broue jorge novoa

4
o olho da história o olho da história o olho da história o olho da história o olho da história ano 12, n. 9, dezembro de 2006 Homenagem a Pierre Broué: um dos maiores historiadores da revolução e guerra de Espanha Recordações de Pierre Broué Recordações de Pierre Broué Recordações de Pierre Broué Recordações de Pierre Broué Recordações de Pierre Broué ou o ofício do historiador como modo de vida ou o ofício do historiador como modo de vida ou o ofício do historiador como modo de vida ou o ofício do historiador como modo de vida ou o ofício do historiador como modo de vida por Jorge Nóvoa O historiador, Pierre Broué, faleceu em 26 de julho de 2005, resultado de uma longa luta contra o câncer, mas também contra uma conjuntura política que o angustiava profundamente e em relação à qual ele não ousava mais ter esperanças. Broué situa-se entre os maiores historiadores da história do socialismo no século XX. É, provavelmente, o maior se con- siderarmos, não apenas, o volume de sua produção científica, mas sua qualidade crítica, de uma só vez à historiografia de direita, à liberal, à social-democrata e à estalinista. Era um mar- xista convicto, por mais que também fosse crítico à carga subs- tantiva que este adjetivo possuía, mesclando-se assim, à tradi- ção forjada pelo próprio Marx. Sua memória prodigiosa e sua capacidade de trabalho sempre me impressionaram e creio poder dizer que não conheci até hoje ninguém com a sua capa- cidade de trabalho. Ele vivia para e da história. Leitor inquieto e voraz tinha no seu modesto apartamento em Grenoble, uma parte da sua volumosa biblioteca. Os livros estavam em toda parte da sua residência, inclusive na cabeceira da banheira. Contudo, contrariamente ao que se pretende ainda hoje nos meios aca- dêmicos, não olhava o mundo, o processo histórico com distân- cia. Ao contrário, assumiu plenamente partido nas causas funda- mentais de seu tempo. Nunca foi um historiador do domingo e foi historiador inclusive nas horas de lazer. Broué só foi bom historiador porque se engajou apaixonadamente no seu tempo. É como se tivesse pegado uma aposta contra o tempo impiedoso que as frustrações da vida (as suas “derrotas” parci- ais, políticas e pessoais) e seu considerável isolamento afetivo dos últimos tempos, tornaram-no ainda mais curto. Sua obra historiográfica é vasta e ao mesmo tempo pro- funda e, pari passus, descrevem cronologicamente um proces- so irreversível de afirmação, não apenas de um historiador, como também de um modo de fazer e pensar a história. Na verdade, Broué nunca se dedicou a pensar teoricamente a história. Me- lhor dito: ele pensava teoricamente a história de modo concomitante à elaboração dos seus textos historiográficos. Poderíamos citar 6 volumes monumentais: 1- A revolução e a guerra da Espanha. Paris, Les Éditions de Minuit, 1961 ; 2-História do Partido Bolchevique. Paris, Les Éditions de Minuit, 1963 ; 3-A Revolução Alemã (1917-1923). Paris, Les Éditions de Minuit, 1971; 4-Trotsky. Paris, Fayard, 1988;

Upload: ramses-eduardo-pinheiro

Post on 25-Dec-2015

5 views

Category:

Documents


3 download

DESCRIPTION

nnn

TRANSCRIPT

Page 1: BROUE Jorge Novoa

o o l h o d a h i s t ó r i ao o l h o d a h i s t ó r i ao o l h o d a h i s t ó r i ao o l h o d a h i s t ó r i ao o l h o d a h i s t ó r i aano 12, n. 9, dezembro de 2006

Homenagem a Pierre Broué: um dos maiores historiadores da revolução e guerra de Espanha

Recordações de Pierre BrouéRecordações de Pierre BrouéRecordações de Pierre BrouéRecordações de Pierre BrouéRecordações de Pierre Brouéou o ofício do historiador como modo de vidaou o ofício do historiador como modo de vidaou o ofício do historiador como modo de vidaou o ofício do historiador como modo de vidaou o ofício do historiador como modo de vida

por Jorge Nóvoa

O historiador, Pierre Broué, faleceu em 26 de julho de2005, resultado de uma longa luta contra o câncer, mas tambémcontra uma conjuntura política que o angustiava profundamentee em relação à qual ele não ousava mais ter esperanças.

Broué situa-se entre os maiores historiadores da históriado socialismo no século XX. É, provavelmente, o maior se con-siderarmos, não apenas, o volume de sua produção científica,mas sua qualidade crítica, de uma só vez à historiografia dedireita, à liberal, à social-democrata e à estalinista. Era um mar-xista convicto, por mais que também fosse crítico à carga subs-tantiva que este adjetivo possuía, mesclando-se assim, à tradi-ção forjada pelo próprio Marx. Sua memória prodigiosa e suacapacidade de trabalho sempre me impressionaram e creiopoder dizer que não conheci até hoje ninguém com a sua capa-cidade de trabalho. Ele vivia para e da história. Leitor inquieto evoraz tinha no seu modesto apartamento em Grenoble, uma parteda sua volumosa biblioteca. Os livros estavam em toda parte dasua residência, inclusive na cabeceira da banheira. Contudo,contrariamente ao que se pretende ainda hoje nos meios aca-

dêmicos, não olhava o mundo, o processo histórico com distân-cia. Ao contrário, assumiu plenamente partido nas causas funda-mentais de seu tempo. Nunca foi um historiador do domingo efoi historiador inclusive nas horas de lazer. Broué só foi bomhistoriador porque se engajou apaixonadamente no seu tempo.É como se tivesse pegado uma aposta contra o tempoimpiedoso que as frustrações da vida (as suas “derrotas” parci-ais, políticas e pessoais) e seu considerável isolamento afetivodos últimos tempos, tornaram-no ainda mais curto.

Sua obra historiográfica é vasta e ao mesmo tempo pro-funda e, pari passus, descrevem cronologicamente um proces-so irreversível de afirmação, não apenas de um historiador, comotambém de um modo de fazer e pensar a história. Na verdade,Broué nunca se dedicou a pensar teoricamente a história. Me-lhor dito: ele pensava teoricamente a história de modoconcomitante à elaboração dos seus textos historiográficos.Poderíamos citar 6 volumes monumentais:1- A revolução e a guerra da Espanha. Paris, Les Éditions deMinuit, 1961 ;2-História do Partido Bolchevique. Paris, Les Éditions de Minuit,1963 ;3-A Revolução Alemã (1917-1923). Paris, Les Éditions de Minuit,1971;4-Trotsky. Paris, Fayard, 1988;

Page 2: BROUE Jorge Novoa

o o l h o d a h i s t ó r i ao o l h o d a h i s t ó r i ao o l h o d a h i s t ó r i ao o l h o d a h i s t ó r i ao o l h o d a h i s t ó r i aano 12, n. 9, dezembro de 2006

Homenagem a Pierre Broué: um dos maiores historiadores da revolução e guerra de Espanha

5-Stalin e a REVOLUÇÃO: o caso espanhol (1936 -1939). Paris,Fayard, 1993;6- História da Internacional Comunista (1919 -1943). Paris, Fayard,1997.

Todos grossos tijolos de mais ou menos mil páginas. Maisescreveu milhares de artigos pequenos e dezenas de peque-nos livros, não menos importantes. Em português nós temos:1 - A primavera dos povos começa em Praga. São Paulo, Kairos,1979.2 - A Revolução espanhola (1931-1939).São Paulo, 1992.3 - União Soviética. Da revolução ao colapso. Porto Alegre, UFRGS,1996.

Além disso, conseguiu, ao longo de 3 décadas, publicara revista de história contemporânea Cahiers Léon Trotsky e oconjunto da obra, inclusive inúmeros inéditos, de Léon Trotsky,além de, após a Queda do Muro, a revista de análise política LeMarxisme Aujourd’hui.

Militante desde os 16 anos, quando aderiu à resistênciaanti-nazista, jamais renegou seus ideias socialistas. Sofreu mui-tos revezes políticos e decepções. Dentre elas o desastre doPartido dos Trabalhadores pelo qual se entusiasmou e dooumuita energia. Conheci-o no Brasil, no célebre Simpósio sobre

O Socialismo e Léon Trotsky, organizado pelo Professor Osval-do Coggiola da Universidade de São Paulo. Ele fez vir, o netode Trotsky, Sieva, para os trabalhos do Simpósio, além de ter-nos possibilitado o contato direto, por suas participações nesteSimpósio, com marcantes historiadores, como AlexanderPodtchekoldin, Miklos Khun, dentre outros.

Em 1996, quando do Simpósio Internacional a Guerra CivilEspanhola e a Relação Cinema-História pude convidá-lo a parti-cipar do evento no qual dividiu com Marc Ferro, José CarlosSebe Bon Meihy, as atenções de um público sequioso.

Antes disso já havia Prefaciado nosso livro A história aderiva: um balanço de fim de século. Depois, ajudei-o mandandodocumentação para que pudesse escrever seu livro sobre oGoverno Collor. Lembro-me do seu “entusiasmo de menino” par-ticipando das manifestações do Fora Collor que seguiu nas ruasde Salvador, tomando anotações à moda de Heródoto.

Broué foi sempre um historiador rigoroso, cuidadoso coma documentação. Quem quiser pode examinar o volume extra-ordinário de documentos que devorava para produzir uma obra.Mas nunca transformou tal procedimento em fetiche positivista.Usava a imaginação, as hipóteses. Testava-as, mas jamais pas-sou pela sua cabeça imaginar que a história se enquadrava noreino das humanidades – como a ela se referiu o importantehistoriador inglês Edward Thompson na sua crítica demolidora

Page 3: BROUE Jorge Novoa

o o l h o d a h i s t ó r i ao o l h o d a h i s t ó r i ao o l h o d a h i s t ó r i ao o l h o d a h i s t ó r i ao o l h o d a h i s t ó r i aano 12, n. 9, dezembro de 2006

Homenagem a Pierre Broué: um dos maiores historiadores da revolução e guerra de Espanha

ao estruturalismo althusseriano intitulado de A Miséria da Teoria -ou era literatura bem informada segundo a célebre e emblemáticafórmula relativista de Paul Veyne e que orienta a mentalidadedominante hoje do ofício do historiador.

Além disso, Broué ajudou a produção de vários filmeshistóricos. Não conseguia não chorar (seria isto piegas para umhistoriador ou seriam os sentimentos inadequados à reflexãohistoriográfica ou política?) ao ver e discutir Terra e Liberdade.Sua ligação com a Espanha era tão profundamente afetiva que,quando ainda sob a Ditadura Franquista, foi a Salamaca estudaros Arquivos da Guerra, sonhava à noite com as rajadas de me-tralhadoras e o fuzilamento dos Republicanos. Mas a potênciada sua obra é respeitada mesmo por seus inimigos. Na Espanha,algumas vezes fez calar algozes de doutorandos humilhadospor estalinistas saudosistas. Mas ele os fazia “engolir seco” nãoapenas pelo volume de informações que dominava e que eraextraordinário. Mas porque paralisava seus cérebros com umaavalanche de idéias interpretativas e uma transbordante imagi-nação capaz de não poupar não apenas o que aconteceu, mastambém o que poderia ter acontecido e os silêncios da históriareal e escrita. Foi assim que “salvou” muitos jovens historiado-res espanhóis e franceses. O volume de artigos que escreveusobre a Espanha e a União Soviética é simplesmente impressi-onante. Se juntarmos daria muitos livros, só sobre os Proces-

sos de Moscou.Colaborou com inúmeros pesquisadores de todo o mun-

do, que como eu, não necessariamente comungava com suasconvicções e posições políticas todas, como em relação aocurso que o PT no Brasil desde o início dos anos 90 havia to-mando. Ele alimentou alguma ilusão que esse curso fosse re-vertido e o PT pudesse encontrar o caminho da conciliação en-tre os ideais socialistas e o Partido de Massas. Este sim era umfetiche para ele que, como marxista, sempre viveu perseguindoo ideal de um partido que não fosse de vanguarda apenas, masque fosse também capaz de se fundir com os movimentos po-pulares. Queria a Democracia e o Partido de Rosa Luxemburgo,orientado pela Teoria da Revolução Permanente, mas continua-va admirando a Lênin em muitas questões. Marc Ferro que emrelação à Revolução Russa tem muitas divergências com ele,não pôde não se curvar diante de seus argumentos e de suaerudição nada eruditista. Chamou-o ao seu programa de televi-são HISTOIRE PARALÈLES (que manteve durante 13 anos emhorário nobre aos sábados) na ARTE (canal mais prestigioso daTV francesa). Alimentaram mesmo o Projeto de continuar discu-tindo sobre várias questões da história do século XX.

Pierre Broué que sofreu da perseguição de certosestalinistas para entrar na Universidade de Grenoble, nunca serecusou ao diálogo, especialmente com a juventude. Entrou tar-

Page 4: BROUE Jorge Novoa

o o l h o d a h i s t ó r i ao o l h o d a h i s t ó r i ao o l h o d a h i s t ó r i ao o l h o d a h i s t ó r i ao o l h o d a h i s t ó r i aano 12, n. 9, dezembro de 2006

Homenagem a Pierre Broué: um dos maiores historiadores da revolução e guerra de Espanha

de na carreira e lembrava algumas vezes que foi ajudado porPierre Channu, um historiador católico liberal de direita, a vencera barreira de um aparelho político-burocrático incrustado na uni-versidade pública que por definição deveria ser universalista.Mas sua estirpe era daqueles que, como Georges Lefebvre,impávido defensor – como Jean Jaures - de uma história “soci-alista” da Revolução Francesa, se juntava a Jules Michelet, nãosomente na verve escrita, mas também na capacidade oratóriade entreter o público durante horas à fio escutando seus relatose interpretações daquela e de todas outras revoluções moder-nas, especialmente as do século XX. Seus cursos eram ofereci-dos em anfiteatros transbordando de gente o que o tornou muitopopular, especialmente entre os jovens, tendo ajudado a formarassim várias gerações dos melhores historiadores sociais daFrança contemporânea.

Seu legado é, portanto, enorme! É ao mesmo tempo po-lítico e científico. Sua autobiografia, da qual me confiou uma có-pia digitalizada, precisava ser editada em português. Não sei sejá foi publicada na França. Eu conheci mais ao Pierre Brouéconferencista e historiador. Sei que realizou muitas vitórias polí-ticas e que no fim da vida lhe faltaram forças e, talvez, a solida-riedade necessária para romper a solidão e superar suas desi-lusões. Possivelmente tenha tido a sua dose de reponsabilidade.Tratava-se de uma personalidade opiniatra. Mas sua obra

historiográfica sempre foi vitoriosa e seguirá sendo a médio elongo prazo.

Uma vez, após um debate acalorado sobre uma questãoimportante da história do socialismo no século XX, arrebatadopor um desses entusiasmos semelhante ao momento que ve-mos a nossa seleção de futebol ganhar, ousei dizer-lhe: “Pierre,não creio que alguém possa interpretar melhor e de forma maisuniversal o fenômeno do estalinismo que você”. Ele simples-mente me disse: “é necessário ser sempre prudente ao se que-rer tornar absoluta determinada conclusão”.

Esse foi o Broué, ao mesmo tempo político e historiadorque ficou na minha modesta memória. Nela o historiador triunfarásempre sobre o político sem nenhum constrangimento. Realizara obra científica que ele realizou é para muito pouca gente! Lon-ga vida às suas obras e que no Brasil ela possa encontrar ointeresse que merece. Caso contrário seremos nós mesmosque perderemos!

Aos seus familiares, companheiros e amigos, dentre osquais me inclui desde que o conheci, solidarizo-me rendendo-lhe a homenagem que ele merece, a esse Michelet da históriado socialismo do século XX.