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Escritos e Escritas na EJA| N.5 |2016.1 | 65 BUSCA PELA COERÊNCIA DOCENTE: relato de experiência de estágio na Educação de Jovens e Adultos Por Paula Kuhnen Ramos [email protected] RESUMO: O ponto central desta escrita é o relato sobre a experiência de estágio na Educação de Jovens e Adultos em uma escola da rede municipal de Porto Alegre, no qual busco problematizar a dificuldade de alcançar a coerência entre planejamento, princípios e objetivos com as ações que são realizadas em sala de aula. A conhecida distância entre teoria e prática, será que realmente existe? O artigo não responderá esta pergunta, mas, apoiada na obra de Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia, trago reflexões acerca da construção de autonomia, democracia e liberdade das/dos estudantes dentro da sala de aula. Abordo também, o papel fundamental exercido pela professora neste processo, refletindo sobre a responsabilidade que possuímos sobre a construção do conhecimento exercida por e com nossos estudantes. PALAVRAS-CHAVE: Docência. Estágio. Coerência.

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BUSCA PELA COERÊNCIA DOCENTE: relato de experiência de estágio na

Educação de Jovens e Adultos

Por Paula Kuhnen Ramos [email protected]

RESUMO: O ponto central desta escrita é o relato sobre a experiência de estágio na Educação de Jovens e Adultos em uma escola da rede municipal de Porto Alegre, no qual busco problematizar a dificuldade de alcançar a coerência entre planejamento, princípios e objetivos com as ações que são realizadas em sala de aula. A conhecida distância entre teoria e prática, será que realmente existe? O artigo não responderá esta pergunta, mas, apoiada na obra de Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia, trago reflexões acerca da construção de autonomia, democracia e liberdade das/dos estudantes dentro da sala de aula. Abordo também, o papel fundamental exercido pela professora neste processo, refletindo sobre a responsabilidade que possuímos sobre a construção do conhecimento exercida por e com nossos estudantes.

PALAVRAS-CHAVE: Docência. Estágio. Coerência.

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INTRODUÇÃO

A coerência é item indispensável em qualquer campo de trabalho que

possamos ocupar. Necessitamos ser coerentes em nossas tarefas, para com nossas

crenças e bandeiras que levantamos. Mas, principalmente, precisamos de coerência na

sala de aula. Pois “tão importante quanto ele, o ensino dos conteúdos é a minha

coerência na classe. A coerência entre o que digo, o que escrevo e o que faço” (FREIRE,

1996, p. 101). Como afirma Paulo Freire, nos é exigido coerência na fala, nas nossas

ações e até mesmo em nossa escrita, como na deste artigo, por exemplo, que deve ser

coeso e coerente do começo ao fim. Por isso, neste artigo, trarei esta discussão mais

densa e justificada com os motivos que me levaram a dar tal importância para esta

palavra: coerência. Mas, antes de qualquer argumentação a respeito, se faz urgente

explicar o contexto que envolve esta discussão e como surge este texto.

Todas estas palavras foram escritas para descrever, relatar e problematizar

uma vivência de estágio obrigatório do curso de Pedagogia da Faculdade de Educação

da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). O estágio foi realizado em uma

escola da rede municipal, localizada na zona norte de Porto Alegre, bairro Humaitá. A

escola possui particular relação com a comunidade e tudo que a cerca, tendo papel

importante nas decisões e acontecimentos do bairro. São recebidos estudantes todos

os dias para realizarem sua matrícula. Afinal, se existem vagas ao longo de todo o ano,

por que não matricular as/os estudantes por todo este período. Por isso, recebemos e

avançamos estudantes constantemente. Chamamos de avanço o processo no qual o

indivíduo se sente preparado e apto a ir para a próxima totalidade e então efetivamos

sua mudança de turma.

Dentro da minha sala de aula estavam as turmas T1 e T2, consideradas iniciais e

voltadas para a alfabetização. Na EJA chamamos as turmas de ‘totalidades’, por isso o

‘T’. Iniciei o semestre com estudantes moradores da região, nascidos no campo e na

cidade, além de um colega senegalês. Muitos deles com dificuldades de aprendizagens,

atrasos cognitivos e/ou limitações físicas. Aqueles estudantes que já estavam em pleno

desenvolvimento e compreensão da leitura e escrita quando iniciei o estágio, logo

avançaram. Dessa forma, pude então, direcionar as aulas para os que estavam no

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processo mais básico e inicial da alfabetização. Porém, logo entraram outros e outras,

mais estudantes a cada semana. Finalizei o estágio com uma configuração de turma

completamente diferente da primeira.

Ao longo de todo esse processo de aprendizagem desenvolvi diferentes

atividades: trabalhamos com jogos para alfabetização, realizamos ditados e leituras em

jornais, exploração de mapas e a construção de uma maquete, também ouvimos

música e iniciamos o estudo de matemática através de um caderno de educação

financeira. Foram muitas atividades que se deram como planejado ou não, que foram

consideradas úteis ou não. Muitos erros, alguns acertos. Mas, acima de tudo, uma

experiência de muita experimentação e troca de saberes. E são estas trocas que

apresentarei no decorrer do texto, destacando, não só as atividades consideradas de

sucesso, mas também e principalmente, aquelas em que me faltou a coerência

docente.

Sobre a Coerência

Um dos maiores debates travados na área da educação, no qual até mesmo

aqueles que não possuem formação nenhuma na área ou sequer vivência da

experiência docente também opinam, é a dificuldade de se conciliar prática com

teoria. Porém, sempre que tratamos deste tema as questões levantadas estão ligadas

à escola, às regras de conduta docente e discente, às leis não cumpridas e aos

discursos de determinados professores tanto nas universidades, formadoras de

educadores, quanto na sala de aula, com crianças, jovens e adultos. Esta, em minha

opinião, é uma das causas mais prováveis de continuarmos mantendo ambas tão

afastadas uma da outra. Não porque são impossíveis de se encontrarem e

conversarem como tanto idealizamos, mas porque permanecemos no erro de pensar

que são terceiros que causam este distanciamento. Precisamos ter a sensibilidade de

voltar o olhar para nós mesmos, profissionais da educação, e observarmos o que

acreditamos e o fazemos sobre o que acreditamos. Isso se chama reflexão crítica da

prática docente. Já nos dizia Freire que “a reflexão crítica sobre a prática se torna uma

exigência Teoria/Prática sem a qual a teoria pode ir virando blá-blá-blá e a prática,

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ativismo” (1996, p. 24). Portanto, precisamos refletir sobre o próprio trabalho,

diariamente, constantemente. Refletir sobre os formatos de aula, as escolhas de

conteúdo, sobre a postura perante as/os estudantes. Sobre o nosso comportamento,

nossos princípios pedagógicos e políticos, nossa influência sobre a vida dos educandos

e a forma como desenvolvemos, neles, o processo de construção de autonomia,

democracia e liberdade.

Experiências precedentes

Como posso tratar de coerência docente sem ter, de fato, a prática para

relacionar à teoria? No meu caso, trabalho há anos com a educação infantil e pude, ao

longo do curso de Pedagogia, fazer essa relação. Perceber como a livre exploração de

materiais é importante, o quanto devemos realizar tanto trabalhos direcionados

quanto livres para que as crianças se permitam experimentar, que as atividades com o

corpo são de suma importância para o desenvolvimento da motricidade e que os

brinquedos podem ser inventados, construídos e modificados conforme a imaginação

permitir. Aprendi que não podemos considerar uma só infância, por mais que alguns

professores enxerguem esta ou aquela. Que existem crianças com excesso de

atividades, crianças com falta de afeto e crianças que nem alimento tem garantido.

Que todas precisam de educação, de respeito, de compreensão e de tempo para se

desenvolverem como melhor for possível. Aprendi que existem famílias dispostas a

trabalhar em conjunto, que possuem mente mais aberta às idéias que são

apresentadas e às discussões levantadas, mas também que existem famílias

tradicionais, que defendem a manutenção do status quo. Que alguns tudo têm e

recebem, mas não o carinho. Que outros, ainda pior, nada têm de seu, nem comida,

nem casa, nem atenção, nem família. Tudo isso o trabalho e o estudo com crianças me

ensinaram. Mas agora, me vejo em uma sala cercada de adultos, todos esperando que

eu faça ou diga algo para mostrar que tenho conhecimento e ajudá-los a aprender.

Mas a faculdade me preparou para isto?

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Da docência na EJA

Confesso que escolhi o estágio na EJA justamente para me desafiar a praticar e

aprender aquilo que, infelizmente, a universidade pouco desenvolveu ao longo do

curso. São poucas as disciplinas direcionadas à Educação de Jovens e Adultos,

especificamente, e todas as outras raramente tratam da visão sobre o ensino de jovens

e adultos, que é completamente diferente do tradicional que construímos com as

crianças. Além de se constituírem seres totalmente diferentes, já que são crianças

comparadas a adultos, com tempos de vida e gerações afastadas culturalmente, o

ensino e o formato de educação são muito distantes. Primeiro, para entrar em uma

sala de EJA precisamos saber que lá teremos um quadro totalmente inesperado de

estudantes, que nem o contexto geográfico da região, nem a escola poderão nos

auxiliar a determinar antes de conhecê-los de fato. Como bem define Cláudia Vóvio,

são pessoas com diferentes trajetórias e biografias, encontram-se tanto no campo como na cidade, são adolescentes, jovens, adultos e idosos, inseridos ou não no mercado de trabalho, com ocupações, desempregados ou aposentados, pertencentes a diferentes etnias, entre outras características. (VÓVIO, 2012, p. 2)

Cada um deles possui um saber, uma vivência, uma história particularmente

única e incomparável. Saber lidar com as diferentes dificuldades de aprendizagem, a

baixa auto-estima do grupo, as/os estudantes de inclusão e todas as outras questões

que estão presentes na sala da EJA, não é tarefa simples, nem fácil. Mas agora conheço

a escola, suas regras e rotina, e também conheço (pouco) a turma em que vou

trabalhar. Primeiro passo dado. Então preciso estabelecer um planejamento e uma

linha de aulas para seguir. Esclarecer meus princípios, objetivos que desejo alcançar ao

longo do estágio e como farei tudo isso.

Diferentes Formas de Ser e Estar no Mundo: Localização e Pertencimento

Este, acima, foi o nome com o qual intitulei meu plano de trabalho, que

desenvolvi para cumprir (ou tentar cumprir) ao longo do período de estágio. Neste

plano esclareci o quão importante acredito ser o fato de que as/os estudantes se

reconheçam enquanto indivíduos pertencentes a um determinado espaço: município,

bairro, escola, comunidade. Que, enxergando-se como parte daquele espaço, também

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conseguiriam se considerar seres pensantes, ‘problematizadores’, que ensinam e

aprendem no processo de educar. Porque infelizmente, “de tanto ouvirem de si

mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que não podem saber, que são

enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo isso, terminam por se

convencer de sua ‘incapacidade’” (FREIRE, 1974, p. 69). E é este o maior desafio da

EJA: fazer com que as/os estudantes, acreditando em si, arrisquem, se aventurem na

experiência do conhecimento e se entreguem crentes na possibilidade de Ser Mais

(expressão muito utilizada por Freire).

Em uma atividade, realizada logo no começo do estágio, fiquei encantada com

o texto do aluno F13, que infelizmente se perdeu em seus materiais. Na atividade em

questão debatemos sobre o Impeachment da presidente Dilma e tudo que envolvia

esta possibilidade (o Impeachment estava em votação ainda). Então solicitei aos

estudantes que, imaginando que trabalhassem em um jornal, relatassem essa

possibilidade, apontando os argumentos pró e contra da situação toda (já havíamos

conversado sobre a questão em mais de uma aula). Para minha surpresa F. entregou

uma folha completamente preenchida por seu texto e logo abaixo consegui ler seu

nome completo seguido da frase “Repórter por um dia”. Essa simples atividade, o

envolvimento deste aluno, seu comprometimento e total compreensão da dimensão

do exercício nos fazem refletir sobre quão longe esses estudantes podem chegar e não

o sabem. Como eles podem se deliciar realizando determinada atividade, que a aula

pode ser construtiva e prazerosa ao mesmo tempo. Assim como este exemplo me

mostrou a capacidade deste aluno, que já está na T4 ao fim do meu estágio, também

temos tantos outros que apresentam dificuldades para escrever uma simples letra.

Existe esta outra, aluna R., que têm muitas dificuldades para compreender as

explicações e para desenvolver sua escrita. Ela escreve poucas letras e não reconhece

todas nem pelo formato, nem pelo som. Com ela sinto que falhei. Não por não a fazer

avançar, pois cada estudante possui seu tempo. Mas por não exercitar o que ela já

sabia com maior dedicação, fazendo com que desenvolvesse mais habilidades. Poucas

vezes consegui desenvolver atividades gerais que a envolvesse, ou atividades

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Os nomes foram substituídos pelas letras iniciais para preservar a identidade dos/das estudantes.

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alternativas apenas para que ela pudesse realizar algo. R. exigia mais atenção,

paciência e dedicação de minha parte. Apresentei estes dois casos para exemplificar a

primeira dificuldade que encontrei: estudantes com diferentes e muito distantes níveis

de desenvolvimento e compreensão da leitura e da escrita. Como alcançar estudantes

tão distantes entre si, sem separar a turma para realizar as atividades? Ou, ainda, sem

excluir determinados estudantes? Minha saída foi desenvolver atividades que exigiam

a escrita e a leitura intensa da turma, mas também atividades de maior debate e

reflexão sobre o que trabalhávamos. Porém, pouco realizei, em termos de atividades

específicas para auxiliar o desenvolvimento das dificuldades de R. e de outros

estudantes com problemas semelhantes.

Além destes dois exemplos, ainda quero trazer mais um, o da aluna L. Esta

aluna não permitia muita abertura para conversar, falar sobre seus pensamentos e

desejos. Entrou para a turma depois da metade do semestre e conhecia apenas alguns

dos colegas. O momento em que consegui sentar ao seu lado e dialogar sobre sua vida

foi quando ela demonstrou interesse, durante atividade de leitura livre realizada

semanalmente, em um livro que tratava da vivência da mulher negra. O livro se chama

“História da Preta”, de Heloisa Pires Lima. Ele traz histórias da África, curiosidades

sobre Candomblé e outros elementos da cultura africana, bem como a descoberta da

autora para com o fato de ser uma mulher negra, de se perceber como tal. Então,

conversando com L. descobri que ela não conseguia se identificar, quando me

questionou: “Acho que sou preta né sora?!”. Respondi que sim, que ela era negra.

Conversei com ela, então, sobre como era importante que a mulher negra se

enxergasse e se assumisse como tal, valorizando sua cultura e traços físicos. Ao falar

de beleza, L. só a enxerga em outras mulheres, mulheres negras, mas dentro dos

padrões e estereótipos do ‘embranquecimento’. Cabelos lisos, rosto pequeno, nariz

afinado, olhos grandes e cintura perfeita. Acredito que, mesmo tendo sido uma

conversa rápida, ao menos algumas questões foram levantadas dentro de sua cabeça.

São esses momentos e essas reflexões que auxiliam as/os estudantes não só a ler e

escrever, mas a sentirem-se pertencentes a um lugar ou grupo.

A necessidade de valorizar sua identidade, crenças e cultura é tarefa prioritária

em meu plano inicial de trabalho. Por isso trabalhei questões ligadas ao bairro e a

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história de construção daquela região. Trabalhamos também questões mais amplas,

ligadas ao Estado e à greve de professores, assim como de outros acontecimentos que

se deram em nosso país e afetaram a todos. É preciso relacionar o que estudamos e

debatemos em sala de aula com o que acontece fora dos portões da escola,

principalmente o que acontece com as/os estudantes. Para isso, apoio-me em Paulo

Freire quando ele questiona

Por que não estabelecer uma “intimidade” entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? Por que não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes pelas áreas pobres da cidade? A ética de classe embutida nesse descaso? (FREIRE, 1996, p.32)

Temos o dever de trazer esses debates para dentro da sala de aula, buscar

descobrir o que interessa as/os estudantes, o que os toca, o que faz parte de sua

realidade. Não basta estudar planícies e planaltos sem identificar onde podemos

encontrar estes terrenos. Então como posso trabalhar assuntos que não os alcançam,

que não serviram em nada para a vida desses indivíduos?

Das Dificuldades e Reflexões

Para contextualizar a discussão que trago sobre a coerência docente a partir da

minha experiência de estágio, farei o relato de algumas atividades que, de acordo com

o planejamento, não foram bem-sucedidas. Porém, para minha reflexão e experiência,

foram as melhores atividades que realizei. As que mais me ensinaram enquanto

professora.

A primeira delas ocorreu logo no começo do estágio, na segunda semana de

trabalho. A proposta da atividade era fazermos uma breve conversa sobre o que as/os

estudantes conhecem do bairro Humaitá, sua história e constituição e em seguida,

cada estudante faria uma representação (através de desenho) da região da sua casa.

Para desenvolver esta atividade reservei apenas uma hora, pensando que, talvez,

sobraria tempo. Então, iniciei questionando o que sabiam a respeito da atual formação

do bairro. Se haviam lojas, farmácias, postos de saúde, supermercados, postos de

gasolina, igrejas, outras escolas e demais informações as quais eu não tinha

conhecimento. Neste momento da atividade todos participaram. Cada um se lembrava

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de algo que conhecia ou um lugar por onde tinha passado. Em seguida comecei a

organizar meu material sobre a pesquisa histórica que havia feito da região, com

efeitos de impacto ambiental e alterações no solo, pensando, claro, que poucas

informações os estudantes apresentariam. Primeiro erro: subestimá-los. Foi então

que, ao questioná-los sobre a história do bairro, ouvi uma aula da aluna C., de 58 anos,

que viu o bairro nascer. Segundo erro: pensar que minha pesquisa realizada na

internet seria a mais fiel versão da história do bairro. Claro que as informações que

levei foram úteis, mas foram apenas um complemento do que C. nos contou, nos

relatou como experiência de vida. A propriedade com que ela nos contava tudo que

vira, tudo que vivera, onde e com quem ocorreram tais fatos, superou qualquer

pesquisa que eu pudesse ter realizado. Neste acontecimento surge o primeiro

ensinamento que trago de Freire a este respeito, de que

Não é possível respeito aos educandos, à sua dignidade, a seu ser formando-se, à sua identidade fazendo-se, se não se levam em consideração as condições em que eles vêm existindo, se não se reconhece a importância dos “conhecimentos de experiência feitos” com que chegam à escola. (FREIRE, 1996, p. 62)

Felizmente, considerei sua fala, valorizei este momento e permanecemos mais

tempo do que eu imaginava que precisaríamos tratando deste assunto. Mas, através

da fala da aluna C. é que pude perceber, de fato, o que Freire nos diz quando afirma

termos que considerar a realidade e os conhecimentos das alunas e alunos. Não basta

que eu planeje uma aula de acordo com a realidade e vivência dos meus alunos e

discurse para eles a respeito de algo sobre o que eles sabem muito mais que eu. O

plano é importante, mas incluí-los no plano é fundamental. A falta de coerência surge

novamente quando escrevo que valorizo a troca de saberes e penso que toda a aula

será guiada exclusivamente (ou majoritariamente) pelo meu saber. Preciso pensar a

aula que os faça participar e interagir com o conhecimento para, de fato, realizar a

troca. Somente assim serei coerente com meus princípios.

Em outra atividade que realizamos, trabalhamos, por alguns dias, a questão da

identidade. Estudamos a significação desta palavra e quantos sentidos ela pode

carregar. Partimos do que era conhecido pela turma: a identidade enquanto

documento. Trabalhamos e observamos todos os documentos presentes em sala,

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listamos quantos servem para nos identificar, desde RG, CPF, até título de eleitor e

carteira de motorista. Então listamos, no quadro, os nomes completos e as datas de

nascimento de todos os colegas, identificando um por um. Quando levantei o

questionamento sobre outras formas de nos identificarmos foi um pouco mais difícil

ouvir suas vozes. Com algum auxílio, então, surgiram definições que perpassam suas

vidas: mãe, filha, pai, filho, estudante, trabalhador, negro, branca, heterossexual,

evangélica, vó, cozinheira, auxiliar de manutenção. São tantos nomes, muitos

enraizados em estereótipos, que aqueles indivíduos carregam, que enchemos o

quadro. Conversamos e debatemos sobre todos aqueles rótulos que são colocados, as

relações que eles possuem ou não (como a vulgar fala de ‘mãe solteira’) e como

sabemos quais são nossos ou não, com quais nos identificamos. Seguindo o plano,

distribuí folhas para todos e pedi que listassem todas as identidades que possuem, que

identificam em si. O interessante foi perceber que alguns, sequer se identificam como

homem ou mulher, como belo ou feio, suas identidades eram quase todas

relacionadas à terceiros: mãe, pai, filho, filha, esposa, marido. E mais que isso, para a

maioria, estavam todos formados, prontos e impossibilitados de mudança.

Neste exato momento eu deveria ter trabalhado com eles a questão de

formação continuada e esclarecer que somos todos seres em formação. Que não

somos, estamos sendo. Que, a partir do momento em que percebemos, temos

consciência de nossos defeitos ou dificuldades temos o dever de nos movimentar em

direção à mudança. E esta, é minha tarefa enquanto professora, esclarecer aos

estudantes que eu não posso mudá-los milagrosamente através da educação, mas que

eles no processo de assunção de si mesmos podem e devem lutar por sua modificação.

Que suas atitudes influenciam na história e na sociedade e não o contrário, que todos

somos criadores e produtores de história. Paulo Freire nos chama a este dever quando

afirma que tanto nós, professores, quanto nossos alunos e alunas, devemos nos

perceber enquanto presença no mundo, sendo coerentes com a nossa existência. Que

“seria irônico se a consciência de minha presença no mundo não implicasse já o

reconhecimento da impossibilidade de minha ausência na construção da própria

presença” (FREIRE, 1996, p. 53). Assunção também é coerência, ter conhecimento e

saber que através desse conhecimento devo fazer algo. Agora que sei, devo agir. Tanto

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eu sabendo destes deveres como professora, quanto as/os estudantes sabendo de sua

construção e aprendizado continuado.

Por fim, gostaria de apresentar, ainda, uma última atividade que também traz

um aprendizado importante. Realizamos uma roda de conversa sobre a greve dos

professores e as ocupações nas escolas estaduais do Rio Grande do Sul. Apresentei

números, fatos, argumentos contra e a favor das ocupações e debatemos sobre o que

eles sabiam através de amigos, familiares ou informações obtidas pela mídia. Também

trouxe relatos das atividades que estavam ocorrendo nas ocupações e quais eram as

reivindicações dos estudantes. Nem todos expuseram sua opinião ou se colocaram

contrários às ocupações, mas poucos concordaram. Porém, meu intuito com esta

atividade era, para além de debater o que estava acontecendo fora da escola, fazer

com que as/os estudantes de minha turma voltassem seus olhares para a nossa escola

e percebessem o que não concordavam e o que mudariam se pudessem. Para isto

comecei a levantar questionamentos sobre os problemas da escola, perguntar o que

não gostavam ou achavam errado. Para minha surpresa surgiram apenas reclamações

referentes à estrutura da escola. Problemas nos banheiros, vidros quebrados, piso

faltando, ventiladores que não funcionavam, etc. Queria eu que eles percebessem a

falta de professores, formatos de aula que não os agradava, a falta de atividades

externas ou qualquer outra falha que eu pudesse ter cometido com relação às

expectativas que tinham sobre as minhas aulas. Mas seus olhos só alcançaram o

espaço físico. Por que isso me incomodara tanto? Primeiro porque percebi que falhei,

que não os deixei à vontade para questionarem minhas aulas, minhas falas, minhas

ideias. Não tinham a clareza de que eu não os recriminaria. E segundo, por frustrar

minha expectativa de que eles fariam o que eu desejava. Mais um aprendizado que a

leitura constante de Freire nos traz sobre acreditarmos e defendermos a democracia e

a liberdade, mas ainda desejarmos que as/os estudantes correspondam às nossas

expectativas. “De nada serve, a não ser para irritar o educando e desmoralizar o

discurso hipócrita do educador, falar em democracia e liberdade, mas impor ao

educando a vontade arrogante do mestre” (FREIRE, 1996, p. 61). Por mais que a reação

deles seja uma falha minha não posso forçá-los a dar outra resposta se eles não a têm.

Posso e devo trabalhar para que em próximas atividades eles ampliem suas visões

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sobre o espaço que ocupam, apenas. Não era o momento de intervir e forçar uma

reflexão a qual não lhes interessava no momento.

Dentre todas estas atividades e dificuldades que encontrei ainda tivemos

paralisações, aulas encurtadas, muitos feriados e a greve dos professores nas últimas

duas semanas de estágio. Mas minha maior dificuldade foi enfrentar a mim mesma.

Enfrentar minhas expectativas e frustrações para que não se sobrepusessem às

necessidades e expectativas dos estudantes. Enfrentar o fato de perceber que eu não

estava sendo coerente com minhas crenças e discursos, assumir este fato e lidar com

ele. Infelizmente, quando modifiquei todos os planos de aula pela última vez, tentando

colocar as/os estudantes como atores principais no cenário da sala de aula, foi

declarada a greve dos professores da rede municipal. Que é totalmente legítima e tem

meu apoio, claro. Mas fiquei triste pelo fato de não poder continuar minhas mudanças

profissionais e constantes análises das minhas atitudes na prática, de não poder tentar

mais uma vez. Afinal, em casa, sozinha, lendo Freire, tudo parece simples e óbvio.

REFLEXÕES FINAIS

Falo agora, minhas últimas palavras, pois assim o deve ser, não por ter

finalizado algo. Minha luta interna pela coerência docente será constante. Lutar contra

meus vícios e defeitos como pessoa para me tornar uma profissional melhor. Minha

única certeza é a leitura e releitura constante que farei do livro Pedagogia da

Autonomia, de Paulo Freire. Livro que me ajudou no fim do estágio e que me guiou na

escrita deste artigo. Neste livro, Freire trata da importância de estarmos dispostos à

coerência de sermos o que discursamos. Fala sobre autonomia, democracia e

liberdade. Sobre as questões necessárias ao ensino e a livre aceitação do aprender.

Fala da propriedade que o saber carrega e da educação através do exemplo. De

equilíbrio acima de tudo para não nos tornarmos nenhum extremo problemático.

Afinal “não podemos, numa perspectiva democrática, transformar uma classe de

alfabetização num espaço em que se proíbe toda reflexão em torno da razão de ser

dos fatos, nem tampouco num ‘comício libertador’” (FREIRE, 1996, p. 81).

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Dentro da sala de aula é importante estabelecer uma relação de escuta mútua,

de troca de saberes, de respeito entre todos. Fazer com que as/os estudantes

compreendam isso e sintam-se à vontade para corrigir a professora, se for necessário,

por exemplo. Porque “o fundamental é que professor e alunos saibam que a postura

deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não

apassiva, enquanto fala ou enquanto ouve” (FREIRE, 1996, p. 83).

Levar tudo isso para a prática diária parece simples quando escrito, mas não o

é. Sem percebermos nos perdemos nos vícios do ensino tradicional. Por isso, é

importante valorizar a opinião das/dos estudantes e considerar suas ideias e

manifestações. A melhor saída para não cair novamente nesta armadilha é a reflexão

constante. Não uma reflexão escrita de qualquer maneira apenas para preencher uma

tarefa da faculdade, mas sim uma reflexão verdadeiramente exercitada, com

apropriação do significado da palavra refletir. Questionar-se diariamente se meus

alunos e alunas gostaram da aula? Conseguiram compreender o conteúdo?

Participaram ativamente? E tudo que trabalhamos será útil para todos eles? Além de

tantas outras questões que devemos gravar em nossa mente e revisitarmos todas as

noites ao nos deitarmos para dormir.

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1974, p. 39-78.

VÓVIO, Cláudia Lemos. Desconstruindo dicotomias: a articulação de saberes na escolarização de pessoas jovens e adultas. 2012.