caÇarolas À mesaisabelraia.files.wordpress.com/2017/12/pdm168_pag76_79.pdf · se sentam à mesa,...

4
POR ISABEL RAIA FOTOS RJ CASTILHO PERFIL/ 76 isposta em caçarolas, a comida sai do forno direto para a mesa onde estão seus amigos e parentes mais queridos. A tampa é removida e logo o aroma toma conta do ambiente e aumenta o desejo pela refeição que ali se inicia. Colheres a postos, é hora de cada um se servir da receita, feita de modo descomplicado, com ingredientes frescos e com foco no sabor. Assim seria o mundo ideal da gastronomia para Gilles Tournadre, chef francês detentor de duas estrelas no Guia Michelin. “O importante na cozinha é a simplicidade. Eu me pergunto muito se os chefs que fazem uma cozinha extremamente elaborada e difícil, quando se sentam à mesa, em casa, comem isso ou fazem algo mais simples. Não tenho uma cozinha comercial e uma de casa, o que eu sirvo no restaurante é a mesma coisa que faço para os amigos comerem quando vão me visitar”, diz o cozinheiro, que hoje soma quatro casas na região de Rouen, na Nor- mandia: o premiado Gill, o Gill Côté Bistro, La Place e Le 37. D No mundo perfeito do chef francês Gilles Tournadre, a gastronomia é feita de refeições compartilhadas e respeito às estações do ano e a seus ingredientes CAÇAROLAS À MESA NAMORADO NA CIDRA DE MAÇÃ

Upload: others

Post on 02-Aug-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: CAÇAROLAS À MESAisabelraia.files.wordpress.com/2017/12/pdm168_pag76_79.pdf · se sentam à mesa, em casa, comem isso ou fazem algo mais simples. Não tenho uma cozinha comercial

POR ISABEL RAIAFOTOS RJ CASTILHO

PERFIL/

76

isposta em caçarolas, a comida sai do forno direto para a mesa onde estão seus amigos e parentes mais queridos. A tampa é removida e logo o aroma toma conta do ambiente

e aumenta o desejo pela refeição que ali se inicia. Colheres a postos, é hora de cada um se servir da receita, feita de modo descomplicado, com ingredientes frescos e com foco no sabor. Assim seria o mundo ideal da gastronomia para Gilles Tournadre, chef francês detentor de duas estrelas no Guia Michelin.

“O importante na cozinha é a simplicidade. Eu me pergunto muito se os chefs que fazem uma cozinha extremamente elaborada e difícil, quando se sentam à mesa, em casa, comem isso ou fazem algo mais simples. Não tenho uma cozinha comercial e uma de casa, o que eu sirvo no restaurante é a mesma coisa que faço para os amigos comerem quando vão me visitar”, diz o cozinheiro, que hoje soma quatro casas na região de Rouen, na Nor-mandia: o premiado Gill, o Gill Côté Bistro, La Place e Le 37.

DNo mundo perfeito do chef francês Gilles Tournadre, a gastronomia é feita de refeições compartilhadas e respeito às estações do ano e a seus ingredientes

CAÇAROLAS À MESA

NAMORADO NA CIDRA DE MAÇÃ

Page 2: CAÇAROLAS À MESAisabelraia.files.wordpress.com/2017/12/pdm168_pag76_79.pdf · se sentam à mesa, em casa, comem isso ou fazem algo mais simples. Não tenho uma cozinha comercial

77

Filho e neto de confeiteiros, Gilles foi levado para a cozinha pela curiosidade e desejo em provar sabores e suas combinações. A partir daí, seguiu a ordem natural da carreira, estagiou em grandes casas para construir toda a base como cozinheiro e, então, poder ser chef. “Foi no Taillevent que aprendi a ser dono de restaurante, a gerenciar com precisão e cuidado, e a ser sempre extremamente profissional”, afirma. Para ele, tão importante quanto cozinhar bem é saber cuidar dos números e da equipe. Daí vêm o sucesso e os prêmios.

De suas panelas saem receitas delicadas, que depois são montadas feito uma pintura, tendo as cores e os espaços de cada ingrediente muito bem pensados em uma louça, de preferência clara. “Acho que as cores do alimento ficam mais bonitas e vivas no fundo branco”, diz, enquanto procura fotos no celular para mostrar que isso não é regra e que ele também cria em louças de outras cores, incluindo as escu-ras. “Mas gosto quando os pratos são clean, sem tanta extravagância.”

Quanto à construção do gosto, essa depende da sensibilidade do cozinheiro. Por meio do paladar dele serão definidos os temperos, a quantidade de sal e as combinações. “Às vezes, as pessoas vão a um restaurante e dizem que não estava bom, mas isso não quer dizer que algo era ruim, e sim que cada um tem um modo de cozinhar. O que você acha em um restaurante não vai encontrar em outro, e é isso que faz a diferença. É como a cor, o que seria do amarelo se todos gostassem do vermelho?”.

DELICADEZA DE SABORES E TEMPEROS USADOS APENAS PARA RESSALTAR A NATURALIDADE DOS INGREDIENTES SÃO CARACTERÍSTICAS DA COZINHA DE GILLES, QUE MESCLA ORIENTE COM OCIDENTE

VIEIRAS COM PICLES DE RABANETE, HÚMUS DE BETERRABA E SALADA DE PUPUNHA

PATO LAQUEADO COM CAVIAR DE BERINJELA E REDUÇÃO DE TANDORI

Page 3: CAÇAROLAS À MESAisabelraia.files.wordpress.com/2017/12/pdm168_pag76_79.pdf · se sentam à mesa, em casa, comem isso ou fazem algo mais simples. Não tenho uma cozinha comercial

78

PERFIL/

No caso da cozinha de Gilles, os sabores ficam por conta da deli-cadeza oriental, fruto da paixão pelo Japão e dos diversos aprendiza-dos em suas viagens por lá, mesclada com as técnicas francesas. Seu objetivo diário é apresentar o ingrediente na melhor forma possível. “Uma cozinha boa e saborosa em que o alimento seja mais importante do que o chef”, diz. Ele conta que o respeito pelos produtos e pela sazonalidade é um tema cada vez mais levado a sério na França. Assim como em outras partes do mundo – incluindo o Brasil –, os comensais estão de olho na origem do que vai para sua mesa.

Filosofia que não é novidade para Gilles, que, como ele mesmo diz, teve a sorte de crescer em uma fazenda e olhar com naturalidade para as estações e para o que floresce no quintal. Em tempos nos quais é possível levar um insumo para outro lugar do mundo em, no máximo, dois dias, perdeu-se o hábito (e a vontade) de esperar até a próxima colheita. Outra observação do chef em relação à alimen-tação atual é o consumo quase diário de carnes. “Há cada vez mais gente no mundo, e isso aumenta a necessidade da produção, que precisa ser feita rapidamente. Quando eu morava na fazenda, antes

VACHERIN MERENGUE, CREME DE LIMÃO-SICILIANO E FRUTAS

EMINCÉ DE WAGYU MARINADO COM CONSOMÉ DE ESPECIARIAS ASIÁTICAS E CAPIM-SANTO

Page 4: CAÇAROLAS À MESAisabelraia.files.wordpress.com/2017/12/pdm168_pag76_79.pdf · se sentam à mesa, em casa, comem isso ou fazem algo mais simples. Não tenho uma cozinha comercial

79

Gilles Tournadre veio ao Brasil para participar do projeto A Mesa do Chef, promovido pela Thakay e que tem como foco trazer chefs premiados de todo o mundo para realizar uma série de jantares em São Paulo. Uma outra edição está prevista para outubro, ainda sem nome confirmado.

de abater uma rês, era preciso nascer outras duas, mas esse tempo já não existe mais e o resultado são produtos menos naturais”, diz.

Do respeito ao alimento, Gilles parte para o respeito aos colegas de profissão. O cozinheiro conta que, quando encontra em outro restaurante um sabor ou detalhe que poderia ficar bom em um prato dele, usa-os como inspiração. “O fato de ser ho-nesto e contar de onde veio aquela ideia, se era de um ou de outro chef, faz com que se crie uma interessante rede de conhecimento.” O apreço pelo ofício e por aqueles que o rodeiam é traduzido nas duas estrelas Michelin que Gilles cultiva há 27 anos, em meio a outras nomeações.

CONSIDERADO UM DOS MELHORES (SE NÃO O MELHOR) MIL-FOLHAS DA FRANÇA, A SOBREMESA FEITA POR GILLES É MONTADA NA HORA, O QUE PERMITE À MASSA MANTER SUA CROCÂNCIA. NÃO É À TOA QUE, QUANDO O PRATO CHEGA À MESA, TODOS SE CALAM APENAS PARA OUVIR A MASSA FOLHADA SENDO QUEBRADA