brasil em conflito: a desconstruÇÃo do · percebe-se um conflito entre o mito “brasil: país do...

79
César Augusto dos Santos e Silva BRASIL EM CONFLITO: A DESCONSTRUÇÃO DO “PAÍS DO FUTEBOL” Junho 2015

Upload: nguyenanh

Post on 02-Dec-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

César Augusto dos Santos e Silva

BRASIL EM CONFLITO: A DESCONSTRUÇÃO DO

“PAÍS DO FUTEBOL”

Junho

2015

Brasil em conflito: A desconstrução do “País do Futebol”

César Augusto dos Santos e Silva

Dissertação apresentada ao programa de Mestrado em Letras

da Universidade Federal de São João del-Rei, como requisito

final para obtenção do título de Mestre em Letras

Área de concentração:

Teoria Literária e Crítica da Cultura

Linha de Pesquisa:

Discurso e Representação Social

Orientador:

Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção

São João del-Rei

Julho 2015

Dedico, a minha mãe Marize, as minhas

avós Anair e Dade, e a minha namorada

Anninha, pelo amor incondicional e

paciência nesta jornada.

AGRADECIMENTOS

Ao Deus Uno e Trino, sustento e inspiração nesta árdua conquista acadêmica;

A minha namorada e futura esposa Aninha, pelo incentivo, paciência e carinho

incondicionais;

Aos meus pais, Afonso e Marizeudete, pelo sustento, incentivo e sonho com relação

aos meus estudos desde a tenra infância;

A minha avó Anair, por acreditar nos meus estudos, por ter me criado e educado, pelo

amor incondicional;

Ao meu avô Antônio, por ajudar minha avó na minha educação e por sua valentia;

A minha família e amigos, obrigado pela convivência e incentivo;

Ao orientador e amigo Antônio Luiz Assunção e sua esposa Eliana Tolentino, minha

eterna gratidão por apostarem em mim desde a graduação;

Aos colegas do mestrado pelo incentivo e por compartilhar esta etapa acadêmica;

Aos professores da graduação e do mestrado em Letras da UFSJ presentes na minha

formação;

Aos membros da Banca Examinadora pelas grandes contribuições para a versão final

desta dissertação;

À CAPES, pela concessão de uma bolsa de estudos durante o período do mestrado;

À UFSJ, instituição presente em minha vida e formação nestes mais de sete anos.

Resumo

Esta pesquisa procurou investigar o tratamento discursivo dado pela revista

Veja aos últimos acontecimentos sociais no Brasil durante a Copa das Confederações

em junho de 2013, no qual os jovens e os movimentos sociais protagonizaram

passeatas que expuseram a insatisfação da população. Objetivou-se compreender

como esse periódico de circulação nacional e formador de opinião organizou e

difundiu as representações desse momento histórico. Pela análise discursiva,

percebe-se um conflito entre o mito “Brasil: país do futebol” e a construção do país da

cidadania. O fato de esses protestos populares ganharem corpo e a magnitude que

tomaram num momento em que a atenção do mundo estava voltada para o Brasil em

virtude da realização da Copa do Mundo de 2014, de certa forma, colocou em questão

a identidade nacional. Pelas reportagens, pôde-se perceber um jogo discursivo entre

a construção de um país politicamente cidadão em contraste com a construção mítica

da "Pátria de chuteiras". Para este trabalho, selecionamos como corpus de análise

reportagens de quatro edições da revista e assumimos como o aparato teórico-

metodológico da Semiótica Textual Greimasiana, definida em Barros (2001) e Fiorin

(2000); a Semiótica das Paixões e a Semiótica Discursiva, proposta em Greimás

(1991), Fontanille (2001) e Fontanille e Ziberberg (2001). Sob a perspectiva desta

vertente teórica, um texto é entendido como um percurso gerativo de sentido, no qual

existem uma sintaxe e uma semântica do discurso em três etapas correlacionadas,

onde os sentidos dos enunciados são analisados, em primeira instância, pelo seu

plano de conteúdo. Estes níveis partem dos mais simples e abstratos aos mais

complexos e concretos, ao nível da manifestação textual. Posteriormente, analisamos

um percurso passional de sentido das reportagens.

Palavras-chave: Futebol, Manifestações, Identidade Nacional, Representações,

Semiótica Textual, Semiótica Discursiva, Paixões, Revista Veja

Abstract

This research aims to investigate the discoursive treatment given by Veja magazine to

the last social happennings in Brazil during the Confederations Cup in June 2013,

whereas the yongers and social movements carry out protest marches that exposed

the population insatisfaction. We objected to understand how this national periodic and

opinion public former organized and diffused the representations of this historical

moment. By the discoursive analisis, it is realized the conflict between the myth "Brasil:

Soccers's nation" and the construction of citizenship’s country. The fact that these

popular protests greatly increased in a moment of World attention focuzed in Brazil

due to the realization of World Soccer Cup in 2014, anyway, rose questions about

national identity. By the reports, we realize a discoursive game between the

construction of a politically citizen country and the mytical " football shoes homeland".

Therefore, we selected as analitical corpus some reports of four editions of the

magazine. This research is based on theoretical-methodological apparatus of Textual

Semiotics of Greimas by Barros (2001) and Fiorin (1998, 2000), The Semiotics of the

passions and Discoursive Semiotics by Greimás (1991), Fontanille (1998,2001) e

Fontanille e Ziberberg (1998,2001). In this theoretical perspective, a text is understood

as a gerative sense course where exists a sintax and a semantic of discourse in three

correlative steps where the statements senses could be analised, in first instance, by

its content plan. These levels go from the abstract and simple ones to the concrete and

complex ones. Finally, we analised the passional sense course of the reports.

Keywords: Soccer, Manifestations, National Identity, Representations, Textual

Semiotics, Discoursive Semiotics, Passions, Veja magazine

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................ 7

1. CAPÍTULO I: PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO DAS REPORTAGENS ... 12

1.1. Fundamentação teórico-metodológica ................................................. 12

1.2. Percurso Gerativo de Sentido das reportagens .................................... 15

1.2.1. Nível fundamental das reportagens ....................................................... 15

1.2.2. Nível narrativo das reportagens .............................................................. 26

1.2.3. Nível Discursivo das reportagens..................................................... 32

1.3. Semântica Discursiva: temas e figuras ................................................. 38

2.CAPÍTULO II: PERCURSO DE SENTIDO DAS PAIXÕES NAS REPORTAGENS .............................................................................................

41

2.1. Emoções – Definições gerais, paradigmáticas e sintagmáticas ....... 41

2.2. Paixões - Definições gerais, paradigmáticas e sintagmáticas .......... 43

2.3. Análise nas reportagens dos códigos figurativos das oposições semânticas fundamentais .............................................................................

47

2.4. Análise nas reportagens dos códigos modais e tipos passionais ...... 55

2.5. Análise nas reportagens dos códigos rítmicos e o Estilos afetivos predominantes ...............................................................................................

62

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 69

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................ 72

5. ANEXOS ...................................................................................................... 74

7

INTRODUÇÃO

Esta dissertação objetivou refletir sobre os últimos acontecimentos sociais no

Brasil durante a Copa das Confederações em junho de 2013, no qual os jovens e os

movimentos sociais protagonizaram passeatas que expuseram a insatisfação popular.

Estes protestos obtiveram uma força de mobilização nas ruas nunca vista no Brasil

desde as “Diretas- Já” e no período de impeachment de “Collor” na década de 90;

além disso, estes protestos, por ocorrerem em um momento em que a atenção do

mundo esteve voltada para o Brasil em virtude da realização da Copa do Mundo de

2014, tiveram uma grande importância para o momento político brasileiro, como se

pode perceber pelo enfoque sistemático que foi dado a esse evento pela grande mídia,

entre elas a revista Veja. Estes acontecimentos colocaram em questão a identidade

nacional, proclamada nacional e internacionalmente, como se pode perceber por meio

do jogo discursivo que inscreveu a construção de um país politicamente cidadão, com

base nas reivindicações e o descontentamento popular, em oposição à construção

mítica dominante do Brasil como a "Pátria de chuteiras”.

Como se sabe, foi a partir da década de 90 que os estudos sobre o “futebol”

iniciaram-se e ganharam força em vários domínios do conhecimento como, por

exemplo: Educação Física, Psicologia, Geografia, Economia, História, Sociologia,

Antropologia, Comunicação Social, Artes, Literatura, Linguística, Estudos Discursivos

e Estudos Culturais. Já na década de oitenta, o livro: “Universo do Futebol: esporte e

sociedade brasileira”, do historiador e antropólogo Roberto Da Matta (1982), provocou

uma nova percepção das ciências sociais acerca do futebol. Neste clássico, o futebol

deixa de ser concebido apenas como o “ópio do povo”, segundo a um pensamento

predominantemente marxista dos anos 80, ou apenas um simples esporte, para ser

visto também na sua dimensão cultural e ideológica; ou seja: um fenômeno esportivo

a serviço de um conjunto de valores sociais. Esta mudança de olhar configurou as

práticas envolvidas no futebol como um complexo fenômeno cultural e social. Roberto

Da Matta estabelece “a tese do futebol no Brasil como um drama da vida social, como

um modo privilegiado de situar um conjunto de problemas socialmente significativos

da sociedade brasileira” (DA MATTA, 1982, p. 38).

Para Da Matta (1982), o futebol se apresenta como a metáfora do drama da

vida social brasileira, ele representa os sentimentos sociais, as características

8

psicológicas da população, além de construir identidades na cultura popular deste país

diversificado. O futebol está relacionado não só com o ethos nacional, mas também

com o Pathos, como se pode observar quando se considera a relação entre os

indivíduos e suas paixões diante do pertencimento a um determinado clube. Como

observa o autor, o futebol é um fenômeno abrangente de significação e ressignificação

na cultura brasileira, daí sua importância nos seus aspectos simbólicos, ideológicos e

ritualísticos.

Conforme o estudioso A.J. Soares (2003, p. 160):

A invenção do povo, da cultura, de uma ancestralidade comum, a unificação da língua e institucionalização de rituais nacionais, entre outros, foram poderosos instrumentos de eficácia simbólica na afirmação das nações (Hobsbawm, 1990). No Brasil, o processo de invenção da nação ou das singularidades de nosso povo (miscigenação, samba, futebol, culinária etc.) vem de uma tradição iniciada por Varnhagen em 1850 e que vai ter em Freyre e nos anos trinta a mais forte expressão desses sentimentos (Reis, 1999). É, portanto, importante que retomemos Freyre para refletirmos sobre boa parte da historiografia e das análises sociológicas do futebol brasileiro, reconhecendo que sob a aspiração das novas elaborações encontramos a reiteração dos elementos de uma tradição de interpretação da cultura e da identidade brasileira.

Soares (2003) estuda os escritos de Gilberto Freyre, principalmente em seu

livro “Casa Grande e Senzala”, escrito no início do séc. XX, em que relata histórica e

ensaisticamente a formação da família brasileira sob a perspectiva de uma economia

patriarcal. Neste livro, mas também em outras obras de Freyre, Soares (2003) atenta

não só para o pensamento do autor acerca do futebol, mas também sobre a maneira

como pensa a identidade brasileira. Ele afirma que “a necessidade de resgatar

Gilberto Freyre dá-se em função do fato de que as leituras, descrições e interpretações

sobre o futebol brasileiro reproduzem conscientes ou inconscientemente, os

argumentos freyrianos sobre o tema” (SOARES, 2003, p. 145).

Os cientistas sociais, e jornalistas do nosso cotidiano, quando tratam da história

do futebol no Brasil, recorrem ao livro de Mário Rodrigues Filho, “O negro no futebol

brasileiro” de 1947 e republicado em 1964. Para Soares (2003, p. 145) este recorrer

“foi fortemente influenciado pelo pensamento de Freyre e pelo contexto de construção

nacional das décadas de 1930, 40, 50 do Séc. XX”. Para este autor, a maneira como

Gilberto Freyre reflete sobre a sociedade e cultura brasileira, bem como sobre o seu

mito fundador remete para a crença no vigor híbrido da nação brasileira. Soares (2003)

9

observa que Gilberto Freyre possui uma dialética própria dos antagonismos e conflitos

raciais no Brasil que, segundo Freyre, resultam em equilíbrio e unidade da nação.

Todavia, Soares (2003) afirma que até hoje, Freyre é muito criticado pela

síntese do pensamento marxista que questiona os antagonismos culturais, raciais e

de classe não serem um processo tão saudável de tensões como aquela apresentada

pelos escritos de Freyre. Segundo o estudioso, as ambiguidades e contradições

permanentes no Brasil são categorizadas pelo pensamento freyriano como fonte das

essências, naturezas ou tradições brasileiras e resultam em produtos do conflito entre:

racional versus forças irracionais, primitivo versus civilizado, popular versus erudito,

escravo versus senhor, natureza versus cultura, Apolo versus Dionísio, brancos

versus índios, negros, mestiços. No caso do futebol, Freyre considera que os

contornos apolíneos do esporte bretão tomaram no Brasil os elementos primitivos e

dionisíacos do samba.

Nota-se, então, o fato de o futebol gerar sentidos, práticas e representações

discursivas e sociais das mais variadas dentro da cultura brasileira. Relacionando-se

as tentativas de colocar em justaposição a cultura e o futebol brasileiro com suas

singularidades, não se pode esquecer que a cada período de Copas do Mundo,

percebem-se elementos que trazem à tona a metáfora de construção desta nação

como o “país do futebol” e ao mesmo tempo carrega-se na memória coletiva valores

sociais em conjunção ou disjunção com este esporte. Faz-se necessário demarcar o

objeto de estudo desta pesquisa dentro dos estudos discursivos e culturais, mais

especificamente no que concerne pensar a identidade brasileira em conjunção ou

disjunção com o futebol. Dentro deste vasto campo existem relevantes trabalhos,

porém, percebe-se a necessidade de aprofundamento de aspectos do futebol em

consonância ou dissonância com a cultura brasileira sob o viés de uma teoria

discursiva e semiótica para entendermos melhor a construção de sentidos entre

futebol e cidadania.

Diante disso, este trabalho procurou investigar o tratamento discursivo que as

reportagens da revista Veja deu a esses eventos, com o objetivo de compreender

como esse periódico, formador de opinião e de circulação nacional, construiu,

organizou e difundiu as representações desse momento histórico. Como a revista

apropria-se, contesta ou reproduz um status quo do acontecimento político das

manifestações? Neste processo de construção da representação deste momento

político, parece-nos necessário também observar o modo como a revista Veja busca

10

dar conta de uma representação tradicional da construção da identidade nacional,

geralmente reduzida e expressa no enunciado organizador “O Brasil é o país do

futebol”. Diante do movimento das ruas e em um campo minado pelas relações entre

governo e a grande imprensa, afirma-se a necessidade de revelar um país

politicamente cidadão, preocupado com demandas sociais antigas, tais como, saúde,

educação. A esses temas juntam-se outros mais recentes como corrupção, reforma

política e tributária. Há que se considerar que essas demandas, iniciadas nas ruas,

tendo como mote, o aumento das passagens de ônibus, alastram-se e mobilizam os

discursos do “país do futebol”, de longa data na história do Brasil e discursos da

“cidadania” negada, tendo como pano de fundo o embate declarado entre este veículo

midiático e governo brasileiro do Partido dos Trabalhadores.

Esta pesquisa desenvolveu-se em quatro etapas. A primeira etapa se iniciou

pelo levantamento e seleção de reportagens da mídia impressa que culminou com a

opção pela revista Veja, devido à ampla cobertura dos eventos e ao seu tratamento

dado aos movimentos da rua, marcado por capas provocativas no seu processo de

construção das reportagens e, consequentemente, do relato dos eventos. A partir

dessa escolha, pudemos nos voltar para a delimitação do corpus e para o recorte que

consideramos apropriado ao trabalho a ser desenvolvido. A leitura e análise desse

material selecionado e coletado teve como objetivo identificar as representações

discursivas dos acontecimentos.

A segunda etapa que, por questões teóricas e metodológicas, se estenderam

ao longo de todo o trabalho, consistiu no levantamento e estudo bibliográfico dos

textos teóricos que nortearam a análise das reportagens. A leitura das primeiras

reportagens levou-nos a pensar na hipótese do embate entre os dois discursos, já

observado acima, o que nos motivou, tanto pelo caráter do movimento, bem como o

tratamento que a revista deu aos eventos, levou-nos a optar pela Semiótica Textual

ou Discursiva e pela Semiótica das Paixões, uma vertente dos estudos discursivos de

origem francesa, iniciada pelos trabalhos de Algirdas Julius Greimas.

Na terceira etapa, orientado por nossa opção teórico-metodológica, buscamos

construir nosso procedimento de análise das reportagens da revista Veja, voltando na

atenção para a construção das categorias de análise para o tratamento do corpus,

com o intuito de entender o percurso gerativo de sentido das reportagens. O caráter

da escrita das reportagens conduziu-nos a reflexão sobre as paixões e tensões em

conflito, tendo em vista o modo como se constituiu o relato dos acontecimentos. Os

11

trabalhos de Fontanille (2001) e Fontanille e Zilberberg (2001) fundamentaram essa

reflexão, cujo foco foram os posicionamentos manipulativo-discursivos, bem como as

representações discursivas colocadas em jogo pela revista ao tratar as informações

sobre o momento histórico das manifestações de junho de 2013.

O corpus selecionado para este estudo exame foi composto por reportagens,

publicadas em quatro edições da revista Veja, durante e depois da Copa das

Confederações, período em que as manifestações sociais foram mais intensas. Em

uma primeira análise das reportagens, bem como das representações discursivas

presentes nas edições da Veja organizamos o corpus de análise a partir de categorias

bem simples, obedecendo sua ordem de publicação, em REVISTA 1, REVISTA 2,

REVISTA 3 e REVISTA 4, conforme anexo.

12

CAPÍTULO I

PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO DAS REPORTAGENS

1.1. Fundamentação teórico-metodológica

Para investigarmos esta desconstrução discursiva do “País do futebol” neste

momento histórico específico, registrado pela revista Veja, buscamos compreender o

percurso gerativo de sentido das reportagens publicadas. Nosso objetivo foi observar

o processo de construção dos jogos discursivos que movimentaram duas grandes

representações do país, uma consolidada, sustentada por uma história de conquistas

e por dizeres que afirmam o Brasil como o “país do futebol”, e outra, historicamente

construída por sua negação, por uma construção discursiva que afirma a ausência de

direitos básicos no atendimento dos brasileiros, o discurso do Brasil como um “país

político-cidadão”.

Para se entender este percurso gerativo de sentido e os principais conceitos da

teoria semiótica desenvolvida por A. J. Greimas e da Escola de Altos Estudos em

Ciências Sociais adotados neste trabalho, tomemos, inicialmente, as considerações

teóricas de estudiosos como Barros (2005) em seu livro introdutório Teoria Semiótica

do Texto e Fiorin (2000) em Elementos de Análise de Discurso. Para Fiorin (2000):

O percurso gerativo é um modelo que simula a produção e a interpretação do significado, do conteúdo. Na verdade, ele não descreve a maneira real de fabricar um discurso, mas constitui, para usar as palavras de Denis Bertrand, um ‘simulacro metodológico’, que nos permite ler com mais eficácia, um texto. Este modelo mostra aquilo que sabemos de forma intuitiva, que o sentido do texto não é redutível à soma dos sentidos das palavras que os compõem nem dos enunciados em que os vocábulos se encadeiam, mas que decorre de uma articulação dos elementos que o formam: que existem uma sintaxe e uma semântica do discurso (FIORIN, 2000, p.31).

Para o teórico, quando se fala em percurso gerativo de sentido, fala-se em

Plano de Conteúdo que, por sua vez, se une a um Plano de Expressão para possibilitar

a manifestação deste mesmo conteúdo linguístico. Um texto nada mais é, para a

semiótica textual, que um conteúdo manifestado por um Plano de Expressão. O autor

observa ainda que o “Discurso é uma unidade no plano de conteúdo, é o nível do

percurso gerativo de sentido, em que formas narrativas abstratas são revestidas por

13

elementos concretos. Quando um discurso é manifestado por um plano de expressão

qualquer, temos um texto” (FIORIN, 2000, p.31).

O texto é o objeto principal da semiótica textual. Como faz notar Barros (2005,

p.11), “a semiótica tem por objeto o texto, ou melhor, procura descrever e explicar o

que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz”. A semiótica textual, ao incorporar

a concepção de Louis Hjemslev, segundo o qual a linguagem define-se pela

conjunção de dois planos, um plano do conteúdo e um plano de expressão, deve

compreender que um percurso de sentido deve partir de uma condição de dizer

imanente a uma condição aparente, possibilitando assim que se parta do mais

simples, do que se pressupõe na essência do dizer, um dizer anterior a sua

manifestação linguística, em um nível mais abstrato para um dizer concreto de modo

que esses níveis podem ser descritos. Neste sentido o percurso gerativo de sentido

manifesta-se como a construção de um percurso da expressão do conteúdo. Para que

se possa entender o que torna algo significante deve-se, portanto, acompanhar as

formas da expressão na sua relação com uma forma do conteúdo, reconhecendo um

nível básico em que inicia-se o jogo de relações que faz o texto significar. Há nesses

termos, a presunção de uma relação em que se articulam estruturas no nível da

superfície textual, no nosso caso, com estruturas no nível profundo. Este último

manifesta-se por meio do primeiro.

Desse modo, assume-se que a relação fundamental para a produção sentido

na conjunção entre esses dois planos, de expressão e conteúdo, caracteriza-se como

independente de sua natureza material do plano de expressão – oral ou escrito, verbal

ou gestual, escrita alfabética ou gravuras – ultrapassando estes limites, o que

possibilita à semiótica empreender seus processos de análises em uma rede

indiferente e diversas de produtos culturais que podem ir da canção popular à dança,

do filme à música, do texto jornalístico ao literário. Segundo Barros (2005, p.12), para

explicar “o que o texto diz” e “como o diz”, a semiótica trata, portanto, de examinar os

procedimentos da organização textual e, ao mesmo tempo, os mecanismos

enunciativos de produção do texto.

Para a autora, o texto, como um objeto semiótico deve ser estudado de dois

modos que e complementam na produção de seu sentido. De um lado, deve-se

considerar a sua constituição interna ou estrutura interna que faz dele um “todo de

sentido. De outro lado, deve-se levar em conta o caráter enunciativo de determinado

texto, o que implicaria o exame de sua constituição externa. Com este examina,

14

procura-se situar em seu momento de enunciação e em sua relação sócio-histórica

para, desse modo, ser capaz de compreender como este texto significa, como esta

materialidade faz sentido. Nesta perspectiva um texto seria, para Barros (2005), “um

objeto de comunicação” entre dois sujeitos e, devido a sua natureza de ser capaz de

dizer e possuir um modo de dizer específico, os textos podem abrir-se para uma

variedade de abordagens teóricas semiótico-discursivas tanto na sua dimensão

interna quanto externa. Na perspectiva externa, examinam-se os sentidos por meio

das condições que possibilitam sua existência em um determinado momento social e

histórica e em uma determinada sociedade suas condições de produção. O texto,

portanto, situa-se como um objeto de comunicação, na construção de relações entre

interlocutores, mas também como um objeto cultural, inscrito em uma sociedade de

classes com e formações ideológicas específicas e sistemas de crenças e com valores

atribuídos que podem ser questionados ou validados, reproduzidos ou silenciados,

enfim.

Fiorin (2000, p.13) relata que, para Greimas, uma semântica dever ser

gerativa. Isto implicar dizer que os modelos devem ser apreendidos em níveis de

sentido cuja diversidade de elementos na superfície textual podem significar a mesma

coisa num nível mais profundo. Mas também uma semântica deve ser sintagmática,

na medida pretende explicar a produção e interpretação do discurso de acordo como

o modo de organização no nível sintático das unidades lexicais presentes na

superfície do texto. Por fim, esta semântica deve ser geral, tendo em vista que ela

deve reconhecer qualquer materialidade manifesta nos vários planos de expressão,

que podem ser verbal, oral ou escrito, mas podem ser gestual, podem ser cores, etc.

Barros (2005), por isso, constata também que a teoria semiótica deve ser

compreendida como uma abordagem que objetiva explicar o processo de produção

de sentido de um texto por meio da análise, em primeira instância, de seu plano de

conteúdo. Ela resume a noção de percurso gerativo de sentido (PGS) afirmando que

ele contém três etapas, sendo que cada uma pode ser descrita e explicada por

gramáticas diferentes embora o sentido do texto dependa da relação entre os níveis.

Como observado acima, deve-se considerar ainda que na produção de sentido dos

enunciados assumimos que o percurso gerativo de sentido inicia-se do mais abstrato,

do imanente, ao mais complexo e mais concreto, segue dessa pressuposição a ideia

de que há um nível fundamental, organizado por meio de estruturas fundamentais, ou

de uma sintaxe fundamental.

15

Nesta primeira etapa do percurso, o nível das estruturas fundamentais,

compreende-se a significação como uma oposição ou oposições semânticas mínimas,

em que relações e valores mais abstratos estão colocados. A segunda etapa do

percurso é chamada de nível narrativo ou das estruturas narrativas, nele a narrativa

do texto é organizada do ponto de vista de um sujeito. Esta etapa caracteriza-se por

ser concreta e intermediária, uma fase em que o conceitos passam por um processo

de antropomorfização. A terceira e última etapa do percurso gerativo de sentido, a

mais complexa e concreta, define-se como o nível discursivo ou das estruturas

discursivas em que um sujeito assume a narrativa a partir de um lugar de enunciação,

dentro do espaço enunciação. Mais especificamente, trata-se da instância do Eu-Aqui-

Agora. Como se sabe, a enunciação deixa marcas no seu produto, o enunciado-

discurso. Sob esta perspectiva, pretendemos analisar as reportagens da revista Veja,

em que um “eu” assume uma determinada posição em um dado lugar, as ruas de

diversas cidades brasileiras e em um determinado momento, aquele das

manifestações populares que tomaram as ruas de assalto.

1.2. Percurso Gerativo de Sentido das reportagens

Nas próximas seções deste primeiro capítulo, propôs-se uma análise semiótica

para o tratamento discursivo que foi realizado pela revista Veja das manifestações

populares contra o encaminhamento político que o governo tem dado a suas

demandas. Como já observamos, as reportagens a serem analisadas dizem respeito

ao período durante e após Copa das Confederações em junho de 2013. Como

colocado acima, durante este período nossa análise compreende os três níveis

semântico-sintáticos correlacionados: nível fundamental, nível narrativo e nível

discursivo.

1.2.1. Nível fundamental das reportagens

Conforme Barros (2005, p. 10), no nível das estruturas fundamentais é preciso

determinar o jogo de oposição ou oposições semânticas elementares que possibilitam

dizer, mais especificamente, a partir dos quais se constrói o sentido do texto

produzido. Na edição 2326 da revista Veja, publicada em 19 de junho de 2013,

encontramos uma capa em que se apresenta em vermelho e entre aspas uma escrita

16

manuscrita com os dizeres “contra o aumento dos preços”. Logo mais abaixo, segue

o dizer “A revolta dos jovens” em letras de imprensa, seguida de uma interrogação,

“Depois do preço das passagens, a vez da corrupção e da criminalidade?

Esta diferença no plano da expressão coloca-nos entre dois dizeres distintos,

aquele entre aspas, representando pelo manuscrito a fala dos jovens, e o dizer da

revista, em letras de imprensa. Este modo de organizar os dizeres no espaço da capa

permite-nos compreender: em primeiro lugar, a construção do falar dos jovens tanto

no plano da expressão, por remeter a escrita comum em faixas, como no plano do

conteúdo, ao explicitar o motivo do protesto dos jovens. Em segundo lugar, a

representação de um determinado dizer em que se pergunta acerca do próximo

movimento de revolta. Além disso, no nível das estruturas fundamentais ao tomar o

dizer dos jovens, constituímos uma primeira oposição semântica de categorias,

atribuídas aos atores “jovens”, mas representada pelo olhar da revista.

Limitação de locomoção Vs Possibilidade de locomoção

(Aumento do preço das tarifas) (Redução no preço das passagens)

Compreende-se, assim, que o sujeito, ao enunciar, está em disjunção com a

possibilidade de se mover, tendo em vista o aumento de preços. Esta disjunção

manifesta pelo jogo de oposição, organizado por diversos enunciados e de várias

maneiras no texto da reportagem da Revista 1:

Foi a quarta de uma série de manifestações organizadas por um grupo nanico criado por estudantes de São Paulo sob inspiração de um movimento nascido em Florianópolis. O Movimento Passe Livre (MPL) defende a estatização das empresas de transporte e a gratuidade das passagens (p.86).

Uma mensagem fartamente compartilhada nas redes sociais na sexta-feira dizia: ‘A luta não é por 20 centavos. É por direitos’. A frase terminava assim mesmo, incompleta (p.90). Não que a briga pela redução das tarifas de ônibus não faça sentido. Segundo o IBGE, o peso médio do transporte público no orçamento mensal dos paulistanos é de 5% - muita coisa se comparado ao que ocorre em Nova York, por exemplo, em que o custo equivale a apenas 2% ou Londres, que, com um dos transportes públicos mais caros do mundo, tem um impacto de 3% no rendimento médio dos trabalhadores (p.90).

Segundo Barros (2005, p. 10): “as categorias fundamentais são determinadas

como positivas ou eufóricas e negativas ou disfóricas”. No texto, a limitação da

mobilidade urbana é disfórica e a possibilidade de locomoção é eufórica. Estabelece-

17

se no nível fundamental um percurso entre os termos axiológicos, compreendidos pela

positividade de um e a negatividade do outro, sendo positivo a capacidade de

mobilidade e negativo o seu inverso. Passa-se da limitação negativa à possibilidade

positiva, conforme a tabela abaixo:

Disforia Não-Disforia Euforia

Limitação da locomoção

– aumento das tarifas

Não limitação da

locomoção – não

aumento das tarifas

Possibilidade de

locomoção – redução das

tarifas

A partir deste exame das oposições semânticas mínimas situadas no nível

fundamental do percurso gerativo de sentido da reportagem, podemos pensar o

movimento das operações da sintaxe fundamental. Conforme Fiorin (2000, p. 20):

A sintaxe do nível fundamental abrange duas operações: a negação e a asserção. Na sucessividade do texto ocorrem essas duas operações, o que significa que, dada uma categoria tal que a versus b podem aparecer as seguintes relações:

a) afirmação de a, negação de a, afirmação de b; b) afirmação de b, negação de b, afirmação de a.

Na reportagem “A revolta dos jovens” considerando-se a categoria /limitação

de locomoção/ (termo a) versus /possibilidade de locomoção/ (termo b), existe a

seguinte configuração sintática fundamental: afirmação de a, negação de a, afirmação

de b. Desta forma, a afirmação da /limitação de mobilidade urbana/, organizada por

um dizer que, inscrito pela reportagem de capa, retrata os aumentos dos gastos com

a locomoção de passageiros em São Paulo e no Brasil, como um todo. Esta afirmação

surge reforçada no seu texto, ao se considerar a negação da /limitação/ por meio da

comparação do impacto do transporte coletivo no orçamento do brasileiro. Isso ocorre

ao colocar estes valores em cheque na sua relação com outros valores praticados em

outras cidades no mundo. Aliando-se a este estado de coisas, assoma-se a crítica a

qualidade do serviço do transporte coletivo brasileiro, o que reforça o estado de

disjunção entre os brasileiros, entre eles os jovens manifestantes, e as condições de

mobilidade pública urbana. Em contraposição, há a afirmação da conjunção com a

18

/possibilidade de mobilidade urbana/ quando a reportagem retrata os protestos dos

jovens como uma ação que pode provocar a redução das tarifas por parte do governo.

Nesse sentido, pode-se observar que tanto o enunciado “contra o aumento dos

preços” atribuído aos jovens manifestantes, como também o enunciado da revista,

marcado pela letras de imprensa “A revolta dos Jovens” demonstram esta disjunção

entre os desejos dos brasileiros, sua insatisfação e as ações dos governos. Há nessa

capa a manipulação de duas representações, de um lado, um movimento social

específico, aquele referente ao aumento dos preços da passagem de ônibus e, de

outro, a topicalização genérica marcada pelo enunciado da imprensa que questiona a

continuidade deste movimento social. Em ambos os casos, há também uma

representação discursiva distinta dos jovens, no primeiro caso, os manifestantes

diante de sua mobilidade restringida pelo aumento dos preços e, depois, o

questionamento que busca ampliar essa revolta levando-a para um campo político

mais amplo.

Na revista 2, a edição da Veja, publicada em 23 de junho de 2013, é dedicada

às manifestações. Esta edição, qualificada pela própria revista como “histórica, traz

uma reportagem de capa intitulada “Os sete dias que mudaram o Brasil”. Percebem-

se dois percursos de sentido ou de oposições semânticas: no primeiro, a articulação

de oposições por parte da revista em que se coloca em jogo a relação de contraste

entre os investimentos para a Copa e, de outro lado, os investimentos dedicados a

demandas sociais antigas no Brasil. No segundo percurso, traça-se o status quo

dessas demandas sociais antigas em relação com as transformações operadas a

partir das manifestações ocorridas durante os “7 dias” de protesto. Analisando-se o

primeiro jogo de oposições semânticas, temos:

Investimento na Copa vs Investimento em demandas sociais antigas

Primeiramente, percebe-se acima, que estas oposições semânticas se

manifestam em alguns enunciados da seguinte reportagem “Um chute na Copa”

(REVISTA 2, p.80):

Queremos hospitais padrão FIFA.

HOSPITAIS PADRÃO GOVERNO X HOSPITAIS PADRÃO FIFA

Dilma, me chama de Copa e investe em mim? Assinado Educação.

19

DILMA ME CHAMA DE COPA X DILMA ME CHAMA DE EDUCAÇÃO ATENÇÃO DADA À COPA X ATENÇÃO DADA À EDUCAÇÃO Uma caminhada dos barracos da favela do Mata Galinha, na beira da avenida que dá acesso ao estádio, até o encontro com sua espetacular fachada de metal aparente é uma primeira pista da discrepância entre o Brasil real e o dos cartolas.

FALTA DE CUIDADOS COM OS CAMINHOS QUE LEVAM À FAVELA DO MATA GALINHA X CUIDADOS COM OS CAMINHOS QUE LEVAM AO ESTÁDIO ( BRASIL REAL X BRASIL DOS CARTOLAS

Ficaram bonitos, mas muitos estão fadados a virar elefantes brancos.

BELEZA X UTILIDADE

A infraestrutura de acesso é pouca e precária. Os aeroportos serão apenas remendados.

INFRAESTRUTURA DE ACESSO BASTANTE E ADEQUADA X INFRAESTRUTURA DE ACESSO POUCA E PRECÁRIA

Conclui-se com o esquema abaixo, de acordo com a semântica fundamental,

na reportagem, que as demandas sociais antigas reivindicadas pelos protestantes são

eufóricas enquanto valores positivos para que o governo possa investir ou gastar,

enquanto que a Copa é disfórica com um valor semântico negativo, portanto, não

concebida como objeto de investimento por parte do governo.

Neste nível semântico das estruturas fundamentais estabelece-se um primeiro

percurso de sentido no texto em análise. Passa-se de um valor negativo de “gastos

com a Copa” para um valor positivo de “gastos com outras demandas sociais”, como

se observa no quadro abaixo:

Disforia Não – Disforia Euforia

COPA Não realização da Copa Demandas Sociais antigas: Saúde,

Educação, Infraestrutura

De um lado, os sujeitos enunciadores constroem seu discurso, suas faixas de

protesto cobrando as condições de conjunção com um determinado objeto, aquele

das melhores condições sociais para os brasileiros. A revista Veja, por outro lado, ao

trazer para a reportagem essas demandas sociais, reproduzindo dizeres dos

movimentos de rua, busca entrar em conjunção com seu objeto de desejo que, sob a

20

informação que traz da rua, será ser assumir o lugar desse dizer, organizando-o de

modo que possa alcançar estatuto desejado de porta-voz da sociedade.

Paralelamente a isto, a narrativa da Veja por meio de suas reportagens camufla seu

lugar de dizer que se opõe ao governo do Partido dos Trabalhadores. Neste jogo, a

autodenominação de “Edição Histórica” estampada na capa reflete este princípio de

organização do dizer e esta busca de assumir um lugar no espaço das contestações

da rua e, desse modo, cumprir seu desejo de legitimação como veículo de informação,

veículo crítico, veículo que informa as ações governamentais. Assume o lugar de

porta-voz dos desejos e da insatisfação popular e, assume, para si, o papel que vai

além da função da mídia, aquele de fiscalizar.

No nível sintático fundamental, conforme Fiorin (2000), na reportagem “Um

chute na copa” considerando-se a categoria /Copa/ (termo a) versus /demandas

sociais antigas/ (termo b), existe a seguinte configuração sintática fundamental:

afirmação de a, negação de a, afirmação de b, traduzindo-se: afirmação da /Copa/,

quando a reportagem retrata os gastos com a Copa no seu texto, nas entrevistas e

nos gráficos; negação da /Copa/ no momento em que esses valores são colocados

em confronto com outras demandas sociais importantes para o país; afirmação das

/demandas sociais antigas/ quando a reportagem retrata que:

É ingenuidade e raciocínio extremamente simplista, porém, acreditar que o dinheiro público investido na Copa pudesse ser destinado à construção de hospitais e escolas (REVISTA 2, p.80).

Este enunciado presente na reportagem da Veja afirma o lugar de conjunção

da revista, estar em conjunção com as demandas populares, ser não só um veículo

de informação mas um porta-voz da sociedade. A oposição clara que se percebe

impõe crítica as enunciações dos protestos de rua, na medida em que enunciados

como “Queremos hospitais padrão FIFA” e Dilma, me chama de Copa e investe em

mim? Assinado Educação” que estavam nos dizeres dos movimentos, deslocados

para dentro da revista cumprem o objetivo de fundar o espaço para este dizer da

revista que representa o outro como “ingênuo”, por acreditar que os gastos com a

Copa seriam revertidos em gastos com saúde e educação. Serve, assim, para afirmar

uma representação do lugar social da revista de não apenas informar, mas interferir,

esclarecer o outro. Sai do lugar de porta-voz apenas, para assumir o lugar de

organizador das demandas populares, redirecionando as cobranças. Assim, esta

edição dialoga com a edição anterior, publicada em 19 de junho de 2013, pois ao falar

21

do protesto dos jovens com o enunciado de capa “A Revolta dos Jovens” e logo em

seguida se perguntar se “Depois do preço das passagens, a vez da corrupção e da

criminalidade?. E neste dialogar, redireciona, reorganiza sua performance enunciativa

de um ethos informativo, para um outro lugar de dizer, aquele da oposição, aquele

que ensina pela experiência, pela história. Diante disto, o que se segue é um outro

jogo de oposições semânticas, bastante relevante:

Mazelas sociais antigas vs Mudanças no Brasil

Faz-se necessário verificar um enunciado fundamental desta edição histórica

que resume e norteia a manipulação discursiva da revista quanto às manifestações

de junho, uma vez que, conforme dito anteriormente e ampliado agora, o locutor-

manipulador escolhe o tempo como agente provocador da intensidade e do impacto

das manifestações que culminam com mudanças sociais:

Podem-se passar décadas sem que nada mude, mas uma semana pode concentrar décadas de mudança. Foi o que se viu no Brasil na semana passada. Quem acha que não mudou em alguma coisa e que o Brasil não mudou passou os últimos dias isolados em uma bolha hermética” (REVISTA 2, p. 63).

Constata-se, com o esquema abaixo, de acordo com a semântica fundamental,

que as mazelas sociais antigas, objeto de protesto dos manifestantes são disfóricas

(estáticas e crônicas) enquanto valores negativos para o sujeito coletivo “Brasil”,

enquanto que as “mudanças no Brasil” (rápidas e dinâmicas) são eufóricas enquanto

valores positivos a serem adotados pelo Brasil. Neste nível semântico das estruturas

fundamentais estabelece-se um percurso fundamental de sentido no texto em análise.

Passa-se de um valor negativo de “mazelas sociais antigas” (estáticas e crônicas)

através de manifestações e reivindicações (heterogêneas e de alta intensidade), para

um valor positivo de “mudanças no Brasil” (rápidas e dinâmicas), vejamos:

Disforia não-disforia euforia

Mazelas sociais antigas

(de longa duração e

estáticas)

Manifestações e

reivindicações

(heterogêneas e de alta

intensidade

Mudanças no Brasil

(rápidas e dinâmicas)

22

No nível sintático fundamental, assumindo Fiorin (2000), podemos dizer que

na categoria /mazelas sociais antigas/ (termo a) versus /mudanças no Brasil/ (termo

b), existe uma configuração sintática fundamental. De um lado, temos afirmação de a,

negação de a, afirmação de b, traduzindo-se: afirmação das /mazelas sociais antigas/,

quando a reportagem retrata os problemas sociais antigos no seu texto; negação das

/mazelas sociais antigas/ no momento em que esses valores emergem como

manifestações diversas. De outro lado, observa-se que a afirmação das /mudanças

no Brasil/ quando a reportagem retrata supostamente uma mudança de

comportamento político dos brasileiros, ocorrida nos últimos sete dias. Enfim, a

negação dos problemas sociais antigos faz surgir a asserção da mudança em “7 dias”

através das reivindicações dos manifestantes em geral.

Na revista 3, Edição 2328, publicada em 03 de julho de 2013, com a

reportagem de capa intitulada “Então é no grito? Os governos e o Congresso correram

para atender os manifestantes. Isso mostra que a pressão popular funciona. Mas as

ruas não podem substituir as instituições”, as principais categorias semânticas

profundas ou o jogo de representações encontradas nestas reportagens foram:

“Grito” dos manifestantes (Poder popular/da rua)

Vs Atenção dos políticos dos 3 poderes

(Poder oficial/ institucional)

Disforia Não-Disforia Euforia

Não-atenção dos políticos

(poder oficial/institucional)

Atenção dos políticos Grito dos manifestantes

(poder popular/das ruas)

Conclui-se com o esquema acima, o percurso de sentido que a revista articula:

a não-atenção ou descaso das autoridades perante as diversas reivindicações dos

manifestantes são disfóricas enquanto valores negativos, uma vez que os cidadãos

se sentem mal-representados, estão insatisfeitos com a política. Em seguida, com

uma “erupção de vozes” (REVISTA 3, p.56-57), os três poderes dirigem sua atenção

à sociedade. Esta representação discursiva pode ser observada no recorte abaixo:

Não é que funciona mesmo? (p.54)

23

Em poucos dias, os protestos conseguiram a façanha inédita de fazer o Congresso aprovar projetos contra a corrupção, os governos reduzirem tarifas e o Judiciário mandar um político para a cadeia. O grito dos manifestantes acordou os três poderes (p.54). Desta vez, eles ouviram. Durante três semanas, brasileiros de todos os cantos do país saíram de casa para juntar-se nas ruas a outros brasileiros. Empunhando cartazes e gritando refrões, exigiram honestidade, transparência e eficiência dos políticos que ajudaram a eleger. Não foi a primeira ocasião que esse grito ecoou. Mas desta vez ele foi tão forte que fez os poderosos pular da cadeira. Aturdidos, governantes, congressistas e magistrados puseram-se a trabalhar como nunca. Em poucos dias, anseios antigos dos brasileiros foram atendidos com uma disposição e uma celeridade jamais vistas. Esse súbito despertar de quem detém o poder fez surgir uma constatação e uma pergunta. A constatação é que, afinal, era possível fazer. A pergunta é: por que, então, não fizeram antes? (p.56)

Por fim, passa-se para um valor positivo ou a euforia, quando o “grito” é ecoado

pelo povo brasileiro, o que lhe atribui um “certo” poder. Passa-se de um valor negativo

de “poder oficial” dos políticos para um valor positivo de “poder civil”. Todavia,

sutilmente, através do operador argumentativo “mas”, percebe-se que o locutor-

manipulador deixa claro sua posição contrária quanto a tomada do poder pela

população, logo no lead inicial da capa da revista 3, Edição 2328, de 03 julho de 2013:

“Então é no grito? Os governos e o Congresso correram para atender os

manifestantes. Isso mostra que a pressão popular funciona. Mas as ruas não podem

substituir as instituições”.

Quanto a configuração sintática fundamental do texto, nota-se sinteticamente

que a negação da situação problemática do país através do “grito” dos manifestantes

faz surgir a asserção dizer/fazer dos políticos dos três poderes quanto as

reivindicações.

Na revista 4, na Edição 2335, publicada em 21 de agosto de 2013, com a

reportagem de capa intitulada “O Bando dos caras tapadas – Quem são os

manifestantes do Black Bloc, que saem às ruas para quebrar tudo”, a revista parte da

oposição semântica, declarada ao governo e às instituições que atendem ao grito das

ruas, ou do jogo de representações, que opunha movimentos populares/ revolta dos

jovens e revista Veja, de certa forma do mesmo lado, por defenderem demandas

sociais, por não estarem de acordo com a política dos governos, para uma oposição

semântica aos jovens que ganharam no grito, o que nos permite perceber que esta

edição dialoga com a anterior, de 03 de julho, na medida em que aquela observa

24

“então é no grito” e atenta para o papel das instituições e, esta questiona a pertinência

do grito e o lugar das instituições, conforme abaixo:

Radicais Black Blocs (anarquia)

vs

Governo e Instituições

(Imprensa, Bancos, capitalismo,

Copa)

Euforia Não-euforia Disforia

Manifestantes em geral Radicalização dos

protestos

Radicais Black Blocs

anarquia

Constata-se segundo o esquema acima, no nível da semântica fundamental,

que o locutor-manipulador traça o percurso de sentido dos protestos culminando em

representações através da nomeação de um grupo de “radicais black blocs” e a sua

criminalização. Em outras palavras, a revista inicialmente considera os manifestantes

em geral com valores positivos eufóricos, não-violentos, por colocar-se contra as

ações dos governos e da política brasileira de forma pacífica. Todavia, com a

radicalização dos protestos, inclusive, e principalmente, assumindo atitudes de raiva

e insatisfação com a grande imprensa, o locutor dirige seu foco aos “radicais black-

blocs” e considera os seus valores disfóricos, nomeando-os negativamente e, através

de sua narrativa, inscrevendo os manifestantes na história dos black blocs e de sua

representação social como grupo. Percebe-se isto, nos seguintes enunciados:

Com slogans anarquistas na cabeça e coquetéis molotov na mão, os black blocs se espalham pelo Brasil e transformam protestos em arruaça. Jovens da periferia, punks e até universitárias de tênis Farm compõem o bando.” (REVISTA 4, p.73).

No começo, quase ninguém notou a chegada deles. Em 20 de abril de 2001, o mesmo dia em que grupos anarquistas no Canadá protestavam contra a criação da ALCA, em Quebec, na Avenida Paulista, em São Paulo, um bando de arruaceiros com o rosto coberto destruía a marretadas agências bancárias e uma loja do McDonald’s. Era a primeira arruaça black bloc no Brasil. Embora, àquela altura, pouca gente soubesse o que era isso, o bando de inspiração anarquista, defensor da “destruição consciente da propriedade privada” e autodeclarado inimigo do capitalismo, começava-se a se organizar no país. Hoje, os militantes, por assim dizer, não chegam a duas centenas por aqui. É um grupo pequeno, mas que, engrossado por vândalos de ocasião, em algumas capitais tem transformado a baderna e a violência em uma assustadora rotina. Na semana passada, os black blocs estiveram por trás de todas as manifestações violentas que explodiram no Rio de Janeiro e em São Paulo, com exceção da tentativa de invasão do Hospital Sírio-

25

Libanês, esta uma obra de sindicalistas. [...] Por princípio herdado dos seus precursores europeus, muitos dos black blocs desprezam qualquer movimento político organizado, à direita ou à esquerda, o que inclui até os, atualmente em voga, Fora do Eixo e Mídia Ninja. (REVISTA 4, p. 74)

Em São Paulo completam a babel social estudantes de universidades como USP, PUC e Faap. [...] Na capital paulista, essa turma heterogênea se reúne em uma casa da Zona Oeste, em festas regadas a cerveja e ao som de cumbia – ritmo nascido na periferia de Buenos Aires”. (REVISTA 4, p. 76)

Quanto a criminalização dos atos do grupo, eis a representação do locutor:

Na cartilha apreendida pelo delegado Marco Duarte de Souza, da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, um grupo de black blocs descreve seus alvos: ‘bancos, grandes empresas e a imprensa mentirosa”. Devem ser evitadas, segundo o texto, depredações de ‘carros particulares e pequenos comércios’. Os black blocs acham isso muito bonito e nobre – orgulham-se de dizer que não praticam o que chamam de ‘vandalismo arbitrário’. Para eles e seus admiradores confessos – entre os quais professores universitários pagos com dinheiro público – destruir uma agência bancária a marretadas ou golpes de extintor de incêndio não é vandalismo, mas uma ‘ação simbólica ‘, que, inserida na ‘estética da violência’, simularia a ‘ruína do capitalismo’. Embora haja uma definição mais precisa para isso – e ela pode ser resumida na palavra crime -, quase nenhum black bloc está preso hoje no país’’. (REVISTA 4, p.78-79)

Por fim, passa-se de um valor positivo ou a euforia, quanto as manifestações

contra o governo, para um valor negativo ou disforia na medida em que a revista

criminaliza os atos dos manifestantes, os quais denomina/representa como radicais.

O locutor atribui também a diminuição maciça dos protestos devido a ação desses

grupos:

A presença de black blocs no Occupy Wall Street afugentou os manifestantes comuns e ajudou a abreviar o movimento, fenômeno que pode ter ocorrido com os protestos que começaram em junho no Brasil: o uso da violência isola o grupo” (REVISTA 4, p.79)

Quanto a configuração sintática fundamental do texto, nota-se resumidamente

que existe a asserção da revista quanto aos valores dos manifestos anti-governo,

porém, surge a negação do locutor quando estes protestos atingem a própria

imprensa que noticia os fatos e as instituições que ela defende.

Passemos para o nível intermediário ou das estruturas narrativas do percurso

gerativo de sentido, onde o locutor estabelece estados iniciais e finais e

transformações da narrativa graças a ação de sujeitos provocados também por

sujeitos. Esta etapa é uma etapa concreta intermediária onde os conceitos sofrem

uma antropomorfização. Investigar-se-á semanticamente os sujeitos e suas relações

com seus objetos de valor e modais.

26

1.2.2. Nível narrativo das reportagens

De acordo com Barros (2005, p. 42): a “semântica narrativa é o momento em

que os elementos semânticos são selecionados e relacionados com os sujeitos. Para

isso, esses elementos inscrevem-se como valores, nos objetos, no interior dos

enunciados de estado”. A semântica do nível narrativo ocupa-se dos valores inscritos

nos objetos. Numa narrativa, aparecem dois tipos de objetos: objetos de valor

(descritivos) e objetos modais. Os primeiros são os objetos com que se entra em

conjunção ou disjunção na performance principal. Os segundos são o querer, o dever,

o saber e o poder fazer, são aqueles elementos cuja aquisição é necessária para

realizar a performance principal. (FIORIN, 2000, p. 28)

Para analisarmos sintaticamente e semanticamente o segundo nível do

percurso gerativo de sentido de maneira sintética, consideremos o seguinte:

A sintaxe narrativa deve ser pensada como um espetáculo que simula o fazer do homem que transforma o mundo. Para entender a organização narrativa de um texto, é preciso, portanto, descrever o espetáculo, determinar seus participantes e o papel que representam na historiazinha simulada. A semiótica parte dessa visão espetacular da sintaxe e propõe duas concepções complementares de narrativa: narrativa como mudança de estados, operada pelo fazer transformador de um sujeito que age no e sobre o mundo em busca dos valores investidos nos objetos; narrativa como sucessão de estabelecimentos e de rupturas de contratos entre um destinador e um destinatário, de que decorrem a comunicação e os conflitos entre sujeitos e a circulação de objetos. As estruturas narrativas simulam, por conseguinte, tanto a história do homem em busca de valores ou à procura de sentido quanto a dos contratos e dos conflitos que marcam os relacionamentos humanos. (BARROS, 2005, p. 16)

Primeiramente, na revista 1, publicada em 19 de junho de 2013, cuja

reportagem de capa intitula-se “Contra o aumento – A revolta dos jovens”, percebe-se

que o destinador-manipulador, ou seja, o editor da revista Veja estabelece dois

sujeitos, um geral e um específico: ‘jovens manifestantes’ e o ‘Movimento Passe-livre’

e dois anti-sujeitos ‘as empresas privadas de ônibus’ e o ‘governo’. Fiorin (2000, p.

21) observa que há dois tipos de enunciados elementares na sintaxe narrativa. Em

primeiro lugar, há os enunciados de estado – aqueles que estabelecem uma relação

de junção (disjunção ou conjunção) entre um sujeito e um objeto. Como se sabe, deve-

se ressaltar que não se pode confundir sujeito com pessoa e objeto com coisa, pois

tratam-se de papéis narrativos que podem ser representados num nível mais

superficial por coisas, pessoas ou animais. Em segundo lugar, há os enunciados de

fazer – os que mostram as transformações, os que correspondem à passagem de um

27

estado a outro. Com esta distinção em mente, podemos considerar os enunciados

elementares da reportagem que encontram-se no lead:

Os jovens já marcharam pela paz, democracia e liberdade. Os de agora vão às ruas para baixar o preço das passagens. Mas isso é tudo? ” (REVISTA 1, p.84).

E, na representação de um grupo específico:

O Movimento Passe Livre (MPL) defende a estatização das empresas de transporte e a gratuidade das passagens”. (REVISTA 1, p.86)

Nos enunciados acima, há uma relação de disjunção, entre os sujeitos (jovens

manifestantes e o movimento passe-livre) e um objeto-valor “aumento do preço das

passagens”. Neles também, busca-se a transformação de um estado inicial de

limitação de mobilidade urbana dos sujeitos ‘jovens’ e ‘movimento passe-livre’, devido

ao aumento do preço das passagens, realizado pelo anti-sujeitos, representados pelo

‘governo’ e pelas ‘empresas privadas’, para um estado final de possibilidade de

locomoção pelas reivindicações dos mesmos. Portanto, percebe-se por um lado que

a revista constrói uma representação discursiva dos manifestantes em uma sequência

narrativa de estados de privação de locomoção que procuram as condições para

liquidação dos estados de privação da locomoção.

Na revista 2, publicada em 26 de junho de 2013, com a reportagem de capa

“Os sete dias que mudaram o Brasil”, dedicada às manifestações, constata-se que o

destinador-manipulador, novamente o editor de Veja, estabelece na performance

principal dois sujeitos. Como primeira performance, atribui-se ao tempo “7 dias” este

papel de que age e transforma o sujeito coletivo “Brasil” representados pelas múltiplas

vozes dos manifestantes. Como segunda performance específica da reportagem “Um

chute na Copa”, o locutor constitui um sujeito: “manifestantes em geral” em oposição

a um anti-sujeito “governo”. Num todo da narrativa das reportagens, temos um

enunciado elementar, mais especificamente, o título: “Os sete dias que mudaram o

Brasil” (REVISTA 2, p. 60-63). Já na reportagem “Um chute na Copa”, temos um

enunciado elementar evidente no seu lead: “É inescapável a percepção de que se

gastou dinheiro público demais com belos estádios e de menos com o restante do

cotidiano” (REVISTA 2, p. 80).

No primeiro enunciado acima, há uma relação de conjunção entre o sujeito

coletivo “Brasil” com o objeto-valor “mudança”, bem como uma relação de disjunção

com objeto-valor “mazelas sociais antigas”. Portanto, passa-se de um estado inicial

28

narrativo constituído por corrupção e mazelas sociais generalizadas e reporta a

passagem deste estado, devido à ação de um sujeito temporal a um estado final

resumido pelo enunciado “O Brasil mudou nos 7 dias de manifestações”. Nota-se que

a revista situa o sujeito coletivo Brasil a uma sequência narrativa de estados de

privação de direitos do povo para liquidação destes estados de privação destes

direitos coletivos.

No segundo enunciado acima, na reportagem “Um chute na Copa”, existe uma

relação de disjunção, indicada pelo verbo ser, entre a indeterminação do sujeito

possibilitada pela nominalização do verbo “chutar” – pode-se inferir que o sujeito do

verbo “chutar” sejam os manifestantes – e o objeto-valor “belos estádios (Copa)”, mas

também uma relação de conjunção entre esta indeterminação do sujeito

(manifestantes, por inferência) e outro objeto-valor “restante do cotidiano (outras

demandas sociais)”. Neste enunciado há a transformação, promovida pelo anti-sujeito

governo, de um estado inicial “de que se gastou dinheiro público de mais com belos

estádios” possibilitando a ocorrência da Copa. Por outro lado, mas mantém o estado

inicial com outro objeto-valor, outras demandas feitas à administração pública, “e de

menos com o restante do cotidiano”, continuando, assim, em disjunção com as vozes

da rua, nesse processo de representação operado pela reportagem da Veja.

Segue, portanto, que a revista Veja situa os manifestantes em uma sequência

narrativa de estados de privação com relação aos gastos públicos e os gastos com

educação, saúde, transportes e outras demandas sociais consideradas por eles mais

importantes. Consequentemente, afirma-se o estado de disjunção dos manifestantes

com administração do governo, tendo em vista que eles foram situados em uma

sequência narrativa de liquidação da privação, mas não com relação a gastos com as

demandas sociais, mas de gastos com a Copa.

Na revista 3, publicada em 03 de julho de 2013, com a reportagem de capa

“Então é no grito? Os governos e o Congresso correram para atender os

manifestantes. Isso mostra que a pressão popular funciona. Mas as ruas não podem

substituir as instituições”, nota-se que locutor-manipulador ‘revista’ constitui um sujeito

“manifestantes” e um anti-sujeito “políticos dos três poderes”. O enunciado elementar

da reportagem encontra-se também no seu lead:

Em poucos dias, os protestos conseguiram a façanha inédita de fazer o Congresso aprovar projetos contra a corrupção, os governos reduzirem tarifas e o Judiciário mandar um político para a cadeia. O grito dos manifestantes acordou os três poderes (REVISTA 3, p. 54).

29

A revista Veja estabelece não somente uma relação de disjunção entre o sujeito

‘manifestantes’ com os objetos-valor “corrupção, impunidade, impostos, Copa,

Educação, Saúde, Infra-estrutura”, mas também uma relação de conjunção com

objeto-valor “atenção” dos anti-sujeitos: os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Verifica-se que um estado inicial, representado pela expressão conclusiva de “Então

é no grito”, retomando as diversas manifestações ocorridas que culminaram em um

estado final de promover a ação dos poderes, apontando para as reivindicações

aceitas pelos políticos e magistrados.

Pode-se perceber que, de certa maneira, a revista coloca os manifestantes em

uma sequência narrativa de estados de liquidação dos estados de privação de direito

a participação popular na administração pública do país, mas reconhece que estas

transformações só foram possíveis por causa das vozes heterogêneas das

manifestações.

Na revista 4, publicada em 21 de agosto de 2013, com a reportagem de capa

intitulada “O Bando dos caras tapadas – Quem são os manifestantes do Black Bloc,

que saem às ruas para quebrar tudo”. Com esta representação, o locutor-manipulador

nominaliza/qualifica os sujeitos, situando-os em determinados grupos específicos, de

modo que a voz heterogênea, genérica, mas diversa dos manifestantes são reduzidas

a apenas um sujeito com a denominação/qualificação de “manifestantes radicais Black

Blocs”, como se pode observar no enunciado elementar desta reportagem e no seu

lead:

Com slogans anarquistas na cabeça e coquetéis molotov na mão, os black blocs se espalham pelo Brasil e transformam protestos em arruaça. Jovens da periferia, punks e até universitárias de tênis Farm compõem o bando.” (REVISTA 4, p.73)

No enunciado acima, no corpo da reportagem “O bloco do quebra-quebra”,

existe uma relação de conjunção entre o sujeito “manifestantes black-blocs” e o

objetos-valor “anarquia, vandalismo, violência’’, bem como uma relação de disjunção

entre este sujeito e outros objeto-valor “imprensa, bancos, capitalismo, Copa’’.

Verifica-se um estado inicial de manifestações anti-governo pacíficas que evoluem e

se transformam, devido aos sujeitos nominalizados como “radicais black-blocs”, em

um estado final de violência e vandalismo e, consequentemente, de diminuição

maciça dos protestos. Percebe-se, de algum modo, que a revista retrata os

manifestantes radicais em uma sequência narrativa de estados de privação do direito

de manifestar, criminalizando seus atos.

30

Para Fiorin (2000, p.22), na manipulação, um sujeito age sobre o outro para

levá-lo a querer e/ou dever fazer alguma coisa. Existem, segundo o estudioso, dois

sujeitos narrativos (o manipulador e o manipulado) que podem ser um mesmo

personagem ou personagens diferentes. Há inúmeros tipos de manipulação, mas o

estudioso destaca quatro tipos mais comuns: a tentação, intimidação, sedução e a

provocação.

Na revista 1, de 19 de junho de 2013, verifica-se que a revista Veja articula os

programas e percursos narrativos do texto de tal modo que se estabelece o conflito

entre dois sujeitos: jovens ou Movimento Passe-Livre” – sujeitos manipulados pelos

sujeitos governo e empresas privadas operando com o valor modal do “preço da

passagem”. Em um desdobramento polêmico da narrativa, os sujeitos-manipulados

(poder popular/dos manifestantes) (querer) se recusam a privação de locomoção

marcado pelo aumento tarifário por parte dos sujeitos “Governo e empresas-privadas

(poder oficial/institucional), detentores poder-fazer. O locutor-destinador, então, utiliza

o tipo de manipulação-modal da <intimidação> para assegurar o poder dos

manipulados, por meio das manifestações de rua. Há a transformação do estado

inicial dos sujeitos sob a impossibilidade de mobilização urbana (um sujeito do querer)

para um estado final em que, como manifestantes, estes sujeitos adquirem poder

(poder/fazer) da manifestação para, por intimidação, manipular os sujeitos “governo e

as empresas de ônibus”.

Na revista 2, de 26 de junho de 2013, o locutor- destinador constitui um sujeito

temporal manipulador “7 dias” que manipula o sujeito coletivo “Brasil” representado

pelos manifestantes em geral, através do valor modal da ‘mudança’. Este personagem

manipulador detém o poder-fazer de transformação da realidade brasileira em uma

semana, numa articulação sutil de acordo com esta edição. A revista Veja

supostamente atribui o recurso modal da <sedução> para manipular o sujeito coletivo

“Brasil’’, atribuindo o poder-fazer transformações sociais aos manifestantes com

protestos em massa concentrados em uma semana. Este jogo modal da <sedução>

constitui-se quando se atribui às vozes manifestantes um poder-fazer capaz de

promover a transformação da realidade, que a revista representa como uma mudança

do comportamento dos três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário.

Quanto a reportagem especifica “Um chute na Copa” temos: o “Governo”

(sujeito- manipulador) e os “manifestantes” (sujeito-manipulado), bem como a

circulação de objetos-valor como os “gastos com a Copa” e “gastos com outras

31

demandas sociais reivindicadas”. Percebe-se que o locutor-destinador estabelece o

sujeito-manipulador (Governo) que se utiliza da <tentação> quando propõe ao

manipulado (manifestantes) o que poderia ser um objeto de valor positivo ou uma

recompensa com a finalidade de levar o cidadão a crer no orçamento e na beleza dos

estádios da Copa, exemplificado no seguinte enunciado:

Havia a promessa de que os estádios seriam todos construídos pela iniciativa privada. Não. Dos 7,03 bilhões de reais desembolsados com as novas arenas, apenas 612 milhões vieram das empresas. Ficaram bonitos, mas muitos estão fadados a virar elefantes brancos” (REVISTA 2, p.80).

Na revista 3, de 03 de julho de 2013, inverte a relação modal de poder entre os

sujeitos e os seus objetos modais, articulando dois sujeitos: o sujeito manipulador

“grito de manifestantes” que persegue o valor modal “participação política’. Adquirido

o valor modal, pode-se manipular os sujeitos dos “três poderes” com o tipo modal da

<intimidação>, tematizados pelos ‘gritos’ que impõem e requerem algum tipo de ação

das autoridades, submetidos a um dever-fazer. Supostamente atribui-se um poder-

fazer dos manifestantes em relação as suas autoridades.

Na revista 4, de 21 de agosto de 2013, a Veja apresenta apenas um

personagem ou sujeitos, os “manifestantes radicais black-blocs”. A estes sujeitos são

atribuídos o papel de manipuladores e manipulados nas fases da narrativa. Os valores

modais atribuído a estes grupos são a “violência e organização”. São constituídos

como sujeitos-manipuladores quando através da <provocação> adquirem um “pode-

fazer’’ com que as massas (um querer-fazer) induzindo à depredação do patrimônio

público e privado. Contudo, são constituídos como sujeitos manipulados, na medida

em que o locutor-destinador, no caso, a revista Veja como seu poder-fazer os

“criminaliza” com a <intimidação> pelos seus atos de vandalismo, principalmente

contra a própria imprensa.

Passaremos agora, para o terceiro nível de análise desta construção do

percurso gerativo de sentido das reportagens da Veja acerca das manifestações. O

nível discursivo ou das estruturas discursivas, como dito antes, é o mais complexo e

concreto. Neste nível a narrativa é assumida pelo sujeito dentro da enunciação, isto

é, na instância do Eu-Aqui-Agora. A narrativa aqui se transforma em discurso.

Sintaticamente, investigam-se os atores, o tempo e o espaço da narrativa, os

processos de embreagem e debreagem discursivos – efeitos de sentido, as relações

32

entre enunciador e enunciatário. Semanticamente, investigam-se os investimentos

figurativos e temáticos das reportagens.

1.2.3. Nível Discursivo das reportagens

Antes de iniciarmos a análise deste nível, vejamos como Barros (2005)

descreve e caracteriza o nível discursivo.

O nível discursivo é o patamar mais superficial do percurso, o mais próximo da manifestação textual. Pela própria definição do percurso gerativo, as estruturas discursivas são mais específicas, mas também mais complexas e “enriquecidas” semanticamente, que as estruturas narrativas e as fundamentais. As estruturas narrativas convertem-se em estruturas discursivas quando assumidas pelo sujeito da enunciação. O sujeito da enunciação faz uma série de “escolhas”, de pessoa, de tempo, de espaço, de figuras, e “conta” ou passa a narrativa, transformando-a em discurso. O discurso nada mais é, portanto, que a narrativa “enriquecida” por todas essas opções do sujeito da enunciação, que marcam os diferentes modos pelos quais a enunciação se relaciona com o discurso que enuncia” (BARROS, 2005, p.53).

A enunciação, de acordo com a semiótica textual, é a instância de mediação

entre as estruturas narrativas e discursivas que, pressuposta no discurso, pode ser

reconstruída a partir das pistas que nele se espalham. A enunciação é também

mediadora entre o discurso e o contexto sócio-histórico e, nesse caso, deixa-se

apreender devido às relações intertextuais. Por sua vez, o enunciado é o objeto-

textual resultante de uma enunciação. E, ainda deve-se ressaltar que “o discurso

constrói a sua verdade. Em outras palavras, o enunciador não produz discursos

verdadeiros ou falsos, mas fabrica discursos que criam efeitos de verdade e de

falsidade, que parecem verdadeiros ou falsos e como tais são interpretados”

(BARROS, 2005, p. 64)

Além disso, antes de analisarmos sintaticamente e semanticamente a

reportagem, devemos entender também a relação entre a enunciação e alguns

aspectos deste nível discursivo dentro da teoria semiótica. Para Fiorin (2000),

A enunciação define-se como a instância de um eu-aqui-agora. Com efeito, o sujeito da enunciação é sempre um eu, que opera, ao realizar a produção discursiva, no espaço do aqui e no tempo do agora. Por isso, a sintaxe do discurso, ao estudar as marcas da enunciação no enunciado, analisa três procedimentos de discursivização: a actorialização, a espacialização e a temporalização, ou seja, a constituição das pessoas, do espaço e do tempo do discurso (FIORIN, 2000, p. 40).

33

Faz-se necessário entender que a revista Veja, como um veículo de grande

circulação social, estabeleceu um contrato de verdade com seus leitores. É esta

presunção de verdade, de estar preocupada com a informação que faz toda mídia

informativa ao iniciar seus trabalhos. Este contrato, como se sabe, é da natureza da

ordem discursiva, na medida em que se firma sob as condições de produção de um

discurso que busca informar e requer que seus leitores acreditem neste pacto. É sob

este pacto com seus leitores que a revista se propõe a retratar os fatos ocorridos

durante e depois da Copa das Confederações.

Sob estas condições, portanto, como sujeito da Enunciação das reportagens

publicadas (no caso, sua linha editorial) – locutor-enunciador-destinador-manipulador

– a revista é responsável pelo valor do discurso e deve ser capaz de levar o

interlocutor- enunciatário- destinatário-manipulado – os seus leitores - a crer na sua

narrativa, dos acontecimentos que ela relata/constrói; ou seja, na verdade discursiva

dos fatos que reporta. Neste caso, para construir seu discurso e fazer-crer a seus

leitores nas suas representações acerca dos acontecimentos de Junho de 2013, bem

como no valor de verdade das suas reportagens, a revista utiliza-se na sua narrativa

dos fatos de estratégias de actorização, espacialização e temporalização para

persuadir seus manipulados.

Primeiramente, na Edição 2326, de 19 de junho de 2013, intitulada “Contra o

aumento – A revolta dos jovens”, percebe-se que o locutor actoriza os ‘jovens’

manifestantes, estabelecendo dois estados narrativos: um estado inicial da situação

dos atores pela limitação de mobilidade urbana, devido ao aumento do preço das

passagens realizado pelo governo e um estado final de possibilidade de locomoção

que seria resultado de uma transformação operada por manifestações nas ruas. É a

crença nesse poder-fazer que leva os jovens a protestarem nos movimentos ocorridos

em junho de 2013.

Em seguida, na Edição Histórica de 26 de junho de 2013, em uma reportagem

extensa e dedicada apenas às manifestações, intitulada “Os sete dias que mudaram

o Brasil”, o locutor-manipulador actoriza os “7 dias” colocando o tempo narrativo como

sujeito que transforma o sujeito coletivo “Brasil” representado pela heterogeneidade

de vozes dos manifestantes. Como vimos, esta actorialização torna possível a

transformação de um estado inicial narrativo (de não poder fazer) diante das situações

reivindicadas, constituído por corrupção e mazelas sociais generalizadas para um

34

estado final (de poder-fazer) promovendo a mudança, como se observa no enunciado

“O Brasil mudou nos 7 dias de manifestações”.

Já na Edição de 03 de julho de 2013, com o enunciado “Então é no grito? Os

governos e o Congresso correram para atender os manifestantes. Isso mostra que a

pressão popular funciona. Mas as ruas não podem substituir as instituições”, a revista

marca o seu locutor e actoriza como “o grito” dos manifestantes. Verifica-se um estado

inicial de manifestações diversas contra o governo que culminam em um estado final

de reivindicações aceitas pelos políticos dos três poderes.

Finalmente, na Edição de 21 de agosto de 2013 com o enunciado “O Bando

dos caras tapadas – Quem são os manifestantes do Black Bloc, que saem às ruas

para quebrar tudo”, podemos perceber um processo de representação das

manifestações em que o locutor actorializa os manifestantes, qualificando-os de

“radicais” e inscrevendo-os em um grupo social, organizado específico, nomeando-os

de “Black Blocs brasileiros” (universitários, jovens da periferia, punks, MST,

movimentos sociais decadentes). Esta heterogeneidade de sujeitos, agora

actorializados como “Black Blocs brasileiros” são aqueles que se opõem ao governo,

ao capitalismo, à Copa e à grande imprensa qualificada e nomeada de “mentirosa”. A

grande imprensa, no caso deste trabalho a Veja, entra em disjunção com a sociedade,

representados antes pelos manifestantes actorializados, genericamente, como

jovens. O estado inicial em que os manifestantes, mas também a imprensa

colocavam-se em oposição ao governo, transforma-se em um ator que se situa em

um espaço final de disjunção com esses manifestantes.

Sendo assim, se compreendermos o processo narrativo que envolve as quatro

edições da Veja, sobre as manifestações de junho de 2013, na construção discursiva

parte-se de um estado inicial de manifestações pacíficas, tendo a actorialização - os

“jovens”, revista 1, a um estado intermediário nesse grande percurso narrativo com a

actorialização do tempo “os sete dias que abalaram o Brasil”, com a actorialização do

“grito”, que já de certa forma, uma passagem para o estado final violência por parte

dos radicais, com a consequente “crimininalização” de seus atos.

Sob esta perspectiva, a Sintaxe Discursiva abrange dois aspectos ou

dimensões, quais sejam, aquela das projeções da instância da enunciação no

enunciado e aquela das projeções das relações entre enunciador e enunciatário. O

objetivo dessas projeções consiste em fazer com que o enunciatário aceite o que está

sendo enunciado, e segundo Barros (2005),

35

Partindo do princípio de que todo discurso procura persuadir seu destinatário de que é verdadeiro (ou falso), os mecanismos discursivos têm, em última análise, por finalidade criar a ilusão de verdade. Há dois efeitos básicos produzidos pelos discursos com a finalidade de convencerem de sua verdade, são o de proximidade ou distanciamento da enunciação e o de realidade ou referente (BARROS, 2005, p.55).

Quanto as projeções da enunciação no enunciado, digamos que a Enunciação

instaura um discurso- enunciado, projetando os atores, o espaço e o tempo no

enunciado-discurso produzido. Para isso, utiliza-se de estratégias linguísticas das

categorias de pessoa, de espaço e de tempo. Estas estratégias visam provocar efeitos

de sentido que podem ser configurados de dois modos. Em primeiro lugar, a

Debreagem Enunciativa que promove o efeito de sentido da subjetividade, pois nesse

caso, o Eu (enunciador) coloca-se no discurso e produz discursos em primeira pessoa.

Segundo, a Debreagem Enunciva que promove o efeito de sentido da objetividade,

com o Eu (enunciador) colocando-se de fora do enunciado e produzindo discursos em

terceira pessoa.

As consequências desses efeitos, narrar em primeira ou terceira pessoa é uma

opção do enunciador, segundo os efeitos de sentido que pretende – da subjetividade

ou da objetividade – portanto, essa escolha faz parte da arquitetura do texto e tem

como objetivo produzir determinados efeitos de sentido. Para os efeitos de realidade

ou referente, entendem-se as representações discursivas de que os fatos são “coisas

ocorridas” do modo como foram narradas, de que seus seres são de “carne e osso”,

de que o discurso, enfim copia o real (BARROS, 2005, p. 59).

Segundo a autora:

Os efeitos de realidade ou de referente são, no entanto, construídos mais frequentemente por meio de procedimentos da semântica discursiva e não da sintaxe, ao contrário do que ocorre com os efeitos da enunciação. O recurso semântico denomina-se ancoragem. Trata-se de atar o discurso a pessoas, espaços e datas que o receptor reconhece como “reais” ou “existentes”, pelo procedimento semântico de concretizar cada vez mais os atores, os espaços e o tempo do discurso, preenchendo-os com traços sensoriais que o “iconizam”, os fazem “cópias da realidade”, [...] produzem ilusão. (BARROS, 2005, p. 60)

No que se trata das projeções das relações entre Enunciador/ Enunciatário,

consideremos que o enunciador se define pelo desdobramento do sujeito da

enunciação, ele cumpre papéis de destinador do discurso e está sempre implícito no

texto, nunca nele manifestado. Já o enunciatário se define por uma das posições do

sujeito da enunciação, o enunciatário, implícito, cumpre os papéis de destinatário do

36

discurso. Eles estabelecem entre si um contrato onde o enunciador- manipulador deve

interpretar o discurso, ler a verdade, espalhando marcas no texto que devem ser

encontradas e interpretadas pelo enunciatário-persuadido.

Sabe-se que o jornalismo se propõe na “objetividade”, em uma enunciação

afastada do discurso visando garantir esta imparcialidade presumida, e o aparato da

enunciação, mais as estratégias de semiotização textual que possibilitam a

actorialização, a temporalização e a espacialização, asseguram os recursos

necessários para produzir esta ilusão de distanciamento, tendo em vista que o

processo da enunciação está lá filtrando seus valores e fins.

Em todas as Edições da revista, mostra-se um discurso em terceira pessoa

procurando obter este efeito de objetividade, como se o locutor se colocasse de fora

e fosse apenas um observador dos fatos que narra. Isso assume grande importância

para que se cumpra o contrato de verdade presumido entre a revista e seus leitores.

Segue o papel das estratégias, como se pode observar, a título de exemplo, nos

seguintes recortes:

Há uma grande chance de que boa parte da rapaziada que, na semana passada, foi às ruas esteja dando vazão às pressões hormonais pelo exercício passageiro do socialismo revolucionário (REVISTA 1, p. 86); Some-se para incendiar a impressão de descontrole de prioridades o anúncio do Ministério do Esporte de que os custos com o torneio chegarão a 28 bilhões de reais anotados nas planilhas mais recentes (REVISTA 2, p.80); Da onda de protestos como nunca se viu no Brasil, saíram chamuscados políticos de todos os partidos (REVISTA 3, p. 57); Na semana passada, os black blocs estiveram por trás de todas as manifestações violentas que explodiram no Rio de Janeiro e São Paulo, com exceção da tentativa de invasão do Hospital Sírio-Libanês, esta uma obra de sindicalistas (REVISTA 4, p. 74).

Além disso, em quase todas reportagens, a revista delega vozes aos atores-

personagens no corpo do texto ou em entrevistas como por exemplo:

Aluna de design na Universidade Federal no Rio de Janeiro, Valkyria Anondottir, de 21 anos, é veterana em manifestações. [...] ‘A questão é bem mais profunda do que um aumento de passagem. O povo está cansado de conchavos entre governantes e empresas privadas’ (REVISTA 1, p.86); Queremos hospitais padrão FIFA (REVISTA 2, p. 80); Dilma, me chama de Copa e investe em mim? Assinado: Educação (REVISTA 2, p. 80);

37

Na criatividade retórica que brota das grandes manifestações, torcedores que lotaram o Castelão de Fortaleza na vitória do Brasil contra o México, na quarta-feira, transformaram em cartazes uma inescapável percepção, a de que a Copa de 2014 consumirá dinheiro público de mais para resultados de menos (REVISTA 2, p. 80).

Em suas edições, a revista, utilizando-se de entrevistas, além de conceder o

direito à voz aos manifestantes, concede-lhes também um rosto e um nome,

publicando as fotos dos manifestantes entrevistados. Podemos notar como, com as

entrevistas, a revista assegura o grau máximo da estratégia de actorialização, na

medida em que os atores estão ancorados no mundo real, como por exemplo: “ Ana

Luiza Lupiano – Estudante, 22 anos, Brasília (legenda) – “Temos de continuar dizendo

que o Brasil não precisa de Copa porque já é o país do futebol”; Pedro Paulo

Antonaccio – Médico, 60 anos, São Paulo (legenda) – “Falta tudo em nossos hospitais.

As pessoas morrem nos corredores enquanto gastamos milhões com a Copa do

Mundo”. (REVISTA 2, p.80).

Na revista 3, nota-se a delegação de voz, ainda que por meio do discurso

indireto, no seguinte enunciado: “A presidente colocou o bode na nossa sala, disse o

senador Pedro Taques (PDT-MT), conhecido pela independência e pela crítica ao

fisiologismo” (REVISTA 3, p. 61). Na revista 4, a palavra é delegada:

Exemplo disso ocorreu durante a invasão da Câmara Municipal de São Paulo, quando um black bloc abordou aos berros o presidente da Casa, o petista José Américo: ‘O Senhor é a favor da tarifa zero? Quem matou o Amarildo? Abriria mão do seu salário? É contra a Constituição?” (REVISTA 4, p. 74)

Em todas as reportagens, percebe-se também que nesta construção do efeito

de objetividade e de verdade, além da actorialização, da debreagem enunciva, o

locutor-manipulador faz uso do argumento de autoridade, tematizando determinado

conhecimento obtido e situando-o dentro de uma linguagem específica, como a

estatísticas e dentro de um dizer que constrói a origem desse saber em pesquisa feita

em uma universidade:

O estudo ‘Mudando o assunto: um relato de baixo para cima do Occupy Wall Street em Nova York’, conduzido pela Universidade da Cidade de Nova York, mostrou que 36% dos ativistas tinham rendimento familiar superior a 100.000 dólares por ano e 64% eram brancos (REVISTA 1, p. 90).

Na revista 2, o recurso de ancoragem semântica é evidenciado pelo argumento

de autoridade a partir do dizer de uma empresa de consultoria, portanto, que possui o

poder de dizer e um de um economista, que possui um saber legitimado:

38

Ressalvem-se também estudos sérios, como uma consultoria Ernst & Young que aponta o ingresso de 64,5 bilhões de reais no PIB entre 2010 e 2014 com a realização da Copa. Pode ser, só o tempo dirá, mas não é o que a história de outros países que sediaram grandes eventos mostra. O economista Stefan Szymanski, professor de gestão do esporte da Universidade de Michigan e coautor do livro Soccernomics, vai direto ao ponto: “Em termos econômicos convencionais, receber da Copa não vale a pena. Ela transfere o pagamento de impostos dos contribuintes que poderiam ser usados em outros projetos para um único mês de futebol. Em qualquer país, escolas e hospitais oferecem taxas de retorno muito melhores. Quanto mais pobre um país, mais verdadeira é essa afirmação. Para ele, “o Brasil sacrificou um pouquinho de seu futuro para ter a Copa de 2014 (REVISTA 2, p.81).

Por último, na revista 4, percebe-se através de todo um ensaio histórico sobre

a atuação do grupo black bloc, editado pela revista em várias páginas, que o próprio

locutor-manipulador busca se construir como um sujeito de saber:

Nos anos 80, o movimento antinuclear na Alemanha juntou comunistas, anarquistas e punks em protestos de rua. Como tática para enfrentar a ação da polícia, esses grupos adotaram o uso de máscara, roupas pretas e passaram a marchar em bloco, sempre na dianteira dos confrontos. Surgiam os black blocs [...] (REVISTA 4, p. 76)

1.3. Semântica Discursiva: temas e figuras

Partindo-se para a semântica discursiva, a semiótica trata os textos de acordo

com seus percursos temáticos e seus investimentos figurativos. Uma figura é um

elemento da semântica discursiva que se relaciona com um elemento do mundo

natural, o que cria, no discurso, o efeito de sentido ou a ilusão de realidade enquanto

que um tema é um elemento da semântica narrativa que não remete a elementos do

mundo natural, e sim às categorias “linguísticas” ou “semióticas” que o organizam.

Conforme Barros (2005, p.11-12) observa, “ainda no nível discursivo, as

oposições fundamentais, assumidas como valores narrativos, desenvolvem-se sob a

forma de temas e, em muitos textos, concretizam-se por meio de figuras”. Na edição

de 19 de junho de 2013, na revista com a reportagem “A revolta dos jovens”, percebe-

se algumas leituras temáticas, de acordo com a oposição semântica mínima:

Limitação de locomoção versus Possibilidade de locomoção

a) Tema socioeconômico da mobilidade urbana mais barata e de qualidade para a

população nos transportes coletivos das grandes cidades.

39

b) Tema político-econômico do aumento de impostos por parte dos governos

ocasionando prejuízos diretos e indiretos para a população.

c) Tema simbólico da luta por direitos através de protestos dos jovens no mundo.

d) Tema das paixões políticas

Na revista 2, na matéria como um todo, as principais leituras temáticas de

acordo com as oposições fundamentais:

Mazelas sociais antigas Vs Mudanças no Brasil

a) Tema em sua história mais recente das manifestações políticas ocorridas no Brasil

desde a redemocratização.

b) Tema social dos problemas, das necessidades e das demandas da população

que perduram e são de longa duração no Brasil.

c) Tema psicanalítico e semiótico das paixões políticas

d) Tema político da administração com foco no atual governo no país (do principal

partido- PT).

Quanto à reportagem um “Chute na Copa”, publicada na edição de 26 de junho

de 2013, verifica-se os seguintes temas através da oposição fundamental:

Investimento na Copa vs Investimento em demandas sociais antigas

a) Tema socioeconômico de investimentos do governo no futebol e em outras

demandas sociais como Saúde, Educação, Infraestrutura urbana no Brasil.

b) Tema político com foco na administração do PT no Brasil;

c) Tema simbólico do significado do futebol face aos desafios sociais no Brasil;

d) Tema psicanalítico e semiótico das paixões de torcedores de futebol e de cidadãos

no engajamento político no Brasil.

Na revista 3, de 03 de julho de 2013, percebe-se algumas leituras temáticas

com a oposição:

“Grito” dos manifestantes

(Poder popular/dos manifestantes)

Vs Atenção dos políticos dos três

poderes (Poder oficial/institucional)

40

a) Tema político sobre a representatividade dos políticos e sobre os anseios da

população.

b) Tema social e político sobre o engajamento político do povo brasileiro na

transformação social.

Na revista 4, publicada em 21 de agosto de 2013, podemos notar algumas

leituras temáticas com as oposições:

Radicais Black Blocs (anarquia)

vs

Governo e Instituições

(Imprensa, Bancos, capitalismo,

Copa)

a) Tema social da violência em manifestações públicas.

b) Tema político da anarquia versus a democracia.

c) Tema da violência provocada por paixões políticas e ideológicas.

Finalmente, faz-se necessário salientar que em todas as reportagens nota-se o

tema das paixões exacerbadas, sejam futebolísticas, sejam políticas, evidenciado por

manifestações heterogêneas de grande intensidade num curto período de tempo. Isto

nos impele também a sair de uma racionalidade da ação, no qual se insere este

percurso gerativo de sentido estudado, para investigar através da racionalidade da

paixão, as principais representações e modalidades que a Revista Veja trabalha no

tratamento deste momento histórico para o Brasil. No próximo capítulo, pretendemos

examinar este funcionamento da paixão nas narrativas das revistas.

41

CAPÍTULO II: PERCURSO DE SENTIDO DAS PAIXÕES NAS REPORTAGENS

2.1. Emoções – Definições gerais, paradigmáticas e sintagmáticas

Numa abordagem geral sobre o estudo das paixões, conforme Barros (2001),

a semiótica constatou que os estudos existentes na lógica e na psicanálise teriam

preocupações taxionômicas e fez o caminho inverso do processo. Ela procurou, então,

“dar às paixões-lexemas e as suas expressões discursivas definições sintáticas”

(BARROS, 2001, p.61).

Fontanille e Zilberberg (2001) consideram que o significado, para a linguística e

a semiótica, deixa transparecer uma desconfiança diante do sensível e da emoção,

indo além de um mero conceito do inteligível. Segundo os semioticistas:

[...] a emoção é concebida como portadora de significação: para Sartre, por exemplo, na esteira da fenomenologia, a emoção é uma resposta, se não uma solução, a uma situação vivida como problemática, ou mesmo insuportável. [...] Sabemos ainda que a emoção tem hoje seu lugar nas pesquisas cognitivas, sempre compreendida como resposta adaptativa, mas também é reconhecida como fundamento de nossa representação do mundo natural, notadamente por meio da metáfora, como propõe Lakoff (FONTANILLE; ZIBERBERG, 2001, p. 279).

Outros estudiosos da linguagem já nos legaram a ‘função expressiva’ (K.

Bühler) e a ‘função emotiva’ (R.Jakobson). No primeiro, considera-se esta função

como expressão da interioridade do sujeito da enunciação. No segundo, concebe-se

esta função como transmissão direta de informação sobre o destinador de uma

mensagem, no fundo, bem próxima da concepção cognitivista. Numa releitura de

Peirce: “a emoção é tratada como um signo de si própria ou signo de outra coisa, e é

desse modo que ela tem sentido, ou sentidos” (FONTANILLE; ZIBERBERG, 2001, p.

280).

Conforme Fontanille e Zilberberg (2001, p.281), faz-se necessário ‘‘abordar o

‘sensível’, não como algo a ser traduzido em ‘inteligível’, mas como algo que deve ser

apreendido na tensão que o liga ao inteligível.” Sendo assim, conforme os estudiosos,

para abordarmos o ‘sensível’ numa perspectiva semiótica sintática e tensiva, tomamos

algumas definições gerais, paradigmáticas e sintagmáticas dos seguintes termos ou

temas: a “emoção” e a “paixão”.

Segundo Fontanille e Zilberberg (2001, p.281), uma das definições gerais do

termo ‘emoção’, comporta a complexidade metalinguística de pertencer a uma língua

42

natural e de uma vasta gama de definições em diversas disciplinas. Eles exemplificam

o caso em francês:

Em francês, o termo “emoção” (= ‘estado afetivo intenso, caracterizado por brusca perturbação física e mental’) pertence a uma nomenclatura de estados afetivos, em cujo seio se distingue da “paixão” (= ‘viva inclinação para um objeto que alguém persegue e ao qual se apega com todas as forças’), do ‘sentimento’ (estado afetivo complexo, bastante estável, bastante durável’), da ‘inclinação’ (= ‘movimento afetivo, espontâneo, para um objeto ou um fim), da ‘disposição’ (= ‘tendência a’) ou do ‘temperamento’ (= ‘conjunto de caracteres inatos numa pessoa, complexo psicofisiológico que determina seus comportamentos’) (FONTANILLE; ZIBERBERG, 2001, p.281).

Paradigmaticamente, os autores discorrem de duas definições do tema, uma

binarista e a outra funcionalista entre o limite de dois complexos. A primeira, de acordo

com Th.Ribot, desenvolve a metáfora kantiana opondo o “agudo” e o “crônico”, o

“choque brusco e violento” e a “ obsessão permanente ou intermitente”. Se falta à

emoção o traço /duratividade/, este se inscreve firmemente na paixão.’’ Admite-se,

portanto, numa visão plausível, mas imperfeita, de que a emoção se transforma em

paixão quando ela molda o percurso inteiro do sujeito (FONTANILLE; ZILBERBERG,

2001, p.282,).

A segunda definição estabelece uma integração maior de certas premissas: a

aspectualidade, a modalidade e a tensividade. Na existência entre dois complexos:

um ‘modal’ e outro ‘fórico’, a emoção possui duas dimensões quanto a modalidade e

a foria. A foria estaria ligada ao mundo e às suas perguntas, e a modalidade, ao sujeito

e às respostas que enuncia. O complexo modal apresenta as seguintes dimensões,

conforme (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001) – ‘a dimensão do querer, patêmica,

dividida entre o desejo e o apego, e uma dimensão do poder dividida entre a

impotência, a inibição, de um lado, e a aptidão, a mobilização para um fazer, do outro.’

A foria comporta também duas dimensões:

[...] a do tempo, que varia entre rapidez e lentidão, e a da duração, que varia entre o alongamento e a brevidade; o complexo fórico admite ainda o ritmo como termo mediador entre os termos extremos que são a subitaneidade “tônica” e uma duração “átona”. Assim, podemos compreender que a paixão, também situada em posição mediana, seja afetada por um ritmo, uma escansão e uma pulsação – numa palavra, um ‘estilo tensivo’ [...] -, enquanto a emoção, nesse aspecto, não passaria de uma explosão, um ‘golpe’ ou um acento (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p.283).

43

Sintagmaticamente, Fontanille e Zilberberg (2001) presumem que o sentido de

um afeto é identificado por fases atravessadas por um sujeito que são,

respectivamente, fase emotiva, tendencial, passional ou permanente. Para eles, os

afetos podem ter estados concentrados e difusos como os estados da matéria na

física. Eles dão o exemplo do “amor à primeira vista” que se configura por um

sincretismo destas fases ou como um percurso instantâneo. Na transição de fase da

emoção para a inclinação acontece uma desconcentração, uma explosão controlada.

Com relação ao tempo e a intensidade, percebe-se que ‘‘se a emoção comporta o

traço /brusco/, a inclinação comporta apenas o traço /espontâneo/ ’’ (FONTANILLE;

ZILBERBERG, 2001, p.289,).

Na perspectiva da duração, enquanto a emoção é definida pela ‘perturbação’ e

é desprovida de duração, a inclinação apresenta a duração e comporta o traço

/movimento/. Segundo Fontanille e Zilberberg (2001), na perspectiva da

espacialidade, a emoção se encontra localizada, uma vez que o sujeito e o objeto se

confundem, ao passo que na inclinação se encontra uma cisão entre o sujeito e o

objeto e uma orientação do sujeito para o objeto. Quanto ao tempo, a transformação

da emoção em inclinação é expressa pela desaceleração e, do ponto de vista da

intensidade, pela atenuação.

2.2. Paixões - Definições gerais, paradigmáticas e sintagmáticas

Tomemos agora o tema das paixões. O operador de todos estados afetivos é

hoje o próprio “corpo”, em outros tempos era o “coração”, como sede do sentir e das

tensões. Os autores consideram que tradicionalmente o tema das paixões concerne

à filosofia e à psicologia e contém uma diversidade de acepções. Enquanto de um

lado, a psicologia tenderia a colocá-la em disciplinas diferentes – psicanálise ou

psicologia das emoções e psicologia cognitiva ou comportamental – por outro lado, a

filosofia tenderia a uma taxionomia ou classificação dos universos passionais.

Percebe-se, de maneira geral, que a paixão se opõe à racionalidade da cognição, do

entendimento, da ação e a própria razão. Com exceção do freudismo no “destino das

pulsões”, na modernidade, são raros os sistemas que colocam a paixão no ponto mais

elevado da reflexão sobre a “natureza humana. Outra definição tradicional considera

que a paixão nas nossas culturas se traduziria em uma forte oposição imaginária entre

o pathos e o logos (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p.293-294).

44

A semiótica, por sua vez, rompeu com as definições tradicionais e filia-se à

linguística da enunciação. Para ela, a afetividade provém dos componentes modais e

dêiticos, por exemplo, os chamados adjetivos “afetivos” e as conotações passionais

fazem parte da classe dos “modalizadores”. Fontanille e Zilberberg (2001, p.295-296)

assinalam que, salvo as exclusões na noção de paixão, próprias ao estruturalismo da

década de 60 e 70, nos anos 90 aparece o livro fundador Semiótica das paixões de

Greimás e Fontanille (1991), que apresenta o seu próprio ponto de vista sobre o tema:

É apenas em Semiótica das paixões que vemos aparecer uma definição suficientemente abrangente para permitir um desdobramento teórico sistemático: a ‘paixão’ se distingue agora da ‘ação’, não como resíduo da análise narratológica, mas como mudança de ponto de vista. A paixão é então considerada (i) sobre o fundo de uma problemática tensiva e sensível; (ii) como uma organização sintagmática, modal e aspectual; e (iii) como matéria de investigação da práxis enunciativa sob a forma de taxionomias conotativas. Doravante a semiótica das paixões não aparece mais como um complemento da semiótica da ação: ela a engloba e a compreende, sob seu próprio ponto de vista (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p.295-296).

Segundo eles, a história da teoria das paixões na Semiótica, poderia ser

resumida da passagem da sintaxe narrativa à sintaxe tensiva, sob a forma de uma

série de deslocamentos, respectivamente, da taxionomia à sintaxe; da sintaxe à

modalização; da modalização à aspectualização; da aspectualização à intensidade.

Enfim, eles afirmam que “durante os anos 80, a análise das paixões era uma análise

dos lexemas ou dos papéis passionais: a cólera, o desespero, [...] No curso dos anos

90, ela se consagra cada vez mais ao estudo da dimensão passional do discurso, e

notadamente às manifestações passionais não-verbais, ou ‘não verbalizadas’[...]’’

(FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p.297).

Paradigmaticamente, numa semiótica discursiva, uma paixão é um sintagma

do discurso ou sintagma passional caracterizado pelos componentes da modalidade,

aspectualidade, temporalidade e outros. Além disso, um sintagma discursivo ou

passional constitui uma associação de duas dimensões correlatas entre si: modais e

fóricas. Conforme os autores, as modalidades implicam a existência (modalidades

existenciais) e a competência (querer, dever, saber, poder e crer). A foria associa a

intensidade e a extensividade, com projeções no espaço e no tempo e os efeitos de

tempo e ritmo. Essas relações induzem tensões que afetam o próprio corpo e o próprio

discurso. Tais correlações também são ao mesmo tempo inteligíveis e sensíveis

(FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p.297-298).

45

Fontanille e Zilberberg (2001) relacionam as paixões ou efeitos de sentido

passionais à cultura, entendendo que:

O efeito de sentido passional é de fato, na perspectiva que defendemos, eminentemente cultural, repertoriado numa ‘enciclopédia’ específica do domínio passional peculiar a cada cultura. De certo modo, vivenciar uma paixão seria mesmo conformar-se a uma identidade cultural e buscar a significação de nossas emoções e afetos na sua maior ou menor conformidade às taxionomias acumuladas em nossa própria cultura (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p.299).

Para eles, assim que uma paixão é identificada e denominada, já não se

configura como uma “paixão viva”, mas se encontra no campo dos estereótipos

culturais da afetividade. Todavia, eles também consideram que se um afeto ou

emoção exigem apenas um corpo que sente, um fazer reativo ou adaptativo, a paixão

se revela como um acontecimento ou uma transformação vista e reconhecida por um

observador. Além disso, podemos procurar o lugar da paixão no conjunto das

manifestações ‘afetivas’. O gradiente já discutido anteriormente, conforme Fontanille

e Zilberberg (2001, p.300), a partir da correlação entre a dimensão modal e a

dimensão fórica (limitando-se aqui a foria ao que se vale como intensidade), dispõem

as principais manifestações afetivas da seguinte maneira:

emoção – inclinação – paixão – sentimento

Eles observam que “do ponto de vista da dimensão fórica, a emoção e a

inclinação são tônicas; do ponto de vista da dimensão modal, são átonas’’

(FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p.300). E ainda, cada manifestação de uma

paixão ou de um sentimento reforça a homogeneidade de um percurso discursivo. As

paixões são também definidas por dois grandes tipos de valores – os valores de

absoluto (como o ciúme) e os valores de universo (como o amor ao próximo). Para os

autores, estes valores na relação com os objetos são determinados pela “correlação

entre a intensidade afetiva investida no objeto, por um lado, e sua quantidade ou

extensão, por outro” (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p.302).

Sintagmaticamente, a sintaxe passional possui duas perspectivas

complementares que seriam a dimensão discursiva e esquematizável (definição

sintagmática ampla) e a dimensão modal (definição restrita). De acordo com os

46

autores: “[...] a dimensão modal lhe proporciona os constituintes, os dispositivos

modais, e a dimensão fórica, os expoentes, os dispositivos tensivos que se aplicam

aos precedentes.’’ Desse modo, cada cultura, individual ou coletiva, seleciona seus

próprios sintagmas passionais e, como eles afirmam, cada paixão entra em uma

sequência em que a cada uma segue outra, constituindo assim o contexto de acordo

com o qual essa paixão obterá sentido (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p.304,).

Esta esquematização tensiva é obedecida genericamente por uma sintaxe da

consistência em que ocorrem dois esquemas:

[...] o esquema ascendente [desdobramento –) somação] e o esquema decadente [somação -) resolução]. A somação responderia, no próprio seio da paixão, pelo momento da crise, e até mesmo da emoção; a resolução asseguraria seu desdobramento e difusão e, notadamente, seu poder isotopante, no conjunto do percurso de um sujeito (FONTANILLE; ZIBEBERG, 2001, p.308,).

De acordo com os semioticistas, um “estilo tensivo” de uma paixão,

determinado por uma sintaxe tensiva, “[...] é um esquema cujo perfil seria diretamente

calculável a partir das mudanças no equilíbrio e na direção da correlação entre a

intensidade e a extensidade passionais”. E, ainda observam que “as culturas

codificam esses tempi e esses prazos – por exemplo, a duração de um luto –

confirmando de certo modo seu papel na definição das configurações culturais da

paixão’’ (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p.308).

A sintaxe restrita da paixão é denominada também de ‘sintaxe intermodal’. De

acordo com Fontanille e Zilberberg (2001, p.309):

[...] as modalidades podem ser tratadas quer como grandezas simples e discretas – e nesse caso seu domínio de validade é a descrição da competência dos sujeitos narrativos – quer como grandezas complexas e tensivas, caso em que entram na composição dos dispositivos passionais. No segundo caso, trata-se de valores modais que obedecem inteiramente à definição tensiva dos valores em geral. Seu ‘valor’ está condicionado por uma correlação, conversa ou inversa, entre sua intensidade e sua extensividade’’.

Em suma, estes valores passionais se apresentam sob dois vieses – pelo viés

do saber e do conteúdo, ou pelo viés da sensibilidade e da expressão. Contudo, os

autores nos relembram que o discurso passional não se reduz ao seu léxico afetivo

ou apenas a um agenciamento de palavras. Apesar de reconhecerem que a questão

da manifestação da paixão e da emoção nos discursos não-verbais ainda precisa ser

resolvida, eles defendem, então, que “o discurso é uma ordenação dinâmica de forças

47

em devir, em que emergem, circulam e trocam-se valores, por vezes estabilizados sob

a forma de isotopias” (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p.314).

Resumidamente, relacionando esta reflexão teórica e a prática de textos sobre

as emoções e as paixões e os três níveis do percurso gerativo de sentido do capítulo

anterior, teremos no nível fundamental - o espaço tensivo e o espaço da foria, as

variações de intensidade e extensividade; no nível narrativo - a relações de junção

dos valores passionais bem como modais mediados entre sujeitos e objetos; e por

fim, no nível discursivo - os efeitos de sentido passionais, as aspectualidades, a

figuratividade manifestada pelo sensível e a somatização representada pelo

“sobressalto ou o frêmito, o rubor ou a agitação, a náusea ou a aquietação, que

manifesta a recepção das tensões modais, actanciais e figurativas pelo próprio corpo”

(FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p.318)

Com o objetivo de analisar as reportagens sob a perspectiva da semiótica das

paixões, nas próximas seções vamos tratar dos códigos figurativos das oposições

semânticas fundamentais do percurso gerativo de sentido (seção 2.3), também os

códigos modais e os tipos passionais mais recorrentes (seção 2.4) e, por fim, os

códigos rítmicos e os esquemas passionais elementares presentes nas narrativas

(seção 2.5), em que a Revista Veja retrata e representa as manifestações de junho de

2013.

2.3. Análise nas reportagens dos códigos figurativos das oposições semânticas

fundamentais

Na abordagem de uma semiótica discursiva, os valores presentes e

subjacentes a um determinado universo figurativo provocam na relação entre os

sujeitos e os objetos, pressentimentos, impressões e sensações das mais diversas

que podem gerar prazer ou dor. Neste sentido, Fontanille (2001, p. 191) observa que:

o código figurativo de um efeito passional poderia ser definido como a cena típica dessa paixão... Mas geralmente, a paixão se expressa com figuras extraídas dessas cenas típicas e as utiliza logo como catacresis: sucede

assim com os códigos metonímicos... sinestésicos.

Nesta percepção dos valores, há que considerar fundamentalmente o papel

dos sentidos, resultantes do sistema perceptual humano, mas também a importância

do tempo e do espaço no estudo das paixões. Mais ainda, para Fontanille:

48

Causa ou efeito, não se sabe, mas tem que reconhecer que as paixões estão inextricavelmente ligadas ao imaginário dos elementos naturais: desde a época pré-socrática, a água, o fogo, o mineral, o bosque, o ar e o vento são elementos essenciais da física qualitativa das paixões; o amor, a cólera, a crueldade, a insensibilidade, a inquietude ou a agitação encontram ali – melhor que em uma ilustração metafórica – uma inscrição nas coisas mesmas. Por isso é que a aproximação antropológica às paixões é uma aproximação figurativa: nos mitos estudados por Levi-Strauss, os ciúmes ou o orgulho não são entidades psicológicas ou modais, mas aves, mamíferos ou elementos naturais (Fontanille, 2001, p.190-191).

Nesta linha de raciocínio, Barros (2001, p.12) argumenta que “as leituras

abstratas temáticas estão concretizadas em diferentes investimentos figurativos,

todos eles caracterizados pela oposição de traços sensoriais, espaciais e temporais

[...]”. Com esta breve exposição teórica, procuramos identificar e analisar estes traços

das oposições semânticas fundamentais presentes nas reportagens. Na edição de 19

de junho, percebe-se que a revista Veja inicia sua narrativa para relatar o evento das

manifestações de junho de 2013, construindo suas representações do movimento e

dos protestos:

REVISTA 1: Limitação da Mobilidade Urbana vs Possibilidade de locomoção

(aumento do preço das tarifas) (redução no preço das passagens)

Traço Limitação da locomoção Possibilidade de locomoção

Espacial

Aumento de “20 centavos” no

preço das passagens;

Empresas de ônibus; Ordem;

Jovens estudando, indo ao

shopping;

Redução no preço das

passagens; Movimento Passe

Livre;

Protestos, manifestações;

Jovens nas ruas protestando;

Temporal Políticos e policiais velhos Jovens

Tátil

Relação amistosa e obediência

civil

relação conflituosa,

enfrentamento, batalhas

campais, Agressividade

Olfativo MPL se orgulha de não ter

lideranças para insuflar os

protestos

Oxigênio, insufladores do

movimento,

Auditivo Calma, serenidade e reflexão Fúria difusa, rebeldia sem razão

49

Visual

Nenhum combustível para

incendiar

Incêndio, fagulha, labaredas de

alturas inéditas, inflame, rastros

de fogo

Gustativo

Silêncio dos representantes

oficiais

Jovem “Porta-voz” ou

representante do povo

Auditivo “Tédio burguês” calma “Protesto violento” barulho

Tátil e Sexual “Controle dos instintos” “Vazão as pressões hormonais”

Os traços espaciais, olfativos e visuais, em negrito no quadro acima,

representam os principais focos nesta edição da revista intitulada “A revolta do

jovens”, manifestando-se sob a forma de nomeação de um grupo “Movimento Passe

Livre”, defensor da gratuidade das passagens de ônibus em São Paulo, como

desencadeador de um estopim que culmina na revolta e nos protestos dos jovens.

Segue abaixo um excerto em que apresentamos estes traços:

Para fabricar um incêndio bastam uma fagulha e um pouco de oxigênio. No

caso da série de manifestações iniciadas em São Paulo e no Rio, a faísca foi

o aumento da passagem de ônibus. Já o combustível era composto de bem

mais do que um elemento. Na semana passada, essa combinação produziu

labaredas de alturas inéditas.’’ (REVISTA 1, p.86)

Foi a quarta de uma série de manifestações organizadas por um grupo

nanico criado por estudantes de São Paulo sob inspiração de um movimento

nascido em Florianópolis. O Movimento Passe Livre (MPL) defende a

estatização das empresas de transporte e a gratuidade das passagens. Em

São Paulo, ele não tem sede, nem chega a reunir uma centena de

integrantes. Vangloria-se também de não ter líderes. Tem, claro, mas prefere

chamá-los de ‘porta-vozes’’. (REVISTA 1, p.86)

Continuando esta narrativa dos movimentos de rua e estabelecendo um jogo

discursivo entre duas representações do Brasil, temos: “O país do futebol” e o “O país

da cidadania”, a revista dedica esta edição de 26 de junho de 2013 ao relato dos fatos

ocorridos:

REVISTA 2: Investimento na Copa vs Investimento em demandas sociais antigas

Mazelas sociais antigas vs Mudanças no Brasil

50

Traço Investimento na Copa Investimento em demandas sociais

antigas

Espacial

Copa (“gastos públicos com

belos estádios”);

Brasil dos cartolas (Estádio

Castelão-Fortaleza);

Construção de Estádios

(Elefantes brancos)

Saúde (“hospitais padrão FIFA”);

Brasil real do povo (Favela do Mata

Galinha);

Infraestrutura precária do país

(Aeroportos, obras de mobilidade urbana)

Temporal

“PT acreditava na paixão

exarcebada pelas Copas”

“Copas: símbolos odiados do gasto

público de péssima qualidade, do desvio

de dinheiro e do abuso de poder”

Visual

Copa (“gastos públicos com

belos estádios”);

Brasil dos cartolas (Estádio

Castelão-Fortaleza);

Construção de Estádios

(Elefantes brancos)

Saúde (“hospitais padrão FIFA”);

Brasil real do povo (Favela do Mata

Galinha);

Infraestrutura precária do país

(Aeroportos, obras de mobilidade urbana)

Na reportagem “Um chute na copa” da edição autodenominada histórica de 26

de junho de 2013, intitulada “Os sete dias que mudaram o Brasil”, percebe-se os traços

semânticos principais observados no quadro acima - espacial e visual – em que houve

uma atenção da revista Veja a elementos visuais e espaciais como os Estádios,

hospitais, favelas e infraestrutura, como nos seguintes excertos:

Queremos hospitais padrão FIFA”, “Dilma, me chama de Copa e investe em

mim? Assinado Educação.” (REVISTA 2, p.80)

Uma caminhada dos barracos da favela do Mata Galinha, na beira da

avenida que dá acesso ao estádio, até o encontro com sua espetacular

fachada de metal aparente é uma primeira pista da discrepância entre o

Brasil real e o dos cartolas.” (REVISTA 2, p. 80)

Ficaram bonitos, mas muitos estão fadados a virar elefantes brancos. A

infraestrutura de acesso é pouca e precária. Os aeroportos serão apenas

remendados”. (REVISTA 2, p. 80)

Levando-se em consideração o sentido global desta edição histórica que

concentra o ápice da narrativa promovida pela revista, temos:

51

Traço Mazelas sociais antigas Mudanças no Brasil

Espacial

“A presidente acuada”;

“Ineficiência do Governo

(parado)”; ordem

“Bem acima de 1 milhão de pessoas

jorraram Brasil afora”;

“turbamulta subindo a frágil passarela do

Itamaraty”;

“Mais mobilizadora”; caos

Temporal

“Décadas”, “Diretas Já e

Fora Collor”

“Os sete dias que mudaram o Brasil”;

“1 semana”; “Histórica noite de quinta-

feira”

Olfativo “Inebriante”

Auditivo

Silêncio das autoridades Fúria concentrada, Revolta, protestos,

manifestações diversas

Visual

“Empalideceram”;

“instituições em estado de

esturpor”; “Os políticos

desaparecidos”;

“Dilma perplexa”; “

Ordem

“Fúria”; “Revolta, assustadora e

apaixonante”;

Caos

O traço temporal é crucial na compreensão das representações desta edição,

autodenominada histórica, cujo título indica seu papel predominante: “Os sete dias

que mudaram o Brasil”. Vejamos também o seguinte excerto:

Podem-se passar décadas sem que nada mude, mas uma semana pode

concentrar décadas de mudança. Foi o que se viu no Brasil na semana

passada. Quem acha que não mudou em alguma coisa e que o Brasil não

mudou passou os últimos dias isolados em uma bolha hermética.” (REVISTA

2, p. 63)

Há que considerar também que os traços semânticos espaciais, visuais e

auditivos, por sua vez, comprovam a tese do enfoque da revista ao grande volume e

à concentração das massas em um curto período de tempo, culminando numa

mudança radical do sujeito coletivo “Brasil”. Percebe-se também o posicionamento

deste veículo de grande circulação social frente ao governo petista.

52

Quando se espalhou por São Paulo um protesto contra o aumento de 20

centavos na passagem de ônibus, todo mundo sentiu que a coisa era bem

maior. Tão maior, mais inebriante, mais mobilizadora, mais assustadora

e mais apaixonante que, em uma semana, multidões bem acima de 1

milhão de pessoas jorraram Brasil afora na histórica noite de quinta-

feira. Todos os parâmetros comparativos anteriores, como Diretas-Já e

Fora Collor, empalideceram diante do abismo aberto entre os

representantes dos poderes, de um lado, e o poder dos que se sentem

mal representados, de outro. A presidente acuada, as instituições em

estado de esturpor, os políticos desaparecidos e a turbamulta subindo

a frágil passarela do Palácio Itamaraty criaram outro sentimento

estarrecedor: é muito fácil quebrar o vidro que separa a ordem do caos”

(REVISTA 2, p. 61).

Em seguida, na revista publicada em 03 de julho de 2013, com a reportagem

de capa “Então é no grito”, pode-se perceber o enfoque especial da revista Veja no

traço semântico “auditivo”, uma vez que a revista estabelece o “Grito” dos

manifestantes como elemento gerador da suposta mudança de comportamento dos

políticos brasileiros pela pressão popular e mesmo dos três poderes como um todo.

REVISTA 3: “Grito” dos manifestantes (poder cidadão) vs.

Atenção dos políticos dos 3 poderes (Poder oficial)

Traço “Grito” dos manifestantes Atenção dos políticos e dos três

poderes, Executivo, Legislativo e

Judiciário

Espacial

Correram para atender

(movimento);

Súbito despertar;

Movimento (governos,

congressistas e magistrados

puseram-se a trabalhar como

nunca)

Acomodação das autoridades;

Dormindo;

Autoridades nunca trabalham para o

povo

“anseios antigos dos

brasileiros foram atendidos

com uma disposição e

celeridade jamais vistas”;

Desatenção perene,

Indisposição e lentidão por parte das

autoridades;

53

Temporal “O Congresso pega no tranco”

(metáfora carro que funciona

repentinamente);

“Em poucos dias”

“O Congresso afogado” (metáfora do

carro que não funciona);

“Como nunca” (nunca funciona)

Auditivo

O “grito” dos manifestantes

acordou os três poderes; As

vozes da erupção

Silêncio e acomodação das

autoridades

Visual Concentrados (manifestantes) Aturdidos (governos, congressistas e

magistrados)

O traço auditivo manifesta-se explicitamente não apenas na capa, mas também

no título desta edição, “Então é no grito? Os governos e o Congresso correram para

atender os manifestantes. Isso mostra que a pressão popular funciona. Mas as ruas

não podem substituir as instituições.” No lead, e em outros excertos da reportagem,

como por exemplo:

Em poucos dias, os protestos conseguiram a façanha inédita de fazer o

Congresso aprovar projetos contra a corrupção, os governos reduzirem

tarifas e o Judiciário mandar um político para a cadeia. O grito dos

manifestantes acordou os três poderes.” (REVISTA, p.54).

Desta vez, eles ouviram. [...] Terça-feira foi o dia de os congressistas se

esforçarem para mostrar que têm ouvidos.” E também, no exemplo de uma

pesquisa nomeada: “As vozes da erupção” (REVISTA, p.56)

Por fim, na ampla cobertura dada às manifestações, a edição da Veja,

publicada em 21 de agosto de 2013, concentra sua narrativa na história de um

determinado grupo, nomeando-os como os “Black Blocs” ou pejorativamente “Bloco

do quebra-quebra”. Esta edição constrói uma narrativa de embates entre este grupo

e os governos, a própria Copa e a grande imprensa, e narra também seus embates

com as instituições capitalistas. A representação destes grupos concentra-se na sua

ideologia, atribuindo-lhe o caráter “anarquista” e uma “estética de violência”, que teve

como resultado, para a revista, na diminuição, e mesmo na perda de força e de

credibilidade das manifestações e de seus protestos.

REVISTA 4: Radicais Black Blocs (anarquia) vs Governo e Instituições

(Imprensa, Bancos, capitalismo) e Copa.

54

Traço

Radicais Black Blocs

(anarquia)

Governo e instituições (imprensa,

bancos, capitalismo) e Copa

Espacial

Pequeno grupo uniforme e

organizado que leva as multidões

a irracionalidade, Arruaça,

baderna, bloco do quebra-

quebra, vandalismo, pichação

Ordem e respeito pela propriedade

privada e patrimônio público

Tátil

Vandalismo, violência

Agressividade, relação

conflituosa com a polícia,

batalhas campais,

Policiais defendem o patrimônio

público e privado

Auditivo

“emitem em coro e de forma

ritmada grunhidos semelhantes a

um grito tribal” para desnortear a

polícia

Policiais protegem as multidões

atiçadas pelo grupo

Visual

Caos, anarquia, Arruaça,

Baderna,

Vandalismo, Pichação, grande

massa sai das ruas com medo da

violência dos radicais

Ordem, Estado democrático de

Direito e republicano, cidades limpas

e controladas

No contexto geral, percebe-se a predominância de traços espaciais, táteis,

auditivos e visuais que se manifestam-se nas seguintes materialidades linguísticas:

No lead da reportagem - “O BLOCO DO QUEBRA-QUEBRA”:

Com slogans anarquistas na cabeça e coquetéis molotov na mão, os

black blocs se espalham pelo Brasil e transformam protestos em arruaça.

Jovens da periferia, punks e até universitárias de tênis Farm compõem o

bando (REVISTA 4, p.73)

No corpo do texto:

[...] De braços cruzados, movem-se como uma massa uniforme em

direção às barreiras de segurança. Quando a polícia se aproxima, emitem

em coro e de forma ritmada grunhidos semelhantes a um grupo tribal.

Nesse momento, alguns membros lançam morteiros, coquetéis molotov e

55

pedras com estilingues. O objetivo é provocar a polícia. Quando ela reage,

eles se dividem: uma turma parte para cima e a outra foge para pichar

muros, atear fogo em latões de lixo e destruir estabelecimentos,

preferencialmente bancos, concessionárias de carros, lanchonetes de

cadeia e tudo que considerem ‘símbolos do capitalismo’. Placas de

sinalização viram armas e orelhões, escudos” (REVISTA 4, p.78)

Agora, passemos aos tipos passionais mais predominantes no discurso

construído pela revista e às modalidades que utiliza na fabricação de efeitos

passionais para persuadir ou sensibilizar os seus leitores ou interlocutores sobre sua

representação do acontecimento das manifestações.

2.4. Análise nas reportagens dos códigos modais e dos tipos passionais

De acordo com Fontanille (2001), para produzir efeitos passionais, as

modalidades devem ser tratadas como valores modais, submetidos a tensões da

intensidade e da extensão modais. Para constituir um papel passional é necessário

que as mesmas estejam associadas entre si, de dois em dois. Os linguistas e os

filósofos chamam este “contágio” passional de empatia. Afirmar a ocorrência de

empatia ou contágio passional em uma interação significa dizer que uma expressão

passional desencadeia outra e que, por sua vez, suscitará outra. Ou seja, uma

identidade passional e modal é definida por um princípio afetivo em que uma paixão

provoca outra, e cada uma depende da identidade modal do actante que está sofrendo

(FONTANILLE, 2001, p.187).

De acordo com Barros (2001), as paixões devem ser entendidas como efeitos

de sentido de qualificações modais que modificam o sujeito do estado. Para ela, a

semiótica coloca as paixões dentro do percurso gerativo de sentido da seguinte forma:

Dois caminhos apresentam-se para a colocação do problema: o primeiro estabelece a relação entre a organização modal narrativo-discursiva e as categorias semânticas da estrutura fundamental que estão por detrás das paixões, ou seja, preocupa-se com a relação vertical e de conversão entre dois níveis do percurso gerativo, para explicitar, de uma certa forma, a ‘origem’ gerativa das paixões; o segundo tenta determinar horizontalmente, as relações sintagmáticas modais que caracterizam as paixões, a partir de configurações discursivas, e, também, suas relações paradigmáticas, que constituem ‘sistemas de paixões’.’’ (BARROS, 2001, p. 61)

56

Ela considera que a descrição das paixões se realiza em termos de relações

modais e de suas combinações sintagmáticas, ou seja, na prática, tenta-se dar às

paixões-lexemas e suas expressões, definições sintáticas. Para explicar as paixões é

necessário relacionar os “estados de alma” à existência modal do sujeito, em outras

palavras, o sujeito segue um percurso, entendido como uma sucessão de estados

passionais, tensos-disfóricos ou relaxados-eufóricos. A autora distingue:

as paixões simples ou paixões de objetos, resultantes de um arranjo modal da relação sujeito-objeto, de paixões complexas, em que várias organizações de modalidades constituem, na instância do discurso, uma configuração patêmica e desenvolvem percursos passionais complexos (BARROS, 2001, p. 62).

As paixões simples, segundo ela, decorrem da modalização pelo /querer-ser/”.

Ela estabelece também dois critérios para as paixões simples, de acordo com os

quais:

[...] a maior ou menor intensidade do querer — desejo ardente, sôfrego,

veemente, excessivo, violento, irreprimível — e os tipos de valores desejados

—pragmático descritivo na cobiça, na cupidez e na avareza, descritivo e

modal na ambição, não marcado na inveja ou no anseio, cognitivo na

curiosidade (BARROS, p.63, 2001).

No entanto, segundo Barros, numa alusão a Greimas (1981b), as paixões

complexas têm um estado inicial denominado de espera. Esta espera pode ser

simples e fiduciária, que se diferenciam da seguinte maneira:

[...] Na espera simples o sujeito deseja estar em conjunção ou em disjunção com um objeto-valor, sem, no entanto, nada fazer para isso. Trata-se de uma paixão de “ser acionado”, distinta das paixões “de ação”, como a avareza, por exemplo (GREIMAS, 1981b, p. 11). Na espera, o sujeito do estado deseja que a conjunção se realize, mas não quer ser o sujeito do fazer responsável pela transformação.” [...] “Na espera fiduciária, o sujeito do estado mantém com o sujeito do fazer uma relação fundamentada na confiança. O sujeito do estado pensa poder contar com o sujeito do fazer para realizar suas esperanças ou direitos, ou seja, atribui ao sujeito do fazer um /dever-fazer/. Não se trata, na maior parte das vezes, de contrato verdadeiro e sim de contrato de confiança, um pseudocontrato ou contrato imaginário. Dessa forma, o sujeito do fazer não se sente obrigado a fazer, já que sua modalização deôntica não passa de produto da imaginação do sujeito do estado.” (BARROS, 2001, p. 64)

Barros (2001, p.64) concebe este contrato imaginário ou fiduciário como um

simulacro. Ela atribui à Greimas este conceito, que define:

57

Os simulacros são objetos imaginários, que não têm fundamento intersubjetivo, mas, mesmo assim, determinam as relações intersubjetivas. O sujeito do estado estabelece uma relação fiduciária — de confiança, de /crer/ — com o simulacro que constrói.

A autora continua sua reflexão sobre as paixões complexas e a espera

abordando sua contrapartida que são a satisfação e a confiança ou a insatisfação e a

decepção, originadas da conjunção ou da disjunção do sujeito com o objeto-valor

desejado e da conservação ou da perda da confiança investida no contrato simulado.

A satisfação e a insatisfação estão ligadas aos efeitos de sentido ou estados d’alma

de bem-estar ou de mal-estar, resultantes da relação com o objeto-valor, enquanto a

confiança e a decepção são empregadas para os casos de manutenção ou de ruptura

das relações fiduciárias entre sujeitos.

De acordo com Barros (2001), a espera, para ela, é um estado tenso-disfórico

de disjunção; a satisfação e a confiança, estados relaxados e eufóricos de conjunção;

a insatisfação e a decepção, estados intensos e não-eufóricos de disjunção. A

esperança, por sua vez, é um dos efeitos de sentido da espera relaxada; a

insegurança, que gera a aflição, decorre da espera tensa.

Aspectualmente, segundo Barros (2001, p.65), a insatisfação e a decepção

podem ser resultados da extensão sobre os novos efeitos passionais: a mágoa ou a

resignação por exemplo, podem derivar de uma insatisfação ou de uma decepção que

se estendem no tempo fazendo perdurar estas sensações. Outra possibilidade,

segundo a autora, diz respeito ao fato de insatisfação e a decepção resultarem em um

sentimento de falta, definido pelo conflito em se ter vontade de uma existência que

não se tem e acreditar que não possui a existência desejada e a consciência de que

não se tem o que deseja, um conflito entre vontade (QUERER), conhecimento

(SABER NÃO-SER) e crença (CRER NÃO-SER) e, conclui Barros, “característico da

crise de confiança” (p.65). A interrupção destes estados só ocorrem com a

possibilidade de um programa que dê condições para a liquidação da falta, desse

modo, insatisfação e decepção são estados que se colocam entre um estado relaxado

de crença, pois enquanto se acredita ainda se pode ficar satisfeito ou ter esperança

de satisfazer-se, e o estado final de conflito, em uma situação tensa de falta, não

conseguir ser o que se deseja ou não acreditar que conseguiria êxito em seu

programa.

58

Nestes termos, pode-se imaginar os tipos de falta decorrentes, como exposto

acima, pode a falta de um objeto a que se atribui valor, desejo de ter ou ser, e falta de

crença na capacidade de realizar o desejo, e a falta de confiança, que mina todo o

processo de conquista. Na busca de resolver esta falta pode-se ou suprir a falta do

objeto optando por outra forma, por exemplo, ou resolver a crise de confiança,

procurando as condições que possibilite a sujeito acreditar na conquista do objeto

desejado. Estes movimentos, por sua vez, geram novos efeitos passionais, o que

insere o sujeito em uma rede de percursos passionais de sentido, para liquidar sempre

com o sentimento de falta. Barros (2001, p. 65) aponta para três grupos de

configurações passionais complexas relacionados ao estado inicial de espera, grupos

a, b, c, respectivamente:

O grupo a engloba paixões, lexicalizadas, que não se resolvem na falta a ser liquidada, mas se prolongam temporalmente. Seus três subtipos correspondem: um, aos efeitos passionais da insatisfação e da decepção — amargura, azedume, acrimônia, desagrado, amargor, desprazer; outro, aos da decepção apenas — desilusão, decepção, ressentimento, desengano, desapontamento; e o último, aos da insatisfação sozinha —frustração, tristeza. O grupo b contém os efeitos passionais de satisfação e confiança. A subdivisão no grupo b faz-se entre as paixões de confiança — crença, esperança — e da satisfação — alegria, felicidade. Não se descobriram, no português, paixões decorrentes, simultaneamente, da satisfação e da confiança. Trata-se de problema de lexicalização, pois, do ponto de vista da estrutura das paixões, nada impede o surgimento de paixões em que se combinem a confiança e a satisfação. O grupo c – a insatisfação e a decepção que geram um programa narrativo de liquidação da falta caracterizam, por exemplo, paixões de cólera ou rancor.

As paixões complexas modalmente apresentam uma espécie de sanção por

parte de sujeitos e anti-sujeitos, conforme Barros (2001, p.65): “O sujeito que desperta

a hostilidade do sujeito do estado pode, segundo Greimas, no ensaio citado, ser

entendido como destinador ou como anti-sujeito.” Quanto a moralidade das paixões

complexas, ela retoma as considerações de Greimas: “A falta de confiança faz-se

acompanhar de malevolência, assim como a confiança é seguida de benevolência

(GREIMAS, 1981b, p. 18). A malevolência e a benevolência interpretam, para

Greimas, a hostilidade e a atração de paixões definidas pelo /querer-fazer/, bem ou

mal, a alguém.

Partindo-se para uma análise passional modal presentes nas reportagens,

constata-se que a Revista Veja - Sujeito locutor-destinador-manipulador passional -

estabelece um contrato fiduciário ou “imaginário” com seus leitores destinatários, na

59

medida em que elege em cada reportagem das 4 revistas, Sujeitos manipulados

passionalmente por um Anti-Sujeito. A paixão complexa predominante no percurso

passional dos sujeitos pode ser descrita pelos seguintes paixões-lexemas: REVOLTA,

FÚRIA, ÓDIO OU CÓLERA.

Na revista 1, de 19 de junho de 2013, nota-se os sujeitos “jovens

manifestantes” e o “Movimento Passe Livre (MPL)” e os anti-sujeitos – “empresas de

ônibus” e “governos”. A paixão de “revolta” configura-se como resultado de uma ação

dos jovens e do MPL pela modalidade do /querer-ser/, compreende-se aqui o desejo

de ser/estar em condições de mobilidade, o que implica liberdade de ir e vir e, portanto,

na base está (querer-ser livre). A revista utiliza este valor modal passional de “revolta”

dos sujeitos insatisfeitos pelo aumento das tarifas e estabelece uma crise de confiança

e quebra do contrato imaginário entre a população, as empresas e governos.

Há que se pensar que a revolta, enquanto sentimento, deriva do desejo não

satisfeito diante da crença de poder saciar este desejo, pois há o impedimento do anti-

sujeito, na medida em que entram em conflito dois programas narrativos distintos para

realização dos desejos conflituosos: aquele dos jovens, o desejo de ir e vir, aquele

das empresas, o desejo de lucro, e aquele do governo, o desejo de administrar os

conflitos, negociando valores com as empresas, mas também obter mais verbas com

impostos, portanto, não pode haver na negociação a perda de nenhum dos lados. O

sentimento de que se perdeu, no caso dos jovens, diante das demandas sociais, gera

o sentimento de falta com um efeito passional de injustiça, por ter sido negado a eles

um direito, produzindo um estado final de revolta.

Em seguida, na revista 2, de 26 de junho de 2013, aparecem os sujeitos

temporal e coletivo “7 dias” e o “Brasil” (manifestantes heterogêneos) num embate

passional frente ao anti-sujeito Governo. Percebe-se que a revista constrói um objeto

passional que podemos denominar de “Fúria”, concentrada e de alta intensidade.

Nota-se o recurso modal do /poder-fazer/ dos sujeitos frente aos anti-sujeitos, no qual

poderia ser considerada uma “emoção” explosiva heterogênea, narrada por um olhar

de 3ª pessoa que observa os fatos e sutilmente mostra um anti-sujeito estático e

perplexo frente aos sujeitos. Pode-se compreender que a fúria deriva da revolta pelo

efeito passional da percepção da injustiça, o conflito em querer-ser-livre, fundado no

direito de ir e vir, leva ao sentimento de falta diante do impedimento da mobilidade

social, provocada por ações do anti-sujeito, no caso, as negociações entre empresas

e governos com relação ao aumento das passagens.

60

Diante da percepção de que seu direito foi negado e de que não se obteve

apoio do sujeito governo, responsável pela concessão pública do uso dos transportes

coletivos, produz-se a revolta que, o que leva os sujeitos revoltados a agirem, seu

programa narrativo consiste em ir às ruas e manifestar-se. Uma revolta que se perdura

no tempo, devido a demora das ações surtirem efeito, uma vez que as manifestações

cresceram, novas demandas surgem, novas modalidades do querer vão se

acumulando na agenda e no programa narrativo do sujeito manifestante. Com novas

demandas, com insatisfação acumulada, com novas revoltas e com sujeitos

revoltados diferentes e por desejos distintos (vozes heterogêneas, desejos

heterogêneos, demandas retidas), a revolta leva à fúria diante do movimento dos

manifestantes (sujeitos) e a inércia do governo (anti-sujeito).

Na revista 3, de 03 de junho de 2013, vemos os sujeitos – “Grito”

(manifestantes) supostamente atendidos pelo anti-sujeito – “políticos e membros dos

3 poderes”. Este “grito”, do ponto de vista do sujeito manifestante, caracteriza os

efeitos passionais de satisfação e confiança, gerados pelas paixões de confiança – a

crença e a confiança – por parte dos sujeitos no qual seus anseios são atendidos com

rapidez. A modalidade operante aqui é o do /crer-ser/, de modo que o acredita na sua

capacidade de fazer nas condições em que pode fazer, no caso, as manifestações.

Se considerarmos o locutor-manipulador- a revista Veja- que visa construir uma

representação do movimento, mas também uma representação do governo, há que

considerar que a expressão “Então, é no grito”, situa o desconforto do governo em

tratar das demandas de rua, seja por um não querer-fazer, seja por um não saber-

fazer.

O valor modal que se pode dar a esta expressão atenta para a segunda opção,

com “Então, é no grito”, o locutor-manipulador cumpre um percurso de sentido

específico de descaracterizar as ações do governo e acentuar o despreparo para

tratar das demandas sociais reprimidas. O observador coloca-se em um ponto de vista

em que representa o anti-sujeito, os três poderes, agindo por medo, por estarem

acuados. Segue, portanto, também o lugar do medo em que o locutor-manipulador se

coloca ao afirmar a importância das manifestações, mas assegurar que o poder

popular das manifestações não podem substituir o poder das instituições.

Deste modo, parece-nos que a revista Veja constrói uma representação dos

manifestantes em que predominam mais “emoções” do “que paixões, inclinações,

sentimentos ou temperamentos” que sejam eficazes (podem-fazer) com que

61

desinstale ao anti-sujeito governo. Do mesmo modo, o locutor-manipulador constrói a

mesma representação dos três poderes, tendo em vista que, como dissemos acima,

suas ações resultam do medo, por estarem acuados. Do ponto de vista do leitor,

dependendo do lugar em que se põe para ouvir a voz deste locutor, também podemos

dizer que sua fala se produz a partir desse mesmo medo, de receio de que a situação

saia do controle e se substituam as instituições pelos movimentos sociais que

conseguiriam ser atendidos pelo grito e não por ações definidas pela ordem política.

Na revista 4, de 21 de agosto de 2013, percebe-se mais o enfoque quase que

total no Sujeito – ‘manifestantes radicais black blocs’, do que no anti-sujeitos –

‘governo e outras instituições’. Como observado anteriormente, o sujeito-locutor-

manipulador desta narrativa busca construir uma representação dos manifestantes

como um grupo organizado e específico. Se nas primeiras edições, representam-se

os representantes pela voz heterogênea, no sentido de que não havia nenhuma pauta,

o que significa dizer, nenhum programa narrativo, na perspectiva da semiótica textual.

Sem pauta, sem organização, as ações não surtem efeito, gerando a insatisfação ou

a decepção, como vimos, o querer ser livre, não acredita na possibilidade de ser livre

e reconhece a fragilidade de seu poder, produzindo em si a crise de confiança. Desta

crise, surge novos efeitos passionais e a revista constrói esta representação dos

manifestantes, procurando construir o sentido de que a manifestação está saindo do

controle e representa uma causa para a fúria que surge, situando-as em grupos

organizados e com objetivos definidos.

Segue a narrativa da Veja iniciando um novo percurso de sentido e um novo

percurso passional de sentido colocando como sujeito os radicais Black Blocs, o que

permite redefinir seu programa narrativo. Assim, a revista narra o ápice da emoção

sem razão: a “Fúria”, que cega os sujeitos e abrevia os protestos. A modalidade

operante nesta última etapa dos protestos é aquela do /não-poder-fazer/, visto que foi

quebrado o contrato de confiança que havia, representado discursivamente como

manifestações pacíficas e nestas novas condições narradas não existe mais valor

fiduciário que deveria estar em jogo entre sujeito e anti-sujeito, pois se as

manifestações podem ser livres e, representações atribuídas à democracia; a

violência e descontrole nas manifestações são representações vinculadas à anarquia

e precisam de um novo sujeito com um novo programa narrativo, nesse caso, o novo

agente são os black blocs.

62

2.5. Análise nas reportagens dos códigos rítmicos e os Estilos afetivos

predominantes

Fontanille (2001) afirma que os códigos rítmicos se definem por efeitos de um

ato intencional no qual um programa regulariza e impõe a percepção de contrates,

como o medo, por exemplo, há um contraste entre ruído e silêncio. Onde há ritmo,

existe virtualmente sentido. Na perspectiva passional, o ritmo é “[...] o perfil das

tensões sentidas pelo próprio corpo: ritmo lento, agitado, sincopado [...] que faz lenta,

agita ou precipita a percepção proprioceptiva” (FONTANILLE, 2001, p.188)

Para o autor, duas categorias determinam estes códigos: a intensidade e

quantidade passionais. A intensidade afetiva é indissociável da axiologia: disforia vs

euforia. É difícil dissociar a expressão linguística da intensidade da expressão da

afetividade. Um discurso verbal, visual ou gestual apresenta um perfil de intensidade

afetiva que é a atualização de um valor passional. A intensidade passional do discurso

possui uma correspondência fenomenológica que seria a proprioceptividade, a

sensibilidade do próprio corpo que serve de mediador entre os planos da semiose.

Fontanille chama atenção também para correspondência psicológica da intensidade

passional, mais especificamente, as pulsões, a libido, todas as formas de energia

psíquica que estejam relacionada em algum grau com a intensidade. (FONTANILLE,

2001, p. 180)

O autor cita como exemplo o caso da impulsividade, uma expressão bastante

conhecida de intensidade passional, cuja reação imediata e automática diante de um

objeto-valor do sujeito seria sua identidade modal fundada no querer e no poder. O

sujeito deseja e pode ter aquilo que deseja e não reflete sobre aquisição que esta

identidade modal lhe possibilita. O impulsivo, segundo ele, caracteriza-se como um

suplemento de intensidade e de vivacidade, que permite de suprir qualquer falta e, por

isso, há ausência de reflexão, tendo em vista que ampliar o domínio do desejo facilita

a satisfação, o que pode gerar uma satisfação imediata. (FONTANILLE, 2001, p.178)

A quantidade passional, conforme Fontanille (2001, p.180), concerne ao

conjunto dos processos passionais e mais precisamente ao sujeito quando se trata

para ele de concentrar-se ou recobrar-se e ao objeto quando se trata do seu número

e sua importância. Considera-se o espaço e o tempo. Considere-se o caso da

obsessão, por exemplo, onde há uma frequência de atitude afetiva do agente em

direção ao seu objeto de desejo de forma a possibilitar a sua satisfação. A quantidade

63

passional recai tanto sobre as ações afetivas do sujeito, como sobre o tempo, na

medida em que a recorrência das ações repercute no tempo como uma insistência, o

que gera uma saturação que ocupa o tempo do sujeito de modo que não haja espaço

para nenhuma outra atitude que não seja a afetiva e nenhuma ação que não vise o

outro, como objeto do desejo. A quantidade afeta, portanto, o sujeito, o objeto e o

desenrolar espaço-temporal do recorrido passional, intervindo em seu programa

narrativo e reforçando à exaustão o mesmo percurso passional de sentido. A

nomenclatura das paixões, conforme o autor, garante os grandes tipos de estados

afetivos segundo sua extensão: a emoção (instantânea), a paixão (durável), a

inclinação e o sentimento (permanentes).

Fontanille (2001, p.180) concebe também a paixão como um princípio de

coerência (incoerência) interna do sujeito: ela dissocia ou mobiliza, seleciona uma

tarefa ou suspende os outros, reúne as tarefas em torno de uma só. Em suma, rege

as relações entre suas partes constituintes. O amor “cego”, por exemplo, não é porque

o sujeito já não vê seu objeto, mas ao contrário, focaliza certos aspectos e oculta

outros, e porque toda sua atenção se dirige as “partes” selecionadas. Para o

estudioso, ao associar a intensidade e a extensão, nota-se que num percurso da

emoção ao sentimento, a extensão temporal aumenta e regulariza a intensidade.

Então, a obsessão não implicaria em diminuição da intensidade, ao contrário, a

duração mesma dela é uma indicação de sua gravidade, de sua potência afetiva.

Nos esquemas tensivos do discurso, conforme dito anteriormente nas

definições sobre as paixões, analisa-se os graus de intensidade e de quantidade.

Estabelecer uma racionalidade passional é, conforme o autor, conjugar gradientes de

intensidade e de extensão e fazer que delas surjam as tensões. Elas expressam

propriedades elementares da percepção. Todavia, na perspectiva da paixão, um

processo não é considerado do ponto de vista dos resultados, mas do peso de sua

presença, deste processo deixa de ser uma simples “transformação” para converter-

se em um acontecimento. Chega-se, então, aos Estilos Afetivos, no qual analisaremos

aqueles mais predominantes nas reportagens da revista.

Fontanille e Zilberberg (2001, p. 290) determinam que: “Um estilo afetivo se

caracteriza, pois, pela fase que elege no dispositivo, e pela decisão, implícita ou

explícita, de manter-se no regime afetivo inicial, ou então de deixar os atratores

operarem a próxima desconcentração”. Para eles:

64

Um estilo afetivo apresentaria dois componentes. Em primeiro lugar, é identificável à preponderância atribuída a uma ou outra fase afetiva: o sujeito poderá ser considerado ‘sensível’ se se atém à emoção, ‘atraído’ se sente uma inclinação, ‘passional’ se cultiva a paixão, ‘terno’ se atinge o ‘sentimento’. Em segundo lugar, o estilo afetivo comporta uma decisão implícita, relativa à transitividade das fases: por exemplo, é frequente que o sujeito ‘passional’ recuse transformar-se em sujeito ‘terno’. E para isso, se sua convicção é forte, isto é, se seu coeficiente fiduciário pessoal é forte, não hesitará em sacrificar o objeto que busca, a fim de permanecer na fase afetiva que escolheu para sua existência. (FONTANILLE; ZIBERBERG, 2001, p. 292)

Na revista 1, Edição 2326, do ponto de vista passional, verifica-se que o locutor-

manipulador estabelece o início das tensões disfóricas entre os sujeitos “Movimento

Passe-livre e jovens” e os anti-sujeitos “Governo e empresas de ônibus”. Estas

tensões representadas pela paixão-lexema ‘revolta’ dos sujeitos começam num ritmo

abrupto, agitado e desconcentrado (em comparação com a Edição histórica), onde

nota-se que a revista as captam cogitando-lhe um sentido específico de acordo com

seus interesses:

Para fabricar um incêndio bastam uma fagulha e um pouco de oxigênio. No caso da série de manifestações iniciadas em São Paulo e no Rio, a faísca foi o aumento da passagem de ônibus. Já o combustível era composto de bem mais do que um elemento. Na semana passada, essa combinação produziu labaredas de alturas inéditas. (REVISTA 1, p.86)

A revista especula que esta ‘revolta’ ganha intensidade conforme trecho

anterior, porém vai se descomprimindo e a sua extensão diminuindo:

Há uma grande chance de que boa parte da rapaziada que, na semana passada, foi às ruas esteja apenas dando vazão às pressões hormonais pelo exercício passageiro do socialismo revolucionário. (REVISTA 1, p.86)

Na revista 2, da Edição 2327, toda dedicada a cobertura das manifestações e

denominada histórica, percebe-se que a revista estabelece uma tensão disfórica entre

os sujeitos ‘manifestantes em geral’ e seus objetos-valor e o “anti-sujeito governo”. Ou

seja, a revista transforma a ‘revolta’ dos manifestantes, antes abrupta,

desconcentrada, descomprimida e agitada - nos aspectos de intensidade e de

extensão, numa “fúria” de alta intensidade -concentrada, comprimida, constante,

explosiva e heterogênea- disparando-a contra o anti-sujeito governo, colocando-se

ela também como um sujeito-destinador ao lado dos sujeitos-manifestantes oprimidos.

65

Quando se espalhou por São Paulo um protesto contra o aumento de 20 centavos na passagem de ônibus, todo mundo sentiu que a coisa era bem maior. Tão maior, mais inebriante, mais mobilizadora, mais assustadora e mais apaixonante que, em uma semana, multidões bem acima de 1 milhão de pessoas jorraram Brasil afora na histórica noite de quinta-feira. Todos os parâmetros comparativos anteriores, como Diretas-Já e Fora Collor, empalideceram diante do abismo aberto entre os representantes dos poderes, de um lado, e o poder dos que se sentem mal representados, de outro. A presidente acuada, as instituições em estado de esturpor, os políticos desaparecidos e a turbamulta subindo a frágil passarela do Palácio Itamaraty criaram outro sentimento estarrecedor: é muito fácil quebrar o vidro que separa a ordem do caos” (REVISTA 2, p. 61).

Esta fúria é apresentada num período de “7 dias”, cujo os espaços e tempos

são concentrados em todo território nacional numa duratividade de uma semana,

conforme o título e slogan na sua capa: “Os sete dias que mudaram o Brasil”. Esta

fúria provoca uma suposta “mudança” súbita no sujeito coletivo “Brasil” que, segundo

ela, não acontecera na história recente da nação brasileira:

Podem-se passar décadas sem que nada mude, mas uma semana pode concentrar décadas de mudança. Foi o que se viu no Brasil na semana passada. Quem acha que não mudou em alguma coisa e que o Brasil não mudou passou os últimos dias isolados em uma bolha hermética.” (REVISTA 2, p. 63)

Na revista 3, nota-se que a tensão disfórica representada pela paixão de “fúria”,

colocada pelo sujeito -manipulador entre os sujeitos e anti-sujeitos, começa a se

descomprimir novamente, a abaixar a sua intensidade e sua extensão devido a uma

suposta atenção e celeridade de resposta do pressionado anti-sujeito “três poderes’’.

A paixão-lexema “fúria” repentinamente através do “grito” dos manifestantes dá lugar

as paixões de “confiança e satisfação” dos sujeitos.

[...] Em poucos dias, anseios antigos dos brasileiros foram atendidos com uma disposição e uma celeridade jamais vistas. Esse súbito despertar de quem detém o poder fez surgir uma constatação e uma pergunta. A constatação é que, afinal, era possível fazer. A pergunta é: por que, então, não fizeram antes? (REVISTA 3, p. 56)

Na revista 4, Edição 2335, por fim, o foco de tensões é deslocado pela revista,

dos sujeitos manifestantes heterogêneos em geral, para um grupo específico

denominado ‘black-blocs’. A tensão disfórica entre sujeitos e seus objetos-valor e anti-

sujeitos se radicaliza agora pela “fúria violenta” dos ‘sujeitos radicais’ e a

criminalização de seus atos:

66

Na cartilha apreendida pelo delegado Marco Duarte de Souza, da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, um grupo de black blocs descreve seus alvos: ‘bancos, grandes empresas e a imprensa mentirosa”. Devem ser evitadas, segundo o texto, depredações de ‘carros particulares e pequenos comércios’. Os black blocs acham isso muito bonito e nobre – orgulham-se de dizer que não praticam o que chamam de ‘vandalismo arbitrário’. Para eles e seus admiradores confessos – entre os quais professores universitários pagos com dinheiro público – destruir uma agência bancária a marretadas ou golpes de extintor de incêndio não é vandalismo, mas uma ‘ação simbólica ‘, que, inserida na ‘estética da violência’, simularia a ‘ruína do capitalismo’. Embora haja uma definição mais precisa para isso – e ela pode ser resumida na palavra crime -, quase nenhum black bloc está preso hoje no país’’. (REVISTA 4, p.78-79)

Depois, de acordo com o narrador-manipulador, a intensidade e extensão desta

fúria violenta diminuem quase que instantaneamente devido a violência do grupo:

A presença de black blocs no Occupy Wall Street afugentou os manifestantes comuns e ajudou a abreviar o movimento, fenômeno que pode ter ocorrido com os protestos que começaram em junho no Brasil: o uso da violência isola o grupo” (REVISTA 4, p.79)

Em suma, considerando-se os estados afetivos segundo sua extensão: a

emoção (instantânea), a paixão (durável), a inclinação e o sentimento (permanentes),

percebe-se que o Estilo afetivo passional predominante encontrado em todas as

reportagens pode ser considerado o traço semântico do sensível que se atém emoção

instantânea. Retomemos alguns excertos que podem comprovar este estilo afetivo

predominante:

FAGULHA QUE PRODUZ INCÊNDIO (CENA TÍPICA DE UMA EMOÇÃO ABRUPTA) Para fabricar um incêndio bastam uma fagulha e um pouco de oxigênio. No caso da série de manifestações iniciadas em São Paulo e no Rio, a faísca foi o aumento da passagem de ônibus. Já o combustível era composto de bem mais do que um elemento. Na semana passada, essa combinação produziu labaredas de alturas inéditas. (REVISTA 1, p.86) METÁFORA DO EXCESSO DE HORMÔNIOS NOS JOVENS (CENA AFETIVA QUE ASSEMELHA-SE AO ESTILO AFETIVO DA EMOÇÃO) Há uma grande chance de que boa parte da rapaziada que, na semana passada, foi às ruas esteja apenas dando vazão às pressões hormonais pelo exercício passageiro do socialismo revolucionário. (REVISTA 1, p.86) METÁFORA DO SOPRO EM COMBINAÇÃO COM REDES SOCIAIS (AMBIENTE PROPÍCIO PARA A EMOÇÃO DA IMPULSIVIDADE, CARÊNCIA DE REFLEXÃO, INTERATIVIDADE E RAPIDEZ DE COMUNICAÇÃO) Os insufladores do movimento usam as redes sociais para organizar os protestos. (REVISTA 1, p. 88) METÁFORA DO GRITO ( SUA EXTERNALIZAÇÃO É TÍPICA DO ESTADO DE ALMA EMOTIVO) Em poucos dias, os protestos conseguiram a façanha inédita de fazer o Congresso aprovar projetos contra a corrupção, os governos reduzirem

67

tarifas e o Judiciário mandar um político para a cadeia. O grito dos manifestantes acordou os três poderes. (REVISTA 3, p.54) [...] Em poucos dias, anseios antigos dos brasileiros foram atendidos com uma disposição e uma celeridade jamais vistas. Esse súbito despertar de quem detém o poder fez surgir uma constatação e uma pergunta. A constatação é que, afinal, era possível fazer. A pergunta é: por que, então, não fizeram antes? (REVISTA 3, p. 56) A FÚRIA VIOLENTA (A VIOLÊNCIA SE CONFIGURA POR UM ESTADO DE ALMA QUE ENVOLVE COMPLETAMENTE O ÍNDIVÍDUO E GERA UM CHOQUE ABRUPTO DE EMOÇÕES) A presença de black blocs no Occupy Wall Street afugentou os manifestantes comuns e ajudou a abreviar o movimento, fenômeno que pode ter ocorrido com os protestos que começaram em junho no Brasil: o uso da violência isola o grupo” (REVISTA 4, p.79)

Contudo, na Edição histórica, nota-se o estilo durável da paixão de Fúria,

colocado pela revista 2, onde percebe-se um traço de intensividade e extensividade

mais crônicos e duráveis, onde a mesma representa um estado de alma do sujeito

coletivo “Brasil”, retomemos alguns trechos anteriores:

UMA PAIXÃO DE FÚRIA MAIS CONCENTRADA E MAIS CONSTANTE Quando se espalhou por São Paulo um protesto contra o aumento de 20 centavos na passagem de ônibus, todo mundo sentiu que a coisa era bem maior. Tão maior, mais inebriante, mais mobilizadora, mais assustadora e mais apaixonante que, em uma semana, multidões bem acima de 1 milhão de pessoas jorraram Brasil afora na histórica noite de quinta-feira. Todos os parâmetros comparativos anteriores, como Diretas-Já e Fora Collor, empalideceram diante do abismo aberto entre os representantes dos poderes, de um lado, e o poder dos que se sentem mal representados, de outro. A presidente acuada, as instituições em estado de esturpor, os políticos desaparecidos e a turbamulta subindo a frágil passarela do Palácio Itamaraty criaram outro sentimento estarrecedor: é muito fácil quebrar o vidro que separa a ordem do caos” (REVISTA 2, p. 61). UMA PAIXÃO DE FÚRIA QUE CANALIZA UMA LONGA MUDANÇA NUM CURTO PERÍODO DE TEMPO Podem-se passar décadas sem que nada mude, mas uma semana pode concentrar décadas de mudança. Foi o que se viu no Brasil na semana passada. Quem acha que não mudou em alguma coisa e que o Brasil não mudou passou os últimos dias isolados em uma bolha hermética” (REVISTA 2, p. 63). UMA PAIXÃO EM FORMA DE PROTESTOS QUE PODERÁ SE TORNAR UM SENTIMENTO INTERMITENTE DE ACORDO COM OS OBJETOS-VALOR DOS SUJEITOS Na avaliação do governo, os protestos deverão continuar. Os alvos serão o excesso de gastos com a Copa, a corrupção e a crise econômica. (REVISTA 2, 70)

Visto a intensidade e quantidade passionais e os Estilos Afetivos

predominantes na narrativa das reportagens, constata-se que as paixões políticas

68

retratadas nas manifestações de junho de 2013 se assemelham as paixões de

torcedores por seus clubes ou pelas Copas. Se assemelham pelo traço semântico do

sensível que se atém a emoção e pelo traço semântico passional que se atém a fase

afetiva da paixão. O discurso passional da “cidadania” representado neste momento

histórico, pelo seus perfis afetivos, não difere ritmicamente ao de um torcedor de

futebol, guardado suas próprias peculiaridades.

Constata-se neste trabalho, que o discurso do país “cidadão” não se desenrola

na prática como nas representações da revista. A revista afirma emblematicamente

na sua Edição histórica que:

Podem-se passar décadas sem que nada mude, mas uma semana pode concentrar décadas de mudança. Foi o que se viu no Brasil na semana passada. Quem acha que não mudou em alguma coisa e que o Brasil não mudou passou os últimos dias isolados em uma bolha hermética” (REVISTA 2, p. 63).

Verificou-se que a extensão do “discurso de cidadania” nos protestos de junho se

ateve mais a emoção instantânea e a paixão durável. Este discurso,

comparativamente, encontra-se ainda distante do mítico discurso do “país do futebol”,

construído em longa duração e cuja extensão podemos identificar como uma

inclinação e sentimento permanentes em cada período de Copa do mundo. Na

reportagem “Adeus à pátria de chuteiras” da revista 3, encontra-se no seu Lead:

Há uma vitória certa na Copa das Confederações em tempos de manifestações nas ruas – o futebol pode nos fazer felizes, mas já não serve aos interesses oficiais.(REVISTA 3, p.78)

Percebe-se uma contradição interna da revista na manipulação dos dois

discursos: da cidadania e do futebol - porque ao mesmo tempo em estabelece uma

arena ou jogo de oposições entre os dois, travando uma queda de braço com o

governo petista, ela também está preocupada a vender a Copa, e muitas outras coisas

relacionadas. Verifica-se que este grande veículo de comunicação não articula muito

bem os dois discursos.

69

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa, a discussão teórica, juntamente com a proposta analítica,

evidenciou suscintamente, as dimensões semânticas e sintáticas das reportagens.

Concentramos nossa análise na estrutura interna das mesmas, como um “todo de

sentido”. Investigamos um percurso gerativo de sentido através dos postulados da

Semiótica Textual. Nossa intenção, não era deixarmos de tratar o corpus das

reportagens como objeto de comunicação e analisá-lo pelas suas condições de

produção bem como as intertextualidades dos mesmos, o que poderia ser investigado

em outros trabalhos. Entretanto, optamos na análise dos textos das reportagens por

um aprofundamento da perspectiva do conteúdo nos estudos discursivos bem como

trabalhar a questão dos elementos do inteligível juntamente com o sensível.

Desde o início deste trabalho pontuamos como nosso objetivo central,

analisarmos semioticamente as representações da revista Veja com relação as

manifestações e o futebol. Nossas perguntas de pesquisa se concentravam em como

o periódico retratava a construção de sentidos do discurso de ‘cidadania’ e do ‘futebol’

antes, durante e depois das manifestações. As oposições semânticas fundamentais e

posteriormente, outros níveis de análise do percurso gerativo de sentido, bem como o

percurso passional de sentido nos indicaram a predominância de um discurso de

“revolta”. Conforme dito no segundo capítulo, reafirmamos que o Estilo passional

predominante encontrado em quase todas as reportagens pode ser considerado ao

campo do ‘sensível’ que se atém à emoção e na Edição histórica o ‘passional’

referente ao estado afetivo da paixão. Visto a intensidade e quantidade passionais,

constata-se que as paixões políticas retratadas nas manifestações de junho de 2013

se assemelham as paixões clubísticas ou pelas Copas. O discurso passional da

“cidadania” representado neste momento histórico pelo seu perfil afetivo não difere

ritmicamente do de um torcedor de futebol conforme dito anteriormente.

Diante disso, faz-se necessário uma investigação muito mais ampla sobre a

perspectiva passional dos discursos, uma vez que, conforme Fontanille (2001, p.161):

“Organizar a experiência para construir um discurso é, antes de tudo, descobrir (ou

projetar) nela uma racionalidade – uma direção, uma ordem, uma forma intencional,

até uma estrutura”. Para ele, existem três grandes racionalidades que nos servem

para organizar nossa experiência em discurso: a racionalidade da ação, da paixão e

70

da cognição, que constituem as três grandes dimensões da nossa atividade de

linguagem. Estas três lógicas ou pontos-de-vista do discurso em ‘devir’ (movimento)

se estabelecem da seguinte forma: a primeira - transformações (programa de ação)

(estado inicial e final); a segunda, acontecimento que afeta a posição da instância de

discurso; a terceira, a apreensão e o descobrimento da troca de conhecimento.

No 1º capítulo procuramos trabalhar através do percurso gerativo de sentido a

racionalidade da ação. Esta dimensão pragmática, conforme o autor, se embasa na

transformação descontínua dos estados de coisas – situação inicial e situação final. E

possui elementos de análise como pressuposições, programação, meta, desafios,

meios, tarefas e o recorrido. Esta racionalidade é, portanto, retrospectiva e finalista

(finalidade).

No 2º capítulo procuramos trabalhar a racionalidade da paixão. Para o autor, a

paixão ou dimensão passional se constitui pela lógica tensiva da presença e do corpo

sensível do actante. Os efeitos passionais são captados nas variações de intensidade

e de quantidade. A análise das paixões leva em conta outros componentes

perceptivos e tensivos, particularmente os aspectos a modalidade e o ritmo. Ele afirma

que o discurso apaixonado está regido pela racionalidade do advento (sobrevento),

na irrupção dos afetos e no desenrolar das tensões afetivas. E, ainda, o recorrido

passional é apreendido no momento do discurso pela experiência sensível (somente

num recorrido fortemente esterotipado, ele segue um programa). Esta racionalidade,

portanto, se configura como aquela do acontecimento que afeta o algo ante a quem,

para quem ou em quem advém. Contudo, o autor constata que: “[...] quando estamos

diante de um discurso não-verbal, a dimensão passional deve ser buscada em outros

lugares e não nas palavras.” (FONTANILLE E ZILBERBERG, p.314,1998,2001)

Trabalhamos nesta pesquisa alguns aspectos da ‘cognição’ em conexão com

a ‘paixão’ e ‘ação’, no 1º capítulo, através dos traços semânticos sensoriais, espaciais

e temporais com relação as oposições semânticas mínimas conforme o 1º nível de

análise da ação. Para Fontanille (2001), a dimensão cognitiva tem 2 sentidos: um geral

e outro englobante. Mais precisamente, segundo ele, a cognição designa a

manipulação do saber no discurso. A linguagem é considerada na perspectiva dos

conhecimentos que procuramos sobre nosso mundo, sobre nós mesmos ou sobre o

mundo possível que suscita. O discurso seria um todo de significação inteligível e não

somente um lugar onde circula a informação. A cognição apresenta ora uma

racionalidade inferencial, ora outra sensitiva, entre outras.

71

Enfim, mesmo não sendo o foco desta pesquisa, poderia-se também ter sido

realizado, mais do ponto de vista discursivo, linguístico e cultural, uma análise

comparativa entre as paixões clubísticas e as paixões políticas, no qual abordaríamos

a temática das paixões mais aprofundadamente. Esta pesquisa poderá ser feita em

um trabalho posterior.

72

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, D.L.P. Teoria do Discurso: Fundamentos Semióticos. 3ªed. São Paulo:

Humanitas/FLLCH/USP, 2001.

BARROS, D.L.P. Teoria Semiótica do Texto: Série Fundamentos. 4ªed. São Paulo:

Ática, 2005.

DA MATTA, Roberto (org). Universo do Futebol: Esporte e sociedade brasileira. Rio

de Janeiro. Pinakotheke, 1982.

FIORIN, J.L. Elementos de análise do discurso: Repensando a Língua Portuguesa. 9ª

ed. São Paulo: Contexto, 2000.

FONTANILLE, J. Semiótica del discurso. 1ª ed. Lima: Universidad de Lima, 2001.

FONTANILLE, J.; ZILBERBERG, C. Tensão e significação. Tradução Ivã Carlos

Lopes, Luiz Tatit e Waldir Beividas. São Paulo: Humanitas/FLLCH/USP, 2001.

SOARES, A.J. Futebol brasileiro e sociedade: a interpretação culturalista de Gilberto

Freire. In: Futbologias: Futbol, identidade y violência en America Latina. Buenos Aires:

CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2003.

BIBLIOGRAFIA GERAL

FIORIN, J.L. Linguagem e ideologia. Série Princípios. 6ª ed. São Paulo: Ática, 1998.

FILHO, M. R. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1964.

73

FRANCO JUNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, cultura, sociedade. São

Paulo: Companhia das Letras, 2007.

FREIRE, G. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da

economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record,1992.

GREIMAS, A.J.; FONTANILLE, J. Semiótica das paixões. Dos estados de coisas aos

estados de alma. São Paulo: Editora Ática, 1993.

REVISTAS

MEGALE, B.; RANGEL, C. A razão de tanta fúria. Revista Veja, ed. 2326, São Paulo,

n. 25, ano 46, p. 84-92,19 jun, 2013.

CABRAL, O. et. al. Os sete dias que mudaram o Brasil: Edição histórica. Revista Veja,

ed. 2327, São Paulo, n. 26, ano 46, 26 jun, 2013.

CABRAL, O. et. al. Então é no grito? Revista Veja, ed. 2328, São Paulo, n. 27, ano

46, 3 jul, 2013.

MEGALE, B.; ARAGÃO, A. O bando dos caras tapadas. Revista Veja, ed. 2335, São

Paulo, n. 34, 21 ago, 2013.

74

5. ANEXOS

75

Revista 1

76

Revista 2

77

Revista 3

78

Revista 4