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BRASÍLIA, SEDE NO MEGAEVENTO DA COPA DO MUNDO 2014. A QUESTÃO DAS CENTRALIDADES CONJUNTURAIS DA CIDADE ROMERO, Marta Adriana Bustos Arquiteta e Urbanista, Professora Titular, FAU/UNB. [email protected] RESUMO O objetivo deste artigo é discutir três estratégias do governo de Brasília e dos grandes capitais financeiros para acelerar o processo de produção espacial propiciado por Megaeventos como a Copa do Mundo de 2014. Seguindo uma lógica que se arrasta há cinco décadas, o governo de Brasília, uma das 12 sedes da Copa do Mundo, decidiu não criar novas centralidades com a finalidade conjuntural de adaptar a cidade às necessidades do megaevento. Em vez disso, concentrou os investimentos públicos numa área reduzida no centro da cidade, denominada de ‘área de escala gregária’. As três estratégias analisadas no artigo são: 1) realização de obras de mobilidade urbana no território do Distrito Federal – DF; 2) implantação de terminal de passageiros do aeroporto, que faz parte do planejamento e inserção da capital no mercado internacional de investimentos; e 3) construção de obras do estádio Manê Garrincha no espaço central do Plano Piloto, obra de engenharia para a qual foi convidado o mesmo escritório de arquitetura que projetou inicialmente esse primeiro estádio da cidade. O nosso foco serão as tentativas de transformação da legislação e o uso e destinação das áreas adjacentes ao estádio na escala gregária do Plano Piloto. Palavras-Chave: Copa do Mundo 2014; Planejamento Urbano em Brasília; Escala Gregária; Estratégias do Plano Piloto. ABSTRACT The objective of this paper is to discuss three strategies of the government of Brasilia and those of the large financial capital to accelerate the process of spatial production as fostered by mega-events such as the 2014 World Cup. Following a logic that carries on since five decades ago, the government of Brasilia, one of the 12 host cities to the World Cup, decided not to create new centralities with the timely aim of adapting the city to the mega-event. Instead of doing this, it concentrated public investments in a reduced area in the center of the city, denominated ‘area of gregarious scale’. The three strategies analyzed in the article are the following: 1) realization of works for urban mobility in the DF -Federal District’s

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BRASÍLIA, SEDE NO MEGAEVENTO DA COPA DO MUNDO 2014. A QUESTÃO DAS CENTRALIDADES CONJUNTURAIS DA CIDADE

ROMERO, Marta Adriana Bustos

Arquiteta e Urbanista, Professora Titular, FAU/UNB. [email protected]

RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir três estratégias do governo de Brasília e dos grandes

capitais financeiros para acelerar o processo de produção espacial propiciado por

Megaeventos como a Copa do Mundo de 2014. Seguindo uma lógica que se arrasta há

cinco décadas, o governo de Brasília, uma das 12 sedes da Copa do Mundo, decidiu não

criar novas centralidades com a finalidade conjuntural de adaptar a cidade às necessidades

do megaevento. Em vez disso, concentrou os investimentos públicos numa área reduzida

no centro da cidade, denominada de ‘área de escala gregária’. As três estratégias

analisadas no artigo são: 1) realização de obras de mobilidade urbana no território do

Distrito Federal – DF; 2) implantação de terminal de passageiros do aeroporto, que faz parte

do planejamento e inserção da capital no mercado internacional de investimentos; e 3)

construção de obras do estádio Manê Garrincha no espaço central do Plano Piloto, obra de

engenharia para a qual foi convidado o mesmo escritório de arquitetura que projetou

inicialmente esse primeiro estádio da cidade. O nosso foco serão as tentativas de

transformação da legislação e o uso e destinação das áreas adjacentes ao estádio na

escala gregária do Plano Piloto.

Palavras-Chave: Copa do Mundo 2014; Planejamento Urbano em Brasília; Escala Gregária;

Estratégias do Plano Piloto.

ABSTRACT

The objective of this paper is to discuss three strategies of the government of Brasilia and

those of the large financial capital to accelerate the process of spatial production as fostered

by mega-events such as the 2014 World Cup. Following a logic that carries on since five

decades ago, the government of Brasilia, one of the 12 host cities to the World Cup, decided

not to create new centralities with the timely aim of adapting the city to the mega-event.

Instead of doing this, it concentrated public investments in a reduced area in the center of

the city, denominated ‘area of gregarious scale’. The three strategies analyzed in the article

are the following: 1) realization of works for urban mobility in the DF -Federal District’s

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territory; 2) implementation of an airport terminal for passengers, part of the planning of the

city to be part of the international investment market; 3) building of the works for the Mane

Garrincha Stadium in the central space of the Pilot Plan, engineering work for which the

same architectural office that initially designed this first stadium in the city. Our focus will be

the attempts in transforming legislation and land-uses and destination of sites adjacent to

the stadium in the gregarious scale of the Pilot Plan.

Keywords: 2014 World Cup; Urban Planning in Brasilia; Gregarious Scale; Pilot Plan

Strategies.

INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é discutir três estratégias do governo de Brasília e dos grandes

capitais financeiros para acelerar o processo de produção espacial propiciado por

Megaeventos como a Copa do Mundo de 2014.

Seguindo uma lógica que se arrasta há cinco décadas, o governo de Brasília, uma das 12

sedes da Copa do Mundo, decidiu não criar novas centralidades com a finalidade

conjuntural de adaptar a cidade às necessidades do megaevento. Em vez disso, concentrou

os investimentos públicos numa área reduzida no centro da cidade, denominada de área de

escala gregária.

A primeira das três estratégias se refere às obras de mobilidade urbana no território do

Distrito Federal - DF, pensadas originalmente numa extensão e abrangência capaz de

solucionar os graves problemas de mobilidade da capital. O artigo abordará essa questão

da perspectiva de seu rebatimento espacial no território do DF e seu Entorno, para o qual

teceremos breves comentários sobre urbanização e povoamento. A segunda estratégia diz

respeito ao terminal de passageiros do aeroporto, que faz parte do planejamento e inserção

da capital no mercado internacional de investimentos, para os quais os megaeventos

servem como catalizadores, uma vez que as cidades são amplamente expostas na mídia

antes e durante a realização dos eventos. A discussão será realizada por meio da

elaboração de comparações com outros projetos contratados pelo governo local que visam

ao aproveitamento das centralidades existentes na cidade. A terceira estratégia se refere às

obras do estádio Manê Garrincha no espaço central do Plano Piloto, obra de engenharia

para a qual foi convidado o mesmo escritório que construiu esse primeiro estádio da cidade.

A centralidade da localização da arena esportiva motivou uma serie de ações especulativas

no entorno imediato; o nosso foco serão as tentativas de transformação da legislação e o

uso e destinação das áreas adjacentes ao estádio na escala gregária do Plano Piloto.

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1 OBRAS DE MOBILIDADE URBANA

Voltando umas poucas décadas na história, logo que Juscelino Kubitschek assumiu a

Presidência da República, em 1956, a construção de Brasília passou a representar a meta

síntese da integração social. Para tanto, foram realizadas uma serie de ações que

culminaram com o concurso, ganho por Lucio Costa, para a Capital da República no

Planalto Central.

Lucio Costa foi ordenando e dispondo a cidade de Brasília com uma concepção morfológica

modelar, partindo do cruzamento de dois eixos viários, o Eixo Monumental—centro Cívico

da Administração Federal — e o Eixo Rodoviário Residencial, onde o espaço urbano seria

envolvido por grandes áreas verdes entre as habitações. Já em 1961 o urbanista

lamentava, junto à Companhia Urbanizadora da Capital — Novacap, o abandono de seu

plano de criar áreas de vizinhança que agrupassem diferentes classes sociais. No Plano

somente ficou a classe média e média alta em função dos altos valores imobiliários dos

apartamentos. E hoje a população sem ou de baixa renda está morando cada vez mais

distante (as cidades satélites iniciais ficavam a mais de 30 quilômetros) do centro gerador

de empregos e serviços1. Não apenas a população de baixa renda se estabeleceu na

periferia, mas a maior parte da população da cidade se estabeleceu fora do Plano Piloto,

em condomínios horizontais fechados, cercados com guaritas. Consequentemente,

fragmentou-se a estrutura urbana, pois foram constituídos espaços fechados, murados e

sem conexão com seu entorno imediato, e descaracterizou-se a paisagem ao alimentar as

estreitas vias que os comunicam com o sistema viário urbano.

As cidades satélites de Brasília foram consideradas, no início do Distrito Federal, manchas

isoladas e pontuadas no território. Na época, esse “modelo” polinucleado parecia o mais

adequado para a preservação ambiental do Lago Paranoá e do Cerrado. Mas hoje verifica-

se a conturbação entre as cidades, e o preenchimento dos vazios urbanos com novas

construções. Portanto, a benéfica solução ambiental dos núcleos múltiplos é praticamente

inexistente hoje.

No documento “Brasília Revisitada, 1985-1987”, Lucio Costa (2009) apresenta sua visão de

expansão do Plano Piloto. Propõe a localização de novos bairros para diversos estratos

sociais, como o Sudoeste, Noroeste, Nova Asa Norte, Nova Asa Sul, expansão do Guará,

expansão da Vila Planalto entre outros. Na conclusão do referido documento, Lucio Costa

declara imaginar que Brasília, com a criação das novas áreas, assim como a implantação

da cidade satélite de Samambaia, alcançaria o limite populacional máximo desejado, não

                                                                                                                         1  9,  80  %  da  população  de  Brasília  mora  na  área  central  (tombada)  e  ai  se  concentram  47,72%  dos  empregos  formais.  IBGE,  2012  e  PDAD,  2012.  

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sendo necessário, portanto, criar novos núcleos de adensamento. Na visão de Costa,

Brasília deveria permanecer uma cidade eminentemente político-administrativa, não sendo

interessante sua transformação em uma grande metrópole, pois, nesse caso, haveria o

risco de desvirtuar essa primeira função.

Os novos bairros deveriam formar uma unidade com o conjunto existente, ratificando o

caráter de “cidade parque”, por ele caracterizada como “derramada e concisa”, o que seria

um diferenciador entre Brasília e das demais metrópoles brasileiras. Lucio Costa tenta

assegurar, “o que se pretende preservar”, verificando em quais áreas convém à ocupação

residencial dentro da Bacia do Lago Paranoá e próximas ao Plano Piloto:

“A proposta visou aproximar de Brasília as populações de menor renda, hoje praticamente expulsas da cidade – apesar da intenção do plano original ter sido a oposta – e, ao mesmo tempo, dar também a elas acesso a maneira de viver própria da cidade e introduzida pela superquadra” (COSTA, 2009, p.74).

O adensamento urbano decorrente das ocupações irregulares e até mesmo dos núcleos

planejados hoje em dia saturam o trânsito. A falta de planejamento urbano e de uma política

de trânsito e transportes para a capital agrava os problemas de mobilidade urbana.

O modelo centro periferia é dominante e o modelo existente, de cidades dormitórios, com

alta concentração de emprego na área tombada produz um forte crescimento veicular dada

a baixa qualidade do serviço de transporte coletivo fornecido na cidade. Os ônibus estão em

péssimo estado de conservação e são muito antigos, existe um longo tempo de espera, o

metrô atende a menos de 5% da população e as distâncias a serem percorridas são muito

longas.

Segundo dados do IBGE (2012), Brasília tem uma população de cerca de 2,6 milhões de

habitantes, distribuídos em 31 núcleos urbanos ou Regiões Administrativas (RA) e no Plano

Piloto do Distrito Federal. Para 2,6 milhões de habitantes existem 1,2 milhão de veículos,

que poderão chegar a 1,5 milhão já em 2014 se continuar a taxa média de crescimento de

6,5% registrada nos dez primeiros meses de 2013. A média de ocupação/ carro vem

piorando: em 2014 não chega a duas pessoas por automóvel, 1,86, enquanto que em 2010

era de 2,08 pessoas por automóvel.

No Distrito Federal, a infraestrutura para o transporte coletivo apresenta baixo investimento

e manutenção. Como bem aponta Ribeiro (2013), os terminais e paradas de ônibus são

precários e deteriorados nos pontos mais periféricos; há carência de abrigos nas paradas

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de ônibus, as tarifas estão consideradas entre as mais altas do país; há pouca e precária

acessibilidade para portadores de deficiência.

A imprensa local tem informado que, até agora, as ações para reverter o quadro de

inviabilidade de locomoção – como corredor exclusivo e troca da frota de ônibus – têm sido

construídas em ritmo lento, na contramão do crescimento avassalador da população. O

governo do Distrito Federal (GDF) prometeu2 construir, até a Copa, 600 km de ciclovias a

um custo de R$ 121 milhões. Até 2013 existiam 90 km prontos e mais 100 km em

construção; até a data deste artigo o GDF informa haver 433 km concluídos ou em

conclusão.

A intensa coluna diária de saída e entrada de veículos no quadrante sul/oeste onde está a

RA II - Gama, a RA III - Taguatinga, a RA IX - Ceilândia, a RA XII - Samambaia, a RA XIII -

Santa Maria, a RA XV - Recanto das Emas, a RA XVII - Riacho Fundo, a RA XX - Águas

Claras e a RA XXI - Riacho Fundo II, que concentram quase 50% da população urbana de

Brasília, é uma pressão rodoviária crescente sobre a área central. Exemplifica essa forma

de estruturação a circulação de automóveis em Brasília, uma vez que os coletivos não são

uma opção possível para a grande maioria da população. Também segundo Ribeiro, (2013),

dentre os efeitos adversos gerados pelo aumento veicular, podem ser citados dois que

impactam fortemente a população: elevação da quantidade de poluentes no ar e elevação

da temperatura, ambos em função da emissão de gases aquecidos pelos veículos.

                                                                                                                         2  O  Plano  Diretor  de  Transporte  Urbano  e  Mobilidade  –  PDTU,  aprovado  em  2011  pela  Câmara  Legislativa  do  DF  (CLDF),  deveria  ter  sido  enviado  pelo  GDF  para  a  CLDF  em  2009,  e  já  tinha  36  anos,  sendo  que  deveria  ter  sido   refeito   a   cada   10   anos   e   revisado   a   cada   5.   O   PDTU   abrange   obras   nos   quatro   principais   eixos   de  circulação   no   DF:   região   sul   (Gama,   Santa  Maria   e   o   Plano   Piloto);   o   sudoeste   (Recanto   das   Emas,   Núcleo  Bandeirantes);  no  oeste  (Ceilândia,  Samambaia  e  Aguas  Lindas  de  Goiás);  eixo  norte  (Sobradinho  e  Planaltina  de  Goiás).  

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Figura1.- Distrito Federal e as áreas de maio concentração de população

Em Brasília, tal como no resto do país, a tendência de a organização sócio -econômica

refletir-se no espaço é confirmada pelas diferenças existentes entre as Regiões

Administrativas e seu centro. A parte central de Brasília, o Plano Piloto, concentra as

melhores habitações, serviços, ofertas de trabalho, infraestrutura, opções de lazer e

serviços de saúde e educação. De uma perspectiva sociológica, Wirth (2005) define uma

cidade como o local grande, denso e lugar permanente de indivíduos socialmente

heterogêneos. Assim quanto maior, mais densamente povoada e mais heterogênea for uma

comunidade, mais acentuadas serão as características associadas ao urbanismo. Tais

diferenças estão presentes desde o início da cidade, quando a periferia era ocupada,

principalmente, pela população mais pobre. Posteriormente, nos anos de 1980, a periferia

também foi a alternativa encontrada pela classe média e média alta devido ao alto valor e

baixa disponibilidade da terra na região central e seu entorno imediato.

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Um dos grandes investimentos para a copa de 2014 estaria voltado para a estrutura viária e

para a mobilidade urbana. Segundo estudos da Codeplan publicado no ano passado3, em

junho de 2014, a população do Distrito Federal somados a 1.155 mil na periferia

metropolitana, pressagiava que teríamos na Área Metropolitana de Brasília - AMB

aproximadamente 4 milhões de pessoas.

A questão crucial de mobilidade em Brasília é reduzir o tempo gasto nas viagens ida e volta

do trabalho num serviço de péssima qualidade. A saturação das vias urbanas (quase sem

vias alternativas) e das rodovias distritais está num estágio tão avançado que qualquer

chuva, acidente, pequena manifestação é capaz de parar o trânsito. Em março de 2014,

foram liberados R$ 1,59 bilhão para o DF pelo Programa de Aceleração do Crescimento –

PAC, dos quais, 60% dos recursos eram para ser usados nos eixos Norte e Sudoeste do

Expresso DF. O restante seria para melhorias no Metrô (estudo para a expansão na Asa

Norte); para o Veículo Leve sobre Trilhos - VLT com expansão até a Asa Norte; para Ônibus

de Trânsito Rápido (Bus Rapid Transit) -BRT Sul4 e Sudoeste. O BRT Sul já foi testado em

fevereiro de 2014 e custará R$600 milhões – R$67 milhões a mais que o previsto

inicialmente e será entregue com um atraso de cerca de sete meses5.

Entretanto, a distancia entre as proposições urbanísticas e os problemas enfrentados nas

cidades, a forma como se dá o processo de urbanização e a capacidade de resolução dos

conflitos urbanos levaram a uma simplificação do fenômeno urbano. Assim a necessidade

de acomodar o excedente de população que acudiu ao planalto central para construir a

capital levou ao poder centrar a construir milhares de habitações na periferia do centro, a

mais de 30 quilômetros, em lugares sem infraestrutura, de onde a partir de suas cidades

dormitórios, em percursos pendulares diários, deveriam se deslocar os trabalhadores e suas

famílias para obter os serviços básicos na capital recém-implantada.

À dispersão nas periferias e à segregação que ameaça as relações sociais opõe-se, diz

Lefebvre (1972:171) uma centralidade acentuada nas decisões sobre a distribuição da

riqueza, o acesso à informação, o uso do poder, o tratamento da violência. Concordando

com Castells (1980), ressaltamos que quanto mais importante é a aliança das classes

sociais em uma determinada conjuntura, mais essencial é sua relação com o urbano. A

problemática urbana é inteiramente a expressão da ideologia dominante. Em lugar nenhum

isso é tão transparente quanto em Brasília, onde por trás do evidente caos urbano, existe

uma lógica que atende a determinados interesses de uma minoria, aqueles que sempre                                                                                                                          3  Apresentados  na  revista  de  dezembro  de  número  15  de  2013  4  Começa  com  dois  ramais:  em  Santa  Maria  e  no  Gama  na  altura  do  Catetinho,  que  se  transformam  em  um  só.  Descem  pela  BR-­‐040,  passam  pela  floricultura,  entram  pela  pista  para  o  aeroporto,  passam  pelo  túnel  do  balão  da  Dona  Sarah  e  seguem  até  o  viaduto  Camargo  Corrêa.  5  Segundo  o  jornal  Correio  Braziliense  de  22.02.2014,  p.  26.  

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estiveram ao lado do poder influenciando o processo de planejamento da sociedade

favorável ao capital, e não aos interesses da maioria da população.

2 TERMINAL DE PASSAGEIROS

Outra das obras de mobilidade previstas para a Copa são os acessos no entorno do

aeroporto, ponto critico de trânsito e também uma obra de ampliação do Terminal de

Passageiros, que consiste na Implantação do Módulo Operacional 2 e na reforma do Corpo

Central do Terminal de Passageiros, que passaremos a discutir.

O consorcio Inframerica (com a concessão até 2037) financia as obras de ampliação e

reforma do aeroporto, que terá sua capacidade ampliada de 16 para 21 milhões de usuários

anuais. O projeto é inspirado em experiências de cidades como Singapura, Hong Kong,

Frankfurt e Miami, onde terminais aéreos são uma das vias principais do trânsito de bens e

serviços. Seguindo o conceito de “aerotropolis”6, o aeroporto de Brasília será um centro

comercial com diversas opções de entretenimento, lazer, gastronomia e hotelaria. O

primeiro hotel está pronto, a 200m do terminal, com previsão de construção de outros dois

estabelecimentos na mesma área. As obras de acesso ao aeroporto, realizadas pelo GDF,

constam da ampliação da DF-047, com túnel e via exclusiva para ônibus, e vias marginais

para separar o trânsito local.

A capital federal teve, ao longo de cinco décadas, um crescimento demográfico considerado

alto, e o processo urbanizador formou um aglomerado que extrapolou problematicamente

as fronteiras políticas do DF. Como consequência, há um intenso processo de migração

pendular, caracterizado pela movimentação diária de milhares de pessoas para o centro

econômico do DF, pressionando os equipamentos urbanos da cidade, aumentando o

desemprego e a violência.

De tempos em tempos surgem projeções para o crescimento e desenvolvimento do Distrito

Federal e sua região de influencia ou Entorno: a última delas, encomendada a uma

empresa estrangeira pelo governo local para incentivar investimentos no Distrito Federal,

causou polemica por não ter sido discutida com as organizações de classe e a população

em geral.

As projeções do GDF, para Brasília 2060, realizadas pela empresa Jurong Consultants Pte,

de Cingapura7, preveem o aumento do fluxo de investimentos privados e estrangeiros, o

favorecimento do desenvolvimento descentralizado, a diversificação da economia da região                                                                                                                          6   Termo   criado   pelo   professor   norte-­‐americano   John   Kasarda,   para   caracterizar   situações   em   que   um  aeroporto  engloba  zonas  de  desenvolvimento  aeroporto-­‐indústria,  hotel,  logística,  entre  outros.  7  Empresa  responsável  pela  parte  técnica  do  estudo  

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e, ao mesmo tempo, a preservação da área do Plano Piloto, tombada pela Organização das

Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) como patrimônio cultural da

humanidade. O plano prevê a expansão de três diferentes polos do DF. São eles: o Polo de

Desenvolvimento JK, em Santa Maria, o Centro Financeiro Internacional, próximo a São

Sebastião, e o novo aeroporto e cidade aeroportuária, próximo a Planaltina.

Os megaeventos e os compromissos das cidades-sede pressupõem obras de infraestrutura,

como a construção ou reforma de aeroportos, estádios e instalações esportivas, o que

implica um novo ciclo de construção e valorização do solo urbano na cidade-sede. Em

Brasília, no entanto, as pressões ambientais nesses ciclos são maiores. Tomemos como

exemplo as formas de deslocamento da fração sudoeste do DF, que substitui 4 linhas de

metrô e VLTs por 4 corredores de ônibus, na Estrada Parque Taguatinga – EPTG 8(a

chamada Linha Verde), com todos os eixos rodoviários de 4 e 6 pistas sendo alargados

para 10 a 12 pistas. Isso significa, minimamente, uma perda de 800 mil m2 de área verde. O

alargamento destruiu a vegetação lateral ao longo dos 12,7 km, aterrou as nascentes e

parte dos córregos do parque ecológico do Guará9.

A população que mora em áreas com pouca vegetação não se beneficia da melhora no

microclima que a vegetação é capaz de produzir. A escassez de vegetação é um fator de

diferenciação entre as Regiões Administrativas, que infelizmente afeta de forma negativa as

condições de vida em áreas periféricas. Para as classes desfavorecidas

socioeconomicamente, somente restam as periferias de ambientes pobres e deteriorados.

Fora do Plano Piloto e da Região Administrativa 1 - RA 1, nota-se a carência de áreas

verdes, seja na fase de elaboração do plano urbanístico, de implantação ou em outro

momento da fixação da população urbana.

É possível verificar que a cidade perdeu vegetação saindo do Plano Piloto indo em direção

à Taguatinga, Ceilândia e Samambaia, passando pelo Guará, Vicente Pires e Águas Claras.

Também é possível identificar um vetor de crescimento em direção ao Gama e à Santa

Maria com acréscimo de áreas não vegetadas. As "áreas verdes" podem ser espaços

apenas gramados, sem atividade fotossintética significativa, porém a existência dessas

áreas possibilita que em algum momento haja vegetação no local. Quando não há previsão

dessas "áreas verdes" a existência futura de vegetação está comprometida, pois não há

                                                                                                                         8  Que  de  parque  hoje  não  tem  nada.    9  Além  da  EPTG  não   ter   condições  de   substituir  o  volume  de  passageiros  que  deveria   ser   transportado  pelo  metrô,   a   impermeabilização   causa   as   enchentes   em   Vicente   Pires   e   na   parte   baixa   do   Park  Way,   de  modo  semelhante   ao   alagamento   da  W-­‐3  Norte   pela   impermeabilização   do  Noroeste.   Na   atualidade,,   o   GDF   está  fazendo   o   segundo   corredor   (Santa   Maria   /   Gama   /   Plano-­‐Piloto,   a   Linha   Laranja)   e   com   isso   destruirá   a  vegetação  ao  longo  dos  quase  37  km  de  extensão  e  impermeabilizará  mais    de  1  milhão  e  850  mil  m2  (50  m  x  37.000  m).  

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onde inserir vegetação se o solo está construído ou pavimentado. Fato extremamente

preocupante dado que uma das consequências geradas pelo processo de ocupação e

desenvolvimento nas metrópoles é o fenômeno da ilha de calor urbana, que se verifica

justamente nas regiões com solo exposto. Nesses lugares, quantidades de ar quente se

fazem presentes em maior concentração, assim como no centro das cidades. E são essas

condições que dificultam a evaporação e reduzem o poder de dispersão dos poluentes

atmosféricos gerados trazendo complicações para uma boa ocupação.

Para pesquisadora Ermínia Maricato, o processo de urbanização acelerado e concentrado

cobra um alto preço: predação do meio ambiente, baixa qualidade de vida, gigantesca

miséria social e seu corolário, a violência. O rápido e espetacular processo de urbanização

brasileira, que combinou determinantes da expansão capitalista externa com favoráveis

condições internas, constitui um movimento avassalador do ponto de vista social, cultural e

ambiental.

Estudo de imagens de satélites realizado por Coelho (2012) observa a existência de

grandes áreas, distantes do centro, com atividade fotossintética muito baixa. Locais como

Ceilândia, Taguatinga, Samambaia e Recanto das Emas, que são espaços sem vegetação,

construídas ou expostas, praticamente não possuem atividade fotossintética. Um pouco

menos comprometidas estão Gama e Santa Maria, embora também acusem atividade

fotossintética muito baixa.

Os setores censitários em 2010 indicam crescimento da área urbana. Grande parte dessas

novas áreas era destinada ao uso rural, mas foram loteadas e passaram a ser de uso

urbano, e diversos condomínios estão aí localizados. Em algum desses locais, há mais

áreas vegetadas e com maior atividade fotossintética, mas o que tem contribuído para uma

menor área edificada e, consequentemente, uma maior área vegetada é o relevo mais

acidentado, dificultado o adensamento, como nas localidades próximas a São Sebastião.

Pensar e trabalhar ambientalmente supõe a construção, desenvolvimento e aplicação de

uma nova racionalidade, de toda uma revisão da teoria e a práxis social para compreender

a origem, as manifestações e as implicações da dinâmica social de todas as inter-relações e

interações permanentes e indissolúveis entre o meio humano, o meio natural e o meio

construído. Essas formas de pensamento e trabalho são essenciais neste momento,

quando poderiam estar associadas às novas categorias da mobilidade, da construção dos

terminais e do desenvolvimento de novas centralidades. Fica, então, a questão: o novo

terminal do aeroporto, pensado para ampliar a capacidade para 21 milhões de passageiros

por ano está em consonância com as projeções para Brasília de 2060?.

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3 ESTÁDIO MANÉ GARRINCHA

Localizado ao lado do Setor Hoteleiro, o antigo estádio Mané Garrincha, com capacidade

para 45 mil espectadores, foi demolido e, no mesmo espaço construiu-se o Estádio

Nacional, para 71 mil espectadores, com investimento de R$671 milhões.

A construção do novo estádio, apresentado para avaliação ao Leadership in Energy and

Environmental Design- LEED, fundamenta-se em conceitos de sustentabilidade simples,

tais como o reaproveitamento de material de demolição (mais de duas mil toneladas) do

antigo estádio na forma de brita para a pavimentação das áreas externas; reaproveitamento

d’água de chuva (captada e armazenada em tanques instalados embaixo do campo de

futebol); captação de energia solar; incorporação de mictórios a vácuo e construção de

bicicletários que reduzem o número de vagas de estacionamentos permeáveis. Em 2011,

segundo o Governo do Distrito Federal e os autores do projeto do novo estádio, Castro

Mello Arquitetos, o projeto contava com 87 pontos de um total de 100 pontos necessários

para alcançar a categoria LEED Platinum, mas o selo nunca foi concedido porque não

foram atingidos os requisitos, e, por isso, foi abandonado um conjunto de medidas previstas

inicialmente, como placas fotovoltaicas, aquecimento solar de agua, etc.

Nas palavras de um dos gestores da Copa de 2014, em Seminário do BID em agosto de

2012, Brasília seria a única cidade-sede que faria a Copa em três quilômetros. O Comitê

Brasília 2014 afirmou em 2012, antes da competição, que o público poderia usar o

transporte coletivo sem restrições e circular a pé com tranquilidade por calçadas renovadas

no centro da cidade. Para essa Copa “a pé”, seria feito um investimento em calçamento em

toda a área central de Brasília.

No entanto, nada disso aconteceu: as obras de calçamento vão ficar para depois da Copa,

assim como os dois túneis para atravessar desde o centro de convenções para o estádio e

para o parque da cidade. Tornando a dimensão social do investimento ainda mais duvidosa,

o trabalho de Ribeiro (2013), supracitado, mostrou que a porcentagem da população que

seria afetada e teria acesso mais direto ao megaevento não chega a 2% do total de Brasília.

Fig. 2

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Fig. 2 A copa em 3 quilômetros

Nesse setor mesmo, sem um arranjo paisagístico formal, existe uma série de lugares

criados pelos espaços convergentes dos próprios edifícios e seus recuos obrigatórios, uma

vez que a paisagem e as formas naturais do terreno constituíram as bases do projeto

urbano em Brasília. Sua conservação permite a existência do senso do lugar, da sua

identidade, sensibilizando o usuário para o contexto e tornando mais complexa e contínua a

escala percebida. Nesse sentido é que se faz tão importante o acesso ao Lago, que na

distancia fica visível, mas é, efetivamente, inacessível. Justamente pela declividade tem-se

a dimensão real da paisagem, pensada no plano original de Lucio Costa como amenidades

bucólicas, tais como campo de golfe, restaurantes e clubes, todos com baixo gabarito para

não interferir na paisagem.

Mas as invasões se sucederam em direção à beira do espelho d’água. Lucio Costa fez uma

acertada leitura do sítio, acomodando seu projeto à forma daquele. Estabeleceu um vínculo

com o espaço ao escolher para a localização da capital o triângulo contido entre os braços

do lago. Este triângulo ergue-se ligeiramente sobre os terrenos laterais mais baixos que

chegam ao lago. Na linha do espigão estabeleceu o eixo Monumental e, acompanhando as

curvas de nível que descem até o lago, acomodou o eixo Rodoviário. Isso dá ao “homem de

Brasília” a sensação de segurança no lugar e o domínio visual sobre a paisagem, que é

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altamente legível, isto é, se faz compreender com facilidade através de relações espaciais

claras entre os seus elementos.

As descontinuidades, por outro lado, resultado das invasões, impedem a leitura do espaço

e, consequentemente, a apropriação prazerosa dele. De fato, existe um espaço raso sem

sombreamento, sem umidificação na seca, sem proteção dos ventos indesejáveis ou

amenização dos ruídos advindos das vias periféricas; em outras palavras, o espaço carece

das medidas bioclimáticas amenizadoras mínimas imprescindíveis para o clima tropical do

planalto central. Isso interdita qualquer possibilidade de pensar no uso de tecnologias

inovadoras de pavimentos resfriados, com refletância e absortância da carga térmica,

pensar também em galerias técnicas e em zonas de pedestres potencializando percursos e

passagens cobertas com o intuito de criar zonas de sombras durante o dia e luminosidade

durante a noite. Enfim todas tecnologias que a capital modernista, “museu de arquitetura a

céu aberto”, mereceria.

Outras obras do pacote Copa 2014 serão concluídas depois da competição. O GDF decidiu

contratação de uma única empresa10 para executar varias obras de revitalização da área

central de Brasília (tais como a urbanização e paisagismo do Complexo Ayrton Senna, a

construção de um túnel entre o Centro de Convenções e o Estádio Nacional e outro túnel

entre o Clube do Choro e o Parque da Cidade, para interligação das vias W4, W5 sul/norte

a urbanização do Centro de Convenções Ulysses Guimarães), mas o Ministério Público

suspendeu a licitação no entendimento de que deveria ser fracionada e não feita em bloco.

Em 2011 o GDF tentou lançar, sem sucesso11, a licitação da extensa área verde na Quadra

901 espaço adjacente ao Estádio Nacional, mas surgiram entraves entre as empresas

interessadas no espaço. Enquanto as grandes redes hoteleiras queriam que fosse licitado

um único lote, as pequenas queriam a divisão em 14 lotes. Empresários estimavam que a

Quadra 901 Norte mobilizaria 4 bilhões de reais em obras; somente o terreno, propriedade

da Terracap, valeria de 700 a 800 milhões.

A Quadra 901 caracteriza-se, predominantemente, por grandes lotes com baixa densidade

de ocupação e usos institucionais. Por ser o limite entre as Asas e os parques urbanos,

trata-se de área sensível, que deve manter baixa densidade de ocupação, altura reduzida (o

GDF propunha a construção de prédios de até 45 metros de altura) e intensa arborização.

                                                                                                                         10  Porém,  em  março  de  2014,  uma  decisão  da  1a  vara  da   fazenda  pública  do  DF  determinou  a  suspensão  de  licitação  de  obras  estimadas  em  mais  de  R$  305,4  milhões,    que  serão  concluídas  depois  da  competição.  11 O  GDF   e   a   Terracap   utilizaram   os   artigos   112   e   113   do   Plano   Diretor   de   Ordenamento   Territorial   do   DF  (PDOT)  como  amparo  legal  ao  projeto  hoteleiro  do  Setor  das  Grandes  Áreas  Norte  –  SGAN,  onde  se  encontra  a  Quadra  901.  Esses  artigos  preveem  “ações  de  revitalização”  dos  setores  centrais  do  Plano  Piloto,  entre  os  quais  se  inclui  o  Setor  Hoteleiro  Norte  (SHN).  

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Nesse esforço para reforçar as centralidades já existentes, a partir da concentração de

investimentos públicos na capital, que buscava favorecer o capital imobiliário em detrimento

de outras áreas urbanas da capital, o governo declarou que o objetivo do lançamento era

aumentar a quantidade de leitos na capital federal e atender as demandas do mundial.

Todavia, não existia um déficit quantitativo na rede hoteleira brasiliense. O déficit é apenas

qualitativo e, portanto, a melhor solução para um evento como a Copa do Mundo de 2014

seria requalificar os leitos já existentes, por meio de políticas de incentivo. (Figura 3)

Figura3. Área central. Escala gregária. Setores Hoteleiros

A estratégia do Estado e dos grandes capitais foi, no entanto, frustrada pela mobilização da

sociedade: o parcelamento da Quadra 901 Norte foi incluído no Plano de Preservação do

Conjunto Urbanístico – PPCUB. O Plano de Preservação, por exigência da Unesco, para

manter a condição de Brasília como Patrimônio da Humanidade, entrou na pauta de

discussões da Câmara Legislativa do Distrito Federal. As entidades de classe dos arquitetos

e urbanistas, assim como as principais faculdades de Arquitetura e Urbanismo da cidade,

através de seus representantes junto com o Instituto de Patrimônio Artístico e Histórico

Nacional - IPHAN votaram contra o projeto no Conselho de Planejamento - Conplan e,

posteriormente, os parlamentares, ante a forte pressão social, se recusaram a votar o

projeto de lei no encerramento do ano de 2013.

Segundo a ONG “Urbanistas por Brasília”12 também merecem ser analisadas com

seriedade as distorções da lei, como, por exemplo, a existência de grande quantidade de

leitos tipo “Flat” ou “Apart hotel” na área tombada que são ocupados, de fato, como

                                                                                                                         12  ONG  que  reúne  arquitetos  em  defesa  de  Brasília.  

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residências. Essa distorção é estimulada pela legislação distrital que permite que o IPTU

comercial das unidades (alíquota de 1% sobre o valor do imóvel) seja reduzido para IPTU

residencial (alíquota de 0,30%) após mero preenchimento de formulário junto à secretaria

de Fazenda do GDF. Esse desvirtuamento é verificado na quase totalidade dos oito novos

empreendimentos hoteleiros de Brasília localizados no Setor Hoteleiro Turístico Norte -

SHTN e Setor de Clubes Esportivos - SCE (na Orla do Paranoá), os quais foram

concebidos, comercializados e ocupados como “residencial com serviços”, ou seja,

condomínios fechados, de alta renda e com vistas ao lago Paranoá. Institui-se, assim, um

novo formato de privatização da Orla, empreendido pelas camadas sociais mais ricas e

influentes da cidade.

Somente o uso pleno da Quadra 901 será capaz de proteger os avanços predatórios dos

incorporadores imobiliários. Acredito que se deve propor um uso cultural do espaço, nos

moldes do Centro George Pompidou de Paris e do conjunto SESC Pompeia de São Paulo.

Assim, seriam criados, num único espaço, articuladores culturais, sem comprometer a

tranquilidade das superquadras contíguas com base em elementos cuja característica

básica é o seu dinamismo, sua capacidade de dar um sentido, uma direção ao

desenvolvimento cultural de uma região desprovida de espaços dessa natureza, abrigando

mediateca, biblioteca, cines (como o da Asa Sul), centro de artes, galerias, auditórios. Uma

concepção como essa requer um espaço livre, muito aberto, de uso irrestrito, com três ou

quatro subsolos de garagem para serem administrados numa parceria público ou privada

que geraria renda para manter o centro cultural.

Reconhecendo a especificidade do contexto, a articulação cultural em espaço livre público

sobre estacionamento de gestão pública ou privada construído no sub solo, com espaço

central de qualidade ambiental, propiciaria a reconfiguração urbana na adjacência,

preservando a permeabilidade com o entorno, estabelecendo conexões e continuidade e

favorecendo a criação de espaços ativos, intensamente utilizados para circulação e

permanência dos pedestres. Lembramos, ainda, que a destruição do espaço urbano

perceptível geralmente acontece quando este se reduz a um simples fato quantitativo

fragmentado com objetos arquitetônicos desconexos em torno de espaços externos que se

apresentam como vazios residuais.

4 CONCLUSÕES

Brasília a única cidade-sede que, de fato, sediará os eventos relativos à Copa numa área de

três quilômetros. O público comprovará a estreita relação que existe entre a qualidade dos

espaços e as atividades externas, pelo menos através do desenho do entorno físico, uma

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vez que influi nos modelos de atividade que se desenvolvem na cidade. Em Brasília tudo

gira nas proximidades do estádio, ao redor da torre de TV e no caminho em que o eixo

monumental se abre para a esplanada dos ministérios e desce até o Lago. Tudo isso influi

no número de pessoas e acontecimentos que usam o espaço e no tipo de atividades que

nele podem desenvolver-se.

Dado que as obras de calçamento, assim como os dois túneis para atravessar do centro de

convenções até o estádio e o parque da cidade vão ficar para depois da Copa, a

permeabilidade do tecido urbano fica comprometida. Assim a questão posta em pauta pela

celebração da Copa, a estrutura urbana do centro de Brasília, especialmente nos Setores

Hoteleiros, com uma circulação crítica para o pedestre, que não conta com caminhos

contínuos nem qualificados, não foi solucionada. Brasília continuará sem separação entre

as vias de pedestres e as de tráfego motorizado, nas quais frequentemente falta espaço até

mesmo para calçadas. Além disso, o mau tratamento das áreas sob os embasamentos

assim como o avanço das garagens do subsolo na área pública, implantados

incongruentemente em relação ao terreno natural, constituem barreiras que privatizam o

espaço público, confundem os pedestres e aumentam a distância dos percursos. O legado

da Copa poderia ter sido na solução destas questões.

Brasília possui, como unidades morfológicas básicas, vias e áreas verdes em vez de ruas e

praças típicas das cidades tradicionais. Esses espaços arquitetônicos foram dados aos

usuários já prontos e, por esse motivo, as atividades que hoje neles se desenvolvem são o

fruto da decantação do tempo e de ações empreendidas pelos moradores que se apropriam

adequadamente deles. Na cidade projetada de Brasília não existem edifícios com alto grau

de adjacência, o que não significa que assistamos a uma coleção de edifícios agregados de

qualquer forma como em algumas deterioradas cenas urbanas. (Romero 2001, p. 159) A

noção de "legado" quase incorporada ao megaevento, com o adensamento da quadra 901

Norte, colocava em risco o patrimônio e podia provocar adensamento da área tombada há

mais de 25 anos13.

A visão da cidade desenvolvida por Lucio Costa – massa edificada que se organiza em

torno de eixos e centros – nos coloca frente a uma maneira de pensar o espaço urbano e a

atividade urbanística a partir de concepções e “maneiras de pensar” próprias da arquitetura.

Nesse sentido, a cidade é concebida enquanto construção, como espaço edificado e,

portanto, sujeita às mesmas leis que regem a concepção do espaço arquitetônico.

                                                                                                                         13  Tanto   as   regras   de   ocupação   quanto   a   forma   (ou  desenho)   do   Plano   Piloto   foram   protegidos   quando   foi  tombado  pelo  Governo  do  Distrito  Federal  em  1987  e  pelo  Governo  Federal  em  1990.

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Pensar e trabalhar ambientalmente supõe a construção, desenvolvimento e aplicação de

uma nova racionalidade, de toda uma revisão da teoria e a práxis social para compreender

a origem, as manifestações e as implicações da dinâmica social de todas as inter-relações e

interações permanentes e indissolúveis entre o meio humano, o meio natural e o meio

construído.

5 REFERÊNCIAS

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COELHO, J. Machado. Evolução urbana em Brasília entre 2000 e 2010, dissertação de

Mestrado, UnB, Brasília, 2012.

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GEHL, Jan. La humanización del espacio urbano. Editorial Reverté, S. A. Barcelona. 2006.

LEFEBVRE, Henri. “O Pensamento Marxista e a Cidade”, Editora Ulissea, Povoa de Varzim, 1980.

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RIBEIRO, Rômulo José da Costa. Copa do mundo no centro oeste do Brasil. In

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___________________________. Arquitetura Bioclimatica do espaço público, editora UNB,

Brasília, 2001

WIRTH, Louis. El urbanismo como modo de vida, Publicado originalmente em 1938, no

número 44 do American Journal of Sociology, tradução espanhol de Victor Sigal e publicada

por Ediciones 3 (Buenos Aires, 1962). www.bifurcaciones.cl. num.2, otoño 2005.