palavra final porque conhecia o conjunto. A câmera veio com a lente lacrada e foi emoldurada junto com a fotografia. A “última foto” é efetivamente a última feita, pois aquela câmera não será mais usada. Também fizemos uma revista com entrevistas sobre a história do monumento e sobre a mudança do paradigma da fotografia analógica para digital.

Era uma discussão sobre a morte da fotografia analógica e também uma brincadeira sobre a última foto do Cristo Redentor. Não é possível

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pensar na última foto do monumento que possivelmente é um dos mais fotografado em todo o mundo. Na época, a família de um dos autores do monumento reivindicava o direito sobre o uso da imagem do cristo do corcovado. A questão é como estabelecer a diferença entre público e privado? O monumento pode ser considerado o mais público do Rio, é visível em boa parte da cidade, mas é privado por pertencer à Arquidiocese que se reserva o direito de impedir o uso quando considerar que a imagem de Jesus Cristo pode ser denegrida.

Era um grande pretexto para discutir coisas que incomodavam muita gente como direito de imagem e direito moral do autor. Essa fronteira tênue entre público e privado assombra todos que trabalham com imagem.

Ainda na linha de compartilhar autoria do projeto, fui convidada para uma exposição chamada “Sertão Contemporâneo” e não pude ir ao sertão. Decidi que não cabia mais ir e me interessei em buscar fotógrafos que tivessem conseguido fotografar os redemoinhos do sertão. Aqueles redemoinhos do Guimarães Rosa onde mora o diabo. Foi tarefa muito difícil, contei com a ajuda de uma pesquisadora. Procuramos quem tinha fotografado e ouvimos mais histórias de redemoinhos não fotografados do que fotografados. Consegui juntar esta série de seis sequências feitas pelos fotógrafos João Castilho, Leo Drummond, Odilon Comodaro e Joel Silva. Aproveitei as sequências para dar noção de narrativa ou de extensão temporal e tentar alongar o evento, o fenômeno. Pedi que os fotógrafos dessem um depoimento sobre o redemoinho. São lindos, é pura literatura.

Linguagem fotográfica

Atualmente, os pressupostos da fotografia são diferentes da fotografia ortodoxa, ótica e química. É difícil pensar em termos de uma linguagem. A fotografia se vale de uma linguagem visual que pode ser decodificada – tanto a analógica quanto a digital – mas pode cumprir muitas agendas. Aí está a questão complicada: definir onde está, qual é o alcance do que se considera linguagem. Se é algo que norteia a produção daquela imagem bidimensional ou se vai até os usos e funções que cumpre. Não me atreveria a definir, é pergunta para semioticista. O máximo que posso fazer é discutir algumas questões produzindo imagem. Deixo a teoria para outros que fazem melhor que eu.

Matéria de poesia

O título é de uma obra do Manoel de Barros. Fiquei muito sensibilizada com a forma como ele faz poesia através do lixo. Descobri uma série de relações entre coisas ou ideias que acalentava e meus processos de trabalho com a construção poética do Manoel. Pedi autorização para incorporar os poemas ao trabalho e adotar como meu o título de um livro seu. Os poemas complementam a série de imagens, construídas a partir da sobreposição de slides. Faço a condensação de slides na mesa de luz. É um trabalho de observar, escolher e atribuir as imagens que ficam melhores juntas até obter uma imagem quase negra onde é possível apreender detalhes, pedaços, fragmentos de uma imagem que não é vista mais na totalidade. É pensado em polípticos de seis imagens, onde cada elemento é composto de quatro a sete slides juntos. São imagens únicas, todas se parecem muito, mas são totalmente diferentes. Cada políptico corresponde à coleção que gerou a imagem e um trecho de poema do Manoel de Barros. A leitura pode ser feita a partir dos slides, fotos ou poemas.

“Carrazeda + Cariri”

O trabalho partiu de uma visita feita a região do Cariri (Ceará) para conhecer os mestres que continuam usando técnicas tradicionais de trabalho com couro, madeira, metal e fotografia pintada. Fiquei muito sensibilizada com a dificuldade de fazer retrato pintado atualmente, já que não existe mais material fotográfico e o que existe não chega lá. Não tem mais papel fibra e filme fotográfico em preto e branco. Mesmo assim, as pessoas continuam querendo ter retratos pintados e fotógrafos precisavam resolver a demanda. Então, usam Photoshop.

Seria possível supor que, com todas as possibilidades oferecidas pelo Photoshop e as condições técnicas de fazer um retrato e uma ampliação mais fiel, as pessoas teriam interesse em obter uma imagem mais nova, mais próxima do retrato contemporâneo. Entretanto, a clientela continua querendo o retrato pintado e os fotógrafos do Cariri usam Photoshop para fazer o retrato exatamente como faziam quando usavam pintura com pastel seco, oleoso e pintura a óleo sobre papel fotográfico. São imagens retocadas que dão aquela fisionomia lisa e limpa, um híbrido entre fotografia e pintura. Os fotógrafos se beneficiam da situação, pois as imagens que imprimem em suas impressoras não duram muito. O retrato fenece e desbota mais rápido que a fotopintura a óleo. Quando desbota, o cliente vai lá e pede outro.

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Conheci os mestres de Juazeiro e queria trabalhar com eles, mas não sabia como. Lembrei de uma história que li em jornal dois anos antes sobre povoados do norte da Espanha e Portugal que estão morrendo porque as mulheres não querem mais a vida do campo e não estão dispostas a casar. Os homens ficam solteiros e as cidades estão encolhendo. Pedi os retratos dos portugueses solteiros que buscam esposas, fotografei, ampliei em papel fibra e entreguei estes retratos para que os pintores pudessem pintar estes indivíduos que nunca viram. Surgiu o projeto “Carrazeda + Cariri”. É uma brincadeira com duas situações limite: o retrato pintado e as vilas que vão morrer. Colocou junto pessoas que provavelmente nunca vão se conhecer. Na exposição, coloquei na parede o texto jornalístico que tenta explicar porque não há mulheres disposta ao casamento na vila portuguesa Carrazeda de Anciães.

Apagamento

Fiquei muito tocada pelos grandes furtos a coleções de fotografia no Brasil. Em 2005, foram roubadas quase 900 fotográficas da Divisão de Iconografia da Biblioteca Nacional, mais de 1.200 fotografias do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Eram fotografias preciosas do Augusto Malta e outros autores. Foram furtos de fotografias do século XX com grande valor de mercado, possivelmente encomendados por quem realmente conhece o valor destas imagens tanto no Brasil quanto no exterior.

Em 2006, houve novos furtos. Não é coincidência. Se há demanda, alguém tenta disponibilizar para venda. Alguém descobriu que estes arquivos eram suficientemente vulneráveis para serem furtados e que não estavam devidamente documentados. Se fizessem desaparecer imagens destes arquivos, seria muito difícil provar sua origem. Comecei o projeto em 2008. Consegui autorização da Biblioteca Nacional e da Polícia Federal para ver, manipular e usar as fotografias que foram devolvidas à Biblioteca Nacional. O material que volta desses furtos fica separado por ser considerado prova de crime. A opção foi não mostrar a imagem propriamente, mas o verso e os danos que sofreu. Fiz um livro baseado na reprodução dos versos destas fotografias com uma tiragem pequena de offset para doação a bibliotecas e uma versão elegante para colecionadores. É o primeiro, pretendo fazer mais dois livros2.

É um trabalho muito especial porque mexe com a ideia de apagamento que permeia o meu trabalho há muito tempo. São imagens que tendem ao apagamento, ao esquecimento, à invisibilidade. Este trabalho lida com a possibilidade, a necessidade de não deixar algo cair no esquecimento.

Coleções e processo criativo

Meu atelier está povoado destes fantasmas (coleções) e estou sempre tentado dar um sentido de ordem neste arquivo. Cada vez que tento dar uma ordem, descubro que há outras possíveis. É possível ordenar um arquivo de diversas maneiras e, nesta convivência, os trabalhos surgem. Muitas vezes, convivo com material por muito tempo e ele já é muito precioso. Há materiais em que é possível agregar mais facilmente um segundo significado ou uma segunda camada. Outros são quase refratários porque são tão perfeitos na sua elaboração que não cabe outra coisa a fazer com aquilo a não ser admirar. É pela convivência com este material que o projeto sai. Muitas vezes acontece o oposto, convivo muito tempo com um material e ele não responde como lidar com ele. No entanto, às vezes cai um slide na minha mão que me faz buscar dez mil outros slides para começar a constelar um arquivo que ainda não existe. Surge uma urgência em função de um objeto único, a partir do qual tenho que constituir um arquivo para depois trabalhar.

Autoria e manipulação

Nunca parei para pensar sobre onde faço mais os jogos de opacidade. Acho que faço menos quando compartilho com alguém que tem um nome, produz e vive daquela profissão. Respeito a imagem e dialogo com esta imagem produzida de outra forma.

O fato de compartilhar a autoria me obriga a creditar esta pessoa. É uma questão de respeito e uma homenagem ao profissional que está dividindo a autoria comigo. É mais fácil lidar com a ideia de fantasmagoria quando trabalho com imagens anônimas. Tenho mais liberdade para manipular. Para manipular imagem de profissional, preciso de autorização, o fotógrafo tem que saber que estou produzindo uma imagem derivada e precisa topar.

Trabalhar com os fantasmas nas imagens em que não sou capaz de dar nomes talvez seja uma questão de escolha. Estas imagens falam muito mais sobre uma pré-imagem ou uma imagem mental, algo menos ligado

2 - 2005-510117385-5. Rosangela Rennó adotou o número do inquérito que investiga o furto de 751 imagens da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, como título de sua obra. A autora reproduziu o verso das 101 imagens que foram recuperadas e organizou um livro distribuído a bibliotecas e instituições culturais em todo o país.

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ao sistema fotográfico, esta agenda que a fotografia tem que cumprir, e mais sobre algo mais primitivo.

A questão remete à ideia do complexo da “múmia”3, onde o destino ou sina da fotografia seria salvaguardar o indivíduo de uma segunda morte que é a espiritual. Por isso, o ser humano tem tanta fé na imagem fotográfica. O fato de ser digital, analógica ou manipulada não é uma questão para quem tem fé e quer continuar tendo na possibilidade da fotografia garantir uma sobrevida.

Sempre gostei desta possibilidade mágica. Como pode ser uma imagem física e ser tão mágica ao mesmo tempo? Existe uma relação indicial com o referente, mas tem esta magia toda. O que me incomoda na fotografia digital é não ter a possibilidade de interagir com a magia do princípio da câmera obscura que, na minha opinião, gera este desconforto.

Na digital, o sistema é tão intrincado que não permite o embate com a câmera obscura, lugar onde as coisas acontecem. Os fantasmas estão ali. Como saem dali e vem parar aqui? Aí está o grande mistério. Talvez a fotografia anônima me seja mais saborosa porque quero entender o que está povoando ali e não consigo. Projeto ali o que quero. O pacificar uma imagem é convidar a partilhar comigo desse drama. Fazer outro autor buscar no seu repertório, no seu arquivo pessoal algo que se encaixe ali. É uma forma de lidar com este espiritual na imagem e saber que posso dominar e dar conta daquele imaginário e fazer que todos aqueles fantasmas cumpram a minha agenda.

3 - Em “Ontologia da imagem fotográfica”, André Bazin defende que a partir de sua origem religiosa, a função primordial da estatuária seria “salvar o ser pela aparência”. (Traduzido de André Bazin, Qu’est-ce que le cinéma? vol. 1, Paris, Editions du Cerf, 1958). In XAVIER, Ismail. A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro : Edições Graal: Embrafilmes, 1983, p. 121 ss.

TEXTOS

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Tempo para nada, só para fazer fotografias

Foi aquela menina do colégio público que me fez ficar o dia inteiro com esse incômodo. Por que carregar uma máquina fotográfica na mochila, todos os dias, junto com seu ipod? Todos os dias? A menina apareceu em reportagem de um telejornal sobre “acompanhantes” eletrônicos dos adolescentes no cotidiano. Mas por que fotografar, todos os dias, eventos que não são nem especiais nem inéditos? Por que, afinal, carregar e apontar a câmera para o cotidiano, na mesmice desse passar dos dias? Será que ela não poderia anotar na agenda, ocasionalmente, seus encontros com os amigos, como eu e minha irmã fizemos?

Não; não podia nem queria. Desejava fotografar e postar todos os seus dias na escola ou grande parte deles.

De fato, ultimamente, não temos tempo para nada, só para fazer fotografias. Ontem, na rápida ida ao parquinho – nosso filho precisava de algum ar fora do apartamento –, tiramos muitas, ele estava lindo. Só não pude fazer mais fotos (foi uma pena não poder registrar a brincadeira de cinco minutos com o Pedrinho) porque o cartão de memória estava cheio: no final de semana fotografamos bastante (preciso agora fazer o download, enviar para o site que imprime e me traz as fotos em casa. Será que meu cartão de crédito já está liberado?). Aliás, preciso mandar copiar também as fotos do outro final de semana, na casa de minha mãe. E as do carnaval. Também as de janeiro. As do batizado de meu sobrinho. Ah, as fotos do primeiro aniversário do Lucas também ficaram muito bonitas, e até hoje não imprimi. São umas 12 pastas, com cerca de 400 arquivos cada. Há também as fotos da festa de dois anos,

Cláudia Linhares Sanz

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o bolinho na creche... ah, o almoço na casa do avô... Acho que estão no harddrive externo, porque a memória do computador ficou cheia. Será que gravei nos CDs, no pendrive ou no harddrive pequeno? Ou será no grande? Ou está no backup do backup – o técnico do computador me disse que não adianta ter apenas um; é preciso ter, no mínimo, dois backup do mesmo arquivo. Quem sabe não compro outro harddrive – tenho muito medo de perder as fotos dos primeiros dias da vida de meu filho e as visitas todas que ele recebeu, as imagens do dia em que ele engatinhou pela manhã e comeu papinha à tarde; inesquecíveis mesmo são as farras no chuveiro, os passeios de carrinho, as idas a Paquetá, o papo com o jornaleiro, a amizade com os porteiros. Será que consigo um backup online para guardar todos esses momentos memoráveis – fazer uma prótese eficiente para minha tão saturada memória? De todo modo preciso atualizar-me, atualizar as imagens, os equipamentos, os softwares, a impressora, a câmera, o facebook, os cartões; e minha conta bancária. Quando mandar copiar, não posso esquecer de escolher bem; da última vez mandei as fotos tremidas porque as melhores tinham desaparecido – talvez tenha gravado em outra pasta no arquivo. Tenho uma pilha de DVDs com fotos, mas eles não rodam nesta última versão do Mac. Também ainda não tive tempo de escolher as melhores. Talvez eu devesse enviar todas, o que, porém, demandaria muito tempo. Na noite passada, deixei o computador trabalhando sozinho, mas as imagens não baixaram, talvez elas tenham ficado cansadas. É preciso diminuir o tamanho do arquivo, passar pelo photoshop. Talvez não faça nada –, mas preciso, pelo menos, esvaziar o cartão porque amanhã tem mais parquinho, Pedrinho e pão de queijo na hora do lanche. Adoro as imagens do lanche. E do parquinho. E da nossa casa. E da nossa família. E da hora do banho. Onde terei guardado as fotos do Lucas na piscina na última aula de natação?

A mãe da Alice (amiguinha do prédio), ela sim, se superou. Normalmente a cada aniversário exibe um filminho das últimas novas da menina (os convidados ficam assistindo à menininha comendo pela primeira vez, fazendo xixi no penico, dando cambalhota, uma gracinha). Este ano, ela inovou. Distribuiu um jogo de memória: duas imagens duplicadas de cada sorrisinho da Alice. As fotos, feitas por fotógrafo profissional, encantaram outras mães, as vovós e os titios – todo mundo levou para casa uma lembrancinha inesquecível da menina graciosamente vestidinha de mini, exibindo seus três anos em poses diversas... uma beleza. Ou, então,

talvez eu possa imitar aquele casal que faz filmes a cada viagem. É só colocar as fotos no programa de animação com música e depois postar no Youtube. Pelo menos não terei mais que diminuir os arquivos, baixar no site, imprimir as fotos, comprar os álbuns, colar as fotografias. Nunca vou ter tempo para isso mesmo. A Nádia agora exibe viagens-filmes para os amigos em toda festinha em sua casa ou, então, simplesmente convida os amigos para compartilhá-los online. As imagens são incríveis, cheias de efeito. Ficamos sabendo o quão extraordinária a aventura deles foi. O último que vi tinha uns oito minutos. Nossa (!) parecia que a viagem tinha sido de meses (mas eles só passaram dois dias na cidade). O quarto do hotel era realmente confortável. E as imagens no banheiro... o namorado da Nádia fazendo a barba estava muito charmoso. Vimos também como foi a visita à torre Eiffel, ao museu do Louvre, os espanhóis que conheceram no bairro chinês, os amigos brasileiros que pegaram com eles o metrô, o prato de lagosta, o passeio de ônibus, a andança de bicicleta, a despedida do aeroporto. Nádia aparece com cada roupa linda, realmente surpreendente.

Lindas mesmas são aquelas fotografias das transas de Felipe e Jô, um casal de artistas plásticos. Algumas mais explícitas, outras menos. Exibem uma vida emocionante, alegre, jovial. Cada imagem... Nada de tédio ou vazio, pura criatividade. O sexo deles... plasticamente perfeito em suas imperfeições. É incrível a displicência em que aparecem (displicência que se faz tão elaborada quanto estetizada). Ouro dia encontrei o Felipe na padaria e ele me disse que as fotografias deles estão hospedadas num site que já teve mais de 2.000 visitas. Disse-me que, no começo, pesquisavam uma linguagem íntima, mas depois foram percebendo como era cool fazer parte da imensa rede de pessoas que, atualmente, gostam de mostrar imagens do sexo privado e “real”. No entanto (e talvez ele não saiba), suas fotografias exibem um erotismo não tanto vinculado à “vida como ela é” – aquele já protagonizado pela Nan Goldin – mas que encanta principalmente por um permanente glamour do perfil e do estilo que defendem (aliás, as fotografias e vídeos caseiros exibidos na rede desses parecem estar mais do que nunca numa defesa de estilos e padrões de vida...) Sempre fico pensando se todas as transas deles seriam tão bem-sucedidas quanto aparecem nas fotografias, se sempre escolheriam luzes tão libidinosas quanto o tratamento da imagem faz sentir. Ou será que também fazem transas destratadas, desajeitas ou inibidas?

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Pronto, cansei. Talvez eu não faça nada mesmo com as minhas fotos. Nem impressão, nem tratamento, nem filminho, nem postagem. Mas pelo menos as fotos eu continuo fazendo – vou continuar carregando na mochila a possibilidade permanente da foto (igualzinho à adolescente do colégio).

Para ser sincera, continuo com uma pontadinha de dúvida: por que levar a máquina para a cama, para o banheiro e para a cozinha? Por que a câmera se tornou o personagem central de nossos circuitos de prazer? Fico pensando quantas máquinas dentro da mochila. Quantas imagens por dia, quantas imagens dentro dos computadores. Fico pensando no tempo: ultimamente não temos tempo para nada, só para fazer fotografias.

Seria de afeição à vida que tratam as fotografias da atualidade? Ou de afeição à imagem? Tudo se exibe quando se vive ou o que se vive de fato está, hoje, apenas no que se exibe? Parece ser de uma vida-imagem que todas essas fotografias tratam da atualidade, um viver que se realiza na visibilidade, uma bioimagem. Tratam de uma aderência da imagem à vida. É a língua do tempo nas fotografias falando. A língua do contemporâneo dizendo que a câmera se naturalizou dentro da mochila. Declarando o desejo insaciável de acumular imagens de nossas vidas, de exibi-las, compartilhá-las; o apetite por salvar toda a exiguidade do presente, saturar a memória para não correr o risco de sufocar ou desaparecer, expor nossas vidas para credenciá-las e legitimá-las. Trata-se quase de uma corrente coletiva impulsionando esse paladar pela imagem sem que tenhamos nenhum tipo de estranhamento com o fato de nossos filhos terem um número tão grande de imagens, que provavelmente lhes dificultará reter a lembrança de qualquer uma delas. É a língua do tempo na fotografia testemunhando o gosto por ver as imagens dos outros, vasculhar o que, antes, poderia ter sido intimidade; examinar, avaliar, controlar (e até vigiar) os comportamentos, as atitudes e os “perfis” alheios. É a fotografia dizendo de uma nova diagramação subjetiva, que se realiza no tecido da visibilidade, na espetacularização das personalidades. É a fotografia como técnica de extrospecção, produzindo novos alicerces de subjetividade1. É a fotografia pronunciando um mundo mergulhado em imagens que, incorporando cada vez mais novas possibilidades de produção imagética, não

1 - Ver texto sobre as novas regras de constituições do eu: Sibilia, Paula. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

consegue refletir sobre elas. É a fotografia celebrando as técnicas digitais, “salvadoras”, “democratizantes”, “inovadoras”, “velozes” num mundo em que se pode e se quer ver tudo em tempo real. É a língua do atual enunciando o presente ampliado e onipresente do capitalismo pós-industrial (esse, sim, cada vez mais invisível e estriado).

Parece mesmo que é de um jeito banal que as imagens contam de nós, tão banal quanto os parágrafos iniciais deste texto. Sabemos, experimentamos e saboreamos essa mania fotográfica da atualidade: não apenas os amadores desfrutam dessas novas possibilidades de produzir imagens, os artistas contemporâneos também se deliciam com as inovadoras possibilidades de fotografar, armazenar um número cada vez mais gigantesco de fotografias, clicar freneticamente, provar os novos programas de tratamento de imagem, hibridizações digitais, mecanismos crescentemente complexos e virtuosos. Afinal quem não quer ser “contemporâneo”? Ser fotógrafo contemporâneo tornou-se uma virtude, um elogio, uma necessidade de sobrevivência, e isso, muitas vezes, parece significar fundamentalmente utilizar ou tematizar essa enorme proliferação de novas tecnologias. Lançam-se novos equipamentos e uma enxurrada de experimentações: mais e mais imagens, mais e mais possibilidades estéticas na programação dos novos softwares lançados por empresas cada vez mais poderosas e efetivamente ricas.

Por ironia, entretanto, muito do que se celebra como novo talvez não seja tão novo assim. Em 1920, o mundo já havia adquirido, como identificou Siegfried Kracauer, um rosto absolutamente fotografável e a vida já havia tornado-se amplamente um “presente fotografável”. Antes mesmo, em 1898, o British Journal of Photography estimava que “milhares de câmeras, profissionais e amadoras, estão sendo utilizadas no mundo”2. De acordo com Terry Toedtemeier, na década de 1890 ocorreu uma gigantesca explosão de informação visual, momento em que, pela primeira vez na história, a experiência de ver fotografias tornou-se lugar-comum3. Durante o século XX, prolifera um significativo estímulo para que as donas de casa, as crianças e os jovens se tornem uma espécie de

2 - Toedtemeier, Terry. Photography’s love child: origins of the snapshot. In Levine, Barbara e Snyder, Stephanie (orgs.). Snapshot Chronicles: inventing the American Photo. Princeton: Princeton Architectural Press, 2006: 187.

3 - Idem.

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repórter fotográfico da vida privada – “escreva isso no filme do tempo”, “faça da Kodak seu historiador familiar”, “nada melhor para contar uma história do que uma câmera fotográfica”4. Com insistência, as revistas para amadores e as propagandas passaram a questionar “por que não fotografar no inverno, como no verão e na primavera?”5. Às mulheres, propunha-se que documentassem mês a mês o crescimento de seus filhos: quanto mais imagens o álbum da família contivesse, mais fortes seriam os laços familiares entre as gerações. A câmera deveria estar onde você estivesse. Em 1911, em revista para amadores, o anúncio da Kodak recomendava:

Fotografias dos dias de férias, é claro – mas não apenas essas – também as fotografias da família, dos amigos e das casas de festas, flash-lights das reuniões noturnas, snapshots que contam sobre as diversões diurnas, fotografias do never-to-be-forgotten amigos da escola – tudo isso deveria auxiliar a preencher o mais importante volume de sua casa, o livro Kodak 6.

De acordo com Stephanie Snyder, em torno de 1915, a fotografia já teria saturado tanto o cotidiano comercial quanto o doméstico: o material gerado pelos amadores estava estimado em 1,5 milhão de fotografias anuais.7 Desde o final do século XIX, a decoração doméstica das casas burguesas demonstrava significativa profusão fotográfica, com inúmeras fotos enquadradas e móveis repletos de viewing machines: “a qualquer lugar que o visitante se dirigisse, deparava-se com a insistente presença de objetos fotográficos”8. Talvez por isso o comediante musical inglês Corney Grain considerasse a câmera Kodak “um instrumento de tortura” que pronunciava constantemente “o terrível click que deixava o mundo louco”… “Onde quer que você estivesse, na terra ou no mar, ouviria o click do fotógrafo amador, click! click! click!”.9

4 - Anúncio Kodak 1910, 1917, 1907. Acervo Duke University Libraries, arquivo digital. Disponível em http://library.duke.edu/digitalcollections/eaa/

5 - Anúncio publicado na Kodakery. Novembro de 1913. Disponível em http://www.archive.org.

6 - Anúncio Kodak, 1911. Idem.

7 - Levine, Barbara e Snyder, Stephanie. Op. cit.: 26.

8 - Batchen, Geoffrey. Vernacular photography. In Each wild idea. London: The MIT Press, 2002: 70.

9 - Coe, Brian e Gates, Paul. The Snapshot Photograph: the rise of popular photography 1888- 1939. Londres: Ash & Grant, 1977: 18.

Será, no entanto, que as relações entre técnica e subjetividade da atualidade podem ser consideradas a partir de uma simples continuidade moderna ou o que vivemos é um ponto zero absoluto – o início de uma totalidade inédita? Entre aqueles que consideram ser absolutamente inovador ou surpreendente tudo que vivemos hoje e aqueles que supõem que, no fundo, tudo permanece igual apesar dos novos modelos há, em geral, profunda concordância em descrever as virtuosidades tecnológicas (de ontem e de hoje) como o fundamento de cada época, seja na semelhança, seja na diferença. De acordo com Paula Sibilia, não é casual que a impressão de começo absoluto, hoje tão recorrente, coincida, por um lado, “com o assentamento absoluto da tecnociência como um tipo de saber hegemônico” e, por outro lado, com a decadência do valor do sentido10. A suposta eficiência, transparência e neutralidade da tecnologia parecem dispensar toda explicação, reflexão ou investigação de sentido. Tais perspectivas – que não são sequer inovadoras, já que, pelo menos no âmbito da fotografia, o estatuto da imagem esteve historicamente bastante vinculado à sua gênese maquínica – corroboram para uma cristalização do senso comum em que tudo parece (e deverá ser) visibilidade. O mundo apresenta-se transparente como as imagens da neurociência: por que haveria aqui alguma matéria de questionamento, dúvida ou crítica? O melhor modo de compreendermos a produção imagética contemporânea se apresentaria, nessas perspectivas, a partir da descrição das mutações tecnológicas e da virtuosidade dos novos funcionamentos maquínicos: entendendo suas operações inéditas, descrevendo-as exaustivamente, provavelmente chegaríamos mais perto de dimensionar as transformações atuais. Dessa forma, opera-se por um importante determinismo tecnológico e diagrama-se uma lógica de causa e efeito em que a causa é apontada como os novos aparelhos digitais, e os efeitos, a pretensa mudança de paradigma imagético, a alteração radical no modo de estruturarmos nosso pensamento, produzirmos nossas imagens e experimentarmos a vida. Na mesma medida em que a política foi desqualificada no mundo atual, as novas tecnologias foram alçadas à categoria de instrumentos de democratização, libertação e invenção, até artística. As tecnologias tornaram-se um porto seguro não apenas

10 - Sibilia. Op. cit.: 122.

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para a medicina contemporânea, para a segurança das cidades, para o “empreendimento” empresarial e pessoal, mas também para as análises e reflexões atuais, para a criação e atualização na arte.

A virtuosidade tecnológica fez-se central nos mais diversos projetos e enunciados contemporâneos, nos museus, nas galerias e, muitas vezes, nos círculos intelectuais. Como um cachorro que gira para alcançar seu próprio rabo, a cada novidade tecnológica e a cada lançamento mercadológico surgem teorizações de última geração sobre as novas experiências imagéticas.

Inegavelmente, o desafio de pensar o elo entre imagem, pensamento e tecnologia ganha uma dimensão significativa na atualidade diante do caráter inovador de certos aparelhos tecnológicos. No entanto, o novo na mania fotográfica contemporânea não parece tratar apenas dos temas que escolhemos para clicar. Também não parece tratar-se de uma alteridade que se reduz meramente à intensificação da aceleração, da popularização ou da naturalização moderna até porque a acentuação das linhas modernas de ação é de tal modo intensa que podemos questionar se não se manifesta uma fratura na linha. Tais deslocamentos subjetivos não parecem ser reduzíveis às inúmeras e constantes novidades dispostas pelas atuais tecnologias de imagem, disponibilizadas por câmeras como as HDSLR (SLR digitais que fazem vídeo em HD), pelos programas que convergem funções como produção, tratamento e arquivamento e pelos inéditos procedimentos imagéticos.

As reflexões acerca do sentido da produção imagética e da experiência cotidiana mostram-se, provavelmente, mais interessantes quando consideram os aparelhos tecnológicos constitutivos de mudanças mais amplas e de processos que não estão suspensos dos jogos e dos conflitos que se exercem na atualidade, sendo permanentemente atravessados pelas formulações sobre tempo, verdade e memória. Mais do que conjunto de meros aparatos técnicos, a tecnologia imagética se configura como integrante de uma rede heterogênea de enunciados, práticas, saberes e fenômenos – um tipo de formação histórica que responde, como Foucault tão bem apontou, à urgência de uma certa atualidade. Trata-se de rede sujeita a variações, disputas, visibilidades e invisibilidades. As máquinas são sociais antes de serem técnicas, como compreende Gilles Deleuze: “As máquinas não explicam nada, é preciso analisar os agenciamentos coletivos dos quais elas são apenas uma

parte”11. Elas são lugares de prática material, mas também de formação discursiva, estética, política e social. Isso significa que as tecnologias imagéticas constituem-se como dispositivos e, portanto, relacionam-se intimamente com as diagramações atuais do visível, com aquilo que há a ver e a falar em nosso mundo, ou seja, com as linhas de visibilidade e as curvas de enunciação. Portanto, estão vinculadas estratégica e diretamente aos domínios de poder, às linhas de subjetivação e dessubjetivação, aos saberes e vetores em conflito.

Assim, os dispositivos atuais permitem distinguir o que é aceitável no âmbito de nossa racionalidade e no campo científico contemporâneo; permitem engendrar noções acerca do que deve ser considerado bom ou ruim, relevante ou irrelevante, verdadeiro ou falso, qualificável ou inqualificável. São efeitos-instrumentos, produto e produtores da subjetividade contemporânea. Como bem analisa Fernanda Bruno, “não são exteriores à dinâmica sóciocultural contemporânea, mas lhe são imanentes”, intrínsecos aos processo políticos e sociais12. Entrelaçados a processos e práticas como consumo, estratégias de marketing, coleta de dados, promessas de segurança, formas e meios de comunicação, os dispositivos atuais acabam exercendo funções múltiplas: comunicam, expressam, exibem e são comumente usados no âmbito da vigilância e do controle13. Tais dispositivos não são ruins ou bons, afirma Bruno, diabólicos ou salvadores, mas antes claramente vinculados à “maquinaria informacional, reticular e modular do capitalismo pós-industrial”, gerando um universo imagético que, cruza cada vez mais, as dinâmicas do espetáculo e da vigilância14. Como pensou Foucault, o dispositivo está inscrito em um jogo de poder, estando sempre ligado também a configurações de saber que dele nascem e que igualmente o condicionam: “é isto, o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles” 15.

11 - Deleuze, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: ed. 34, 1992: 216.

12 - Ver Bruno, Fernanda. Estética do flagrante: controle e prazer nos dispositivos de vigilância contemporâneos. Cinética – Programa Cultura e Pensamento/Ministério da Cultura, Rio de Janeiro, 2008: 1.

13 - Idem.

14 - Idem.

15 - Foucault, Michel. Sobre a história da sexualidade In Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2001: 246.

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16 - Bruno. Op. cit: 5.

17 - Bruno. Op. cit.: 6.

Máquinas de ver e fazer falar, promover visíveis e invisíveis, esquecer e lembrar, gerar transparências e opacidades. Dispositivos de um regime sócioimagético em que a cultura visual moderna vai, progressivamente, cedendo força ao regime de visibilidade contemporâneo, que tem como alicerces fundamentais a vigilância, a exposição da vida privada, a alteração significativa na experiência temporal e mnemônica. As câmeras pessoais, as câmeras de vigilância, as webcams, os weblogs, as redes sociais de postagem de imagens e dados fazem parte de um aparato global que “amplia enormemente o número de indivíduos sujeitos à vigilância e a capacidade de coleta, processamento e uso de informações a seu respeito”16. Distintos daquela subjetividade moderna, interiorizada, em que a autovigilância prolongava a norma social, os dispositivos contemporâneos vêm contribuir para a constituição de uma subjetividade exteriorizada onde vigoram a projeção e a antecipação. Exteriorizada porque encontra na exposição ‘pública’, ao alcance do olhar ou conhecimento do outro, o domínio privilegiado de cuidados e controle sobre si (…) A subjetividade é aí exteriorizada na medida em que o que a caracteriza, o que a ‘constitui’ e a ‘compõe’ são menos inclinações e desejos reclusos numa interioridade que deve ser trazida à luz, do que um campo superficial de ações, hábitos e transações eletrônicas dispostos em bancos de dados que, uma vez analisados e classificados, irão projetar criminosos, consumidores, doentes e trabalhadores, atuais ou potenciais. É da exterioridade da ação e do comportamento que se extrai ou se projeta a subjetividade, com uma identidade e uma individualidade que não estavam previamente presentes. O ato de vigilância não se dá sobre um indivíduo já constituído; ele projeta, antecipa um indivíduo e uma identidade potencial17.

De fato, as tecnologias da imagem integram, como um dos elementos estratégicos, uma rede complexa de caráter histórico, num âmbito de promessas e expectativas, entranhada nas políticas contemporâneas de atenção, em proposições morais, científicas e econômicas. Elas respondem a solicitações e produzem solicitações, mobilizam afetos e geram corpos, respondem a certas convocações e, simultaneamente, são capazes de convocar outro “vir a ser”. Isso significa que não causariam,

18 - Foucault. Op. cit.: 244.

19 - Pergunta realizada por Deleuze em O que é um dispositivo In Deleuze, Gilles. O mistério de Ariana. Lisboa: Vega, 1996.

por si só, efeitos sócioculturais previamente dados por seus mecanismos tecnológicos, mas que, como dispositivos, seus efeitos fazem parte de modo permanente das disputas políticas que ainda estão em jogo na atualidade. Se “o dito e o não dito são os elementos do dispositivo” é porque há toda uma área obscura, silenciada que está sempre em jogo, modificando posições, funções e sentidos18. Cada elemento dessa rede heterogênea pode estabelecer ressonâncias e contradições com os outros elementos, exigindo nova rearticulação. Isso significa que o efeito do dispositivo só se faz presente na efetuação dos jogos de renegociação e rearticulação, não estando prévia e exclusivamente determinado pela materialidade maquínica, mas dando-se efetivamente a partir das diagramações e dos conflitos políticos e sociais a que essa rede está sujeita.

Assim, podemos produzir dois questionamentos simultâneos acerca desse universo imagético da atualidade. Primeiro, pensar os novos dispositivos não como “pontos zeros”, mas indagá-los a partir de sua emergência: como foi possível no mundo atual a produção desse novo?19 De que maneira certos dispositivos encontram suas condições de exercício? Como mapear a entrada em cena das forças que vieram a constituir a complexidade desses dispositivos tecnológicos? Como pensar suas condições de aparecimento, transmutação ou desaparecimento? De que modo identificar a emergência das teorias e das problematizações, o poder-saber, sobre os quais estão fundados tais dispositivos imagéticos? A segunda indagação se situaria no âmbito dos desdobramentos possíveis desses dispositivo, do devir que está e continuará estando em disputa. Como tais dispositivos podem produzir efeitos novos, avançando sobre domínios e gerando efeitos ainda não concernidos?

Nesse sentido, se os dispositivos se constituem como efeitos-instrumentos de certas configurações de subjetividade e objetividade, de certos regimes de visibilidade e inteligibilidade, de novos esquemas de memória e esquecimento, de sistemas de vigilância e de controle, do monopólio da aparência e da espetacularização do eu, o sistema que

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20 - Ver Accioly, Maria Inês de A. J. Isto é simulação: o efeito de real como estratégia de comunicação. Tese de doutorado, UFRJ, ECO, 2009, no prelo.

21 - Agamben, Giorgio. O que é contemporâneo? Lição inaugural do curso de Filosofia Teorética 2006-2007. In O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009: 59.

22 - Idem, ibidem: 63.

instauram configura-se de modo dinâmico, em que estão presentes não apenas modelos de transparência, mas também uma área considerável de elementos invisíveis e paradoxais capazes de anular, desorganizar ou subverter a própria eficácia do modelo20. É possível vislumbrar, dessa maneira, desvios da programação pretensamente dada pelo dispositivo, possibilitando a emergência de outros sentidos e práticas. De certa maneira, inventar uma relação menos cega e mais crítica com essa presença acelerada e massificadora das novas tecnologias de imagem. Ser talvez aí, contemporâneo como Giorgio Agamben defendeu: estabelecendo relação singular com nosso próprio tempo, a ele aderindo e, ao mesmo tempo, dele tomando distâncias. Para o autor ser contemporâneo é produzir uma “relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e de um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela”21 .

Em sua opinião, contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente (...) Pode-se dizer contemporâneo apenas para quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas partes da sombra, a sua íntima obscuridade (...) o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpretá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho das trevas que provém do seu tempo22 .

O escuro não é uma não visão, mas um modo de visão, uma habilidade que, de acordo com Agamben, neutraliza as luzes que provêm da época

para descobrir suas trevas, seu escuro especial que não é separável daquelas luzes. Para ele, os contemporâneos são raros porque, para tal atitude, se exige a coragem de não só fixar o olhar no escuro da época, mas compreender também que nesse escuro há uma luz que, viajando permanentemente em nossa direção, distancia-se de modo infinito. Em suas palavras, exige que sejamos pontuais “num compromisso ao qual se pode apenas faltar”23. Trata-se da impossibilidade de saber de todo o nosso tempo porque o presente, em sua perspectiva, não é de fato só o tempo mais distante, mas também algo que nunca nos poderá alcançar: “o seu dorso está fraturado e nós nos mantemos exatamente no ponto de fratura”24. Tal experiência especial de tempo nos possibilitaria talvez perceber o presente não através da luminosidade emitida pela transparência e pela eficácia das novas tecnologias ou pela clareza das descrições que se regozijam quando narram o ineditismo dos funcionamentos tecnológicos, mas por aquilo que ainda não está previsto, aquilo que está invisível ou obscuro, aquilo que interroga, critica e produz sentido – operações tão desprezadas nos dias de hoje.

23 - Idem, ibidem: 65.

24 - Idem.

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Tempos pela fotografia, mesmo que intempestivos

A gente não entende esse tempo em que nem todos são fotógrafos, mas todo mundo fotografa. Buscamos de forma incessante definir quem é fotógrafo, o que sustenta tal definição. E é aí que se complica, entender se multiplica. Ser fotógrafo pressupõe assumir algumas rotas que são bem subversivas, entre elas, enfrentar essa questão de que todas as pessoas fotografam, sem necessariamente precisar buscar entendimentos sobre o que é o fotográfico. Talvez, aí esteja uma resposta. Essa compreensão fica a cargo de quem, além de fotografar, é fotógrafo. Esse é o nosso tempo: um mundo em que a fotografia é experimentada por todo ser humano, mas nem todos precisam entender o que fazem.

Fotografar passou a ser um gesto fundamental para que algo seja efetivamente olhado. Parece que, na vida, sem a mediação de um dispositivo, as existências são precárias. Um ponto cego se coloca à nossa frente e só quando uma imagem intervém é que esse espaço se abre, tornando-se visível e consciente. Apesar desse movimento massivo de se fazer fotografias, desse gestual fotográfico que define nossa sociabilidade, nem todos são fotógrafos.

O mundo fotografa para que as histórias se tornem universais, permitindo a compressão de todos. A imagem é um lugar de síntese de todas as diferenças. As arestas que naturalmente existem em algo singular são aparadas no gesto universal dessa fotografia feita comumente pelas

Cia de Foto

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lugar sobre uma ordem não prevista. Ser fotógrafo em nosso tempo é se comportar como um pirata que opera também por apropriação. Aquilo que é essencial à criação fotográfica não exige uma máquina. Em princípio, as imagens já estão por aí e são de todos, de quem as usa e de quem as edita. Somos na verdade intérpretes desse mundo em que o fotográfico se faz acima de tudo no pensamento. O nosso tempo se faz no espaço que dedicamos à compreensão desses fluxos, dos atravessamentos que se criam naquilo que procuramos entender. E esse tempo nos diz que tem muita coisa legal fora dos compartimentos inventados nos tempos de outrora. Pensar revela o quanto tudo pode ser visto a partir do fotográfico. Nosso trabalho talvez seja essa busca por extraquadros sucessivos, o fotográfico que existe além das bordas de uma imagem. Nossos ídolos migraram do clique para a escrita, do quadro para a oralidade. Para além dos cliques, nossos mestres da fotografia estão também na escrita. Os melhores fotógrafos de nosso tempo são Maurício Lissovsky, Arlindo Machado e Ronaldo Entler. Os fotógrafos de outros tempos são Borges e Calvino, Funes e Antonino. E junto a gente, nessa mesma busca, ainda temos Claudia Linhares, Georgia Quintas e Lívia Aquino.

Existe um mundo sempre infinito para ser inventado. Nosso tempo é a ferramenta que possibilita essa invenção, através do exercício sistemático de compartilhar ideias. Deveríamos dar um passo além dos limites que nos foram impostos tempos atrás. E um passo aquém das categorias que aceitamos para educar, para tornar menos complexa uma invenção que deveria ter sido malcriada. O melhor disso tudo é o direito que temos de dizer um não para quem cria certezas e oferecer um palco para quem se coloca nas dúvidas.

A própria fotografia simula, refaz histórias. Ela é uma ansiedade que se traveste de meio, um caminho, um modo de pensar. Esse pensamento fotográfico antecede as máquinas e a própria denominação da fotografia. As experiências que visavam representar e organizar a ideia de que existe um hoje, um amanhã e um bem antes de ontem, já eram fotográficas. O nosso pensamento é fotográfico desde que conhecemos o tempo. O que ocorreu no século XIX é que a humanidade tomou a decisão de objetivar esse pensamento, unindo o fotográfico a um referente, criando um aparelho que fixava um rastro nesse fluxo de identificação com o tempo. Um desejo de colecionar, de aprisionar pensamentos em uma caixa escura. Mas esse troço que inventaram, esse equipamento que sintetiza um monte de meios de percepção, que faz o mundo posar para gente,

pessoas. Os dispositivos fotográficos estão em todos os bolsos, em todas as mesas, em todas as cabeças. Do mesmo modo, os meios para difusão dessas imagens estão disponíveis a todos.

Quando surgiu, a fotografia tinha tudo para ser uma invenção malcriada. Revolucionária, poderia não ter se prendido aos modelos criados pela tradição artística. Mas, desde o princípio de sua história, preferiu seguir um caminho mais seguro, transformando-se em uma estrutura sólida como concreto, estúpida como uma verdade já assimilada. Para tudo, um compartimento. Em cada objeto fotografado, um gênero: o retrato, o nu, a paisagem... E, mais adiante, para cada uso, um selo social: o fotojornalismo, a publicidade, a fotografia de eventos, de identificação policial ou científica, de arquitetura, de moda, de still, documental, de autor... E, ainda, a fotografia amadora. Cada casa passou a ter uma câmera e ela era um objeto poderoso que confirmava a existência de um grupo como família. As máquinas tinham filmes e esses duravam dias, meses, colecionando os instantes que, em algum momento, seriam revelados. E as fotos, quando apareciam, já pertenciam a outro tempo, o do passado familiar. E assim existíamos.

Hoje em dia, a fotografia não é mais um bem familiar, mas sim um objeto individual, disponível a cada um. Uma câmera não é mais um patrimônio, é somente um dispositivo dócil, bem mais leve e sem ruído. A foto não é mais um instante eleito ou um espaço cultivado para virar lembrança. Ela é potencialmente todo o continuum da vida, ela é todo e qualquer instante.

No tempo em que queremos viver, os espaços se misturam, o jogo se faz nas bordas, nas sobreposições daqueles compartimentos criados pela sociedade moderna. E é esse o tempo que queremos como matéria de construção da nossa história: as ideias se criando no atravessamento das fronteiras. É um prazer imenso chamar Rodrigo Braga de fotógrafo e João Castilho de artista.

“Pensar a fotografia como um lugar conceitual nos permitiria olhar para a própria história de modo transgressor. Poderíamos, por exemplo, ver quanto outras manifestações artísticas podem ser pensadas com base na fotografia.” Ronaldo Entler

A gente busca entender esse tempo, por isso somos fotógrafos. Todo mundo faz imagens corretamente, e daí, o que nos cabe? Talvez, assumir-se em nossa sociedade com um veio oversea, transgressor, made in qualquer

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que antes era um patrimônio familiar e que agora é de todo mundo, não tem nada de exato e passa longe de ser objetivo. Até mesmo porque o próprio aparelho não está sob nosso total domínio. O acaso ainda o rege. Ainda olhamos para as máquinas como objetos sagrados, que nos constrangem com sua presença, dos quais dependemos para confirmar nossa existência e que criam mundos, saibamos disso ou não.

Podemos inventar tempos através da fotografia, mesmo que eles resultem intempestivos. Vale a pena assumir os riscos de romper com o referente, de acreditar no fotográfico como dimensão do pensamento e de se esquecer um pouco da objetividade humana. Em nosso tempo, é pertinente se vingar da mecanização fazendo uso da ficção. Mesmo sabendo que enquanto alguns criam espaços mais fluídos de compreensão, outros ainda tentam restabelecer um passado estático. E não um passado a que constrói novas experiências, mas outro que visa garantir os entendimentos consolidados, os recalques. Naquilo que buscamos, não há espaços para a doutrina, não há regras nem limites para o fotográfico, só aceitamos revisões. Em nosso tempo, operamos com espaços imaginados sobre bases mais intuitivas. Pelo menos é o que entendemos. Aliás, somos fotógrafos e o que nos resta é entender.

“ [...] como não admitir que a ficção oferece experiências efetivamente transformadoras da realidade, às vezes tanto ou mais revolucionárias que o documentário dito engajado? Uma vez que, por meio do estranhamento, essas obras já nos ajudaram a reconhecer as possibilidades de manipulação da fotografia, estamos agora em condições de recuperar as possibilidades de identificação com o olhar. Teremos, então, a surpresa de perceber que, ao inventar um mundo, essas ficções nos representam ainda mais profundamente.” Ronaldo Entler

Se é para pensar no tempo, que seja nesse em que vivemos. Que se torne política nossa expressão pessoal. E que assim a gente possa afirmar que o melhor de nossa fotografia está no pensamento. Portanto, trata-se de uma fotografia que existe como ideia, mais do que efetivamente como técnica. E se é para escrever um texto, que ele se torne um manifesto que provoque nossa disposição para aprender, porque até agora não vivemos senão a dislexia de uma incapacidade, uma fotografia que somente soube repetir. O valor de escrever sobre o tempo é constatar que há muito a fazer na compreensão do fotográfico. Além da oportunidade de registrar nossas surpresas diante desse tempo em que nem todos são fotógrafos, mas todo mundo fotografa.

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