[bruno cardoso] olhares mediados_ videovigilância no espaço público e videovoyeurimo no...

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 1 Olhares mediados: videovigilância no espaço público e videovoyeurismo no ciberespaço Bruno de Vasconcelos Cardoso    Doutor   IFCS/UFRJ Resumo: Através das imagens do YouTube, e de sua constituição como uma plataforma participativa em constante (re)criação, realizo uma discussão sobre as imagens r essignificadas de videovigilância expostas no site e suas possíveis apropriações voyeurísticas, através de um agenciamento sócio- técnico que chamei "voyeur digital". Comparo-as, assim como as interações que agregam e  provocam, com o trabalho de campo que realizei na central de câmeras do 19º BPM, em Copacabana, Rio de Janeiro, junto aos "vigilantes eletrônicos". Por meio desse exercício, reflito sobre a relação entre homens e máquinas que compõe a tecnologia digital, assim como o imaginário que o acompanha, em particular no que diz respeito às relações de poder oriundas dessas relações em rede, entre e através de humanos e objetos tecnológicos. É também  problematizada a questão de realizar trabalho de campo em u m lócus no ciberespaço, que t em dentre suas principais características a mutabilidade, a hipertextualidade e a superabundância de informações, tentando-se pensar maneiras textuais de lidar com as peculiaridades etnográficas envolvidas nesse esforço antropológico. Palavras-chave: videovigilância; relações sócio-técnicas; controle social; voyeurismo; ciberespaço; imagem  Alhos e bugalhos O presente trabalho consiste em uma reflexão comparativa entre dois contextos do olhar característicos da contemporaneidade, pesquisados em processos desiguais de inserção no campo. Por essa razão, devem ser tomados alguns cuidados essenciais com os materiais tratados, sendo o primeiro deles a explicitação dessa diferença, assim como das maneiras com que se pretende lidar com as informações, a fim de minimizar a influência dessa diversidade sobre as idéias aqui expostas. E, medida de grande importância, é preciso se despedir de ambições por demais generalizantes ou tratadísticas: qualquer comparação entre processos etnográficos tão díspares deve se concentrar em apenas alguns aspectos de cada um deles, aqueles que os aproximam. Análises holísticas sobre sistemas ou estruturas das práticas ou universos pesquisados estariam, como se diz, comparando alhos com bugalhos.  O primeiro desses processos etnográficos é o “clássico”, no qual o antropólogo se insere no ambiente a ser estudado, interage, observa, questiona, perscruta “seus nativos”, amparado pela “autoridade etnográfica” 1  a ele conferida pelo diploma universitário, pelo saber antropológico que personifica 2 , e foi realizado em salas da 1  Para as discussões às quais me refiro ao usar o termo “autoridade etnográfica” ver, especialmente, Clifford Geertz (2005) e James Clifford (2002). 2  Numa questão que depende mais de “legitimidade” institucional do que de “conhecimento” propriamente dito.  

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    Olhares mediados: videovigilncia no espao pblico e videovoyeurismo

    no ciberespao

    Bruno de Vasconcelos Cardoso Doutor IFCS/UFRJ

    Resumo:

    Atravs das imagens do YouTube, e de sua constituio como uma plataforma participativa em

    constante (re)criao, realizo uma discusso sobre as imagens ressignificadas de videovigilncia expostas no site e suas possveis apropriaes voyeursticas, atravs de um agenciamento scio-

    tcnico que chamei "voyeur digital". Comparo-as, assim como as interaes que agregam e

    provocam, com o trabalho de campo que realizei na central de cmeras do 19 BPM, em Copacabana, Rio de Janeiro, junto aos "vigilantes eletrnicos". Por meio desse exerccio, reflito

    sobre a relao entre homens e mquinas que compe a tecnologia digital, assim como o

    imaginrio que o acompanha, em particular no que diz respeito s relaes de poder oriundas

    dessas relaes em rede, entre e atravs de humanos e objetos tecnolgicos. tambm problematizada a questo de realizar trabalho de campo em um lcus no ciberespao, que tem

    dentre suas principais caractersticas a mutabilidade, a hipertextualidade e a superabundncia de

    informaes, tentando-se pensar maneiras textuais de lidar com as peculiaridades etnogrficas envolvidas nesse esforo antropolgico.

    Palavras-chave: videovigilncia; relaes scio-tcnicas; controle social; voyeurismo; ciberespao; imagem

    Alhos e bugalhos

    O presente trabalho consiste em uma reflexo comparativa entre dois contextos

    do olhar caractersticos da contemporaneidade, pesquisados em processos desiguais de

    insero no campo. Por essa razo, devem ser tomados alguns cuidados essenciais com

    os materiais tratados, sendo o primeiro deles a explicitao dessa diferena, assim como

    das maneiras com que se pretende lidar com as informaes, a fim de minimizar a

    influncia dessa diversidade sobre as idias aqui expostas. E, medida de grande

    importncia, preciso se despedir de ambies por demais generalizantes ou

    tratadsticas: qualquer comparao entre processos etnogrficos to dspares deve se

    concentrar em apenas alguns aspectos de cada um deles, aqueles que os aproximam.

    Anlises holsticas sobre sistemas ou estruturas das prticas ou universos pesquisados

    estariam, como se diz, comparando alhos com bugalhos.

    O primeiro desses processos etnogrficos o clssico, no qual o antroplogo

    se insere no ambiente a ser estudado, interage, observa, questiona, perscruta seus

    nativos, amparado pela autoridade etnogrfica1 a ele conferida pelo diploma

    universitrio, pelo saber antropolgico que personifica2, e foi realizado em salas da

    1 Para as discusses s quais me refiro ao usar o termo autoridade etnogrfica ver, especialmente, Clifford Geertz (2005) e James Clifford (2002). 2 Numa questo que depende mais de legitimidade institucional do que de conhecimento propriamente dito.

  • 2

    Polcia Militar do Rio de Janeiro onde eram observadas as imagens da videovigilncia

    oficial nos espaos pblicos da cidade (na central coordenadora das cmeras de toda a

    regio metropolitana) e no batalho (19) responsvel pelo policiamento nos bairros de

    Copacabana e Leme. O segundo processo, um pouco menos ortodoxo e com

    preocupaes diferentes, no qual uma figura hbrida, o etngrafo-nativo, j inserido no

    ambiente a ser estudado, interage, observa, questiona, perscruta seus co-nativos, co-

    antroplogos (Viveiros de Castro, 2002) e co-observadores (Maturana, 1997),

    amparado pela conjugao de sua experincia prtica e saber antropolgico. Uma

    observao participante, mas principalmente uma participao observante, tratando de

    imagens de videovoyeurismos reapropriadas e expostas atravs do YouTube, atualmente

    a maior plataforma de compartilhamento de vdeos na Internet.

    O principal fator em comum entre os dois processos etnogrficos que tratam

    de relaes que eu estabelecia, principalmente, com trs elementos: pessoas,

    computadores e cmeras. Em ambos os contextos, eles estavam presentes de modo

    imbricado, embora em graus diferentes e criando hbridos (Latour, 2005) a cada vez

    especficos. Outro importante fator de convergncia, que eram atravessados pela

    tecnologia digital de captao e transmisso de dados (no caso, imagens), onipresente

    e responsvel pela juno dos trs elementos em questo em agenciamentos scio-

    tcnicos (Callon, 2003), redes materialmente heterogneas de humanos e no-humanos,

    que constituem algumas formas do que poderamos chamar de videovigilncias da

    contemporaneidade. E cada uma dessas redes peculiar, no apenas em funo do

    contexto em que est inserido e que por sua vez ajuda a moldar -, mas tambm de

    acordo com as caractersticas dos humanos que as compem, todos diferentes entre si.

    Assim, nunca se deve pensar em termos de fixidez desses agenciamentos scio-

    tcnicos, ou dos contextos nos quais estavam inseridos e faziam parte: ambos,

    agenciamentos e contextos, esto em constante mudana e transformao, vo se

    autoconformando mtua e constantemente.

    Os pedaos nas redes no esto dados na ordem das coisas. Pelo contrrio, eles

    so efeitos relacionais. Isso significa que sua forma, seu contedo e suas propriedades no so fixos. Antes disso, sua identidade emerge e muda no curso da interao. A lio metodolgica essa: objetos como, por exemplo, pessoas e textos so processos de transformao, compromisso e negociao (Callon & Law, 1997: 171).

  • 3

    Inevitvel polissemia

    No se pode ignorar o problema intrnseco de uma reflexo sobre imagens

    baseada apenas em palavras e linguagem escrita. Como lembra Debray3, no h

    traduo possvel (ou certa) entre as duas formas de comunicao, por mais que os

    esforos nesse sentido nunca sejam mal-vindos e com freqncia produzam ricos

    resultados reflexivos. No intuito de minimizar, mesmo que de modo incompleto, essa

    intradutibilidade, valho-me das possibilidades tecnolgicas que estudo e a respeito das

    quais discorro repetidamente ao longo das pginas que se seguem. Sempre que me

    pareceu possvel e proveitoso para a discusso, indico atravs de um link na nota de

    rodap um vdeo, do YouTube. E sobre eles, preciso fazer importante ressalva. Esses

    links no compem o presente texto apenas de forma ilustrativa, mas - ao menos era

    essa minha pretenso - como importante componente da narrativa, um modo no de

    exemplificar o que dizia atravs da escrita, mas um convite reflexo em conjunto, a

    ambio de trazer parte do material de estudo para o contato direto com o leitor, a fim

    de que uma parcela do sentido do texto seja construda atravs dessa relao. Alm da

    intraduzibilidade da imagem em palavras, outra caracterstica do recurso narrativo que

    uso me obriga a buscar um tratamento mais abertamente polissmico da parte imagtica

    do presente trabalho. Uma questo mais prtica do que epistemolgica...

    Boa parte do material etnogrfico que transformado em texto est

    domesticado pelo etngrafo: retirado do seu contexto de origem, pensado,

    analisado e, aps esse processo, imortalizado em texto escrito, virtualmente em luz e

    cristal lquido ou de forma material, em papel. A mediao entre o que foi observado

    e aquilo que foi redigido provoca o congelamento de um momento ou de uma relao na

    forma de texto. Um instante do devir, do constante vir a ser das relaes etnogrficas,

    captado a partir de um ponto de vista, que se torna oficial - e materializado em

    palavras. Faz parte do prprio processo de escrita, e difcil imaginar como, ou por que,

    evitar isso. Assim acontece tambm no presente trabalho, ou melhor, na parte escrita do

    presente trabalho. Com sua parte imagtica ocorre um processo diferente. E no apenas

    por se tratar de imagens, pois uma foto ou um filme, por mais que, como disse Debray,

    possam ser muito mais polissmicos que um texto apenas escrito, tambm capturam um

    3 Uma imagem para sempre e definitivamente enigmtica, sem resposta correta possvel. Ela tem cinco bilhes de verses em potencial (tantas quanto so os seres humanos), logo nenhuma pode ter autoridade (a do autor no mais do que qualquer outra). Polissemia inesgotvel. No se pode fazer com que um texto diga aquilo que se quer com que uma imagem, sim (Debray, 1992: 58-59).

  • 4

    ou uma seqncia de momentos e o fixam no texto, s que imagtico. E por mais que

    essas imagens possam dizer coisas a determinados leitores que escapem mesmo ao

    autor, este ao menos mantm ainda o domnio sobre o que escolheu, ou no, incluir na

    narrativa composta que construiu. As caractersticas das plataformas de

    compartilhamento de imagens como o YouTube, no entanto, impedem esse movimento

    de domesticao do material utilizado. Este, mesmo aps ser anexado ao texto,

    continua se modificando, se recriando de forma incontrolvel e imprevisvel, pois

    eminentemente aberta e coletiva. Estar em constante transformao uma das mais

    interessantes, marcantes e inovadoras caractersticas dessa forma contempornea de

    criar e circular imagens. E estas no esto ali sozinhas, mas formando uma composio

    com diversos outros elementos, sejam links, comentrios, avaliaes ou mashups4,

    criaes que utilizam a prpria imagem de origem como uma das matrias primas do

    produto audiovisual final. Cada atualizao dos links inclusos pode trazer (e

    provavelmente trar) um texto diferente, em decorrncia da interveno constante de

    usurios desses sites na apresentao das imagens um comentrio pode provocar

    transformaes significativas na experincia da visualizao das imagens.

    Atravs dessa parte do trabalho alocada fora dele prprio, no ciberespao (Lvy,

    1999), o domnio sobre o material se perde a tal ponto, que este pode simplesmente

    deixar de existir. Isso acontece com muitas das imagens e pginas do YouTube, que so

    retiradas do ar. A Internet funciona como grande depositrio de informaes, o que

    sem dvida traz de volta vida vrias imagens e cenas esquecidas, mas estas

    tambm podem, uma vez reavivadas, de um segundo ao outro, ser apagadas. As

    imagens em si obviamente continuaro existindo, e provavelmente podero ainda ser

    encontradas em outros pontos no ciberespao, porm no mais daquela forma

    especfica. A Internet , assim, um processo de (des)criao constante, as formas so

    fcil e intrinsecamente mutveis. E essa mutao cada vez menos causa desconforto e

    apreenso, e cada vez mais naturalizada. Ao invs de combat-la sem fim e sucesso

    possveis, aprende-se a lidar com ela, tirando proveito de seu modo de funcionamento

    inovador. Imagens sendo retiradas, na maior parte das vezes por censura relativa a sexo,

    violncia ou copyright, tambm um fato a ser considerado no trabalho, e ao reler a tese

    de Doutorado realizada a partir desses trabalhos de campo (Cardoso, 2010), poucos

    meses aps o incio de sua redao, alguns dos vdeos aqui indicados j haviam sido

    4 Mashup: arquivo digital que contm mais de um ou todos tipos de arquivos, criando uma nova obra derivada. Textos, desenhos, udio, vdeo etc. (Burgess & Green, 2009: 189).

  • 5

    retirados do ar, o que se um problema real, no chega a ser insolvel: muitos vdeos

    similares so produzidos e introduzidos nesses sites a cada dia, basta procurar, pelo

    ttulo ou palavras-chave, imagens semelhantes e substituir a que foi retirada.

    Big Brothers: imaginrios e representaes

    Tratar da vigilncia policial por cmeras em espaos pblicos, e das imagens de

    voyeurismo e exibicionismo produzidas de forma amadora e reproduzidas e vistas

    atravs da Internet, inegavelmente falar sobre o que talvez seja o principal mito

    contemporneo tangendo produo imagtica, o Big Brother. Mesmo se a referncia

    inicial a distopia orwelliana 1984, a idia h muito se descolou do personagem e do

    contexto original, passando por diferentes reapropriaes e reinterpretaes, num

    processo que alia as mudanas contextuais vontade de seguir utilizando a mesma

    metfora. A figura do Grande Irmo segue recorrente nos discursos contemporneos

    sobre vigilncia, dividida, principalmente, em dois aspectos distintos, um deles de

    referncia tambm voyeurstica.

    Smbolo do poder no romance publicado em 1948 (Orwell, 1979) como uma

    referncia explcita ao stalinismo, ento no auge do poder no ps-IIa

    Guerra Mundial, a

    figura do Big Brother, ou Grande Irmo, de 1984, a partir de ento passa a simbolizar o

    princpio da vigilncia, assim como a estruturar as representaes acerca desta. Orwell

    cria um personagem que unifica em si, radicalizando, as mais notveis categorias da

    sociedade disciplinar de que fala Foucault (2003), ao mesmo tempo em que passa a agir

    efetivamente nas idias posteriores sobre controle, vigilncia e, claro, videovigilncia. A

    denncia do totalitarismo e o tom eminentemente pessimista do livro pautam boa parte

    do medo e das estratgias adotadas pelos ativistas anti-vigilncia contemporneos.

    E Big Brother igualmente o ttulo do mais conhecido dos reality shows - criado

    pela empresa holandesa Endemol e logo vendido para canais de televiso do mundo

    inteiro no qual pessoas so confinadas em uma casa e filmadas por dezenas de

    cmeras 24 horas por dia. O que por sua vez tambm passa a ter agncia sobre o mundo

    estruturante e estruturado pela nova e poderosa significao de Big Brother, que em si j

    carrega elementos da figura orwelliana, ressignificada no contexto cultural e

    tecnolgico contemporneo, o qual tambm ajuda a criar e consolidar, atravs de uma

    massiva e entusiasmada audincia miditica. A agncia dessa obra de fico sobre as

    representaes posteriores da videovigilncia no de modo algum negligencivel, no

  • 6

    somente por influir diretamente na constituio do imaginrio em torno do assunto, mas

    tambm por criar expectativas que dificilmente teriam possibilidade de se

    concretizar5.

    Essas duas referncias ao Big Brother sob os aspectos do controle e do

    espetculo so de maneira contundente associadas aos temas que pesquisei no

    Doutorado, videovigilncia policial e videovoyeurismo digital. Se inicialmente cada um

    deles pode ser pensado especialmente sob um dos prismas o primeiro associado ao

    controle, e o segundo ao espetculo um acompanhamento mais cuidadoso mostra que

    essas duas caractersticas so de diferenciao bastante tnue, se que em contextos

    prticos podem ser diferenciadas. No YouTube, por exemplo, esto presentes muitos

    vdeos de denncia, seja de corrupo6, violncia

    7 ou desrespeito s leis

    8. Por outro

    lado, diante do elevado grau do fator tdio (Smith, 2004) inerente ao trabalho da

    videovigilncia, o surgimento de alguma cena passvel de interesse mesmo que no

    tenha nenhuma relao com a segurana pblica da cidade costumava provocar

    reaes animadas nos operadores de cmeras, que se divertiam tentando adivinhar o

    contedo daquelas cenas descontextualizadas que observavam de longe, como -

    exemplos que presenciei - pagodes no calado da praia, ou aglomerados de pessoas

    de manh cedo na porta de um botequim. Nos dois contextos se misturam elementos de

    vigilncia e tambm de voyeurismo, de controle e de espetculo, de denncia e de mera

    observao frugal da vida alheia. Os olhares no so purificados, e seu teor no pode ser

    delimitado pela funo do observador, ou por sua localizao: vigilante e voyeur no

    so tipos sociais, mas relaes constituintes de uma rede de atores materialmente

    heterogneos (observadores e observados, cmeras, Internet, softwares, computadores),

    que colaboram simultaneamente para construir, na prtica, essas redes (Law, 1992).

    Desta forma, preciso deixar bastante claro que videovigilante e videovoyeur, -

    ou simplesmente voyeur digital, termo que vinha utilizando em trabalhos anteriores9 -

    no so pessoas fsicas, como os operadores de cmeras da Secretaria de Segurana ou

    os usurios do YouTube. Entretanto, em determinados contextos a trabalho, por 5 Outra apropriao contempornea do famoso personagem de 1984 da qual, no entanto, no trataremos aqui - foi a criao, pelos fundadores da organizao Privacy International (http://www.privacyinternational.org/), em 1998, do

    Big Brother Awards (http://www.bigbrotherawards.org/), importante e conceituada premiao internacional atualmente ocorre em 16 pases onde so laureados os maiores promovedores e combatentes da vigilncia contempornea. 6 http://www.youtube.com/watch?v=U3DoHCx0TUw&feature=related (Prudente esconde dinheiro na meia). 7 http://www.youtube.com/watch?v=q6a_V2qUEDQ (Flagra Briga por causa de Discusso de trnsito acaba em pancadaria

    em Curitiba). 8 http://www.youtube.com/watch?v=f1ukwB_8tXE&feature=related (Aluno registra venda e consumo de maconha na Universidade Federal Rural de PE). 9 Cardoso (2009; 2010).

  • 7

    diverso ou ambas as coisas essas pessoas desenvolvem relaes que as tornam,

    enquanto estas durarem, videovigilantes e voyeurs digitais. Estando exposto esse

    pressuposto metodolgico, central para a discusso que se segue, de bom prstimo

    apresentar, de forma sucinta, o sistema de videovigilncia policial do Rio de Janeiro

    (especialmente nos bairros de Copacabana e do Leme), e aquilo que tratei como

    videovoyeurismo digital, no YouTube.

    Videovigilncia policial no Rio de Janeiro

    O sistema de cmeras de vigilncia (ou, como prefere o discurso oficial, de

    monitoramento10

    ) montado pela Secretaria de Segurana Pblica e pela Polcia Militar

    do Rio de Janeiro, tem, grosso modo, trs lugares principais de funcionamento: os

    pontos onde esto instaladas as cmeras, em diferentes locais da regio metropolitana;

    as salas de operaes, nos batalhes de polcia (BPMs), onde bombeiros e policiais

    reformados ou aposentados e recontratados por uma firma terceirizada desempenham a

    funo de operadores de cmeras de monitoramento; e no Centro de Comando e

    Controle (CCC), onde so reunidas as imagens das cmeras de todos os batalhes nos

    quais o sistema foi instalado, no intuito de fiscalizar o trabalho realizado neles.

    Em cada sala de operaes trabalham quatro operadores, cada um deles diante de

    um computador, onde atravs de um software (LiveViewer) tinham acesso s imagens e

    podiam movimentar as cmeras11

    espalhadas pela rea do batalho. Na bancada atrs da

    deles estavam dispostos policiais militares desempenhando a funo de despachadores,

    encarregados de receber as chamadas de voz12

    , e orientar atravs dessas informaes o

    trabalho dos operadores, assim como estabelecer a ligao entre estes e os policiais

    atuando nas ruas, com os quais deve ser feito contato em caso de alguma observao

    realizada atravs das cmeras demandar uma interveno. Para tanto os despachadores

    dispunham de um software interligado aos radiotransmissores dos agentes, cabines e

    viaturas. Estas podiam tambm, atravs desse mesmo programa de informtica, ser

    geolocalizadas, tornando a comunicao - em tese - mais eficiente. O trabalho de

    10 Tanto na central de cmeras (CCC Centro de Comando e Controle) quanto no 19 BPM, locais onde realizei trabalho de campo (mas imagino poder generalizar para o sistema de cmeras como um todo), o termo vigilncia no costumava ser utilizado, sendo preterido por monitoramento. Entretanto, a literatura sobre o assunto toda se baseia na categoria vigilncia, razo pela qual oscilo entre as duas categorias ao longo dos textos. 11 Eram, em mdia, dez cmeras por batalho, mas no 19 BPM, que freqentei durante alguns meses, funcionavam treze. 12 Que haviam deixado de ser chamadas telefnicas, pois chegavam atravs de um software de comunicao,

    instalados nos computadores com os quais trabalhavam.

  • 8

    monitoramento era realizado de forma mais incisiva nos batalhes, onde havia um

    nmero menor de cmeras e as imagens chegavam de forma um pouco menos

    superabundante (vale lembrar que o excesso de imagens talvez o maior desafio

    enfrentado pelos operadores).

    No CCC o trabalho consistia, basicamente, em fiscalizar o servio realizado nos

    BPMs. Como pude ir percebendo, para minha surpresa, essa fiscalizao concernia mais

    aquilo que no deveria ser visto do que o que os operadores deveriam estar olhando

    enquanto trabalhavam. Em Copacabana e no Leme, locais dos quais posso falar com

    maior propriedade, essa precauo visava impedir, majoritariamente, a observao de

    quatro situaes/locais: as favelas, mulheres em trajes de banho na praia, o interior dos

    apartamentos localizados no campo de viso de alguma cmera, e cenas de carter

    sexual (se os envolvidos estivessem agindo com discrio). A observao por longos

    perodos de paredes, postes, copas de rvores ou do cho, no parecia incomodar ou

    despertar a ateno dos operadores do CCC, soldados da PM encarregados de fiscalizar

    os operadores dos BPMs.

    Ao longo do trabalho etnogrfico, pude perceber que uma caracterstica

    marcante dessa organizao do sistema, especialmente no nvel do batalho no qual

    irei concentrar a anlise neste artigo -, que a comunicao com os policiais nas ruas, e

    o recebimento das informaes destes e da central de chamadas, se dava de maneira

    indireta passando sempre pelos despachadores -, criando o que chamei de

    fragmentao dos servios do observador. A possibilidade de realizarem o servio de

    monitoramento de diversos pontos do espao pblico, no interior de uma sala sem

    janelas num batalho de polcia, era oferecida por meios tecnolgicos que

    proporcionavam, em tempo real, mas de forma imperfeita, a transposio espacial de

    trs dos cinco sentidos, divididos entre operadores e despachadores: aos primeiros

    cabia a viso, e a esses ltimos a audio e a fala. Essa fragmentao tirava muito da

    dinmica do trabalho, alm de reduzir de modo significativo as situaes nas quais o

    monitoramento por cmeras gerava algum tipo de ao prtica por parte da polcia. Do

    operador at o agente na rua, o grande obstculo a ser transposto era a m-vontade, a

    preguia ou apenas a condescendncia pragmtica dos despachadores, que com

    freqncia desencorajavam o contato13

    .

    13 Aos operadores incomodava particularmente a relutncia dos despachadores em intervir em casos de consumo de maconha (isso no vai dar em nada mesmo, at chegar algum l j acabou, no tem mais flagrante, no adianta nada).

  • 9

    Dessa forma, o trabalho de videovigilncia era majoritariamente realizado em

    cima do que os operadores classificavam como olhar maldoso, modo de observar as

    ruas buscando sempre cenas suspeitas. Como pude notar, na maior parte das vezes a

    suspeio recaa sobre pessoas, mas tambm havia algumas situaes capazes de

    chamar especialmente a ateno dos videovigilantes. O olhar maldoso, como me

    explicaram em diferentes lugares, emergia da experincia profissional dos ex-

    bombeiros e ex-policiais que trabalhavam operando as cmeras, acostumados que

    estavam a trabalhar na rua e a reconhecer situaes de crime ou de perigo. Percebi logo

    que era tambm uma forma de se guiar minimamente - no fluxo incomensurvel de

    informaes que chegavam a eles atravs daquelas telas, captadas pelas cmeras de

    vigilncia nas ruas. Mecanismo que se sem dvidas tinha valor, tambm deve ser

    ressaltado que reproduzia velhos e conhecidos preconceitos ao visar como suspeitos os

    mesmos esteretipos de sempre (negros, moradores e menores de rua, catadores de

    lata etc.), indivduos vistos como potencialmente perigosos, ou criminosos, s a espera

    de uma oportunidade adequada para delinqir. Curiosamente, outro alvo constante do

    olhar maldoso, por razes inversas, eram os turistas, vistos como otrios, constantes

    vtimas em potencial.

    Videovoyeurismo digital no ciberespao

    Parte considervel da responsabilidade pela intensificao exponencial do fluxo

    de informaes imagticas em circulao cabe indstria de telefonia mvel e

    popularizao de aparelhos celulares com cmeras integradas14

    , e muitas vezes tambm

    com acesso Internet (que, devido a sua importncia e disseminao merece j a honra

    de um neologismo os camerafones). A produo e a difuso de imagens de forma

    amadora abastecem uma demanda que tambm cresce, sendo possibilitadas e se

    organizando atravs da Internet e da imprensa, e impulsionadas por uma revoluo

    tecnolgica. A combinao entre um aparelho de comunicao onipresente e de um

    meio de captao de imagens, alm de um bem-sucedido policresto15

    , tambm uma

    14 Segundo a Anatel (Agncia Nacional de Telecomunicaes), no Brasil eram usadas 7,37 (4,5) milhes de linhas mveis em 1998, passando a 46,37 milhes (26,2) em 2003, e atingindo 150,6 milhes em 2008. A proporo para cada 100 habitantes no mesmo perodo passa de 4,5 para 26,2 chegando por fim a 78,1 (fonte: http://www.anatel.gov.br/Portal/exibirPortalInternet.do#). No possvel, entretanto, saber quantos aparelhos com cmeras circulam no pas, mas provavelmente so algumas dezenas de milhes. 15 Policresto um instrumento de mltiplos usos, conceito muito caro aos utilitaristas ingleses, dentre os quais se destaca Jeremy Bentham, idealizador do Panptico (Bentham, 2000), mito de origem da videovigilncia e metfora

    usada por Foucault (2003) para a sociedade disciplinar: cada elemento benthamiano um n em que se entrecruzam

  • 10

    forte metfora de um tempo marcado pela intensa e constante transmisso de

    informaes de forma imageticamente saturada (Koskela, 2003).

    A vigilncia virtualmente16

    realizada atravs de todas essas cmeras portteis, de

    fato em muito pouco se assemelha quela praticada pelos sistemas de

    videomonitoramento. Muito pela descentralizao do olhar, o que a deixa muito mais

    incontrolvel, mas tambm por serem captadas de forma presencial, logo em situaes

    que permitem maior contextualizao das cenas e menor fragmentao dos sentidos do

    observador. Ao contrrio das cmeras da polcia, aquelas empunhadas por amadores

    pressupem a presena de uma testemunha, e as imagens que captam compem, com

    esse testemunho, uma narrativa, enquanto as cenas mudas e no presenciais das cmeras

    de vigilncia so a totalidade de uma narrativa a ser interpretada por cada observador,

    no contendo mais nenhum elemento em si. A circulao restrita das imagens da

    videovigilncia policial fazia com que fossem ainda mais dependentes da interpretao17

    e da capacidade de enxergar dos operadores, prejudicada pelas limitaes tcnicas e

    fsicas comuns aos da mesma faixa etria18

    . Ao mesmo tempo, a experincia

    profissional e o olhar maldoso dos ex-bombeiros e ex-policiais que trabalhavam no

    sistema de cmeras da Secretaria de Segurana Pblica, mais do que lhes dar a

    capacidade de perceber ou desvendar comportamentos criminosos, viciava o

    monitoramento, sempre zeloso dos mesmos crimes, sempre preocupado com os

    mesmos suspeitos19.

    A vigilncia atravs de cmeras amadoras e camerafones reverte o maior

    problema prtico enfrentado pelos operadores de videomonitoramento, a baixa taxa de

    humanos para cada um dos dispositivos tcnicos. A maior parte das cmeras de

    monitoramento passa a maioria do tempo gerando imagens que ningum est vendo20

    .

    Se logo ao se popularizar a videovigilncia passou a ser interpretada como um

    instrumento essencialmente panopcista, em relao proliferao de olhares trazida

    vrias redes. Toda causa tem ali vrios efeitos. Inversamente, cada efeito produzido por vrias causas. Cada pea da montagem um cruzamento de utilidades, atravessado por mltiplas cadeias causais (Miller, 2000: 82). 16 Uso aqui virtualidade no como o oposto de concretude ou materialidade, como se costuma usar ao falar de Internet, mas uma constante possibilidade de atualizao: no apenas as imagens filmadas, mas tambm aquelas que, pelas condies e locais onde ocorreram, eram potencialmente filmveis. 17 Produzida com recursos do repertrio cultural e simblico de cada observador: diferentes indivduos vem diferentes cenas. Isto se tornou bastante claro na interao com os operadores. No apenas divergiam as interpretaes, mas tambm as capacidades de enxergar determinadas coisas, tanto deles entre si como tambm a minha em relao a eles. 18 Especialmente uma deteriorao da viso, sentido mais importante para o servio que realizavam. Os operadores (como j disse, ex-policiais e ex-bombeiros) tinham todos mais de sessenta anos, e alguns deles se aproximavam j dos oitenta. 19 Refiro-me a esteretipos semelhantes, e no aos mesmos indivduos, obviamente. 20 Aquilo que chamei de no-imagens (Cardoso, 2010).

  • 11

    pelas cmeras portteis, chegou se a falar de um omnicom (Groombridge, 2002),

    contexto no qual qualquer um pode vigiar qualquer um, a qualquer hora, em qualquer

    lugar. Ao contrrio das cmeras oficiais, onde a vigilncia a funo principal, as

    cmeras amadoras a tem apenas como uma potencialidade, uma virtualidade que, na

    maior parte das vezes, no atualizada. Entretanto, os agenciamentos scio-tcnicos

    formados por amadores e seus camerafones tm por caracterstica a produo de

    olhares descentralizados e imprevisveis, engajados ou passivos, compartilhando ou se

    apropriando particularmente das imagens que captam. Constituem o que chamo de

    videovoyeurismos, ou videovigilncias voyeursticas.

    A captao de som tambm confere carter diferencial s imagens captadas in

    loco, cmera(fone) em punho. E muitas so as possveis maneiras de agir dos vigilantes

    ocasionais, inclusive porque seus olhares so mais livres tambm, no restringidos por

    deliberaes superiores sobre o no-ver, como as que encontrei na videovigilncia

    policial. Esse olhar, embora tambm maldoso, o de forma mais heterognea, sujeito a

    uma mirade de diferentes maldades, que podem tomar as mais diversas formas.

    Dentre as diferenas entre os dois contextos, uma das principais que essas

    imagens captadas por amadores esto mais sujeitas a ser inseridas no crescente fluxo

    informacional e imagtico da Internet. E uma vez isso feito, elas se tornam

    independentes dos seus captadores e produtores, passando a circular no ciberespao,

    definido como o espao de comunicao aberto pela interconexo mundial dos

    computadores e pela memria dos computadores. (Lvy, 1999: 92). E ao serem

    atualizadas (vistas) por quem quer que seja atravs da Internet, no lugar que for,

    completam o fluxo do voyeurismo digital, constitudo por uma rede materialmente

    heterognea (Law, 1992) que vai da captao da imagem at sua visualizao, passando

    por pessoas, camerafones, Internet, servidores, softwares, sites, modems, computadores,

    at chegar a cada um dos voyeurs digitais, que, em casa, no trabalho, no telefone,

    assistem s cenas gravadas e compartilhadas

    Esses voyeurs digitais (no caso que trato aqui, os usurio do YouTube), contudo,

    diferente dos voyeurs clssicos, sempre olhando pelo buraco da fechadura ou por janelas

    e cortinas entreabertas, no precisam se esconder, nem se limitam a ver o que o acaso,

    ou a proximidade fsica, os permite. A tela do computador se torna um passaporte para

    milhes de fechaduras e janelas21

    , penetrando vestirios, cabine de roupas em lojas22

    ,

    21 http://www.youtube.com/watch?v=PvQLXoYkGpE (Show de vizinha (flagra da madruga)). 22 http://www.youtube.com/watch?v=pYjhFEqnSes&feature=related (gostosa trocando de roupa no provador parte 2).

  • 12

    alcovas onde cmeras escondidas gravam cenas da intimidade, seguindo pernas na rua23

    ,

    biqunis na praia, enfim, uma infinidade de situaes. At mesmo imagens extradas de

    cmeras de segurana24

    . O site rene, separa, classifica milhes de flagras da realidade,

    captados em imagens e disponibilizados para todos que quiserem ver.

    No YouTube

    Com o desenvolvimento progressivo da rede mundial de computadores, a

    possibilidade criada pela tecnologia digital e pela Internet de produo e

    compartilhamento de imagens em uma escala nunca antes vista foi sendo aprimorada

    atravs do trabalho interdependente e descentralizado de um sem nmero de

    desenvolvedores de softwares e plataformas digitais e de usurios desses recursos, mais

    ou menos conscientes e familiarizados com o que estavam realizando e com as

    possibilidades que abriam. O mais emblemtico e (at o momento) bem sucedido

    produto dessas relaes sem dvida o YouTube, que fundado em fevereiro de 2005,

    j contabilizava em abril de 2008 mais de 85 milhes de vdeos - cifras que no param

    de crescer exponencialmente -, sendo um dos dez sites mais visitados no mundo inteiro

    (Burgess & Green, 2009: 18).

    No que diz respeito particularmente s imagens de flagrante, outra diferena

    essencial entre os dois contextos sistemas de videovigilncia e Internet merece

    tambm destaque. Ao contrrio das imagens captadas pelas cmeras de monitoramento

    policiais, que s existem efetivamente na relao com o vigilante, na constituio do

    hbrido homem-cmera, no YouTube, os vdeos tm existncia assegurada. Ao serem

    carregados (ou uploadados), adquirem uma autonomia relativa, passando a no estar em

    nenhum lugar especfico, mas a estar potencialmente em qualquer lugar. So imagens j

    consolidadas, j captadas, vistas e transformadas em vdeos. Em sua maioria foram

    capturadas por pessoas munidas de cmeras, e no de cmeras fixas colocadas em

    determinados pontos a serem vigiados.

    Mediaes

    Apesar da nfase dada tecnologia nos discursos oficiais seja os destinados

    imprensa ou aos antroplogos -, como se a simples instalao dos meios tcnicos

    23 http://www.youtube.com/watch?v=m4oQuZk6Ll4 (Por baixo da saia). 24 http://www.youtube.com/watch?v=brCzpUfmjNg (Flagrantes de uma cidade vigiada).

  • 13

    proporcionasse o resultado prometido, no se faz um sistema de videovigilncia apenas

    com cmeras, computadores e a estrutura material que precisam para operar. O olhar e a

    percepo humanas no so meras formalidades. O vigilante eletrnico um

    agenciamento scio-tcnico (grosso modo operador-computador-cmera) que, por sua

    vez, parte constituinte de um agenciamento maior, o sistema de videomonitoramento,

    que pe em relao, de maneira no presencial, observador(es) e observado(s). Esse

    sistema depende da coordenao do trabalho de uma srie de mediadores rdios,

    telefones, policiais que recebem as chamadas, policiais nas ruas que acabam

    fragmentando tanto o monitoramento quanto, principalmente, os sentidos do vigilante.

    Da mesma forma, colocar nfase excessiva nas inovaes tecnolgicas da

    revoluo digital incorrer no mesmo erro de sobredeterminao tcnica que os

    paranicos e os apologistas da videovigilncia. Se a forma geral de uma sociedade em

    crescente interconexo e produzindo e circulando informaes de modo superabundante

    majoritariamente dada pelo aparato tecnolgico, o contedo que a preenche depende

    de fatores mais complexos e imateriais. Os meios tcnicos conferem a estrutura de

    troca, mas so fatores culturais que influenciam no que vai ser trocado. preciso deixar

    claro, mais uma vez, que os meios tcnicos so elementos culturais/sociais, e que a

    cultura constituda e moldada, tambm, por esses elementos25

    .

    A converso dessa estrutura material e tecnolgica virtualmente ou no em

    instrumentos de vigilncia, no pode ser atribuda de maneira integral apenas s

    possibilidades tcnicas. O desdobramento especfico que presenciamos no ocorreu de

    modo automtico e inapelvel, devendo muito de suas caractersticas ao background

    cultural sobre o qual se desenvolveu, utilizando-se de categorias de pensamento e ao

    que no foram criadas pela tecnologia. A idia da videovigilncia independe de sua

    realidade material, tanto que a precede (o 1984 de Orwell um bom exemplo disso) e,

    como pude verificar no campo, a suplanta em muito. A realidade material incorpora

    esse imaginrio, ao mesmo tempo em que o modifica: os camerafones s adquiriram

    contornos de instrumentos de vigilncia, porque a videovigilncia tornou-se parte do

    repertrio cultural contemporneo, como bem observa Groombridge (2002: 30), mas

    a partir de sua materialidade repetem, ressignificam e criam (novas) prticas,

    apropriaes e discursos sobre ela.

    25 (...) as mquinas so sociais antes de serem tcnicas. Ou melhor, h uma tecnologia humana antes de haver uma tecnologia material. Os efeitos desta atingem, certo, todo o campo social; mas, para que ela mesma seja possvel, preciso que os instrumentos, preciso que as mquinas materiais tenham sido primeiramente selecionadas por um

    diagrama, assumidas por agenciamentos (Deleuze, 1988: 49).

  • 14

    O videovoyeurismo parte desse processo, criando (ou reforando) uma viso

    sobre a videovigilncia baseada no flagrante, que so bastante raros e constituem

    apenas uma possibilidade remota da observao. A observao em geral

    extremamente entediante, saturada de cenas cotidianas, distantes e descontextualizadas,

    necessitando grande esforo de concentrao para despertar algum interesse ou

    conseguir manter a ateno dos operadores. Enquanto isso, na Internet no preciso

    muito esforo para termos em nossa frente flagrantes interessantes, seja de cunho

    policial, ertico ou apenas engraados. Ambos ocorrem atravs dos mesmos meios

    tcnicos cmeras, computadores, Internet e sua interao com humanos

    cinegrafista, voyeur digital, videovigilante -, entretanto do origem a diferentes

    agenciamentos.

    Imagens renovadas

    Estas (novas) prticas, apropriaes e discursos imagticos contemporneos, ao

    invs de colaborarem para a emergncia de um controle totalitrio, disciplinador e

    intrusivo, como supunham os mais alarmistas, tiveram por conseqncia uma

    transformao bem mais profunda. A possibilidade quase ilimitada de produo de

    imagens muda radicalmente a prpria imagem, mesmo aquela gerada para controlar ou

    a que incidentalmente pode faz-lo. No sistema de videovigilncia que pesquisei, a

    quantidade de imagens acaba por diluir o controle, ocorrendo um gradativo desinteresse

    por pequenos flagras, crimes ou incivilidades menores, que no dariam em nada

    mesmo, como diziam os prprios operadores (especialmente o consumo de maconha e

    situaes de atentado ao pudor). E como se v ao longo da histria da representao

    pictogrfica, assim como da prpria moralidade ocidental, as imagens com o tempo

    vo se tornando mais ou menos chocantes26

    e interessantes. Se os camerafones

    contribuem para a acelerao desse processo de transformao, tambm provocam um

    esvaziamento relativo das imagens: para cada imagem de vigilncia amadora que

    alcanou alguma notoriedade, muitos milhes foram, sem dvida, produzidas e fadadas

    no publicizao, permanecendo essencialmente no-vistas. A compulso imagtica

    contempornea e a facilidade de apresentao fornecida pelo ciberespao configuram

    26 Exemplos bvios so as revistas de nu diante do surgimento da Internet, com um acesso muito maior e simples nudez e pornografia. E materiais como os catecismos de Carlos Zfiro tornam-se, definitivamente (ou no?) fetiches saudosistas e retrs de colecionador, sendo difcil imaginar que hoje pudessem causar escndalo, ou

    movimentar um mercado negro.

  • 15

    um contexto superexpositrio, que se assemelha ao quadro da vida mental do

    habitante da metrpole, descrito por Simmel (1979), cuja intensificao dos

    estmulos nervosos obrigava aos indivduos uma apreenso do mundo mais

    indiferente, impessoal, desenvolvendo, na maior parte do tempo, uma atitude

    blas. As imagens contemporaneamente so, na maior parte das vezes, vistas com

    olhar blas, de forma apressada e pouco aprofundada. Efeito da incrvel intensidade

    dos fluxos, de imagens e de estmulos nervosos as quais estamos submetidos e nos

    submetemos constantemente.

    Referncias Bibliogrficas:

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  • 16

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