caderno 23 viver com esperanca armindo vaz
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Viver com EsperanaTempos de Crise
- Notas sobre a Esperana Bblica
Armindo dos Santos Vaz
Caderno 23
Fundao Betnia
Fevereiro 2013
www.fundacao-betania.org
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Viver com esperana tempos de crise
Notas sobre a esperana bblica
Armindo dos Santos Vaz
A esperana inerente ao dinamismo do esprito humano. O humano
um ser que espera, um ser que, pela conscincia, merece que a sua esperana
no seja frustrada. o ser que precisa de esperana para viver. Uma
esperana que no seja um vu a encobrir a resignao, resignao para
suportar a aventura de cada dia. Uma esperana que no se confunda com
uma simples espera passiva, que s vezes s uma forma disfarada de
desesperana e impotncia 1. De uma diz-se com pessimismo que quem
espera desespera. A outra torna-nos optimistas, d-nos a fora de sorrir
quando tudo volta parece ruir. sobre esta que meditamos aqui.
Como em tantos outros temas, tambm neste os clssicos do-nossempre que pensar. Comecemos com dois trechos.
- O poeta grego Hesodo (sc. VIII a.C.) conta que Zeus, o deus
supremo do panteo olmpico, quis punir a insolente rebelio do semi-deus
Prometeu, que se atrevera excessiva esperteza de roubar o fogo divino
(hybris) para ajudar os humanos a civilizarem-se 2. Ento os deuses deram
vida a uma linda mulher, na qual Hermes ps mentiras, palavras sedutoras e
carcter astuto/fraudulento (verso 78). Deu-lhe o nome de Pandora, porqueforam todos os moradores do Olimpo que, com o seu presente, fizeram
presente da desgraa aos humanos Antes, a raa humana vivia na terra
[como se fossem deuses: verso 112] ao abrigo das penas, da dura fadiga, das
doenas dolorosas que acarretam a morte aos humanos. Mas a mulher, tirando
com a mo a grande tampa da jarra, espalhou-as pelo mundo S a
1E. FROMM,A revoluo da esperana(Jorge Zahar; Rio de Janeiro 1981) 26.2
Os trabalhos e os dias, versos 54-58.
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esperanaficou l, no interior da sua priso inquebrvel, sem sair dos lbios
da jarra, porque Pandora, por vontade de Zeus, j tinha recolocado a
tampa Ao contrrio, as tristezas vagueiam inumerveis entre os humanos: a
terra e o mar esto cheios de males. As doenas, de dia e de noite, visitam os
humanos, trazendo sofrimento aos mortais em silncio, porque o sbio Zeus
lhes recusou a palavra. Assim, no h meio de escapar aos desgnios de Zeus
(versos 80-82.90-95).
Este mito de origem grego toca o mito bblico de Gnesis 2-3 no ponto em
que a mulher se diz enganada pela serpente (Gn 3,13) e em que o engano
da mulher aparece miticamente como causa dos males e da morte que
inevitavelmente incomodam os humanos e que so vistos como punio divina.
- Dante comea o canto III do seu Infernona Divina Comdia, contando
que por cima da porta do inferno estava escrito em letreiro escuro: Deixai toda
a esperana, vs que entrais (versos 9-12). Significava que a falta de
esperana o inferno.
Os dois trechos, com linguagem mtica e potica, tm em comum a
elevada inteno de dar sentido radical s asperezas da vida pessoal, onde
est radicado o sentido ltimo ou absoluto, visto pela f na esfera do divino. E
ambos tm conscincia de que os males fsicos so inevitveis: dependem da
incontornvel limitao e da radical finitude da condio humana.
A Bblia, outro clssico, tem um olhar diferente para essa inevitabilidade,
conjugando a esperana com diversos acentos. Intentamos esboar a estrutura
bsica da esperana bblica e algumas razes que a fundamentam. A
percepo da sua estrutura mostra a sua inteno mais genuna, mas tambm
d credibilidade ao alcance mais profundo da esperana crist e
possibilidade de a viver hoje de forma crtica e coerente na comunidadehumana.
1. O dinamismo da esperana no Antigo Testamento
Uma das observaes mais notveis que um leitor atento pode fazer nas
entrelinhas do universo dos textos bblicos a de que est perpassado de um
plano de salvao dos humanos, visto pela f como iniciativa de Deus. Ora,esse projecto, que costumamos chamarhistria da salvaodo povo de Deus,
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a f v-o impregnado de um dinamismo interior, que o percorre do princpio ao
fim: uma esperana viva por um futuro sempre melhor e libertador. Descobre-
se desde logo nos textos do Antigo Testamento.
Mas, se a tradio crist, desde S. Agostinho at hoje, geralmente traa
com esse propsito a sequncia paraso queda castigo redeno em
esperana, ela no resiste a uma anlise crtica das narrativas da criao com
a metodologia recomendada pelo magistrio da Igreja. Resultante de uma
leitura literalista, historicista, fundamentalista, est imbuda de perigosa
ambiguidade e ameaaria a pureza da esperana crist, pois subentende uma
imagem de Deus que obscurece outras verdades da f, entendendo-o mesmo
como castigador.
O esquema bsico que encontramos na anlise dos textos capaz de
sustentar a esperana sem anular, nem o esforo da liberdade, nem a
ambiguidade da histria. No princpio de tudo e como fundamento de tudo,
emerge Deus, transcendncia pessoal que d origem a tudo o que existe e,
portanto, o sentido ltimo do mundo e do ser humano. Atravs da linguagem
do mito de origem, a f bblica v todas as coisas como criadas por Deus.
Assim exaltava-as mxima dignidade e abria o ser humano esperana,
virtude subliminar que impregna a paisagem bblica de forma caleidoscpica.
Quando a narrativa fundadora da f bblica passa do mito para a histria
propriamente dita (em Gn 12), deparamos logo com a esperana naquilo que
o mais original da revelao bblica: a sua perspectivao histrico-salvfica.
Gn 12,1-4. Abrao, posto em movimento pela Palavra de Deus, s
leva consigo na trouxa a esperana, o conforto da Palavra que o
anima. Havia no ser humano Abrao uma nsia de caminhante,
expresso de esperana implcita e explcita. Gn 15,1-18. Os verbos esto no futuro: O teu herdeiro sair das
tuas entranhas Conta as estrelas: ser assim a tua
descendncia. Abrao aparece abalanado para o futuro.
apresentado como aquele que vive de esperana e de promessas
de Deus (de uma descendncia, Isaac, e de uma terra, Israel),
feitas no mbito de uma alianaem forma de juramento absoluto,
unilateral e gratuito: a aliana da iniciativa de Deus.
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Gn 17,1-8.15-20: Renova o compromisso-aliana de Deus com
Abrao.
Gn 22,1-19: O drama da esperana!... O filho impossvel para a
biologia da me (Sara, estril) tornou-se possvel para a f do pai.
Parecia realizada a promessa divina: Sara, tua mulher, te dar
luz um filho e hs-de pr-lhe o nome de Isaac (Gn 17,19). Mas
agora paradoxalmente? Deus pede que lho oferea. No o
fim do filho e o volte-face da promessa em burla? A f-obedincia
de Abrao no anula a sua esperana. Esta intuiu que oferecer a
Deus o filho da promessa no seria um dom sem sentido, porque
tudo o que na vida tem valor se multiplica quando se d. De facto,
Deus devolveu-lho, agora abenoado e consagrado pelo sacrifcio.
E multiplicou o dom: multiplicarei a tua descendncia como as
estrelas do cu e como a areia das praias do mar (Gn 22,17). A
esperana j em Abrao e desde ele em diante, uma atitude
complexa, mas vigorosa, substantiva, ousada. Um acto livre:
eleio e fidelidade. Libertadora, porque no s um acrscimo de
sentido, mas tambm um acrscimo de aco: compromete na
vida. Na escurido da esperana multiplica-se o dom de Deus.
Paulo deixou-nos o poderoso testemunho da esperana de Abrao:
Esperou contra toda a esperana, acreditou e foi feito pai de
muitas naes Diante da promessa divina, no cedeu dvida
com incredulidade; antes, fortalecido na sua f, deu glria a Deus
[mostrou que existe Deus], com a plena convico de que poderoso
Deus para cumprir o prometido (Rm 4,18-21).
Realmente, Abrao assumiu a responsabilidade de esperar emDeus, tanto como em si prprio. Sabia que s se homem em
responsabilidade. Ora, a responsabilidade de amadurecer na
esperana no se pode delegar. Cada um que tem de arcar com
o custo desconfortvel de querer dar espessura sua esperana
em Deus, sabendo que ou aspira a tanto ou permanece ano. As
contas da nossa esperana so todas por conta prpria, porque s
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h um remdio para a infncia, que crescer 3. Cada um torna-se
grande sua medida, em proporo grandeza daquilo que
espera. Quem espera tudo de si prprio torna-se to grande como
a sua medida. Mas quem espera em Deus torna-se superior,
porque se supera a si prprio em Deus. Bem-aventurado aquele
que tem Deus como contedoda sua esperana!
O compromisso de Deus renovado aos outros patriarcas. A sua
bnoa cada um fonte de esperana. Gn 28,12-15: o sonhode
Jacob suporte da esperana: Eu estou contigo. Guardar-te-ei
para qualquer parte que fores. No. No te abandonarei enquanto
no cumprir o que te prometi.
No Egipto, a opresso dos hebreus aparece como uma ameaa
esperana no Deus dos pais: Ex 2, 23-25 e 3,9-10. Na realidade,
um processo maiutico que consciencializa o ser humano da
necessidade de ser libertado: o mal faz-lhe experimentar a
incapacidade de obter por si s a libertao e abre-o esperana
de a obter. Sendo sempre a opresso intrinsecamente m, foi
teologicamente explorada pelo narrador bblico como meio para
compreender que na relao com Deus tudo graa dEle. Quando
uma pessoa senteo peso da escravido, fica predisposta para se
inebriar da espessura da liberdade, porque ento esta no aparece
como um bem qualquer, mas como um bem gratuito sem
alternativas reais, como uma construo de Deus sobre os
escombros do oprimido que grita por socorro, impotente para se
salvar. S um poder superior capaz de socorr-la. A revela-se
Deus a favor da pessoa, como motor da histria da liberdadehumana. Onde se levanta a ameaa do perigo de vida, a f faz
emergir a esperana de um salvador.
O xodo comea num acto de esperana. A opresso dramtica
tornou-se contexto e pretexto, observatrio e plataforma para a
captao de Deus como libertador. A melhor maneira de sobreviver
opresso do homem contra o homem conseguir dar-lhe um
3VERGLIO FERREIRA, Interrogao ao destino Malraux, p. 14.
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sentido. Ora, a f hebraica deu sentido opresso, inscrevendo-a
num fundo de esperana prodigiosa, que viu Deus a desencadear
um processo de libertao na histria dos hebreus. Ver Deus como
Aquele que significava esperar contra o desespero. A linguagem
da esperana no Deus libertador transformou o medo interior em
energia libertadora. As pragas em nmero de 10 (Ex 7,8-13,16)
visavam manter viva a esperana ao longo do processo libertador.
A travessia do mar (Ex 13,17-14,31) era a vitria da esperana
sobre o medo e sobre as opresses. A esperana hermenutica:
v Deus a vir vida do Homem e a dar-lhe significao superior.
Essa vinda de Deus diz-se selada com uma aliana, a do Sinai.
Obtida a libertao como dom, o grande objecto de esperana
agora era a Terra prometida.
Na travessia pelo deserto, a realidade que mantinha o povo em
vida era a esperana em Deus e a sua promessa da Terra. O
deserto era lugar de esperana: no deserto no h nada entre a
terra e o cu; quem est onde no h nada facilmente espera vir a
ter algo melhor. A crtica do povo contra os seus lderes, as
murmuraes e os protestos por o terem tirado da escravido do
Egipto eram tentaes contra a esperana: Nm 14,1-4 e Nm 11,4-5.
Os lderes apontavam o caminho para a terra prometida. O povo s
via deserto. Os lderes apontavam o futuro, o povo recordava o
passado da comida abundante no Egipto. O novo o objecto da
esperana. Mas causa preocupaes, pe interrogaes, gera
receios.
Para evitar isso, no se pode esquecer Deus, o dador da Terra dizia o Deuteronmio 6,1-13: Quando o Senhor, teu Deus, te
introduzir na terra que h-de dar-te, conforme jurou aos teus pais,
Abrao, Isaac e Jacob, procura no esquecer-te do Senhor que
te tirou da terra do Egipto, da casa da escravido. Ao Senhor, teu
Deus, temers, a Ele servirs. Deus que mantm viva a chama
da esperana. As geraes vindouras so a contrapartida, a fonte
de esperana humana: realidade que desafia a responsabilidade datransmisso da esperana em famlia:
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Quando o Senhor te tiver introduzido na terra dos cananeus, como
jurou a ti e aos teus pais, e ta tiver dado, consagrars ao Senhor
todos os primognitos E quando no dia de amanh o teu filho te
perguntarque significa isto?, responder-lhe-s: Com mo forte
o Senhor tirou-nos do Egipto, da escravido O Senhor matou
todos os primognitos no pas do Egipto, desde o primognito
humano at ao primognito do gado. Por isso, eu sacrifico ao
Senhor todo o primognito macho do gado e resgato o primognito
dos meus filhos (Dt 13,11-16).
Uma vez na Terra, do lado humano a esperana vai assentar numa
figura rgia, que se tornar pouco a pouco o ideal do rei que
libertar Israel dos seus inimigos e manter a esperana da
salvao: o rei David. O orculo de 2Sam 7,8-17 o ponto
culminante do compromisso/alianade Deus com David e a coluna
vertebral das esperanas de Israel no Antigo Testamento, a partir
do qual se desenvolveu a esperana dos profetas que anunciava a
vinda de um novo David. Esboa a expresso do messianismoreal.
o texto-base que constituiu o fundo antropolgico e as aspiraes
da esperana futura.
Isaasassegura que, nos planos de Deus, a dinastia de David a
eleita para reinar em Jerusalm, capital de Jud: Is 7,13-14:
Escutai, casa de David: o Senhor em pessoa vai dar-vos um sinal:
Eis que uma donzela est grvida e vai dar luz um filho e cham-
lo- Emanuel. A esperana de Isaas enxerga nas circunstncias
histricas presentes o advento do reino definitivo de Deus. O
declinar poltico conduziu idealizao do imprio de David; e esteconduziu ao florescimento de esperanas religiosas e polticas de
que um novo rei, ungido como David, restabeleceria o grande
imprio na Palestina. Essa esperana viu-se concretizada nos reis
Ezequias e Josias.
A esperana inculcada ao povo pelos profetas est intrinsecamente
ligada Palavra de Deus e s promessas de Deus. Est formulada
no futuro: Sair um rebento do tronco de Jess Repousarsobre ele o Esprito do Senhor Julgar com justia os dbeis (Is
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11,1-9). Mas o essencial da esperana no estava ligado ao tempo
futuro como se fosse adivinhado: o essencial era o "novo"
absoluto, o divino no humano, o transcendente a entrar no
imanente, pondo em dilogo o humano com o divino.
Literariamente, a esperana "dizia-se" no futuro, sim, para significar
que Deus que toma a iniciativa absoluta de vir histria humana
e de a conduzir com a sua senhoria soberana; "dizia-se" no futuro
porque via o futuro de Deus a vir ao presente do destinatrio da
profecia. A esperana intua o definitivo que est para alm do
tempo e do espao: intua o sentido ltimodas coisas e as coisas
ltimas.
De facto, das duas palavras que os gregos tinham para dizertempo
(chrnos e kairs), o tempo bblico correspondia mais ao kairs.
Era conjugado de forma que os acontecimentos adquirissem pleno
sentido. O tempo bblico era o tempo de uma histria de salvao.
Era o hoje de Deus que situava o ser humano no corao da
esperana; era um tempo salvfico. Enquanto o tempo chrnos do
calendrio, tempo de desesperana, envelhecia e consumia o ser
humano, o kairsinstitua-se como oportunidade de salvao. Era
um tempo definido e determinante, que lanava o povo para o
futuro por caminhos de verdade, de bondade e de fidelidade. Era
um tempo com sentido, que dava sentido vida, vivida com
conscincia e densidade. Dando-lhe sentido, dava contedo
esperana.
Esse era um objectivo principal do profeta: fundamentar e manter a
esperana dos seus contemporneos, fazendo quecompreendessem os acontecimentos do seu tempo com o olhar de
Deus. A esperana at exprimia um conhecimento: no o
conhecimento do futuro, mas a experincia de Deus. O que, em
ltima anlise, a esperana contemplava era a profundidade ltima
das coisas e o seu sentido invisvel a beneficiar a pessoa de
esperana: Bendito aquele que confia no Senhor e pe no Senhor
a sua esperana. como a rvore plantada beira da gua, que
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estende as razes para a corrente; nada tem a temer quando vem o
calor (Jer 17,7-8).
A retoma da aliana por parte de Deus, segundo Oseias 1-3,
trouxe novo flego esperana.
O exlio ocasionou o desconcerto perante a promessa feita a
David. Como pde Deus permitir esta humilhao do seu ungido?
O Sl 89,20-30.47-52 pe esse problema teolgico, dizendo que a
base da esperana estava na fidelidade de Deus sua aliana:
Conclu uma aliana com o meu eleito, fiz um juramento ao meu
servo David: fundei a tua estirpe para sempre, levantei o teu trono
de gerao em gerao Encontrei em David um servidor, com o
meu leo santo o ungi Manterei para com ele um amor para
sempre, a minha aliana com ele ser firme; dar-lhe-ei uma estirpe
perptua, um trono duradoiro como o cu No violarei a minha
aliana A sua estirpe durar sempre. A partir do v. 39 seguem as
queixas do orante, por causa do aparente abandono de Israel por
parte de Deus: Mas agora rejeitaste-o Enfureceste-te contra o
teu ungido. Desfizeste a aliana com o teu servo.
A orao viva era forma de manter viva a esperana.
Nos profetas, surge a esperana da restauraoda dinastia. Nesta
linha, o texto mais importante Isaas 11,1-9 e Miqueias 5,1-4a.
Esperana no regresso do exlio: Is 40,1-5 e Is 43,1-7 e Is
65,16-25
Jer 31,31-34 e Ezequiel 36,24-28 : a intuio de uma aliana
nova d uma esperana nova, porque assenta s na fidelidade de
Deus e no na do homem (pecador, falvel!). E na identidade quese fechava dentro da segurana da sua tradio da aliana do
Sinai, constantemente violada a esperana proftica enxertou
uma identidade aberta superao da anterior fase, eivada de
alguns riscos.
Desde o tempo do exlio para Babilnia, a esperana bblica abre-
se a uma viso universalistada revelao e da salvao: abraa,
j no s Israel, mas todos os povos.
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Cntico dos Cnticos: Dos vrios registos em que se pode ler o
Ct, nota-se nele um motivo condutor, que o cadencia com tons de
esperana. o motivo daprocuraansiosa do Amado, que aparece
e desaparece para suscitar mais procura e mais esperana. A
esperana o constante alimento do amor; e o amor a satisfao
da esperana.
A amada deseja impaciente o amado. Tem medo de o perder.
Salva-a a esperana. Assim comenta Frei Lus de Len o Cntico
dos Cnticos:
O amor no perde a esperana, mesmo quando no tem notcias do que busca e
deseja; antes, ento at se acende mais. Porque sempre assim: ao amor s o
amor o encontra, s o amor o entende, s o amor o merece4
.
Procurando o Amado com avidez, o corao da amada s se fixa
nele. Da brota nela esta incontida prece, que tudo diz, tudo pede
definitivamente:
Em escarpados esconderijos
mostra-me a tua figura,
deixa-me escutar a tua voz,
porque dulcssima a tua voz
e formosa a tua figura (2,14).
A busca do amado torna-se esperana, que o modo supremo da
procura e o modo mais denso de ir ao encontro dele. Ao exprimir-se
assim, o poeta vai segredando em surdina:
Viver sempre comungar com o outro. Mas, a comunho que j
aconteceu no tudo o que possvel. Continua a procurar com
esperana. Ainda h mais amor a dar e a receber; h mais amor
para alm das penas e das decepes. O amor que o deveras
ser imorredouro diz a amada:
No podem as guas mais caudalosas apagar o amor,
Nem os rios afog-lo (8,7).
Essa esperana no defrauda a amada, porque a procura fiel do
amor a enriquece e faz com que se transcenda no amado e se
salve.
4Citado porEl cantar ms bello. El Cantar de los cantares de Salomn(Traduccin y comentario de EmiliaFernndez Tejero) (La dicha de enmudecer; Trotta; Madrid 1998) 85.
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Job19,23-27a: Eu sei que o meu Defensor vive Depois de me
deixarem sem pele, j sem carne, verei Deus Os meus olhos,
que no outros, o vero. A este limite da esperana, por causa de
uma situao-limite, faz eco o grande final: Conhecia-te de ter
ouvido, mas agora viram-te os meus prprios olhos (42,5). A
esperana aparece satisfeita pela viso de Deus. isso o que a
reabilitao de Job na sua anterior prosperidade quer significar.
Tendo ns acompanhado este plano salvador para a humanidade ao
longo da histria bblica, vemos o fundamento da esperana humana
tematizado nos conceitos de promessa e de aliana. O de promessa aos
patriarcas pe o acento na iniciativa absoluta de Deus, que mas salva a partir
da total gratuitidade do seu amor. Mesmo assim, tem carcter pessoal, que
essncia da esperana bblica: faz-se a um tu e a uma conscincia. Portanto,
est intrinsecamente ligada aliana, no quadro da qual Deus fiel s
promessas e assegura o carcter interpessoal delas; e dentro da aliana que
o povo beneficirio das promessas. Estas dizem-se feitas no mbito de uma
aliana:
na aliana csmica dentro de um relato mtico, promessa de no mais
voltar a aniquilar a vida pelas guas do dilvio (Gn 9,11);
na aliana com Abrao, promessa de descendncia e de uma terra (Gn
15,18);
na aliana do Sinai, promessa da eleio divina e de fazer do povo um
reino de sacerdotes e uma nao santa (Ex 19,5-6);
na aliana com David, promessa de um reino que permanecer parasempre 5;
na aliana nova intuda pelos profetas, promessa de pr a Lei e o
Esprito divinos no interior das conscincias e promessa do perdo total dos
pecados 6.
Esta esperana veio-se apoiando em sucessivas concretizaes: a
libertao da escravido do Egipto, a doao da terra prometida, a paz e a
52Sm 7,16; Sl 89,21-38; 132,10-12.6Jer, 31,31-34; Ez 36,25-29.
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justia para todo o povo, a confluncia de todos os povos para Jerusalm 7, o
regresso do exlio 8, a vinda do reinado de Deus
um facto que tudo quanto foi escrito no passado se escreveu para ensinamento nosso,
de modo que, atravs da constncia e da consolao que do as Escrituras, mantenhamos
a esperana (Rm 15,4).
Tambm a orao dava corpo esperana. Dirige-se a Deus como
refgio e fortaleza, amparo e proteco, que alimenta a esperana mesmo
em situaes-limite. Na angstia abres-me sadas Sabei que o Senhor me
distingue com o seu amor. O Senhor escuta-me quando o chamo (Sl 4,2-4).
Feliz de quem tem por auxlio o Deus de Jacob, de quem pe a sua esperana
no Senhor, seu Deus (Sl 146,5). O Deus bblico o apoio seguro de
esperana por ser um Deus que escuta: Deus escutou os gemidos dos filhosde Israel e lembrou-se da sua aliana com Abrao, Isaac e Jacob (Ex 2,23-
24). No maltratars a viva nem o rfo. Se lhes fizeres mal e eles clamarem
por mim, escutarei o seu clamor 9.
2. O especfico da esperana crist
esperana de um povo, no ponto culminante da sua histria, Deus dissesim e men em Jesus (2Cor 1,20). Este sim o slido terreno e o suporte
definitivo em que assenta a esperana crist. Dando o Filho ao ser humano,
dava provas de lhe ser fiel. E dava garantias de que a sua esperana no era
em vo. Na apario de Jesus como Filho de Deus a libertao prometida em
esperana no Antigo Testamento irrompeu como o grande hoje de Deus. Em
Jesus, o que at ele era futuro, para a f crist tornou-se presente definitivo:
perdo absoluto dos pecados, filiao divina pessoal, habitao do Esprito no
corao de carne, povo de Deus alargado a todos os povos. A base e o
contedo da esperana foram reformulados e consistem na pessoa, na
mensagem e na obra salvfica de Jesus. Se qualquer ser humano est animado
de esperana, a crist tem um distintivo: apoia-se no Deus de Jesus Cristo. D
7Is 2,2ss; Miq 4,1ss.
8Is 43,1ss; Ba 4,36ss.
9 Ex 22,21. Este dado da esperana bblica deve ser constantemente purificado da ratoeira dosantropomorfismos, para no cair na viso de um Deus intervencionista.
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vida o sentido que lhe deu Jesus, que acreditava no Deus de Abrao e
mostrou o Deus do amor.
2.1. Esperana e morte de Jesus
A morte de Jesus interpretada pelos escritores do NT como necessria.
Pem Jesus a explicar aos discpulos de Emas: no era necessrio que o
Messias padecesse estas coisas e entrasse assim na sua glria? (Lc 24,26).
Com isso no queriam significar que Deus mandou Jesus ao mundo para ser
morto. A morte cruenta livre e voluntariamente aceite como inevitvel pelo
incmodo que tinha causado aos poderes institudos revelava de forma
suprema o amor de Deus pela humanidade. Foi sofrendo a morte por amor que
Jesus revelou em plenitude a glria de Deus, ou seja, quem Ele: amor,
Deus para ns. E foi morrendo por amor que Jesus manifestou a sua glria
(Jo 2,11; 13,31-32), manifestou quem era: o Filho de Deus que fazia incarnar o
seu amor. Se no tivesse aceitado morrer, no teria revelado Deus tal como
Ele , diferente de como muitos humanos o faziam ou queriam que Ele fosse.
S um Deus sofredor na pessoa de Jesus entrava na dor de cada um dos seus
filhos. S assim Ele foi solidrio com os sofredores e est do lado deles,
dando-lhes esperana.
A sua solidariedade manifestou-se no facto de ter sido vtima do mesmo
mal que de diversas formas nos atinge a todos. O sofrimento e a morte que ele
aceitou por amor aos humanos projecta luz sobre a nossa existncia sofredora
redimida, como projectou luz sobre a sua existncia redentora. Ao ser
revelao do amor at ao fim (Jo 13,1), a morte voluntria de Jesus na cruz
tambm era revelao do fim do mal enquanto absurdo. Quer dizer, depois dasolidariedade total de Jesus com a humanidade (incarnando nela e morrendo
por ela), o mal j no obstculo esperana crist. A ctedra da cruz o
lugar da sua ltima lio para ns e tambm para si prprio. A carta aos
Hebreus esclarece a este propsito: Ele nos dias da sua vida terrena [ literalmente:
nos dias da sua carne] apresentou oraes e splicas quele que o podia
salvar da morte, com grande clamor e lgrimas Apesar de ser Filho,
aprendeu [mathen] a obedincia por aquilo que sofreu [pathen]; e, chegado perfeio, tornou-se para todos os que lhe obedecem fonte de salvao
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definitiva, tendo sido proclamado por Deus sumo-sacerdote 10. Esta suma
solidariedade um sumo gesto de amor, que d contedo esperana crist.
Enquanto os sacerdotes do Antigo Testamento, por uma srie de purificaes,
se mantinham separados do seu povo e eram solidrios com ele s no pecado,
Jesus Cristo perfeitamente solidrio em tudo com os humanos leigo como
eles, no pertencente tribo sacerdotal e no tem pecado como eles: No
temos um sumo-sacerdote que no possa compadecer-se da nossa fraqueza,
pois ele foi provado em tudo como ns, excepto no pecado (Heb 4,15; 2,17-
18). Enquanto sumo-sacerdote, Jesus perfeito mediador, pontfice [faz
perfeitamente aponteentre o humano e Deus], porque, filho humano, tambm
Filho divino e foi proclamado sumo-sacerdote por Deus, no pelos
humanos, limitados. Assim, pode salv-los do pecado porque no o tem.
Realmente, o ser humano aprende a pensar-se a si prprio como limitado e
dependente. O sofrimento ensina-lho melhor, d-lhe essa experincia. Mas o
sofrimento de Jesus redime essa limitao natural. E a participao, pelo
sofrimento, no amor com que Jesus abraou a cruz faz com que cada humano
torne prpria essa redeno, fundamento da esperana crist.
De facto, para o cristo a cruz de Jesus no simples expresso de
sofrimento, muito menos lugar de suplcio. a Palavra do amor, que
frequentemente implica dor. E a dor a experincia humana mais poderosa
para viver e exprimir o amor. No sofrimento aparece mais claramente a fora
do amor. Assim, no Jesus da dor encontramos o Deus do amor. Do alto da cruz
a morte de Jesus fala muito alto: Jesus gritou com voz forte (Mc 15,33-37).
Com esse acto de amor assinou com o seu sangue o texto de toda a sua vida.
A f no amor manifestado pela sua morte o mais seguro fundamento da
esperana: d que pensar e que viver. De facto, depois de ter sido solidrio
connosco no nascimento, na vida e na morte, acontea o que acontecer, no
estamos sozinhos. Representa-nos porque um de ns; pode compadecer-se
da nossa fraqueza porque a partilhou na nossa carne.
Com tudo, isso ainda no basta, pois, mesmo que morra comigo, se ele
prprio no capaz de superar a morte, de pouco me serve: se eu estou no
abismo e ele desce at onde estou, solidrio comigo; mas, se no consegue
10Heb 5,7-10. Cf. A. TORRES QUEIRUGA, Esperanza a pesar del mal(Presencia teolgica 140; Sal Terrae;Santander 2005) 118-131.
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sair de l, estou condenado a perecer. A esperana crist espera o bem
definitivo, a libertao do aniquilamento total que a morte. De facto, ningum
pode viver a pensar que, ao fim, s existe a Morte - declara o cavaleiro do
filme O stimo selo, de Ingmar Bergman.
2.2. Esperana e ressurreio de Jesus
A resposta definitiva esperana cristest na ressurreio real de Jesus
Cristopela fora do Esprito do Pai. Ela foi a aprovao divina de tudo o que
Jesus fez na sua vida. Foi a consagrao do sentido de uma vida e de uma
morte dedicadas ao amor e promoo do amor. Ressuscitando-o, o Pai fez
ressurgir toda a sua vida terrena, marcada pela entrega ao seu reino.
Identificou-se com ele desautorizando os que o tinham condenado e matado.
Aprovou os seus gestos de bondade para com os desfavorecidos, validou a
sua solidariedade total com os humanos, a sua cura de todos os males, as
suas lutas pela verdade, pela justia e pela fraternidade universal; consagrou o
ensino do perdo incondicional aos pecadores, a sua fidelidade, at morte,
ao plano salvfico de Deus para com todos os humanos, o projecto de um
mundo novo, o seu investimento total nas pessoas e na suma dignidade
humana, buscando uma vida mais digna para todos. Mas no s lhe deu razo.
Fez-lhe justia. Devolveu-lhe a vida que injustamente lhe tinham tirado,
levando-a plenitude. Ao ressuscit-lo da morte, dava razo mensagem que
tinha anunciado e s obras que tinha feito: que Deus era como Jesus o tinha
apresentado nas suas parbolas. O amor e a misericrdia do Pai eram
verdade. A aco de Jesus coincidia com a vontade do Pai: o que Jesus fez
era o que Deus queria. luz da sua ressurreio, tudo o que ele tinha dito e feito fazia agora
sentido perfeito 11. Projectava retrospectivamente uma luz nova sobre o
sofrimento e sobre a vida do Crucificado, mas tambm iluminava toda a histria
da humanidade e dava-lhe esperana. A aco de Deus a favor de Jesus
assegura-nos da omnipotncia do seu amor, que consiste em estar sempre e
s do lado do ser humano. Graas ao que Deus fez por Jesus j no
11Cf. J.A. PAGOLA, Con los ojos fijos en Jess, Fijos los ojos en Jess. En los umbrales de la fe (PPC;Madrid 2012) 186-188; J.A. PAGOLA, El arte de generar esperanza(Idatz; San Sebastin 2005) 7-10.
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precisamos de pensar que Deus nos abandone, se cale ou se desentenda de
ns. Por trs do mal que nos acontece e que Ele no quer nem pode evitar
dadas as condies da histria e da natureza humanas (como no pde livrar
Jesus da morte, pela escolha que ele fez) , est um Pai cheio de amor
libertador.
A partir da f na ressurreio, a esperana crist v o presente como
grmen de uma vida que se torna definitiva em Deus: Bendito seja Deus, Pai
de nosso Senhor Jesus Cristo! Pela sua grande misericrdia/amor fez-nos
nascer de novo para a esperanaviva, que Ele nos deu ressuscitando Jesus
Cristo da morte (1Ped 1,3). Venha o que vier, a minha vida no poder ser
menos do que aquilo que Ele prometeu, realizou e garantiu. A salvao, que s
pode ser dom dEle, fundamenta-se no poder do seu amor, na fidelidade s
promessas que a f lhe atribui nas Escrituras e no evangelho (Cl 1,23),
realizadas em Jesus: fomos salvos na esperana (Rm 8,24). Realmente,
noutro tempo, vs, os pagos, estveis longe de Cristo, sem esperanae
sem Deus no mundo (Ef 2,11-12). Agora estamos em paz com Deus por
nosso Senhor Jesus Cristo. Por ele tambm obtivemos, por meio da f, o
acesso a esta graa [da amizade divina] em que nos encontramos; e estamos
orgulhosos na esperana de que Deus se manifeste presente. Mais ainda:
estamos orgulhosos at perante as tribulaes, sabendo que a tribulao gera
a capacidade de suportar, a capacidade de suportar gera virtude provada e a
virtude provada gera esperana. Aesperana no falha, porque o amor de
Deus foi derramado nos nossos coraes pelo Esprito Santo que nos foi
dado E a prova de que Deus nos ama que Cristo, sendo ns ainda
pecadores, morreu por ns (Rm 5,1-5.8). Este amor o que, em definitivo, d
contedo esperana crist, que, portanto, no engana. Por isso, Paulogloria-se: Sei de quem me fiei (2Tim 1,12). Os cristos poderiam definir-se
como os que tm esperana.
2.3. Esperana e vida crist
O que Jesus tinha dito e feito era para ser feito. Acolhido e feito, dava
esperana vida de todos os que aderissem a esse estilo de vida. A f naressurreio fundamenta e promove o realismo histrico de uma esperana
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viva que navega entre os dois maiores escolhos que ameaam a eficcia do
compromisso contra o mal: a utopia e o desespero. No cai na utopiaporque a
ressurreio de Jesus no faz desaparecer o sofrimento humano: empenha na
luta histrica contra ele. Mas tambm no cai no desespero, porque a
ressurreio, ao mostrar que a vida humana est envolta no Amor infinito de
Deus, mais poderoso do que o mal, tira a este a ltima palavra, vencendo
mesmo a sua maior fortaleza que a morte 12.
Assim, a esperana crist tem carcter absoluto: Tendo esperana,
procedemos com toda a segurana/ousadia (2Cor 3,12). A esperana para
ns uma ncora firme e segura da nossa existncia (Heb 6,18-19):
permanecei firmemente consolidados na f e inabalveis na esperana,
prometida pelo anncio da boa nova que ouvistes (Col 1,23). Ela a ltima
razo dessa segurana: O prprio Senhor nosso Jesus Cristo e Deus, nosso
Pai, nos amou e nos deu pela sua graa uma consolao eterna e uma
esperanaditosa (2Tes 2,16).
Numa das exortaes mais convincentes da Bblia, Paulo incute aos
Romanos confiana inatacvel, apontando a esperana como razo para
superar as dificuldades postas vida humana: Somos tratados como ovelhas
para o matadouro. Mas em tudo isto samos vencedores graas quele que nos
amou. Pois estou certo de que nem a morte nem a vida, nem o presente nem
o futuro, nem a altura nem a profundidade, nem qualquer outra criatura
poder separar-nos do amor de Deus manifestado em Cristo Jesus, nosso
Senhor (8,36-39). Por isso, a vida que agora tenho na carne vivo-a na f do
Filho de Deus que me amou e se entregou a si mesmo por mim (Gl 2,20).
Paulo explicita mesmo a relao complementar entre as trs virtudes
teologais, f, esperana e amor:A vosso respeito, guardamos na memria a actividade da f, o esforo do
amor e a constncia da esperana (1Tes 1,3). Agora subsistem a f, a
esperanae o amor, estas trs. Mas a maior de todas o amor (1Cor 13,13).
Acabam por ser variantes da mesma vida crist, a vida dada por Deus, a
vida definitiva. Charles Pguy diz que a esperana a irm mais pequena da f
e do amor, mas conduz as outras duas pela mo e puxa por elas:
121Cor 15,26. Cf. A. TORRES QUEIRUGA, Esperanza a pesar del mal(Presencia teolgica 140; Sal Terrae;Santander 2005) 127-129.
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A F de que eu mais gosto, diz Deus, a esperana.
A f, isso no me espanta.
Isso no espantoso.
Eu resplandeo de tal maneira na minha criao [que a f no me espanta]
A caridade, diz Deus, isso no me espanta.
Isso no espantoso.
Essas pobres criaturas so to infelizes que a no ser
que tivessem um corao de pedra, como no
haveriam de ter caridade umas para com as outras?...
Mas a esperana, diz Deus, isso que me espanta.
A mim mesmo.
Isso espantoso.
Que essas pobres crianas vejam como todo esse [mal] acontece
e acreditem que amanh vai ser melhor
O que me espanta, diz Deus, a esperana.
Eu fico pasmo.
Essa pequena esperana que parece uma coisa de nada.
Essa pequena esperana. Imortal.
Porque as minhas trs virtudes, diz Deus.
As trs virtudes, minhas criaturas.
Minhas filhas, minhas crianas.
Elas prprias so como as minhas outras criaturas
A F uma Esposa fiel.
A Caridade uma Me.
Uma me ardente, cheia de corao.
Ou uma irm mais velha que como uma me.A Esperana uma menina de nada.
Que veio ao mundo no dia de Natal do ano passado
Porm, das trs, esta menina que atravessar os mundos.
Esta menina de nada.
Mal se d por ela no caminho da Salvao
Mas ela, a pequena Esperana, que avana na estrada
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entre as duas irms mais velhas, arrastando-as.
S ela, levando as outras, poder ultrapassar tudo o que j foi 13.
Das trs, a esperana a mais frgil, mas tambm a mais necessria. E
nenhuma delas se pode conceber sem a outra:
A esperanaest intimamente ligada na estrutura da vida f. No h
esperana sem f em Jesus Cristo: s nele lana as razes. S quem cr
espera de verdade. A f o suporte [hypstasis] daquilo que se espera (Heb
11,1). Ou seja, a f visa instalar a esperana no corao do crente, est ao
servio da esperana. A f salva a esperana e a esperana salva a existncia
e d-lhe sentido ltimo. A f faz-nos passar do simples esperar (eu espero que)
para a esperana fundada (eu espero em).
Mas a fsem esperana seria vazia, ficaria sem base e sem garantia: s
quem espera de verdade que cr. S cremos naquilo que esperamos, como
s esperamos o que acreditamos. Esperamos o que a f nos promete. A f d
substncia esperana: um agarrar-se ao que se espera. A minha f a
forma da minha esperana. A melhor f a da esperana: esperamos o que
no vemos (Rm 8,25).
Finalmente, s a esperana numa fora que nos transcenda que pode
fundamentar uma vida com futuro. Essa fora a do amor, dada pela primeira
fonte do amor, Deus. Por isso, a esperana no ilude: o amor de Deus, o
amor at ao extremo, aconteceu mesmo no Jesus histrico. O cristo
potencia a fque esperano Deus que em Jesus se revelou como Amor. Fora
da esperana em Jesus fora da esperana oferecida por Deus qualquer
outra esperana acaba por perecer. S quem tem esperana persevera nos
actos de amor. E quem cr e espera como cristo age segundo o amor. A
esperana dita o amor, torna-se visvel na aco, impulsiona boas aces.
O relevo dado esperana no nega que a essncia do cristianismo seja
o amor. Liga uma ao outro: o amor tudo espera (1Cor 13,7).
2.4. Esperana crist e sentido da vida
13 Charles PGUY, em Breve Antologia da Poesia Crist Universal (Edio eletrnica, org. SammisReachers; 2012).
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esperana humana est ligada a pergunta pelo sentido da vida: que
podemos esperar do viver? Ora, como as religies esto tradicionalmente
ligadas pergunta pelo sentido a dar vida, tambm a esperana bblica tem
uma palavra nessa reflexo. A resposta est contida na ideia de salvaoou
esperana realizada, conceito bblico equivalente ao conceito no bblico do
sentido ltimo da vida 14. Quando o cristo diz eu espero, orienta-se para a
salvao, que, para ele, dom gratuito de Deus: na vida, morte e ressurreio
de Jesus, deu contedo esperana e sentido vida.
Os seus grandes inimigos so o mal e o sofrimento, o mal fsico e o mal
moral. Frequentemente geram a sensao do absurdo do viver. A sabedoria
que enfrenta o mal parte da procura de sentido. De facto, o que
principalmente interessa ao ser humano no gozar do prazer ou evitar a dor:
encontrar sentido para a vida. At estar disposto a sofrer o sofrimento
inevitvel, contanto que faa sentido sofrer. O sofrimento faz desesperar
quando no se lhe encontra sentido. De facto, o drama fundamental do ser
humano no a falta de prazer: sem prazer pode-se viver. Drama a falta de
sentido, igual a falta de razo para viver. Quando no se encontra o sentido da
vida, busca-se o prazer e o poder 15. Mas, a vida tem sentido quando somos
capazes de gerir o equilbrio entre o prazer e a dor.
Este tema corre-nos nas veias e vale a pena insistir nele. Perante uma
experincia dolorosa, a pessoa sem esperana fica sem horizontes, olhar
diminudo pela miopia. A partir da, a viso negativista atinge os demais
aspectos da vida. Mas h outra forma de encarar as penas da vida. Em vez de
a viver toda a partir delas, a pessoa precisa de as viver a partir da totalidade da
sua vida e do sentido positivo que ela tem. Precisa de ampliar os horizontes e
elevar o olhar. No tirar importncia ao problema doloroso particular. Situa-ono conjunto da sua existncia, onde deve encontrar aspectos,
enquadramentos, experincias, relaes mais positivas. Geralmente, fazer com
que a mesma situao se torne mais ou menos negativa, depende da atitude
com que a enfrentamos: com sentimentos negativos, derrotistas, desoladores,
ou com pensamentos amplos, nobres, integradores. A esperana a parte de
14 Cf. D. BONHFFER, Risposta alle nostre domande (Queriniana; Brescia 20052) 130. De resto, oequivalente prtico ideia de sentidoda vida a felicidade total.
15Cf. V. FRANKL, El hombre en busca de sentido(Herder; Barcelona 2011) 128-137; V. FRANKL, El hombredoliente(Herder; Barcelona 2011) 13-26.
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ns a contrariar o pessimismo, a tristeza, o desnimo, a crise que grita fora de
ns e nossa volta. Tentar descobrir o bom do quotidiano uma emergncia
de sabedoria. fcil pintar a vida de negro carregado: comea como o vinho
novo, cada um envelhece-a ao seu gosto e h quem prefira torn-la vinagre.
Mas a sabedoria e a esperana pintam-na de cores matizadas, bonitas e
harmoniosas. Viver em esperana ajuda a dar cores positivas ao andar da vida,
ao olhar para as coisas, escuta dos problemas, relao com os
desesperanados 16. Infunde motivos para continuar a viver apesar de tudo.
Mantm a coragem de existir. Enquanto d capacidade de interpretar a vida
pelo lado bom, o dinamismo da esperana factor de optimismo. anseio de
sentido e de plenitude 17. Gera a fora de esperar, quando os outros se
resignam. essencialmente revolucionria. A falta de esperana acabrunha,
entristece, derrota, leva a pessoa ao sem-sentido: quem nada espera
desespera. Ao contrrio, a esperana tira-nos do buraco do desespero e d
sentido ltimo vida. Irmos, no queremos que andeis tristes como os
outros que no tm esperana (1Tes 4,13).
urgente pensar que a esperana crist mexe mesmo na vida. Comanda
a vida. Transforma-a positivamente. D de presente o futuro, no como uma
quimera ou mera utopia que projecta no futuro as frustraes do presente:
antes, puxa para o presente a experincia de plenitude, ou seja, de salvao
da pessoa, realizada por Jesus. No iluso passageira: abre um caminho real
quando estamos num beco sem sada. No s d alento para fazer o caminho
custoso que leva at casa: tambm antecipa o gozo da chegada a casa. A
esperana de ter umas frias maravilhosas d energia para suportar os duros
trabalhos de um ano inteiro; mas tambm faz saborear antecipadamente a
alegria e o descanso das frias. Atrai o futuro para dentro do presente, demodo que aquele j no puro ainda no. O facto de este futuro existir
muda o presente 18. Com o nosso empenho contribumos para que o mundo
se torne um pouco mais luminoso e humano e assim tambm se abram as
portas para o futuro 19. A falta de futuro o inferno, como j antevia Dante
16J.A. PAGOLA, El arte de generar esperanza(Idatz; San Sebastin 2005) 17-23.
17Cf. A. GESCH, El sentido(Verdade e imagem 164; Sgueme; Salamanca 2004: original 2003) 131-156.
18BENTO XVI, Spe salvi, 7.19BENTO XVI, Spe salvi, 35.
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descrevendo-o na Divina Comdia: Assim entenders que todo o
conhecimento seja morto desde o ponto em que se feche a porta do futuro 20.
A esperana crist desafia o presente imediato, sempre breve. um poder
criador. Abre perspectivas que fazem viver. Vive j com aquilo que ainda no
mas que nos faz ser. Transforma o fim em finalidade 21. Aquilo que
esperamos o motor daquilo que fazemos, sendo a nossa aco a prpria
manifestao daquilo que esperamos.
Se a esperana abre o ser humano ao futuro, para o cristo o futuro o
reino de Deus, o espao para Deus viver na sociedade, nas famlias, em mim:
o paraso celeste antecipado para a terra. O reino de Deus um dom,
constituindo a resposta esperana 22. O ser humano tem necessidade de
Deus; de contrrio, fica privado de esperana 23. A essa altura, pronuncia-se a
competncia do mstico: a esperana, referida a Deus, tanto alcana quanto
espera 24.
Enquanto tem a ver com o futuro, tem a ver com o tempo. Porque o ser
humano viandante, peregrino, olha em frente, com as luzes nos mximos.
Mas tambm transporta na memria o passado. Tem atrs de si toda a
experincia de uma longa e rica histria. E a recordao desse passado cheio
de esperana como o da revelao bblica e o da liturgia crist sustenta e
cultiva a esperana no presente, comunicando o poder salvfico dos
acontecimentos rememorados por quem os celebra e recita. D existncia
pessoal o sentido ltimo, que a f v em Deus.
Concluso
A criseque hoje nos ameaa tem razes mais profundas do queas econmicas e financeiras. Resulta de uma vida sem razes na terra e sem
laos com o cu. Mas, bem aproveitada, pode tornar-nos mais fortes. Puxa por
20Inferno, Canto X, 106-108.
21C.M. MARTINI, em U. ECO C.M. MARTINI, Em que cr quem no cr?(Grfica de Coimbra; Assafarge2000) 15.
22BENTO XVI, Spe salvi, 35.
23 BENTO XVI, Spe salvi, 23. Veja neste sentido V. FRANKL, Psicoterapia y existencialismo (Herder;Barcelona 2011) 167-181.
24S. JOO DA CRUZ, Poema X, Tras un amoroso lance, vv. 31-32; Subida do monte Carmelo, livro 3, 7,2;Noite escura, livro 2, 21,8.
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ns. Torna-nos inventivos, num desafio criatividade. Faz que nos superemos.
Para o cristo, do terreno que fez germinar a crise irrompem sementes de
esperana. As crises desencadeiam duas atitudes humanas, contraditrias: a
do medo e a da esperana. Aprender hoje a ter medo na justa medida face
crise de valores e de procura de sentido significa aprender a lidar com
dificuldades e limitaes. Mais ousado, mas mais importante, aprender a ser
pessoa de esperana. Ela projecta-nos para alm das limitaes, d fora para
venc-las. Abre-nos, em vez de fechar-nos.
Torna-se libertadora. No erradica os perigos que nos espreitam,
nem nos blinda contra as insdias do mal. Mas exorciza o medo, a
desesperana, as depresses que nos visitam; e permite rezar: mesmo que
passe por vales tenebrosos, no temerei nenhum mal, porque Tu ests
comigo (Sl 23,4). Se o excessivo medo paralisa, a esperana fundada
dinamiza. De um ser de necessidade faz um ser de vontade. O cristianismo
realiza um aspecto da sua vocao contagiando de esperana a sociedade,
prisioneira do medo de foras annimas e de ameaas obscuras reais.
A esperana crist, colocada no transcendente, no alheia
esperana fundamental humana, colocada no imanente. Nem um acrescento
a ela. Insere-se nas suas entranhas, anima-a, potencia-a e abre-a para a sua
plenitude. Como o amor, tambm ela ter de ser incarnada, a partir do humano,
embora tenha de terminar no divino: quem no esperar no ser humano a quem
v no pode esperar em Deus a quem no v. As esperanas humanas so o
lugar em que se realiza a esperana que nos transcende. E a esperana em
Deus no se justape s esperanas humanas. Assume-as, d-lhes maior
urgncia. Concretiza-se atravs delas, na histria humana, que na Bblia se
torna caminho de esperana. Por muita confiana que d, no passaporte para o
descomprometimento na vida. A pessoa de esperana sabe, a partir da f
bblica, que a sua vontade j est envolta num amor mais poderoso do que o
seu prprio pecado, um amor que garantia de que a sua esperana lhe d o
novo. O prprio Jesus lhe deu suporte ao apelar confiana em Deus como
Abbe ao afirmar que Deus Pai bom para com os ingratos e os malvados
(Lc 6,35). E embora a nossa conscincia nos condene, Deus, que sabe tudo,est por cima da nossa conscincia. Queridos, se a nossa conscincia nos
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condena, temos confiana total em Deus; e o que lhe pedirmos, obt-lo-emos
dEle, porque guardamos os seus mandamentos e fazemos o que lhe agrada
(1Jo 3,20-22).
Se no podemos ser demasiado exuberantes e fceis na
proclamao da esperana crist por declaraes excessivamente militantes e
idealistas, estamos sempre prontos a dar a razo davossa esperanaa todo
aquele que vos pea uma explicao (1Pe 3,15). Damo-la no testemunho de
pertencer a Jesus Cristo e de acreditar no Amor que viveu para os outros;
damo-la, fundamentados na prpria histria bblica, habitada como est pelo
Amor salvador, superiormente expresso na pessoa de Jesus 25. A viso bblica
de Deus como Amor abre a conscincia humana esperana realista de
comunho com o que imperecvel, onde no haver morte, nem penas, nem
pranto, nem dor 26. Esse relacionamento da imanncia relativa com a
transcendncia absoluta, com valores inabalveis e ltimos, estabelece os
fundamentos da esperana bblica porque s o divino proporciona certeza e
no est sujeito s carncias do transitrio 27.
S quem se abriga no arco e na lgica da f bblica est
preparado para compreender a esperana crist. No certeza matemtica
mas afectiva. No d solues mgicas. Nem se encomenda sorte. Abre
caminhos inspiradores. Empenha toda uma vida. Sendo dom, tambm
responsabilidade 28. Os cristos mantm essa segurana/confiana e essa
honra que a esperana, firme at ao fim (Heb 3,6). Neste tempo em que a
crise parece estender a sua sombra a todos os domnios da existncia
humana, tm a responsabilidade da esperana. Esta a sua grande tarefa.
Alm de lugar de culto e instncia moral, a Igreja comunidade de
esperana. Que seria a Igreja de Jesus se no comunicasse a boa novade umDeus amigo da vida e no contagiasse as pessoas com a esperana que brota
do Ressuscitado?
25Cf. C.M. MARTINI, La audacia de la esperanza(Verbo divino; Estella 2005) 271-288.
26Ap 21,4. Cf. A. TORRES QUEIRUGA, Esperanza a pesar del mal(Presencia teolgica 140; Sal Terrae;Santander 2005) 61-96.
27Cf. V. FRANKL, La presencia ignorada de Dios(Herder; Barcelona 2011) 55-64.
28
Cf. F. MARTNEZ DEZ, Crer em Jesus Cristo, viver como cristo. Cristologia e seguimento (Grfica deCoimbra 2; Assafarge 2007) 759-832; J. MOLTMANN, El experimento esperanza (Verdad e imagen 44; Sgueme;Salamanca 1977); J. MOLTMANN, Teologa de la esperanza(Verdad e imagen 48; Sgueme; Salamanca 1981).
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