breve inventÁrio das biografias de stalin publicadas …

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS LUCAS TOSI DI DONATO BREVE INVENTÁRIO DAS BIOGRAFIAS DE STALIN PUBLICADAS NO BRASIL: UMA INTRODUÇÃO AO DEBATE (2003-2019) Guarulhos 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

LUCAS TOSI DI DONATO

BREVE INVENTÁRIO DAS BIOGRAFIAS DE STALIN PUBLICADAS NO BRASIL:

UMA INTRODUÇÃO AO DEBATE (2003-2019)

Guarulhos

2021

LUCAS TOSI DI DONATO

BREVE INVENTÁRIO DAS BIOGRAFIAS DE STALIN PUBLICADAS NO BRASIL:

UMA INTRODUÇÃO AO DEBATE (2003-2019)

Monografia apresentada à Universidade

Federal de São Paulo - Escola de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas

como requisito para obtenção do grau de

Licenciado em História.

Orientador: Prof. Dr. Iuri Cavlak

Guarulhos

2021

Donato, Lucas Tosi di.

Breve inventário das biografias de Stalin publicadas no Brasil: Uma

introducao ao debate (2003-2019)/ Lucas Tosi di Donato. - Guarulhos, 2021.

63 p.

Trabalho Monográfico (Graduação em História) - Universidade

Federal de São Paulo (UNIFESP), Escola de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas, 2021.

Orientador: Iuri Cavlak

Título em inglês: Brief inventory of Stalin's biographies published in

Brazil: An introduction to the debate (2003-2019).

1. Stalin. 2. Biografias. 3. Stalinismo. 4. Catalogação.

Lucas Tosi di Donato

BREVE INVENTÁRIO DAS BIOGRAFIAS DE STALIN PUBLICADAS NO BRASIL:

UMA INTRODUÇÃO AO DEBATE (2003-2019)

Monografia apresentada à Universidade

Federal de São Paulo - Escola de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas

como requisito para obtenção do grau de

Licenciado em História.

Orientador: Prof. Dr. Iuri Cavlak

Monografia aprovada em: 17 de Agosto de 2021.

Banca examinadora

___________________________________________________________________________

Prof. Dr. Fábio Franzini

Universidade Federal de São Paulo

___________________________________________________________________________

Prof. Dr. Iuri Cavlak

Universidade Federal de São Paulo

__________________________________________________________________________

Prof. Dr. Janes Jorge

Universidade Federal de São Paulo

Agradecimentos

Agradeço ao meu pai e a minha mãe pelo apoio, emocional e financeiro, pois foram

muitos livros que precisei adquirir para a realização deste trabalho, e pela compreensão neste

momento atual da pandemia do COVID-19.

Agradeço também imensamente ao meu professor e orientador, Iuri Cavlak, que me

ajudou muito, em primeiro lugar, na escolha do tema a qual irei tratar neste trabalho

monográfico e em segundo lugar e não menos importante, pela paciência e compreensão em

analisar e corrigir cada etapa deste trabalho, pelas dicas e sugestões que me ajudaram

abundantemente no desenvolvimento.

Resumo

Este trabalho monográfico tem como objeto catalogar as biografias de Josef Stalin, antigo líder

da extinta URSS de 1928 a 1953. As biografias em questão se tratam das publicadas em

território brasileiro entre os anos 2003 a 2019. Através dessas biografias e suas catalogações,

busquei analisar o atual cenário brasileiro em torno do debate sobre o stalinismo e o homem

que originou essa palavra. Como a figura de Stalin retornou ao debate público na última década

e principalmente após as eleições de 2018 no Brasil, entre aqueles que o condenam

veementemente por suas políticas autoritárias e aqueles que o “veneram” como o grande

responsável pela derrota do Nazi-fascismo e como as biografias escritas sobre ele influenciam

esse debate. Retrato o contexto da Rússia após a dissolução da União Soviética e como o

governo Putin adquiriu tamanha popularidade, negativa e positiva e suas comparações com o

governo de Stalin por parte de analistas e estudiosos. É objeto também mostrar a importância

das biografias como parte da investigação histórica e suas contribuições.

Palavras-Chaves: Stalin - Biografias - Stalinismo - Catalogação

Abstract

This monographic work aims to catalog the biographies of Josef Stalin, former leader of the

extinct USSR from 1928 to 1953. The biographies in question are those published in Brazilian

territory between the years 2003 to 2019. Through these biographies and their catalogues, I

sought to analyzethe the current Brazilian scenario around the debate on Stalinism and the man

who originated this word. How the figure of Stalin returned to public debate in the last decade

and especially after the 2018 elections in Brazil, among those who vehemently condemn him

for his policies authoritarians and those who “venerate” him as largely responsible for the defeat

of Nazi-fascism and how the biographies written about him influence this debate. I portray the

context of Russia after the dissolution of the Soviet Union and how the Putin government

acquired such popularity, negative and positive, and its comparisons with the Stalin government

by analysts and scholars. It is also an object to show the importance of biographies as part of

historical research and their contributions.

Key Words: Stalin - Biographies - Stalinism - Cataloguing

Sumário

Introdução ................................................................................................................................. 9

Capítulo I ................................................................................................................................ 11

Capítulo II ............................................................................................................................... 19

Capítulo III ............................................................................................................................. 28

As biografias ........................................................................................................................... 37

Stalin: Um novo olhar - Ludo Martens (2003) .................................................................... 37

Stalin Triunfo e Tragédia - Dmitri Volkogonov (2004) ...................................................... 38

Stalin: uma biografia política - Isaac Deutscher (2006) ...................................................... 42

Stálin: A corte do Czar Vermelho - Simon Sebag Montefiore (2006) ............................... 44

O Jovem Stalin - Simon Montefiore (2008) .......................................................................... 45

A loucura de Stalin - Constantine Pleshakov (2008) ........................................................... 47

Os Sete chefes do Império Soviético - Dmitri Volkogonov (2008) ..................................... 48

Stalin: Biografia (Estudo preliminar de Osvaldo Eustáquio) - Leon Trotsky (2012) ...... 50

Os Crimes de Stalin - Nigel Cawthorne (2012) .................................................................... 50

Stálin - Volume 1: Paradoxos Do Poder, 1878-1928 - Stephen Kotkin (2017) .................. 54

Stalin: nova biografia de um ditador - Olev V. Khlevniuk (2018) ..................................... 55

Titãs da História - Simon Sebag Montefiore (2018) ............................................................ 57

Josef Stalin: a biografia - Dorothy e Thomas Hoobler (2018) ........................................... 57

Stalin: Uma única morte é uma tragédia - Michael Kerrigan (2019) ................................ 58

Tabela ...................................................................................................................................... 60

Considerações finais ............................................................................................................... 62

Bibliografia: ............................................................................................................................ 62

9

Introdução

Neste trabalho de monografia, tenho por objetivo catalogar as biografias do antigo líder

da União Soviética, Josef Stalin, publicadas no Brasil nos anos 2000 e 2010, mais

especificamente entre os anos de 2003 a 2019. Realizei este trabalho pois, dos anos aqui

determinados (2003-2019) identifiquei ao todo dezessete biografias publicadas no Brasil a

respeito de Stalin e meu objetivo foi analisá-las, resumi-las e catalogá-las, de modo a iniciar

minha trajetória para entender o debate em torno do mesmo, isto é, o debate acerca de Stalin e

do stalinismo, que na última década ganhou maiores proporções, entre outros motivos, devido

ao fortalecimento social da direita.

A catalogação se dará pelo tipo de biografia, isto é, qual gênero biográfico cada obra se

encaixa mais adequadamente e os gêneros escolhidos para diferenciá los são: biografia

retratora; crítica; estudos aprofundados (uma análise específica de uma determinada fase ou

âmbito da vida do biografado); introdutória; detratora. E também pela motivação da publicação

do livro, se ela é mercadológica ou ideológica. Na realidade, todos os livros possuem um pouco

das duas, no entanto, uma acaba se sobrepondo a outra e por isso analisei cada uma das obras

e busquei entender, de acordo com cada editora, o motivo pela publicação das mesmas.

Ressalto que decidi este tema, em conjunto com o meu orientador, o professor e doutor

Iuri Cavlak, pois, como dito no primeiro parágrafo, devido a retomada do debate acerca de

Stalin e do stalinismo em nosso país na década de 2010 e que só inflamou ainda mais com a

candidatura e eleição do atual presidente, Jair Messias Bolsonaro, em 2018. A escolha pelo

início em 2003 tem a ver com o entedimento de que a chegada do PT ao poder central iniciou

um sensível processo de mudança no sistema político nacional, o que tem a ver diretamente

com nosso debate

Para se entender essa problemática, dedicarei o primeiro capítulo a respeito do

stalinismo de uma forma geral e como a discussão sobre ele sempre esteve presente no Brasil

desde que Stalin consolidou seu poder na URSS em 1928. No capítulo dois, tratarei do governo

Putin e o resgate da imagem de Stalin promovida pelas políticas educacionais adotadas em seu

governo e como isso alimentou o debate no Brasil. Por fim, no terceiro capítulo irei abordar

sobre a questão biográfica e a importância das biografias para a História, seguido por uma

tabela da catalogação e um pequeno resumo de cada obra justificando a minha catalogação.

Com isso, não tenho a pretensão de esgotar o assunto ou tornar a catalogação realizada neste

10

trabalho algo inquestionável e incriticável, mas apenas contribuir minimamente para a

academia e o conhecimento histórico.

11

Capítulo I

Stalinismo geral e no Brasil

É de conhecimento acadêmico que a denominação stalinismo se refere a política

estruturada no período de 1928 até 1953 na antiga União Soviética, depois que Stalin derrotou

a oposição de esquerda e a oposição unificada em 1923 e 1927 respectivamente. Dentre seus

mais variados significados atribuídos por diferentes autores, o conceito de stalinismo tem como

sua espinha dorsal a tese do socialismo em um só país, proposta por Josef Stalin e seu grupo

político após a relativa bem sucedida revolução bolchevique na Rússia. Dito isso, tentarei neste

primeiro capítulo trazer uma conceituação geral sobre o stalinismo e, com menos foco, mostrar

como ele chegou ao Brasil.

Para se entender o stalinismo, devemos antes compreender os eventos e fenômenos que

o antecederam e até mesmo proporcionaram sua própria existência como um sistema político.

Moshe Lewin escreve em “História do Marxismo” a respeito de três elementos que explicam o

stalinismo, são esses: (a) as transformações sociais e zonas críticas antes da guerra; (b) as

consequências do período entre os anos 1914-1921; (c) os efeitos dos anos 1920 juntamente

com os dos primeiros anos da década de 19301.

O feudalismo ainda era vigente na maior parte da antiga Rússia czarista do século XIX

e começo do século XX, ainda que o capitalismo já estivesse presente em certa medida e o que

o governo do czar conseguiu para o desenvolvimento de uma sociedade mais moderna, não se

comparava com as potências europeias como Alemanha, Inglaterra e França, fortemente

industrializadas e com um capitalismo plenamente desenvolvido e também eram tidas, pelos

teóricos marxistas, como a porta de entrada para uma possível Revolução Comunista que se

espalharia pelo restante da Europa. Poucos intelectuais de esquerda imaginariam a Rússia como

precursora de uma revolução comunista.

O desenvolvimento capitalista moderno alcançado pela Rússia czarista, que já era pouco

em comparação com outras nações, foi drasticamente reduzida pela I Guerra Mundial e pela

Guerra Civil, consequente da Revolução de 1917, forçando a Rússia, que muito em breve

passaria a se chamar de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em conjunto com outras

nações como a Ucrânia e a Geórgia, a entrar em um retrocesso econômico e social. A rápida

aceleração industrial da URSS no início dos anos 1930 para recuperar o retrocesso e conter a

1 LEWIN, Moshe. Para uma conceituação do stalinismo. In.: HOBSBAWM, Eric. História do Marxismo, v. 7.

2º Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, p. 207.

12

desaceleração, somadas aos acontecimentos dos anos 1920 contribuíram para o fenômeno do

stalinismo:

O stalinismo, portanto, com sua estatização, com a destruição de quadros, com

a coletivização forçada, com os campos de concentração e o emprego maciço

de mão-de-obra servil, afirmou-se numa sociedade relativamente

“primitivizada” , foi favorecido pelas tensões de uma industrialização

acelerada e foi ulteriormente incentivado por antinomias características: uma

aculturação assinalada por uma notável “ desculturação” , um salto à frente

da indústria gravemente obstaculizado pela estagnação da agricultura, uma

maciça mobilidade acompanhada pela não menos maciça perda de’status de

muitos outros, aumento da alfabetização acompanhada por uma perda

generalizada dos direitos individuais. O regime iria se cristalizar, por toda uma

geração, na forma de Estado policial opressivo2.

Lewin ainda afirma que as guerras e as correlações sociais enfraqueceram o país da

Rússia, fazendo com que o novo Estado que viria a surgir assumisse o Partido, a burocracia e

o exército3. Em outras palavras, podemos afirmar que a política stalinista surgiu por uma

necessidade de fortalecer e estabilizar as condições para dirigir o novo estado soviético imerso

a um mundo completamente hostil a ele, cercado por potências capitalistas e ao mesmo tempo

em que uma ameaça ainda maior estava para nascer no continente europeu: a Alemanha

Nazista.

Moshe L. esforça-se para conceituar o stalinismo e (não obstante seu conceito acerca

desse fenômeno possa e deve ser questionado, debatido e criticado em vários aspectos, pois o

autor é um crítico ferrenho das políticas de Stalin, logo, algumas de suas visões podem estar

desvirtuadas) vale a pena citá-lo. Em primeiro lugar, a coletivização dos camponeses é apenas

uma parte do que chamamos de stalinismo, mas ele também engloba a industrialização

acelerada, projetos de novas cidades, treinamentos de novos profissionais e a expansão do

mecanismo do Estado4.

Como já mencionado em linhas anteriores, o desenvolvimento acelerado e os tentáculos

do Estado metidos em todos os meios estruturais fazem parte do stalinismo até mesmo por uma

necessidade do contexto histórico da época, mas além disso é fundamental notar que o

stalinismo preparava novos profissionais para que estivessem com uma mentalidade formada

de acordo com os ideais políticos de Stalin aos quais muitos deles iriam ocupar cargos

importantes, até devido ao Grande Expurgo que aconteceriam em um futuro próximo.

2 Ibidem, p. 235-236. 3 Ibidem, p. 221. 4 Ibidem, p. 223.

13

A substituição do velho sistema e ritual de crenças religiosas e nacionais por uma

espécie de culto ao Estado e seu respectivo líder é outra característica importante do stalinismo,

resultando em uma rápida construção de um “super-Estado”. Podemos citar como exemplo o

embalsamento de Lênin, como um grande “santo” da causa revolucionária comunista, processo

desaprovado pela então viúva do ex-líder e outros camaradas revolucionários.

Inclusive, é importante destacar que quando falamos em União das Repúblicas

Socialistas Soviéticas, muitos só conseguem pensar na Rússia e ainda que de fato fosse o país

“chefe”, a URSS era formada por 15 diferentes repúblicas, com tradições, religiões e línguas

diferentes, mesmo que no caso das religiões a predominante fosse o cristianismo ortodoxo.

Com isso, enxergo que essas peculiaridades envolvendo todas as repúblicas da União Soviética

foi crucial para serem substituídas pela imposição do culto a personalidade do líder do Estado,

no caso Stalin, assim como a língua russa se tornou obrigatória nesses países. As diferentes

religiões e tradições espalhadas pela URSS seriam “unificadas” diante do culto ao Estado e seu

líder, assim como as diferentes regiões falariam uma única língua em comum: o russo, além de

suas línguas nativas.

O passado imperial foi igualmente usado como sustento para o novo regime e para

reforçar um sentimento de nacionalidade5, principalmente a Segunda Guerra Mundial,

denominado pelos russos como “A Grande Guerra Patriótica''.

A análise de Moshe Lewin, mesmo que não de forma totalizante, nos mostra como os

fenômenos ulteriores apresentados até aqui, prepararam o “palco” para o surgimento do

stalinismo e também nos apresenta um norte que nos orienta a identificar e encontrar uma

conceituação e características desse fenômeno tão peculiar. Convém agora tratarmos da

ascensão propriamente dita de Stálin e o sistema político a ele ligado.

Após a derrocada de Trotsky e as oposições mais devastadas e, consequentemente, a

ascensão da tese do socialismo em um só país “ao lado” de seu formulador, essa tese não se

limitou a circular unicamente dentro do Partido Comunista Soviético, mas passou a se fixar

também no interior dos demais partidos comunistas ao redor do globo6. Isso porque o III

Congresso Mundial da Internacional, contemplada entre os dias 22 de junho e 12 de julho de

1921, ou seja, ainda na época de Vladimir Lênin, foi usada posteriormente ao falecimento do

até então líder do partido, para que o stalinismo se espalhasse para os demais partidos

5 Ibidem, p. 230-231. 6 ANTUNES, R. C. Os comunistas no Brasil: as repercussões do VI Congresso da Internacional Comunista e a

Primeira Inflexão Stalinista no Partido Comunista do Brasil (PCB). Cadernos AEL, v. 1, n. 2, 27 abr. 2012, p.

14.

14

comunistas externos à URSS, mas intimamente ligados a ela7. Porém, o movimento comunista

na América Latina ainda era ignorado, em parte, pela Internacional Comunista, isso até o ano

de 1928, quando foi realizado o VI Congresso da mesma, em que dedicaram um capítulo sobre

a questão comunista na parte latina do continente americano8.

O VI Congresso da Internacional Comunista teve forte influência no Partido Comunista

Brasileiro (PCB), ao que Ricardo Antunes denominou de “Primeira Inflexão Stalinista no PCB”

(ANTUNES, 2012), dado ao III Congresso do PCB (dezembro de 1928 a janeiro de 1929),

onde parte de suas resoluções já se assemelhavam às teses stalinistas9.

Lincoln Moraes em “As sete vidas do stalinismo” identifica diversas facetas desse

modelo presentes no Brasil ao longo do século XX e começo do século XXI presentes na

esquerda brasileira. Uma dessas facetas se trata de ações que acabam por favorecer

objetivamente através de desvios, mesmo que de forma não intencional, o inimigo. Isto

significava na prática que, as ações que não estivessem de acordo com o stalinismo terminavam

por ter seus autores acusados de favorecer a burguesia, de serem “inimigos do povo” ou até

mesmo de fascistas. Isso foi usado como pretexto para a expulsão de Trotsky do partido ao final

da década de 1920, por ter se colocado inteiramente contra as ideias de Stalin.

Dito isso, dando um grande salto no tempo, Moraes utiliza como exemplo o que foi

denominado de “voto útil" durantes as eleições para governador no ano de 1982, que significava

basicamente que não votar em determinado candidato ou grupo (mesmo que houvesse outros

com os mesmos ideais revolucionários), seria como votar na direita e portanto cooperar com o

governo. Outra característica típica do stalinismo, segundo Moraes, é a subordinação ao

imediato, se restringir aos interesses imediatistas, dessa forma a história passa a ser reescrita de

acordo com o que convém em dado momento no presente e não escrevê-la buscando uma

revisão crítica objetivando o real. Um dos instrumentos para isso é o apagamento da memória.

Para Lincoln Moraes, essa característica também se expressou em nosso país, como aponta em:

Ainda pensando-se no PC do B, no início da década de 1980, João Amazonas

(1981),então principal dirigente do partido, escreveu um artigo criticando

duramente o PT, mencionando que para se ter ideia: que o intitulado Partido

dos Trabalhadores não representava os interesses básicos do proletariado, pois

era falsamente proletário; no PT residiria a maior esperança da social-

democracia e o partido procurava desviar o proletariado da luta

revolucionária; atribui uma boa relação entre o PT e Delfim Netto e outras

7 MORAES, L. As 7 vidas do stalinismo. Revista Cronos, v. 14, n. 1, 19 maio 2015, p. 81. 8 ANTUNES, R. C. Os comunistas no Brasil: as repercussões do VI Congresso da Internacional Comunista e a

Primeira Inflexão Stalinista no Partido Comunista do Brasil (PCB). Cadernos AEL, v. 1, n. 2, 27 abr. 2012, p.

17. 9 Ibidem, p. 28.

15

figuras significativas das classes dominantes e da direita no Brasil; o PT era

um partido sem norte e que vagava ao sabor dos acontecimentos. Atualmente,

porém, o PC do B é um dos principais defensores do governo petista,

incluindo a presença em cargos como o Ministério dos Esportes e é como se

fosse passado uma borracha na memória. E, também, ao que parece, não

critica mais Delfim Netto10.

Ainda para o autor, stalinismo significa também perda de autonomia dos movimentos

sociais, herdada da II Internacional Comunista e dos bolcheviques. No Brasil, é ressaltado o

papel intervencionista da esquerda nos mais variados movimentos sociais:

Não constitui nenhum segredo no Brasil, que os partidos e organizações da

chamada esquerda procuram ter uma intervenção organizada nos movimentos

sociais o que, de resto, não é problema se a autonomia do movimento for

respeitada, se levada em conta a composição social e política bem variada dos

componentes o ritmo e concepções partidárias diversas não for sufocada. A

questão é a predominância do que se convencionou chamar de aparelhismo,

ou seja, a tentativa, geralmente e infelizmente bem sucedida, de ver o

movimento social apenas como uma correia de transmissão e um celeiro de

futuros quadros partidários e não um nível diferente de luta e uma escola

política11.

Com esses apontamentos, gostaria de evidenciar que o stalinismo, em menor ou maior

grau, nunca deixou de estar presente no Brasil, embora seja muito criticado até mesmo no

interior da esquerda, inclusive por aqueles que usufruíram, conscientemente ou não, uma ou

mais de suas facetas.

Não poderia deixar de assinalar o racha ocorrido em 1962 entre o PCB e o PC do B que,

entre outras divergências, se encontrava a questão stalinismo vs anti-stalinismo. A Conferência

Nacional Extraordinária que fora convocada por uma parte dissidente do então Partido

Comunista do Brasil (PCB) deu origem a um novo partido que se auto-proclamava a legítima

continuação do partido “original” fundado em 1922, o PC do B. Essa ruptura se deu pelos

problemas que vinham se juntando desde o 20º Congresso do PCUS, quando Khrushchov

denunciou os crimes de Stalin. João Amazonas, ideólogo e militante do PC do B e outros

companheiros que se identificavam com suas pautas, discordaram veementemente com a

chamada “linha pacífica”, tática revolucionária que previa uma revolução em etapas, pois

consideravam que essa estratégia era contrário aos ideais marxistas-leninistas e após o PCB

substituir o nome “do Brasil” para “Brasileiro” e também retirarem qualquer menção ao

marxismo-leninismo, com o objetivo de conseguir um registro no TSE, o racha finalmente se

consumou, com João Amazonas e outros dissidentes sendo expulsos do partido após o

10 Ibidem, p. 88. 11 Ibidem, p. 91.

16

“Manifesto do Cem”, um protesto contra as reformas dentro do Partido Comunista do Brasil,

que daquele momento até os dias de hoje passou a ser Partido Comunista Brasileiro.

Observo uma questão de stalinismo contra anti-stalinismo nesse racha, ainda que não

seja o único motivo, pois os fundadores do PC do B, que não negavam o culto a personalidade

de Stalin, viam as ideias de Khrushchov como avessas ao pensamento marxista-leninista ao

tentar uma aproximação pacífica com os EUA em plena Guerra Fria, o que era, ao menos na

visão dos dissidentes do PCB, uma completa distorção dos ensinamentos de Lênin no que diz

respeito à coexistência pacífica.

Não me parece incorreto afirmar que o anti-stalinismo renasceu em 1956 com o

Relatório de Khrushchov, digo renasceu pois o anti-stalinismo já existia com Trotsky e outros

que se opunham à tese do socialismo em só um país. Mas foi no dia 25 de fevereiro de 1956,

no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, que Nikita Khrushchov mudou ou

tentou mudar os rumos do socialismo ao criticar severamente seu antecessor, revelando crimes

como o Grande Expurgo e denunciando o culto a personalidade de Stalin. O anti-stalinismo

propagado por Khrushchov esfriou-se com a sua remoção do cargo de Secretário-Geral, que foi

ocupado por Leonid Brejnev, em 1964.

Uma terceira vertente do anti-stalinismo, fora do âmbito da esquerda, foi aquela

praticada pelo Ocidente capitalista. Na Guerra Fria, vilipendiou exaustivamente a figura de

Stalin, através dos mais variados meios de comunicação, da política e da cultura.

No plano teórico, em 1990 o historiador russo Dmitri Volkogonov, um dos autores mais

influentes da URSS e da Rússia pós-soviética, publica a obra “Stalin - Triunfo e Tragédia”,

dividida em dois volumes. No Brasil, o livro foi publicado pela primeira vez em 2004 pela

editora Nova Fronteira.

Particularmente, considero a obra de Volkogonov essencial para esse trabalho, pois ela

é um marco nos estudos da história da URSS e dos rumos que o país tomou pelas mãos de

Stalin. Com Gorbachev no poder, sua política da perestroika e da glasnost deu abertura para

um revisionismo histórico acerca do passado da URSS, os caminhos que o país percorreu e o

stalinismo. Dito isso, a obra de D. Volkogonov teve um papel fundamental na sistematização

desse revisionismo12. Embora o revisionismo acerca de Stalin e suas políticas já tenham se

iniciado com o Relatório de Khrushchov, se tornou mais forte, sobretudo, após as políticas de

Gorbachev e do livro “Stalin- Triunfo e Tragédia”, ainda que a mesma tenha sido fortemente

12 DIAS, R. B. O revisionismo histórico na União Soviética e na Rússia pós-soviética: anotações sobre a obra de

Dmitri Volkogonov. Revista Espaço Acadêmico, v. 16, n. 189, p. 12-24, 5 fev. 2017, p. 13.

17

influenciada pelo discurso de Nikita Khrushchov e ter sido também um efeito das “primeiras

manifestações da revisão histórica"13, em outras palavras, essa obra biográfica sobre Stalin

influenciou a revisão histórica, como também foi influenciada pela mesma. Pode-se afirmar

ainda que Stalin serviu como um bode expiatório para o livro, pois quando a Perestroika entrou

em vigor, era de extrema importância manter os alicerces comunistas intactos, assim como o

fundador da União Soviético, Vladimir Lênin.

Em direção oposta, o filósofo marxista italiano Domenico Losurdo, publica seu livro

“Stalin - História Crítica de uma Lenda Negra”, que ganhou uma edição no Brasil em 2010. O

autor tenta resgatar o antigo líder da extinta União Soviética de sua fama totalitária e

sanguinolenta, atribuída, na perspectiva de Losurdo, pelo ocidente. Apesar de não ter sido a

primeira obra com o objetivo de resgatar Stalin a ser publicada no Brasil, foi a mais influente

para uma revisão da História anti-Stalin, de modo a poder valorizar suas qualidades, mas seguir

nas críticas de seus defeitos, como uma alternativa para a esquerda brasileira, insuflando um

grande debate dentro dela.

Em 2020, o nome do marxista italiano saiu em diversos veículos de comunicação que

buscavam trazer informações acerca do autor e como ele “encantou” o cantor Caetano Veloso,

afirmando ter conhecido a obra de Losurdo através do historiador e influenciador digital, Jones

Manoel14, que por sua vez se envolveu em uma “polêmica” que ficou conhecida como o “caso

Jones Manoel”. O “caso Jones Manoel” se trata da repercussão causada pelo artigo “O

anticomunismo que a direita gosta” escrito pelo historiador para a primeira edição da revista

Jacobin Brasil em 2019, recebendo críticas negativas por parte de professores tanto da Unicamp

quanto da USP, acusando o historiador pernambucano de stalinista, corrente ideológica a qual

o próprio J. Manoel diz não fazer parte, afirmando apenas que alguns meios utilizados por

Stalin em sua liderança na União Soviética devem ser analisadas fora do âmbito imperialista e

anticomunista15. Em minha perspectiva, o historiador Jones Manoel foi a “pedra angular” para

a retomada do debate sobre o stalinismo no país, pois foi a partir dele e sua comunicação virtual

em plataformas como o YouTube que a obra de Losurdo foi disseminada, principalmente para

o público mais jovem, mas também para outros como o próprio Caetano Veloso.

13 Ibidem, p. 14. 14 MARREIRO, Flávia. A esquerda radical brasileira desenterra o debate sobre o socialismo real e ganha

adeptos na rede. Brasil El País, 2020. Disponível: <https://brasil.elpais.com/brasil/2020-10-31/a-esquerda-

radical-brasileira-desenterra-o-debate-sobre-o-socialismo-real-e-ganha-adeptos-nas-redes.html>. Acesso em:

03/05/2021. 15 Ibidem.

18

Junto com a vitória eleitoral da direita, em 2018, a presença midiática de Jones Manoel

vem trazendo novas colorações ao debate sobre Stalin. Como se, com todos seus defeitos e

deformidades, Stalin fora o grande vitorioso sobre o fascismo, inspirando assim as lutas do

presente contra essa corrente política novamente na crista da onda.

Vimos que o contexto histórico da Rússia contribuiu para a formação de um sistema

extremamente autoritário como o stalinismo. Por exemplo, a passagem de um sistema

basicamente feudal para uma rápida e massiva industrialização, só pôde ser realizada através

da força e da repressão, assim como as substituições das crenças pelo culto ao Estado e a Stalin.

Tratei também brevemente do stalinismo no Brasil antes de tratar das biografias publicadas em

torno dele, com o intuito de apresentar um contexto e evidenciar como até hoje as ideias

stalinistas ainda estão presentes em nosso país e como em certa medida, ao que parece, elas,

junto com a imagem de Stalin, afloraram no momento em que vivemos como uma necessidade

de resistência à ascensão da direita. No próximo capítulo, buscarei tratar da Rússia pós-

soviética e de Vladimir Putin, e como este resgatou a figura de Stalin como um líder.

19

Capítulo II

Stalinismo na Era Putin

A Rússia atual é formada pela herança, positiva e negativa, da antiga União Soviética,

dissolvida em 1991. O enfraquecimento da URSS começou ainda na década de 1980, quando

o então líder do Partido, Mikhail Gorbachev, iniciou um processo de gradual abertura política

conhecida como Glasnost e também de uma abertura econômica, a Perestroika, na tentativa de

aliviar as tensões internas que o bloco vinha sofrendo, principalmente pelos altos gastos na área

militar, por causa da Guerra Fria contra os EUA. Com a queda da URSS e seu líder Gorbachev,

a Rússia tinha como presidente eleito Boris Yeltsin, que ao contrário das políticas de seu

“antecessor” que buscava uma “adesão” ao mundo capitalista com pequenos passos, promoveu

uma rápida adesão do país ao mundo capitalista com uma onda de privatizações. Esse choque

de realidade com o capitalismo teve como uma das consequências o surgimento de uma

oligarquia milionária (antigos burocratas soviéticos), aos quais muitos estavam envolvidos em

corrupção e outros crimes. Além disso, o país também afundou em crises políticas e

econômicas, como a dissolução do parlamento em 1993 e o calote na dívida externa em 1998.

Em suma, a década de 1990 foi um período de duras perdas e transformações para os russos.

A política de Yeltsin em uma entrada rápida na economia de mercado capitalista

causaram desproporções e desequilíbrios:

Yeltsin, seguindo o receituário da “terapia de choque”, decidiu que,

desde o início de 1992, os preços ao consumidor seriam livres na Rússia,

mesmo nas lojas estatais. O resultado é que os russos viram um show de

remarcação nas vitrines capaz de fazer inveja a qualquer supermercado

brasileiro na época áurea da inflação galopante. Os preços subiram em média,

de 3 a 5 vezes (alguns até 30 vezes). Para piorar, não houve uma melhora

imediata na oferta de produtos, como seria de esperar numa situação de preços

de equilíbrio16.

O mentor dessa “terapia de choque” (rápida entrada no mercado capitalista) foi Yegor Gaidar

(1956 - 2009), primeiro-ministro russo no ano de 1992. O fato dessa “terapia” não ter atingido

os resultados esperados (ao contrário) não motivou Gaidar a retroceder, mas afirmar que o

mercado russo estava desequilibrado porque era dominado por grandes companhias que o

monopolizaram, excluindo a livre concorrência. Para resolver essa questão, uma das ideias

realizadas foi a distribuição de cupons para a população russa de forma gratuita, cada cupom

16 SEGRILLO, Angelo. De Gorbachev a Putin: A Saga da Rússia do Socialismo ao Capitalismo. Curitiba:

Prismas, 2014, p. 85-86.

20

tinha o valor de 10 mil rublos e poderiam ser trocados por ações das empresas estatais, com

isso o objetivo era privatizá-las. Entretanto, esse processo de rápida privatização por cupons

teve problemas sérios, como bem aponta Segrillo em sua obra “De Gorbachev a Putin: A Saga

da Rússia do Socialismo ao Capitalismo” (a obra que me baseio para tratar das questões

políticas e econômicas da Rússia pós-1991), como a desvalorização dos cupons por causa da

inflação desenfreada e falta de investimentos na economia. Esse e outros problemas formaram

uma oligarquia econômica que passaram a dominar a economia e a influenciar o governo:

No conturbado período da “privatização por cupom” (ago 1992-jul. 1994),

novas estruturas de poder econômico foram se formando. A economia passou

a ser concentrada na mão de um pequeno número de grandes grupos,

formando uma verdadeira oligarquia econômica17.

Tais divergências econômicas e políticas, somadas à disputa pelo poder na Rússia pós-

soviética, acarretaram em uma grave crise constitucional no país em 1993 entre a Presidência

e o Parlamento. A crise chegou ao ponto do então presidente Boris Yeltsin dissolver o

Parlamento no dia 21 de setembro, pois era um obstáculo para a implementação das suas

reformas políticas e econômicas. É claro que essa dissolução foi inconstitucional e, em

contrapartida, o parlamento decretou o impeachment de Yeltsin, colocando em seu lugar o vice

Alexander Rutskoi. A partir de então, ondas de protestos violentos com forte repressão estatal,

contra o presidente deposto e a favor do parlamento, começaram a se realizar. O auge foi no

dia 3 de outubro de 1993, quando os manifestantes tentaram invadir o centro de televisão

Ostankino e em resposta o exército, sobre o comando de Yeltsin, prendeu líderes da resistência

após invadirem o Soviete Supremo, para atingir esse objetivo utilizaram armamentos pesados

como tanques e artilharia. Foi o momento mais delicado da Rússia e o mais próximo de uma

nova guerra civil desde 1917.

A Rússia de Boris Yeltsin ainda passaria por dois grandes problemas: a guerra da

Chechênia e mais uma crise, a crise econômica de 1998. Discorrendo brevemente sobre os dois

acontecimentos, a guerra contra a Chechênia (motivada pelo separatismo) duraria praticamente

dois anos, de dezembro de 1994 a agosto de 1996, a região era um ponto estratégico pois “por

ela passava a principal rodovia, a única ferrovia e o único oleoduto, da Rússia, entre esses dois

mares. O petróleo é uma das riquezas da região”18. Inicialmente a guerra pareceria ser uma

missão fácil e rápida para os russos, mas se mostrou difícil devido ao terreno montanhoso e a

17 Ibidem, p. 92. 18 Ibidem, p.104.

21

resistência dos chechenos, mais a baixa moral do exército russo pela crise econômica. Mas a

guerra finalmente chegaria ao fim dois anos após seu início com um tratado de paz assinado

por ambos os lados, nesse momento a guerra já estava impopular entre os russos.

Já a crise de 1998 é decorrente direta das medidas neoliberais para incluir a Rússia ao

mercado capitalista o mais rápido possível, como vimos nos parágrafos anteriores. O crash na

Bolsa de Hong Kong em 1997 forçou a Rússia e outros países a fugas de capitais investidos no

mercado financeiro, levando a desvalorização de suas respectivas moedas em comparação ao

dólar americano. Entretanto, a Rússia manteve a paridade com o dólar e essa política cambial

adicionada a queda da receita das exportações, fez com que as dívidas internas e externas do

país se tornassem praticamente impossíveis de serem pagas. A solução de Yeltsin para isso foi

a prorrogação do pagamento das dívidas, a chamada moratória, gerando desconfiança nos

investidores internacionais. Com isso, o Estado Russo foi forçado a desvalorizar o rublo para

que os investimentos voltassem ao país e aos poucos fosse recuperando a economia. Uma das

consequências diretas dessa crise, na política, foi a ascensão de Vladimir Putin em 1999.

Após uma “ciranda” de primeiro-ministros (em 17 meses, contando a partir de março

de 1998, Yeltsin teve cinco ministros diferentes), no dia 16 de agosto de 1999, Vladimir Putin,

ex-agente da KGB da antiga URSS e até então chefe da FSB (Serviço Federal de Segurança)

foi nomeado como o novo Primeiro-Ministro do governo. Por causa de sua personalidade, um

homem “robótico” e carente de carisma, sua nomeação causou um genuíno sentimento de

surpresa, que só veio a aumentar no momento em que Yeltsin confirmou a candidatura de Putin

como seu sucessor à presidência do país no ano seguinte. Contudo, essa desconfiança inicial

em torno da figura do novo Primeiro-Ministro e futuro presidente da Rússia, logo seria

revertida:

[...]Putin veria sua popularidade como político subir em poucos

meses. Isto se deveria à (in)feliz coincidência de que logo ocorreriam

acontecimentos que levaram grande parte da população russa a desejar alguém

com suas características no cargo. Primeiramente, agiu com vigor contra os

guerrilheiros islâmicos no Daguestão que já estavam começando a ocupar

aldeias nas montanhas no início de agosto. Invadiu o território ocupado,

retomando-o e obrigando os guerrilheiros chechenos que haviam estado no

Daguestão a voltar à Chechênia. Outro fator que acabou revelando a face

“útil” de Putin à maioria do público russo seriam os atentados a bomba na

Rússia e a consequente invasão da Chechênia. Em setembro, uma série de

atentados a bomba contra edifícios residenciais na Rússia deixou um saldo de

cerca de 300 mortos. Dois dos atentados ocorreram em Moscou e os outros

dois em cidades do interior. Nenhum grupo assumiu os atos, mas as

autoridades russas disseram ter certeza que eles partiram de guerrilheiros

islâmicos da Chechênia. Putin ordenou um bombardeio de “bases terroristas”

naquela região. Reproduzindo a estratégia utilizada pelas tropas da OTAN na

Iugoslávia, após terem destruído estruturas e enfraquecido as defesas

22

chechenas por ar, a Rússia enviou tropas para invadir por terra. Estes novos

métodos, mais a própria experiência da guerra anterior de 1994-96 (agora

tinham melhores mapas da região, criaram um canal único de informação

oficial para evitar o desencontro de posições do governo sobre o andamento

do conflito, impediram melhor a propagação das versões do lado checheno

sobre os combates) levaram a que a invasão tivesse bastante sucesso inicial,

chegando à beira da capital, Grosny. Apesar dos protestos ocidentais contra

os danos causados pelos ataques e o tratamento ruim dado ao problema dos

refugiados de guerra, internamente a popularidade do primeiro-ministro

“durão” subiu, pois os atentados a bomba na Rússia haviam colocado a

população russa com desejo de acabar de uma vez por todas com aquela

situação19.

A posição de um líder com pulso firme e sério como Putin, passaria a ser visto de forma

otimista pela população como a solução para colocar a Rússia novamente nos trilhos, depois de

uma década de altíssimas conturbações e crises políticas e econômicas com a queda da União

Soviética. Com o tempo, Putin começaria a ser comparado com o antigo líder da URSS, Josef

Stalin, pelas suas políticas questionáveis em lidar com seus opositores e manifestações

populares. Ademais, suas políticas educacionais de ensino nas escolas recuperaram, em certa

medida, a figura de Stalin como um líder necessário para o momento histórico em que a União

Soviética passava, como veremos a seguir.

Em 2019, a BBC publicou uma matéria na qual discorre sobre um estudo realizado pela

mesma a respeito dos russos e da figura do falecido líder da antiga União Soviética, Stalin.

Nela, o jornal afirma que 51% dos russos gostam de Stalin e 70% dizem que seu papel na

história da Rússia foi “positiva”20. A matéria ainda aborda sobre o motivo pelo qual a imagem

de Stalin seja mais positiva na Rússia, afirmando que, em partes, o que levou a isso foi a nova

política educacional imposta pelo presidente Vladimir Putin, com um viés mais patriótico,

focando nos livro didáticos, por exemplo, a participação dos soviéticos na Segunda Guerra

Mundial, sem mencionar os crimes cometidos pelo regime stalinista.

Montefiore, em sua obra multi biográfica “Titãs da História” (2018), também cita

quando vai tratar de Stalin sobre a política educacional de Putin, ao observar que um livro

didático prefaciado pelo presidente russo, no ano de 2008, exaltava Stalin como o “mais bem

sucedido líder russo do século XX" (MONTEFIORE, 2018). Continuando, a matéria diz que

para especialistas, essa nova política educacional patriótica, exaltando Stalin (e também o

passado tzarista) tem por objetivo colocar a Rússia nos trilhos para se tornar uma superpotência

novamente, com um papel mais protagonista na geopolítica internacional. A partir disso,

19 Ibidem, p. 140-141. 20 O QUE OS RUSSOS PENSAM DE STALIN? BBC, 14 de maio de 2019. Disponível em :

<https://www.bbc.com/portuguese/geral-48274121>. Acesso em: 31/05/2021.

23

poderíamos dizer que se trata de uma tentativa de encurtar as diferenças econômicas e militares

em relação aos EUA a partir do âmbito educacional e cultural, infundindo nos jovens russos

um sentimento patriótico ardente que faça refletir futuramente nos outros âmbitos da nação. Me

parece também se tratar de não ficar para trás em relação à China, que no momento em que

Putin implanta a nova política educacional, os chineses vinham crescendo consideravelmente

na economia e no exército e hoje, 2021, ao meu ver já é possível dizer que se trata de uma

superpotência que faz frente ao Ocidente e em particular aos Estados Unidos.

Não obstante, a Rússia atual tem uma função para o próprio capitalismo, pois ao fazer

uma ponte entre a Europa e Ásia, o país acaba exercendo um importante papel para a economia,

como importações e exportações de produtos, por exemplo a dependência européia do gás

russo, matéria prima energética essencial para a Europa e o pagamento da dívida externa. Mas

não só isso, a Rússia de Putin é benéfica para o sistema capitalista no combate ao terrorismo e

tensões que podem direcionar para o caos a macroeconomia da região, por isso uma Rússia

forte é importante para o Ocidente. Contudo, não quer dizer que o governo Putin é plenamente

alinhado aos interesses dos EUA e demais países ocidentais, a realidade é muito mais longe, a

Rússia tem seus próprios interesses que batem de frente com a OTAN e EUA, vide a crise na

Ucrânia. Por isso, a mesma Rússia que por um lado é benéfica para o Ocidente que seja forte,

não pode, por outro lado, ser muito forte e nem muito nacionalista, algo que Putin está

realizando, em partes graças a sua popularidade.

É pertinente a análise de Rocío Berardo sobre o poder e a popularidade de Putin:

La disolución de la URSS y los años posteriores fueron tiempos muy

traumáticos para la población de la Federación Rusa, como consecuencia, en

gran parte, de la humillación sufrida por parte de los países aliados a Estados

Unidos durante la Guerra Fría. Tal vez podemos afirmar que por ese motivo,

tanto Putin como la mayoría de los rusos, son fervientes nacionalistas. Tienen

como objetivo reconstruir la Rusia grande que alguna vez fue y volver a

ubicarla en el escenario internacional como una potencia competidora de

occidente. Y Putin trabajó por ese propósito.21

Isso nos faz pensar que os russos anseiam por uma recuperação do passado da Rússia

dos tempos da extinta União Soviético e/ou até mesmo pelo retorno de um passado mais

longínquo, o do Império Russo. De um modo ou de outro, buscam o retorno da Rússia à

geopolítica mundial como uma das grandes protagonistas, sem ser refém das demais potências

mundiais e até hoje, tudo indica que Vladimir Putin venha atendendo a esse desejo do povo

21 BERARDO, Rocío. A qué se debe el gran éxito de Putin y cómo logró mantenerse tantos años en el

poder. Reno: University of Nevada, 2020, p. 2.

24

russo ao mesmo tempo em que o infla com suas políticas. Por isso mesmo uma parte

considerável da população da Rússia cultiva uma boa imagem acerca de Stalin, pois para além

das bases educacionais propostas no governo Putin (o que sem dúvida influenciaram) a própria

população busca memórias sobre o antigo líder soviético visando a vitória da URSS sobre a

Alemanha Nazista na Segunda Guerra Mundial, ou como dizem os próprios russos, a Grande

Guerra Patriótica e consequentemente a ascensão logo após a guerra da União Soviética como

uma grande potência militar e temida no Ocidente, visando sanar os tempos de crise e de

relativa “submissão” aos EUA pós- Guerra Fria e dissolução da URSS.

Seria uma visão muito rasa concluir que a Rússia de Putin está retornando ao culto de

Stálin, tão rasa quanto concluir que o próprio Putin seria um stalinista, pois com o apoio do

mesmo foi construído em 2001 um museu que relembra os horrores dos Gulags. Ainda que o

museu em questão não responsabilize Stalin diretamente, sua construção é um sinal claro de

que Putin não pretende apagar os erros cometidos no passado. Ademais, como escreve Lenina

Pomeranz em seu artigo “Putin e a inserção internacional da Rússia”:

Assim, ele examina, inicialmente, a crescente afirmação do orgulho

nacional e uma ressurgência do patriotismo, que se tornaram mais

estridentes depois da crise da Ucrânia. Politicamente, esse novo

nacionalismo seria predominantemente conservador, no sentido de

que se volta para as glórias do passado soviético ou do passado

imperial22.

Pomeranz em seu artigo realiza uma resenha acerca da obra de Stephen F. Cohen

intitulada “War With Russia?” no qual este chama de uma nova guerra fria entre os anos de

2014 e 2015 devido ao agravamento da guerra civil na Síria e da crise ucraniana23. Diria até

que atualmente já podemos falar em uma espécie de Segunda Guerra Fria pelas crises

diplomáticas ocorridas e que ainda ocorrem entre as potências, que motivou o presidente da

Rússia a fazer um alerta para o risco que a civilização corre devido às tensões provocadas pela

Covid-19 no encontro do Fórum Econômico Mundial24. Apenas como exemplo, podemos citar

o caso Alexei Navalny, um dos casos que aumentou consideravelmente as tensões entre a

Europa Ocidental e a Rússia. Nesse contexto de segunda guerra fria, se posso assim chamá-lo,

pressiona Putin a tomar políticas de cunho nacionalista que remetam ao passado não somente

da Rússia Soviética mas também Imperial e que estejam relacionadas aos costumes arraigados

22 POMERANZ, Lenina. Putin e a inserção internacional da Rússia. Estudos Avançados, 2019. p. 416. 23 Ibidem, p. 418. 24 GIELOW. Igor. Civilização corre risco com tensões provocadas pela Covid-19, diz Putin. Folha de São

Paulo, 27 de janeiro de 2021. Fórum Econômico Mundial. Disponível em:

<https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/01/civilizacao-corre-risco-com-tensoes-provocadas-pela-covid-19-

diz-putin.shtml>. Acesso em: 02/06/2021.

25

no povo russo, como o forte moralismo religioso das igrejas ortodoxas, para tentar se manter

no poder com a aprovação da população e assim seguir com sua agenda de uma Rússia mais

forte e decisiva nas direções que o mundo for caminhando.

Dito isso, parece-me substancial fazer uma análise sobre o fenômeno Putin no Brasil.

Pode soar estranho, mas nos últimos anos Vladimir Putin ganhou tal popularidade pelo mundo

que refletiu inclusive no Brasil, atraindo atenção das pessoas tanto da direita conservadora

quanto da esquerda, esta última da ala mais radical de forma predominante. Em relação ao zelo

à Rússia de Putin prestado por muitos conservadores de direita no Brasil, se deve aos valores

morais e religiosos cultuados no país, dando a sensação de ser uma nação que preserva valores

cristãos, ainda que ortodoxos, ao mesmo tempo em que combate a agenda progressista da elite

liberal ocidental, como por exemplo a agenda 2030 da ONU, altamente criticada por

conservadores ocidentais de promover o aborto, direitos LGBTs, ideologia de gênero, entre

outras pautas de cunho progressitas presentes na agenda em questão. Interessante notar que,

pelo mesmo motivo que Putin causa admiração em muitos direitistas conservadores, acaba

resultando em desprezo por muitos esquerdistas progressistas, que observam na imagem de

Putin um homem repressor e de “extrema-direita” (inclusive fascista na visão de alguns),

devido às suas políticas “contra” os LGBTs principalmente. E também pelo filósofo russo

Alexandr Dugin, considerado por muitos como o guru de Putin, que é criticado por flertar, na

visão de seus críticos, com o fascismo.

Por outro lado, o mesmo governo russo, com a sua valorização ao passado soviético e

em especial a vitória sobre os nazistas, parece seduzir uma parte da esquerda brasileira que não

consegue avistar no horizonte outro caminho para o combate contra ascensão da direita

brasileira com a posse de Jair Messias Bolsonaro como presidente do Brasil, senão uma

radicalização forte, um combate não somente apenas pelas vias culturais, mas também, se

necessário for, pelos confrontos sociais, fisicamente falando. É nesse ponto que entra a figura

emblemática de Stalin, o líder que comandou a vitória da URSS contra os fascistas, e seus

admiradores encontram respaldo para a defesa das ações de Stalin no nacionalismo de Putin

(apenas a título de curiosidade, coincidentemente ou não, Stalin foi encarregado por Lênin para

tratar das questões nacionais da então União Soviética e posteriormente, a teoria do socialismo

em um só país do georgiano prevaleceu) ao fomentar uma glorificação da vitória soviética em

1945 e da luta frente ao nazi-fascismo.

Inclusive, a mencionada construção do museu em moscou no ano de 2001 para retratar

os gulags, para alguns observadores, não obstante a explicitação da responsabilidade do Partido

Comunista, o museu parece não explicar de “forma explícita o papel de Stalin como

26

responsável”25. Com isso, o fenômeno Putin é comprado por direitistas e esquerdistas de acordo

com a parte ideológica que lhes convém, sem se dar conta, ao menos na maioria dos casos, de

que estão comprando o pacote todo e não apenas a parte que lhes é visível.

Sobre o espectro político de Putin, Angelo Segrillo afirma:

Defenderemos que Putin é um ocidentalista moderado (ao contrário

de Yeltsin, que era mais abertamente pró-ocidental) [...]

Alguém poderia imediatamente clamar: “Mas como Putin pode ser

ocidentalista se ele atualmente se confronta tão abertamente com os EUA e

países ocidentais?”. Em resposta podemos dizer o seguinte. Reparem que a

maioria dos embates de Putin é contra os EUA principalmente. Assim como

o fato de que o presidente Charles de Gaulle da França frequentemente se

confrontava os EUA não fazia dele uma pessoa antiocidental, o fato de Putin,

ao ser tão assertivo no que considera os interesses da Rússia, se bater

frequentemente com os EUA não significa que ele seja a priori antiocidental26.

Dessa afirmação, não seria errado concluir que Putin se encaixaria como um político de

centro-direita, ainda que isso não seja indiscutível, pelo contrário, suscita muitas discussões,

pois muitos não consideram Putin como um ocidental moderado e centro-direita, mas um

eurasianista, ideologia que prega a síntese entre Ocidente e Oriente, Europa e Ásia. Mas o

objetivo neste capítulo não é discutir o espectro político de Putin em si mesmo e sim suas ações

no campo efetivo da vida política e consequentemente da sociedade russa, mais especificamente

de como Stalin ressurgiu como um grande líder da história da Rússia a partir das políticas

educacionais do governo Putin.

A imagem de Stalin e do Exército Vermelho acabam ganhando destaque devido ao

contexto atual e global e é por isso que suas biografias, pró e contra, também ganham relevância

(se é que um dia haviam perdido) e no Brasil não é diferente. Com a democratização da internet

e a popularidade de redes sociais dentro dela, como o YouTube por exemplo, ampliam

exponencialmente diversos debates, entre esses debates consta o tema do stalinismo e do

homem que originou esse nome. Por isso, não é de se admirar que livros acabam sendo

recomendados e reconhecidos através da internet, como as biografias escritas sobre Stalin.

Como a obra de Losurdo que citei no capítulo anterior, que se tornou mais conhecida entre os

jovens especialmente após sua recomendação pelo historiador Jones Manoel, em seu canal no

YouTube. Portanto, as biografias e outros livros que remetem a vida de Stalin e suas políticas

na antiga URSS são, como sempre foram, importantes para o entendimento do sistema daquele

25 RESCHETO, Juri. Museu Gulag, em Moscou, relembra vítimas do regime de Stalin. DW, 16 de maio de

2016. Cultura. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/museu-gulag-em-moscou-relembra-

v%C3%ADtimas-do-regime-de-stalin/av-19268951> Acesso em: 02/06/2021.

26 SEGRILLO, Angelo. De Gorbachev a Putin: A Saga da Rússia do Socialismo ao Capitalismo. Curitiba:

Prismas, 2014, p. 214-15.

27

país, do socialismo e da luta contra o nazi-fascismo, mas de forma especial hoje em dia quando,

não obstante a evolução tecnológica, nos encontramos em um contexto geopolítico

internacional muito semelhante àquele do começo da década de 1930, pré-Segunda Guerra

Mundial e também para se entender o presidente Putin e sua forma de governar, curiosos e

estudiosos acabam por querer entender primeiro quem foi Stalin e seu governo, correndo atrás

de suas diversas biografias já publicadas.

Após a queda da União Soviética, uma superpotência que fazia frente aos Estados

Unidos e era temida pelas demais potências ocidentais, surgiu uma Rússia altamente instável

com suscetíveis crises políticas e econômicas e acuada perante o mundo capitalista, o que

certamente causava uma indignação nos russos, principalmente nos mais velhos que viram e

participaram ativamente na vitória da URSS sobre a Alemanha Nazista e na ascensão soviética

como uma potência nuclear. Dado isso, era de esperar que a figura de Putin se tornasse

respeitada e popular entre os russos, após uma breve desconfiança, como o presidente que

recolocou o país de volta ao protagonismo na geopolítica internacional, buscando e mantendo

um certo poder de equilíbrio não só com os EUA, mas com a China também, mesmo que as

relações com esta sejam melhores do que com o primeiro. Não que a Rússia alguma vez tenha

desaparecido totalmente desse protagonismo, mas havia diminuído com a dissolução da União

Soviética e que se voltaria depois de anos com o governo Putin.

As políticas educacionais promovidas pelo governo Putin também, como vimos,

influenciaram na inflamação de uma sentimento nacionalista entre a população russa, ao

vangloriar as vitórias russas do passado, seja nos tempos imperiais ou soviéticos. As

comparações realizadas entre Putin e Stalin suscitam muitos debates aos quais remetem as

biografias do ex-líder soviético e em diversas ocasiões os debates que em um primeiro

momento era sobre Putin e Stalin, acaba por mudar de rumo e se restringem ao papel de Stalin

na história e suas biografias, laudatórias e detratoras, passam a ser o foco.

28

Capítulo III

A questão biográfica

As biografias sempre estiveram presentes no campo historiográfico, ainda que

questionadas e criticadas, nunca deixaram de contribuir para a História de uma forma ou de

outra e hoje mostram-se, como em muitos outros momentos, bastante procuradas para os mais

diferenciados temas, neste caso o tema rodeia através de Stalin e seu legado para o mundo,

visto pela maioria como negativo, mas há os que o defendem e esforçam-se para justificar suas

atitudes quando ditador da antiga União Soviética. Este debate está em alta no contexto atual

de nosso país e as biografias do ex-ditador também encontram-se em alta, se é que algum dia

deixaram de estar.

A vida de Stalin é dividida em vários segmentos, como a vida pública e a privada, a

juventude e a velhice, a de um Stalin revolucionário em começo de carreira e a do Stalin como

líder da URSS, a sua vida como estadista e sua vida pessoal. Essas divisões formam uma

identidade de Stalin e a respeito das biografias como formação de identidade, Bruno Rocha

afirma:

O indivíduo moderno pode ser entendido a partir de uma perspectiva

atomista da atividade humana, analisando atos e transações complexas em

termos de componentes simples. Por esse motivo, não é incomum considerar

a ação humana como um ato puramente voluntário, deixando de lado a

importância do contexto histórico para a sua significação, fazendo uma

separação nítida entre o indivíduo e os papéis sociais que ele interpreta, de

forma a tornar a vida nada além de uma série de episódios desconexos e

incompreensíveis como unidade, liquidando o próprio eu (MACINTYRE,

2001)27.

Aplicando a ideia citada acima nas biografias de Stalin, os diversos segmentos de sua

vida aos quais cada biógrafo se sujeita a estudar, devem ser analisadas em conjunto na medida

do possível e não desconexas entre si. Por exemplo, observar os processos na vida juvenil e

como elas o moldaram e o influenciaram em sua vida adulta ou então, como os conflitos de sua

vida pessoal afetam suas decisões como estadista da União Soviética. Além disso, o contexto

histórico político e social da época proporcionam uma importante significação para os estudos

sobre a vida de Stalin, pois suas ações humanas individuais, inseridas em cenários sociais, se

comunicam e são interdependentes28. Por isso, uma não deve se separar da outra: o contexto da

27 ROCHA, Bruno Anunciação. Ensaio sobre a importância das obras biográficas na construção da identidade.

Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3940, 15 abr. 2014. Disponível em:

https://jus.com.br/artigos/27485. Acesso em: 2 jul. 2021. 28 Ibidem.

29

época nos ajuda a compreender melhor as trajetórias de Stalin (ou de qualquer outro biografado)

e, por outro lado, suas biografias nos ajudam a obter uma dimensão maior para entender os

processos históricos daquela época.

O meio social, cultural, político e familiar fazem o homem e ao estudarmos, analisando

e observando a vida de um indivíduo, estaremos também estudando o meio em que este

indivíduo nasceu, vive e faleceu.

B. Rocha também afirma:

Diante dessas considerações, fica evidente a importância da biografia

para a formação da identidade, já que ela fornece informações relevantes sobre

a história da qual os indivíduos participam. E a história é formada por

narrativas que se correlacionam. Por esse motivo, não faz sentido dizer que a

narrativa da vida de um cantor famoso (Roberto Carlos, para dizer um nome)

é de sua propriedade exclusiva, já que ele assumiu papéis, ainda que

coadjuvantes, nas narrativas de seus fãs, influenciando-as em menor ou maior

proporção. Da mesma forma, a narrativa de vida de um estadista, como por

exemplo, Getúlio Vargas, é importante para a formação da identidade dos

brasileiros, já que suas ações influenciaram não só a sua própria narrativa, mas

também as das pessoas que compartilham uma história comum com ele. Isso

não significa, porém, dar azo a uma exposição irrestrita da vida das pessoas.

Como bem disse Barbara Tuchman, “na medida em que a biografia é usada

para iluminar a história, voyeurismo não tem lugar” (TUCHMAN, 1986, p.

147, tradução nossa)29.

Dito isso, as biografias de Stalin não servem apenas para entender sua vida, mas o

contexto da URSS a qual ele estava inserido e não somente isso, as biografias ajudam a criar

uma identidade para o povo soviético daquela época, especialmente na Segunda Guerra

Mundial com o histórico discurso de Stalin para a população, apelando para um sentimento

patriótico e nacionalista (não por acaso os russos, como já disse antes, denominam a segunda

guerra como “A Grande Guerra Patriótica”), convocando todos em defesa da Mãe Rússia. Nem

sempre uma biografia tem essa capacidade de gerar uma identidade para um país ou uma região,

mas biografias de agentes históricos diretos e estadistas, como é o caso de Josef Stalin, elas

acabam exercendo essa função mesmo que não intencionalmente.

Ao meu ver, isso acontece pois figuras políticas importantes como Getúlio Vargas,

Hitler, Churchill, Roosevelt, Stalin e muitos outros, possuem uma significação intrínseca da

história em que participam, em outras palavras, o contexto (isto é, a região e o tempo) em que

nasceram deram uma significação e mais, deram uma identidade para eles ao passo em que ao

se tornarem agentes históricos de destaque, a identidade e significado que cada um carrega

consigo mesmo também se destacam. Indo mais além, tais agentes históricos, como os citados

29 Ibidem.

30

acima, acabam por moldar uma nova identidade e um novo significado para seus respectivos

países e nações com base naquela identidade e significado que eles já traziam consigo.

Na Revista Latino-Americana de História do ano de 2015, Rafael N. Gomes escreve o

seguinte parágrafo:

Como historiador, no entanto, acreditamos que o método biográfico

se apresenta como mais um recurso para interpretação histórica, sobretudo no

campo político, não somente de um personagem, bem como de um

determinado período, ou até mesmo de um determinado lugar social30.

Corroboro com essa afirmação ressaltando que, ao analisarmos as biografias de Stalin

compreendemos, ainda que não em sua totalidade, não apenas um homem, mas o tempo e o

espaço em que ele nasceu, viveu e morreu e consequentemente uma nova interpretação histórica

daquela época, não um revisionismo, mas uma interpretação que complemente a história da

União Soviética em um tempo delimitado.

As biografias, portanto, não têm apenas o papel de contar uma narrativa histórica da

vida de uma pessoa, embora esse seja o ponto central de qualquer obra biográfica, mas de

construir uma narrativa histórica (baseada em fatos históricos) do espaço e do tempo em que o

biografado se encontra. A partir da história de uma pessoa, buscamos desvendar o meio político,

cultural e social em que ela vive ou viveu. Por meio das biografias escritas sobre Stalin, é

possível entendermos o contexto político pelo qual a URSS passou nas décadas de 1930 e 1940

com as tomadas de decisões realizadas por Stalin no pré, durante e pós-guerra e os rumos que

o país tomou. Também torna-se possível entender o ambiente social da Rússia pré-revolução,

quando as biografias buscam (re)construir a juventude de Stalin, sua entrada no partido

bolchevique, as motivações que o levaram a aderir à causa revolucionária e suas participações

no ambiente revolucionário ainda na Rússia czarista, como os assaltos aos trens para angariar

fundos ao partido.

Por mais criticadas e questionadas que possam e devem ser (como qualquer outro

âmbito de estudo), é inegável que as biografias contribuem para o entendimento e a

compreensão de um determinado espaço e de um delimitado tempo dentro de uma sociedade,

seja por meio de estudos biográficos de agentes históricos primários, isto é, personagens

históricos bastante conhecidos e amplamente estudados, como líderes políticos ou religiosos,

seja por meio de agentes históricos secundários, pessoas comuns e costumeiramente

negligenciadas. Marc Bloch em Apologia da História atenta para a importância e o

30 GOMES, Rafael Nascimento. A importância da biografia histórica para a História Política: As relações

Brasil-Uruguai por meio das biografias de Getúlio Vargas e Gabriel Terra (1931-1938). Revista Latino-

Americana de História-UNISINOS, v. 4, n. 14, p. 89, 2015.

31

aprofundamento nos estudos das vidas das pessoas comuns para se adquirir um entendimento

melhor e diferenciado da sociedade em que o indivíduo biografado estava (ou está) inserido. O

historiador francês foi o primeiro a substituir figuras importantes da história por indivíduos

secundários31, não foi, como alguns atribuem para o autor ou para a Escola dos Annales da qual

fazia parte, um abandono do gênero biográfico, mas sim uma mudança de foco, da investigação

da vida de “protagonistas” históricos para uma investigação da vida de “coadjuvantes” ou até

mesmo mais abaixo categoricamente.

O historiador Le Goff reconhece ser utópica a elaboração de uma biografia íntegra, mas

os problemas para essa elaboração são os mesmos na escrita da História32. Então, o fato das

biografias não serem totalizantes, assim como qualquer outro esforço intelectual no campo das

humanidades, não é justificativa para negligenciá-las, ou pior, excluí-las dos estudos históricos.

Ademais, as biografias não apenas servem para entendermos um momento histórico através do

passado de uma pessoa que vivenciou aquele momento, como também servem para identificar

momentos atuais semelhantes ao passado, como é o caso de Stalin e o debate atual sobre suas

ações, que para alguns servem de parâmetros para os dias de hoje frente ao avanço da direita

no Brasil e outras localidades do globo, como também para identificar políticas stalinistas ou

pelo menos parecidas com elas, como alguns analistas observam no governo Putin, por

exemplo.

Ressaltando a importância das biografias no campo historiográfico, nas palavras de

Schmidt, o retorno delas, ao menos na disciplina da história, está relacionado a um processo de

transformações das bases teórico-metodológicas da disciplina e no repensar da relação entre o

indivíduo e a sociedade33. Essa relação pode ser vista de duas formas: (1) uma relação entre o

biografado e a sociedade a qual ele pertenceu e; (2) uma relação entre o biografado e a

sociedade atual que o estuda. Como o núcleo deste trabalho são as biografias de Stalin do ano

2003 a 2019, é possível afirmarmos a relação entre Stalin (indivíduo) e a sociedade atual com

seus diferenciados grupos políticos, que se utilizam das biografias (bem selecionadas de acordo

com o lado que as usa) para defender suas respectivas pautas ideológicas. Schmidt também cita

sobre trabalhos recentes, aos quais os historiadores tendem a resgatar facetas diferenciadas de

seus biografados e não apenas sua vida pública ou seus feitos mais notáveis34, como é o caso

31 MALATIAN, Tereza Maria. A biografia e a história. Cadernos Cedem (Cessada), v. 1, n. 1, p. 19, 2008. 32 Ibidem, p. 19. 33 SCHMIDT, Benito Bisso. Luz e papel, realidade e imaginação: as biografias na história, no jornalismo, na

literatura e no cinema. O biográfico: perspectivas interdisciplinares. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, p. 3,

2000. 34 Ibidem, p. 11.

32

da obra de Lilly Marcou intitulada “A Vida Privada de Stalin”, onde a autora concentra-se no

cotidiano pessoal e privado do ex-líder do que a vida pública e política propriamente dito.

Schmidt ainda aborda o sociólogo francês Pierre Bourdieu na seguinte citação:

Pierre Bourdieu, em artigo de 1986 significativamente intitulado “A ilusão

biográfica”, criticou o pressuposto, presente na maior parte das biografias,

“(...) de que a vida constitui um todo, um conjunto coerente e orientado, que

pode e deve ser apreendido como expressão unitária de uma ‘intenção’

subjetiva e objetiva, de um projeto (...)”. Para o sociólogo, expressões como

“sempre” ou “desde pequeno” indicariam claramente a busca da coerência e

da linearidade nas histórias de vida35.

Os pressupostos de “sempre” ou “desde a infância” no caso de Stalin, pode-se observar

várias vezes em suas mais variadas biografias, se não todas, que desde a sua juventude,

principalmente nos tempos em que Stalin frequentou o seminário, é dito que ele já buscava por

livros revolucionários. Sem investigar as motivações que o levaram a desenvolver um apreço

pela causa comunista, muitos autores concluem que Stalin desde jovem gostava de consumir

livros com teor revolucionário. Outro ponto é acerca da infância de Stalin e sua relação familiar,

onde era espancado e via sua mãe ser espancada pelo pai alcoólatra, o que muito provavelmente

deixou marcas irrecuperáveis em sua mente e pode ter influenciado diretamente na sua

personalidade mais taciturna e reservada.

Pierre Bourdieu, crítico ferrenho das produções biográficas, afirma que o biógrafo, ao

tentar uma aproximação do relato oficial do biografado, tende ao mesmo tempo se afastar dos

relatos particulares:

Tudo leva a crer que o relato de vida tende a aproximar-se do modelo oficial

da apresentação oficial de si, carteira de identidade, ficha de estado civil,

curriculum vitae, biografia oficial, bem como da filosofia da identidade que o

sustenta, quanto mais nos aproximamos dos interrogatórios oficiais das

investigações oficiais - cujo limite é a investigação judiciária ou policial -,

afastando-se ao mesmo tempo das trocas íntimas entre familiares e da lógica

da confidência que prevalece nesses mercados protegidos36.

De fato, diversas biografias seguem o modelo que Bourdieu descreve: a construção de uma

narrativa com base em documentos oficiais. Por outro lado, a privacidade e o íntimo do

indivíduo continuam obscurecidos, como se não existissem. Isso pode parecer óbvio tendo em

mente que a própria pessoa toma os devidos cuidados para que sua privacidade não seja

revelada, mantendo “a sete chaves” os documentos que podem conter algum elemento de sua

vida íntima ou até mesmo destruindo-os, como diários, por exemplo. Mas mesmo arquivos

35 Ibidem, p. 8. 36 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. M $ DO, 2005, p. 188.

33

pessoais de determinada pessoa que já podem ser acessados pelo público, acabam sendo

desprezados por muitos biógrafos, considerando que a vida pessoal não é relevante para se

entender o passado. Ao meu ver, um grande erro daqueles que pensam dessa maneira.

Nesse sentido, a obra já citada da autora francesa Lilly Marcou, quebra esse paradigma

ao centrar menos nos dados oficiais acerca do antigo líder e mais nos relatos particulares, como

o próprio nome do livro já indica. Marcou emprega um esforço na tentativa de desvendar um

Stalin menos conhecido até então, enquanto as demais biografias focaram em sua vida política

e pública, a autora buscou desmistificar aquele homem sombrio e taciturno que pouquíssimos

tiveram o privilégio (ou a desgraça) de conhecer em sua forma mais humana possível, não

aquele líder distante, quase inefável, mas um homem comum de carne e osso, com qualidades

e defeitos. Bourdieu também escreve sobre a busca do biógrafo em dar coerência e criação

artificial de sentido em seu trabalho, que tem como origem o interesse:

Sem dúvida, cabe supor que o relato autobiográfico se baseia sempre, ou pelo

menos em parte, na preocupação de dar sentido, de tomar razoável, de extrair

uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma consistência e

uma constância, estabelecendo relações inteligíveis, como a do efeito à causa

eficiente ou final, entre os estados sucessivos, assim constituídos em etapas

de um desenvolvimento necessário. E é provável que esse ganho de coerência

e de necessidade esteja na origem do interesse, variável segundo a posição e

a trajetória, que os investigados têm pelo empreendimento biográfico37.

No caso de minha monografia, os biógrafos têm interesse em dar sentido à vida do

ditador de acordo com as necessidades de suas respectivas ideologias, isto é, um anti-stalinista

irá buscar coerência e sentido nos acontecimentos da vida de Stalin para denegri-lo, enquanto

um defensor das políticas stalinistas percorrerá o mesmo caminho (busca de sentido e

coerência) mas com a finalidade de louvá-lo ou defendê-lo. Ainda que eu não concorde com

tudo o que Bourdieu escreve a respeito dos estudos biográficos, suas análises e críticas são

pertinentes e valiosas, pois ampliam nossos horizontes e nos afastam de possíveis armadilhas

em olharmos, por exemplo, as obras biográficas como provas cabais, inquestionáveis e

irrefutáveis de certos acontecimentos do passado.

Lígia Maria L. Pereira em “Reflexões sobre história de vida, biografias e

autobiografias” também ressalta a respeito de alguns problemas relacionados a construção de

biografias:

Isto quer dizer que embora toda biografia tenha pretensão à totalidade

da vida de um homem, é, necessariamente, lacunar. Dificilmente se encontram

informações, por exemplo, atos e pensamentos da vida cotidiana, de dúvidas

37 Ibidem, p. 184.

34

e incertezas, do caráter fragmentário e dinâmico da identidade do indivíduo e

dos momentos contraditórios de sua constituição. As fontes disponíveis

costumam nos informar muito mais sobre os resultados do que sobre os

processos de tomada de decisões, o que nos leva, muitas vezes, a explicações

simplistas e lineares, e à imagem, falsa, naturalmente, de personalidades

coerentes e estáveis, e de decisões sem incertezas. Para Levi, esta constitui

uma das contradições do gênero biográfico de que os historiadores têm se

mostrado mais conscientes. Lejeune também chama a atenção para este

aspecto, assinalando que os textos elaborados pelos biógrafos são muito bem

amarrados no nível de seu discurso, mas, em geral, imensamente lacunares no

que se refere a informações. “As biografias “romanceadas” ou científicas

(como a maior parte das autobiografias) evitam esse perigo, dissimulando

melhor suas insuficiências” (Lejeune, 1980, p. 78). Neste caso, nos parece que

a melhor forma de enfrentar o problema é tornar explícitas estas lacunas, ao

invés de simplesmente preenchê-las com inferências, deduções e boa dose de

imaginação38.

A partir dessa citação observamos que, por mais que um biógrafo construa uma

narrativa muito bem amarrada e com uma aparência de certezas absolutas, sua obra carece de

informações valiosas, às quais muitas são impossíveis de se obter, pois significaria obter acesso

a consciência do biografado, algo que obviamente está fora de alcance, já que o biografado

pode ser uma pessoa falecida ou, caso o contrário, teríamos de confiar plenamente em sua

palavra e mais, em sua memória, o que não quer dizer que seja impossível se aproximar dessas

informações, obtendo o máximo possível dentro da realidade. Talvez a obra de Lilly Marcou

seja a mais próxima disso em se tratando de Stalin, tendo em vista que a autora busca acessar

a vida privada do ex-líder soviético, encontrando incertezas em torno de sua vida e os processos

que levaram a determinados resultados (ao invés de focar apenas nos resultados em si mesmos),

como o suicídio de sua segunda esposa ou sua relação com a filha e filhos.

Não somente uma história isolada, de uma pessoa à parte, mas as biografias buscam

entender a história social a qual um indivíduo pertence, como ela o influencia e como ele age

sobre ela. Sobre isso, considero crucial mais essa análise de Lígia Maria L. Pereira:

É Levi quem nos lembra: a relação entre uma trajetória de vida e uma

história social é mais complexa do que supõem os modelos lineares e de

determinação mecanicista. Longe de simplesmente refletir o social, o

indivíduo coloca-se como polo ativo face a esse mesmo social, dele se

apropriando, filtrando-o, retraduzindo-o e projetando-o em uma outra

dimensão, que é a de sua própria subjetividade. Cada indivíduo representa a

reapropriação singular do universo social e histórico que o circunda. E é por

isto mesmo que se pode conhecer o social partindo da especificidade

irredutível de uma prática individual. Esta perspectiva diverge daquela em que

o contexto social aparece como algo imóvel, coerente, e que tem a única

função de servir de pano de fundo para explicar a biografia, sem consideração

38 PEREIRA, L. M. L. Reflexões sobre história de vida, biografias e autobiografias. História Oral, [S. l.], v. 3,

2009. DOI: 10.51880/ho.v3i0.26, p. 120-121. Disponível em:

https://revista.historiaoral.org.br/index.php/rho/article/view/26. Acesso em: 9 jul. 2021.

35

pela ação transformadora do indivíduo sobre ele. Assim é que o mais recente

enfoque para a elaboração de biografias, ao mesmo tempo em que busca

ressaltar a irredutibilidade do indivíduo, busca recuperar o universo social no

qual sua personalidade foi formada – seu campo exterior, já que, não sendo

um sujeito isolado, o indivíduo faz parte de diversos grupos, de uma sociedade

e de uma cultura precisas. A biografia individual, em todas as suas

modalidades, abre amplas possibilidades para compreender melhor as

diferentes mediações entre as evoluções estruturais e as trajetórias individuais,

recolocando, em novas bases, antigo dilema das ciências humanas e sociais39.

Ressalto, portanto, como as biografias, dentro de suas limitações, nos proporcionam uma

assistência na compreensão do contexto espacial e temporal do sujeito que está sendo estudado.

Desse modo, a vida de Josef Stalin pode nos “revelar”, através de suas trajetórias, as

transformações sociais e políticas de sua contemporaneidade, suas relações familiares, suas

relações dentro do Partido e com seus camaradas revolucionários, ao mesmo tempo em que por

meio dessas mesmas relações, Stalin foi um agente transformador no processo da construção e

execução da Revolução Bolchevique, assim como na construção e expansão da União Soviética

e em que medida outros tiveram a mesma importância, ou ao menos próxima, mas que na época

suas participações foram ofuscadas devido o culto à personalidade de Stalin, como é o caso do

general Zhukov na Segunda Guerra Mundial, a qual teve um papel fundamental no combate

aos alemães e na defesa da URSS, porém após a vitória não teve seus méritos devidamente

reconhecidos.

Não obstante os pontos positivos que os estudos biográficos podem trazer para o

entendimento da História, uma ilusão que os leitores mais desatentos caem comumentemente,

é no pressuposto de que os biógrafos narram a trajetória de uma vida sem parcialidades e de

maneira totalmente limpa, sem a intenção de denegrir ou elevar o biografado:

Lejeune menciona, ainda, outra contradição própria das biografias e

que se situa entre a pretensão à objetividade e a função e conduta reais do

biógrafo. Nelas, a defasagem é maior do que nos textos autobiográficos –

sempre suspeitos de terem sido orientados por preocupações apologéticas ou

narcisistas. O leitor, erroneamente, desconfia menos do biógrafo, pois seu

discurso de historiador que fez pesquisas, que cita documentos e diz coisas

“tal qual elas se passaram”, assinala Lejeune, tende a mascarar sua inevitável

parcialidade e os fundamentos ideológicos de seu projeto. Por que se escreve

uma biografia? Provavelmente nunca alguém escreveu sobre a vida de outro

homem com o puro objetivo de “conhecimento”. Há que se levar em conta a

escolha do modelo e o parti pris do trabalho – se é de admiração ou com

intenção de denegrir. A apologia ou a destruição do modelo escolhido é uma

atividade ideológica que ultrapassa em muito o caso particular estudado: o

modelo é situado em relação às normas de vida e ao sistema de valores da

sociedade e vai se tornar um exemplo particular de realização do ideal social40.

39 Ibidem, p. 121-122. 40 Ibidem, p. 121.

36

A imparcialidade, em qualquer estudo em geral, pode ser almejada contanto que o autor

compreenda que nunca será possível atingi-la em sua forma plena, pois a parcialidade, em

maior ou menor grau, é algo da qual não podemos fugir, ela sempre será manifestada direta ou

indiretamente. Nos livros biográficos de Stálin, por exemplo, encontram-se tentativas de

reabilitá-lo e (em maior número) de pintar Stalin como um grande vilão. É por este motivo que

me pareceu ser interessante e uma forma de contribuir, ainda que de forma muito pequena, para

o trabalho acadêmico em realizar uma catalogação das biografias de Stalin publicadas no Brasil,

para que leitores se deem conta de qual obra estão adquirindo, o que os autores dessas obras

buscam e qual o interesse deles por trás delas.

Observamos então que ao investigarmos os caminhos de vida de uma pessoa,

automaticamente adquirimos conhecimento acerca do ambiente social, político e cultural dessa

pessoa, visto que uma está intrinsecamente ligada a outra, tornando impossível entender uma

obra biográfica sem entender o seu contexto. Ademais, as biografias de grandes figuras

históricas tendem a formular ou dar uma nova identidade para o país em que o biografado

nasceu e/ou viveu, como o caso de Stalin para com a União Soviética. Mas os estudos

biográficos, por mais úteis que possam ser para a compreensão da História, apresentam alguns

problemas aos quais precisam ser avaliados pelos estudiosos, como a inevitável parcialidade de

seus autores e a intenção de denegrir ou elevar a imagem do biografado. Daí vem minha

motivação em catalogar as biografias deStalin, como fiz a seguir, buscando identificar o lado

que cada autor optou ao escrever suas respectivas obras.

37

As biografias

Stalin: Um novo olhar - Ludo Martens (2003)

Circunstâncias de produção:

Publicada pela primeira vez em 1994 pela editora Belga EPO, a obra do falecido

historiador belga e ex-presidente do Partido dos Trabalhadores da Bélgica, Ludo Martens, foi

traduzida por Roberto Teixeira e publicada pela editora Revan no ano de 2003. A editora Revan,

fundada há cerca de trinta anos, é uma editora com um viés ideológico de esquerda. Isso porque

ela própria destaca entre seus autores o renomado e falecido Oscar Niemeyer, que em vida era

abertamente comunista e o filósofo marxista italiano Domenico Losurdo41, além do próprio

Ludo Martens ser um comunista e ter sua obra traduzida pela editora Revan. Desse modo, o

motivo de sua tradução é ideológica. Importante afirmar que não foram encontradas

informações mais profundas sobre a fundação da editora além de sua data (1982), por isso o

argumento de que a tradução da obra de Martens é ideológica é baseada nos autores que a

própria editora destaca, que em sua maioria são abertamente de esquerda, como é possível

averiguar no catálogo do site da editora.

O livro:

O livro “Stalin: Um Novo Olhar” aborda, entre outros pontos que destacarei logo em

seguida, a juventude de Stalin, a qual este mostrou por diversas ocasiões o seu talento e

inteligência. Mas, para desvalorizar as obras de Stalin, autores burgueses utilizam críticas de

Trotsky como um meio para atingir o ex-ditador soviético42. Entretanto, para Ludo Martens

essas críticas não possuem força ou fundamento que deslegitima Stalin, pois este alcançou em

233% o sonho de Lenin43, ao industrializar a antiga União Soviética, que havia “herdado” uma

economia altamente feudalista e estava muito atrás de outros países como França e Inglaterra.

Em paralelo a essa forte e apressada industrialização, como é promulgado frequentemente, foi

a grande fome que assolava os campos da URSS devido à coletivização forçada. Contudo,

41 A EDITORA. Revan.com.br. Disponível em : <https://www.revan.com.br/a_editora>. Acesso em:

19/04/2021. 42 MARTENS, Ludo. Stalin: Um novo olhar. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 34. 43 Ibidem. p.72.

38

Martens argumenta que essa fome foi, em verdade, causada por ações criminosas dos chamados

Kulaks, que sabotaram e destruíram grande parte dos grãos armazenados em suas fazendas44.

Poucas páginas depois, o autor afirma e argumenta sobre o “Holocausto Ucraniano”, também

conhecido como Holodomor, ser nada mais e nada menos que uma calúnia45, pois grande parte

das fotografias supostamente tiradas deste acontecimento, se trata de fotografias de outros

momentos históricos que nada tem a ver com o acontecimento aqui em questão. Além desses

pontos destacados, o autor aborda sobre “O Grande Expurgo”, rebatendo a narrativa empregada

pelo Ocidente sobre o tema, de ser algo aplicado ferozmente e arbitrariamente por Stalin a qual

resultou em milhares de inocentes mortos46.

Vemos, portanto, que o livro de Ludo Martens, por se tratar de uma defesa contra as

críticas e acusações sobre Stálin e uma tentativa de tirá-lo do grupo dos “grandes ditadores” do

século XX, reabilitando como um exímio líder que a URSS necessitava naquele contexto

histórico, deve ser catalogado como uma biografia reabilitadora.

Stalin Triunfo e Tragédia - Dmitri Volkogonov (2004)

Circunstâncias de produção:

A obra foi escrita pelo historiador russo Dmitri Volkogonov. Originalmente a obra foi

publicada na União Soviética no ano de 1989 com o título “Triyumf i Tragediya: politicheskii

portret I.V. Stalina” e traduzida para o português pela editora Nova Fronteira no ano de 2004

tendo sua segunda edição publicada no ano 2017 com a tradução de Joubert de Oliveira Brízida.

A Nova Fronteira foi fundado por Carlos Lacerda em 196547, em um momento em que

o fundador já não compactuava mais com os ideias comunistas, pelo contrário, era agora um

anticomunista. Com o tempo, até o lançamento do livro em 2004, ao observar o catálogo da

editora houve uma guinada à esquerda com publicações de livros da feminista Simone de

Beauvoir e do existencialista Jean-Paul- Sartre, entretanto, muito longe de se tornar uma editora

pró-comunismo e muito menos pró-stalinismo, pois ainda carrega algumas raízes

44 Ibidem. p.106-107. 45 Ibidem. p.131. 46 Ibidem. p.163-166. 47 NOVA FRONTEIRA, 40, LANÇA COLEÇÃO. Folha de São Paulo, São Paulo, 14 de Janeiro de 2006.

Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1401200614.htm>. Acesso em: 20/04/2021.

39

anticomunistas de seu fundador e as obras de Dmitri Volkogonov são provas disso, já que se

trata de um autor crítico de Stálin. Logo, a tradução de seu livro é ideológica.

O livro:

Dmitri Volkogonov é bastante crítico em relação a Stalin, o responsabilizando pelo

grande número de mortos na era stalinista quase que de forma exclusiva, além de atacar também

a forma como Stalin foi subindo de patamar no partido bolchevique, mostrando-o como um

homem rude, que atacava com discursivos explosivos seus camaradas dos quais discordavam

referente aos rumos que a URSS deveria tomar48. As críticas ao “vojd” se acentuam quando ele

atinge a liderança máxima do partido, analisando a censura stalinista no campo da literatura49

e também detalhando o grande expurgo de Stalin na década de 1930 e suas vítimas mais

importantes, como Bukharin, por exemplo50. Como consequência dos expurgos, o autor analisa

a situação do Exército Vermelho em meados de 1939, bastante debilitado, atribuindo toda a

responsabilidade a Stalin51. Por conseguinte, no início da invasão alemã, Stalin precisou buscar

bodes expiatórios para culpar pelas derrotas sofridas nas primeiras semanas da guerra52.

Por fim, o autor russo critica à exaltação do líder na Grande Guerra Patriótica53, o culto

exagerado e direcionado exclusivamente a Stalin, esquecendo-se dos erros cometidos pelo

mesmo e dos méritos de outros, incluindo o próprio povo russo que lutou heroicamente nas

frentes de batalhas.

O historiador russo Dmitri Volkogonov faz duras críticas ao ex ditador soviétic Josef

Stalin, apontando e argumentando as deturpações e más interpretações sobre os escritos de

Marx e Lenin, que culminou no stalinismo, tendo como consequência atrocidades, por exemplo,

os expurgos dos anos 1930. Dado essas características, o livro de Dmitri Volkogonov “Stalin

Triunfo e Tragédia”, acredito que seja pertinente classificá-lo como uma biografia crítica.

Um Stalin Desconhecido - Zhores Medvedev (2006)

48 VOLKOGONOV, Dmitri. Stalin - Triunfo e Tragédia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004. Parte III:

Opção e Luta. 49 Ibidem. 50 Ibidem. 51 Idem. Parte VII: No limiar da guerra. In:____.(org.).Ibidem. 52 Idem. Parte IX: O comandante supremo. In:____.(org.). Ibidem. 53 Idem. Parte X: Clímax do Culto. In:____.(org.). Ibidem.

40

Circunstâncias de produção:

Publicado no ano de 2003 em acordo com a I.B. Tauris &, Londres, o título (original)

The Unknown Stalin foi escrito pelos irmãos Roy e Zhores Medvedev e chegou ao Brasil em

2006, com tradução de Clóvis Marques e publicado pela Editora Record. Esta editora foi

fundada em 1942 por Alfredo Machado e Décio Abreu, tendo o trabalho de distribuir

quadrinhos e outros escritos relacionados a imprensa54. Na década de 1960 a Record inicia seu

processo de edição de livros, tendo como alvo principal traduções de livros americanos55. A

partir desse ponto, poderíamos começar a traçar uma motivação ideológica para a tradução do

livro dos irmãos Medvedev, tendo em vista que não são favoráveis a Stalin e que na década de

60, em plena Guerra Fria, é possível concluir que as traduções dos livros americanos por parte

da editora não deveriam ser nenhum pouco a favor do comunismo soviético.

Entretanto, o livro “Um Stalin Desconhecido” só foi lançado em português no ano de

2006 e nesse tempo de quase 50 anos, mudanças significativas aconteceram na editora Record,

já que em 1991 com a morte de Alfredo Machado (e sem a presença de Décio A. na editora),

seu filho Sérgio Machado assumiu o cargo de presidente e proporcionou uma nova posição da

empresa no mercado, comprando outras editoras e diversificando o seu catálogo56. De fato,

atualmente o catálogo da editora é muito diversificado, sem uma linha clara ideológica de

publicação, pois publica tanto livros políticos ideológicos de esquerda quanto de direita. Desse

modo, parece-me mais razoável que a tradução do livro “Um Stalin Desconhecido”, seja

mercadológica.

O livro:

Os irmãos Medvedev argumentam que os crimes de Stalin não foram cometidos apenas

pelo próprio ditador, mas também por seus camaradas mais próximos, como Beria por exemplo,

ou seja, foram crimes coletivos57. Inclusive, inúmeros arquivos relacionados a Stalin foram

destruídos, entre esses havia aqueles que ameaçavam Kruschev, pois possuíam informações

sobre seu passado durante a repressão em que Stalin era vivo. Esses arquivos prejudiciais a

54 QUEM SOMOS. Record. Disponível em: <https://www.record.com.br/editoras/>. Acesso em: 19/04/2021. 55 HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: EdUSP, 2005. 56 MORRE SERGIO MACHADO , PRESIDENTE DO GRUPO EDITORIAL RECORD. Correio do Povo,

2016. Disponível em: <https://www.correiodopovo.com.br/arteagenda/morre-sergio-machado-presidente-do-

grupo-editorial-record-1.207533>. Acesso em: 19/04/2021. 57 MEDVEDEV, Zhores. Um Stalin desconhecido. Rio de Janeiro: Record, 2006. p.90.

41

Kruschev foram destruídos por ordem do mesmo, quando chegou ao poder em 195458. Isso

reforça o argumento inicial dos autores de que os crimes na era stalinista não foram cometidos

por um homem só, mas coletivamente. Não obstante, o poder absoluto e totalitário de Stalin foi

sendo formado gradualmente e consequentemente várias questões relacionadas ao exército,

indústria militar, organismos punitivos e sistemas de gulags eram decididas exclusivamente por

Stalin, essa era a sua fonte de poder ilimitado59, em outras palavras, ainda que os crimes foram

arquitetados de forma coletiva, os autores não fogem da questão do totalitarismo stalinista, que

persistiu nas décadas de 1930 e 1940, como por exemplo o gulag do urânio, onde prisioneiros

trabalhavam incessantemente nas minas de urânio.

Esse trabalho forçado em mineração de urânio foi expandida com aval de Stalin e só foi

cessada na década de 1960, com Kruschev60. Outra questão levantada por Roy e Zhores

Medvedev diz respeito acerca da iminente invasão da Alemanha Nazista. Stalin estava bem

servido de informações acerca da Operação Barbarossa, mais do que se supunha, entretanto em

alguns casos o mesmo tinha razão em desconfiar dessas informações como sendo

desinformações e em outros casos tomou ações efetivas61. Isso porque em meio a Segunda

Guerra Mundial a URSS era constantemente afetada por desinformações ardilosas com o intuito

de desestabilizar a mesmas, dessa forma o líder soviético do momento se encontrava em

impasses com frequência e precisava tomar o máximo de cuidado para não cair em

desinformações de inimigos (e aqui falo das potências ocidentais, que almejam um confronto

entre Hitler e Stalin com o objetivo de enfraquecer ambos, em especial o primeiro) que pudesse

comprometer a integridade do país.

Essa visão dos Medvedev combate a comumente narrativa de que Stalin simplesmente

ignorou os alertas sobre uma inevitável invasão alemã e que esta ocorreu por uma negligência

e irresponsabilidade do líder. Importantes temáticas acerca de Stalin foram descritas no livro,

hora dividindo a responsabilidade dos crimes ocorridos em terras soviéticas, hora atribuindo a

Stalin, que tinha um poder enorme em suas mãos. Desse modo, a classificação que mais se

aproxima é de uma biografia crítica, tendo em vista que os autores não isentam Stalin de culpa

e responsabilidade, apenas que em alguns casos ele não agiu sozinho, como de fato não agiu.

58 Ibidem, p.125. 59 Ibidem, p.165. 60 Ibidem, p.216 e 219. 61 Ibidem, p.311-314.

42

Stalin: uma biografia política - Isaac Deutscher (2006)

Circunstância de produção:

A obra foi publicada pela primeira vez em 1948 e no ano de 1966 ganhou uma edição

da Oxford University Press, a qual foi traduzida para o português por Luiz Sérgio Henriques e

publicada pela Civilização Brasileira em 2006. Fundada em 1929 por Getúlio M. Costa e

Gustavo Barroso, já em 1932 ela foi adquirida por Octalles Marcondes Ferreira62. Após ter

ficado sob o total controle de Ênio Silveira em 196363 (que casou-se com a filha de Octalles

Marcondes), passou a traduzir e publicar livros sobre o comunismo, tanto que no período da

ditadura militar, Ênio Silveira foi perseguido e livros da editora foram confiscados64.

Em 1996 a Civilização Brasileira foi incorporada ao Grupo Editorial Record, mas sem

perder sua identidade com a esquerda e a proposta de publicar livros que aliam tradição e

pensamento crítico, publicando clássicos como Karl Marx e Antonio Gramsci, diferente da

própria Record que não possui uma identidade nítida. Apesar de Isaac Deutscher não tecer

elogios a Stalin, sua obra não o ataca diretamente e além disso, sendo o próprio Deutscher um

socialista, pode-se dizer que a tradução de sua obra se deu por motivos ideológicos, levando

em consideração, sobretudo, a linha ideológica da Civilização Brasileira.

O livro:

No começo do livro, um dos pontos levantados por Deutscher se refere após dois anos

da guerra civil russa, quando Stalin já havia acumulado um grau elevado de poder, ajudado

pelos próprios rivais do futuro ditador, que quando tentaram removê-lo já era tarde demais65.

Isto é, o poder conquistado por Stalin não foi única e exclusivamente conquistado por ele, mas

com o aval e até mesmo ajuda de camaradas que depois seriam engolidos pelo “monstro” que

eles próprios alimentaram e ajudaram a crescer. Dentre os membros do partido que foram

perseguidos por Stalin, tendo ajudado ele ou não na conquista do poder, se encontram Sirtsov

62 HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: EdUSP, 2005, p. 445. 63 Ibidem, p. 447. 64 Ibidem, p. 483. 65 DEUTSCHER, Isaac. Stalin: uma biografia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 253.

43

e Riutin que foram acusados de conspiração e detidos por insistirem com os membros do comitê

central em depor Stalin de forma constitucional66.

Vale levantar aqui o famoso e controverso testamento de Vladimir Lênin, pouco antes

de sua morte, o antigo líder começou a criticar e acusar Stalin67, sendo que antes haviam

trabalhado harmonicamente e havia conseguido um poder e influência com a própria ajuda de

Lênin. Entretanto, após atitudes reprováveis do ponto de vista de Lênin, este começou a cogitar

o afastamento de Stalin do cargo de Secretário Geral. Esse testamento é até hoje debatido entre

os historiadores e biógrafos de Stalin, onde alguns se posicionam como algo que deve ser

interpretado e analisado de outra forma que não seja a reprovação de Stalin por Lênin, outros

afirmam que o testamento é claro e objetivo no que diz respeito às críticas e acusações

direcionadas à Stalin, Deutscher, ao meu ver, se encontra no segundo grupo.

O autor levanta outro ponto muito importante que diz respeito aos expurgos do Grande

Terror, que tem como resultado o surgimento de uma nova intelligentsia, que ocuparia os

vácuos causados pelo expurgo. Esses novos membros foram educados já no culto stalinista

desde a infância68 e exatamente por isso estariam aptos para trabalharem de acordo com a

vontade de Stalin, conscientemente ou não, fariam a vontade dele e aquele que “decepcionasse”

seria simplesmente substituído por outro e “sabe-se Stalin” o que aconteceria com ele..

Em relação à pré-guerra, seria conveniente para Stalin ser espectador de uma guerra

entre a Alemanha e o Ocidente, para depois ser árbitro. Por isso, foi necessário um acordo com

Hitler69. Dessa forma, o plano seria a desestabilização da Europa e o enfraquecimento dos

países, independente do vencedor, em seguida a União Soviética estaria pronta para avançar

militarmente e ocupar a Europa ou ser a intermediária das negociações de paz entre as nações

em guerra, de qualquer forma, a URSS de Stalin seria a grande vencedora, isto se Hitler não

decidisse invadir a URSS em 1941.

Ainda que Isaac Deutscher não culpe Stalin por tudo de ruim que possa ter acontecido

à URSS e além disso, argumenta que certos acontecimentos causados por Stalin ou foi por

necessidade extrema ou, na realidade, não foram causadas pelo líder, ainda assim o autor aponta

duras críticas ao antigo “vojd”, mostrando muitos de seus crimes e erros. Por isso, a obra

“Stalin: uma biografia política”, é também uma biografia crítica além de política.

66 Ibidem. p. 355. 67 Ibidem. p. 274 e 275. 68 Ibidem. p. 406. 69 Ibidem. p. 456.

44

Stálin: A corte do Czar Vermelho - Simon Sebag Montefiore (2006)

Circunstâncias de produção:

Escrito e publicado em 2003 por Simon Sebag Montefiore nos EUA , a Companhia Das

Letras lançou o livro com a tradução de Pedro Maia Soares em 2006. Luiz Schwarcz e sua

esposa Lilia Moritz Schwarcz fundaram no ano de 1986 a editora Companhia Das Letras tendo

como objetivo a literatura e as ciências humanas70. Atualmente, a Companhia das Letras tem

ao todo 16 selos que se dedicam a diferentes segmentos, além de em 2009 ter se juntado à

editora Penguin e em 2015, através da fusão com a editora Objetiva, ter nascido o Grupo

Companhia das Letras71.

Apesar do livro de Montefiore ter sido lançado em 2006, portanto antes dessas grandes

junções com outras editoras, a Companhia Das Letras já era bastante grande e diversificada,

comportando uma linha ideológica às vezes mais à esquerda e às vezes mais à direita, como é

possível verificar em seu catálogo. Dito isso, considero o motivo da tradução dessa obra ser

mercadológica.

O livro:

Em meio a Revolução Russa, Stalin entende a morte como um instrumento político

simples e eficaz, ao fuzilar em 1918 suspeitos de serem contra-revolucionários72. Isso pode nos

explicar a forma cruenta como Stalin encarava a morte de seus opositores nos anos posteriores,

inclusive dos próprios parentes, quando Stalin deixou que o Grande Terror perseguisse seu

próprio círculo familiar. Ele considerava seus familiares “sua cota de sacrifício"73.

Entretanto, alguns acontecimentos são utilizados por antistalinistas e anticomunistas

para demonizar a imagem do antigo ditador, por exemplo, não há provas de que Stalin esteja

envolvido no assassinato de Kirov, apesar das suspeitas ainda não terem sumido74, mas de todo

modo, a morte de Kirov foi e é usada como palanque político para atacar Stalin. Além disso,

Montefiore afirma que nem todas as mortes citadas como “assassinatos” nos processos

70 SOBRE O GRUPO. Companhia Das Letras. Disponível em:

<https://www.companhiadasletras.com.br/sobre.php>. Acesso em: 20/04/2021. 71 Ibidem. 72 MONTEFIORE, Simon. Stálin: a corte do czar vermelho. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.57. 73 Ibidem. p.330. 74 Ibidem. p.182.

45

stalinistas foram de fato assassinatos75. Outro exemplo é a morte de seu filho Iakov, pois a

recusa em trocar Iákov (quando foi capturado por soldados nazistas em meio a Segunda Guerra

Mundial) tem sido tratada como prova da crueldade insensível de Stálin, mas isso não é justo.

Ele era um “assassino em massa”, porém, neste caso, é difícil imaginar que Churchill e

Roosevelt trocariam seus filhos se fossem capturados, quando milhares de homens comuns

estavam sendo mortos ou capturados”76.

Sobre o poder do “Vojd”, é verdade que a vontade de Stalin era dominante, mas também

é verdade que o Grande Terror não foi uma obra unicamente sua77. Como outros historiadores,

Montefiore segue a linha de que os expurgos, assassinatos e perseguições que ocorreram nas

décadas do stalinismo, não devem ser contabilizadas apenas em Stalin, ainda que este estivesse

diretamente envolvido.

O autor não culpabiliza Stalin por todas as mortes que ocorreram durante o seu governo

e mostra ao longo do livro que outros agentes históricos, tal como Beria e o próprio Kruschev,

também tiveram uma dose de culpa nos milhões de mortos. Não obstante, o livro de Simon

Sebag Montefiore “Stálin: A corte do czar vermelho” é uma biografia crítica do georgiano,

evidenciando todos os jogos políticos praticados principalmente por ele e, em segundo plano,

por seus camaradas.

O Jovem Stalin - Simon Montefiore (2008)

Circunstâncias de produção:

Escrito e publicado pelo autor Simon Sebag Montefiore em 2007, o livro “O Jovem

Stálin” (do original “Young Stalin”) foi traduzido por Pedro Maia Soares e publicado em 2008

pela editora Companhia Das Letras. Assim como a outra obra de Montefiore já mencionada

“Stalin: a corte do Czar Vermelho”, traduzida e publicada pelos mesmos, este livro também

possui, portanto, motivações mercadológicas para a sua tradução em português.

O livro:

75 Ibidem. p.200. 76 Ibidem. p.495. 77 Ibidem. p.240.

46

Simon S. Montefiore começa retratando a dura infância de Stalin sobre o jugo de seu

pai, Bessó, que era um alcoólatra e agressivo, que espancava com frequência sua esposa e seu

filho78. Uma infância que certamente contribuiu para a formação de uma personalidade fria

como era a de Stalin.

Sua mãe o matriculou em um seminário com a esperança de dar um futuro melhor ao

filho e uma esperança ainda maior de que ele se tornasse padre. Mas foi no seminário que Stalin

começou a ler e estudar sobre livros “proibidos”, isto é, livros comunistas e a ter contato com

colegas que compactuavam dos mesmos ideais revolucionários, é claro que isso gerou diversos

problemas para Stalin dentro do seminário, culminando até mesmo na sua expulsão. Mas antes

de ser expulso, o autor descreve um episódio relacionado ao pai de Stalin, que pedia dinheiro

ao filho e este o ameaçou que chamaria os guardas caso não fosse embora79, mais um exemplo

da conturbada e desastrosa relação do pai Bessó e seu filho.

Após a saído do seminário, Stalin trabalhou como metereologista, ao mesmo tempo em

que já exercia suas atividades revolucionárias80. Seu trabalho como meteorologista na sua

juventude serviu mais como uma fachada para esconder sua verdadeiro paixão e ímpeto, que

era trabalhar e lutar pela revolução comunista, inclusive, Montefiore aborda o momento que

Stalin conheceu Lênin, no ano de 1905, em uma reunião do Partido81.

Kató, primeira esposa de Stalin, pela qual cultivava grande amor e afeição, faleceu em

22 de novembro de 1907 por causas naturais. Este fato mexeu muito com a cabeça do jovem

revolucionário em ascensão e é também um fato a qual muitos estudiosos atribuem para

potencializar a dureza e frieza de Stalin82. Entretanto, Stalin teve uma segunda esposa, a qual a

conheceu quando ela ainda tinha 3 anos de idade. Nesse primeiro encontro, Stalin a salvou de

um afogamento. Montefiore também retrata a ascensão de Stalin no partido, claro que uma

“ascensão” ainda modesta, mas já demonstrando um destaque e maior influência, isso no final

da década de 191083.

Como o próprio título já indica, essa obra de Montefiore trata-se de um aprofundamento

sobre a juventude do líder soviético. Por este motivo, sua classificação é uma biografia de

estudos aprofundados.

78 MONTEFIORE, Simon. O Jovem Stalin. São Paulo: Companhia Das Letras, 2008. p. 62. 79 Ibidem. p.88. 80 Ibidem. p.112. 81 Ibidem. p.189. 82 Ibidem. p.235. 83 Ibidem. p.367.

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A loucura de Stalin - Constantine Pleshakov (2008)

Circunstâncias de produção:

Mediante contrato com a Houghton Mifflin Company, Constantine Pleshakov publicou

seu livro pela primeira vez nos EUA em 2005 e em 2008, com a tradução de J. A. Gueiros, a

editora Difel publicou no Brasil. No ano de publicação (2008), a Difel já fazia parte do Grupo

Editorial Record desde 199684. Sobre a editora Record, já apresentei um breve resumo nas

“circunstâncias de produção” acerca do livro “Um Stalin Desconhecido”. Sobre a Difel, seu

objetivo é a publicação de biografias de grandes nomes e também nas áreas de ciências

humanas85, mas não é explícito seu caráter ideológico, pois é bastante diversificado. Desse

modo, o motivo da tradução do livro em questão é mercadológica.

O livro:

Antes da Operação Barbarossa acontecer de fato, Stalin não confiava nas informações

que corroboram com a narrativa de uma iminente invasão alemã, nem mesmo vindas de espiões

soviéticos86, mostrando assim uma negligência (ao menos essa é a impressão ao ler o livro de

Pleshakov) e desprezo frente a possibilidade de um ataque alemão. Mas mesmo quando a guerra

começou, os erros de Stalin continuaram a persistir e por consequência milhares de soldados

russos morreram e o exército soviético não estava preparado para defender a Alemanha e muito

menos contra-atacar87. E mantendo uma “rotina absurda” (trabalhando até tarde e descansando

de manhã), Stalin deixava o exército abandonado à própria sorte88, segundo o autor.

Com as sucessivas derrotas na frente ocidental, no dia 29 de junho de 1941, Stalin entrou

em uma profunda depressão, se restabelecendo no dia seguinte, após seu círculo íntimo

(Molotov, Beria, Malenkov, Mikoyan e Voznesensky) propor à ele em carregar a concentração

de toda autoridade com a criação de um governo de emergência. Além disso, o povo,

anestesiado pelo medo do grande expurgo, ainda acreditava em uma solução vinda de Stalin e

não ousavam culpá-lo pelas derrotas catastróficas no começo da guerra89. Apesar dos diversos

84 DIFEL. Record. Disponível em: https://www.record.com.br/editoras/difel/. Acesso em: 18/02/2021 85 Ibidem. 86 PLESHAKOV, Constantine. A loucura de Stalin. Rio de Janeiro: Difel, 2008. p.109-110. 87 Ibidem. p.159. 88 Ibidem. p.191. 89 Ibidem. p.263-268.

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defeitos, Stalin tinha “habilidades gerenciais” quando em tempos difíceis, escolhendo oficiais

verdadeiramente capacitados e não aqueles que ele próprio promoveu de acordo com sua

vontade pessoal90. Ademais, os soviéticos não seriam capazes de vencer os nazistas sem uma

liderança adequada, a qual Stalin finalmente conseguiu exercer, após alguns milhões de

mortes91. Apesar dos inúmeros sacrifícios e erros crassos no início da guerra, a liderança de

Stalin foi fundamental para o combate e a vitória contra os nazistas.

Não seria incorreto catalogar o livro de Constantine Pleshakov como uma “biografia

detratora” de Stalin, afinal o autor responsabiliza o falecido líder soviético pelas catastróficas

derrotas no começo da invasão alemã devido a decisões tomadas no pré-guerra e nos primeiros

dias de guerra. Entretanto, o recorte temporal é muito específico, o livro aborda os primeiros

dez dias da invasão alemã, as medidas e decisões de Stalin e não a vida deste como um todo.

Ademais, em alguns pontos o autor "elogia" Stalin e reconhece a importância do líder na luta

contra os alemães. Por isso, parece-me que a melhor escolha é catalogá-lo como uma biografia

de estudo aprofundado.

Os Sete chefes do Império Soviético - Dmitri Volkogonov (2008)

Circunstâncias de produção:

A obra foi escrita pelo historiador russo Dmitri Volkogonov, já citado anteriormente. O

livro ganhou uma tradução em português no Brasil no ano de 2008 pela editora Nova Fronteira.

A questão da editora já foi explicada em “Stalin - Triunfo e Tragédia” e se encaixa

perfeitamente neste caso também, logo, a tradução de “Os Sete Chefes do Império Soviético”

é ideológica.

O livro:

Esse livro, de autoria do russo D. Volkogonov trabalha com uma biografia múltipla que

vai de Lênin até Gorbachev em um total de 513 páginas. Portanto, como o foco de meu trabalho

é especificamente Stalin e tendo em vista a complexidade de trabalhar com um total de sete

90 Ibidem. p.304. 91 Ibidem. p.323.

49

biografias em menos de 600 páginas, por mais notório que seja o autor, o livro é uma biografia

introdutória de Stalin.

História Crítica de Uma Lenda Negra - Domenico Losurdo (2010)

Circunstâncias de produção:

Escrita pelo filósofo marxista italiano Domenico Losurdo, "História Crítica de Uma

Lenda Negra” foi publicada pela Carocci Editore, na Itália, no ano de 2008 e traduzida para

português por Jaime Clasen e publicada pela editora Revan no Brasil em 2010. Sobre a editora,

já escrevi quando abordei a obra de Ludo Martens e aplico o mesmo nessa de Losurdo, portanto

o motivo da tradução de seu livro é ideológica.

O livro:

Losurdo realiza uma análise crítica do Relatório Secreto de Kruschev acerca de Stalin

na Segunda Guerra Mundial92 e também critica o mesmo relatório por acusar Stalin como

mandante no assassinato de Kirov93. Em outras palavras, o autor da obra argumenta que muitos

dos crimes de Stalin contidos no Relatório Secreto de Kruschev não passam de falsificações ou

deturpações de fatos históricos em relação ao ex-líder da União Soviética.

Exemplo disso foi a coletivização promovida por Stalin como um caminho obrigatório

para a industrialização, criação e manutenção de um exército forte na URSS para enfrentar

perigos externos94. Quer dizer, Stalin não ordenou a coletivização por uma mera arbitrariedade

de sua parte, mas como algo necessário e essencial para que a União Soviética fizesse frente às

demais potências da época, em especial a Alemanha hitlerista, que era a maior ameaça até

então. Além disso, a própria população enfurecida, afirma o autor, denunciava e pedia a

execução de supostos traidores do regime soviético95, explicando dessa forma o Grande

Expurgo na década de 1930 como algo que partiu também do próprio povo soviético que

contribuía para a formação e manutenção do país e não (somente) do sistema stalinista como

uma estrutura que subjugou tudo e todos.

92 LOSURDO, Domenico. Stalin História crítica de uma lenda negra. Rio de Janeiro: Revan, 2010. p. 19. 93 Ibidem. p.70. 94 Ibidem. p.131. 95 Ibidem.

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Losurdo critica duramente também a comparação de aproximação entre Hitler e Stalin

feita por intelectuais ocidentais96, como por exemplo da notável autora Hannah Arendt e sua

obra “Origens do Totalitarismo”, fazendo assim um contraponto e denunciando crimes e

atrocidades de outros líderes como o ex-primeiro-ministro do Reino Unido, Winston Churchill

e o ex-presidente dos Estados Unidos, Roosevelt. Denúncias e acusações direcionadas a líderes

ocidentais estão muito presentes na obra de Losurdo.

Portanto, o filósofo italiano sai em defesa de Stalin apresentando argumentos na

tentativa de apaziguar ou até mesmo refutar os críticos do regime stalinista. Logo, a obra de

Losurdo em questão se trata de uma biografia reabilitadora.

Stalin: Biografia (Estudo preliminar de Osvaldo Eustáquio) - Leon Trotsky (2012)

Este livro dispensa comentários, é de longe o mais fácil de catalogar. Escrita pelo seu

arquirrival, Trotsky, essa biografia de Stalin é detratora e o motivo para uma nova tradução em

português é ideológica. Isso porque Trotsky, como se sabe, ataca Stalin de todos os lados, no

campo teórico, prático, político, pessoal, etc. Apesar de compactuar uma mesma raiz

ideológica, os dois são como óleo e água, basicamente o que Stalin fazia ou dizia, Trotsky era

contrário e vice-versa, o final dessa história creio que todos que estão lendo este trabalho

saibam.

Os Crimes de Stalin - Nigel Cawthorne (2012)

Circunstâncias de produção:

The Crimes of Stalin - The Murderous Caree of the Red Tsar (título original), foi

publicada em 2011 pela Areturus Publishing Limited e chegou ao Brasil com a tradução de

Tatiana Malheiro em 2012, pela Madras Editora. A Madras Editora, fundada em 1995, é

considerada a maior editora holística do Brasil, tendo a maçonaria como um de seus temas mais

importantes dentro da editora, assim como o seu próprio fundador, Wagner Veneziani Costa,

96 Ibidem. p.181-245.

51

era maçom97. Além disso, o tema religioso, em especial o hinduísmo, também é muito abordado

nas obras da editora.

Sabemos que, devido ao caráter ateísta do sistema bolchevique, a religião era perseguida

na URSS e também a maçonaria, ainda que este seja um assunto muito complexo, não havendo

uma clareza da (in)compatibilidade entre comunismo e maçonaria, embora ela exista. Dito isso,

o motivo desta tradução aparenta ser ideológico.

O livro:

Cawthorne escreve sobre a coletivização afirmando que Stalin abandonou a NEP e todas

as propriedades seriam tomadas pelo Estado. Essas ações resultou em uma escassez de grãos,

fazendo com que o ditador soviético exigisse a coletivização forçada e também, a mando do

próprio, os kulaks foram considerados inimigos do povo, acusados de esconder grãos do

Estado98. Em seguida, o autor reserva parte de seu livro para abordar sobre o terror dos gulags99,

a precariedade desses lugares e a crueldade com que os prisioneiros eram tratados.

Preocupado com as fronteiras, Stalin acreditou que não poderia contar com a lealdade

de muitas nacionalidades que se opuseram à imposição da URSS nos anos 1920 e 1930. Por

isso, em meio a Grande Guerra Patriótica, com ordem do líder soviético, muitos líderes locais

foram julgados e as penas variam de execução, prisão ou deportação. Além disso,

aproximadamente 1,5 milhão de pessoas foram removidas de suas terras e instaladas em áreas

onde não fossem uma ameaça100. Também durante a Segunda Guerra Mundial, ocorreu o

famoso caso Katyn, onde milhares de oficiais poloneses foram executados sob a ordem de

Stalin101, segundo o autor.

Ademais, Nigel C. escreve que “se Stalin tivesse mantido sua aliança com a Inglaterra

e a França, Hitler pensaria duas vezs sobre invandir a Polônia”, signficando, segundo o autor,

que o pacto Molotov-Ribbentrop, abriu caminho para a Alemanha Nazista invandir a

Polônia102. Por fim, Nigel Cawthorne explica sobre o legado criminoso de Stalin, como o

97VENEZIANI, Wagner. Amigos, um pouco da Madras Editora. Madras. Disponível em:

<https://madras.com.br/blog/wagner/amigos-um-pouco-da-madras-editora/>. Acesso em: 21/04/2021. 98 CAWTHORNE, Nigel. Os Crimes de Stalin: a trajetória assassina do Czar Vermelho. São Paulo: Madras

Editora, 2012.p.123. 99 Ibidem. p.138. 100 Ibidem. p.165. 101 Ibidem. p.175. 102 Ibidem. p.169.

52

stalinismo e o “fantasma de Stalin” pairavam sobre a URSS através da sua política brutal

realizada no passado e passada adiante103.

Com isso, facilmente pode-se catalogar o livro de Cawthorne como uma biografia

detratora, por acusar o ex-ditador de muitos crimes controversos, alguns debatidos até hoje

entre os historiadores sobre a veracidade dos mesmos.

A vida privada de Stalin - Lilly Marcou (2013)

Circunstâncias de Produção:

O livro Staline - Vie privéee, escrito por Lilly Marcou e publicado pela editora Calmann-

Lévy, na França, em 1996, ganhou uma edição no Brasil em 2013 pela editora Zahar com

tradução de André Telles. A editora Zahar busca edições de livros voltados para as ciências

humanas e sociais e em 2019 foi comprada pela Companhia das Letras104. O fundador da

editora, Jorge Zahar, foi perseguido pelos militares por publicar autores de esquerda105 e até

hoje pode-se observar no catálogo que a editora possui um viés voltado para a esquerda.

Apesar de Lilly Marcou não tecer grandes elogios a Stalin, tampouco isentá-lo dos

crimes, interessante apontar que logo no prólogo a autora afirma o seguinte “OS CRIMES, ao

terror e aos erros com que Stálin e seu reinado são confundidos há cerca de quarenta anos,

esqueceram-se recentemente de acrescentar a esperança, o entusiasmo, o heroísmo, o espírito

de sacrifício de que essa história ‘impossível’ foi porta-voz. O arroubo e a admiração

despertados pela URSS e seu líder carismático nos anos 1930 e 1940 podem ter outras

explicações que não a enganação, a mentira, o medo e a manipulação…”106.Desse modo,

somado ao caráter de esquerda da editora, me parece ser razoável identificar como ideológico

o motivo de sua tradução.

O livro:

103 Ibidem. p.208. 104 SOBRE A ZAHAR. Companhia das Letras. Disponível em:

<https://www.companhiadasletras.com.br/titulos.php?selo=Zahar>. Acesso em: 21/04/2021. 105 TORRES, Bolívar. Fundador da Zahar ganha biografia nos 60 anos da editora. O Globo, 2017. Disponível

em: <https://oglobo.globo.com/cultura/livros/fundador-da-zahar-ganha-biografia-nos-60-anos-da-editora-

22027902>. Acesso em: 21/04/2021. 106 MARCOU, Lilly. Prólogo. In:____.(org.). A vida privada de Stalin. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

53

Diferente de outras biografias, a obra de Lilly Marcou dedica boas páginas acerca de

outros relacionamentos amorosos de Stalin além dos já conhecidos, como a primeira esposa

Ekaterina Svanidze e a segunda esposa Nadejda Alliluyev. A autora fala de outros possíveis

romances, inclusive um que resultou em um filho pouco conhecido de Stalin, chamado

Konstantin, fruto de uma relação com uma mulher chamada Kuzakova107. Além deste, há outros

romances de Stalin com outras mulheres (alguns evidentemente que não passam de boatos,

outros que ainda exigem uma investigação para concluir), incluindo sua cunhada Evguenia

Aleksandrovna108.

Marcou explora bem as relações entre Stalin e a família de sua primeira e falecida esposa

(os Svanidzes) e de sua segunda esposa (os Alliluyevs)109, tendo bastante aproximação com

ambas as famílias, mas principalmente com os Alliluyevs, os quais os pais de Nadejda A. eram

bastante próximos e atenciosos com Stalin. Entretanto, essa amizade não foi suficiente para

barrar o suicídio da segunda esposa do líder soviético110. A autora analisa com profundidade os

diversos problemas conjugais entre os dois até o suicídio da esposa, variando de ciúmes

excessivo por parte de N. Alliluyev, transtorno de bipolaridade que se agravou e até depressão

por conta dos crimes cometidos pelo marido em relação ao povo, como as perseguições,

incluindo membros da própria família e seus amigos mais próximos, vítimas do expurgo na

década de 1930111

Lilly Marcou também explora um Stalin desconfiado e solitário, algo de sua própria

personalidade, mas que foi aumentando proporcionalmente em que o poder e a influência de

Stalin também aumentava e a desconfiança e solidão se agravaram criticamente após a morte

de Kirov112. Conforme os anos se passaram, desde a morte de Kirov e desde antes da morte

deste, Stalin ficava cada vez mais solitário, talvez por isso sua ira era inflamada quando saía de

um lugar para outro e o público o aclamava com gritos e euforias113. O “vojd” não estava

acostumado com aclamações tendo em vista o estressante trabalho como líder do Kremlin, a

desconfiança e a paranoia causadas por este estresse.

Inevitavelmente, a pesquisa de Lilly Marcou teve que se aprofundar em momentos

políticos marcantes na vida de Stalin, como a Segunda Guerra Mundial, por exemplo. Mas o

107 Ibidem. 108 Idem. O ditador. In:____.(org.). Ibidem. 109 Idem. Entre vitórias políticas e reveses familiares. In:____. (org.). Ibidem. 110 Ibidem. 111 Ibidem. 112 Ibidem. 113 Ibidem.

54

livro, como o próprio título sugere, foca principalmente no aspecto privado da vida do líder

soviético, é nesse sentido específico em que o estudo é centralizado. Logo, a obra de Lilly M.,

é uma obra biográfica de estudos aprofundados, nesse caso, o aprofundamento se dá na vida

privada de Stalin.

Stálin - Volume 1: Paradoxos Do Poder, 1878-1928 - Stephen Kotkin (2017)

Circunstâncias de Produção:

Publicada pela primeira vez em 2014 na Inglaterra, pela editora Penguin Books, a obra

de Kotkin foi traduzida por Pedro Maia Soares e publicada no Brasil em 2017 pela Objetiva.

Não consegui encontrar mais informações acerca da editora além do fato de que em 2015 ela

passou a fazer parte do Grupo Companhia Das Letras114, que busca produzir e publicar em sua

maior parte literatura e ciências humanas e atualmente ter um grande acervo diversificado no

que diz respeito a ideologias. O mesmo pode ser dito da Objetiva quando se observa os livros

por ela publicados, por isso o motivo da tradução da obra de Kotkin é mercadológico.

O livro:

O objetivo do autor S. Kotkin é escrever sobre a ascensão de Stalin, como ele conseguiu

obter tamanho poder e influência dentro partido até se tornar o líder máximo da URSS. Kotkin

escreve primeiramente sobre a infância de Stalin, mas também de forma especial seu passado

no seminário, seus primeiros contatos com os ideias revolucionários e suas amizades nesse

meio115.

Em seguida, nas décadas de 1900 e 1910, quando Stalin já era membro do partido

bolchevique, o autor foca no trabalho intelectual do futuro ditador e sua participação na

Revolução de 1917116. Foi nesse tempo que Lenin cria a posição “secretário-geral” para Stalin

e o autor afirma que este gozava de uma confiança de Lenin, ao contrário de outros estudiosos

que afirmam que ele (Lenin) nunca quis dar tanto poder a Stalin117. Ademais, quando a doença

114 MEIRELES, Mauricio. Companhia das Letras compra controle da Objetiva da Penguin Random House. O

Globo, 2015. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/livros/companhia-das-letras-compra-controle-

da-objetiva-da-penguin-random-house-15752719>. Acesso em: 21/04/2021. 115 KOTKIN, Stephen. Stalin: Paradoxos do Poder Vol. 1 (1878-1928). Rio de Janeiro: Objetiva, 2017, 1. Um

Filho Imperial. 116 Idem. Parte II: A guerra revolucionária de Durnovó. In:____.(org.). Ibidem. 117 Idem. Parte III: Colisão. In:. Ibidem.

55

infligiu Vladimir Lênin, Stalin escreveu uma carta a um amigo e nela não demonstrou medo do

retorno de Lenin, um sinal de confiança da sua posição e talvez de afeição pelo líder doente118.

Mas após a morte do então líder e referência do partido bolchevique, Kotkin aprofunda

na disputa de Stalin contra Trotsky pela liderança do partido119, suas artimanhas políticas para

subir ao poder e estratégias para tirar de seu caminho Trotsky e outros que representassem uma

potencial ameaça. Após a conquista do poder total, o autor escreve sobre as medidas ditatoriais

e violentas de Stalin a respeito da coletivização do campo120, como ele conseguiu chegar a tal

ponto e como conseguiu exercer suas políticas, mesmo que alguns membros do partido fossem

contrário a algumas dessas políticas, como a própria coletivização do campo.

O livro de S. Kotkin é uma biografia crítica de Stalin, pois o foco dessa obra é buscar

explicações sobre como Stalin alcançou um poder tão grande a ponto de eliminar rivais do

próprio partido e causar milhões de mortes com a coletivização da agricultura e da

industrialização, ao mesmo tempo em que não compactua com outras narrativas que detratam

o líder soviético, como a rejeição de Lênin a Stalin ou que o primeiro não confiava tanto no

segundo.

Stalin: nova biografia de um ditador - Olev V. Khlevniuk (2018)

Circunstâncias de produção:

Publicado pela Yale University Press em 2015 como Stalin - New biography of a

dictator, a obra de Oleg. V. Khlevniuk, foi traduzida por Marcia Men e publicada pela editora

Amarilys em 2018. Na realidade, a Amarilys é um selo da editora Manole, que existe há mais

de 50 anos e tem como foco a saúde, mas que com sua expansão foi se expandido também suas

categorias de livro, tendo hoje publicado livros de história, biografias, literatura infantil, entre

outras121. Não há muitas informações além dessas presentes e o catálogo da editora Amarilys

não é suficiente para discernir seu aspecto ideológico, por isso, o motivo da tradução da obra

de Khlevniuk é mais bem direcionada para a mercadológica.

118 Ibidem. 119 Ibidem. 120 Ibidem. 121 SOBRE. Facebook. Disponível em: <https://www.facebook.com/amarilyseditora/>. Acesso em: 21/04/2021.

56

O livro:

Bastante crítico a Stalin, Khlevniuk afirma que havia um relacionamento próximo entre

Lênin e Stalin e preocupações, no bom sentido, do primeiro para com o segundo. Entretanto,

essa harmonia acabou por divergências políticas e Lênin começou a criticar duramente

Stalin122, dando origem posteriormente ao famoso testamento de Lênin. Após a morte de Lênin,

Stalin deliberadamente incitou conflitos para que a liderança coletiva tivesse um fim123, ou seja,

segundo o autor havia uma liderança coletiva, uma liderança que não estivesse concentrada

apenas em uma pessoa, mas isso foi “implodido” por Stalin para que ele atingisse seu objetivo

de ter o poder total em suas mãos.

Dito isso, quando Stalin já havia se consolidado no poder, 800 mil pessoas foram

fuziladas entre 1930 e 1952, nesse mesmo período, 20 milhões de pessoas foram sentenciadas

a campos de trabalhos forçados, colônias penais ou prisões, além de outras 6 milhões de pessoas

sujeitadas a um exílio administrativo. Além dessas perseguições, por conta da industrialização

e coletivização, veio uma grande fome. E as decisões de Stalin para aliviar essa tragédia, só a

tornaram pior124.

O Grande Terror elevou os poderes de Stalin, que já eram muito fortes125, entretanto,

durante a Segunda Guerra mundial, demonstrou mais respeito aos líderes militares, isso porque

conforme a guerra avançava o ditador soviético acumulava experiências negativas e positivas.

Podemos dizer então, em outras palavras, mesmo com o acúmulo do poder que se tornou ainda

mais forte após o Grande Terror, Stalin, por necessidade, se tornou mais pragmático e menos

totalitário durante a guerra contra os nazistas. Mas isso durou pouco, pois após a guerra Stalin

consolidou novamente o seu poder, as concessões feitas já não eram mais necessários e por isso

terminaram126.

A obra de Khlevniuk sem dúvida é antistalinista, poderia catalogá-la como uma

biografia detratora, no entanto, diferentemente de outras obras de fato detratoras, “Stálin - Nova

biografia de um ditador”, apresenta fontes e documentos históricos que contemplam o que é

afirmado pelo autor, longe de serem incontestáveis, mas houve um esforço intelectual e um

método analítico e histórico sério dessas fontes trabalhadas por Oleg V.K. Por isso, me parece

mais adequado catalogá-la como uma biografia crítica.

122 KHLEVNIUK, Olev. Stalin: nova biografia de um ditador. Barueri-SP: Amarilys, 2018. p. 89-97. 123 Ibidem. p. 103. 124 Ibidem. p. 141. 125 Ibidem. p. 206. 126 Ibidem. p. 305.

57

Titãs da História - Simon Sebag Montefiore (2018)

Circunstâncias de produção:

Escrita pelo já citado Simon Sebag Montefiore, Titãs da Histórias (Titans of History, no

original) foi publicada nos EUA em 2017 e traduzida para o português por Renato Marques e

publicada pela editora Planeta do Brasil em 2018, braço brasileiro do Grupo Planeta. Seu foco

(Grupo Planeta) é no mercado de trabalho, com objetivo de ganhar destaques nas livrarias127.

Dito isso, o motivo de sua tradução para a língua portuguesa é mercadológico.

O livro:

Não há muito o que analisar sobre mais este livro de Simon S. M. devido a poucas

páginas dedicadas a Stalin. Isso porque o livro, na verdade, é uma compilação de brevíssimas

biografias de dezenas de personagens históricos. Por isso, decidi classificá-lo como uma

biografia introdutória.

Josef Stalin: a biografia - Dorothy e Thomas Hoobler (2018)

Circunstâncias de produção:

A editora LeBooks, a primeira digital do Brasil, tem por objetivo produzir e

comercializar livros, tendo mais de 50 mil ebooks comercializados128. Dessa forma, a coleção

“Os Grandes Líderes”, obtida pela editora digital e alterando o nome para “Homens que

mudaram o mundo”, publicou digitalmente todas as biografias (dessa coleção) já traduzidas

para o português, incluindo a de Stalin. Sua tradução foi realizada por questões mercadológicas.

O livro:

127 EDITORA PLANETA DO BRASIL: UMA DAS DEZ PRINCIPAIS EDITORAS DO MERCADO

BRASILEIRO. planeta.es. Disponível em: https://www.planeta.es/en/editora-planeta-do-brasil. Acesso em:

17/02/2021. 128 CONHEÇA A HISTÓRIA DA LEBOOKS. LeBooks. Disponível em: <lebooks.com.br/20-books-to-help-

you-be-in-good-mood/>. Acesso em: 21/04/2021.

58

A LeBooks fez uma nova edição, em 2008, do livro: “Stalin” de Dorothy e Thomas

Hoobler da coleção “Os Grandes Líderes", lançada originalmente no ano de 1987. É um livro

introdutório onde se pretende narrar toda a vida do líder soviético, desde o seu nascimento até

a sua data de falecimento, em poucas páginas (75 no total). Cabe então catalogá-lo como uma

biografia introdutória.

Stalin: Uma única morte é uma tragédia - Michael Kerrigan (2019)

Circunstâncias de produção:

Lançado na Inglaterra pela Amber Books Ltd no ano de 2018, a obra de Michael

Kerrigan foi traduzida para o portugês por Sonia Augusto e publicada pela editora M. Books

em 2019. Fundada em 2002 pelo editor Milton Mira (sucessora da Makron Books, fundada em

1984), a M. Books tem como linha editorial assuntos de Pais e Filhos, Negócios, Saúde,

Nutrição e Interesse Geral129, é neste último em que se encontra a obra de Kerrigan sobre Stalin.

A princípio, o motivo de sua tradução não parecer ser “nada além” de uma questão

mercadológica.

O livro:

É comum a narrativa antistalinista de igualar Stalin e Hitler, e Kerrigan aborda tal

narrativa que dominou o ocidente principalmente na Guerra Fria, mas o autor afirma que o

número de mortes causado pelo segundo é muito maior que o do primeiro130, sem diminuir a

culpa de Stalin por seus próprios crimes. Inclusive, o autor afirma que Lênin e Trótski não eram

mais piedosos e menos brutais e a forma política que seria denunciado como “stalinismo” já

estava presente na União Soviética muito antes. Outro ponto interessante levantado pelo autor

diz respeito a responsabilidade de Stalin acerca dos Gulags, que deve ser analisada com

cuidado, tendo em vista que campos semelhantes já existiam nos tempos dos czares131. Em

129 CONHECENDO A M. BOOKS. m.books.com.br. Disponível em: http://www.mbooks.com.br/qsomos.htm.

Acesso em: 18/02/2021. 130 KERRIGAN, Michael. Stalin “Uma única morte é uma tragédia. Um milhão de mortes é uma

estatística”. São Paulo: M.Books, 2019. p. 21. 131 Ibidem. p.127-128.

59

outras palavras, os crimes de outros não diminuí os de Stalin, mas não foi este, segundo o autor,

que transformou o socialismo soviético opressivo132.

Voltando a narrativa de comparação entre o vojd e o fuhrer, o Holodomor de Stalin é

constantemente colocado ao lado do Holocausto de Hitler, mas isso é mais “aparente do que

real”. Kerrigan não nega os milhões de ucranianos mortos no Holodomor, mas contrapõe a

narrativa de que tenha sido um crime de cunho racista, pelo fato de Stalin não gostar da

Ucrânia133.

O Grande Terror de Stalin também é explorado no livro, mais especificamente no

capítulo V, mas o autor também cita brevemente que estudos recentes mostram que não foram

comprovados dezenas de milhões de mortes como se apontavam antigamente, apesar de ainda

serem muitas, além do choque que os julgamentos e os desaparecimentos causavam134.

A biografia de Stalin escrita por Kerrigan é introdutória, pois não é muito longa em

comparação a outras, como a de Dimitri Volkogonov ou de Montefiore, o autor busca abordar

de uma maneira geral toda a vida de Stalin e a obra possui muitas figuras em suas páginas,

parecendo-se mais com um livro didático.

132 Ibidem. p.102. 133 Ibidem. p.136. 134 Ibidem. p.144-150.

60

Tabela

TÍTULO EDITORA ANO AUTOR(ES) BIOGRAFIA MOTIVAÇÃO

Stalin - Um Novo

Olhar

Revan 2003 Ludo Martens Retratora Ideológica

Um Stalin

desconhecido

Record 2006 Zhores

Medvedev e

Roy Medvedev

Crítica Mercadológica

Stalin: uma

biografia política

Civilização

Brasileira

2006 Isaac

Deutscher

Crítica Ideológica

Stalin: a corte do

Czar Vermelho

Companhia

das Letras

2006 Simon S.

Montefiore

Crítica Mercadológica

O Jovem Stalin Companhia

das Letras

2008 Simon S.

Montefiore

Estudo

aprofundado

Mercadológica

A loucura de

Stalin

Difel 2008 Constantine

Pleshakov

Estudo

aprofundado

Mercadológica

Os Sete Chefes

do Império

Soviético

Nova

Fronteira

2008 Dimitri

Volkogonov

Introdutória Ideológica

Stalin - História

Crítica de uma

Lenda Negra

Revan 2010 Domenico

Losurdo

Retratora Ideológica

Stalin: Biografia -

Estudo

Preliminar de

Osvaldo

Coggiola

Livraria da

Física

2012 Leon Trotsky Detratora Ideológica

Os crimes de

Stalin - A

trajetória

assassina do Czar

Vermelho

Madras 2012 Nigel

Cawthorne

Detratora Ideológica

A vida privada de

Stalin

Zahar 2013 Lilly Marcou Estudo

aprofundado

Ideológica

Stalin: Paradoxos

do Poder 1878-

1928

Objetiva 2017 Stephen

Kotkin

Crítica Mercadológica

61

Stalin: triunfo e

tragédia

Nova

Fronteira

2017 Dimitri

Volkogonov

Crítica Ideológica

Stálin - Nova

biografia de um

ditador

Amarilys 2018 Olev V.

Khlevniuk

Crítica Mercadológica

Titãs da História:

os gigantes que

mudaram nosso

mundo

Planeta do

Brasil

2018 Simon S.

Montefiore

Introdutória Mercadológica

Homens que

mudaram o

mundo. Josef

Stalin: a biografia

LeBooks 2019 Dorothy e

Thomas

Hoobler

Introdutória Mercadológica

Stalin - Uma

única morte é

uma tragédia. Um

milhão de mortes

é uma estatística

M. Books 2019 Michael

Kerrigan

Introdutória Mercadológica

62

Considerações finais

O foco deste trabalho foi catalogar as biografias de Josef Stalin no Brasil entre os anos

2003 a 2019, com o intuito de diferenciá-las e a partir dessas diferenças entender o debate que

ocorre em nosso país nos dias de hoje, tendo em vista que a imagem de Stalin, em algumas alas

da esquerda, tem passado por transformações de um homem ditador, impiedoso e totalitário

para um homem que, não obstante suas políticas ditatoriais a qual essas alas da esquerda não

negam e não defendem, se fez necessário para o combate contra o nazifascismo nas décadas de

1930 e 1940.

A partir disso, observei como a obra de Domenico Losurdo ganhou destaque em

território brasileiro e influenciou diretamente o debate acerca das ações de Stalin, atingindo

principalmente o público jovem (ainda que não somente), que em boa parte sentem-se imbuídos

de um sentimento antifascista e tentam combater o que muitos hoje enxergam como uma

ascensão de um neofascismo, não somente no Brasil, mas em outras partes do globo, como nos

EUA em 2020 com as manifestações dos Black Lives Matter e do grupo Antifa.

Busquei também evidenciar o governo Putin e suas políticas a partir da educação e como

elas influenciaram os russos a respeito de Stalin e como a figura de Putin conquistou

admiradores no Brasil, tanto de esquerda quanto de direita.

Por fim, quis demonstrar, antes de apresentar a tabela, a importância das biografias para

o entendimento da História, para o contexto social de uma época (no caso, a Rússia de Stalin),

tomando como ponto de partida a vida de uma pessoa, um agente histórico. Com isso e com a

catalogação das obras, adotei como objetivo diferenciar cada biografia tendo em vista o debate

atual que rodeia em torno de Stalin. Com este trabalho, não pretendo esgotar completamente o

assunto, longe disso, antes dar apenas a minha contribuição para o meio acadêmico neste debate

que tanto me interessa e julgo importante.

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