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6 | CADERNO DEZ! | SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 22/7/2008 7 | CADERNO DEZ! | SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 22/7/2008 envelhecem CAPA Famílias contam um pouco da história de jovens assassinados Notícias que não Adelmo Bispo Lima 17 anos, estudante Morto a tiros no dia 11 de junho de 2006. Os acusados são policiais militares “Era meu irmão e meu confidente. Com ele, era muito difícil eu ficar triste” Joyce Bispo Silva, 17 anos, irmã São muitos os papéis sobre a mesa. Difícil saber por qual começar. Elindinalva dos Santos, a dona da casa, primeiro mostra atestados de freqüência, diplomas, certificados de cursos. Informática, negócios. "Meu filho queria ser empreendedor", diz. Adelmo Bispo Lima tinha 17 anos quando foi assassinado por quatro policiais militares em serviço. A família não sabe quantos tiros levou. Pouco importa. Depois do primeiro, que o atingiu na nuca, já caiu desfalecido. Um amigo ainda tentou socorrê-lo, mas teve de se esconder, para não acabar morto também. Na mesa, mais lembranças em papel. Aos 11, em uma foto, Adelmo é o garoto de óculos sentado à esquerda, em um banco de igreja. Católico praticante, tinha boa reputação no bairro onde morava e foi morto, Santa Cruz. O bairro tem fama de violento, e a rivalidade de gangues dos vizinhos Nordeste de Amaralina, Vale das Pedrinhas e Serra Verde assusta. Mesmo assim, garante Isac Sales Silva, padrasto de Adelmo, "ele andava por todos os lugares e ninguém mexia. Era respeitado". A relação com o afilhado vem à tona através de uma outra foto, esta mais recente. Adelmo, sentado, sorri, usando fones de ouvido. Isac, que é músico e compositor, tinha em Adelmo a esperança de um aluno. “Comecei a mostrar a ele como editar músicas e mixar músicas”. Adelmo deixou dois irmãos: Leonardo, 22, e Joyce, 17 anos, estudante. Ela é a garotinha que aparece em uma foto em uma praia fora de Salvador, ao lado de Adelmo, à época com 12 anos. Elindinalva lembra os desejos do filho. "Ele gostava muito de viajar. Queria ser motorista". Fábio Nascimento 15 anos, estudante Morto a tiros, em 16 de setembro de 2005. O acusado é policial militar “Eu chamava ele de Narizão. A gente brincava de cabana, no quintal de casa” Adson Souza, 7 anos, sobrinho O céu estava nublado naquela manhã de sábado. E por ser sábado mesmo, Fábio dormiu até tarde. Levantou lá pelas onze, onze e meia. O dia anterior não teve alterações na rotina: estudava à tarde, e em algumas manhãs ajudava o pai, que é marceneiro, fazendo entregas. Antes do almoço, sempre pontual, buscava Kelly, sua namorada, na porta da escola. Fábio corria: entre a saída dela e a entrada dele no colégio, o tempo era curto. Mesmo assim insistia no compromisso por ele mesmo imposto. "Teimoso" e "ciumento", aliás, são as duas primeiras características lembradas por Kelly. Ciúme Fábio também tinha da mãe, Neusa Santos. "Ele não queria que eu arranjasse namorado", diz ela, com um sorriso triste. Lembranças de Fábio estão por toda a casa. Uma palmeira solitária no jardim foi plantada por ele. Também o móvel de madeira na sala, que sustenta a televisão, foi ele quem construiu. "Ele queria ser marceneiro, como o pai". Aos 15 anos, Fábio já tinha planos a longo prazo. Mais de uma vez disse para a mãe: "Vou ganhar dinheiro fazendo móveis, e casar com Kelly". Naquele sábado nublado, 16 de setembro de 2006, Fábio voltava da praia com um amigo. O sol ia baixo, era fim de tarde. Na hora de descer do ônibus, o amigo percebe ter esquecido a camisa. Os dois voltam. Um policial militar, à paisana, levanta e atira nos dois. Depois foge pela porta de trás. Na delegacia, alegaria: "achei que iam assaltar o ônibus". Na casa modesta em Alto de Coutos, também o muro que fronteia o terreno, sem pintura e sem portão, foi Fábio quem ergueu. Ficou incompleto. Neusa nunca quis terminar. Gledson Santos 17 anos, estudante Morto a tiros por um policial, em 1º de dezembro de 2002 “Saía pouco de casa. Gostava mesmo era de ler, escrever e desenhar e pintar” Sylvio Baptista, representante do grupo Peça Vida/Cedeca, tio "Guel" é uma palavra que muito se ouvia naquela casa da rua Ruy Barbosa, centro de Salvador. Não demoravam a aparecer garotos na porta, sempre dizendo: "Guel!, Guel!". Para completar um time ou apenas jogar conversa fora, os poucos amigos de Gledson Baptista de Almeida Santos sempre vinham procurá-lo. Ele nem sempre correspondia. Alheio a esse encanto pela rua, passava dias indo da escola para a casa, de casa para a escola, e não muito mais. Estudante do colégio ICEIA, no Barbalho, tinha acabado de conseguir um estágio, Trabalharia no setor de microfilmagem de uma firma. Gledson sorria pouco, mas estava animado com a notícia. "Ele morava com a avó, era muito apegado a ela", diz Sylvio Baptista, um tio. Caseiro, calado, Gledson conversava muito com a família, mas pouco se abria com recém-conhecidos. Tinha hábitos silenciosos, solitários. Preferia o desenho, a leitura e a escrita; também gostava de andar de bicicleta por ruas próximas à sua, e fazia aulas de natação. Faz seis anos que Gledson foi Como quase tudo no Brasil, também a paz é para poucos. Fora desse grupo está boa parte da população jovem, negra, moradora da pe- riferia das grandes cidades. A cada ano mais jovens com esse perfil são mortos. Dada a razão com que acontecem, esses homicídios deveriam estar no centro do debate político no Brasil. Suas causas, formas de combate possíveis, os erros cometidos e as iniciativas eficientes, tudo isso deveria ocupar um lugar mais central do que ocupa hoje. A so- ciedade ainda resiste em encarar o tema. Debates existem, avanços são reconhecidos. Dezoito anos depois, o Estatuto da Criança e do Adolescente continua a ser agressivamente desrespeitado. As histó- rias desses jovens teimam em não aparecer com a freqüência neces- sária na agenda do País. Algumas delas o Dez! conta a seguir assassinado. Segundo seu tio, foi agredido por dois homens, na frente de casa, e levou quatro tiros à queima-roupa de um terceiro, já desmaiado pelos socos que levara. O pai, Nelson, assistiu a tudo, ficou estático. Sylvio ainda perseguiu os assassinos e os alcançou; mas acabou sendo ele próprio preso, enquanto o autor dos disparos, amigo do delegado de plantão, saía despreocupado. Para Silcélia Batista, ainda é difícil falar de Gledson. Sua opção parece ter sido assumir para si o silêncio tão característico do seu filho. pessoas entre 12 e 24 anos foram mortas em Salvador de janeiro a junho de 2008 Em 2007, o total de mortos foi de FOTOS ARQUIVO PESSOAL DIEGO DAMASCENO [email protected] NÚMEROS DESTA MATÉRIA: CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E ESTATÍSTICA POLICIAL/ POLÍCIA CIVIL; PESQUISAS MAPA DA VIOLÊNCIA IV E V; UNESCO BRUNO AZIZ

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6 | CADERNO DEZ! | SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 22/7/2008 7| CADERNO DEZ! |SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 22/7/2008

envelhecem

C A PA ❚ Famílias contam um pouco da história de jovens assassinados

Notícias que não

Adelmo Bispo Lima17 anos, estudanteMorto a tiros no dia 11 dejunho de 2006. Os acusadossão policiais militares

“Era meu irmão emeu confidente. Comele, era muito difícileu ficar triste”Joyce Bispo Silva, 17 anos, irmã

São muitos os papéis sobre a mesa.Difícil saber por qual começar.Elindinalva dos Santos, a dona dacasa, primeiro mostra atestados defreqüência, diplomas, certificados decursos. Informática, negócios. "Meufilho queria ser empreendedor", diz.

Adelmo Bispo Lima tinha 17 anosquando foi assassinado por quatropoliciais militares em serviço. Afamília não sabe quantos tiros levou.Pouco importa. Depois do primeiro,que o atingiu na nuca, já caiudesfalecido. Um amigo ainda tentousocorrê-lo, mas teve de se esconder,para não acabar morto também.

Na mesa, mais lembranças empapel. Aos 11, em uma foto, Adelmoé o garoto de óculos sentado àesquerda, em um banco de igreja.Católico praticante, tinha boareputação no bairro onde morava efoi morto, Santa Cruz. O bairro temfama de violento, e a rivalidade degangues dos vizinhos Nordeste deAmaralina, Vale das Pedrinhas eSerra Verde assusta. Mesmo assim,garante Isac Sales Silva, padrasto deAdelmo, "ele andava por todos oslugares e ninguém mexia. Erarespeitado".

A relação com o afilhado vem à

tona através de uma outra foto, estamais recente. Adelmo, sentado, sorri,usando fones de ouvido. Isac, que émúsico e compositor, tinha emAdelmo a esperança de um aluno.“Comecei a mostrar a ele comoeditar músicas e mixar músicas”.

Adelmo deixou dois irmãos:Leonardo, 22, e Joyce, 17 anos,estudante. Ela é a garotinha queaparece em uma foto em uma praiafora de Salvador, ao lado de Adelmo,à época com 12 anos. Elindinalvalembra os desejos do filho. "Elegostava muito de viajar. Queria sermotorista".

Fábio Nascimento15 anos, estudanteMorto a tiros, em 16 desetembro de 2005. O acusadoé policial militar

“Eu chamava ele deNarizão. A gentebrincava de cabana,no quintal de casa”Adson Souza, 7 anos, sobrinho

O céu estava nublado naquelamanhã de sábado. E por ser sábadomesmo, Fábio dormiu até tarde.Levantou lá pelas onze, onze e meia.O dia anterior não teve alterações narotina: estudava à tarde, e emalgumas manhãs ajudava o pai, queé marceneiro, fazendo entregas.Antes do almoço, sempre pontual,buscava Kelly, sua namorada, naporta da escola. Fábio corria: entre asaída dela e a entrada dele nocolégio, o tempo era curto. Mesmoassim insistia no compromisso por elemesmo imposto. "Teimoso" e"ciumento", aliás, são as duas

primeiras características lembradaspor Kelly. Ciúme Fábio também tinhada mãe, Neusa Santos. "Ele nãoqueria que eu arranjasse namorado",diz ela, com um sorriso triste.

Lembranças de Fábio estão portoda a casa. Uma palmeira solitáriano jardim foi plantada por ele.Também o móvel de madeira na sala,que sustenta a televisão, foi elequem construiu. "Ele queria sermarceneiro, como o pai". Aos 15anos, Fábio já tinha planos a longoprazo. Mais de uma vez disse para amãe: "Vou ganhar dinheiro fazendomóveis, e casar com Kelly".

Naquele sábado nublado, 16 desetembro de 2006, Fábio voltava dapraia com um amigo. O sol ia baixo,era fim de tarde. Na hora de descerdo ônibus, o amigo percebe teresquecido a camisa. Os dois voltam.Um policial militar, à paisana, levantae atira nos dois. Depois foge pelaporta de trás. Na delegacia, alegaria:"achei que iam assaltar o ônibus".

Na casa modesta em Alto deCoutos, também o muro quefronteia o terreno, sem pintura esem portão, foi Fábio quem ergueu.Ficou incompleto. Neusa nunca quist e r m i n a r.

Gledson Santos17 anos, estudanteMorto a tiros por um policial,em 1º de dezembro de 2002

“Saía pouco de casa.Gostava mesmo erade ler, escrever edesenhar e pintar”Sylvio Baptista, representante dogrupo Peça Vida/Cedeca, tio

"Guel" é uma palavra que muito seouvia naquela casa da rua RuyBarbosa, centro de Salvador. Nãodemoravam a aparecer garotos naporta, sempre dizendo: "Guel!,Guel!". Para completar um time ouapenas jogar conversa fora, ospoucos amigos de Gledson Baptistade Almeida Santos sempre vinhamprocurá-lo. Ele nem semprecorrespondia. Alheio a esse encantopela rua, passava dias indo da escolapara a casa, de casa para a escola, enão muito mais. Estudante docolégio ICEIA, no Barbalho, tinhaacabado de conseguir um estágio,

Trabalharia no setor demicrofilmagem de uma firma.Gledson sorria pouco, mas estavaanimado com a notícia.

"Ele morava com a avó, era muitoapegado a ela", diz Sylvio Baptista,um tio. Caseiro, calado, Gledsonconversava muito com a família, maspouco se abria comrecém-conhecidos. Tinha hábitossilenciosos, solitários. Preferia odesenho, a leitura e a escrita;também gostava de andar debicicleta por ruas próximas à sua, efazia aulas de natação.

Faz seis anos que Gledson foi

Como quase tudo no Brasil, também a paz é para poucos. Fora dessegrupo está boa parte da população jovem, negra, moradora da pe-riferia das grandes cidades. A cada ano mais jovens com esse perfil sãomortos. Dada a razão com que acontecem, esses homicídios deveriamestar no centro do debate político no Brasil. Suas causas, formas decombate possíveis, os erros cometidos e as iniciativas eficientes, tudoisso deveria ocupar um lugar mais central do que ocupa hoje. A so-ciedade ainda resiste em encarar o tema. Debates existem, avançossão reconhecidos. Dezoito anos depois, o Estatuto da Criança e doAdolescente continua a ser agressivamente desrespeitado. As histó-rias desses jovens teimam em não aparecer com a freqüência neces-sária na agenda do País. Algumas delas o Dez! conta a seguir

assassinado. Segundo seu tio, foiagredido por dois homens, na frentede casa, e levou quatro tiros àqueima-roupa de um terceiro, jádesmaiado pelos socos que levara. Opai, Nelson, assistiu a tudo, ficouestático. Sylvio ainda perseguiu osassassinos e os alcançou; mas acabousendo ele próprio preso, enquanto oautor dos disparos, amigo dodelegado de plantão, saíadespreocupado.

Para Silcélia Batista, ainda é difícilfalar de Gledson. Sua opção pareceter sido assumir para si o silêncio tãocaracterístico do seu filho.

pessoas entre 12 e 24anos foram mortas emSalvador de janeiro ajunho de 2008

Em 2007, o totalde mortos foi de

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NA REAL ❚ No Brasil, algumasvidas valem mais do que outrasA lógica

comoções e grandestransformações políticas”.

Tânia Cordeiro, coordenadorado Fórum Comunitário deCombate à Violência, acredita queas diferenças entre ricos e pobresvão da vida até a morte. “Domesmo modo que há ‘vidas quevalem mais que outras’, há mortesviolentas que causam mais pesar,como se houvesse uma balançaque atribuísse um pesodiferenciado às vítimas”.

A idéia de uma sociedadedividida é defendida peloprofessor Eduardo Machado,especialista em criminologia eviolência do Instituto de SaúdeColetiva da Ufba. Para ele, faltauma melhor compreensão dosdireitos humanos. “Há umaretórica contra direitos humanos,mas, se observarmos bem, existemdireitos individuais para uma certaparcela da sociedade. A sociedadeacha que direitos humanos sereferem a um grupo. E ao ladodessa retórica, há uma prática derestringir esses direitos a um grupoespecífico da população”.

REVANCHE – Quando o crime seaproxima dos mais ricos, as reaçõesse transformam. A costumeiraindiferença dá lugar à indignaçãoe à comoção. Imagens de parentesde vítimas pipocam em telejornaise primeiras páginas. Também nãodemoram a aparecer os pedidos de

”justiça a qualquer preço“.Para Luis Eduardo Soares, a

idéia de que a morte de umcriminoso se justifica não éexclusiva da sociedade brasileira, esurge pela falta de umaexperiência democrática que leve àcompreensão do espaço público.”No mundo privado é natural quehaja o sentimento de revanche. Oproblema é projetar essesentimento na arena pública“.

O problema parece semultiplicar, porque mesmo aquelesque não são atingidos diretamentepela violência acabam agindo sobsua influência. Na visão deEduardo Machado, ”O sentimentode insegurança é reflexo daviolência, mas tem umaindependência em relação a ela.Uma vez desencadeado, adquiredinâmica própria“, afirma.

POLÍCIA – Também daí aparecemas críticas à atuação da PolíciaMilitar. Alguns estudiosos falam daestrutura precária, enquantooutros, como Eduardo Machado,vêem um o problema na filosofiada corporação. Para o antropólogoe major da PM Ramalho Neto,comandante da 40ª CompanhiaIndependente, a atuação da políciaé resultado direto da sociedadeque a acolhe. ”O Estado quercombater a violência usandoapenas a polícia. É um erro“.

O major também refuta a idéiade que a PM seja justiceira. ”Nãohá política de extermínio na PM.Queremos prender o bandido vivo,para obter informações“. Epropõe: ”Se a polícia é tão ruimcomo dizem, talvez seja hora derepensar o seu modelo“.

do ‘um a menos’DIEGO DAMASCENOd d a m a s c e n o @ g r u p o a t a rd e . c o m . b r

Publicada este ano, a pesquisaMapa da Violência V, do sociólogoJúlio Jacobo Waiselfisz, confirma:1) continua a crescer o número deassassinatos no País; 2) é cada vezmaior o número de jovensvitimados. Uma amostra dosresultados obtidos por Waiselfiszdá a dimensão do problema: entre1996 e 2006, o número deassassinatos na população entre 15e 24 anos aumentou 31,3%. Napopulação total, esse crescimentofoi de 20% no mesmo período.

Especialistas ouvidos pelo Dez!foram unânimes na definição doperfil comum dessas vítimas: sexomasculino, negro ou pardo,morador de favelas ou bairrosperiféricos, baixa escolaridade.Outro ponto comum: os políticosnão resolverão o problema se nãohouver um envolvimento real dapopulação. Mas o desinteresse pelamaioria dessas mortes continuasendo o comportamento comumde boa parte da sociedade.

A professora Nancy Cardia,

pesquisadora do Núcleo deEstudos da Violência daUniversidade de São Paulo, atribuiessa apatia à distância entreclasses. “As pessoas não seidentificam porque vêem números,não acompanham os casos. Aidentificação só acontece quandose percebe que há algo em comum

com a vítima”, defende.A explicação também faz

sentido para Luiz Eduardo Soares,secretário de Valorização da Vida ePrevenção da Violência de NovaIguaçu [RJ] e ex-secretário Nacionalde Segurança Pública [2003]. “Se asgrandes injustiças atingissem aclasse média, haveria grandes

O número depessoas mortas por

arma de fogo noBrasil entre 1979 e

2003 é de

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Mídia melhora cobertura,mas ainda traz distorçõesNo enfrentamento do problemada violência, a mídia ocupa umlugar central, mas incerto. Éconsenso a sua importância naconstrução do imaginário social esua influência no forjamento dasvisões de mundo.

Para a jornalista Suzana Varjão,autora de Micropoderes,Macroviolências, estudo sobre onoticiário da violência, os meios decomunicação de massa são peçasessenciais no combate eficaz àsviolências. Mas o discurso da mídia,“conservador e violento”, e osvícios da apuração ainda precisamser revistos. “Os meios decomunicação de massa estãocentrados sobretudo no atoviolento, e falam baseados quaseque unicamente em fontesinstitucionais de informação,vinculadas ao aparato repressivode Estado. Isso causa distorções napercepção pública do fenômeno”.

DOMINAÇÃO – Ainda quereproduza um pensamento declasse, o discurso da mídia tempenetração em toda a sociedade.O professor do Instituto de SaúdeColetiva da Ufba Eduardo PaesMachado, observa que há umainternalização da dominaçãomesmo por parte dos dominados.Tanto social, como política, jurídicae simbólica. “Não existiriasociedade se não houvesse essaalquimia que permite o dominadointeriorizar a dominação”, teoriza.

Machado defende não existiruma posição definitiva sobre opapel da mídia. Mas tambémreconhece alguns pontos deinfluência no comportamento dasociedade. “As pessoas almoçamhoje vendo noticiários sobre ocrime. Não tenho avaliaçãocientífica, mas acho que fazemcom que as pessoas naturalizem assituações sem refletir sobre elas”.

Silvia Ramos, co-autora dapesquisa Mídia e Violência: novastendências na cobertura daviolência no País, vê uma melhorana cobertura. “A mídia tem umpapel crucial de ajudar o País adesentortar a própria cabeça. Hámuitos veículos de imprensapreocupados com isso. Existe umanova geração de jornalistas quenão aceita mais essas distorções”.

E N T R E V I S TA ❚ Clarissa Huguet, coordenadora do projeto COAV- Cidades [Children in Organized Armed Violence], ONG Viva Rio

“Políticas de segurança atuaisampliam número de mortes”

A experiência de Clarissa Huguet no estudo da violência tem as cores e opeso de quatro realidades. Como coordenadora do projeto COAV –Cidades, que trabalha com crianças e jovens envolvidos em situações deviolência armada, participou de estudos em Medellín [Colômbia], Cidadedo Cabo [África do Sul] e Zacatecoluca [El Salvador], além de Niterói [RJ].Das pesquisas, resultaram propostas de combate à violência nessascidades. Clarissa, que também faz parte do Conselho Nacional daJuventude, falou por e-mail ao Caderno Dez!

AT – Por que o número de jovensassassinados no Brasil continuatão alto?Clarissa Huguet – É importanteressaltar que com menos de 3% dapopulação mundial, o Brasil éresponsável por 11% de mortes porarma de fogo no mundo. O jovembrasileiro, principalmente oafrodescendente, pobre e moradorde periferia figura em ambos oslados dessa moeda, como vítima ecomo perpetrador da violência.Mas especialmente como vítima. Écomprovado que as políticas desegurança pública que priorizam apolítica de combate propriamentedita irão aumentar os níveis deviolência atingindo o públicojovem já descrito e engordando asestatísticas de homicídio juvenil.Não tem como ser diferente...

AT – Por que o Estatuto da Criançae do Adolescente ainda é vistocomo ferramenta de impunidade?CH – Principalmente por doismotivos: desconhecimento dapopulação em geral sobre oEstatuto, e pelo fato do tempomáximo de internação a que umadolescente possa ser condenadoser de três anos. Mas cabe aquiesclarecer: o adolescente no Brasiljá é punido quando em conflitocom a lei, a partir dos 12 anos. É

uma grande falácia afirmar quetais adolescentes não são punidos.

AT – Como a imprensa pode ajudara diminuir essas mortes?CH – A imprensa já ajudaria muitose deixasse de reproduzir trêsmitos: a superdimensão dadelinqüência, a periculosidade dojovem e sua impunidade. Os trêsmitos juntos contribuem para aformulação da idéia de um jovemque deve ser punido antes deassistido e que é mais responsávelpelos índices de violência que ascircunstâncias que o colocaram emconflito com a lei.

AT – Como combater a violênciacontra o jovem?CH – O problema é complexo, nãohá uma fórmula mágica a serseguida. Porém, a meu ver existemalguns pontos-chave que têmgrande influência nesse quadro,como a corrupção em todos osníveis da sociedade brasileira e aimpunidade. A polícia necessita deuma grande reforma, desdesalários mais justos até umalimpeza nos seus quadros, paraque maus policiais deixem acorporação. E a sociedade civilprecisa cobrar atitudes, degovernantes e de si mesma. Adificuldade é que a população estáamedrontada, e tende a agir deforma reativa e simplista. Isso secomprovou com maioria dapopulação em defesa da reduçãoda maioridade penal, medida quenão atinge as causas do problema.O adolescente que vai presodepois volta ao convívio socialcertamente muito mais perigosodo que antes.

❛“O jovem brasileiroé vítima agente daviolência. Mas é,sobretudo, vítima”.

A taxa de homicídios deafrodescendentes no

Brasil é maior do que ade brancos em

i Notícia integrada: Íntegra daentrevista no blog do Dez! |blogdodez.atarde.com.br

No ranking das capitaisem que mais morrem

jovens, Salvador é a

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