bull, hedley - a_sociedade_anarquica

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Coleo

Comit Editorial:Celso Lafer Marcelo de Paiva Abreu Gelson Fonseca Jnior Carlos Henrique CardimA reflexo sobre a temtica das relaes internacionais est presente desde os pensadores da antigidade grega, como o caso de Tucdides. igualmente, obras como a Utopia, de Thomas More, e os escritos de Maquiavel, Hobbes e Montesquieu requerem, para sua melhor compreenso, uma leitura sob a tica mais ampla das relaes entre estados e povos. No mundo moderno, como sabido, a disciplina Relaes Internacionais surgiu aps a Primeira Guerra Mundial e, desde ento, experimentou notvel desenvolvimento, transformando-se em matria indispensvel para o entendimento do cenrio atual. Assim sendo, as relaes internacionais constituem rea essencial do conhecimento que , ao mesmo tempo, antiga, moderna e contempornea. No Brasil, apesar do crescente interesse nos meios acadmico, poltico, empresarial, sindical e jornalstico pelos assuntos de relaes exteriores e poltica internacional, constata-se enorme carncia bibliogrfica nessa matria. Nesse sentido, o Instituto de Pesquisa de Relaes Institucionais - IPRI, a Editora Universidade de Braslia e a Imprensa Oficial do Estado de So Paulo estabeleceram parceria para viabilizar a edio sistemtica, sob a forma de coleo, de obras bsicas para o estudo das relaes internacionais. Algumas das obras includas na coleo nunca foram traduzidas para o portugus, como O Direito da Paz e da Guerra de Hugo Grotius, enquanto outros ttulos, apesar de no serem inditos em lngua portuguesa, encontram-se esgotados, sendo de difcil acesso. Desse modo, a coleo Clssicos IPRI tem por objetivo facilitar ao pblico interessado o acesso a obras consideradas fundamentais para o estudo das relaes internacionais em seus aspectos histrico, conceitual e terico. Cada um dos livros da coleo contar com apresentao feita por um especialista que situar a obra em seu tempo, discutindo tambm sua importncia dentro do panorama geral da reflexo sobre as relaes entre povos e naes. Os Clssicos IPRI destinam-se especialmente ao meio universitrio brasileiro que tem registrado, nos ltimos anos, um expressivo aumento no nmero de cursos de graduao e ps-graduao na rea de relaes internacionais.

Coleo Clssicos IPRITUCDlDES Histria da Guerra do Peloponeso Prefcio: Hlio Jaguaribe E. H. CARR Vinte Anos de Crise 1919-1939. Uma Introduo ao Estudo das Relaes Internacionais Prefcio: Eiiti Sato J. M. KEYNES As Conseqncias Econmicas da Paz Prefcio: Marcelo de Paiva Abreu RAYMOND ARON Paz e Guerra entre as Naes Prefcio: Antonio Paim MAQUIAVEL Escritos Selecionados Prefcio e organizao: Jos Augusto Guilhon Albuquerque HUGO GROTIUS O Direito da Guerra e da Paz Prefcio: Celso Lafer ALEXIS DE TOCQUEVILLE Escritos Selecionados Organizao e prefcio: Rodrigues Ricardo Velez HANS MORGENTHAU A Poltica entre as Naes Prefcio: Ronaldo M. Sardenberg IMMANUEL KANT A Paz Perptua e outros Escritos Polticos Prefcio: Carlos Henrique Cardim SAMUEL PUFENDORF Do Direito Natural e das Gentes Prefcio: Trcio Sampaio Ferraz Jnior CARL VON CLAUSEWJTZ Da Guerra Prefcio: Domcio Proena G. W. F. HEGEL Textos Selecionados Organizao e prefcio: Franklin Trein JEAN-JACQUES ROUSSEAU Textos Selecionados Organizao e prefcio: Gelson Fonseca Jr. NORMAN ANGELL A Grande Iluso Prefcio: Jos Paradiso THOMAS MORE Utopia Prefcio: Joo Almino Conselhos Diplomticos Vrios autores Organizao e prefcio: Luiz Felipe de Seixas Corra EMERICH DE VATTEL O Direito das Gentes Traduo e prefcio: Vicente Marotta Range! THOMAS HOBBES Textos Selecionados Organizao e prefcio: Renato Janine Ribeiro ABB DE SAINT PIERRE Projeto para uma Paz Perptua para a Europa SAINT SIMON Reorganizao da Sociedade Europia Organizao e prefcio: Ricardo Seitenfuss HEDLEY BULL A Sociedade Anrquica Prefcio: Williams Gonalves FRANCISCO DE VITORIA De Indis et De Jure Belli Prefcio: Fernando Augusto Albuquerque Mouro

MINISTRIO DAS RELAES EXTERIORES Ministro de Estado: Professor CELSO LAFER Secretrio Geral: Embaixador OSMAR CHOHFI FUNDAO ALEXANDRE DE GSUMO FUNAG Presidente: Embaixadora THEREZA MARIA MACHADO QUINTELLA CENTRO DE HISTRIA E DOCUMENTAO DIPLOMTICA CHDD Diretor: Embaixador LVARO DA COSTA FRANCO INSTITUTO DE PESQUISA DE RELAES INTERNACIONAIS IPRI Diretor: Ministro CARLOS HENRIQUE CARDIM UNIVERSIDADE DE BRASLIA UnB Reitor: Professor LAURO MORHY Diretor da Editora Universidade de Braslia: ALEXANDRE LIMA Conselho Editorial Elisabeth Cancelli (Presidente), Alexandre Lima, Estevo Chaves de Rezende Martins, Henryk Siewierski, Jos Maria G. de Almeida Jnior, Moema Malheiros Pontes, Reinhardt Adolfo Fuck, Srgio Paulo Rouanet e Sylvia Ficher. IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO DE SO PAULO Diretor Vice-Presidente em exerccio: LUIZ CARLOS FRIGRIO Diretor Industrial: CARLOS NICOLAEWSKY Diretor Financeiro e Administrativo: RICHARD VAINBERG

H EDLEY BULL

A SOCIEDADE ANRQUICAUm estudo da ordem poltica mundial

Prefcio:

Williams Gonalves

Traduo:

Srgio Bath

Imprensa Oficial do Estado Editora Universidade de Bras1ia Instituto de Pesquisa de Relaes Internacionais So Paulo, 2002

Copyright 1939, 1946 The Estate of HedIey Bull Copyright 1981 by Editora Universidade de Braslia pela traduo Ttulo Original: The Anarchical Society Publicado originalmente em 1977 Traduo de Srgio Bath Direitos desta edio: Editora Universidade de Braslia SCS Q. 02 bloco C n 78, 2 Andar 70300-500 BrasIia, DF A presente edio foi feita em forma cooperativa pela Editora Universidade de Braslia com o Instituto de Pesquisa de Relaes Internacionais (IPRI/FUNAG) e a Imprensa Oficial do Estado de So Paulo. Todos os direitos reservados conforme a lei. Nenhuma parte desta publicao poder ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem autorizao por escrito da Editora Universidade de Braslia. Equipe tcnica: EIITI SATO (Planejamento editorial); ISABELA SOARES (Assistente); AIRTON LUGARINHO (Reviso) Fotolitos, impresso e acabamento: IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO DE SO PAULO Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Bull, Hedelley A sociedade anrquica / Hedelley Bull; Prefcio de Williams Gonalves; Trad. Srgio Bath (1a. edio) Braslia: Editora Universidade de Braslia, Instituto de Pesquisa de Relaes Internacionais; So Paulo: Imprensa Oficial do Estado de So Paulo, 2002. XXVIII, 361 p., 23 cm (Clssicos IPRI, 5) ISBN: 85-230-0635-4 (Editora da UnB) ISBN: 85.7060.089-5 (Imprensa Oficial do Estado) 1 Relaes Internacionais; I. Ttulo II. Srie. CDU 327 ndices para catlogo sistemtico:

Para Emily, Marta e Jeremy

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SUMRIOPREFCIO EDIO BRASILEIRA............................................. XI PREFCIO DO AUTOR .............................................................. XXVII INTRODUO ......................................................................................... 1 CAPTULO I: O conceito de ordem na poltica mundial ................... 7 CAPTULO II: H uma ordem na poltica mundial? ........................ 31 CAPTULO III: Como a ordem mantida na poltica mundial? .... 65 CAPTULO IV: Ordem versus justia na poltica internacional ...... 91 CAPTULO V: O equilbrio de poder e a ordem internacional .... 117 CAPTULO VI: O direito internacional e a ordem internacional 147 CAPTULO VII: A diplomacia e a ordem internacional ................ 187 CAPTULO VIII: A guerra e a ordem internacional ....................... 211 CAPTULO IX: As grandes potncias e a ordem internacional ... 229

9 CAPTULO X: Alternativas para o sistema de estados contemporneo ...................................................................................... 263 CAPTULO XI: O sistema de estados estar em declnio? ........... 289 CAPTULO XII: O sistema de estados estar obsoleto? ............... 317 CAPTULO XIII: Como reformar o sistema de estados? .............. 333 CONCLUSES .................................................................................... 357 NDICE REMISSIVO .......................................................................... 359

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PREFCIO Hedley Bull e a Sociedade InternacionalWilliams da Silva Gonalves* A traduo de Anarchical Society para a lngua portuguesa um acontecimento editorial de grande envergadura, para ser saudado pelo pblico leitor dedicado s Relaes Internacionais. Esta no a primeira vez que se traduz trabalho de Bull para conhecimento dos estudiosos das relaes internacionais. Um texto seu, apresentado num Seminrio no Departamento de Relaes Internacionais da Universidade Nacional da Austrlia, intitulado As Relaes Internacionais como Disciplina Acadmica, foi traduzido, em 1977, e publicado pela revista Documentao e Atualidade Poltica, numa ao editorial conjunta da Universidade de Braslia com o Senado Federal1. Na poca, Hedley Bull devia seu grande prestigio publicao de The Control of the Arms Race: Disarmament and Arms Control in the Missile Age, em 1961.2 Esse livro, dedicado questo da estratgia nuclear, foi escrito quando Bull trabalhava no Instituto* Professor de Relaes Internacionais da Universidade Federal Fluminense e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 1 Hedley Bull. As Relaes Internacionais como Disciplina Acadmica. Documentao e AtUalidade Poltica Nmero 3, abril/junho 1977. Braslia, UnB/Senado Federal. Pp. 45-53. 2 Hedley Bull. The Control of the Arms Race: Disarmament and Arms Conlrol in the Missile Age. New York, Praeger, 1961.

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de Estudos Estratgicos da Inglaterra, aps ter passado algum tempo nos Estados Unidos como observador do desenvolvimento da disciplina Relaes Internacionais nas Universidades de Harvard e Chicago, a servio do recm criado Comit Britnico de Teoria de Poltica Internacional. Foi com a publicao de Anarchical Society em 1977, que Hedley Bull tornou-se conhecido no apenas dos especialistas como tambm dos estudantes como o mais importante representante da corrente terica racionalista das relaes internacionais, tambm conhecida como corrente da sociedade internacional ou, ainda, como escola realista inglesa. Nascido australiano em 1932, Bull graduou-se em Filosofia e Direito em 1952, na Universidade de Sydney. Em 1953 deslocou-se para Oxford, onde ps-graduou-se em cincia poltica e passou a ministrar aulas de relaes internacionais, ao mesmo tempo em que assistia as famosas conferncias proferidas por Martin Wight, na London School of Economics. Em 1977, depois de uma temporada de onze anos na Universidade Nacional da Austrlia, Hedley Bull estabeleceuse definitivamente na Universidade de Oxford, onde ocupou a Ctedra Montagu Burton de Relaes Internacionais at morrer vitimado por cncer em 1985. A influncia exercida por Martin Wight sobre Hedley Bull reconhecida como profunda e duradoura; influncia que se percebe no ncleo das teses que defende em sua obra. Por outro lado, Bull tornouse conhecido como o mais brilhante discpulo de Wight. Da rica e brihante trajetria intelectual que Martin Wight percorreu nas instituies acadmicas britnicas, Bull explicitamente incorporou sua reflexo sobre as relaes internacionais a tese cara a Wight segundo a qual a anlise das relaes internacionais tributria das idias centrais

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arroladas no debate entre as trs maiores tradies do pensamento ocidental: o Realismo de Maquiavel; o Racionalismo de Hugo Grotius; e o Revolucionismo de Immanuel Kant. Alm dessa, a importncia que Bull atribui histria, poltica, ao direito e teologia outra forte marca do pensamento de Wight na sua obra. Importncia aos fatores culturais nas relaes internacionais que Wight cultivou desde o tempo em que colaborou com o historiador Arnold J. Toynbee, e que em Bull se manifesta sob a forma de rejeio aos modelos heursticos e s pretenses cientficas da cincia social norte-americana, no mbito das relaes internacionais3. Apesar da influncia exercida por Wight ter sido de grande amplitude, no foi de modo a sufocar a criatividade de Bull, que se destacou do mestre por desenvolver uma linha de pesquisa prpria. Em seus estudos sobre a poltica internacional, a taxonomia de Wight a respeito das escolas de pensamento constitua to somente um recurso pedaggico do professor que ele tanto prezava ser. Wight no se identificava exclusivamente com qualquer uma das trs correntes, por ele mesmo consideradas seminais para a reflexo sobre a poltica internacional. Nesse sentido, Bull, ao definir o projeto terico de articular uma teoria normativa das relaes internacionais alicerada na fIlosofia jurdica de Hugo Grotius, introduz uma diferena substantiva em relao a Wight, diferena essa que o eleva condio de principal interlocutor da teoria racionalista e que o situa tambm como mestre pensador das relaes internacionais. Na verdade, em virtude do modo pelo qual Bull trabalha as idias do autor de Do Direito

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Sobre Martin Wight ver: Kenneth W Thompson. Masters of InternationalThought. Baton Rouge, Louisiana State University Press, 1990. Pp. 44-61.

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da Guerra e da Paz, procede o ttulo que tmbm lhe atribuem de NeoGrociano. O cerne da interveno filosfica de Hugo Grotius constitu-da por sua concepo de lei natural. Segundo ele, por lei natural deve entender-se um corpo de regras morais reconhecidas por todos os seres humanos. Tais regras morais, fundamentalmente, consistem na idia que todos os homens tm o direito bsico de preservar sua vida e que, por outro lado, nenhum homem tem o direito de atentar infundadamente contra a vida de outro. Assim, contrapondo-se a aristotlicos e cticos do seu tempo (sculo XVII), Grotius buscava mostrar a possibilidade de alguma objetividade nos valores morais. Isto , procurava mostrar que a despeito das mltiplas formas culturais existentes mundo afora, era possvel identificar um denominador moral comum a todas as criaturas racionais. E por considerar que os prncipes so pessoas e que os Estados nada mais so seno conjunto de pessoas, todos esto submetidos lei natural e integrados sociedade internacional. Para melhor dizer, os Estados tm o direito de se proteger, mas nenhum Estado tem o direito de molestar gratuitamente o outro4. A identificao de Bull como Neo-Grociano procede, porque nosso autor aprofundando a tese de Wight segundo a qual a tese de Grotius difere claramente da de Hobbes, para quem os Estados esto irremediavelmente entregues ao estado de natureza e desembaraados de qualquer espcie de restrio moral, e difere tambm da tese de Kant, para quem os Estados so praticamente um acidente na vida dos homens, sendo mais importante o progresso moral do ser humano

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Hedley Bull, Benedict Kingsbury, Adam Roberts. Hugo Grotius and lnternational RB/ations. Oxford, Clarendon Press, 1992. P. 78.

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considera perfeitamente possvel estabelecer critrios de objetividade que fundam a ordem internacional. Para Bull, a idia de sociedade internacional permite articular a idia de ordem internacional de forma objetiva, despida, portanto, de valores. evidente que essa uma linha de reflexo que desperta crticas. Em primeiro lugar, crticas da parte de todos que entendem que as teorias das relaes internacionais em todas as suas variaes, partem das mesmas matrizes realista e idealista, que se excluem e que tm se defrontado ao longo do tempo, assumindo apenas novas roupagens. Para os que assim vem a evoluo da discusso terica das relaes internacionais, a linha proposta por Bull nada mais do que o realismo mitigado por aspectos idealistas. E, em segundo lugar, crticas, como a formulada por Kimberly Hutchings5, que recusa a idia de que a filosofia grociana constitui uma terceira linha interpretativa das relaes internacionais, independente da linha hobbesiana e kantiana. Na viso deste ltimo, a chamada linha grociana constitui bvia mistura de elementos chaves dos dois paradigmas. Assim sendo, no h mediao e, sim, fuso dos paradigmas realista e idealista. A idia de ordem na poltica mundial est, na concepo de Hedley Bull, indissoluvelmente vinculada existncia da sociedade internacional. E essa uma idia que o incompatibiliza com a corrente terica realista que, por entender que no possvel admitir a existncia de uma sociedade desprovida de poder central, seus representantes consideram descabido falar em sociedade internacional, uma vez que a ausncia desse poder soberano e a disperso da autoridade entre as

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Kimberly Hutchings International Political Theory. London, Sage Publications, 1999. P. 59.

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unidades polticas que compem o sistema constituem justamente as caractersticas fundamentais do meio internacional. interessante observar, contudo, que Bull introduz uma diferena entre o que ele denomina sistema internacional e sociedade internacional. H sistema internacional (sistema de Estados) ou se constitui quando dois ou mais estados tm suficiente contato entre si, com suficiente impacto recproco nas suas decises, de tal forma que se conduzam, pelo menos at certo ponto, como partes de um todo.6 De outro lado, h sociedade internacional (sociedade de Estados) quando um grupo de estados, conscientes de certos valores e interesses comuns, formam uma sociedade, no sentido de se considerarem ligados, no seu relacionamento, por um conjunto comum de regras, e participam de instituies comuns.7 Seu conceito de sistema internacional no difere do conceito formulado pelos tericos hobbesianos. A grande distino reside no conceito de sociedade de Estados. No obstante a variedade de tradies, hbitos e costumes entre os diversos povos que compem os diversos Estados, Bull afirma que o respeito a determinados valores comuns suficiente para compor a sociedade internacional. No livro editado junto com Adam Watson, The Expansion of International Society8, nosso autor examina como se deu a formao da sociedade internacional, ou seja, examina como esses valores se difundiram, como foram assimilados e, enfim, como tornaram-se comuns. A ateno para com os aspectos culturais envolvidos nas relaes internacionais representa uma marca distintiva da reflexo de Hedley Bull e algo que merece ser objeto de algumas consideraes.6 7 8

Hedley Bull. The Anarchical Society A Study of Order in Word Politics. London, MacMillan, 1977, p. 9-10. Ibid. P. 13. Hedley Bull & Adam Watson. The Expansion of International Society. Oxford, Clarendon Press, 1984.

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O estudo sistemtico das relaes internacionais , como afirma Celestino del Arenal9, tipicamente anglo-saxo. Stanley Hoffmann10, obviamente desconsiderando a importncia do papel dos estudiosos ingleses e da academia desse pas para o desenvolvimento da disciplina, chega mesmo a afirmar que a cincia das relaes internacionais uma inveno norte-americana. Naturalmente que ambos os autores referem-se s relaes internacionais como cincia, de modo que absolutamente no ignoram que a preocupao para com os fenmenos do conflito e da cooperao entre os povos, em suas variadas formas de organizao poltica, bastante antiga. Tanto um como outro reconhecem o carter seminal da Histria da Guerra do Peloponeso, de Tucdides, bem como atribuem a devida importncia reflexo dos filsofos dos sculos XVII e XVIII e, tambm, dos juristas e historiadores do sculo XIX e incio do sculo XX. Relaes internacionais um estudo tipicamente anglo-saxo, na interpretao de del Arenal, porque foi no meio intelectual desses dois pases que a reflexo sobre as relaes internacionais encontrou seu ambiente mais propcio, livre das restries intelectuais e acadmicas existentes nos outros pases. Para Hoffmann, relaes internacionais uma cincia norte-americana por ter sido nos Estados Unidos que se verificou a convergncia de trs fatores decisivos para o desenvolvimento dos estudos sobre relaes internacionais: predisposio intelectual, circunstncias polticas e oportunidades institucionais11. Esse protagonismo anglo-saxo nas relaes internacionais iniciou-se imediatamente aps a Primeira Guerra Mundial, um9

Ceiestino del Arenal. Introduccin a las relaciones internacionales. Madrid, Tecnos, 1990, p. 66. Stanley Hoffmann. Jano y Minerva Ensaios sobre la guerra y la paz., Buenos Aires, GEL, 1991. 11 Ibid. P. 21.10

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momento crucial para os Estados Unidos e para a Inglaterra, no que dizia respeito insero internacional de ambos. Para os Estados Unidos, o fim da guerra abria as portas para o exerccio de um papel cuja importncia foi aumentando rapidamente e que, com a Segunda Guerra Mundial, confirmou-se sob a forma de hegemonia sobre o mundo ocidental. Para a Inglaterra, a guerra teve significado diferente. A guerra trouxe luz sinais inquietantes de declnio, sinalizando a necessidade de decises que levassem recuperao do poder corrodo e, sobretudo e principalmente, que melhor protegessem o Imprio Colonial, grande fonte de riqueza, poder e prestgio. Isto , o interesse comum das duas potncias para com o estudo sistemtico das relaes internacionais correspondia ascenso de uma e ao declnio de outra. Conhecer, portanto, a nova e complexa realidade internacional do psPrimeira Guerra, constitua importante interesse nacional dos dois pases, na medida em que estava em jogo obteno e perda de poder nacional. Muito da direo imprimida aos estudos das relaes internacionais nos Estados Unidos e na Inglaterra derivam desse processo de substituio do papel de potncia hegemnica no sistema internacional, que se iniciou na Primeira Guerra Mundial e se confirmou na Segunda. A histria de cada uma das duas grandes potncias e o meio internacional no qual exercem sua hegemonia, tm se revelado como elemento de grande importncia na reflexo terica que se realiza nos seus respectivos mundos acadmicos. Sob esse prisma, a reflexo desenvolvida por Hedley Bull parece-nos das mais representativas do modo britnico de perceber o mundo, bem distinta, por assim dizer, do modo como os estudiosos norte-americanos o fazem. Os mais importantes e consagrados estudiosos norte-americanos

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percebem o mundo como uma grande arena, onde o que conta so as relaes de poder. Percebem as relaes internacionais essencialmente como relaes verticais, determinadas pela densidade de poder de cada Estado. E quando se dispem a garantir contedo cientfico s suas anlises, fazem-no interpretando o mundo como um imenso mercado, que deve funcionar segundo a lei natural da oferta e da procura. Uma percepo prpria, vale dizer, daqueles que vinculam o conhecimento da realidade das relaes internacionais ao objetivo estratgico nacional de manter indefinidamente os Estados Unidos na posio hegemnica que alcanou depois da Segunda Guerra Mundial e se consolidou com o fim da Guerra Fria. Em sntese, pode-se dizer que, nos Estados Unidos, o projeto de fazer das relaes internacionais uma cincia inseparvel da viso imperial do mundo. Isso no significa dizer que a cincia das relaes internacionais que se pratica na Inglaterra esteja desvinculada com a sua histria e com os seus objetivos nacionais. A diferena, por assim dizer, reside justamente na experincia imperialista inglesa. Diferentemente dos norte-americanos que, preponderantemente, praticam um imperialismo financeiro, os ingleses praticaram um imperialismo colonialista. Isto implica dizer que, alm dos objetivos econmicos bsicos, os ingleses estiveram diretamente envolvidos com os povos que colonizaram. Para operacionalizar sua explorao econmica, impuseram sua lngua, instalaram suas instituies e, tambm, procuraram conhecer as prticas e as crenas desses povos. Desse modo, junto dos empresrios interessados nas riquezas das colnias atuaram os historiadores e os antroplogos. Por meio da ao de seus humanistas e cientistas sociais, os ingleses puderam obter amplo conhecimento das diversas formas culturais dos povos da sia, frica e Oceania e, assim, manter durante

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longo perodo um vastssimo imprio colonial. E, mesmo depois que o imprio colonial se desfez como resultado do processo de descolonizao que teve incio na sia, no final da dcada de 1940, e se completou na frica, no incio dos anos 1960, os ingleses continuaram a exercer grande influncia nos pases antes colonizados. Retornando, agora, questo do conceito de sociedade internacional e importncia que Hedley Bull atribui aos fatores culturais em sua reflexo sobre as relaes internacionais, no difcil perceber a influncia que sobre ele e sobre o Comit Britnico para a Teoria da Poltica Internacional12 exerce a experincia imperialistacolonialista britnica. Conquanto esteja de acordo com os tericos norte-americanos no que tange prioridade das relaes verticais de poder, Bull considera que essas relaes no podem esgotar as possibilidades analticas das relaes internacionais e que as relaes horizontais de cooperao devem ser consideradas como parte igualmente importante da anlise. A formao da sociedade internacional tem incio, como concebe Bull, a partir do final do sculo XV organiza-se como uma nica estrutura baseada em relaes econmicas e estratgicas no sculo XIX e consolida-se como sociedade internacional global logo aps a Segunda Guerra Mundial. Esse processo histrico de formao da sociedade internacional teria se dado como conseqncia da expanso dos Estados europeus pelo mundo, realizando a agregao de diversos sistemas internacionais regionais, que operavam com base em distintas regras e instituies, definidas, por seu turno, por alguma cultura

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Grupo de estudo formado por acadmicos e diplomatas que trabalhou de 1959 a 1984, sob a liderana de Herbert Butterfield, Martin Wight, Adam Watson e Hedley Bull.

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dominante. A estrutura jurdico-poltica do Estado soberano constiturase no instrumento e no smbolo dessa expanso, que comeou a ganhar corpo no fim do sculo XVIII e incio do sculo XIX, com a concluso dos processos que levaram independncia dos Estados Unidos, do Brasil e das colnias hispnicas nas Amricas. A independncia desses pases formados pela colonizao europia, consagrava, portanto, em primeiro lugar, o triunfo dessa estrutura jurdico-poltica denominada Estado, que se havia convertido no padro europeu de organizao poltica de seus povos a partir da Paz de Westphalia (1648) e, em segundo lugar, ao subjugar todos os povos encontrados pelos colonizadores a essa estrutura, determinava que as Amricas passassem a funcionar como uma verdadeira extenso da Europa. No perodo imediatamente anterior expanso europia, o mundo estava dividido em alguns importantes sistemas internacionais: o sistema rabe-Islmico, que se estendia da Espanha Prsia; o sistema internacional Indiano, sob a influncia da cultura hindu; o sistema internacional Trtaro-Mongol, que ocupava os amplos espaos das estepes eurasianas, tambm de matriz cultural islmica; e, por fIm, o sistema internacional Chins, durante longo tempo sob a dominao mongol 13. Conquanto eventualmente as partes integrantes desses sistemas entrassem em contato com partes dos outros sistemas, por conta de relaes comerciais ou para dar satisfao curiosidade intelectual, tais sistemas funcionavam de modo inteiramente independente uns dos outros, atuando em conformidade com seus prprios cdigos culturais, que compreendiam religies, governos, leis, escritas, moedas, regras comerciais. Segundo Bull, havia, contudo, algo13

Hedley Bull & Adaro Watson. The Expansion of Internatianal Saciety. Op. cit., p. 02.

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que era comum a todos esses sistemas, qual seja o fato de serem regulados pela relao suserano/vassalo. Nesses sistemas, havia um centro poltico-cultural reconhecido por todos, que fixava os cdigos de conduta e zelava para que o mesmo fosse objeto de pleno respeitol4. Em The Expansion of International Society, Bull argumenta que nem sempre nesses cinco sculos de formao da sociedade internacional global o processo de integrao desses sistemas internacionais num nico sistema comandado pelos europeus se deu por meio da imposio dos valores europeus sobre todos os demaisl5. Houve, junto com a imposio, respeito s organizaes de mando e assimilao de determinadas prticas sociais dos outros povos. At o sculo XIX os contatos entre os europeus e os demais sistemas haviam se realizado com os interlocutores em condies de igualdade. A partir da Revoluo Industrial, no entanto, tudo mudou. Em vista da superioridade tcnica adquirida, os europeus passaram a impor seus valores e estabelecer as condies sob as quais os outros Estados seriam reconhecidos e admitidos no sistema de Estados que comandavam. Esse processo aconteceu como na China e como no Japo, onde aps a Guerra do pio, no primeiro caso, e a ameaa de guerra, no segundo, os ingleses e os norte-americanos, respectivamente, apresentaram tratados desiguais, em que no apenas buscavam extrair grandes benefcios econmico-comerciais, como tambm buscavam estabelecer o cdigo de conduta pelo qual os governos da China e do

14 15

Ibidem. Ibid. P. 5.

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Japo deveriam, doravante, reger suas relaes com o Ocidente. Esse processo tambm aconteceu como em outras partes da sia, da frica e da Oceania, sob a forma da pura e simples dominao colonial. Tanto no primeiro como no segundo caso, salvo certos aspectos relativos ao Japo, a nova relao assentava-se, portanto, em relaes estritamente verticais. A conformao objetiva da estrutura da sociedade internacional acontece, como defende Hedley Bull, no mesmo contexto que registra a intensificao do processo de dominao colonial e que registra o triunfo da soberania nas independncias das colnias americanas. De um lado, do lado dos povos da sia, da frica e da Oceania, sentimento europeu de superioridade, prepotncia, discriminao racial e cultural; de outro lado, do lado dos povos das Amricas que conquistavam a independncia, a formulao de uma retrica e de uma doutrina anticolonialista, o sentimento de solidariedade de um para com os outros e uma grande desconfiana em relao s prticas correntes no mbito das relaes internacionais16. No entendimento de nosso autor, as grandes conferncias multilaterais havidas ao longo do sculo XIX, constituem a prova emprica desse processo contraditrio e acidentado de formao da sociedade internacional: No Congresso de Viena de 1815 s estiveram presentes Estados europeus, mas na Conferncia de Paz de Paris de 1856 o Imprio Otomano esteve representado; na Conferncia de Haia de 1899, juntos com Estados Unidos e Mxico, estiveram presentes o Imprio Otomano, China, Japo, Prsia e Sio; e na Conferncia de Haia de 1907 estiveram16

Ibid. p. 122.

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presentes um total de dezesseis repblicas latino-americanas, cujo considervel impacto foi a premonio da influncia do Terceiro Mundo na Assemblia Geral das Naes Unidas. Por ocasio da Primeira Guerra Mundial, ento, j existia claramente uma sociedade internacional universal de Estados cobrindo a totalidade do mundo e que inclua Estados representativos das Amricas, sia e frica, assim como da Europa17. Segundo Bull, o auge dessa sociedade internacional formada pela expanso europia foi atingido na passagem do sculo XIX para o sculo XX. Nesse sentido, a expedio militar enviada China, em 1900, para esmagar a Revolta dos Boxer, teve significado exemplar. No apenas por revelar a unidade das potncias europias em seu propsito de manter seus privilgios na China, mas tambm pelo fato das foras militares japonesas terem se incorporado expedio, o que, na interpretao de Bull, significa que o Japo, aquela altura, j havia assimilado o padro internacional de relacionamento entre os Estados, a ponto de pegar em armas para defend-lo. Aps a Segunda Guerra Mundial, a sociedade internacional passa por uma fase de profundas mudanas. Mudanas provocadas por aquilo que nosso autor denomina A Revolta contra o Ocidente, cujo resultado foi a formao da sociedade internacional global de nossa poca. Nessa nova fase, a sociedade internacional perde suas caractersticas exclusivamente europias na verdade ocidentais, devido ao fato de os Estados Unidos terem se transformado numa das mais importantes expresses no processo de imposio dos valores

17

Ibid. p. 123.

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europeus ao resto do mundo ao incluir em suas prticas, determinados procedimentos reivindicados pelos povos dominados. A Revolta contra o Ocidente compreende cinco fases ou temasl8. A primeira fase foi marcada pela luta pela igualdade soberana dos Estados19. A luta objetivava a supresso dos tratados desiguais, sobretudo a eliminao da mais indesejvel de suas clusulas, que era o direito ocidental de extraterritorialidade. Essa clusula que impunha aos povos no europeus o direito de excluir os cidados ocidentais da jurisdio do sistema legal local, constitua uma razo de permanente humilhao para os povos submetidos a esses tratados20. Essa luta foi travada nas dcadas de 1920 e 1930 por aqueles povos submetidos a ao regime semi-colonial, como era o caso dos chineses, e ao regime dos mandatos, como era o caso dos egpcios. A segunda fase foi aquela em que as colnias lutaram por sua independncia, denominada por nosso autor como revoluo anticolonial. Essa fase se estende pelo perodo de trs dcadas. Nas dcadas de 1940 e 1950 acontece a descolonizao da sia. Na dcada seguinte, a vez dos povos africanos obterem sua independncia das metrpoles europias. Na primeira metade da dcada de 1970, enfim, completa-se o ciclo africano com as independncias das colnias portuguesas21. A terceira fase caracteriza-se pela luta em favor da igualdade racial. Essa fase tem como grande referncia a Conferncia AfroAsitica de Bandung, ocorrida em 1955. Sua importncia deve-se ao18 19 20 21

Ibid. p. 220. Ibidem. Ibidem Ibid. p. 221.

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fato de os povos recm descolonizados se reunirem pela primeira vez para denunciar, entre outras injustias, o racismo. Alm dessa conferncia, Bull considera que a luta pelos direitos civis conduzida pelos negros norte-americanos e a expulso da frica do Sul da Commonwealth, por prtica de discriminao racial contra a populao negra, constituram outros importantes acontecimentos a compor a luta contra a discriminao. A Conveno sobre a Eliminao da Discriminao Racial, de 1966, representa a legitimao pela ONU dessa luta travada pelos chamados povos de cor22. A quarta fase formada pela luta contra a injustia econmica. Na concepo de Hedley Bull essa luta travada em dois momentos distintos. No primeiro momento, na dcada de 1960, a luta travada a partir da discusso sobre a forma mediante a qual os pases ricos deviam prestar ajuda ao processo de desenvolvimento dos pases pobres. A formao do Grupo dos 77 e a criao, no mbito das Naes Unidas, da Conferncia sobre Comrcio e Desenvolvimento, so os acontecimentos que marcam essa conjuntura. No segundo momento, a luta contra a injustia econmica assume a forma da reivindicao de uma Nova Ordem Econmica Internacional NOEI, legitimada pela Declarao de 1974 da Assemblia Geral das Naes Unidas23. A quinta fase nosso autor denomina de luta pela liberao cultural. Por essa expresso deve-se entender o processo pelo qual vrios povos passam a rejeitar os valores e crenas disseminados pelos europeus, buscando recuperar e valorizar suas antigas tradies. No que diz respeito a essa questo, Bull observa que, muito embora tal

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Ibidem. Ibid. p. 222.

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valorizao das tradies culturais muitas vezes assuma a forma de fundamentalismo, no caso do Islam, e a forma de tradicionalismo, no caso dos hindus, ou de conscincia tnica, no caso dos africanos, todas essas manifestaes nada mais so do que o direito ocidental que todos tm de defender seu direito de expresso24. O interessante na argumentao desenvolvida por Hedley Bull sobre a formao da sociedade internacional global, que ele recusa a tese segundo a qual tal formao teria se dado pura e simplesmente por meio da ocidentalizao do mundo. Sua tese, como j foi comentado, que a Europa, inicialmente, e o Ocidente, depois, comandaram o processo de formao da sociedade internacional. Apenas com a Revolta contra o Ocidente, no entanto, que o processo de construo da sociedade internacional global atingiu seu estgio atual. Em outras palavras, Bull entende que a Revolta contra o Ocidente representou a maneira pela qual os povos do Terceiro Mundo inseriram-se positivamente na sociedade internacional, aps terem cumprido uma etapa de insero subordinada. Em sua concepo, cinco foram as razes que determinaram o colapso da sociedade internacional inteiramente dirigida pelo Ocidente, e sua conseqente substituio pela sociedade internacional global, enriquecida pela contribuio reivindicativa e afirmativa do Terceiro Mundo. A primeira das razes alinhadas por Bull, foi o despertar dos povos da periferia para o questionamento do status quo internacional. O abandono da posio poltica passiva em favor de uma posio ativa, inicialmente por parte das camadas educadas e ocidentalizadas e, em24

Ibid. p. 223.

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seguida, por parte das massas populares, com vistas a exercer o controle dos instrumentos do Estado para a promoo de seus ideais, constituiu o dnamo das mudanas internas e tambm das relaes com outros povos que passavam por processo semelhante25. A segunda razo foi o enfraquecimento da posio europia na poltica mundial, no perodo imediatamente subseqente Segunda Guerra Mundial. Tal enfraquecimento se deu no apenas no sentido econmico e poltico-militar, como tambm no sentido psicolgico. O Ocidente no dispunha de recursos suficientes para enfrentar as insurreies promovidas pelos povos que aspiravam vida independente, assim como no tinha como justificar a manuteno de estruturas de dominao sobre outros povos, sob o argumento que se tratava de povos inferiores racial e culturalmente, aps ter lutado tenazmente contra a Alemanha e o Japo que os havia tentado dominar sob esses mesmos argumentos. Mesmo considerando que esta uma razo que no pode ser desprezada, Bull considera que a vontade poltica dos povos dominados de alcanarem a independncia, representou o fator determinante para por fim dominao colonial26. A terceira razo a favorecer a Revolta contra o Ocidente, foi a Revoluo Bolchevique e a construo do Estado sovitico. Na interpretao de Bull, a participao dos soviticos para o fim da dominao colonial foi, na realidade, pouco expressiva. Isto porque, salvo Lenin, que atribuiu virtudes revolucionrias ao nacionalismo da periferia, as lideranas soviticas, e os prprios pais do marxismo, em funo de sua viso binria do mundo e dos limitados recursos que

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Ibid. p. 224. Ibid. p. 225.

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dispunham, pouco realizaram de efetivo para o fim das estruturas de dominao colonial. No obstante isso, Bull considera que a simples existncia da Unio Sovitica, na condio de oponente do mundo ocidental, contribuiu de maneira importante para a luta dos colonizados27. A quarta razo identificada por Bull, diz respeito s relaes entre as grandes potncias. Bull considera que depois da Segunda Guerra mundial j no existia mais a unidade de propsitos que caracterizara essas relaes nos tempos modernos. Em seu entendimento, as divises eram significativas e tambm surgiram novas potncias China, Japo, URSS, Estados Unidos que ampliavam as opes diplomticas, favorecendo os pases do Terceiro Mundo28. Finalmente, Bull considera a ao poltico-diplomtica dos pases do Terceiro Mundo uma quinta importante razo para as mudanas j apontadas. Tal ao do Terceiro Mundo teria provocado significativas alteraes internacionais, objetivadas num clima legal e moral bastante desfavorvel para as potncias ocidentais. O Movimento dos NoAlinhados e o Grupo dos 77 desempenharam, nesse sentido, papis excepcionalmente importantes na incluso da perspectiva dos pases do Terceiro Mundo no contexto da sociedade internacional29. Essa sociedade internacional (sociedade de Estados) que se forma ao longo das cinco etapas enumeradas e por fora das cinco razes acima citadas, uma sociedade de tipo diferente das sociedades nacionais nela contidas. Ela uma sociedade anrquica. uma sociedade

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Ibid. p. 225. Ibid. p. 226. Ibid. p. 228.

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anrquica porque, embora no disponha de uma poder central que detenha o monoplio da violncia legtima, ela tem por caracterstica um consenso entre os Estados que a compem, em torno de alguns interesses comuns que procuram preservar mediante o respeito a determinadas instituies e normas. Quando Hedley Bull publicou A Sociedade Anrquica, o mundo estava divido em dois blocos de poder e no ambiente internacional respirava-se o ar da guerra fria. Hoje a guerra fria pertence ao passado e o risco da guerra nuclear j no mais sentido como uma possibilidade objetiva. Novos problemas, decorrentes da luta pela preservao das culturas, no entanto, apresentam srios desafios para a ordem mundial. Em vista disso, A Sociedade Anrquica continua sendo uma referncia indispensvel para a reflexo sobre to pertinentes questes. Principais escritos de Hedley Bull: 1. 2. The Control of the Anns Race: Disannament and Anns Control in the Missile Age. New York, Praeger, 1961. Society and anarchy in intemational relations, in Martin Wight and Herbert Butterfield (eds.). Diplomatic Investigations: Essays in the Theory of International Politics. London, Allen & Unwin, 1966, pp. 35-50. The Grotian conception of intemational relations, in Martin Wight and Herbert Butterfield (eds.), Diplomatic Investigations: Essays in the Theory of Intemational Politics. London, Allen & Unwin, 1966, pp. 51-73. International relations as an acadernic pursuit, Australian Outlook 26 (1972), pp. 251-65.

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The theory of intemational politics: 1919-1969, in Brian Porter (ed.). The Aberyswyth Papers. London, Oxford University Press, 1972, pp. 30-58. Martin Wight and the theory of intemational relations, British Journal of International Studies 2 (1976). pp. 101-16. 7. The Anarchical Society. London, Macrnillan, 1977. The great irresponsibles? The United States, the Siviet Union, and world order, International Journal 35 (1980). pp.437-47. Hobbes and intemational anarchy, Social Research 48 (1981). pp. 717-39. The intemational anarchy in the 1980s, Australian Outlook 37 (1983). pp. 127-31. 11. The Expansion of International Society (with Adam Watson). Oxford, Clarendon Press, 1984. Intervention in World Politics (editor). Oxford, Oxford University Press, 1984. Justice in International Relations. Waterloo, Ontario, University of Waterloo, 1984. Hedley Bull on Arms Control. Basingstoke, Macmillan, 1987. Hugo Grotius and International Relations (with Benedict Kingsbury and Adam Roberts). Oxford. Oxford University Press, 1992.

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PREFCIO DO AUTORNeste livro eu procurei expor de forma sistemtica uma viso da sociedade internacional e da ordem internacional que eu tenho manifestado apenas de maneira esparsa aqui e acol. Ele deve muito aos meus ex-colegas do Departamento de Relaes Internacionais da London School of Economics, especialmente a C. A. W. Manning. O livro beneficiou-se bastante das discusses mantidas no British Committee on the Theory of International Politics, do qual participei por vrios anos. Tenho uma dvida imensa com Martin Wight que, pela primeira vez, mostrou para mim que Relaes Internacionais poderia ser um tema e cujos trabalhos nesse campo, para usar uma de suas metforas, permanece como uma construo romana num subrbio de Londres. Seus escritos, ainda no devidamente publicados e reconhecidos, so uma constante inspirao. Alguns pontos dos meus argumentos so baseados nas idias de H. L. A. Hart, meu professor em Oxford. Em vrios captulos eu contraponho minhas opinies com as do meu amigo Richard A. Falk, de Princeton. Acredito, no entanto, que ele seja hoje um dos mais significativos pontos de partida no estudo da poltica mundial e a ateno com que me dedico a refutar suas idias devem ser entendidas como um cumprimento. Sou particularmente grato ao meu amigo e colega, o professor J. D. B. Miller, por suas crticas e encorajamento.

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Este livro no o resultado da aplicao de tcnicas tericas refinadas ou de uma pesquisa histrica particularmente profunda. Quando eu era estudante de graduao fiquei muito impressionado (acho agora que impressionado demais) com a observao de Samuel Alexander, o autor de Space, Time and Deity (Londres, Macmillan, 1920) de que pensar tambm pesquisar. Este livro ecoa as limitaes de uma tentativa de lidar com um tema amplo e complexo simplesmente pela reflexo. Uma verso anterior do Captulo 4 foi publicada em Political Studies (vol. xix, 3, setembro de 1971) sob o ttulo Order vs. Justice in International Society. Uma primeira verso do Captulo 8 consta de The Bases of lnternational Order : Essays in Honour of C. A. W Manning, organizado por Alan James (Oxford University Press, 1973). Agradeo aos respectivos editores a autorizao para reproduzir passagens desses ensaios. Minha maior dvida intelectual com John Anderson, professor de Filosofia na Universidade de Sidney de 1927 a 1958, uma personalidade mais importante do que muitos outros que so mais famosos. John Anderson no tinha muito a dizer diretamente sobre os assuntos discutidos aqui, mas o impacto da sua mente e o seu exemplo tm sido os fatores mais viscerais na formao da maneira de ver de muitos de ns, que fomos seus alunos. Hedley Bull

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INTRODUOEste livro uma investigao sobre a natureza da ordem na poltica mundial, especialmente na sociedade dos estados soberanos, atravs da qual, na medida em que existe, essa ordem mantida na poltica mundial. Procurei responder a trs perguntas fundamentais: i) Em que consiste a ordem na poltica mundial? ii) Como essa ordem mantida dentro do atual sistema de estados soberanos? iii) O sistema de estados soberanos ainda constitui um caminho vivel para a ordem mundial? As trs partes em que o livro est dividido exploram, sucessivamente, essas trs questes. Ser til comear indicando os elementos bsicos da minha abordagem do tema. Em primeiro lugar, neste livro no me ocupo do conjunto da poltica mundial, mas apenas com um dos seus elementos: a ordem. s vezes, quando falamos sobre ordem mundial (ou sobre a ordem mundial) temos em vista o conjunto das relaes entre os estados a totalidade do sistema poltico internacional. Neste livro, porm, a ordem uma caracterstica que pode ou no existir na poltica internacional, conforme o momento ou o lugar; ou que pode existir em grau maior ou menor. Trata-se portanto da ordem em oposio desordem.

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Naturalmente, na poltica mundial o elemento de desordem to grande quanto o elemento de ordem, ou mesmo maior. Com efeito, algumas vezes se afirma (a meu ver equivocadamente, como vou mostrar) que no existe ordem na poltica mundial, e s podemos falar em ordem mundial ou internacional como uma situao futura e desejvel, que devemos esforar-nos por realizar mas que hoje inexistente e nunca existiu no passado. Mas embora seja importante lembrar que a ordem , na melhor das hipteses, s um dos elementos presentes na poltica mundial, sobre ela que desejo focalizar a ateno do leitor. Assim, quando na segunda parte do livro considero certas instituies da sociedade de estados como o equilbrio de poder, o direito internacional, a diplomacia, a guerra e as grandes potncias, o que pretendo explorar so as suas funes em relao ordem, no o lugar que ocupam no conjunto do sistema poltico internacional. Em segundo lugar, neste estudo a ordem definida (no Captulo 1) como uma situao efetiva ou possvel no como um valor, meta ou objetivo. No se deve presumir, portanto, que a ordem, conforme aqui estudada, seja um objetivo desejvel e menos ainda que seja um objetivo que se impe. Quando dizemos que uma determinada instituio ou poltica contribui para manter a ordem na poltica mundial no estamos recomendando essa poltica, ou propondo que tal instituio seja preservada. Naturalmente, como acontece com a maioria das pessoas, eu valorizo a ordem. Se no acreditasse que a ordem, conforme discutida neste trabalho, um objetivo desejvel, no teria decidido que vale a pena tentar estud-la. Com efeito, duvidoso que qualquer teoria sria sobre os objetivos ou os valores da poltica pudesse deixar de reconhecer de algum modo o valor que tem a ordem nas relaes humanas.

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No entanto, conforme argumento construdo no Captulo 4, a ordem no o nico valor que pode modelar a conduta internacional, e no necessariamente um valor supremo. Assim, por exemplo, um dos temas atuais o choque entre a preocupao com a ordem dos estados ricos e industrializados (isto , sua preocupao com uma modalidade de ordem que incorpore seus valores preferidos) e a preocupao dos pases pobres e no industrializados com as mudanas justas que segundo eles precisam ser feitas. Do mesmo modo, ouvimos muitas vezes que a ordem na poltica internacional deve estar subordinada liberdade. A coligao anti-napolenica, por exemplo, era considerada um agente da luta pela liberdade das naes europias contra um sistema que proporcionava ordem mas extinguia essa liberdade e hoje se diz, muitas vezes, que dentro das esferas de influncia americana e sovitica a ordem imposta s custas da liberdade ou da independncia dos pequenos estados. Portanto, falar sobre a ordem como um valor supremo seria escamotear a questo do seu relacionamento com outros valores, o que no pretendo fazer. Um exame da justia na poltica mundial, que poderia ser considerado um volume complementar a este, proporcionaria perspectivas muito diferentes das aqui adotadas. No ignoro essas perspectivas, nem as rejeito, mas no estou empenhado em estudar a justia, e sim a ordem na poltica mundial. Ao longo deste estudo no deixo de considerar o modo como essa ordem se relaciona com as exigncias de justia, e examino tambm a medida que as exigncias de certas mudanas justas precisam ser satisfeitas para que se chegue ordem, mas essas incurses na teoria da justia s so feitas porque so essenciais ao tratamento da ordem em si mesma.

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Em terceiro lugar, procurei limitar minha investigao aos temas permanentes da estrutura poltica e suas instituies, evitando considerar os atuais temas substantivos da poltica mundial. Diz-se freqentemente, s vezes de forma correta, que a perspectiva da ordem mundial depende da soluo de certas questes substantivas da atualidade, como controlar as armas nucleares estratgicas, o nascimento da dtente entre os Estados Unidos e a Unio Sovitica, conter o conflito entre os rabes e Israel, escapar da depresso mundial, reformar o sistema monetrio internacional, controlar o crescimento demogrfico no mundo, ou ainda redistribuir o estoque mundial de alimentos. No entanto, quaisquer que sejam os temas substantivos da atualidade, na discusso desses temas, no contexto da estrutura poltica mundial existente, e no seu relacionamento com essa estrutura poltica ou suas alternativas, que precisamos buscar respostas s trs questes fundamentais sobre a ordem mundial propostas inicialmente. Em quarto lugar, a abordagem desenvolvida aqui sobre a ordem na poltica mundial no enfatiza primordialmente o direito e a organizao internacional e, na verdade, considera que essa ordem pode existir e tem existido de forma independente. Para que seja mantida, a ordem depende de normas e, no sistema internacional moderno (em contraste com alguns outros sistemas internacionais), um fator importante na manuteno da ordem tem sido a existncia de regras que tm a condio de lei internacional. No entanto, para explicar a existncia da ordem internacional precisamos levar em conta a funo de normas que no tm essa caracterstica. Precisamos admitir que tem havido no passado e podero existir no futuro formas de ordem internacional sem as regras do Direito Internacional. Na minha opinio, uma das falhas do modo como vemos hoje a poltica mundial o fato

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de que no rene sob um foco comum as regras de ordem ou coexistncia que podem ser derivadas do direito internacional e as que pertencem esfera da poltica internacional. Da mesma forma, a abordagem que adotamos no atribui uma nfase importante aos organismos internacionais como por exemplo s Naes Unidas e suas agncias especializadas e s vrias organizaes regionais. Naturalmente, essas instituies desempenham um papel importante na manuteno da ordem na poltica mundial contempornea, mas para encontrarmos as causas fundamentais dessa ordem devemos busc-las no na Liga das Naes, nas Naes Unidas ou rgos anlogos, mas em instituies da sociedade internacional surgidas antes da criao dessas organizaes internacionais e que continuariam a funcionar (embora de maneira diferente) mesmo se tais organizaes no existiram formalmente. At mesmo o papel desempenhado de fato pelas Naes Unidas e outras organizaes internacionais ser melhor compreendido no em termos das suas aspiraes e dos seus objetivos oficiais, ou das esperanas comumente nelas depositadas, mas em termos da contribuio que essas organizaes proporcionam s instituies mais fundamentais. Por isso as referncias s Naes Unidas e rgos semelhantes constam dos captulos relativos ao equilbrio do poder, ao direito internacional, diplomacia, ao papel das grandes potncias e guerra. Estas so, na verdade, as instituies efetivas da sociedade internacional. A Liga das Naes e as Naes Unidas devem, antes, ser consideradas como pseudo-instituies, como j as qualificou Martin Wight. Fui tambm influenciado pelo sentimento de que, devido grande massa de documentao que produz, a ONU tem sido estudada

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excessivamente, o que tende a desviar a ateno dos pesquisadores de fontes da ordem internacional que so mais fundamentais. Finalmente, meu objetivo ao escrever este livro, no prescrever solues ou analisar os mritos de qualquer viso particular da ordem mundial, ou de qualquer abordagem em especial que possa levar a essa ordem. Meu objetivo, pelo menos meu objetivo consciente, puramente intelectual: estudar o tema e segui-lo at onde ele possa levar. Naturalmente, no pretendo sugerir uma idia absurda como a de que este estudo est livre de valores. Seria impossvel redigir um trabalho deste tipo que no derivasse de alguma ordem de premissas morais e polticas se isso fosse possvel, este seria um trabalho estril. O que importante, em uma anlise acadmica da poltica mundial, no a excluso de todas as premissas de valor, mas a sua sujeio investigao e crtica, levantando os temas morais e polticos como parte da investigao. No tenho qualidades melhores do que outros para ser neutro com relao a um assunto como este, mas acredito no valor de tentar ser neutro, livre de preconceitos, e est claro que certas abordagens no estudo da poltica mundial so mais livres e desinteressados do que outras. Acredito tambm que o processo de investigao tem moralidade prpria e so, necessariamente, subversivas em relao s instituies e aos movimentos polticos de todas as categorias, sejam eles bons ou maus.