brasil em perspectiva - martins fontes · benefícios públicos no brasil e na África do sul1...

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BRASIL EM PERSPECTIVA Antonádia Borges | Federico Neiburg Fernando Rabossi | Lygia Sigaud Marcelo Ernandez Macedo | Marcelo Rosa

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brASil em PerSPectivA

Antonádia borges | Federico Neiburg

Fernando rabossi | lygia Sigaud

marcelo ernandez macedo | marcelo rosa

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Uma propriedade, diversas propriedades: etnografia, comparação e a distribuição de benefícios públicos no brasil e na África do Sul1

Antonádia Borges

As formulações antropológicas aqui esboçadas visam a uma apreciação do conceito – por vezes chamado de método – de comparação em antropolo-gia. tendo como pano de fundo minha experiência etnográfica em campos tão distintos e distantes como o recanto das emas (no Distrito Federal) e a região de Kwazulu-Natal (na África do Sul), proponho nas próximas pági-nas um contraste entre as discussões em torno da comparação ora de obje-tos comuns, ora definida por referenciais teóricos afins.

No percurso que começaremos agora, encontraremos uma breve recu-peração do meu trajeto de pesquisa. em seguida, passarei a um inventário mínimo, porém vital, de indícios do que chamo de “modelos etnográficos” em antropologia. A ideia de modelo que defendo remete a uma concepção específica, que se distancia da apreciação da monografia etnográfica como exemplar ou modelar. Sugiro o termo “modelo” pensando, como se faz nas artes plásticas ou mesmo na arquitetura, em um protótipo, esboço ou ensaio, com forma inspiradora, mas, por definição, inacabada. O modelo serve de ponto de partida e não como ideal a ser alcançado, contrariando, portanto,

1 O presente texto foi apresentado em sua primeira versão no seminário em homenagem a roberto cardoso de Oliveira, intitulado “transformações sociais e culturais no brasil contemporâneo: perspec-tivas antropológicas”, realizado no museu Nacional, entre 28 e 30 de março de 2007. A comunicação original compunha a mesa-redonda “O brasil em perspectiva”, que contava com as participações de lygia Sigaud (Formas de ação coletiva em perspectiva comparada), Federico Neiburg (Moedas doentes e números públicos. Uma antropologia comparada do dinheiro) e Fernando rabossi (Universos comerciais em comparação: locais, circuitos, grupos e categorias no comércio de fronteira).

Quando escrevi este texto, acabava de regressar da África do Sul, após um período de campo de dois meses. em outras duas ocasiões anteriores eu já estivera naquele país. Atualmente conto com mais um par de novas viagens, marcadas por experiências acadêmicas e de campo nas regiões de Kwazulu-Natal e Western cape. essa guinada antropológica para além-mar começou a ser gestada quando eu estava no museu Nacional, dando aulas na condição de bolsista prodoc. O convite para participar dessa mesa, que encerrou o seminário em homenagem a roberto cardoso de Oliveira, permitiu que eu pudesse, por meio da reflexão etnográfica que apresento ao longo das próximas páginas, manifestar meu agradecimento ao estímulo intelectual que pude compartilhar com os colegas do ppgas, durante o período em que lá estive (entre 2003 e 2005).

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a acepção mais comum de um exemplo a ser seguido. Por fim, apresentarei o caso dos impendle, que acompanhei durante meu trabalho de campo na África do Sul. Sobre essa parte conclusiva do artigo, advirto que a narrativa obedece à sequência dos eventos, e que à surpresa do leitor corresponde a minha própria estupefação diante dos mesmos acontecimentos.

comparação e modelos etnográficos

Quando fui convidada para a sessão que deu origem ao presente texto, foi sugerido que tomássemos a dimensão comparativa como eixo de reflexão. em princípio não consegui fugir do trivial. Por dias ressoava em minha cabeça alusões a radcliffe-brown (que, como sabemos, imortalizou essa questão em seu reconhecido artigo de 1951). No entanto, o radcliffe-brown que vinha à minha mente não se restringia àquele dos argumentos sobre o método com-parativo em si, encerrado como proposta teórica. Pensava bem mais na figura controversa que foi esse antropólogo. Durante quase toda sua vida acadê-mica, ele ensinou fora da inglaterra, contribuindo para o estabelecimento de departamentos de antropologia em todos os países em que viveu como professor visitante – papel que nos evoca a figura de roberto cardoso de Oliveira, homenageado por ocasião do seminário que originou esta coleção.

Sabemos que o antropólogo britânico esteve tanto no brasil quanto na África do Sul. Acredito que sua trajetória mostra em que medida nosso ponto de vista deriva de diferentes fontes e que, por isso, as experiências acadêmicas que vivemos têm uma influência determinante sobre o tipo de antropólogos em que nos transformamos. essas experiências acadêmicas, eu diria, podem ser consideradas tão importantes quanto nossos trabalhos de campo, se entendemos ambas as instâncias como situações de formação teó-rica. A antropologia simétrica, tão em voga atualmente, sugere que, para a definição do texto etnográfico ou sociológico, pesam tanto as iluminações advindas do suposto isolamento do campo, do laboratório, quanto aque-las nascidas dos diálogos acadêmicos ou das conversas mais triviais, que nutrimos com nossos pares fora da situação de pesquisa em sentido estrito (latour, 2005). No entanto, isso que hoje pode ser tomado como óbvio, como a forma mais adequada para se construir nossos objetos de investiga-ção, nem sempre foi percebido como o melhor procedimento ou método em antropologia.

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em linhas gerais podemos dizer que o método etnográfico por excelên-cia – o segredo fabricado por todos nós – pressupunha o antropólogo iso-lado (em geral, um homem), em uma ilha isolada (o protótipo sendo as etnografias de bronislaw malinowski, sobre a pesquisa nas ilhas trobriand), onde aconteceria, mais cedo ou mais tarde, a iluminação advinda da ruptura com suas relações (de conhecimento) em terra firme (bartra, 1997). essa fabricação modernista explica, em certa medida, por que a antropologia de radcliffe-brown, baseada em dados de fontes diversas (em geral, de outros pesquisadores), não ficou sendo muito bem vista com o passar do tempo. em seus textos não havia muitas das fundamentais alusões a mergulhos pro-fundos, ao que conhecemos como near experience. Se levarmos a sério o processo de construção de conhecimento em antropologia como um pro-duto das nossas relações antes, durante e depois do trabalho de campo, não creio que seja possível continuar afirmando que apenas a menção explícita às experiências pessoais e individuais dos antropólogos no campo seja con-dição suficiente para receber o certificado de genuinamente antropológico. É preciso empreender continuamente o inventário das (sempre em número crescente) figuras que vem compor nossas etnografias, borrando tanto os limites da autoria quanto da definição de alteridade.

tendo essa perspectiva em mente, quando pensava nas últimas pesqui-sas às quais me dediquei, ficava em dúvida: o que eu comparava? e mais, tratava-se de algo cujo eixo era eu mesma, minha experiência pessoal? Ou, pensando de outra maneira, de modo invertido, o que se comparava em meus trabalhos? em princípio é lícito afirmar que o que havia de aparen-temente igual ou comum, em meus universos de pesquisa, era o rótulo de benefícios públicos, para certos objetos que relacionavam pessoas de vidas dis-tintas. com esses objetos, senti-me à vontade para não falar de um grupo e suas características, ou seja, de uma sociedade e suas formas de pensar e agir. mais do que à vontade, esses objetos me impediram de traçar as fronteiras comuns às ilhas antropológicas, nas quais confinamos nossas tribos parti-culares. Posso dizer que o tempo que passei no recanto das emas – o meu próprio “tempo de brasília” – ajudou-me ainda a rejeitar teorias antropo-lógicas adeptas de um olhar vertical – que vem e vê, do alto para baixo e de fora para dentro (borges, 2004). e que, assim procedendo, recorta seu objeto tão bem que o desconecta da própria atmosfera de pesquisa em que está sendo apreciado.

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Quando nos recusamos a afirmar que as pessoas que nos recebem para fazermos nossos trabalhos de campo estejam isoladas, quando não contribuí-mos para construir uma ilha a fim de cerceá-las, ainda temos outra armadilha a enfrentar. Nessas situações arriscamo-nos a lançar mão de julgamentos que aplicamos a nós mesmos, para medir, classificar e hierarquizar nossos anfitri-ões. mesmo que essas pessoas não sejam concebidas como Outros isolados, torna-se muito tentador, em especial quando a questão é política, apostar em uma linguagem dita – apesar do paradoxo – relativista e universal. Acaba sendo extremamente difícil desconfiar de nosso próprio hábito, de nosso costume, de nosso jeito ordinário de perceber e julgar o mundo à nossa vol-ta.2 tive a felicidade de escapar dessa armadilha – creio eu – quando, no recanto das emas, tomei a invasão, o barraco, o lote, o asfalto, as fórmulas que calculavam o grau de merecimento dos candidatos a “benefícios públi-cos”, como elos criados no instante mesmo das relações e não como objetos dotados de significado em si, sem vida, que apenas circulavam no suposto toma lá dá cá das barganhas políticas. todos esses bens existiam na medida em que inúmeras mãos aguardassem por senhas, preenchessem formulários, respondessem a questionários, enfim, por meio de mãos que transformavam tanto esses objetos quanto a si mesmas com o passar do tempo (borges, 2005). Pessoas que buscam alcançar benefícios públicos têm que demonstrar suas necessidades, seus motivos, suas desvantagens históricas para se enqua-drar em escaninhos que, assim como elas, estão em constante transforma-ção. A distribuição de lotes, de recursos financeiros sob a forma de bolsas e auxílios, de empréstimos bancários com juros supostamente menores, ou de produtos com preços subsidiados (cesta básica, pão e leite, medicamentos etc.) alcança aqueles que se dispõem a demonstrar seu interesse neste bene-fício que, mais do que uma coisa, existe como relação.

A etnografia da vida política no recanto das emas acabou sugerindo outra pesquisa, desta feita no rio de Janeiro. Aquela investigação, transcor-rida no Hotel Popular, entre 2003 e 2005, produziu outros conceitos acerca das relações envolvendo os chamados benefícios públicos. O universo dos empregados na política ensejou uma reflexão sobre a existência do Estado sob a forma de governos. Os funcionários do Hotel Popular ensinaram-me que entre os empregados na política e os políticos governantes, em certos momen-

2 embora nomeemos muitas coisas como “política”, refiro-me aqui a uma definição difusa que emerge quando o assunto toca governos, estado, partidos, eleições, candidatos, voto etc.

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tos de suas vidas, interesses se somam. em outros, a solidariedade, a reci-procidade entre ambos, pode colidir com valores que lhes são contrários e, ao cabo, não resultar em benefício a qualquer das partes. Justamente por-que a vida deles não se resume à política (porque a política igualmente não fabrica seu próprio significado se isolada em uma “esfera”), eles podem se manter fazendo política para além dos momentos ou instâncias rituais como as eleições e a administração pública. As escalas e o ritmo dos que vivem dessa maneira são muito distintos daqueles previstos pela teoria que atri-bui o rótulo político ao estado, governo e eleições como domínios ou esfe-ras autônomos. É outro o sentido de seu engajamento na política e de suas expectativas em relação ao que se irá “receber” nessa troca, tendo em vista que esse algo que se vai receber não existe de modo finito, acabado e, por-tanto, previsível. essa conceituação vivida – consciente do quanto objetos e situações emergem porque são animados por múltiplas agências – é impor-tante para se perceber uma teoria sobre o estado que não é exógena ao con-texto estudado, mas que surge exatamente no exercício de um governo, por meio do modo de vida de seus funcionários (borges, 2006).

Amparada por tais elementos, pude desde então refletir sobre a relação mútua entre funcionários e beneficiários não como uma relação de dívida, como a literatura costuma apontar, mas de apreciação reflexiva. Ação que se traduz em sensível manipulação dos instrumentos de navegação disponíveis em um governo, capazes de suplantar a inexistência prática de direitos uni-versais, garantidos por um estado concebido abstratamente apenas em nos-sas teorias. A partir, portanto, da comparação entre duas etnografias passei a sugerir que o estado não pode ser considerado nem uma arena vazia para encenações de poder nem um conceito apartado da experiência. Os contras-tes e as aproximações entre esses dois trabalhos de construção etnográfica permitiram-me afirmar que tais relações (tanto das pessoas entre si quanto entre essas e os benefícios) não devem ser pensadas em termos estritamente diádicos – isto é, entre os que estão fora e os que estão dentro do aparelho do estado, dos governos – como acontece nas teorias acerca das relações políticas como formas de clientelismo. A meu ver, essas perspectivas assu-mem que os polos de tais relações – patrão/cliente – possuem propriedades intrínsecas, que seriam, em ocasiões determinadas, trocadas ou transferidas de um lado ao outro, de um lado que as perderia ao outro que as acumula-ria. recorrendo a reflexões como as de charles Peirce, passei a pensar que o estado é o terceiro de uma relação inventiva e em expansão, própria do

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embate entre crenças e dúvidas que se produzem constantemente e que, por isso, não podem ser compreendidas a partir de formas analíticas anteriores aos eventos. A teoria do símbolo, proposta por Peirce, permite-nos descon-fiar de análises ancoradas em características assumidas como imanentes, e, por outro lado, levar adiante a inquietação etnográfica a propósito do que de nós emerge quando nos relacionamos com um Outro, diante de um Outro e, assim, triangular e indefinidamente.3

Atualmente sigo procurando sentidos inauditos para as ações mútuas reunidas sob o nome de “benefícios públicos”. essa relação de conheci-mento se dá, como procuro apontar, a partir da comparação – não exclusi-vamente entre objetos, tampouco entre teorias – mas da comparação entre “modelos etnográficos” de conhecimento antropológico. As apreciações sobre esses lugares-eventos, que são os benefícios públicos distribuídos no brasil e na África do Sul, constituem matéria para exploração das formas de construirmos teorias vivas e, consequentemente, de realizarmos compara-ções em estudos antropológicos. A experiência de pesquisa feita no brasil (no recanto das emas e no rio de Janeiro) serve agora de contraponto para uma primeira reflexão sobre o contexto sul-africano de restituição de terras. Nos casos brasileiros, qualquer sujeito alcança benefícios distintos quando elenca as propriedades aceitas pelo sistema classificatório estatal. tanto o estado quanto as pessoas (beneficiários e funcionários) orientam-se por um indivíduo-padrão, cuja principal característica é “não possuir” o bem ofer-tado. A partir desse patamar comum, fabricam-se constantemente tecnolo-gias de hierarquização, para definir, entre a totalidade dos que pleiteiam um benefício, aqueles sujeitos mais merecedores. em suma, podemos dizer que as qualidades dos sujeitos emergem na esteira da qualidade do próprio bene-fício. Na África do Sul, aparentemente, o quadro inverte-se. lá nos depara-mos com diferentes grupos pleiteando um único benefício (terras, especial-mente), acionando conjuntos distintos de propriedades. Ou seja, apesar de o estado e as pessoas concordarem a respeito da necessidade de se redistribuir as terras do país, não é exatamente a despossessão o traço fundamental que caracterizaria o conjunto das pessoas que lutam por terra.

Diante desses novos lugares-eventos aprendidos na África do Sul, o que fazer com o “modelo” construído nas duas ocasiões anteriores? trata-se de

3 Devo à mariza Peirano a inspiração e os diálogos que me descortinaram essa distinta porta de entrada para um debate acerca do tema das propriedades e das relações.

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jogar fora o que foi feito? Por ora não acredito que essa seja uma atitude sábia. em princípio, penso que pode ser muito mais proveitoso comparar – como afirmei – aqueles “modelos” etnográficos com este agora em curso. A esse respeito trago à tona um caso exemplar em que, a propósito de uma mesma extensão de terra, mais de um grupo reivindica o status de verdadeiro merecedor da fazenda.

segregação e classificação

em nossas4 andanças pela África do Sul, fomos recebidos por diversas pessoas que, em sua maioria, eram solícitas e generosas o bastante para nos brindar com suas reflexões sobre os processos de negociação com o estado acerca de suas propriedades.

No passado, aquelas mesmas pessoas com as quais conversamos haviam sido expulsas de suas terras porque o governo do apartheid instituíra, dentre outros, o Group Area Act, proibindo que coloureds, indianos e negros cir-culassem livremente pelo país, obrigando-os a viver em zonas confinadas – fosse nas homelands ou nas townships urbanas – e com direito a uma mobili-dade restrita, atrelada aos locais de trabalho (macdonald, 2006).

Ao longo de quatro idas a campo (cuja extensão variou de um a três meses, entre 2006 e 2008) foi possível reconhecer na formulação “desvan-tagens históricas”, frequentemente elaborada por nossos interlocutores, uma chave para lidar com o processo histórico e com as transformações sociais ocorridas naquele país. A noção de desvantagem histórica permeia o discurso atual de todos aqueles que hoje se dedicam à construção de formas de conví-vio social não-segregado. com esse termo, os sujeitos conceitualizam a hetero-geneidade atual da África do Sul, ao mesmo tempo em que recuperam os pos-síveis elos causais que respondem pelas desigualdades vividas (bond, 2006).

Alguns eventos recorrentes pontuam as narrativas públicas sobre a ascensão e queda do apartheid (marais, 2001). Sem dúvida, em cada biogra-fia particular essa história adquire matizes singulares (ross, 2003; meskell & weiss, 2006). Ainda assim, são raros os relatos políticos e acadêmicos que não recuperem os principais atos segregacionistas do período moderno

4 Sempre que uso o plural estou referindo-me diretamente ao trabalho conjunto que realizo com marcelo rosa. Sem querer implicá-lo, seria prudente indicar que nesta pesquisa, mais do que uma colaboração, nosso trabalho acaba por ser de coautoria.

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daquele país – a South African Union, criada em 31 de maio de 1910, como protetorado britânico:

– o land Act de 1913, responsável pelo confinamento das populações negras em reservas “nativas” predeterminadas em zonas rurais;

– o Native Act de 1923, que determinava em zonas urbanas as áreas des-tinadas à população negra;

– a ascensão do governo do Partido Nacional em 1948 e o estabeleci-mento do regime do apartheid;

– o Population control Act de 1950, que sustentava o sistema que se tornou notório por classificar a população em grupos: branco, coloured, indiano/asiático, africano/negro;

– o Group Area Act, também de 1950, que segregava a população em áreas determinadas e separadas a partir de sua classificação racial;

Os grandes marcos nas narrativas sobre a história sul-africana no último século dizem respeito aos “acts”, isto é, aos atos governamentais, tornados legislação, que se infiltram na vida social, restringindo aos grupos brancos o acesso a espaços sociais privilegiados, interditos a outros grupos também classificados racialmente (ntsebeza, 2007). As bases dessa diferença social, fabricada por meio de atos de governo, não podem ser pensadas sem levar-mos em conta o poder colonial e todas as disputas ideológicas de visões de mundo europeias em jogo na África meridional. controlar o permitido e a quem era permitido significava estabelecer os limites do humano, defi-nido em termos de distinções racistas e racialistas, cujo ápice se deu com o regime do apartheid – instituído depois da Segunda Guerra, ou seja, depois da declaração universal dos direitos do homem (ribeiro, 1990).

Após as eleições de 1994, que levaram Nelson mandela ao poder, o governo do congresso Nacional Africano (anc) passou a assumir uma série de compromissos a fim de minimizar no presente os danos causados sobre-tudo à população negra no período do apartheid. Parte considerável dessas políticas de governo, trazidas à vida pública sul-africana na forma de novos “acts” (como o que prevê a redistribuição de 30% das terras do país para a população negra), encontra-se ancorada em projetos de reforma agrária e de direito a moradia, inacessível para a maioria da população negra ainda hoje (huchzermeyer, 2003).

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A literatura sobre esse tema sugere que as novas políticas de redistribui-ção de terra, assumidas pelos governos pós-apartheid, são fruto de uma série de ações sociais reunidas no termo “land struggle”, às quais correspondem por sua vez um leque de outros “acts”, promulgados a partir de 1994, os quais sofreram emendas ao longo da última década. Dentre esses, destacam-se, no repertório de nossos interlocutores, o restitution of land rights Act, de 1994, o land reform (labour tenants) Act, de 1996 e o extension of Security of tenure Act, de 1997. chamou-nos atenção – tendo em vista a diferença de terminologia em relação ao caso brasileiro – o fato de esse comprometimento com a luta pela terra e pelo direito a moradia ser uma bandeira tanto dos bene-ficiários como de parte considerável de novos funcionários dos governos.

É preciso considerar, portanto, que os conflitos fundiários na África do Sul não são apenas um objeto de análise. Devem ser pensados como um fenômeno que se apresenta como ordem narrativa, como formulação teó-rica e política que sintetiza a história e os processos de transformação social – sejam aqueles vividos diretamente, sejam aqueles herdados do passado – pelos quais passou a maioria da população daquele país (ndebele, 2007). cada experiência particular de luta por um lugar para morar expressa a um só tempo as histórias do país e dos indivíduos (james, 2007; sigaud, 2005). A propósito desses dois eixos – desvantagens históricas e luta pela terra – aprendemos a identificar formas teóricas locais de compreensão de aconte-cimentos passados, à luz de eventos contemporâneos significativos. A par-tir do tema dos conflitos fundiários, procuramos desenhar um mosaico de traços discretos a fim de dar conta minimamente da complexidade conjun-tural que encontramos. Acreditamos que esta seja uma via afim àquela dos sujeitos que conhecemos e com os quais aprendemos sobre a África do Sul, uma forma capaz de dar conta da longa duração, sem perder de vista o cará-ter vivido e localizado das experiências pessoais em jogo.

Atualmente, depois de quase duas décadas do fim do regime do apartheid, as pessoas que conhecemos se organizam para demandar do estado o lugar onde seus ancestrais haviam sido enterrados, as terras que lhes foram tomadas e de onde foram arrancados à força. mesmo que sintética, essa costuma ser a forma narrativa encontrada por aqueles que sofreram experiências violentas semelhantes, quando precisam recuperar o passado em arenas públicas (nde-bele, 2007). O processo no qual ingressam para reaver o que lhes foi usurpado é denominado, de modo igualmente genérico, restituição (james, 2007).

Para um olhar incauto pode parecer haver uma harmonia entre o que o estado oferece (ou seja, seu empenho em comprar as terras dos fazendeiros

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brancos que as queiram vender, por exemplo, a fim de assentar os demandan-tes) e aquilo que as pessoas demandam (tanto grupos negros organizados em zonas urbanas e rurais quanto grupos coloured moradores das periferias urba-nas, que exigem o cumprimento do direito constitucional de moradia). A fór-mula willing-buyer & willing-seller – louvada nas cartilhas do banco mundial – é, para poucos observadores atentos, uma expressão oficial mas não verossí-mil do que se passa na África do Sul de hoje (moyo, 2007a). Para além dessa quimera, é preciso levar em consideração ainda os conflitos entre concepções e contratos sobre posse e propriedade, outra fonte de controvérsias impor-tante para compreendermos as extensões e os limites das reformas propostas em leis (moore, 2006; ferguson, 1994; ntesebeza, 2007).

um novo modelo etnográfico

Apenas quando conhecemos o caso do Sr. impendle, pudemos aprender com as brechas, com os espaços que ficam entre as peças que não se encaixam. O Sr. impendle nos falava dos abusos que vinha sofrendo, desde que os novos proprietários da fazenda chegaram à região. Na África do Sul de hoje encontra-mos casos de fazendeiros brancos que venderam suas terras após o fim do apar-theid – diz-se, temendo retaliações da população negra liberta; receando, como se diz, que aquele país se transforme em um Zimbábue.5 O Sr. impendle traba-lhara desde sempre ali, para o pai do antigo fazendeiro, que a vendera recente-mente aos novos proprietários. Os novos proprietários não queriam mais que o Sr. impendle permanecesse na fazenda e exigiam sua saída. essa, entretanto, não era uma ordem que ele estivesse disposto a cumprir, pois havia muitas feri-das a curar, muitas dívidas a saldar. O pai do fazendeiro fizera diversos acor-dos com o Sr. impendle: ele poderia viver ali, ter seu gado, mesmo depois de ter deixado de trabalhar para o fazendeiro – isto é, apenas como morador.6 No entanto, quando o filho do fazendeiro assumiu a administração da fazenda, a relação com o Sr. impendle piorou consideravelmente. A mais aviltante ati-

5 O Zimbábue ganhou recentemente espaço na mídia internacional, quando das eleições presidenciais que reconduziram robert mugabe ao poder. O processo de independência deste país é recorrentemente lembrado na África do Sul, sobretudo quando o tema da reforma agrária vem à tona. A política de distribuição de terras no Zimbábue inspira manifestações de admiração ou de apreensão, a depender de quem tece seus comentários. em nossa pesquisa pudemos perceber ambos os juízos sendo acionados. Para uma apreciação sobre o tema, ver moyo (2007b).6 condição que tenta ser resumida no termo farm dweller, utilizado como um conceito difuso que busca definir uma miríade de situações aproximadas a esta vivida pelo Sr. impendle.

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tude do filho do velho proprietário, pouco antes de vender as terras aos novos donos, foi aprisionar os animais que estavam pastando fora das imediações da casa do Sr. impendle. Por causa desta retaliação, o Sr. impendle perdeu algumas cabras e cavalos, que, no momento de nosso encontro, dizia pretender recupe-rar a qualquer preço. Depois desse episódio lastimável, o Sr. impendle ainda tinha que lidar com as afrontas dos novos proprietários que, dentre outras ati-tudes ofensivas, haviam derrubado a ponte que dava acesso ao seu conjunto de casas. como tudo isso se passava na região da Zululândia, para mim foi inevi-tável lembrar de max Gluckman, às avessas: estávamos diante de uma colabo-ração de diversos “atores” que, ao contrário do argumento clássico, não resul-tava na construção de uma ponte para a solução de conflitos.

Conjunto de casas do Sr. Impendle

Os novos proprietários tentavam tornar inviável o cotidiano das pessoas que viviam nas casas do Sr. impendle. e o pior, como nos disse nosso amigo Kathide (líder do landless Peoples movement), é que os novos proprietários eram negros, assim como o Sr. impendle. minha surpresa foi grande: como assim? Sim, os novos proprietários que haviam comprado a terra do antigo fazendeiro eram na realidade restitution claimants, ou seja, pessoas que haviam preenchido todos os formulários, apresentado todos os documen-tos e esperado por um longo período para reaver a terra que lhes fora usur-pada no apartheid. A mesma terra onde o Sr. impendle vivia desde sempre fora também daquelas pessoas, agora contempladas com a restituição. Se o governo sul-africano atendera a reivindicação desses outros, o Sr. impendle,

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por sua vez, continuava vivendo em uma terra que não lhe pertencia – só que, agora, o proprietário da terra já não era mais o fazendeiro branco.

Para uma mesma propriedade, em outras palavras,para uma mesma fazenda, eram acionadas distintas propriedades, isto é, distintas características, forjadas ao longo de suas histórias e intimamente marcadas pela burocracia e violência estatais. Os recém-chegados foram expulsos da área depois do Group Area Act. Já o Sr. impendle representava uma significativa parte da população negra sul-africana que não foi removida para as townships, mas que ficou nas fazendas dos brancos, trabalhando praticamente sem soldo durante o período do apartheid. essas pessoas são igualmente nomeadas pelo governo com uma categoria específica, e para elas também existe um processo para reaver as ter-ras onde viviam sob o jugo dos fazendeiros. Pessoas como o Sr. impendle são farm dwellers, ou seja, trabalhadores que adquiriram o direito de morar na área da fazenda, mesmo depois de terem parado de trabalhar para o fazendeiro.

Para nossa surpresa, tardiamente participamos de uma conversa em que outra faceta dos novos proprietários da fazenda veio à tona. Nesse diálogo mencionou-se que o Sr. impendle fazia parte da mesma família que obtivera a terra em restituição – o chefe do grupo com o qual se via em conflito tam-bém era um impendle. mais ainda, o chefe do grupo era seu irmão, filho do mesmo pai e da mesma mãe. No passado, este irmão fora banido da fazenda, com toda a família, inclusive com os velhos pais do Sr. impendle. Apenas ele ficou para trás. O pedido de restituição, feito pelo irmão, o contemplava porque eles faziam parte do mesmo grupo familiar, ainda que ele próprio não tivesse sido expulso, ainda que ele não tivesse vivido na township, ainda que ele não tivesse se inscrito no pleito pela restituição.

Irmão do Sr. Impendle, o novo proprietário da fazenda