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FORTALEZA, CEARÁ - DOMINGO, 28 DE FEVEREIRO DE 2010 | ANO XXIX | [email protected] I D Ao lado, visão jocosa dos embates entre liberais e conservadores, pela pena de Angelo Agostini. Acima, detalhe da capa de Diabo Coxo, um dos mais famosos periódicos no qual atuou o artista italiano IMAGENS: REPRODUÇÃO/ EDITORA UNICAMP Há 100 anos morria o italiano Angelo Agostini, aos 66 anos, no Rio de Janeiro. Destacado militante abolicionista, o caricaturista foi um marco da “imprensa ilustrada”, gênero jornalístico pioneiro da valorização do elemento visual, que floresceu durante o II Império. Agostini é ainda considerado o pai das histórias em quadrinhos brasileiras (teorias o colocam mesmo como o precursor deste gênero no mundo). Com a chegada de um novo estudo sobre sua obra às livrarias, o Caderno 3 se detém em sua criação, buscando compreender sua memória e legado O herói do lápis 361096297 MEMÓRIA Continua nas páginas 4 e 5

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FORTALEZA,CEARÁ-DOMINGO,28 DE FEVEREIRO DE 2010 | ANOXXIX | [email protected]

IDAolado,visãojocosadosembatesentreliberaiseconservadores,pelapenadeAngeloAgostini.Acima,detalhedacapadeDiaboCoxo,umdosmaisfamososperiódicosnoqualatuouoartistaitalianoIMAGENS: REPRODUÇÃO/EDITORAUNICAMP

Há 100 anosmorria o italianoAngeloAgostini, aos 66 anos, noRio de Janeiro.Destacadomilitante abolicionista, ocaricaturista foi ummarco da “imprensailustrada”, gênero jornalístico pioneiro davalorizaçãodo elemento visual, que floresceudurante o II Império. Agostini é aindaconsiderado opai das histórias emquadrinhosbrasileiras (teorias o colocammesmo comooprecursor deste gênero nomundo). Comachegadade umnovo estudo sobre sua obra àslivrarias, o Caderno3 se detémemsua criação,buscando compreender suamemória e legado

O heróido lápis

361096297

361118544

MEMÓRIA

Continua nas páginas 4 e5

4 | caderno3 DIÁRIODONORDESTE | FORTALEZA,CEARÁ-DOMINGO,28DEFEVEREIRODE2010

Livro do historiadorMarceloBalaban,“Poeta do Lápis” é ummarconos estudos deAngeloAgostini e suaobra.Nele, o autoranalisa suaparticipaçãonofenômenoda“imprensa ilustrada” enas lutas políticas doSegundo Império

IBPUBLICAÇÃOSATÍRICA,aRevista Illustrada,deAngeloAgostini, foiumdosveículosmaisimportantesnadivulgaçãodasideiasrepublicanaseabolicionistas ILUSTRAÇÃO: REPRODUÇÃO/ EDITORAUNICAMP

DELLANORIOS

Repórter

Ainda que seja umtantodolorosodesedizer, sobretudoporque fere a vaida-de que não costuma

ser das menores nesta categoria,o jornal não oferece garantias aquem deseja deixar seu nome pa-ra a posteridade. A importânciada imprensa para o mundo mo-derno se contrapõe à efemerida-de do que produz. As notícias sãoimportantes para se entender omundo em que vivemos, mas elascaducam e, com o passar do tem-po, tornam-se quase ilegíveis. Oque era leitura para as massas,100 anos depois torna-sehieróglifos que só uma elite con-segue decodificar.

Daí chegamos à figura de An-gelo Agostini (1843 - 1910), ar-tista que, não bastasse ter atua-do sobretudo na imprensa, ain-da exercitou um ofício para oqual muitos continuam a torcero nariz. Angelo Agostini era cari-caturista e chargista, autor dehistórias ilustradas nas quaismuitos veem o nascimento dashistórias em quadrinhos brasilei-ros - arte menor, no século XIX;“coisa para crianças”, em boaparte do século XX.

O fato é que o nome de Ange-lo Agostini sobreviveu. Junto de-le, uma coleção de imagens quegarantem elogios a sua habilida-de de desenhista e caricaturista.Já a leitura de Angelo Agostininão teve a mesma sorte. É certoque uns poucos livros, em boaqualidade gráfica, colocaramem circulação parte de sua pro-dução (leia mais na página aolado). Foi assim que se torna-ram conhecidas algumas varia-ções de seu talento, como ashistórias ilustradas (quadrinhospara uns) dos personagens hu-

morísticos Nhô-Quim e Zé Cai-pora; além de charges, caricatu-ras e outros expressões de jorna-lismo visual, veiculados nos pe-riódicos oitocentistas Cabrião eDiabo Coxo.

Para a história do reconheci-mento da obra de Angelo Agosti-ni, “Poeta do Lápis: sátira e polí-tica na trajetória de AngeloAgostini no Brasil Imperial(1864-1888)”, de Marcelo Bala-ban, é um marco. Não é o primei-ro estudo sobre o artista, mas é oprimeiro a sair no formato livro,e por uma editora capaz de lhe

dar uma boa distribuição noPaís. Trata-se de uma versão datese de doutorado de Balaban,na Unicamp. Atualmente, o au-tor é professor do departamentode História da UnB.

Memória(re)construída

Ainda que não seja o objetivoprincipal do livro, nele se encon-tra um precioso esboço de perfilbiográfico, não apenas do ho-mem Angelo Agostini, como dalenda que foi construída nas pri-meiras décadas seguintes à suamorte. É assim que Marcelo Ba-

laban abre o livro, reconstituin-do a maneira como Agostini foiretratado no final de janeiro de1910, quando a imprensa noti-ciou sua morte.

Em textos apologéticos, quedestacavam sua participaçãonas campanhas abolicionistas erepublicanas, em oposição aoimpério de Pedro II, lê-se sobreos pontos mais significativos desua história. Agostini nasceu em1843, em Vercelli, Itália. Viveua infância e a adolescência emParis. Na Cidade Luz, estudoupintura e desse ofício passou a

viver, quando emigrou com amãe para o Brasil, em 1859. EmSão Paulo, Agostini conheceu aimprensa ilustrada. “No séculoXIX, ela surgiu mais ou menosna década de 1840, junto comoutras formas de apelo visual,caso da fotografia”, explica Mar-celo Balaban. “A imprensa ilus-trada me chamou atenção pelagrande quantidade de jornaiscentrados na ideia de um diálo-go entre texto e imagem”.

Agostini trabalhou na primei-ra publicação do gênero, edita-da em São Paulo, o semanáriosatírico “Diabo Coxo”, produzi-do ao lado do poeta abolicionis-ta Luís Gama. À época, São Pau-lo ainda era uma cidade provin-ciana, o que levou Agostini adeixá-la, temendo os desafetosescravistas do Estado. Fixou-seno Rio de Janeiro, então capitalda república, onde fez seu no-me. Publicou suas charges e cari-caturas em periódicos comoCabrião (fundado e dirigido porele), O Mosquito, Vida Flumi-nense e, já no século XX, em OMalho. “Os jornais da imprensailustrada eram muitos e bem di-versos, apesar de serem seme-lhantes em sua proposta geralde aliar texto e imagem. A maio-ria tinha um personagem narra-dor, como o Mosquito, o Meque-trefe, mas cada um com o que sepoderia chamar de uma linhaeditorial própria”, detalha.

Políticaeposteridade

Quando morreu, lembra Marce-lo Balaban em seu livro, Agosti-ni estava fora de cena. Commais de 40 anos trabalhando emjornais e revistas, era figura co-nhecida e benquista nas reda-ções dos jornais. Entretanto, es-tava velho, no começo de umséculo em que a palavra de or-dem era o novo e o rompimentocom o século anterior.

No dia que morreu, 23 dejaneiro, Angelo Agostini partici-poude uma reunião em homena-gem a Joaquim Nabuco, seu ami-go, político e diplomata, e umdos nomes mais famosos do gru-po abolicionista brasileiro. Na-buco havia morrido seis dias an-tes. E esta morte selou a sorte damemória de Angelo Agostini.Por um lado a ofuscou: a figurado artista da pena era bem me-nos interessante, relevante, noti-ciável que a do grande abolicio-nista, intelectual mais próximodo poder, integrante da Acade-

mia Brasileira de Letras. Por ou-tro, foi na condição de parceirode Joaquim Nabuco na luta pelalibertação dos escravos que An-gelo Agostini ganhou sua primei-ra síntese. Falar de Agostini erafalar de um artista, um jornalis-ta da imagem, comprometidocom o avanço do País, um pro-cesso de humanização que sana-ria uma doença que estava acorroer o Brasil. Agostini era,ele também, um herói da Aboli-ção e da República.

Foi como abolicionista queele foi relembrado em 1943,quando de seu centenário. A im-prensa à época, eufórica com osprogressos dos direitos traba-lhistas do governo Getúlio Var-gas, via na abolição um movi-mento percussor daquele novomomento em que o Estado setornava mediador entre patrõese empregados.

Marcelo Balaban explica queesta identificação com o aboli-cionismo foi fundamental paradestacar Agostini dos demais ar-tistas da imprensa ilustrada. “Aatividade dele como caricaturis-ta era mais ampla que isso. Nãoque fosse pouco ser abolicionis-ta, mas ele não se restringiu aproduzir sobre esta temática. Is-so não significa que ele foi omais importante dos caricaturis-tas do século XIX. Significa quesua memória se construiu cola-da à memória da abolição dosescravos. Outros não se aproxi-maram tanto dos abolicionistasquanto Agostini”, explica.

“Chama atenção o fato de aimprensa ilustrada ter sido tãovariada e ela ser identificadaapenas com ele. Agostini foi umdentre vários outros, como oalemão Henrique Fleiuss, da Se-mana Illustrada, e o portuguêsRafael Bordalo Pinheiro, com oqual o Agostini teve uma polêmi-ca, que ganhou as páginas deseus jornais”, conta Balaban. o

EDITORAUNICAMP2009472PÁGINASR$48

PoetadoLápisMarceloBalaban

Rindo se combateHISTÓRIA

HISTÓRIA

DIÁRIODONORDESTE | FORTALEZA,CEARÁ-DOMINGO,28DEFEVEREIRODE2010 caderno3 | 5

Bibliografiarara

LIVROSsobre/deAngeloAgosti-ni são raros (comoamaioriadosnomesdahistóriadosquadri-nhosbrasileiros).Osqueexis-tem,noentanto, sãodenotóriaconsistência.Três livros sãoobri-gatóriosparaquemquer conhe-cermelhoromestre caricaturis-ta.Omaisantigoé“Cabrião”.Lançadoem1982pela ImprensaOficial doEstadodeSãoPaulo, olivro traz fac-símilesdosemaná-riohumorísticoeditadoporAgos-tini, ao ladodeAméricodeCam-poseAntônioManoel dosReis,nobiênio 1866-1867.Ganhouumasegundaediçãoem2001,pelaEditoraUnesp.Noanose-guinte, aEdusppublicou“AsAventurasdeNhô-Quim&ZéCaipora”.Organizadopelopes-quisadorAthosEichler, ovolumetraziaumahistóriadeNhô-Quim,caipira àsvoltas comoimpactodacivilizaçãourbanasobreele. Editadaem1869, éconsideradaaprimeiraHQbrasi-leira.Outropersonagemdocari-caturista,ZéCaiporaapareceu 14anosdepois, emumasérie dehistóriascurtas.Hácincoanos,“DiaboCoxo:SãoPaulo,1864-1865” foi lançadopelaEdusp.Trata-sedeumaediçãofac-similardoprimeiro jornal ilus-tradodeSãoPaulo, de 1864a1865, redigidoporLuísGamaeilustradoporAngeloAgostini.

Nasúltimasdécadas, AngeloAgostini passou aintegrar o cânonebrasileiro das históriasemquadrinhos. Formade expressão embuscade legitimação, asHQsencontraramnoitaliano umprecursor

IBAngeloAgostini:artistadánomeaumdosprincipaisprêmiosdasHQsbrasileiras

IB CENASEMSEQUENCIA,acompanhadodepequenaslegendasmanuscritas:ensaiosdeHQsnaimprensa ilustrada IMAGEM:REPRODUÇÃO

De certo, sabe-se queas histórias em qua-drinhos surgiram noséculo XIX. Certezasalém disso são pou-

cas, ainda que não faltem teoriasquantoàidentidadedeseudesco-bridor/inventor. Entre os candi-datos está o italiano, que se natu-ralizou brasileiro, Angelo Agosti-ni. Ele disputa o pioneirismo como suíço Rodolphe Töpffer (1799 -1846), o alemão Wilhelm Busch(1832 - 1908) e o norte-america-no R. F. Outcault (1863 - 1928),dentre outros.

Todos eles produziram histó-rias que combinavam texto eimagem. Não se tratava da merailustração de algum cena pinça-da da história, mas quadros queem sequência formavam umanarrativa, acompanhados por le-gendas que davam mais deta-lhes da trama, das ações de seuspersonagens e dos diálogos tra-vados por estes. Uma descriçãoda maioria dos quadrinhos mo-dernos seria quase idêntica aesta. No entanto, os estudiososdebatem a respeito de pequenostraços que consideram funda-mentais. A criação de Outcault,as páginas dominicais de“Yellow Kid”, é a que costumaser mais citada como primeiraHQ. Nela, o artista introduziuum elemento que não se via nostrabalhos de seus concorrentes:o balão de fala. Pode parecerpouco, mas os italianos cha-mam as HQs de “fumetti”, numareferência à “fumacinha” quesai da boca de personagens,com textos dentro dela. Oposito-res da tese de que é dos america-nos a primeira HQ, lembram

que, desde a Idade Média, jáhavia imagens que traziam “fi-lacteras”, pequenas caixas de le-genda ligadas às bocas das figu-ras representadas.

OmistériodeAgostini

A história brasileira dos quadri-nhos ainda é uma disciplina lon-ge de gozar de credibilidade - àexceção de trabalhos como osdo jornalista Gonçalo Junior(“A guerra dos gibis”, “O moci-nho do Brasil”), a maioria seatém mais a reforçar os mitos doque investigar, em pormenores,o trajeto desta linguagem. Porisso, Agostini como quadrinhis-ta ainda é um mistério.

Como fica claro na leitura de“Poeta do Lápis”, livro de Marce-lo Balaban sobre a caricaturapolítica do artista, ele não foi oúnico a aliar texto e imagem nosjornais do século XIX. Se não seespalhou por todo o País, a im-prensa ilustrada, pelo menos, sefez presente de maneira marcan-tes na capital federal, o Rio deJaneiro, em São Paulo e no RioGrande do Sul.

“Os quadrinhos não foramexatamente um interesse de pes-quisa em meu doutorado. Atéonde acompanhei, há a tese deque o início da publicação dasHQs no Brasil teria acontecidoantes dos americanos, com as

aventuras do Zé Caipora. Esteficou, porque era um tipo dehistória mais longa, que se de-senrolava por alguns números.Mas havia outros exemplos,com histórias mais curtas, nãosó do próprio Agostini, mas tam-bém de outros caricaturistas”,explica Balaban.

Nas histórias de Zé Caipora,Angelo Agostini apelava paraum personagem-metáfora, omatuto que vinha da zona ruralpara a cidade e que, por meio deseus assombros, evidenciava asdiferenças entre estes dois mun-dos. “As aventuras de Zé Caipo-ra” apareceram nas páginas cen-trais da “Revista Ilustrada”, en-tre 1883 e 1888. Há poucosanos, a editora do Senado publi-cou, em edição fac-símile, a ínte-gra deste material - além deuma história de Nhô-Quim,uma narrativa visual mais anti-ga, também produzida por An-gelo Agostini. Zé Caipora aindarendeu uma tese, no departa-mento de História, Letras e Ciên-cias Humanas da Universidadede São Paulo, “Angelo Agostiniou impressões de uma viagemda Corte à Capital Federal”, deG. M. de Oliveria (disponívelpara download gratuito emwww.teses.usp.br).

Marcelo Balaban lembra dealgumas produções que encon-trou que seguiam a mesma lin-guagem das “Aventuras de ZéCaipora”: “Há uma história mui-to interessante, em que ele con-ta um pouco de sua própria his-tória, não como uma autobiogra-fia, mas como estratégia parafalar do contexto”.

O pesquisador no entanto evi-ta falar no trabalho de Agostinicomo HQs. “Estas histórias sãomuito bem enquadradas, na ló-gica do século XIX, como sériede crônicas que usam o persona-gem para falar da corte, apresen-tando uma visão de fatos e situa-ções. Prefiro pensar em uma nar-rativa, antes de quadrinho, di-zer que dessa imprensa ilustra-da pode ter surgido, em alguminstante, algo que viria ser a HQ.Era uma crônica visual”. o

Mito defundação

361107393

FIQUEPORDENTRO

QUADRINHOS