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1 Bruno Tolentino

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Bruno Tolentino

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Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino (Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1940 — São Paulo, 27 de junho de 2007) foi um poeta brasileiro. Nascido numa tradicional e rica família carioca, conviveu desde criança com intelectuais e escritores, entre eles Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Primo do crítico literário brasileiro Antonio Candido e da crítica teatral Bárbara Heliodora, seu avô foi conselheiro do Império e fundador da Caixa Econômica Federal. Nesse ambiente familiar, foi instruído em inglês e francês ao mesmo tempo de sua alfabetização no português. Publica em 1963 seu primeiro livro, "Anulação e outros reparos". Com o advento do golpe militar de 1964, muda-se para a Europa a convite do poeta Giuseppe Ungaretti, onde viverá 30 anos, tendo residido na Itália, Bélgica, Inglaterra e França. Foi professor de literatura nas universidades de Oxford, Essex e Bristol e tradutor-intérprete junto à Comunidade Econômica Européia. Publica em 1971, em língua francesa, o livro "Le vrai le vain" e, em 1979, em língua inglesa, "About the Hunt", ambos bem recebidos pela crítica literária européia. Sucedeu o poeta e amigo W. H. Auden na direção da revista literária Oxford Poetry Now. Em 1987, sob a acusação de porte de drogas, é condenado a 11 anos de prisão. Cumpriu apenas pouco mais de um ano da pena, em Dartmoor, no Reino Unido. "Adorei e procurei tirar o máximo de proveito", foi o que Bruno declarou sobre a experiência, numa entrevista em agosto de 2006. Aos companheiros de prisão, organizou aulas de alfabetização e de literatura, estas últimas nomeadas de "Seminars of Drama and Literature", que, conforme posteriormente relatado por Bruno, "em cujas sessões avançadas chegaram a comparecer psicanalistas de renome, ao lado de personalidades do mundo das Letras tais como Harold Carpenter, o estudioso e biógrafo de Pound e Auden, o dramaturgo Harold Pinter, ou Lady Antonia Fraser". Tolentino retorna ao Brasil em 1993, publicando, no ano seguinte, o livro "As horas de Katharina", escrito durante o período de 22 anos (1971-1993), ganhando com ele o Prêmio Jabuti de melhor livro de poesia. Em 1995, publica "Os Sapos de Ontem", uma coletânea de textos, artigos e poemas originados de uma polêmica intelectual com os irmãos Haroldo de Campos e Augusto de Campos, que nesse livro serão os principais alvos de sua "língua ferina entortada pelo vício da ironia", frase que Bruno usou durante uma entrevista em que lhe foi pedido "um perfil abrangente de si mesmo". Ainda em 1995 publica "Os Deuses de Hoje", e, em 1996, "A balada do cárcere", livro nascido da experiência de sua prisão pouco menos de dez anos antes. Ainda nesse ano, foi publicada uma polêmica entrevista com Bruno para a Revista Veja[4], onde o poeta critica, entre outras coisas, a atual situação intelectual do Brasil, o Concretismo, a concepção e aceitação da letra de música enquanto poesia e a elevação de músicos populares à posição do intelectual. Bruno irá publicar em 2002 e 2006, respectivamente, os livros que considerou como a culminação de sua obra poética: "O mundo como Idéia", escrito durante 40 anos (1959-1999), e "A imitação do amanhecer", escrito durante 25 anos (1979-2004). Ambos lhe renderam o Prêmio Jabuti, prêmio já alcançado em 1993 com "As horas de Katharina", tornando-o assim o único escritor a ganhar três edições do prêmio. Bruno também recebeu, por "O mundo como Idéia", o Prêmio Senador José Ermírio de Morais, prêmio nunca antes dado a um escritor, em sessão da Academia Brasileira de Letras, com saudação proferida pelo acadêmico, filósofo, poeta e teórico do Direito Miguel Reale, seu amigo. Tolentino, que tinha Aids e já havia superado um câncer, esteve internado durante um mês na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, onde veio a falecer, aos 66 anos de idade, vitimado por uma falência múltipla de órgãos, em 27 de junho de 2007. Sobre Bruno Tolentino Olavo de Carvalho Diário do Comércio (editorial), 04 de julho de 2007

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Quando em 1993 Bruno Tolentino retornou de um exílio voluntário de quase trinta anos na Inglaterra, sua obra poética – em três línguas -- estava completa. Só faltava dar-lhe uns últimos retoques, organizá-la em volumes e publicá-la. Vitorioso, seguro de si, reconhecido como igual pelos maiores -- W. H. Auden e Saint-John Perse entre outros --, o poeta já nada mais tinha a exigir da vida, ao menos para si mesmo. “Voltei para ensinar”, dizia. Era o que o Brasil mais precisava: alguém que o sacudisse de um torpor literário de três décadas, que lhe devolvesse o amor à grande arte da palavra, base de toda vida civilizada. -- Você vai ser o nosso Matthew Arnold, profetizei, pensando em “Culture and Anarchy” (1869), “The Study of Poetry” (1880) e outros ensaios nos quais tomara corpo, mais perfeitamente ainda do que nas obras e atitudes do Doutor Samuel Johnson, a figura bem anglo-saxônica do crítico literário como educador de um povo. Na época eu estava terminando de expor em classe a minha “Teoria dos Quatro Discursos”, na qual a “Poética” e a “Retórica” eram recolocadas no centro mesmo da filosofia aristotélica (portanto de toda a cultura ocidental). Uma de suas conclusões era a necessidade absoluta de começar toda educação -- científica inclusive -- pelo aprendizado da poesia. O senso do símbolo, da união mágica de som e sentido, era o princípio e fonte do conhecimento, e ele só se realizava na poesia – na arte literária em sentido pleno. E era claro que eu não pensava só na educação escolar, mas na educação do público em geral (do “cidadão”, como então eu ousava dizer, usando um termo ainda não banalizado e prostituído pelos programas partidários). O meio para isso não eram propriamente as escolas, mas a influência direta do educador através dos jornais, da TV, do rádio, de grupos de encontro, etc. Só um grande poeta que fosse ao mesmo tempo um show man poderia salvar o Brasil de afundar para sempre no poço da inépcia literária. Só que aí vinha a pergunta: Cadê o poeta? Nossos melhores escritores estavam octogenários, pendurados em balões de oxigênio. A geração seguinte, intoxicada de mitologia política tão fútil quanto vaidosa – para não mencionar a cocaína desconstrucionista --, perdera até mesmo o sentido elementar da qualidade literária. A vida que poderia ser levava todo o jeito de que não seria jamais. De repente, o anjo, sob a forma de uma mulher majestosamente bonita – Kátia Medeiros –, irrompeu na minha sala de aula trazendo pela mão a solução do problema. O homem falava pelos cotovelos, mas também ouvia com atenção – e, por instinto, sabia que estava ali para fazer o que era preciso fazer. “Voltei para ensinar” foi a frase mais reconfortante que ouvi naquele ano de 1993. Não sei quantas noites varamos analisando a situação, esboçando planos, recenseando meios e obstáculos, preparando a edição dos seus “Sapos de Ontem” – o primeiro tiro da longa batalha que esperávamos travar – e rindo até passar mal só de imaginar a carantonha dos Campos, das Chauís, dos Gianottis, dos Veríssimos, da alta hierarquia inteira da mediocridade nacional, quando vissem, pela primeira vez em suas pomposas vidas, alguém que não os levava nem um pouco a sério exceto como problemas de saúde pública. Quando reagiram como reagiram -- com um “manifesto de intelectuais”, tentando suprir pelo número de assinaturas a falta absoluta de respostas inteligentes --, olhamos um para o outro, contendo o riso, e concluímos em uníssono: “Pediram penico.” Nos meses seguintes, voltamos à carga, limpando o terreno, furando balões, cortando cabeças, fazendo um estrago dos diabos. Quando nossos adversários finalmente se calaram, achamos que então haveria espaço para o nosso projeto de reeducação literária nacional. Mas não contávamos com a malícia organizada. Vendo que não poderiam derrotar o poeta, resolveram assimilá-lo, digeri-lo, diluí-lo e neutralizá-lo. Nos anos que se seguiram, cumularam-no

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de prêmios, de homenagens, de agrados, de festinhas, de prazeres, – tudo sempre entremeado, é claro, de sussurros venenosos --, ao mesmo tempo que lhe sonegavam todos os meios de ação. Ao homem que deveria no mínimo dirigir um suplemento cultural, uma revista, uma instituição de ensino, não se deu sequer uma miserável coluna de jornal. Estendiam-lhe um troféu, um dinheirinho (sabiam que ele precisava), davam-lhe um tapinha nas costas, e o mandavam ir para casa escrever poesia. Mas ele não tinha mais poesia para escrever. Tinha uma missão a cumprir, que foi ficando cada vez mais longe, mais longe, até desaparecer no horizonte. Já cansado e doente, ainda tinha a bravura de marcar posição, quando o deixavam falar aqui ou ali, numa entrevista, numa palestra, numa roda de amigos. Mas sua voz nunca mais teve a presença, o volume, a autoridade pública dos primeiros momentos. O professor sem cátedra, o tribuno sem tribuna, o lutador sem ringue, o soldado sem armas, não morreu em batalha. Morreu de tanto esperar a chance de lutar. Sua vida não foi perdida, é claro. Sua obra poética atravessará os séculos. Ela é a mais esplêndida das vitórias, um testemunho vivo da soberania do espírito. No fim das contas, Bruno Tolentino não perdeu nada. Foi o Brasil que o perdeu e, com ele, se perdeu novamente a si mesmo.

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Por que escrevo (excerto) Bruno Tolentino Digamos que escrevo para tentar separar o mundo-como-tal do mundo-como-idéia. Claro? Bem, talvez tenha outras motivações menos conscientes, mas não tenho melhor justificativa para exercer um ofício tão perigoso... Imaginar-se autor parece-me tamanha petulância que desde que me entendo tento fingir que sirvo para alguma coisa! .............................................................. Isto posto, que se atente bem: poeta não é maître à penser e jamais pretendi que escavo e escrevo para tentar configurar mais uma teoria, antes o faço de modo a testemunhar de uma resistência a tentações desse tipo, de que tampouco fui poupado. Mas não complico mais a coisa: confesso ao leitor que não sei porque inventei de ser escritor. A não ser que o que ficou dito acima faça algum sentido... (Fragmento do encarte do CD O escritor por ele mesmo, Rio de Janeiro, Instituto Moreira Salles, 2001)

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O ESPECTRO Bruno Tolentino (A Ivan Junqueira) Não há como agarrar-te à natureza quando a asa da noite baixa e faz a sombra sobre a acha, a lenha presa à luz da labareda que a desfaz; morres despreparado ou morres bem, mas passas pela cinza, meu rapaz. Tudo talvez ressurja mais além, mas ao abutre, albatroz, águia ou condor o vôo acaba por pesar e tem que perder altitude no esplendor: dos páramos à esteira de uma nave estende-se a amplidão, mas sem repor fôlego a um coração até que a ave recolha a asa e pronto, se acabou, foi-se o que era tão doce! Tão suave levitou-se e mais nada lembra o vôo... Nada, nem mesmo a terra, eqüidistante do que caiu como do que voltou, com uma equanimidade impressionante. E caso a interpelassem que diria? Nada outra vez, ou menos que o ex-amante fingindo-se impassível se algum dia ouve dizer que tudo acaba assim. Pois foi assim que o espectro da poesia surgiu-me um belo dia, e veio a mim assim que eu consegui levar a sério os canteiros de Kant num jardim à beira Tâmisa, ante um cemitério... Lá estivera eu de mão no queixo a espanar as lombadas do mistério,

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seguindo a lógica ao seu belo fecho: afinal, se a equação mais arbitrária conseguiria amarrar a terra a um eixo, qualquer cogitação imaginária não seria nem mais nem menos frágil; divagações da hora solitária, arabescos da mente, sempre ágil ao fazer de um trapézio o seu lugar. Pois foi então que, assim como um presságio obriga a respirar mais devagar, mas faz bater mais forte o coração, eu primeiro senti aquele olhar antes de perceber a assombração que entre o rio, o junquilho e o malmequer vi caminhar em minha direção. Atônito, amparei-me a uma mulher, semidesfalecido: o encapotado era a cara do Charles Baudelaire do retrato, cuspido e escarrado! Ninguém via o que estava acontecendo, em toda aquela gente ali ao lado ninguém notava aquele rosto idêntico à corola da rosa corroída em que Blake encarnara o sofrimento. E lá vinha ele andando! Espavorida mas alerta, habilíssima colméia, a mente me exigia uma saída e, assim como o avestruz ante a alcatéia, insistia em não ver: não, não seria, não podia ser ele, era outra idéia a espumejar na velha alegoria dos nevoeiros que complicam Londres... Mas não havia erro! A ventania havia depenado tanto as frondes que atirava topázios e safiras contra o bueiro em brasas do horizonte,

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mas nele havia o ar dessas mentiras que dizem a verdade: confrontou-me e num rápido olhar deixou-me em tiras os trapos da razão – era o meu homem! Há múmias que uma vez desembrulhadas têm escrito na cara o nosso nome. Carros, ônibus, gente nas calçadas, um semáforo ao longe, vaga-lume estático entre sombras apressadas, e aquilo a se agitar que nem um cume de palmeira no ar – e andando, andando e desferindo o olhar como um perfume de gangrena fatal ensarilhando o eterno câncer da imaginação que desorbita a mente como um bando de morcegos agrava a escuridão. Por fim parou-me ao lado e imaginei ouvir (talvez sonhasse, talvez não...) um balbucio familiar e cheio de ecos aos que andamos pelo canto: “Andaste num vazio sempre alheio, entre noções apenas e, no entanto, nunca bastou sequer a consolar-te tanta fabulação cheia de espanto, de dor... Buscas o todo parte a parte, queres as perfeições da geometria, e ao fim do sonho circular da arte entregas tudo à fantasmagoria, aos jogos malabares da ilusão. Andas equivocado e nem seria de surpreender tua equivocação, porque, se alguma vez desconfiaste dessa imprudência, abriste o coração à luz conceitual, o belo traste que temes porque o adoras e te leva, como o refém que és do que adoraste,

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de lição em lição à mesma treva. É tudo sempre a treva tumultuosa, não por causa da carne, que se eleva quando quer à estação miraculosa, mas por causa do olhar que não quer ver e abisma-se em si mesmo, como a rosa amada pelo verme e sem poder de o recusar, tentando resignar-se. Não te resignes mais a conceber um triunfo de idéias, um disfarce para as caras da morte neste mundo, uma equação qualquer que a mascarasse, como o médico mente ao moribundo e o coitado a si mesmo: também eu meti-me com paixão nesse infecundo escrínio de ilusões, mas vem do céu a luz que nos sustém, a que alucina, a luz conceitual, nasce de um breu. Não sigas mais a falsa peregrina que rapta a imagem, rouba-lhe o reflexo e entrega os dois a um jogo que termina por desfazer de tudo a cada nexo. A terra é provisória e improvidente, tudo é relâmpago entre a morte e o sexo, mas a alma faminta não consente que lhe mintam! A Idéia te convida mas não recebe nunca e, de repente, entre a porta da entrada e a da saída perdes as proporções e logo a conta, o fio da meada e o dom da vida; fecha-se a última jaula e a fera tonta descobre que agoniza e morre presa. E no entanto repara: o cisne aponta

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para a altura cantando, e com certeza essa canção no extremo transfigura a coisa moritura e a alma surpresa entre o número, o nada e a noite escura... O ESPÍRITO DA LETRA Bruno Tolentino (Um poema de "A balada do cárcere") Ao pé da letra agora, em minha vida há a morte e uma mulher... E a letra dela, a primeira, me busca e me martela ouvido adentro a mesma despedida outra vez e outra vez, sempre espremida entre as vogais do amor... Mas como vê-la sem exumar uma vez mais a estrela que há anos-luz se esbate sem saída, sem prazo de morrer na luz que treme?! O mostro que eu matei deixou-me a marca suas pernas abertas ante a Parca aparecem-me em tudo: é a letra M a da Medusa que eu amei, a barca sem amarras, sem remos e sem leme... O ANJO ANUNCIADOR Bruno Tolentino — Ouve, Maria, a nossa (não, não te assustes!) é uma luminosa tarefa: retecer o pequeno clarão que abandonaram, o lume que anda oculto pela treva! Porque irás conceber! Porque a mão, desejosa e tosca, que O tentara

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reter, ainda que leve, desfez-se ao toque, assim como uma vez tocado o sopro se desfaz a avara, a dura contração do peito ansiado... Mas a haste, o jasmim despetalado, é tudo o que ainda resta dos canteiros do céu aqui na terra, que um seco vento cresta e uma longa agonia dilacera. No entanto a morte há de morrer se tu quiseres, ó gota concebida bendita entre as mulheres para que houvesse vida outra vez, e nascesse desse fundo obscuro do mundo, o ninho incompreensível do teu ventre. Não, não toques ainda nem a fímbria do manto nem o centro do mistério que anima a tua túnica: aguarda, ó muito séria, a ave mansa e recebe em teu corpo de criança a Verônica única, a enxurrada de pétalas te abrindo. Em tumulto reunidas, as cores da perdida Primavera vão retornar, virão numa enchente de asas, aluvião, púrpura, sempre-viva, nascitura estranheza do amor da criatura, constelação descendo ao rosto teu: é Ele, é O que reúne o coração e o grande anel da esfera, o fogo, a língua ardendo, o incêndio vivo, a coluna de luz, o capitel que se perdeu... Que eu venho anunciar apenas a um esquivo, humílimo veludo, a frágil chama que há de crescer em ti, que hás de ser cama ao parto do Perfeito, e hás de ser cântaro e fonte e ânfora e água, hás de ser lago em que as sombras se afogam, que naufragam no imenso, ó jovem branca como um lenço; hás de conter a lágrima

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do Infinito, o Seu vulto e os tumultos da luz na travessia entre a dádiva, a perda e a renúncia: quando de um certo dia cheio de luz amarga em que serás enfim a sombra esguia que O deu à luz e que O assistiu morrer... Atravessa, ó Maria, os abismos do ser, ouve este estranho anúncio e deixa-te invadir para colher, mais fundo que a razão e o corpo, o sopro cálido, o prenúncio da mais viva alegria: entreabre-te ao clarão da visita suave, mas terrível, terrível, deixa a ave do imenso sacrifício te ofender. Ó pétala intocada, hás de sofrer intensa madrugada e num lago de luz como afogada hás de durar suspensa entre a graça imortal e a dor imensa. Mas canta, canta agora como a fonte borbulha, como a agulha atravessa o bordado, canta como essa luz pousa ao teu lado e te penetra e tece a nova aurora, a nova Primavera e a tessitura do ramo que obedece e se oferece para o mistério e pela criatura. Canta a alucinação, o toque enfim possível dessa mão que há de colher para perder e ter o infinito que nasce do deserto e a semente que morre se socorre tudo o que no estertor tentava ser. Canta a canção do lírio e do alecrim, essa canção que és e que na treva, na escuridão da carne, andava perto da imensidade que te invade. E assim

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como o imenso te ampara, ó voz tão clara que consolas e elevas, vem, desperta, matriz da eternidade e d'O sem-fim, ó mãe de Deus, canta e roga por mim

Os falcões Bruno Tolentino Dizem-me: “deixa estar, deles ainda te lembrarás, porque assim é a vida: agora as trevas, a asa de ouro finda; erras ao espantar-te que, vencido, caia cada falcão da sua altura_” O sonho que sonhei com o infinito era promessa então – cada loucura a cada altura me será tolhida, tudo é mortal demais, o que eu sei bem. Contudo aquele jovem os levava no coração bem postos, eram lava e vulcão, e ninguém, e nada vem dividir-nos, a mim e aos falcões meus. Nunca mais aprendi a dar adeus.

A opinião de Sileno Bruno Tolentino “Estranho inseto esse, chamam-no, ao que parece, homem, pessoa ... Passa como quem quer voltar, ave de arribação, mas que arrastasse pedaços sem valia , como à cata

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de algum modo de uni-los, dar-lhes forma ou voz, talvez. No eco para às vezes um pouco, conhecendo, incapaz de salvar. Não tem um rosto, tem mil cintilações e uma garganta incompreensível, que escurece, e sempre mais relutante. Cai, e não raro tão perto que chega a parecer conciliado; não tarda muito a recobrar o rictus que o põe aquém das coisas, muro sob heras secas. E continua a cavalgada em círculos que não completa nunca. Como os troncos mais duros buscam leito, assim deita-se ele, mas sem força, vazio de fragor e alheio à terra. De um murmúrio sombrio ficam folhas novas, iguais às outras, limando o velho sol. Que nunca inteira se apaga a chama escura.

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Mas por que me interrogas sobre o bicho estrangeiro irmão dos Fados, como se dele eu visse mais do que a dor que o cega ou a loucura que o ordena e vai cumprindo ...?”

O Mundo como ideia (fragmentos) Bruno Tolentino 1 Canto, filho da luz da zona ardente, coisas que vi a luz, sempre estrangeira, tecer no ar e inevitavelmente ir baixando com modos de redeira ao tear deste mundo. A vida inteira vi me escapar a luz do sol cadente, e é essa rosa de sangue na fogueira que agora arranco às dúvidas da mente. Mente o intelecto que se esquece dela. Se a pura luz de leste se desdiz, a cada ocaso há no final feliz dos números da mente a bagatela de uma luz de mentira. Contra ela fui tecendo este canto de aprendiz.

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2 Canto o que amo e amo o que é mortal. A luz que se debate ao horizonte, a frágil mariposa cor de fonte que é todo o nosso bem e imita um mal, nossa doce enfermeira terminal empalidece, cai por trás de um monte, e a mente sem demora baixa a ponte e faz entrar a luz conceitual. Canto para contar daquele instante quando o que mais amamos chega ao fim e um belo simulacro delirante usurpa-lhe o lugar; quando é assim que a arte desfaz da luz agonizante, convence a muitos, não comove a mim. 3 Não contai a ninguém que não vos creia o quanto a luz padece; baste apenas com colher um coral solto na areia e confiá-lo a um par de mãos morenas, ou alvas como as pérolas e as penas

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da pomba vesperal à lua cheia; observai-as, como a manuseia, como o desfaz, e meditai nas cenas que outras mãos igualmente minerais teceram, tentadoras, tela a tela, mas a distâncias como a alturas tais que tudo quanto sofre se rebela: a pior traição é a que se faz quem vendo a luz sangrar fecha a janela. ............................................................ 18 Porque a mão que pintou La Derelitta na cena mais cruel do Quattrocento sabia o quanto vale o pensamento à luz das chagas que um pincel imita. Não tratara de pária ou parasita a dor da criatura: ao sofrimento, a uma luz de verdade e de visita aos charcos deste mundo purulento, o pintor da Beleza, ali, naquela antiplatônica, ansiosa tela,

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dava enfim estatutos de nobreza; clamava assim um mundo de verdade no qual envelhecer, em que a certeza de morrer não traísse a luz da tarde.

"Ao Divino Assassino" Bruno Tolentino (Uma Litania ante o Sagrado Coração, concebida em Paray-le-Maunial, à época do acidente fatal de Anecy Rocha, sua namorada de 1959-1960, irmã de Glauber Rocha e que faleceu tragicamente num poço de elevador, aos 35 anos.) Senhor, Senhor, o Teu anjo terrível é sempre assim? Não tens um refratário à hora do massacre — um mais sensível que atrasasse o relógio, o calendário? Ao que parece a todos tanto faz por quem o sino dói no campanário. Começa a amanhecer e uma vez mais rebelo-me, mas sei que a minha vida não tem como ou porque voltar atrás. Aceito que a mais dura despedida é bem mais que metáfora do nada a que se inclina no chão; que uma ferida e a papoula sangrenta da alvorada pertencem ao mundo sobrenatural tanto quanto uma lágrima enxugada à beira de um caixão. Mas afinal, Senhor, amas ou não a humanidade? Não fui ao escandaloso funeral

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e imaginá-la em Tua eternidade dói demais! Vou passar mais este teste, sim, mas protesto contra a insanidade com que arrancas a muque o que nos deste! Tu sabes que a soberba da família era maior que a dela e eu tinha a peste — pai e mãe apartavam-me da filha e o irmãozão nem... E hoje, coitados, como hão de estar? Aqui é a maravilha, as genuflexões.... Os potentados e os humildes, a nata da esperança, todos chegam por cá meio esfolados, sangrando como a luz. Não só da França, toda a Europa rasteja até aqui esfolando os joelhos, não se cansa de ensangüentar-se até chegar a Ti, e ao menos a um pixote do Além Tejo restituíste a vista: eu quando o vi solucei — mas que o cego e o paraplégico saiam aos pinotes, que o Teu coração se escancare e esparrame um privilégio aqui e outro acolá na multidão, só me faz perguntar: E ela? E ela...? Não consigo entender que a um aleijão concedas tanto enquanto a uma camélia Tu deixas despencar.... Porque, Senhor? Olho tudo do vão de uma janela, mas vejo a porta de um elevador escancarar-se sobre um outro vão, um vão sem chão... E a seja lá quem for aqui absurdamente dás a mão! Me pões trêmulo, gago, estupefato, pasmo, Senhor — mas consolado não. A mesma mão que fez gato e sapato da minha doce Musa, cura e guia, cancela as entrelinhas do contrato,

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Dominus dixit... Mas quem merecia mais do que uma açucena matinal um manso desfolhar-se ao fim do dia, quem mais do que uma flor, Senhor? Igual nunca se viu nem mesmo entre os crisântemos, tinha direito a um fim mais natural, à morte numa cama, em casa ao menos... Mas não — tinha que ser total o escândalo! Por que, se nem nos circos mais extremos Teus mártires andaram despencando sobre os leões, se nem o lixo cai de oito andares aos trancos, Santo Vândalo?! Não vim denunciar o Filho ao Pai ou o Pai ao Filho, não vim dar razão aos que recusam e usam cada ai contra a humildade; vim porque a Paixão me chamou pelo nome a a alma obedece e aceita suar sangue — como não? Mas não sei mais unir o rogo à prece do que a elegia ao hino de louvor, não seu amar-Te assim... Caso soubesse teria que ficar aqui, Senhor, aqui, arrebentando-me os joelhos, esfolando-me todo ante um amor que vai tornando sempre mais vermelhos, mais duros os degraus do Teu altar. Tu, que tudo consertas, dos artelhos que desentortas e repões a andar até às pupilas mortas de um garoto, do cachoupinho que me fez chorar; Tu, que a este lhe dás a flor no broto e àquele o lírio pútrido do pus; Tu, que passas por um de quatro e a um outro

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pegas no colo e entregas a Jesus; Tu que fazes jorrar da rocha fria; Tu que metaforizas Tua luz ao ponto de fazer de uma agonia um puro horror ou a morna mansuetude — que hás de fazer, Senhor, comigo um dia? Quando eu agonizar, boiar no açude das lágrimas sem fundo... Quando a fonte cessar de soluçar e uma altitude imerecida me enxugar a fronte... Como há de ser, Senhor? Oxalá queiras que a mim me embale a barca de Caronte, como o fazia a velha Cantareira, o azul da travessia... A Irrecorrível arrasta a cada um de uma maneira e a quem quer que se abeire ao invisível recordas a promessa: aquele a escuta e este a recusa porque a dor é horrível, mas, se a todos a última permuta terá sempre o sabor da anulação, o travo lacrimoso da cicuta, a ela Tu negaste o próprio chão, deixaste-a abrir a porta sem querer! Nunca falou na morte, e com razão, intuía, quem sabe, o que ia ver... Sentença Tua? Em nome da promessa não há negar Teu duro amanhecer — mas quando arrancas mais uma cabeça como saber que és Tu, que não mentia O que ressuscitou? Talvez na pressa, no pânico de Pedro, eu negue um dia e trate de escapar, mas hoje não; hoje sofro com fé e, sem poesia, metrifico uma dor sem solução, mas não vim negar nada! Faz efeito essa dor: faz sangrar, mas faz questão

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de defender-me como um parapeito contra a queda e a revolta... Um Botticelli despedaçou-se todo, mas que jeito, se por Lear enforcam uma Cordélia e encarceram a Ariel por Calibã...? Alvorece, a manhã beata velha enfia agulhas no Teu céu de lã, antenas às Tuas cenas de TV, e eu penso, ela morreu... Hoje, amanhã, enquanto Te aprouver e até que dê a palma ao prego e o último verso à traça, vai doer — mas Amém! Não há porque amar a morte, mas que venha a Taça, aceito suar sangue até o final, como não... Tudo dói, menos a graça, mata, Senhor, que a morte não faz mal! Do livro: Anulação e Outros Reparos, 1963

Os deuses de hoje Bruno Tolentino “Nihil obstat” II É preciso que a música aparente no vaso harmonizado pelo oleiro seja perfeitamente consistente com o gesto interior, seu companheiro e fazedor. O vaso encerra o cheiro e os ritmos da terra e da semente porque antes de ser forma foi primeiro humildade de barro paciente.

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Deus, que concebe o cântaro e o separa da argila lentamente, foi fazendo do meu aprendizado o Seu compêndio de opacidades cada vez mais claras, e com silêncios sempre mais esplêndidos foi limando, aguçando o que escutara. (1995) Protegido pela Lei do Direito Autoral LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998 Permitido o uso apenas para fins educacionais. Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, modificado e que as informações sejam mantidas.