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BOURDIEU - NOÇÕES Espaço Social, Campo Social, Habitus e Conceito de Classe Social em Pierre Bourdieu No início de 2002 a humanidade perdeu um de seus maiores intérpretes. Trata-se de Pierre Bourdieu, aquele que era considerado, até então, um dos últimos exemplares de pensadores que aliam a reflexão sobre a sociedade e o combate social com a finalidade de mudá-la. Bourdieu afirmou em uma conferência: Os intelectuais têm um papel importante. Mas devem cumprir com duas condições: não se fecharem em uma torre de marfim e inventar a maneira de divulgar suas verdades. A verdade, dizia Spinoza, não tem força por si só. Os intelectuais devem ser parte do movimento junto com os sindicatos e todas as associações que se esforçam pela crítica. O intelectual isolado, pode-se dizer, é o fim (29 jun. 2000, internet). Bourdieu ganhou a fama no Brasil de ser um autor de textos complexos. Para isso, contribuiu a publicação do livro A Reprodução, um estudo, em conjunto com Jean-Claude Passeron, sobre o sistema de ensino francês e os esquemas de reprodução da sociedade de classes francesa. Alguns intérpretes brasileiros, a partir dessa obra, passaram a "classificar" Bourdieu simplesmente de "reprodutivista", como se ele não considerasse em sua teoria a possibilidade da interrupção da reprodução. Ironicamente, a poesia que serve de epígrafe a esse polêmico livro traz uma ilustrativa imagem de como se pode fazer para cessar a reprodução: O Capitão Jonathan, Com a idade de dezoito anos, Captura, um dia, um pelicano Em uma ilha do Extremo Oriente. O pelicano de Jonathan, Na manhã, põe um ovo totalmente branco E desse ovo sai um pelicano Que se parece espantosamente com o primeiro pelicano. E o segundo pelicano Põe, por sua vez, um ovo também branco De onde sai, inevitavelmente, Um outro do mesmo jeito. Isto pode durar muito tempo

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Page 1: Bourdieu

BOURDIEU - NOÇÕES

Espaço Social, Campo Social, Habitus e Conceito de Classe Social em Pierre Bourdieu

No início de 2002 a humanidade perdeu um de seus maiores intérpretes. Trata-se de Pierre Bourdieu, aquele que era considerado, até então, um dos últimos exemplares de pensadores que aliam a reflexão sobre a sociedade e o combate social com a finalidade de mudá-la. Bourdieu afirmou em uma conferência:

Os intelectuais têm um papel importante. Mas devem cumprir com duas condições: não se fecharem em uma torre de marfim e inventar a maneira de divulgar suas verdades. A

verdade, dizia Spinoza, não tem força por si só. Os intelectuais devem ser parte do movimento junto com os sindicatos e todas as associações que se esforçam pela crítica. O intelectual isolado, pode-se dizer, é o fim (29 jun. 2000, internet).

Bourdieu ganhou a fama no Brasil de ser um autor de textos complexos. Para isso, contribuiu a publicação do livro A Reprodução, um estudo, em conjunto com Jean-Claude Passeron, sobre o sistema de ensino francês e os esquemas de reprodução da sociedade de classes francesa. Alguns intérpretes brasileiros, a partir dessa obra, passaram a "classificar" Bourdieu simplesmente de "reprodutivista", como se ele não considerasse em sua teoria a possibilidade da interrupção da reprodução. Ironicamente, a poesia que serve de epígrafe a esse polêmico livro traz uma ilustrativa imagem de como se pode fazer para cessar a reprodução:

O Capitão Jonathan,Com a idade de dezoito anos,Captura, um dia, um pelicanoEm uma ilha do Extremo Oriente.O pelicano de Jonathan,Na manhã, põe um ovo totalmente brancoE desse ovo sai um pelicanoQue se parece espantosamente com o primeiro pelicano.E o segundo pelicanoPõe, por sua vez, um ovo também brancoDe onde sai, inevitavelmente,Um outro do mesmo jeito.Isto pode durar muito tempoSe, antes, não for feita uma omelete [grifos meu]. (Robert DESNOS apud BOURDIEU, 1982, p. 7)

Como e com quais categorias Bourdieu pensa a sociedade? Bourdieu compreende que os atores sociais estão inseridos espacialmente em determinados campos sociais, a posse de grandezas de certos capitais (cultural, social, econômico, político, artístico, esportivo etc.) e o habitus de cada ator social condiciona seu posiciomento espacial e, na luta social, identifica-se com sua classe social. Bourdieu afirma que para o ator social tentar ocupar um espaço é necessário que ele conheça as regras do jogo dentro do campo social e que esteja disposto a lutar (jogar).

O que determina a posição espacial no campo social? Quais os princípios de diferenciação que condicionam a ocupação do espaço social? Nas sociedades desenvolvidas as alavancas mais eficientes de distinção são as posses de capital econômico e de capital cultural. Logo, os sujeitos ocuparão espaços mais próximos quanto mais similar for a quantidade e a espécie de

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capitais que detiverem. Em contrapartida, os agentes estarão mais distantes no campo social quanto mais díspar for o volume e o tipo de capitais. Assim, pode-se dizer que a riqueza econômica (capital econômico) e a cultura acumulada (capital cultural) geram internalizações de disposições (habitus) que diferenciam os espaços a serem ocupados pelos homens.

Dessa forma, portadores de um quantum de capital de diversas naturezas, seja ele capital cultural, capital social, capital político, capital artístico, capital esportivo, capital econômico etc., estão a contestar ou a aceitar certas diretrizes que redefinem as bases da sociedade. É o que explica Bourdieu:

Sem dúvida, os agentes constróem a realidade social; sem dúvida, entram em lutas e relações visando a impor sua visão, mas eles fazem sempre com pontos de vista, interesses e referenciais determinados pela posição que ocupam no mesmo mundo que pretendem transformar ou conservar (1989, p. 8).

O habitus é uma forma de disposição à determinada prática de grupo ou classe, ou seja, é a interiorização de estruturas objetivas das suas condições de classe ou de grupo sociais que gera estratégias, respostas ou proposições objetivas ou subjetivas para a resolução de problemas postos de reprodução social1 [1] . BOURDIEU explica que

falar de estratégias de reprodução não é atribuir ao cálculo racional, ou mesmo à intenção estratégica, as práticas através das quais se afirma a tendência dos dominantes, dentro de si mesmos, de perseverar. É lembrar somente que o número de práticas fenomenalmente muito diferentes organizam-se objetivamente, sem ter sido explicitamente concebidas e postas com relação a este fim, de tal modo que essas práticas contribuem para a reprodução do capital possuído. Isto porque essas ações têm por princípio o habitus, que tende a reproduzir as condições de sua própria produção, gerando, nos domínios mais diferentes da prática, as estratégias objetivamente coerentes e as características sistemáticas de um modo de reprodução (1989: 386-387).

Esse modelo pode induzir a esquematizações simplistas. Freqüentar, por exemplo, um determinado estabelecimento, degustar um prato, beber de um vinho raro, possuir um carro fora-de-série ou praticar uma modalidade de esporte não significa uma distinção automática. Por exemplo, a virada de costume de um "novo-rico" pode ser visto mais como ostentação do que um sinal de distinção. Conforme Bourdieu, "... o mesmo comportamento ou o mesmo bem pode parecer distinto para um, pretensioso ou ostentatório para outro e vulgar para um terceiro" (1996, p. 22).

O campo esportivo é rico em exemplos de distinção. Um mesmo esporte pode ser praticado e assistido de modos diferentes. No riquíssimo circo da "Fórmula l" o ingresso mais barato custa próximo de um salário-mínimo, enquadrando-se, talvez, dentro do padrão de consumo de funcionários públicos, pequenos comerciantes e trabalhadores qualificados. A entrada mais cara atinge cifras superiores a três mil dólares. Com este ticket pode-se frequentar locais com serviços de buffet, transporte aéreo (helicópteros), serviço de atendimento médico com urgência e, importantíssimo, livre-acesso aos carros e pilotos oficiais. O paddock é o espaço dos profissionais liberais bem-sucedidos, das manequins internacionais, dos altos políticos, dos grandes industriais e dos comandantes das finanças. Isso mostra, de pronto, que o mesmo esporte destina lugares na platéia totalmente distintos. As fronteiras, não seria necessário dizer, são guardadas por rígidos esquemas de segurança.

1[1] Conceito de habitus para BOURDIEU: "sistemas de posições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, quer dizer, enquanto princípio de geração e de estruturação de práticas e de representações que podem ser objetivamente 'reguladas' e 'regulares', sem que, por isso, sejam o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu objetivo sem supor a visada consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-las e, por serem tudo isso, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação combinada de um maestro" (BOURDIEU apud MICELI, 1987: XL). "(...) sistema de disposições duráveis e transferíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, apreciações e ações, e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas que permitem resolver os problemas da mesma forma e graças às correções incessantes dos resultados obtidos, dialeticamente produzidas por estes resultados" (ibid.: XLI).

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A maneira de jogar um esporte também é distintiva. Tomemos por exemplo o futebol praticado por trabalhadores braçais. O ritmo do jogo tem uma dinâmica mais forte, é mais rápido e a virilidade marca seu estilo. Já o futebol disputado por profissionais liberais, empresários e, talvez, por professores diferencia-se pela menor velocidade, "chegada" mais leve e discussões multiplicadas com o juiz do jogo. Não é inútil ressaltar que essas comparações devem ser sopesadas e matizadas pelas diferenças de condicionamento físico e de temperamento que marca cada um dos jogadores. Porém, em geral, os campeonatos de associações profissionais, de clubes sociais e de várzea estão aí para comprovar: o mesmo esporte é praticado com vigores diferenciados e com estilos distintos. 2[2] .

Bourdieu serve-se das díades como parte de seu método a fim de fazer as classificações estruturais dos agentes nos campos sociais. Para saber qual o espaço social ocupado, Bourdieu perguntaria: o sujeito prefere cachaça ou conhaque? Futebol ou tênis? Literatura clássica ou auto-ajuda? Violino ou violão? Nesse sentido, reconhece: "procedo por oposições porque é assim que se faz, na maioria das vezes - mas as coisas são mais complicadas" (1996: p. 23). As oposições são um dos recursos utilizados por Bourdieu, a ressalva de que a sociedade é mais complexa torna-se uma advertência para que não ocorra o empobrecimento de sua teoria. Esse cuidado torna-se mais evidente em uma entrevista dada à Revista Teoria & Debate. A educadora Menga Lüdke pergunta a Bourdieu sobre a relação entre a teoria da reprodução e a teoria da resistência na educação brasileira, o pensador francês afirma:

De início, o que me parece estranho é que se oponham estas teorias. O mundo acadêmico pensa sempre por pares, por oposições. Esta oposição entre reprodução e resistência se desenvolveu nos Estados Unidos, junto a um certo número de autores que, creio, não entenderam nada do que eu fazia (1991, p. 3)

Resta ainda tentar compreender qual é o conceito de classe social em Bourdieu. Para o pensador francês, "as classes sociais não existem (...). O que existe é um espaço social, um espaço de diferenças, no qual as classes existem de algum modo em estado virtual, pontilhadas, não como um dado, mas como algo que se trata de fazer" (1996, p. 26-27). À primeira vista pode ser um vaticínio extremamente negativo. Mas, ao contrário, há um sentido positivo neste conceito. Bourdieu referencia-se em Thompson para definir o que é classe social:

"é preciso construir o espaço social como estrutura de posições diferenciadas, definidas, em cada caso, pelo lugar que ocupam na distribuição de um tipo específico de capital. (Nessa lógica, as classes sociais são apenas classes lógicas, determinadas, em teoria e. se se pode dizer assim, no papel, pela delimitação de um conjunto – relativamente – homogêneo de agentes que ocupam posição idêntica no espaço social; elas não podem se tornar classes mobilizadas e atuantes, no sentido da tradição marxista, a não ser por meio de um trabalho propriamente político de construção, de fabricação – no sentido de E.P. Thompson fala em The making of the English working class - cujo êxito pode ser favorecido, mas não determinado, pela pertinência à mesma classe sócio-lógica.) (BOURDIEU, 1996: p. 29).

As classes sociais são uma realidade histórica. Para Thompson, a referência do conceito de classe de Bourdieu, "por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência" (Thompson, 1987, p. 9).

Assim, não se encontra na teoria de Bourdieu um sujeito social a-histórico e paralisado, o que existe é a luta constante entre os atores sociais para a ocupação dos espaços nos campos sociais e, no mesmo sentido marxista, no que se refere as classes sociais, estas somente se tornam classes mobilizadas e atuantes quando acontece um trabalho político de construção. Nesse sentido, pode-se concluir com o próprio Thompson, "a classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história (...)" (1987, p. 12).

2THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Vol. I-A árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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Dessa maneira, discutir sobre a distribuição de capitais, habitus, campo social e ocupação do espaço social é debater sobre a luta dos atores sociais, que pode, caso exista um trabalho de ação política, tornar-se prática e teoricamente luta de classes, ou seja, Bourdieu ao apresentar estudos sobre a reprodução de classes e como se transfere as heranças distintivas nas sociedades contemporâneas demonstra, também, que é possível fazer uma "omelete social", para isso, ressalte-se, deve existir um trabalho político de construção da ação coletiva com o sentido de luta de classes.

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Sobre os conceitos de Campo, Capital e Habitus em Pierre Bourdieu

Sabrina Rosa

Campo

O conceito de campo complementa o de habitus, pois para Bourdieu (2001) o campo consiste no espaço em que ocorrem as relações entre os indivíduos, grupos e estruturas sociais, espaço este sempre dinâmico e com uma dinâmica que obedece a leis próprias, animada sempre pelas disputas ocorridas em seu interior, e cujo móvel é invariavelmente o interesse em ser bem-sucedido nas relações estabelecidas entre os seus componentes (seja no nível dos agentes, seja no nível das estruturas).

“É um universo social particular constituído de agentes ocupando posições específicas dependentes do volume e da estrutura do capital eficiente dentro do campo considerado. É um sistema de posições que podem ser alteradas e contestadas.”

Representa um espaço simbólico, como um microcosmo dotado de leis próprias[1], no qual as lutas dos agentes determinam, validam e legitimam representações. É o poder simbólico. Nele se estabelece uma classificação dos signos, do que é adequado, do que pertence ou não a um código de valores. No campo, local empírico de socialização, o habitus constituído pelo poder simbólico surge como todo e consegue impor significações tornando-as legítimas. Os símbolos afirmam-se, assim, na noção de prática, como os instrumentos por excelência de integração social, tornando possível a reprodução da ordem estabelecida.

* Exemplo: no Campo do Esporte as lutas travadas pelos atletas para se afirmarem não é o mesmo tipo de luta que o professor deve realizar para se afirmar no Campo Acadêmico. Tais lutas seguem regras diferentes devido ao fato de serem campos diferentes.

Capital

É um conceito que discute a quantidade de acúmulo de forças dos agentes em suas posições no campo. Os capitais possuem volume (quantidade) e estrutura (tipo de capital). São quatro os principais tipos de capital: o econômico, o cultural, o social e o simbólico.1. Econômico: ligado aos meios de produção e renda.2. Cultural: se subdivide em 3 tipos – a saber: institucionalizado (diplomas e títulos), incorporado (expressão oral) e objetivo (posse de quadros ou obras de arte).3. Social: é o conjunto das relações sociais de que dispõe um indivíduo, sendo que, é necessária a manutenção das relações sociais, das redes (convites recíprocos).4. Simbólico: está ligado à honra, ao reconhecimento e corresponde ao conjunto de rituais (etiquetas, protocolo).

* Exemplo: um agente que possui o capital econômico teria mais oportunidades de adquirir outros tipos de capitais, como o cultural objetivo materializado na forma de quadros e obras de arte em geral, entre outros.

Habitus

"(...) sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, apreciações e ações, e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas que permitem resolver os problemas da mesma forma e graças às correções incessantes dos resultados obtidos, dialeticamente produzidas por estes resultados" (BOURDIEU, Pierre. In: ORTIZ, Renato Org. Pierre Bourdieu Sociologia. São Paulo: Ática. 1983. pg. 65).

"sistemas de posições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, quer dizer, enquanto princípio de geração e de estruturação de práticas e de representações que podem ser objetivamente 'reguladas' e 'regulares', sem que, por isso, sejam o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu objetivo sem supor a visada consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-las e, por serem tudo isso, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação combinada de um maestro" (BOURDIEU apud MICELI, 1987: XL).

Segundo Bourdieu (2001), o Habitus é como uma segunda natureza, em parte autônoma, sendo que é histórica e presa ao meio. Ele usa o termo Infraconsciente para localizar o habitus, visto que, seria um princípio de um conhecimento sem consciência, de uma intencionalidade sem intenção. Podendo ser transferido e adquirido de maneira explícita ou implícita, através da aprendizagem e funciona como um sistema de esquemas geradores de estratégias, que podem ser ou não de acordo com os interesses dos seus autores, sem terem sido idealizadas com esse fim.

O Habitus então funcionaria como um esquema de ação, de percepção e de reflexão, que está presente na corpo e na mente – como em posturas e gestos (hexis), maneiras de ver e classificar da coletividade de um determinado campo, operando distinções. As disposições presentes no habitus são plásticas e flexíveis, podendo ser fortes ou fracas e são adquiridas pela interiorização das estruturas sociais.

Page 6: Bourdieu

* Exemplo: o habitus, as disposições do Campo Acadêmico e a postura diferenciada de seus agentes em relação aos dos outros campos (como o Campo Esportivo). Os intelectuais são possuidores de grande volume de capital cultural. Nesse campo é valorizado e incentivado a aquisição de títulos e diplomas, a boa oratória e, principalmente a própria produção do conhecimento.

[1] Para Bourdieu, cada campo possui o seu Nomos (lei fundamental de cada campo) e o seu Doxa (pressupostos cognitivos e avaliativos aceitos e reconhecidos pelos agentes do campo, sendo fortemente naturalizados).

Referências Bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. In: ORTIZ, Renato Org. Pierre Bourdieu Sociologia. São Paulo: Editora Ática. 1983.

________________. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil. 2002.

Revista Espaço Acadêmico. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/024/24cneves.htm - acesso em 21 de Junho de 2010.

SANTOS, Pablo. Sobre a Sociologia Educacional de Pierre Bourdieu: primeiros conceitos. Disponível em: http://pt.shvoong.com/social-sciences/education/1100054-sobre-sociologia-educacional-pierre-bourdieu/ - acesso em 21 de Junho de 2010.

Wikipédia a enciclopédia livre. Disponível em:http://pt.wikipedia.org/wiki/Pierre_Bourdieu – acesso em 16, 18 e 21 de Junho

Page 7: Bourdieu

Autor: Wellington Ricardo Nogueira Maciel Doutor em sociologia

Introdução.

O presente trabalho pretende apontar a centralidade que alguns

conceitos possuem no conjunto da sociologia de Pierre Bourdieu. Darei

destaque especial para a noção de campo, apontando o processo de seu

surgimento com a modernidade, a determinação social das estruturas

(habitus) que o regem e o papel das classes sociais no seu interior. Em

seguida, darei especial atenção aos campos científico, político e

jornalístico, pois foram preocupações constantes de Bourdieu. Concluirei

destacando a operacionalização desses conceitos em situações

concretas em meio urbano.

Para entender o processo de surgimento dos campos é preciso

compreender a constituição da sociedade moderna. Esta para se afirmar

teve que travar disputas em vários setores da vida social com o tipo de

sociedade pré-capitalista até então predominante a fim de impor seus

valores e projetos. O período compreendido pela modernidade significou

a constituição progressiva desses espaços sociais autônomos, dotados

de leis e regras próprias, onde os atores teriam uma margem de

liberdade mais ampla se comparado à pressão exercida pelo grupo nas

sociedades anteriores.

Segundo Bourdieu, esses espaços são regidos por conflito e

tensão, pois o que está em jogo é a produção da realidade social. Se há

em Bourdieu uma forte presença durkheimiana, com a ênfase na

anterioridade da sociedade face ao indivíduo, este por sua vez age

pondo em movimento as estruturas incorporadas, num constante

processo de tensão entre ação e estrutura. Como disse é com a

modernidade que surgem esses lugares especializados, pois é só aí que

as funções antes comandadas pelo Estado ou pelo mercado aos poucos

vão se autonomizando.

Page 8: Bourdieu

O campo pode ser entendido como um conjunto de práticas que

são interinfluenciáveis. As suas fronteiras são bem definidas, mas estão

em constante mudança, em parte devido à própria dinâmica interna, em

parte pela influência externa de outros campos. Cada campo cria leis

próprias que regem a entrada, a permanência e a saída dos atores

sociais. Esses incorporam desde cedo as estruturas objetivas relativas

ao meio em que vivem ou realizam suas atividades diárias. Para

Bourdieu, o habitus representa a determinação social das ações do

indivíduo.

Por ser um conhecimento adquirido, “uma disposição

incorporada”, a noção de habitus aponta o social como o ponto de partida

para Bourdieu entender as relações entre os diferentes campos que

compõem a sociedade. Disso resulta que o sujeito não percebe o habitus

como tal, pois este não lhe aparece de imediato como sendo fruto de sua

ação no mundo, mas como dotado de uma estrutura que se lhe impõe.

Campo e habitus estão assim relacionados e estruturados segundo

convenções particulares e leis próprias. O habitus é para Bourdieu o que

os antropólogos concebem como sendo a cultura.

Bourdieu esteve preocupado em romper com um certo

reducionismo do campo ao econômico. Para ele a noção de campo não

pode ser vista como simples emanação de entidades econômicas,

embora não desacredite a sua influência. Por outro lado, as categorias

econômicas poderiam ser colocadas em prática nos diferentes campos.

Segundo Bourdieu as noções de “capital”, “valor”, “concorrência”,

“competição”, “mercado”, “troca”, entre outras, têm utilidade como

instrumentos de investigação de casos concretos.

De modo geral, a preocupação principal de Bourdieu é entender

“a gênese social de um campo”, investigando como ele se constitui e se

relaciona com outros campos. A sociedade pode ser vista como uma

arena de disputas entre os diversos campos, cujo objetivo é construir

uma interpretação autorizada da realidade.

Page 9: Bourdieu

O uso da linguagem autorizada.

Uma das preocupações de Bourdieu foi apontar em cada

campo as determinações sociais da língua, lançando uma crítica aos

lingüistas que tendiam a apreender a linguagem apenas em suas

relações sintáticas. Para Bourdieu uma frase correta não se resume a

correção de sua estrutura. É preciso ir além disso. A linguagem é um

instrumento de ação que o sujeito põe em movimento em uma situação

concreta. Critica dessa forma a análise do uso da língua que não

explicita o contexto de produção da linguagem. As mudanças que

Bourdieu opera está em entender como uma determinada linguagem se

torna: 1) legítima; 2) constituinte de relações simbólicas e não somente

de comunicação (como atuam para manter relações assimétricas de

prestígio e poder); 3) instituinte, através do discurso, de estruturas de

dominação; e 4) simbolicamente legitimada.

O que está sendo criticado aqui é a pretensão de

“autonomização” da noção de “competência lingüística”. Para Bourdieu

(2003) isso é abstrair do contexto de produção da linguagem, algo que

está demarcado e hierarquizado por relações de forças. Bourdieu, dessa

forma, estabelece uma relação de dependência entre significado e

contexto social de sua produção. A linguagem comunica não apenas

algo, mas busca situar esse algo numa escala hierárquica de valores. “A

linguagem”, para Bourdieu, “é uma práxis” (2003, p.146). Não pode estar

desvinculada das ações dos atores sociais no mundo. Em resumo, pode-

se dizer que Bourdieu procura destacar num processo de comunicação

os diversos usos da fala, apontando para explicitar: 1) o contexto de

produção; 2) os agentes enunciadores; 3) os recursos utilizados; 4) os

informantes privilegiados a quem se dirige a fala.

O problema que segundo Bourdieu (2003, p.146) os lingüistas

não compreenderam “não é a possibilidade de produzir uma infinidade de

Page 10: Bourdieu

frases gramaticalmente coerentes, mas utilizar de maneira coerente e

adaptada uma infinidade de frases num número infinito de situações”. É

preciso captar no decorrer de um processo comunicativo, contextualizado

segundo o campo específico, a “competência prática” do uso adequado

da linguagem. Isso pressupõe estar de posse dos códigos indispensáveis

para decifrar os usos autorizados que a linguagem assume numa

situação concreta.

Numa situação concreta do uso da linguagem, explicitado o

contexto das “relações objetivas”, é preciso estar atento não apenas a

“correção” da linguagem, mas também a forma como, mudando-se o

lugar de onde se fala, outros atores interpretam e ressignificam

determinados estilos lingüísticos. “As características mais importantes do discurso se devem às relações de produção lingüísticas nas quais ele é produzido. O signo não tem existência (salvo abstrata, nos dicionários) fora de um modo de produção lingüístico concreto. Todas as transações lingüísticas particulares dependem da estrutura do campo lingüístico, que é uma expressão particular da estrutura das relações de força entre os grupos que possuem as competências correspondentes (língua ‘polida’ e ‘vulgar’, língua dominante e dominada, numa situação multilingüistica (...) Compreender não é reconhecer um sentido invariante, mas apreender a singularidade de uma forma que só existe num contexto particular (BOURDIEU, 2003, p.147)”.

Para Bourdieu num campo específico há um conjunto de

enunciados sacralizados pela “práxis” cotidiana que exerce sobre os

atores uma pressão para dotá-los de “competência prática”. A entrada

nesse espaço pressupõe a incorporação dessas regras e o constante

investimento, que Bourdieu (1996) chama de illusio. Os recursos

necessários à produção de um discurso competente e autorizado não

são apenas lingüísticos, mas também materiais e simbólicos. Numa

relação diádica será a distribuição desigual desses recursos que

determinará a estrutura das relações objetivas de produção lingüística.

Como observa Bourdieu, “a estrutura da relação de produção lingüística depende da relação de força simbólica entre dois locutores, isto é, da importância de seu capital de autoridade (...) A língua não é só um instrumento de comunicação ou conhecimento, mas de poder. Não procuramos somente ser compreendidos mas também obedecidos, acreditados, respeitados e reconhecidos (2003, p.148)”

Page 11: Bourdieu

A autoridade adquirida por quem a exerce advém do poder de

falar a um interlocutor privilegiado por ter acumulado prestígio e

influência. O que está em jogo é a capacidade de determinar, numa

relação diádica, a apreensão que o outro possa ter do mundo social.

Para Bourdieu uma ciência do discurso deve levar em conta “as

condições de instauração da comunicação”. Os discursos são produzidos

e difundidos em um determinado contexto tendo como fim último os

contextos de recepção. Mas é importante destacar que os significados

atribuídos aos bens culturais no contexto de sua produção são distintos

daqueles recebidos e interpretados no contexto de recepção. Isso

possibilita àqueles “despossuídos de poder” contrabalançar a distribuição

desigual dos recursos na sociedade.

Destacar o contexto de produção do discurso é, dessa forma,

conhecer o habitus próprio ao campo em questão. Entre os diferentes

contextos de produção autorizada do discurso surge um espaço

intermediário onde as trocas desiguais entre produtores e consumidores

ocorrem: o espaço do “mercado”. É no mercado, “estrutura da relação de

forças simbólicas”, que as competências propriamente lingüísticas são

relativizadas. É no espaço produtor da linguagem onde se explicitam o

pertencimento social dos atores sociais. Surge então uma indagação:

como captar os traços que nos permitem identificar a classe social do

locutor? Bourdieu afirma que alguns traços, como o sotaque, a

empostação da voz etc permitem apontar os lugares sociais de quem

fala. Disso resulta que “o que pode ser dito e a maneira de dizê-lo numa circunstância determinada depende da estrutura da relação objetiva entre as posições que emissor e receptor ocupam na estrutura de distribuição do capital lingüístico e das outras espécies de capital. Toda expressão (...) leva a marca, no conteúdo e na forma, das condições que o campo considerado assegura àquele que o produz, em função da posição que ocupa (BOURDIEU, 2003, p.160) ”

Essa concepção do campo como espaço de disputa e de

produção da autoridade tem como pressuposto o fato de que os atores

agem com interesses. Essa é uma tese central na análise sociológica de

Bourdieu. Os conflitos dentro de um campo se dão em torno de valores

Page 12: Bourdieu

como prestígio, poder, honra, notoriedade, segundo regras tácitas mas

que são legitimadas não expressamente pelos atores. Aqueles que

praticam determinadas ações fazem-nas por que possuem sentido para

eles. Essas ações podem ser racionais (no sentido de que os atores

agem conscientemente) ou não refletidas, mas nunca atos gratuitos.

O “interesse” significa que vale a pena jogar o jogo. Mas é

preciso possuir as estruturas objetivas incorporadas (habitus) de um

sistema de jogo para que só assim os atos praticados no seu interior

tenham algum sentido para aqueles que dele participam. Para sentir-se

interessado é necessário incorporar as estruturas que estão presentes no

jogo. O “sentido do jogo” é dessa forma imposto de fora àqueles que dele

participam.

Como havia destacado antes cada “campo de produção

cultural” exige dos atores sociais um “investimento”, chamado de illusio,

um conjunto de regras tácitas aceitas por aqueles que pertencem a um

determinado campo. Como afirma Bourdieu (1996, p.142) “o que é vivido

como evidência na illusio parece ilusório para quem não participa dessa

evidência, já que não participa do jogo”. A entrada em um campo requer

uma “conversão”, um aprendizado de novas regras e um certo savoir-

faire.

Como venho tentando mostrar a modernidade se caracteriza

para Bourdieu pela produção de um conjunto de universos autônomos e

que possuem leis próprias chamados campos. Para cada campo há

formas específicas de interesse em jogo. Os motivos que criam a

concorrência em cada campo particular não são os mesmos. “A teoria do

processo de diferenciação e de autonomia dos universos sociais com leis

fundamentais diferentes leva à explosão da noção de interesse; há tantas

formas de libido, tantos tipos de ‘interesse’, quanto há campos

(BOURDIEU, 1996, p.149)”.

Os campos científico, político e jornalístico.

Page 13: Bourdieu

Uma das preocupações de Bourdieu, segundo Ortiz (2003), foi

com o processo de autonomização do campo científico, com destaque

para as ciências sociais. O objetivo era apontar a especificidade do

conhecimento dessas ciências face outras disciplinas. Ortiz salienta que

essa tradição tem como um dos expoentes Durkheim na França.

Durkheim teria almeja a constituição de um saber construído de acordo

com regras e métodos próprios. Ao sociólogo caberia afastar os pré-

conceitos e o senso comum a fim de garantir uma análise neutra da

realidade. O marco desse movimento é a obra As Regras do Método

Sociológico, de 1895.

Embora discordando em pontos capitais com Durkheim em

relação ao método próprio dessas ciências, Bourdieu está interessado na

constituição, assim como o mestre francês, daquele “lugar hierarquizado,

estruturado segundo uma determinada lógica de interesses”, chamado

campo científico. “Autonomia” significa aqui fronteiras, “delimitação de

um espaço em contraposição a outros (ORTIZ, 2003, p.12)”.

A “porosidade das fronteiras” das ciências sociais significa que

as fronteiras nunca são fixas, mas devem ser refeitas a todo o momento.

A completa autonomia nunca é completamente realizada, mas nunca

também frustrada. A “autonomia” do campo científico é um projeto a ser

concretizado, está no horizonte dos atores sociais. A formação de

espaços autônomos de produção científica é constitutivo, para Bourdieu,

da modernidade. Todavia essa especialização dos campos é extensiva a

todas as áreas da vida cultural, inclusive a política.

Bourdieu (1998) parece concordar com a tese segundo a qual o

processo de separação entre trabalhador autônomo e meios de produção

ocorre também em outras esferas da vida social, com destaque para a

política. A “política”, para Bourdieu, não é simplesmente um reflexo de

entidades econômicas (interpretação do marxismo ortodoxo), nem a

garantia de realização do “bem comum” (interpretação do pensamento

Page 14: Bourdieu

liberal), mas um campo dotado de regras e leis próprias, aberto ao

conflito.

Para Bourdieu o campo político é hierarquizado, com

distribuição desigual das posições e do capital simbólico. Assim é

possível distinguir na sociedade os “agentes politicamente ativos” dos

“agentes politicamente passivos”. Esses são desprovidos de

competência técnica, despossuídos dos meios necessários à

participação política. Os primeiros são possuidores das estruturas do

campo político. Possuem o monopólio da competência social e técnica. A

entrada no campo político pressupõe uma preparação especial. “O

desapossamento correlativos da concentração dos meios de produção

de discursos ou de atos socialmente reconhecidos como políticos não

deixou de aumentar à medida que o campo de produção ideológico

ganhava autonomia (BOURDIEU, 1998, p.170)”.

A conseqüência disso é a concentração da produção, nas mãos

de um pequeno grupo, “das formas de percepção e de expressão

politicamente atuantes”. Essa concentração só é possível com o advento

de instituições encarregadas pela preparação dos profissionais. O

objetivo dos que se aventuram pelo campo político é a luta pelo poder,

com destaque para o papel do partido político. O monopólio da

competência aliado ao processo de racionalização dessa mesma

competência conferem ao campo político uma importância fundamental

na modernidade.

Os interesses particulares são apresentados, no campo político,

como sendo válidos para toda a sociedade. O que é universalizado aí

são idéias, habitus específicos em concorrência com outros interesses. A

pretensão de universalidade dos interesses no campo político deve levar

em conta o jogo de forças no seu interior.

Para Bourdieu “o campo político é pois o lugar de uma

concorrência pelo poder que se faz por intermédio de uma concorrência

pelos profanos ou, melhor, pelo monopólio do direito de falar e de agir

Page 15: Bourdieu

em nome de uma parte ou da totalidade dos profanos (Bourdieu, 1998,

p.185).” O que garante o sucesso no campo político é o acúmulo de

prestígio e reconhecimento, uma forma de capital simbólico designado

por Bourdieu por “capital político”.

O capital político tem origem na acumulação “no decurso das

lutas”, de subidas a palanques, participação em movimentos sociais,

discursos pronunciados, enfim um conjunto de ações desenvolvidas ao

longo de uma trajetória política do “homem político”. O “poder simbólico”

por sua vez é transferido por aquele que lhe está sujeito. O que se

transfere aí é a confiança a alguém dotado de capital político. O poder

simbólico assemelhasse a noção de “dominação” construída por Max

Weber.

Esse processo de autonomização de um campo específico de

uma prática alcançou também o jornalismo. Na sociedade

contemporânea a televisão se constitui como um “instrumento de

manutenção da ordem simbólica”, produzindo uma “violência simbólica”

que designa “uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita dos

que a sofrem e também, com freqüência, dos que a exercem, na medida

em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la

(BOURDIEU, 1997, p.22)”.

Essa violência é tanto maior quanto mais intensa for a luta por

amplas fatias do mercado. Ganham destaque as “notícias de variedade”,

“livres” das disputadas acirradas entre as mídias televisivas, pois

consistem basicamente em fatos que são de natureza a interessar todo

mundo. Essas notícias são tratadas como fatos conhecidos e corriqueiros

dos ouvintes. A luta se torna mais acirrada quando se busca captar o

“extra-ordinário”.

A televisão para Bourdieu (1997, p.25) monopoliza em grande

parte a formação das cabeças de amplas parcelas da população do

mesmo modo que seleciona aspectos da realidade segundo categorias

de percepção próprias aos jornalistas. “O princípio de seleção é a busca

Page 16: Bourdieu

do sensacional, do espetacular”. Daí decorre a busca pelo “furo”, a

exclusividade na apresentação de fatos considerados extra-ordinários.

As disputas no campo jornalístico pressupõem um conjunto de

relações objetivas que rege o campo. As emissoras constroem suas

ações dentro das lutas por fatias maiores do mercado, o peso dos

anunciantes, a capital acumulado por alguns jornalistas. A relação dos

jornalistas com esses fatores objetivos diversifica o campo jornalístico em

emissoras em disputa e em concorrência. Essa constante luta por fatias

do mercado faz com que o campo jornalístico se torne mais dependente

do mercado, por depender mais das demandas externas. A pressão que

o “campo econômico” exerce sobre o campo jornalístico se dá através do

índice de audiência.

Em resumo, pode-se dizer, com Bourdieu, que os jornalistas

detém o monopólio da produção e difusão da informação. As lutas

internas são por fatias maiores do mercado o que resulta na seleção de

fatos considerados dignos para os jornalistas de serem objetos de

esclarecimento.

Por fim, as categorias teóricas elaboradas por Bourdieu podem

ser apropriadas em situações concretas em meios urbano. Na minha

pesquisa em particular, que trata dos usos feitos pelos atores sociais dos

espaços ditos modernos na cidade de Fortaleza, entender a cidade como

“campo” de disputas em torno dos usos sociais legítimos do espaço

urbano pode contribuir para a compreensão dos processos de dinâmica

urbana na cidade de Fortaleza.

A cidade contemporânea tem se tornado palco de grandes

investimentos nas últimas décadas com o objetivo de atrair capitais e

turismo, favorecidos com os processos de globalização. Fortaleza, dizem

os arquitetos, urbanistas e governantes, tem se modernizado nos últimos

anos. A sociologia de Bourdieu pode contribuir para desnaturalizar essas

afirmações, dando destaque aos contextos de produção e recepção dos

discursos que buscam legitimar certas intervenções em meio urbano. Um

Page 17: Bourdieu

campo empírico rico para isso seriam os discursos pronunciados em

jornais e documentos oficiais.

Referências Bibliográficas.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand

Brasil, 1998.

------. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

------. “É possível um ato desinteressado?” In: Razões práticas: sobre a

teoria da ação. Campinas-SP: Papirus, 1996.

ORTIZ, Renato (Org.). A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho

d’Água, 2003.

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Pequeno glossário da teoria de BourdieuTAGS: política

Os conceitos de Bourdieu, aqui expostos de maneira esquemática, devem ser compreendidos em sua interdependência, ou seja, na relação de um ao outro. Como adverte o próprio autor, em Réponses: “noções como habitus, campo e capital podem ser definidos, mas somente no interior do sistema teórico que eles constituem, nunca isoladamente.”

Eduardo Socha

campo: noção que caracteriza a autonomia de certo domínio de concorrência e disputa interna. Serve de instrumento ao método relacional de análise das dominações e práticas específicas de um determinado espaço social. Cada espaço corresponde, assim, a um campo específico – cultural, econômico, educacional, científico, jornalístico etc -, no qual são determinados a posição social dos agentes e onde se revelam, por exemplo, as figuras de “autoridade”, detentoras de maior volume de capital.

capital: ampliando a concepção marxista, Bourdieu entende por esse termo não apenas o acúmulo de bens e riquezas econômicas, mas todo recurso ou poder que se manifesta em uma atividade social. Assim, além do capital econômico (renda, salários, imóveis), é decisivo para o sociólogo a compreensão de capital cultural (saberes e conhecimentos reconhecidos por diplomas e títulos), capital social (relações sociais que podem ser convertidas em recursos de dominação). Em resumo, refere-se a um capital simbólico (aquilo que chamamos prestígio ou honra e que permite identificar os agentes no espaço social). Ou seja, desigualdades sociais não decorreriam somente de desigualdades econômicas, mas também dos entraves causados, por exemplo, pelo déficit de capital cultural no acesso a bens simbólicos.

estratégia: em Coisas Ditas, Bourdieu afirma que “a noção de estratégia é o instrumento de uma ruptura com o ponto de vista objetivista e com a ação sem agente, suposta pelo estruturalismo (que recorre por exemplo à noção de inconsciente) [...] Ela é produto do sentido prático.”

habitus: sistema aberto de disposições, ações e percepções que os indivíduos adquirem com o tempo em suas experiências sociais (tanto na dimensão material, corpórea, quanto simbólica, cultural, entre outras). O habitus vai, no entanto, além do indivíduo, diz respeito às estruturas relacionais nas quais está inserido, possibilitando a compreensão tanto de sua posição num campo quanto seu conjunto de capitais. Bourdieu pretende, assim, superar a antinomia entre objetivismo (no caso, preponderância da estruturas sociais sobre as ações do sujeito) e subjetivismo (primazia da ação do sujeito em relação às determinações sociais) nas ciências humanas (ver estratégia). Segundo Maria Drosila Vasconcelos, trata-se de “uma matriz, determinada pela posição social do indivíduo que lhe permite pensar, ver e agir nas mais variadas situações. O habitus traduz, dessa forma, estilos de vida, julgamentos políticos, morais, estéticos. Ele é também um meio de ação que permite criar ou desenvolver estratégias individuais ou coletivas.”

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papel da sociologia: para Bourdieu, “a sociologia não mereceria talvez nenhuma hora de atenção se tivesse como objetivo apenas descobrir os fios que movem os indivíduos que ela observa, se ela esquecesse que tem compromisso com os homens, justamente quando estes, à maneira das marionetes, participam de um jogo cujas regras ignoram, enfim, se ela não tivesse como tarefa restituir o sentido dos próprios atos destes homens” (Le bal des célibataires, inédito no Brasil)

sentido prático: origem das práticas rituais que estabelecem a coerência parcial em um determinado campo.

violência simbólica: termo que explicaria a adesão dos dominados em um campo: trata-se da dominação consentida, pela aceitação das regras e crenças partilhadas como se fossem “naturais”, e da incapacidade crítica de reconhecer o caráter arbitrário de tais regras impostas pelas autoridades dominantes de um campo

Émile Durkheim nasceu em Épinal, no dia 15 de abril de 1858, região da Alsácia, na França. Iniciando os estudos em Epinal posteriormente partindo para Paris, no Liceu Louis Le Grand e na École Normale Superiéure (1879). Considerado um dos pais da sociologia moderna. Durkheim formou-se em Filosofia onde começou a interessar-se pelos estudos sociais.

Foi o fundador da escola francesa de sociologia, em 1887 quando é nomeado professor de padagogia e de ciência social na faculdade de Bordeaux, no sul da França. Suas principais obras são: Da divisão social do trabalho(1893); Regras do método sociológico(1895); O suicídio (1897); As formas elementares de vida religiosa (1912). Fundou também a revista L’Année Sociologique, que afirmou a preeminência durkheimiana no mundo inteiro. Durkheim morre em Paris, a 15 de novembro de 1917.

O fato social

Durkheim parte da idéia de que o indivíduo é produto da sociedade. Como cita Aron, “[...] o indivíduo nasce da sociedade, e não a sociedade nasce do indivíduo” (2003, p. 464). Logo, a sociedade tem precedente lógico sobre o indivíduo. Durkheim definiu como objetivo da sociologia o fato social, o entende como fato social, “[...] todos os fenômenos que se dão no interior da sociedade, por menos que apresentem, com certa generalidade, algum interesse social” (DURKHEIM, 1999, p. 1). Porém, dessa maneira poderíamos ver todos os acontecimentos como sendo um fato social, pois como Durkheim “[...] todo o indivíduo come, bebe, dorme, raciocina, e a sociedade tem todo o interesse em que essas funções se exerçam regularmente” (DURKHEIM, 1999, p. 1). Logo, se considerarmos esses objetos como sendo fatos sociais a sociologia perde o seu domínio próprio. Assim, “[...] só há fato social quando existe uma organização definida” (DURKHEIM, 1999, p. 4), como regras jurídicas, dogmas religiosos, morais, etc.

Dessa maneira, fato social, é,

[...] toda maneira de fazer, fixado ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria, independente de suas manifestações individuais. (DURKHEIM, 1999, p. 13).

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Para Durkheim o modo como o homem age está sempre condicionado pela sociedade, logo a sociedade é que explica o indivíduo, as formas de agir apresentam um tríplice caráter: são exteriores (provem da sociedade e não do indivíduo); são coercitivos (impostas pela sociedade ao indivíduo); e, objetivas (têm uma existência independente do indivíduo). Portanto, os fatos sociais são exteriores, coercitivos e objetivos.

A primeira regra fundamental é considerar os fatos sociais como coisas. Durkheim define coisas dizendo que “[...] as coisas sociais só se realizam através dos homens; elas são um produto da atividade humana” (DURKHEIM, 1999, p. 18). Assim,

É preciso portanto considerar os fenômenos sociais em si mesmos, separados dos sujeitos conscientes que os concebem; é preciso estudá-los de fora, como coisas exteriores, pois é nessa qualidade que eles se apresentam a nós. (DURKHEIM, 1999, p. 28).

Durkheim entende que Spencer e Comte declararam que os fatos sociais, são fatos naturais, porém não trabalharam os fatos sociais como coisas. Logo, para Durkheim a primeira regra é considerar os fatos sociais como coisas.[2]Dentro do pensamento positivista, deve-se eliminar completamente a influência dos fatos subjetivos e individuais, dessa maneira garantiria a imparcialidade e a neutralidade, portanto esse é o motivo de considerar o fato social como“coisas”.[3]

Em relação a este método, cabe assinalar duas coisas. Em primeiro lugar, que Durkheim compara a sociedade a um “corpo vivo” em que cada órgão cumpre uma função. Daí o nome de metodologia funcionalista para seu método de análise. Em segundo lugar, como se repete novamente a idéia de que o todo predomina sobre as partes. Para Durkheim, isso implica afirmar que a parte (os fatos sociais) existe em função do todo (a sociedade). (SELL, 2001, p. 136).

Assim, Durkheim procura identificar a vida social do indivíduo de acordo com a sociedade, e, que a sociedade possui um papel fundamental na vida social do indivíduo, esse holismo, holoiós, que em grego significa “todo”,assim que “[...] o todo predomina sobre as partes” (SELL, 2001, p. 130).

O suicídio

O suicídio como problema contemporâneo atravessa civilizações, nações passam por problemas, as pessoas sofrem de depressão e vêem como última alternativa o suicídio.[4]Ato improvável e indireto. O ser humano é um ser suicida. Duvido de seis bilhões de seres humanos na terra, qual não pensou em suicídio.[5]

Uma pessoa que está existencialmente insegura sobre seus diversos eus, ou se os outros realmente existem, ou se o que é realmente percebido existe, pode ser inteiramente incapaz de habitar o mesmo universo social como os outros seres humanos. (GIDDENS, 1991, P. 96).

O sentimento de culpa, a sensação de desconforto, afastamento emocional, perda de um familiar, qualquer fator que acarrete o ego como vítima, leva pessoas comuns a pensamentos levianos, na realidade não passa de um pensamento muitas vezes mecânico, onde a pessoa autoflagela seu inconsciente, levando ao desapego corporal a

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única tentativa de retaliação. Também, “[...] a presença de depressão, alcoolismo ou de dependência de drogas (geralmente drogas prescritas) como um fator de maioria dos casos. Aproximadamente um terço sofria de doença terminal ou de um distúrbio clinico crônico grave” (TOWNSEND, 2002, p. 642).

Alguns fatos curiosos, os protestantes têm mais probabilidades de se tornarem suicidas do que os católicos e os judeus; indivíduos de classe alta e baixa têm mais tendência a se tornarem suicidas do que indivíduos de classe média; com relação à ocupação funcional, o índice de suicídios é maior em médicos, músicos, dentistas, oficiais da lei, advogados e corretores de seguro do que na população geral. [6]

Sigmund Freud entendia o suicídio como a raiva que um indivíduo sentia por si mesmo, visto como um desejo reprimido antes de matar uma pessoa, um ato agressivo ao eu. Ghosh e Victor identificaram a desesperança como fator central que predispõe o indivíduo ao suicídio. Hendin identificou o desespero como fator preponderante.[7]

Emili Durkheim preocupou-se com o fato do suicídio na Europa, pesquisou o que ele considerou com sendo um fato social, estudou de forma concisa, propondo questões e elaborando sérias diferenças quanto ao suicídio. Durkheim entendia que o suicídio possui causas sociais. Segundo ele, “É nos grandes centros industriais que os crimes e os suicídios são mais numerosos [...]” (DURKHEIM, 1999, p. 15).

O que é comum a todas as formas possíveis dessa renuncia suprema é que o ato que a consagra seja completado com conhecimento de causa; que a vitima, no momento de agir, saiba o que deve resultar de sua conduta, qualquer que seja a razão que a haja levado a se conduzir dessa maneira. [...] Chama-se de suicídio todo o caso de morte que resulta, direta ou indiretamente de um ato, positivo ou negativo, executado pela própria vitima e que ela sabia que deveria produzir esse resultado. (DURKHEIM, 1984, p. 103)

O suicida sabe o que vai acontecer, como ira lesar o seu ato, qual será o resultado de sua ação. Durkheim procura explicar que o suicídio além de uma causa psicológica, psicopatológica ou mesmo causa de imitação, também possui causa social. Durkheim distingue 3 tipos de suicídio:

suicídio egoísta: quando o indivíduo não está integrado à instituição, sente separado da sociedade, distante das correntes sociais. Não existe integração o indivíduo não se sente parte integrante do grupo ou redes sociais que regulam as ações e imprimem disciplina e ordem (família, religião, trabalho, etc.), os indivíduos apresentam desejos que não podem satisfazer-se. Quando esse egoísmo acaba frustrando-se leva as ondas sociais de suicídio. Também pode aparecer quando a pessoa se desvincula das redes sociais, sofrendo de depressão, melancolia, e outros sentimentos.

suicídio altruísta: é o oposto do suicídio egoísta, o suicida altruísta se revela quando o indivíduo se identifica com uma causa nobre, com a coletividade, essa identificação deve ser tão intensa que este acaba renegando a própria vida pela sua identificação. Está excessivamente integrado ao grupo, frequentemente está regulada por laços culturais, religiosos ou políticos, essa integração acaba sendo tão forte que o indivíduo acaba sacrificando sua própria vida em favor do grupo (Mártires, Kamikases, etc.).

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suicídio anômico: deve-se a um desregramento social, ocorre depois da mudança na vida de um indivíduo (ex: divórcio, perda de emprego), o que desorganiza os sentimentos de relação com o grupo em que não existem normas ou estas perderam o sentido. Quando os laços que prendem os indivíduos aos grupos se afrouxam.

O que Durkheim deixa claro nos tipos de suicídio estudados é a relação indivíduo-sociedade, o suicídio ocorre tanto pela falta da ação do indivíduo em determinada sociedade como pela pressão que está sociedade acarreta sobre ele. Adam Smith considerado o fundador da economia, século anteriores entendia que havia duas ações que levariam os homens a ampliar seus talentos, a busca de estima e o medo de desaprovação, talvez a falta do primeiro e a excessividade no segundo levaria a uma generalização do ego e tornaria frutífero o pensamento leviano nas pessoas. Porém, as causas do suicídio segundo Durkheim sempre são sociais. Durkheim considerava o crime como um fato social normal, já “[...] o suicídio era para ele um fato social patológico que evidenciava que havia profundas disfunções na sociedade moderna” (SELL, 2001, p. 146).

Da divisão do trabalho social

Os efeitos gerados pela Revolução Industrial eram assuntos pertinentes a diversos autores do século XIX e XX, Durkheim para explicar a modernidade busca o conceito de “divisão do trabalho social”, assim buscava identificar a formação de um novo método de trabalho ativava a fragmentação social, assim ocorreria o surgimento de esferas sociais. Logo, para Durkheim a divisão de tarefas também passa ser fonte de relação e interação social.[8]Porém,

Mas a divisão do trabalho não é específica do mundo econômico: podemos observar sua influência crescente nas regiões mais diferentes da sociedade. As funções políticas, administrativas, judiciárias especializam-se cada vez mais. O mesmo ocorre com as funções artísticas e científicas. Estamos longe do tempo em que filosofia era a ciência única; ela fragmentou-se numa multidão de disciplinas especiais, cada uma das quais tem seu objeto, seu método, seu espírito. (DUKHEIM, 1999, p. 2).

Assim, Durkheim identificava que a divisão do trabalho não se dava apenas pelo processo econômico, mas também em outras organizações, como nas funções artísticas, administrativas e políticas. Durkheim inicia discutindo qual é a função da divisão do trabalho. A divisão do trabalho tem como objetivo principal tornar a civilização possível, caso não fosse estaria tornando a moralidade neutra.[9]

Durkheim citando Heráclito a respeito das diferenças no qual entendia que a discórdia é o principio do de todo devir. Assim, parte da divisão em outras categorias, que “A dessemelhança, como a semelhança, pode ser uma causa de atração mutua” (DUKHEIM, 1999, p. 20). Logo, procuramos em nossos amigos as qualidades que nos faltam, que o homem e a mulher possuem suas diferenças, logo tanto a divisão do trabalho determina a relação de amizade, como a divisão do trabalho sexual é a fonte da solidariedade conjugal. [10]

Primeiramente é necessário buscar se existe uma solidariedade social que esteja sendo proveniente da divisão do trabalho. Dessa forma, é necessário determinar a

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solidariedade que ela produz interfere na integração da sociedade, assim para perceber até que ponto essa solidariedade é necessário.[11]

A solidariedade social, porém, é um fenômeno totalmente moral, que, por si, não se presta à observação exata, nem, sobretudo, a medida. Para proceder tanto a essa classificação quanto a essa comparação, é necessário, portanto, substituir o fato interno que nos escapa por um fato externo que o simbolize e estudar o primeiro através do segundo. (DURKHEIM, 1999, p. 31).

A solidariedade social, quando forte entre os homens inclina-os, colocando-os reciprocamente em contínuo contato, relacionando-se constantemente. Assim, quanto mais os membros da sociedade são solidários, mais eles mantêm relações uns com os outros, caso não mantessem contatos constantemente suas relações e mesmo sua dependência seria menor.[12]O que existe e vive realmente são as formas particulares de solidariedades, a solidariedade doméstica, a solidariedade profissional, a solidariedade nacional, etc. e esse estudo da solidariedade pertence ao estudo da sociologia, é um fato social que só pode ser conhecido através do estudo de seus efeitos sociais.[13]O direito que apresenta as formas essenciais de solidariedade social, dessa forma é necessário classificar as diferentes formas de direito para poder classificar as diferentes formas de solidariedade social. A principal idéia de direito é aquela que o divide em direito público e direito privado, o público regula as relações entre os indivíduos e o Estado, e o privado o indivíduo entre si. Porém, todo o direito é público, da mesma forma que todo o direito também passa a ser privado.[14]

Há dois tipos de sanções. Umas consistem essencialmente numa dor, ou, pelo menos, numa diminuição infligida ao agente; elas têm por objeto atingi-lo em sua fortuna, ou em sua honra, ou em sua vida, ou em sua liberdade, privá-lo de algo de que desfruta. Diz-se que são repressivas – é o caso do direito penal. É verdade que as que se prendem às regras puramente morais têm o mesmo caráter, só que são distribuídas de uma maneira difusa por todo o mundo indistintamente, enquanto as do direito penal são aplicadas apenas por intermédio de um órgão definido: elas são organizadas. Quanto ao outro tipo, ele não implica necessariamente um sofrimento do agente, mas consiste apenas na reparação das coisas, no restabelecimento das relações perturbadas sob sua forma normal, quer o ato incriminado seja reconduzido à força ao tipo de que desviou, quer seja anulado, isto é, privado de todo e qualquer valor social. Portanto, devemos dividir em duas grandes espécies as regras jurídicas, conforme tenham sanções repressivas organizadas ou sanções apenas restitutivas. A primeira compreende todo o direito penal; a segunda, o direito civil, o direito comercial, o direito processual, o direito administrativo e constitucional, fazendo-se abstração das regras penais que se podem encontrar aí. (DURKHEIM, 1999, p. 37).

Portanto, para entender a classificação da solidariedade, Durkheim parte do entendimento da necessidade de se entender as formas de direito que são estendidas em dada sociedade, se és aplicado o direito restitutivo ou o direito repressivo. Além de sua grande tese de doutorado, Da Divisão do Trabalho Social, também mostra a influência positivista. Durkheim entende que a sociedade passa por um determinado processo de evolução, essa evolução que está sendo provocada pela diferenciação social. Ocorrendo que a primeira etapa desse processo de evolução social Durkheim chamou de “sociedade de solidariedade mecânica”, já o que se refere à etapa final de “sociedade de solidariedade orgânica”. Assim, organiza da seguinte forma os dois tipos de sociedade.

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Sociedade de solidariedade mecânica

Sociedade de solidariedade orgânica

Laço de solidariedade Consciência coletiva Divisão do trabalho social

Organização social Sociedade segmentada Sociedades diferenciadas

Tipo de direito Direito repressivo Direito restitutivo

Sociedade de solidariedade mecânica

A sociedade de solidariedade mecânica é na verdade um mecanismo de interação dos indivíduos nos grupos ou nas instituições sociais. Da mesma forma, acaba sendo representada pelas diferentes formas de organização na sociedade, segmentada ou diferenciada, também os tipos de direito, se este se baseia no princípio do direito repressivo ou restitutivo.

O vínculo de solidariedade social a que corresponde o direito repressivo é aquele cuja ruptura constitui o crime. Chamamos por esse nome todo ato que, num grau qualquer, determina contra seu autor essa reação característica a que chamamos pena. Procurar qual é esse vínculo é, portanto, perguntar-se qual a causa da pena, ou, mais claramente, em que consiste essencialmente o crime. (DURKHEIM, 1999, P. 39).

Dessa forma, Durkheim inicia trabalhando a diferença da sociedade de solidariedade pela pena, ou melhor, pelo crime que cada sociedade comete dessa maneira como o crime é dado como restituição do ato cometido. Assim “São todos os crimes, isto é, atos reprimidos por castigos definidos” (DURKHEIM, 1999, p. 40).

Nas sociedades de solidariedade mecânica os indivíduos vivem em comum porque partilham da consciência coletiva, assim partilham dos pensamentos em conjunto, elaboram a sua vida através da vida dos outros em praticamente todas as ações “[...] a sociedade inteira participa numa medida mais ou menos vasta”(DURKHEIM, 1999, p. 4).

Os indivíduos se assemelham muito existindo poucas diferenças entre eles, logo se assemelham pelos mesmos gostos, sentimentos, valores e reconhecem nos objetos as mesmas representações do sagrado, assim a semelhanças é enfim o ponto de fundamentação.[15]Portanto, “Nas sociedades dominadas pela solidariedade mecânica, a consciênciacoletiva abrange a maior parte das consciências individuais”. (ARON, 2003, p. 463).

Durkheim define a vida coletiva como “[...] um conjunto de crenças e sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade, que forma um sistema determinado que possui vida própria” (DURKHEIM, 1995, p. 50). Logo, esse laço de solidariedade forma a consciência coletiva.

Nas sociedades primitivas, cada indivíduo é o que são os outros; na consciência de cada um predominam, em número e intensidade, os sentimentos comuns a todos, os sentimentos coletivos. (ARON, 2003, p. 459).

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O grupo na sociedade de solidariedade mecânica prevalece, possui mais eqüidade, aparece mais, logo tem predomínio sobre o indivíduo. O indivíduo não possui relação com o mundo exterior. Logo, são tão semelhantes que pouco se caracterizam como diferenciais, abrindo poucos intervalos para individualidades. Os indivíduos comungam entre si, vivem a comunidade fazendo-se interações, como por exemplo, as sociedades indígenas.

Porém, como fazer transparecer isso,

[...] Durkheim, optou pelo estudo das normas jurídicas que, segundo ele, são um dos meios pelo qual a sociedade materializa (ou torna concreta) suas convicções morais, que são um dos elementos da consciência coletiva. De acordo com a forma pelo qual ele é organizado, o direito é o símbolo visível do tipo de solidariedade que existe na sociedade. Assim, nas sociedades de solidariedade mecânica temos o predomínio do direito repressivo, [...] o predomínio da punição. De acordo com a explicação de Durkheim, isto mostra a força da consciência coletiva sobre a vida dos indivíduos. (SELL, 2001, p. 140-41).

Assim, as normas jurídicas representam de certa forma a sociedade em que vivemos, repressiva ou restitutiva. Nas sociedades de solidariedade mecânica as punições são dadas aos indivíduos e estes não podem dela fugir ou mesmo fazerem-se livres, pois a punição faz com que a sociedade de coesão e não se danifique, logo não se admite violação das regras sociais. “Quanto mais forte a consciência coletiva, maior a indignação com o crime, isto é, contra a violação do imperativo social”. (ARON, 2003, p. 463). A punição não passa de uma lição aos outros indivíduos para que não façam o mesmo.

A organização social da sociedade de solidariedade mecânica é uma sociedade segmentada, da qual há a existência de poucas mudanças, onde os grupos vivem isolados, “[...] com um sistema social que tem vida própria”(SELL, 2001, p. 141). Logo, a manifestação com o exterior é escassa pelo fato que a sociedade sustenta-se por si mesmo. Assim, Durkheim as vê como as sociedades antigas.

É possível a existência de um grande número de clãs, tribos ou grupos regionalmente autônomos, justapostos e talvez até mesmo sujeitos a uma autoridade central, sem que a coerência por semelhança do segmento seja quebrada, sem que se opere, no nível da sociedade global, a diferenciação das funções características da solidariedade mecânica. (ARON, 2003, 461).

Assim as sociedades de solidariedade mecânica estão pouco passíveis de mudanças, geralmente encontram-se estagnadas, a diferenciação é dificultada, pois o enraizamento social está determinado, e, segue-se em etapas.

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Sociedade de solidariedade orgânica

Nas sociedades de solidariedade orgânica os laços de solidariedade exigem a divisão do trabalho social, o tipo de organização social é de uma sociedade diferenciada, também o tipo de direito, diferente da sociedade de solidariedade mecânica, deve ser restitutivo. Durkheim vê como uma lei na história a passagem da sociedade de solidariedade mecânica para a sociedade de solidariedade orgânica.

É, pois, uma lei da história a de que a solidariedade mecânica, que, a princípio, é única ou quase, perde terreno progressivamente e que a solidariedade orgânica se torno pouco a pouco preponderante. Mas quando a maneira como os homens são solidários se modifica, a estrutura das sociedades não pode deixar de mudar. A forma de um corpo se transforma necessariamente quando as afinidades moleculares não são mais as mesmas. Por conseguinte, se a proposição precedente é exata, deve haver dois tipos sociais que correspondem a essas duas sortes de solidariedade. (DURKHEIM, 1999, 17).

A atividade é mais coletiva, os indivíduos dependem uns dos outros, devido à especialização de funções ou mesmo a divisão do trabalho social. Demonstra que nas sociedades ditas modernas as sociedades são altamente desenvolvidas e diferenciadas, assim cada indivíduo exerce funções diferenciadas.

Na realidade o que leva as pessoas a interarem-se é mesmo o progresso dos meios da especialização das funções que os indivíduos exercem entre si, ou mesmo em conjunto, logo os indivíduos acabam se tornando independentes das atividades em diferentes setores da vida social.

Como conclusão, Durkheim afirma que a divisão do trabalho social não pode ser reduzida apenas a sua dimensão econômica, no sentido de que ela seria responsável pelo aumento da produção, sendo está a sua função primordial. Ao contrário, a divisão trabalho social tem antes de tudo uma função moral, no sentido de que ela passa a ser o elemento chave para a integração dos indivíduos na sociedade. (SELL, 2001, 144).

Dessa maneira Durkheim entende que a verdadeira função da divisão do trabalho social possui como fator principal o sentimento de solidariedade entre os indivíduos de determinada sociedade. Porém, com a crescente diversificação das funções, cresce também o sentimento de individualidade entre os indivíduos, a consciência coletiva acaba perdendo seu papel de interação social. Portanto, os “[...] efeitos produzidos pela

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divisão do trabalho, contribuindo para manter o equilíbrio da sociedade” (DURKHEIM, 1999, p.223). Quanto mais o trabalho for dividido, maior rendimento terá.[16]

Mas, se a divisão do trabalho produz a solidariedade, não é apenas porque ela faz de cada indivíduo um “trocador”, como dizem os economistas; é que ela cria entre os homens todo um sistema de direitos e deveres que os ligam uns aos outros de maneira duradoura. (DURKEHIM, 1999, P. 429).

Com a suposta desestruturação coletiva ocorrem duas funções de interesses comuns, uma seria a autonomização dos indivíduos que elaborariam mais as suas tarefas, e se enquadrariam em seus desejos e anseios sociais, a segunda questão seria que essa autonomização do indivíduo também levaria a um egoísmo sem precedente, os próprios indivíduos entrariam em choque com eles mesmo, assim, “Temos uma divisão anômica do trabalho que, para Durkheim, era o grande problema da sociedade moderna” (SELL, 2001, p. 145).

Seguindo a lógica desenvolvimentista, Durkheim vê a mudança de sociedade como um processo gradual, que através da diferenciação social, ela iria evoluindo, entendendo que haveria três fatores para o desenvolvimento da sociedade.

Volume Densidade material Densidade moral

Assim, o volume caracterizaria como um suposto aumento do número de indivíduos de determinada sociedade, para que ocorra a diferenciação é preciso acrescentar a densidade, tanto à densidade moral quanto a material, a densidade moral, entraria nas comunicações e trocas que os indivíduos fazem entre si. Já a densidade material entraria no aspecto de indivíduos por porcentagem com relação à superfície do solo. Logo, quanto mais intenso for o relacionamento entre os indivíduos maior será a sua densidade. Assim, “[...] o crescimento quantitativo (volume) e qualitativo (densidade material e moral), ocorre na sociedade um processo de especialização das funções, chamado por Durkheim de divisão do trabalho social” (SELL, 2001, p. 143).

Bibliografia: ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. Tradução Sérgio Bath.

6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. DURKHEIM, Émili. As regras do método sociológico. [tradução: Paulo Neves;

revisão da tradução Eduardo Brandão]. 2º. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. DURKHEIM, Émili. Da divisão do trabalho social. [tradução Eduardo

Brandão]. 2º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. DURKHEIM, Emili. Émili Durkheim: sociologia / organizador (da coletânea)

Josué Albertino Rodrigues; (tradução de Laura Natal Rodrigues). 3. ed. São Paulo: Ática, 1984.

GIDDENS, Antony. As conseqüências da modernidade. [tradução Raul Fiker]. São Paulo: Editora UNESP, 1991.

SELL, Carlos Eduardo. Sociologia Clássica. 4º ed. Itajaí: Ed. UNIVALI, 2002. TOWNSEND, Mary C. Enfermagem Psiquiátrica: conceitos de cuidados.

[tradução: Fernando Diniz Mundim]. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 2002.

Page 28: Bourdieu

[1] Professor/tutor nas áreas de História, Geografia, Filosofia e Sociologia. Graduado em História pela Universidade de Passo Fundo. Pós-graduando em Sociologia pela Universidade de Passo Fundo. Pós-graduando em Educação a Distancia pela Faculdade de Tecnologia SENAC. Mestrando em História pela Universidade de Passo Fundo. E-mail: [email protected].

[2] DURKHEIM, Émili. As regras do método sociológico. [tradução: Paulo Neves; revisão da tradução Eduardo Brandão]. 2º. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 16.

[3] SELL, Carlos Eduardo. Sociologia Clássica. 4º ed. Itajaí: Ed. UNIVALI, 2002, p.132.

[4] O suicídio foi identificado como a terceira maior causa de morte (depois dos acidentes com veículos a motor e os homicídios) no grupo de 15 a 24 anos de idade (Murray & Zentner, 1997). A freqüência de suicídio em adolescentes triplicou nos últimos 30 anos (Murphy, 1994). Um dos principais fatores que contribuem pra este fato é o aumento dos distúrbios depressivos entre os jovens (Ghosh & Victor, 1994). Outros fatores de risco associados ao suicídio em adolescentes incluem a religião (menor probabilidade nos casos de católicos e judeus), ter pais portadores de doenças psiquiátricas (especialmente uso excessivos de drogas ou álcool), uma história de suicídio na família, desemprego paterno e ausência do pai ou da mãe (Slaby, Lieb & Tancredi, 1986). In: TOWNSEND, Mary C. Enfermagem Psiquiátrica: conceitos de cuidados. [tradução: Fernando Diniz Mundim]. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 2002, p. 206.

[5] Embora as pessoas com idade superior a 65 anos representem apenas 12 por cento da população, elas incluem uma taxa desproporcionalmente elevada de pessoas que cometem suicídio. De todos os suicidas, 17 por cento pertencem a esta faixa etária, e o suicídio é agora uma das primeiras 10 causas de morte entre a população idosa. In: TOWNSEND, Mary C. Enfermagem Psiquiátrica: conceitos de cuidados. [tradução: Fernando Diniz Mundim]. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 2002, p. 642.

[6] Saber mais. In: TOWNSEND, Mary C. Enfermagem Psiquiátrica: conceitos de cuidados. [tradução: Fernando Diniz Mundim]. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 2002, p. 206.

[7] TOWNSEND, Mary C. Enfermagem Psiquiátrica: conceitos de cuidados. [tradução: Fernando Diniz Mundim]. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 2002, p. 206.

[8] SELL, Carlos Eduardo. Sociologia Clássica. 4º ed. Itajaí: Ed. UNIVALI, 2002, p.138.

[9] DURKHEIM, Émili. Da divisão do trabalho social. [tradução Eduardo Brandão]. 2º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 18.

[10] DURKHEIM, Émili. Da divisão do trabalho social. [tradução Eduardo Brandão]. 2º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 22.

Page 29: Bourdieu

[11] DURKHEIM, Émili. Da divisão do trabalho social. [tradução Eduardo Brandão]. 2º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 30.

[12] DURKHEIM, Émili. Da divisão do trabalho social. [tradução Eduardo Brandão]. 2º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 31.

[13] DURKHEIM, Émili. Da divisão do trabalho social. [tradução Eduardo Brandão]. 2º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 34.

[14] DURKHEIM, Émili. Da divisão do trabalho social. [tradução Eduardo Brandão]. 2º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 36.

[15] ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. Tradução Sérgio Bath. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 458.

[16] DURKHEIM, Émili. Da divisão do trabalho social. [tradução Eduardo Brandão]. 2º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 224

O conceito de campo em Pierre BourdieuEste de artigo tem como objetivo descrever os pontos fundamentais

concernentes à teoria de campo desenvolvida pelo sociólogo francês Pierre

Bourdieu e foi originalmente publicado em minh dissertação de mestrado em

Psicologia Social pela PUC-SP "Literatura, Ideologia e Política: uma proposta de

abordagem psicossocial sobre a obra de Jorge Luis Borges durante o primeiro

governo Perón (1946-1955)".

A sociologia de Bourdieu é complexa e hermética e demanda uma leitura

mediada. Com a divulgação deste artigo pretendo estabelecer uma "ponte" de

diálogo de sua obra com pesquisadores e estudantes em ciências humanas que

desejam conhecer a obra do sociólogo. Mais precisamente, um dos conceitos

centrais de sua sociologia, o conceito de "campo".

O conceito campo em Pierre Bourdieu

Segundo a conceituação de Bourdieu, um campo pode ser compreendido

como um espaço estruturado de posições, onde agentes estão em concorrência

pelos seus troféus específicos seguindo regras igualmente específicas

(BARROS, 2003: 120).

Bourdieu (apud BONNEWITZ, 2005: 60)

Page 30: Bourdieu

Em termos analíticos, um campo pode ser definido como uma rede

ou uma configuração de relações objetivas entre posições. Essas

posições são definidas objetivamente em sua existência e nas

determinações que elas impõem aos seus ocupantes, agentes ou

instituições, por sua situação (situs) atual e potencial na estrutura da

distribuição das diferentes espécies de poder (ou de capital) cuja

posse comanda o acesso aos lucros específicos que estão em jogo

no campo e, ao mesmo tempo, por suas relações objetivas com

outras posições (dominação, subordinação, homologia etc.). Nas

sociedades altamente diferenciadas, o cosmos social é constituído do

conjunto destes microcosmos sociais relativamente autônomos,

espaços de relações objetivas que são o lugar de uma lógica e de

uma necessidade especificas e irredutíveis às que regem os outros

campos. Por exemplo, o campo, artístico, o campo religioso ou o

campo econômico obedecem a lógicas diferentes.

Desta maneira, um espaço social conceituado como campo se apresenta

à apreensão sincrônica como um espaço estruturado de posições “cujas

propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas

independentemente das características de seus ocupantes (em parte

determinadas por elas)” (BOURDIEU, 1983).

Dizer que um espaço social é estruturado significa considerar que as

posições deste não se equivalem e tampouco são harmônicas. Significa dizer

que são espaços sociais “caracterizados por assimetrias e diferenças

relativamente estáveis em termos de distribuição de, e acesso a, recursos de

vários tipos, poder, oportunidades e chance na vida” (THOMPSON, 2007: 198).

Um espaço de distâncias sociais entre as posições ocupadas pelos agentes em

relação.

Um campo é concebido, assim, como um espaço social multidimensional

de relações sociais entre agentes que compartilham interesses em comum,

disputam por troféus específicos, mas que não dispõem dos mesmos recursos e

competências. É um espaço de disputa entre dominantes e dominados. Entre os

agentes que possuem um acúmulo maior de capital (poder) para intervir e

deformar o campo (definir quais são os troféus legítimos, as regras de entrada,

os limites de subversão etc.) e empregam estratégias para conservarem suas

posições e aqueles desejosos de abandonar sua posição de dominados

Page 31: Bourdieu

empregando, geralmente, estratégias de subversão.Desta forma pode-se dizer

que a estrutura do campo é um estado da relação de força entre os agentes

engajados na luta.

Desta maneira, o conceito de campo nos autoriza a pensar o espaço

social dentro da lógica sistêmica – como um conjunto organizado, onde as

posições se definem umas em relação às outras (BARROS, 2003). Assim nos

permite corrigir uma leitura nominalista e essencialista que venha tomar uma

posição na escala social (um papel, um posto, uma função, um cargo etc.) em si

mesma, “independentes das posições que lhe são complementares e que

definem reflexivamente seus limites no espaço” (Idem: 42).

Neste sentido, compreende-se que a estrutura do campo (as posições de

dominados e dominantes) antecede os agentes que fazem parte do campo.

As posições que marcam qualquer campo se definem em relação a

critérios. Verdadeiros eixos que estruturam o espaço, permitindo que

um ocupante realmente possa existir em relação a alguma coisa.

Desta forma, falar de um campo é mais do que descrever as posições

ocupadas e as lutas e estratégias de conservação ou de subversão

do atual estado da relação de forças. É analisar em que medida estes

eixos de estruturação foram definidos e redefinidos como tais ao

longo da história especifica do campo (BARROS, 2003: 113).

Assim, as propriedades dos ocupantes dependem da posição ocupada e

podem, portanto, serem analisadas independentemente das características dos

ocupantes. Como exemplo: é a posição de dominação (um diretor de Escola,

p.ex.) que confere poder ao dominante e não o contrário – suas características

(modo de falar, competência emocional e intelectual etc.), adquiridas ao longo

de uma trajetória social.

Afinal, diz Bourdieu (apud, BONNEWITZ, 2005:53):

[...] Os agentes e os grupos de agentes são assim definidos por suas

posições relativas neste espaço. Cada um deles está situado numa

posição ou numa classe precisa de posições vizinhas (isto é, numa

região determinada do espaço) e não pode ocupar realmente, mesmo

que seja possível fazê-lo em pensamento, duas regiões opostas do

espaço [...] Pode-se descrever o espaço social como um espaço

multidimensional de posições tal que toda posição atual pode ser

definida em função de um sistema multidimensional de coordenadas,

Page 32: Bourdieu

cujos valores correspondem aos valores de diferentes variáveis

pertinentes.

Cabe ressaltar, no entanto, que nem todos os espaços sociais de

produção e circulação de discursos e práticas e interação se constitui como

campo. Em “Algumas propriedades dos campos” Bourdieu (1983) destaca

algumas leis gerais destes: em primeiro lugar, a condição necessária (mas não

suficiente) para definir se um determinado espaço social se define como um

campo é sua relativa autonomia em relação a outros campos. Ou seja, se este

espaço social possui uma dinâmica singular em relação a outros setores do

universo social, objetivada em fronteiras simbólicas que delimitem “seu território,

seus agentes, suas regras, seus troféus, seus mecanismos de ingresso e de

exclusão” (BARROS, 2003: 40).

Desta maneira, notamos que conceito de campo se aproxima da noção de

comunidade semiótica desenvolvida por Bakhtin em “Marxismo e Filosofia da

Linguagem”.

Observa Bakhtin (2002: 33) que no domínio dos signos:

Existem diferenças profundas, pois é ao mesmo tempo, o da

representação, do símbolo religioso, da fórmula científica e da forma

jurídica, etc. Cada campo da criatividade ideológica tem seu próprio

modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua

própria maneira. Cada campo dispõe de sua própria função no

conjunto da vida social.

Em segundo lugar, é preciso que haja o reconhecimento por parte dos

agentes de um ou mais objetos de luta comuns (no caso do campo literário um

exemplo de objeto de disputa a definição do que é a legítima arte).

Em terceiro, é necessário, em qualquer campo, a existência de objetos de

disputa e pessoas que conheçam e reconheçam as leis imanentes do jogo, os

objetos de disputa etc. e estejam dispostas a disputar o jogo. Porém,

diferentemente da maioria dos jogos, cabe notar, as regras do jogo não são

“impostas por algum idealizador da diversão, constituindo-se em objeto de luta

permanente” (BARROS, 2003: 113).

Bourdieu,

Efetivamente, podemos comparar o campo a um jogo (embora, ao

contrário de um jogo, ele não seja o produto de uma criação

deliberada e obedeça a regras, ou melhor, a regularidades que não

Page 33: Bourdieu

são explicitadas e codificadas). Temos assim móveis de disputa que

são, no essencial, produtos da competição entre jogadores; um

investimento no jogo, illusio (de ludus, jogo): os jogadores se deixam

levar pelo jogo, eles se opõem apenas, às vezes ferozmente, porque

têm em comum dedicar ao jogo, e ao que está em jogo, uma crença

(doxa), um reconhecimento que escapa ao questionamento [...] e

essa colusão está no princípio de sua competição e deseus conflitos.

Eles dispõem de trunfos, isto é, de cartas-mestra cuja força varia

segundo o jogo: assim como a força relativa das cartas muda

conforme os jogos, assim, a hierarquia das diferentes espécies de

capital (econômico, cultural, social, simbólico) varia nos diferentes

campos (apud, BONNEWITZ: 61).

Em cada campo específico existe um conjunto de interesses

fundamentais compartilhados que garantem sua existência e funcionamento.

Como um jogo qualquer há disputa, mas também acordos. E se por um lado o

conceito de campo ilumina, sobretudo, as cenas onde se realizam as lutas entre

forças opostas, por outro também chama a atenção para a cumplicidade entre

os agentes interessados nesta disputa.

Desta maneira, há uma quarta lei do campo que é a tendência orgânica

de impedir e dificultar a ação de qualquer agente externo ao campo que vise

subverter suas regras de ingresso, definição de valores e acesso aos troféus.

É importante notar que o conceito de campo mostra pouco “interesse pela

vida fora do campo dos agentes lutando no seio de alguns universos

profissionais” (BARROS, 2003: 121). Limita-se à observação dos agentes

exclusivamente em suas atividades profissionais, “ignorando outras relações

sociais, públicas ou privadas, duráveis ou efêmeras” (idem: 122). Porém,

diferentemente da maioria dos jogos as regras não são impostas por algum

idealizador, são, antes, objetos de luta permanente entre os agentes

pertencentes ao campo (Idem: 123)

***

Segundo Bourdieu o que permite estruturar o universo social é a posse

de diferentes tipos de capital.A posição dos agentes no espaço das classes

depende do volume e da estrutura de seu capital.

À primeira análise, a noção de capital está ligada a abordagem

econômica. A analogia se explica pelas propriedades reconhecidas do capital:

Page 34: Bourdieu

ele se acumula por meio de operações de investimento, transmite-se pela

herança, permite extrair lucros segundo a oportunidade que o seu detentor tiver

de operar as aplicações mais rentáveis. Estas características fazem dele um

conceito heurístico e, como faz Bourdieu, seu uso não é limitado apenas à área

econômica. Bourdieu (2000) distingue quatro tipos de capital: (1) capital

econômico; (2) capital cultural; (3) capital social; (4) capital simbólico.

O capital econômico é constituído “pelos diferentes fatores de produção

(terras, fábricas, trabalho) e pelo conjunto de bens econômicos: renda,

patrimônio, bens materiais” (BONNEWITZ, 2005:53).

O capital cultural corresponde ao “conjunto das qualificações intelectuais

produzidas pelo sistema escolar ou transmitidas pela família”. Pode existir

sobre três formas: “em estado incorporado, como disposição duradoura do

corpo (p. ex, a facilidade de expressão em público); em estado objetivo, como

bem cultural (a posse de quadros, de obras); em estado institucionalizado, isto

é, socialmente sancionado por instituições (como títulos acadêmicos)” ( Idem,

ibidem: 54).

O capital social é definido pelo conjunto das relações sociais de que

dispõe um indivíduo ou um grupo. A posse deste tipo de capital implica a

instauração e manutenção das relações de sociabilidade: convites recíprocos,

lazer em comum etc. (Idem).

O capital simbólico correspondente ao conjunto de rituais (como as boas

maneiras ou o protocolo) ligados à honra e ao reconhecimento.

Entre as diferentes formas de capital, o capital econômico e o cultural

são os que fornecem os critérios de diferenciação “mais pertinentes para

construir o espaço social das sociedades desenvolvidas” (Idem: 54).

Campo literárioSe por um lado existem leis gerais do campo, por outro, informa Bourdieu,

existem características específicas próprias a cada campo particular. Em cada

um deles, a luta entre dominados e dominantes, as definições dos

comportamentos legítimos, regras de entrada e troféus, se revestem de

propriedades próprias, muitas vezes irredutíveis a outros campos.

Para Bourdieu, o campo literário opera numa lógica própria que consiste

basicamente, no princípio de recusa de interesses materiais (por exemplo, o

lucro econômico como a venda do produto artístico) e/ou simbólicos (por

Page 35: Bourdieu

exemplo, o reconhecimento do grande público).Nos termos de Bourdieu, o

campo literário opera numa espécie de lógica econômica invertida: o critério

para julgar se determinada obra é legítima é o fato de ela estar desprendida de

qualquer coerção material. O troféu máximo, a autodeterminação da obra e a

autonomia do campo literário (BOURDIEU, 2000).

Em outras palavras, a doxa (aquilo que é tomado como óbvio, natural) do

campo literário que fundamenta as regras de entrada, os limites de subversão

que faz funcioná-lo, é o princípio de autonomia do artista e de sua obra. O que

foge disto é visto como subversivo (heterodoxo)ou ilegítimo.

Certamente a própria noção de campo implica na noção de sua

autonomia relativa em relação a outros campos, mas no caso do campo

artístico, esta luta por autonomia consiste na forma definidora dos embates entre

seus agentes.

Desta forma, existe no interior do campo artístico um corte entre aqueles

que produzem para o grande público e estão mais interessados nos lucros

financeiros do que no acúmulo do capital específico ao campo literário, e os

outros que se apegam ferrenhamente à noção de autonomia artística.

Quanto mais autônomo é o campo artístico em questão, mais poder no

interior do campo tende a ter estes que fazem de seu fazer um exercício de

denegação de interesse, enquanto os outros dominados no campo, gozam de

prestígios e poderes de outras sortes (que não são específicos ao mundo

artístico) em outros setores da sociedade.

Assim, a respeito do campo artístico, existem dois eixos de

hierarquização que incidem sobre seus agentes: um princípio de hierarquização

interna que define dominantes e dominados no seio do campo e que favorece os

artistas conhecidos e reconhecidos por seus pares e unicamente por eles; e um

princípio de hierarquização externa que situa o campo artístico e seus agentes

no conjunto do universo social e tem como critério o êxito temporal.

Pela lógica de distribuição de capitais no espaço social, o campo literário

ocupa uma posição dominada no campo de poder<!--[if !supportFootnotes]--

>[1]<!--[endif]-->: “Por mais livres que possam estar das sujeições e das

solicitações externas, são atravessados pela necessidade dos campos

englobantes, a do lucro econômico ou político. (Idem: 246). Por conseguinte, o

campo literário é o espaço de lutas entre os agentes que são favoráveis ao

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campo econômico e político (por exemplo, os defensores da “arte burguesa”) e

os agentes que defendem radicalmente o fracasso temporal das obras (por

exemplo, os defensores da “arte pela arte”).

O grau de autonomia de um campo de produção cultural dentro do campo

de poder (conjunto da sociedade) se dá na medida em que o princípio de

hierarquização externa está subordinado ao princípio de hierarquização interna.

Ou seja, quanto “maior é a autonomia, mais a relação de forças simbólicas é

favorável aos produtores mais independentes da demanda” (Idem: 246).

BIBLIOGRAFIA

BARROS,Clóvis de Barros. “A sociologia de Pierre Bourdieu e o campo da comunicação”: Uma proposta de investigação teórica sobre a obra de Pierre Bourdieu e suas ligações conceituais e metodológicas com o campo da comunicação. Tese de doutorado, Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2003.BONNEWITZ, Patrice. Primeiras lições sobre a sociologia de Pierre Bourdieu. Petrópolis: Vozes, 2005.BOURDIEU, Pierre. As regras da Arte. São Paulo: Cia. das Letras, 2000..O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1989.Algumas propriededades do campo In: BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Ed. Marco Zero, 1983

Pierre Bourdieu: a teoria na prática

Pierre Bourdieu: the theory in practice

Hermano Roberto Thiry-Cherques

Professor titular da Ebape/FGV. Endereço: Praia de Botafogo, 190, sala 508 — CEP 22250-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

RESUMO

Este artigo apresenta um programa para aplicação da forma de investigar de Pierre Bourdieu às pesquisas em ciências humanas e sociais. A partir da exposição sobre as suas fontes e práticas epistemológicas, o artigo discute o sistema de conceitos que Bourdieu utiliza e desenvolve um roteiro genérico de pesquisa baseado nas suas investigações. Conclui com um resumo das

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críticas às suas concepções e uma apresentação sintética do seu legado.

PALAVRAS CHAVE: método; Bourdieu; ciências humanas; ciências sociais.

ABSTRACT

This article presents a program for applying Pierre Bourdieu's investigation methods to human and social sciences research. It begins by presenting their epistemological origins and practices, and then discusses the concept system adopted by Bourdieu and develops a generic research guide based on his investigations. It concludes by summarizing the critique of his concepts and by making a synthetic presentation of his legacy.

KEYWORDS: method; Bourdieu; human sciences; social sciences.

1. Introdução

A obra sociofilosófica de Pierre Bourdieu pode ser entendida como uma teoria das estruturas sociais a partir de conceitos-chave. Nas suas investigações, Bourdieu erige uma variante modificada do estruturalismo. Ele se esforça para encontrar tramas lógicas ou problemáticas que evidenciem a presença de uma estrutura subjacente ao social. Segue a tradição de Saussure e de Lévi-Strauss, ao aceitar a existência de estruturas objetivas, independentes da consciência e da vontade dos agentes. Mas deles difere ao sustentar que tais estruturas são produto de uma gênese social dos esquemas de percepção, de pensamento e de ação. Que as estruturas, as representações e as práticas constituem e são constituídas continuamente (Bourdieu, 1987:147).

O estruturalismo de Bourdieu se volta para uma função crítica, a do desvelamento da articulação do social. O método que adota se presta à análise dos mecanismos de dominação, da produção de idéias, da gênese das condutas. A seguir apresento uma síntese operacional deste método. O meu propósito é contribuir para o desenvolvimento de pesquisas sobre estes temas em campos, como os da ciência da gestão, correlatos ao da sociologia.

A compreensão da forma de investigar de Bourdieu apresenta uma dificuldade radical: o seu método não é suscetível de ser estudado separadamente das pesquisas onde é empregado (Bourdieu et al., 1990). Consta do cerne do que ele denominou de "estruturalismo genético" ou construtivista, a convicção de que as idéias, não só epistemológicas, mas até mesmo as mais abstratas, como as da filosofia, as da ciência e as da criação artística são tributárias da sua condição de produção. Para Bourdieu acreditar que existe um método, uma filosofia pura do

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conceito ou um trabalho científico descarnado não passa de uma "ilusão escolástica" (Dortier, 2002:54).

Para escapar a esta ilusão, o que procurei realizar foi uma análise — não uma interpretação — dos conceitos fundamentais e dos passos que Bourdieu seguiu nas suas investigações. Isto foi possível porque o que ele constrói e aperfeiçoa ao longo da vida não é propriamente um método original, mas um sistema de hábitos intelectuais que rejeita algumas idéias enquanto absorve outras das escolas de pensamento que fizeram fortuna na segunda metade do século passado.

2. Heranças

A formação filosófica, a prática etnológica e a da posterior dedicação à sociologia ancoram Bourdieu à filosofia das ciências, na tradição de Bachelard (1984, 1990, 1996), e ao pensamento de Cassirer (1965, 1972), tanto no que se refere à sua filosofia das formas simbólicas, como à sua concepção relacional do conhecimento, e à fenomenologia de Husserl e Merleau-Ponty; trinômio ao qual ele une o modelo estruturalista de Lévi-Strauss (Bourdieu et al., 1990:10). Mas as suas fontes se estendem ao marxismo e ao diálogo intelectual com contemporâneos, como Althusser, Habermas e Foucault.

Do estruturalismo, Bourdieu rejeita a redução objetivista que nega a prática dos agentes e não se interessa senão pelas relações de coerção que eles impõem. Nega, igualmente, o determinismo e a estabilidade das estruturas, mas mantém a noção de que o sentido das ações mais pessoais e mais transparentes não pertence ao sujeito que as perfaz, senão ao sistema completo de relações nas quais e pelas quais elas se realizam (Bourdieu et al., 1990:32). Com isto, ele se coloca a meia distância entre o subjetivismo, que desconsidera a gênese social das condutas individuais, e o estruturalismo, que desconsidera a história e as determinações dos indivíduos. É uma perspectiva que difere substancialmente da de Saussure e de Lévi-Strauss. Ainda que procure identificar estruturas transfactuais, que escapam à observação empírica, e pense que a realidade só possa ser conhecida graças à intervenção de teorias e arcabouços conceituais, ele considera estruturas determinadas no espaço e no tempo (não-universais), que devem ser desveladas com o auxílio de métodos empíricos.

Embora herdeiro da filosofia das ciências, Bourdieu se recusa a aplicar siste mas classificatórios aos objetos que investiga (Bourdieu, 1992a:184). Entende que toda tipologia cristaliza uma situação, isto é, que tende a ser arbitrária, na medida em que descarta os tipos que não se enquadram e os casos que se encontram na fronteira, os casos que não se distinguem claramente. Ele deve a Bachelard (1984) a idéia de que o pensamento opera como um movimento de pinça, que descobre, integra e supera as limitações das teorias em uma composição conceitual cada vez mais abrangente.

Da fenomenologia, Bourdieu rejeita o descritivismo, que considera apenas como uma etapa do processo de investigação. Mas absorve o rompimento com o senso comum, com as pré-

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noções, com as doutrinas, com os modos de apreender o mundo. Ele segue a fenomenologia ao abandonar a "atitude natural" e, mesmo, a atitude intelectual ante o objeto, e assumir uma "atitude fenomenológica", que entende o objeto como um todo e a ele integra a reflexão sobre a atitude, tanto dos agentes quanto dos pesquisadores (Robbins, 2002:321). Absorve igualmente da fenomenologia o processo de construção do fato social como objeto (Bourdieu et al., 1990, passim) e a idéia de que são os agentes sociais que constroem a realidade social, embora sustente que o princípio desta constituição é estrutural (Bourdieu, 2001:209).

Do marxismo, Bourdieu toma as idéias da luta pela dominação e da "consciência de classe", que integra no conceito de habitus. Mas ele se preocupa com o que denomina "ilusão racionalista" (Bourdieu, 2001): o pensamento que não leva em conta a situação em que se pensa, o mundo em que se está imerso, como as teorias que partem de uma lógica dada do social (Rawls, Habermas), que se fundam em situações ideais de justiça, de diálogo etc. Bourdieu também se afasta das categorias marxistas ligadas à luta de classes: falsa consciência, alienação, mistificação etc. Para ele, a dominação se exerce sempre mediante violência, seja ela bruta ou simbólica (Dollé, 1998:32), seja mediante coação física, sobre os corpos, seja através da coação espiritual, sobre as consciências (Bourdieu, 2001:203).

Do individualismo metodológico, Bourdieu rejeita a idéia de que o fenômeno social é unicamente produto das ações individuais, e que a lógica dessas ações deve ser procurada na racionalidade dos atores. Ele pensa que a formação das idéias é tributária das suas condições de produção. Que os atos e os pensamentos dos agentes se dão sob "constrangimentos estruturais". Por isso insiste que, na pesquisa, se mantenha uma "vigilância epistemológica": o cuidado permanente com as condições e os limites da validade de técnicas e conceitos. As atitudes de repensar cada operação da pesquisa, mesmo a mais rotineira e óbvia, de proceder à crítica dos princípios e à análise das hipóteses para determinar a sua origem lógica (Bourdieu et al., 1990:14).

Contra o positivismo (a idéia de que a observação é tanto mais científica quanto mais conscientes e mais sistemáticos forem os métodos de que se serve) Bourdieu sustenta que, em sendo o objeto de estudo um ente que pensa e fala, ele tende a tirar a objetividade da investigação. De que a pesquisa "espontânea", no sentido positivista do termo, tende a obscurecer o fato social (Bourdieu et al., 1990, passim). A sua epistemologia funda-se em um racionalismo aplicado. Para ele, o positivismo é característico das ciências exatas. Uma vez que os fatos sociais têm, também, um caráter, a observação será tanto mais produtiva quanto melhor articulada é a reflexão lógica que a antecede e mais sistemática for a teoria que predetermina os dados pertinentes e significantes subjetivos (Bourdieu et al., 1990:16). Convicção que não o impede de seguir fielmente os métodos estatísticos básicos de levantamento e de análise do social.

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A epistemologia de Bourdieu implica, antes de tudo, a "objetivação do sujeito objetivizante", a autoconsciência, o autoposicionamento (Bonnewitz, 2002:5). Ele procura se colocar para além dos modelos existentes e da rigidez de qualquer modelo explicativo da vida social. Entende que não se pode compreender a ação social a partir do testemunho dos indivíduos, dos sentimentos, das explicações ou reações pessoais do sujeito. Que se deve procurar o que subjaz a esses fenômenos, a essas manifestações. Bourdieu adota o estruturalismo como método, mais que como teoria explanatória (Robbins, 2002:316). Parte de um construtivismo fenomenológico, que busca na interação entre os agentes (indivíduos e os grupos) e as instituições encontrar uma estrutura historicizada que se impõe sobre os pensamentos e as ações. Esta posição fica clara na crítica que faz ao modelo de condicionamento de classe do marxismo e ao entendimento existencialista de Sartre sobre a liberdade individual. A meio caminho entre as análises marxistas, que fazem da condição de classe uma camisa-de-força, e a perspectiva sartriana do sujeito autodeterminado a partir da tomada de consciência da sua condição de classe, Bourdieu faz das relações entre as condições da existência, a consciência, as práticas e as ideologias a matriz determinante do indivíduo (Bourdieu, 1992b:188-190).

3. Metassociologia

O esquema que leva à análise empírica é sistêmico. Deriva do princípio de que a dinâmica social se dá no interior de um /campo/, um segmento do social, cujos / agentes/, indivíduos e grupos têm /disposições/ específicas, a que ele denomina / habitus/. O campo é delimitado pelos valores ou formas de /capital/ que lhe dão sustentação. A dinâmica social no interior de cada campo é regida pelas lutas em que os agentes procuram manter ou alterar as relações de força e a distribuição das formas de capital específico. Nessas lutas são levadas a efeito /estratégias/ nãoconscientes, que se fundam no /habitus/ individual e dos grupos em conflito. Os determinantes das condutas individual e coletiva são as /posições/ particulares de todo /agente/ na estrutura de relações. De forma que, em cada campo, o /habitus/, socialmente constituído por embates entre indivíduos e grupos, determina as posições e o conjunto de posições determina o /habitus/.

A lógica aparentemente simples deste referencial demandou, para se manter, a criação de conceitos secundários, que vieram a compor o corpus teórico das investigações levadas a efeito por Bourdieu. O método e as análises vão se sofisticando à medida que ele progride nas suas pesquisas e nas lutas ideológicas e teóricas em que se bateu ao longo de sua vida. Apesar da diversidade de fontes, Bourdieu se mantém fiel ao seu próprio modelo. Ele se afasta de Foucault, por exemplo, que realiza análises a partir de relações entre elementos, para se ater ao princípio da estrutura, a de uma arquitetura imanente do mundo social que entende as práticas humanas como sustentadas por sistemas de elementos universais. Mas recusa a "ilusão objetivista" do estruturalismo (Lechte, 2002:60). Ele pensa que as estruturas devem ser analisadas a partir da prática (Bourdieu, 1992a:227, 1996:157, 2001:193).

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É neste sentido que o estruturalismo de Bourdieu mais se distancia do estruturalismo de Lévi-Strauss. Enquanto este deriva o conceito de estrutura de Saussure e entende a prática social como simples execução, para Bourdieu as disposições, socialmente constituídas que orientam a ação, têm uma capacidade geradora (Bourdieu, 1987:23). Ele considera o sujeito, banido por Lévi-Strauss e por Althusser, tanto como inserido na estrutura quanto como força estruturante de um campo (Bourdieu,1980:70). A sua concepção de estrutura é dinâmica. É a de um conjunto de relações históricas, produto e produtora de ações, que é condicionada e é condicionante. Deriva da dupla imbricação entre as "estruturas mentais" dos agentes sociais e as estruturas objetivas (o "mundo dos objetos") constituídas pelos mesmos agentes. As primeiras instituem o mundo inteligível, que só é inteligível porque pensado a partir das segundas. A reciprocidade da relação estabelece um movimento perpétuo, um sistema generativo autocondicionado — o habitus — que busca permanentemente se reequilibrar, que tende a se regenerar, a se reproduzir.

Enquanto Lévi-Strauss tem uma noção de estruturas sincrônicas, a-históricas e inconscientes, que subjazem as relações sociais, Bourdieu desenvolve um estruturalismo dinâmico, genético ou construtivista. Tal estruturalismo é fundado em uma noção de estruturas sincrônicas e inconscientes, mas históricas — como a do campo —, contextuais e geradoras — como a do habitus— em que a percepção individual ou do grupo, a sua forma de pensar e a sua conduta são constituídas segundo as estruturas do que é perceptível, pensável e julgado razoável na perspectiva do campo em que se inscrevem (Bourdieu, 1996:217 e segs.). Por exemplo, diz ele que o trabalhador, seja ele um operário, um burocrata ou um pianista, não pode se conduzir, improvisar ou criar livremente. Ele é sujeito da estrutura estruturada do campo, dos seus códigos e preceitos. Mas, dentro de limites, de restrições inculcadas e aceitas, a sua conduta, a improvisação e criação são livres: conformam a estrutura estruturante do habitus.

4. Conceitos

Bourdieu retoma os preceitos de Durkheim de que os fatos sociais devem ser construídos para que se tornem objeto de estudo e de que, antes de efetuar a análise dos arquivos, o experimento, ou a observação direta, é necessário preparar um quadro de referências, de modo a formular as questões adequadas e tornar as respostas inteligíveis. Um sistema de regras que vão reger o princípio unificador e organizador da teoria (Singly, 2002:91). Na construção do objeto é preciso separar as categorias que pré-constroem o mundo social e que se fazem esquecer por sua evidência, o que significa levar a campo conceitos sistêmicos, noções que pressupõem uma referência permanente ao sistema completo das suas inter-relações, que subentendem uma referência à teoria.

Os conceitos primários formulados e aperfeiçoados por Bourdieu são o de / habitus/ e o de /campo/. A estes se agregam outros, secundários, mas nem por isto menos importantes, e que formam a rede de interações que orienta a sociologia relacional, a explicação, a partir de uma análise, em geral fundada em

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estatísticas, das relações internas do objeto social. A teoria do habitus e a teoria do campo são entrelaçadas. Uma é o meio e a conseqüência da outra (Vandenberghe, 1999:61). Para seguir os passos do processo investigatório de Bourdieu é essencial compreender estes conceitos tanto separadamente quanto na forma como se articulam.

Habitus

Comecemos pelo conceito de /habitus/, a mais conhecida das idéias de Bourdieu. O conceito tem uma longa história (Aristóteles, Boetius, Averroes, Tomás de Aquino, Hegel, Mauss, Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty...). A definição adotada por Bourdieu foi pensada como um expediente para escapar do paradigma objetivista do estruturalismo sem recair na filosofia do sujeito e da consciência. Aproxima-se da noção de Heidegger do "modo-de-ser no mundo", mas tem características próprias. Para Bourdieu, o habitus é um sistema de disposições, modos de perceber, de sentir, de fazer, de pensar, que nos levam a agir de determinada forma em uma circunstância dada.

As disposições não são nem mecânicas, nem determinísticas. São plásticas, flexíveis. Podem ser fortes ou fracas. Refletem o exercício da faculdade de ser condicionável, como capacidade natural de adquirir capacidades não-naturais, arbitrárias (Bourdieu, 2001:189). São adquiridas pela interiorização das estruturas sociais. Portadoras da história individual e coletiva, são de tal forma internalizadas que chegamos a ignorar que existem. São as rotinas corporais e mentais inconscientes, que nos permitem agir sem pensar. O produto de uma aprendizagem, de um processo do qual já não temos mais consciência e que se expressa por uma atitude "natural" de nos conduzirmos em um determinado meio.

O termo habitus, adotado por Bourdieu para estabelecer a diferença com conceitos correntes tais como /hábito/, /costume/, /praxe/, /tradição/, medeia entre a estrutura e a ação. Denota o sistema de disposições duráveis e transferíveis, que funciona como princípio gerador e organizador de práticas e de representações, associado a uma classe particular de condições de existência. O habitus gera uma lógica, uma racionalidade prática, irredutível à razão teórica. É adquirido mediante a interação social e, ao mesmo tempo, é o classificador e o organizador desta interação. É condicionante e é condicionador das nossas ações.

O habitus constitui a nossa maneira de perceber, julgar e valorizar o mundo e conforma a nossa forma de agir, corporal e materialmente. É composto: pelo ethos, os valores em estado prático, não-consciente, que regem a moral cotidiana (diferente da ética, a forma teórica, argumentada, explicitada e codificada da moral, o ethos é um conjunto sistemático de disposições morais, de princípios práticos); pelo héxis, os princípios interiorizados pelo corpo: posturas, expressões corporais, uma aptidão corporal que não é dada pela natureza, mas adquirida (Aristóteles) (Bourdieu, 1984:133); e pelo eidos, um modo de pensar específico, apreensão intelectual da realidade (Platão, Aristóteles), que é princípio de uma construção da realidade fundada em uma crença pré-reflexiva no valor indiscutível nos

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instrumentos de construção e nos objetos construídos (Bourdieu, 2001:185).

Os habitus não designam simplesmente um condicionamento, designam, simultaneamente, um princípio de ação. Eles são estruturas (disposições interiorizadas duráveis) e são estruturantes (geradores de práticas e representações). Possuem dinâmica autônoma, isto é, não supõem uma direção consciente nas duas transformações (Bourdieu, 1980:88-89). Engendram e são engendrados pela lógica do campo social, de modo que somos os vetores de uma estrutura estruturada que se transforma em uma estrutura estruturante. Aprendemos os códigos da linguagem, da escrita, da música, da ciência etc. Dominamos saberes e estilos para podermos dizer, escrever, compor, inventar.

O habitus é infraconsciente. É como uma segunda natureza, parcialmente autônoma, já que histórica e presa ao meio. Isto quer dizer que ele nos permite agir em um meio dado sem cálculo ou controle consciente. O habitus não supõe a visada dos fins. É princípio de um conhecimento sem consciência, de uma intencionalidade sem intenção (Bourdieu, 1987:22). É adquirido por aprendizagem explícita ou implícita, e funciona como um sistema de esquemas geradores de estratégias que podem ser objetivamente conformes aos interesses dos seus autores, sem terem sido concebidas com tal fim (Bourdieu, 1984:119).

Ele contém em si o conhecimento e o reconhecimento das /regras do jogo/ em um campo determinado. O habitus funciona como esquema de ação, de percepção, de reflexão. Presente no corpo (gestos, posturas) e na mente (formas de ver, de classificar) da coletividade inscrita em um campo, automatiza as escolhas e as ações em um campo dado, "economiza" o cálculo e a reflexão. O habitus é o produto da experiência biográfica individual, da experiência histórica coletiva e da interação entre essas experiências. Uma espécie de programa, no sentido da informática, que todos nós carregamos.

O habitus é relativamente autônomo: encontra-se entre o inconsciente-condicionado e o intencional-calculado. Não é destino: preserva uma margem de liberdade ao agente, não, certamente, a liberdade do sujeito sartriano, mas a liberdade conferida pelas regras dominantes no campo em que se insere. Ele contém as potencialidades objetivas, associadas à trajetória da existência social dos indivíduos, que tendem a se atualizar, isto é, são reversíveis e podem ser aprendidas.

Todo agente, indivíduo ou grupo, para subsistir socialmente, deve participar de um jogo que lhe impõe sacrifícios. Neste jogo, alguns de nós nos cremos livres, outros determinados. Mas, para Bourdieu, não somos nem uma coisa nem outra. Somos o produto de estruturas profundas. Temos, inscritos em nós, os princípios geradores e organizadores das nossas práticas e representações, das nossas ações e pensamentos. Por este motivo Bourdieu não trabalha com o conceito de sujeito. Prefere o de agente. Os indivíduos são agentes à medida que atuam e que sabem, que são dotados de um senso prático, um sistema adquirido de preferências, de classificações, de percepção

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(Bourdieu, 1996:44). Os agentes sociais, indivíduos ou grupos, incorporam um habitus gerador (disposições adquiridas pela experiência) que variam no tempo e no espaço (Bourdieu, 1987:19). Do berço ao túmulo absorvemos (reestruturamos) nossos habitus, condicionando as aquisições mais novas pela mais antigas. Percebemos, pensamos e agimos dentro da estreita liberdade, dada pela lógica do campo e da situação que nele ocupamos.

As estruturas mentais pelas quais os agentes sociais apreendem o social, e que são produto da interiorização do social, geram visões de mundo que contribuem para a construção deste mundo (Bourdieu, 1987:155 e segs.). De modo que é como habitus que a história se insere no nosso corpo e na nossa mente, tanto no estado objetivado (monumentos, livros, teorias), quanto no estado incorporado, sob a forma de disposições. É mediante este processo que o habitus funda condutas regulares, que permitem prever práticas — as "coisas que se fazem" e as "coisas que não se fazem" em determinado campo (Bourdieu, 1987:95). É através deste processo que aprendemos a antecipar nosso futuro em conformidade com a experiência do presente, e, portanto, a não desejarmos o que, no nosso grupo social, aparece como eminentemente pouco provável (Bonnewitz, 2002:24).

O habitus é tanto individual quanto coletivo. Como princípio gerador e unificador de uma coletividade ele retraduz as características intrínsecas e racionais de uma posição e estilo de vida unitário: as afinidades de habitus (Bourdieu, 2005:182). Os habitus são diferenciados e são diferenciantes, isto é, operam distinções (Bourdieu, 1996:23). O conceito de habitus denota um termo médio entre as estruturas objetivas e as condutas individuais, na medida em que o coletivo, o grupo, a fração da sociedade estão depositados em cada indivíduo sob a forma de disposições duráveis, como as estruturas mentais (Bourdieu, 1984:29). O habitus é uma interiorização da objetividade social que produz uma exteriorização da interioridade. Não só está inscrito no indivíduo, como o indivíduo se situa em um determinado universo social: um campo que circunscreve um habitus específico (Bourdieu, 2001).

Campo

Bourdieu procura superar a oposição entre o subjetivismo e o objetivismo mediante uma relação suplementar, vertical, que medeia entre o sistema de posições objetivas e disposições subjetivas de indivíduos e coletividades. O habitus é referido a um /campo/, e se acha entre o sistema imperceptível das relações estruturais, que moldam as ações e as instituições, e as ações visíveis desses atores, que estruturam as relações.

O social é constituído por campos, microcosmos ou espaços de relações objetivas, que possuem uma lógica própria, não reproduzida e irredutível à lógica que rege outros campos. O campo é tanto um "campo de forças", uma estrutura que constrange os agentes nele envolvidos, quanto um "campo de lutas", em que os agentes atuam conforme suas posições relativas no campo de forças, conservando ou transformando a sua estrutura (Bourdieu, 1996:50).

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Os campos não são estruturas fixas. São produtos da história das suas posições constitutivas e das disposições que elas privilegiam (Bourdieu, 2001:129). O que determina a existência de um campo e demarca os seus limites são os interesses específicos, os investimentos econômicos e psicológicos que ele solicita a agentes dotados de um habitus e as instituições nele inseridas. O que determina a vida em um campo é a ação dos indivíduos e dos grupos, constituídos e constituintes das relações de força, que investem tempo, dinheiro e trabalho, cujo retorno é pago consoante a economia particular de cada campo (Bourdieu, 1987:124).

Os campos resultam de processos de diferenciação social, da forma de ser e do conhecimento do mundo. Como tal, cada campo cria o seu próprio objeto (artístico, educacional, político etc.) e o seu princípio de compreensão. São "espaços estruturados de posições" em um determinado momento. Podem ser analisados independentemente das características dos seus ocupantes, isto é, como estrutura objetiva. São microcosmos sociais, com valores (capitais, cabedais), objetos e interesses específicos (Bourdieu, 1987:32). O conceito de campo é fruto do "estruturalismo genético" de Bourdieu. Um estruturalismo que se detém na análise das estruturas objetivas dos diferentes campos, mas que as estuda como produto de uma gênese, isto é, da incorporação das estruturas preexistentes (Bourdieu, 1987:24). Os campos são mundos, no sentido em que falamos no mundo literário, artístico, político, religioso, científico. São microcosmos autônomos no interior do mundo social. Todo campo se caracteriza por agentes dotados de um mesmo habitus. O campo estrutura o habitus e o habitus constitui o campo (Bourdieu, 1992b:102-103; Dortier, 2002:55). O habitus é a internalização ou incorporação da estrutura social, enquanto o campo é a exteriorização ou objetivação do habitus (Vandenberghe, 1999:49).

Como espaço relacional, a estrutura do campo designa uma exterioridade (o que não é o campo), e uma interioridade mútua: os agentes e instituições que existem e subsistem pela diferença, isto é, como ocupantes de posições relativas na estrutura (Bourdieu, 1996:48). A nossa posição em um campo determina a forma como consumimos não só as coisas, mas também o ensino, a política, as artes. Determina, igualmente, a forma como as produzimos e acumulamos (Bourdieu, 1984:210). O campo é um espaço de relações objetivas entre indivíduos, coletividades ou instituições, que competem pela dominação de um cabedal específico (Bourdieu, 1984:197). A posição é a face objetiva do campo que se articula com a face subjetiva, a disposição. A posição é causa e resultado do habitus do campo. Conforma e indica o habitus da classe e da subclasse em que se posiciona o agente.

Por definição, o campo tem propriedades universais, isto é, presentes em todos os campos, e características próprias. As propriedades de um campo, além do habitus específico, são a estrutura, a doxa, ou a opinião consensual, as leis que o regem e que regulam a luta pela dominação do campo. Aos interesses postos em jogo Bourdieu denomina "capital" — no sentido dos bens econômicos, mas também do conjunto de bens culturais, sociais, simbólicos etc. Como nos confrontos político ou

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econômico, os agentes necessitam de um montante de capital para ingressarem no campo e, inconscientemente, fazem uso de estratégias que lhes permitem conservar ou conquistar posições, em uma luta que é tanto explícita, material e política, como travada no plano simbólico e que coloca em jogo os interesses de conservação (a reprodução) contra os interesses de subversão da ordem dominante no campo.

O campo é um espaço estruturado de posições (postos) que podem ser analisados, como no estruturalismo em geral, independentemente das características dos seus ocupantes. Mas, ao contrário do estruturalismo de Saussure e Lévi-Strauss, as posições na estrutura do campo são, em parte, determinadas pelos seus ocupantes e correspondem a um estado não-permanente de relações de força (Bourdieu, 1984:113 e segs.). A estrutura do campo é dada pelas relações de força entre os agentes (indivíduos e grupos) e as instituições que lutam pela hegemonia no interior do campo, isto é, o monopólio da autoridade que outorga o poder de ditar as regras, de repartir o capital específico de cada campo. A forma como o capital é repartido dispõe as relações internas ao campo, isto é, dá a sua estrutura (Bourdieu, 1984:114).

Todo campo desenvolve uma doxa, um senso comum, e nomos, leis gerais que o governam. O conceito de doxa substitui, dando maior clareza e precisão, o que a teoria marxista, principalmente a partir de Althusser, denomina "ideologia", como "falsa consciência" (Bourdieu e Eagleton, 1996:267). A doxa é aquilo sobre o que todos os agentes estão de acordo. Bourdieu adota o conceito tanto na forma platônica — o oposto ao cientificamente estabelecido —, como na forma de Husserl (1950) de crença (que inclui a suposição, a conjectura e a certeza). A doxa contempla tudo aquilo que é admitido como "sendo assim mesmo": os sistemas de classificação, o que é interessante ou não, o que é demandado ou não (Bourdieu, 1984:82).

Já o nomos congrega as leis gerais, invariantes, de funcionamento do campo. A evolução das sociedades faz com que surjam novos campos, em um processo de diferenciação continuado. Todo campo, como produto histórico, tem um nomos distinto. Por exemplo, o campo artístico, instituído no século XIX, tinha como nomos: "a arte pela arte". Tanto a doxa como o nomos são aceitos, legitimados no meio e pelo meio social conformado pelo campo.

Todo campo vive o conflito entre os agentes que o dominam e os demais, isto é, entre os agentes que monopolizam o capital específico do campo, pela via da violência simbólica (autoridade) contra os agentes com pretensão à dominação (Bourdieu, 1984:114 e segs.). A dominação é, em geral, não-evidente, não-explícita, mas sutil e violenta. Uma violência simbólica que é julgada legítima dentro de cada campo; que é inerente ao sistema, cujas instituições e práticas revertem, inexoravelmente, os ganhos de todos os tipos de capital para os agentes dominantes. A violência simbólica, doce e mascarada, se exerce com a cumplicidade daquele que a sofre, das suas vítimas. Está presente no discurso do mestre, na autoridade do burocrata, na atitude do intelectual. Por exemplo, as pesquisas

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de opinião constituem uma violência simbólica, pela qual ninguém é verdadeiramente responsável, que oprime e rege as linhas políticas nas democracias contemporâneas (Bourdieu, 1996:275). De forma que a dominação não é efeito direto de uma luta aberta, do tipo "classe dominante" versus "classe dominada", mas o resultado de um conjunto complexo de ações infraconscientes, de cada um dos agentes e cada uma das instituições dominantes sobre todos os demais (Bourdieu, 1996:52).

Essas lutas resultam da tendência de todo campo de se reproduzir. Por exemplo, o sistema de ensino é visto por Bourdieu como empreendimento da cultura de classes. Ele sustentou que a cultura escolar, dominada pela cultura burguesa através dos códigos comportamentais, lingüísticos e intelectuais, reproduz as ilusões (illusio) necessárias ao funcionamento e à manutenção do sistema: as crenças compartilhadas em um campo.

Enquanto integrantes de um campo, inscritos no seu habitus, não podemos ver com clareza as suas determinações. Não somos capazes de discuti-lo. A illusio é o encantamento do microcosmo vivido como evidente, o produto não-consciente da adesão à doxa do campo, das disposições primárias e secundárias, o habitus específico do campo, da cristalização dos seus valores, do ajustamento das esperanças às possibilidades limitadas que o campo nos oferece (Bourdieu, 2001:111 e segs.).

Bourdieu sustenta que os agentes e instituições dominantes tendem a inculcar a cultura dominante, de modo a reproduzir o habitus, as desigualdades sociais nas maneiras de falar, de trabalhar, de julgar (Dubet, 1998:46). Para ele, a família, a escola, o meio não só reproduzem as desigualdades sociais, como legitimam inconscientemente esta reprodução. São aparelhos de dominação. A desigualdade não residindo no acesso ao campo, mas no âmago do próprio sistema. A vida social é governada pelos interesses específicos do campo. É regida pela doxa sobre o que vale, tanto no sentido do que tem valor, isto é, o que constitui o capital específico do campo, como no sentido do que é válido, o que vale nos termos da regra do jogo no campo. Cada campo tem um interesse que é fundamental, comum a todos os agentes. Esse interesse está ligado à própria existência do campo (sobrevivência), às diversas formas de capital, isto é, aos recursos úteis na determinação e na reprodução das posições sociais (Bourdieu, 1984:114 e segs.).

Bourdieu deriva o conceito de /capital/ da noção econômica, em que o capital se acumula por operações de investimento, se transmite por herança e se reproduz de acordo com a habilidade do seu detentor em investir. A acumulação das diversas formas de capital se dá por investimento, extração de mais-valia etc. O conceito de capital — etimologicamente o mesmo que o cabedal ou conjunto de bens — é complexo. Além do econômico, que compreende a riqueza material, o dinheiro, as ações etc. (bens, patrimônios, trabalho), Bourdieu considera:

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o capital cultural, que compreende o conhecimento, as habilidades, as informações etc., correspondente ao conjunto de qualificações intelectuais produzidas e transmitidas pela família, e pelas instituições escolares, sob três formas: o estado incorporado, como disposição durável do corpo (por exemplo, a forma de se apresentar em público); o estado objetivo, como a posse de bens culturais (por exemplo, a posse de obras de arte); estado institucionalizado, sancionado pelas instituições, como os títulos acadêmicos;

o capital social, correspondente ao conjunto de acessos sociais, que compreende o relacionamento e a rede de contatos;

o capital simbólico, correspondente ao conjunto de rituais de reconhecimento social, e que compreende o prestígio, a honra etc. O capital simbólico é uma síntese dos demais (cultural, econômico e social).

As formas de capital são conversíveis umas nas outras, por exemplo o capital econômico pode ser convertido em capital simbólico e vice-versa (Bourdieu, 1984:114).

A posição relativa na estrutura é determinada pelo volume e pela qualidade do capital que o agente detém (Bourdieu, 1992b:72). Por exemplo, o capital cultural é a herança, transmitida pela escola (Bourdieu e Passeron, 1964). Um outro exemplo: contra a idéia de "cultura de massa", Bourdieu entende que a prática e a apreciação artística são marcadas pelo pertencimento a uma classe (Bourdieu, 1979); que as lutas pelo reconhecimento são uma dimensão basilar da vida social. Tais lutas compreendem a acumulação de uma forma particular de capital, a honra — no sentido da reputação, do prestígio — e obedecem a uma lógica específica de acumulação de capital simbólico, como capital fundado no conhecimento e no reconhecimento (Bourdieu, 1987:33).

No interior do campo dá-se uma dinâmica de concorrência e dominação, derivada das estratégias de conservação ou subversão das estruturas sociais. Em todo campo a distribuição de capital é desigual, o que implica que os campos vivam em permanente conflito, com os indivíduos e grupos dominantes procurando defender seus privilégios em face do inconformismo dos demais indivíduos e grupos. As estratégias mais comuns são as centradas: na conservação das formas de capital; no investimento com vistas à sua reprodução; na sucessão, com vistas à manutenção das heranças e ao ingresso nas camadas dominantes; na educação, com os mesmos propósitos; na acumulação, econômica, mas, também, social (matrimônios), cultural (estilo, bens, títulos) e, principalmente, simbólica (status). A conotação que

Como espaço social, isto é, como estrutura de relações gerada pela distribuição de diferentes espécies de capital, todo campo pode ser dividido em regiões menores, os subcampos, que se comportam da mesma forma que os campos. A dinâmica dos campos e dos subcampos é dada pela luta das classes sociais, na tentativa de modificar a sua estrutura, isto é, na tentativa de alterar o princípio hierárquico (econômico, cultural, simbólico...) das posições internas ao campo. As classes ou frações sociais

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dominantes são aquelas que impõem a sua espécie de capital como princípio de hierarquização do campo. Não se trata, no entanto, de uma luta meramente política (o campo político é um campo como os outros), mas de uma luta, a maioria das vezes inconsciente, pelo poder. O campo do poder é uma espécie de "metacampo" que regula as lutas em todos os campos e subcampos. A sua configuração determina, em cada momento, a estrutura de posições, alianças e oposições, tanto internas ao campo, quanto entre agentes e instituições do campo com agentes e instituições externos.

O direito de entrada no campo é dado pelo reconhecimento dos seus valores fundamentais, pelo conhecimento das regras do jogo, isto é, da história do campo, e pela posse do capital específico. Os agentes aceitam os pressupostos cognitivos e valorativos do campo ao qual pertencem. Cada campo tem um sistema de filtragem diferente: um agente dominante em um campo pode não o ser em outro. A admissão no campo requer: a posse de diferentes formas de capital, o cacife (enjeux) na quantidade e qualidade do que conta na disputa interna e que constitui a finalidade, o propósito, do jogo específico; e as disposições, inclinações e aprendizados, que conformam o habitus do campo.

O campo é caracterizado pelas relações de força resultantes das lutas internas e pelas estratégias em uso. Sejam estratégias defensivas ou subversivas. Mas, também, pelas pressões externas. Os campos se interpenetram, se inter-relacionam. Por exemplo, o campo escolar e o campo social são distintos, mas não independentes. Do campo escolar, que é orientado para a sua própria reprodução, emanam os trabalhadores, os intelectuais, os agentes do campo social, com as suas orientações particulares (Bourdieu, 1987:56). A homologia estrutural entre os campos faz com que seja possível, por exemplo, que a produção cultural influencie a hierarquia simbólica e que esta contribua para a conservação ou para a subversão da ordem política. Os campos são articulados entre si, não só pela interpenetração dos efeitos dos conflitos, mas pela contaminação das idéias, que criam homologias, como a do "mercado da arte" (Bonnewitz, 2002:55).

A autonomia do campo, dada pelo volume e pela estrutura do capital dominante, faz com que estas inter-relações, influências e contaminações sejam interpretadas, sofram uma espécie de refração ao ingressarem em cada campo específico. O que se passa no campo não é o reflexo das pressões externas, mas uma expressão simbólica, uma tradução, refratada pela sua própria lógica interna. A história própria do campo, tudo que compõe o habitus, as estruturas subjacentes, enfim, funcionam como um prisma para os acontecimentos exteriores (Bourdieu, 1984:219). Os resultados das lutas externas — econômicas, políticas etc. — pesam na relação de forças internas. Mas as influências externas são sempre mediadas pela estrutura particular do campo, que se interpõe entre a posição social do agente e a sua conduta (prise de position). É nesse sentido que o campo é "relativamente autônomo", isto é, que ele estabelece as suas próprias regras, embora sofra influências e até mesmo seja condicionado por outros campos, como o econômico influencia o político, por exemplo. Isto quer dizer que o fato de

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na nossa sociedade o capital econômico ser dominante não significa que ele o seja em outras sociedades, nem em todos os campos, nem que, no futuro, esta situação não possa se alterar (Bourdieu, 1987:125-126).

5. A teoria na prática

É o quadro referencial formado pelo conceito /habitus/ e seus componentes, e circunscrito pelo /campo/ e as suas determinações, que Bourdieu leva à investigação empírica. Ele o desenvolveu ao longo de décadas de pesquisa, mas desde os seus primeiros trabalhos os elementos essenciais estão presentes. Na passagem da filosofia para a etnologia e, depois, para a sociologia, Bourdieu pôde verificar que o processo de investigação científica do social é feito de uma longa série de retomadas, o que o leva ao que denomina de uma "inversão metodológica" (Bourdieu, 1992a:191), isto é, a considerar o método como "...antes de tudo um 'ofício', um modus operandi, que está presente em cada uma das peças do seu trabalho" (Bourdieu, 2005:184185).

Investigando sobre o terreno, ele verifica que o trabalho científico não é uma operação linear. Que, ao longo da pesquisa, a problemática pode ser alterada, a hipótese modificada, as variáveis reconsideradas. Por isto, a seqüência operacional que adota tem a dupla função de limitar o campo investigado, o lugar em que se verificam homologias estruturais entre a posição dos agentes sociais, e de possibilitar uma visão inovadora do que se passa no interior deste campo (Bonnewitz, 2002:30). O objetivo da investigação é conhecer as estruturas, tanto no que elas determinam as relações internas a um segmento do social, isto é, são estruturantes de um campo, quanto no que estas estruturas são determinadas por estas relações, isto é, são estruturadas. O método consiste em estudar o campo mediante a aplicação dos conceitos pré-formados, de modo a desvelar os objetos sociais, o conjunto de relações que explicam a lógica interna do campo.

A realidade empírica é concebida como um reflexo analógico das relações entre elementos de uma estrutura teórica, isto é, hipotética. O modelo levado a campo é constituído por proposições teóricas que devem ser testadas. O que se quer encontrar são os habitus, a doxa, as "leis sociais" que regem um campo, como, por exemplo, a da reprodução do habitus pela educação formal. Tais leis, como vimos, são "nomos", derivam do uso, do costume, têm validade espaço-temporal, são estabelecidas e sustentadas por quem delas se beneficia: os agentes e as instituições dominantes (Bourdieu, 1984:45-46).

Bourdieu segue, em linhas gerais, o protocolo de investigação estruturalista, mas tem como fundamento epistemológico o "materialismo racional" de Bachelard (1990), que preconiza a elaboração prévia do modelo teórico das "estruturas noumenais" (noumeno sendo a intuição intelectual, pura ou derivada da sensibilidade, o pensamento pensado, por oposição ao fenômeno, o manifesto) e a experimentação como realização ou atualização do fenômeno. Propõe um percurso epistemológico

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que vai "do racional ao real" e não do "real ao geral". Entende que o real é racionalizado como atualização de uma teoria.

Ele desenvolve seu trabalho em etapas que se superpõem, mas que podem ser explicitadas separadamente:

marcação de um segmento do social com características sistêmicas (campo);

construção prévia do esquema das relações dos agentes e instituições objeto do estudo (posições);

decomposição de cada ocorrência significativa, característica do sistema de posições do campo (doxa, illusio...);

análise das relações objetivas entre as posições no campo (lógica);

análise das disposições subjetivas (habitus); construção de uma matriz relacional corrigida da

articulação entre as posições (estrutura); síntese da problemática geral do campo.

Tendo como referência estas etapas, vamos seguir o desenrolar do processo investigativo de Bourdieu.

De início devemos proceder a uma ruptura com o sabido e o generalizado. Bourdieu procura evitar as armadilhas da pretensão do conhecimento do fato social e do conhecimento de suas determinações pelos atores e testemunhas. Por isso, na marcação do campo a ser investigado devemos buscar o máximo possível de autonomia. Devemos evitar o que Bourdieu (2001) denomina "falácia escolástica", a reificação da teoria, a descrição de discursos e práticas teóricas como se fossem discursos e práticas efetivas. Devemos procurar construir explicações fundadas sobre variáveis não imediatamente notadas pelos indivíduos, cujas percepções são deturpadas política, social e institucionalmente pela família, pela escola, pelo Estado. Precisamos evitar, como na fenomenologia: a pretensão de conhecer o fato social e a sua determinação pelos seus atores e testemunhas; e deixar-nos levar pela representação dominante (Bourdieu, 1992b:186).

Bourdieu discute longamente o "habitus sociológico", as disposições do pesquisador na aplicação de princípios abstratos em pesquisa empírica. A sua preocupação diz respeito às condições do conhecimento, à reflexividade, isto é, ao fato de que todo conhecimento é condicionado pelo habitus. Ele leva em conta que a percepção do empírico é distorcida não só pelo habitus dos agentes, mas pelo nosso próprio habitus. Por este motivo, ao seguir Bourdieu, o que previamente devemos buscar é a análise das nossas próprias disposições, de modo a alcançar a universalidade mediante a identificação e a crítica da produção intelectual em que se dá a pesquisa. Devemos proceder a uma tarefa prévia, da auto-elucidação sobre o terreno em que vamos atuar.

Pelo menos desde Weber tem-se a idéia de que a correção do viés do observador deve ser feita pelo autoposicionamento em relação ao objeto do estudo, de forma que seja possível a terceiros interpretar os seus resultados, corrigindo a influência

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dos valores dóxicos. Mas Bourdieu vai mais longe. Ele critica em Weber a extrapolação dos tipos ideais. Ao impor categorias rígidas a situações que deveriam ser entendidas a partir de categorias autoconstituídas (caso da religião), Weber não atenta para o fato de que seus tipos são produto do sistema no qual eles operam, mais do que instrumentos autônomos. São uma imposição arbitrária extrínseca sobre fenômenos que possuem significados intrínsecos. Dessa crítica, Bourdieu deriva a idéia de que a análise da lógica das interações deve ser subordinada à análise das estruturas objetivas nas quais as interações são significantes para os atores, a conduta dos agentes devendo ser entendida em termos do campo em que ela se exerce (Robbins, 2002:317). Descrendo da suficiência do esforço de auto-isenção, propõe, para corrigir o viés do habitus sociológico, três artifícios: a interpretação dos pontos de vista a partir da origem e da posição do pesquisador (uma "sociologia da sociologia"); o recurso à interpretação das relações objetivas (dados e informações mensuráveis, a "objetivação da objetivação"); e a coletivização do processo de pesquisa (Maton, 2003:57).

O cuidado com a reflexividade é essencial ao método porque Bourdieu partilha a posição construtivista de Saussure e do estruturalismo em geral, de que o ponto de vista cria o objeto. A delimitação do campo é, portanto, analítica (Vandenberghe, 1999:44). A sua escolha é inteiramente livre. Os campos não são arbitrários, mas nascem como construtos auto-referenciados. Sistemas fechados de relações entre conceitos, modelos, teorias cuja homologia com a realidade tem de ser testada, verificada, corrigida. A liberdade de demarcar um campo nos é dada pelo exemplo do próprio Bourdieu, que trabalhou com uma variedade impressionante de campos (científico, literário, do poder, religioso, jurídico, construção civil, economia regional, pintura, educação superior, político, econômico, do jornalismo, produção intelectual, produção cultural, ciência política, marketing, alta-costura, história em quadrinhos, arte, física...) segmentados segundo a sua própria lógica e interesse específicos.

O passo subseqüente é a análise da posição dos agentes e instituições objeto do estudo na estrutura do campo, isto é, a construção da problemática. A preparação da investigação atende, como no estruturalismo em geral, o primado da razão sobre a experiência, o que implica a construção de uma teoria — entendida como sistema de proposições — que antecede a experimentação (Bourdieu et al., 1990:80). A idéia, antipositivista, é de que se nos lançarmos à análise sem um quadro teórico prévio, não faremos ciência. De que uma tabela estatística, uma observação, consideradas isoladamente, não desvelam as aparências, não constituem uma vitória dos fatos, mas uma vitória sobre os fatos.

Devemos, pois, formar um objeto teórico que será submetido à prova empírica. A construção do fato social consiste em delimitar claramente um segmento da realidade — o campo — o que significa, na prática, selecionar determinados elementos dessa realidade multiforme e descobrir por trás das aparências um sistema de relações próprias ao segmento estudado (Bonnewitz, 2002:28).

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Trata-se de uma redução. Nem todo objeto social é evidente. Para delimitar o objeto como Bourdieu, definimos uma problemática própria, procuramos nos afastar do convencional, do estabelecido, do já sabido e erigir o não-manifesto, o incomum, como objeto de análise. A idéia é de que o conhecimento é conquistado contra a ilusão do saber imediato. O pesquisador deve, portanto, prestar atenção ao inesperado, ao insólito. Deve quebrar as relações aparentes, familiares e fazer surgir um novo sistema de relações entre os elementos, um sistema de relações objetivas, construído independentemente das opiniões e intenções do sujeito investigado, o agente, este objeto que pensa e que fala, mas que não tem consciência das estruturas sobre as quais repousam o seu pensamento e o seu discurso (Bourdieu, 1990:23-32).

Com a marcação e a construção prévia do campo encerramos o nível fenomenológico da pesquisa (Lechte, 2002:61), o passo essencial de uma "teoria da prática", que consiste em se perguntar: por que se pensa e se age desta maneira? Que consiste em "classificar os classificadores", em "objetivizar o sujeito objetivizante". Para tornar possível julgar os árbitros do campo em estudo, a teoria da prática é uma teoria do senso prático. Contra a teoria do sujeito e contra a teoria do mundo como representação, Bourdieu pretende teorizar o mundo social tal como ele é (Bourdieu, 1984:75).

Na decomposição de cada ocorrência significativa da característica do campo, seguimos o modelo, estruturalista, em que se constroem as relações objetivas — econômicas, lingüísticas etc. — tanto da prática, como das representações da prática do campo. Mas precisamos ter em conta que o modelo que vai verificado e corrigido tem a função de explicar a realidade. É um modelo do real, que não se deve confundir com a realidade do modelo. Bourdieu quer escapar do realismo da estrutura sem abrir mão da sua objetividade (Bourdieu, 1980:27 e segs.). Primeiro porque, por definição, o modelo não pode dar conta da complexidade infinita do real; segundo porque ele será retificado pelo experimento, pela parte empírica da pesquisa. O que devemos buscar são homologias estruturais entre a posição dos agentes e instituições, mediante o recorte da sua posição relativa e da estrutura de relações objetivas entre as posições: concorrência, autoridade, poder, legitimidade etc.

Nesse ponto Bourdieu costuma dirigir sua atenção para o habitus, mais precisamente para a análise da gênese do habitus dos agentes, o que lhe permite um quadro de referência que evita tanto o psicologismo (o sujeito particular) como o logicismo (o sujeito desencarnado). Principalmente ele procura encontrar o princípio de diferenciação que constitui o campo (Bourdieu, 1996:49-50). Por exemplo, identificando a doxa— o que é tido como socialmente garantido ou "natural" no campo —, verificando a possibilidade de uma heterodoxia, isto é, do questionamento e da desnaturalização da doxa pelo surgimento de uma doxa alternativa, e investigando a existência de uma ortodoxia, uma reação à heterodoxia, uma estratégia acionada pelas forças dominantes em um campo no sentido de cristalizar uma doxa (Bourdieu e Eagleton, 1996). Este tipo de análise destina-se a situar o objeto no interior do campo de que faz

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parte, o que compreende um duplo movimento: estabelecer a posição dos agentes que produziram o objeto; e estabelecer a posição do objeto no campo considerado (Bourdieu, 1992b:186).

A análise das relações objetivas entre as posições (o "espaço das posições"), a "lógica" do campo, se desvela mediante a explanação da vida social, mas não pela concepção dos seus participantes (com perguntas do tipo "o que você pensa sobre...") e sim pela interpretação das causas estruturais que escapam à consciência. Isto se faz mediante análises estatísticas das correlações no desvelamento das estruturas profundas. Mas Bourdieu vai mais além, até um segundo nível, o das relações entre relações. Por exemplo, em La distinction (Bourdieu, 1979:293 e segs.), ao analisar as diferentes frações da classe dominante — a antigüidade da família como membro da burguesia, o peso do capital econômico, cultural, simbólico, as variantes do gosto como determinantes do sentido da posição de classe — ele demonstra como, a partir de um dado volume e uma dada estrutura de capital, é possível fazer variar o parâmetro, de forma a indicar a posição no espaço social de grupos que vão desde a fração dominante da classe dominante (burguesia industrial) até a fração dominada da classe dominada (operários não-qualificados). Essas classes são objetivamente relacionadas à posição social, segundo três dimensões, duas espaciais e uma temporal: volume do capital detido pelo agente, isto é, o conjunto dos recursos econômicos, sociais, culturais e simbólicos utilizáveis pelo agente para conservar sua posição; estrutura do capital, isto é, a composição do capital global segundo o peso relativo das diferentes espécies de capital; e a trajetória social do agente (o seu passado, o seu presente e o seu futuro potencial), indicada ao longo dos eixos espaciais.

Ao utilizar técnicas de levantamento, Bourdieu tem presente que a propensão para responder é diferenciada. Tende a decrescer proporcionalmente à hierarquia social (mulheres, pobres...) e profissional (operários não-qualificados, lavradores...) que as opiniões pessoais ("na sua opinião...") são viciadas pela doxa do campo. Além disso, as análises estatísticas pressupõem a autonomia das variáveis independentes e dependentes, o que não ocorre nas populações e amostras internas ao campo, nele, as variáveis representativas das posições e das funções estando, por definição, relacionadas. Deve-se corrigir, portanto, a tendência de tomar a identidade nominal das variáveis, assumindo que seus efeitos são lineares e esquecendo que cada variável da rede de relações influencia todas as outras (Vandenberghe, 1999:46). É o que faz Bourdieu (1989:19 e segs.) quando critica as formas escolares de classificação a partir de tabelas sobre a origem social dos laureados ou de dados sobre a profissão dos avós e a freqüência a concertos, para demonstrar como o sistema se reproduz (1989:342 e segs.) ou, ainda, o tratamento dos dados que utiliza para demonstrar como a fração dominante da sociedade escolhe seus herdeiros (Bourdieu e Passeron, 1964).

Ao seguir Bourdieu, tratamos de ir a terreno, proceder a observações, a entrevistas, fazer levantamentos e análises estatísticas de questionários, mas sempre a partir de um quadro referencial que vai sendo corrigido, aperfeiçoado e retomado.

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Em suas análises, ele adota o processo hipotético-dedutivo, que consiste em concluir, a partir de hipóteses, o que é logicamente necessário sobre um objeto. Um processo (análise indutiva) em que a validade da relação entre a hipótese e a conclusão deverá ser confirmada ou infirmada empiricamente. Nesse ponto ele não inova: segue Durkheim, ao tratar o fato social como coisa, e conduz investigações sobre o terreno, confrontando as suas hipóteses com a realidade. Utiliza hipóteses numeráveis e controláveis, que devem implicar uma teoria sistemática do real, mas que não podem imputar os pressupostos à decifração dos dados. As suas hipóteses constituem um "protocolo de teste projetivo" da teoria (Bourdieu et al., 1990:82 e segs.).

Contra a idéia da amostra espontânea do positivismo, Bourdieu trata o empírico, desde o recorte do real a ser examinado até a formulação das questões, a partir de uma teorização prévia. A opção que faz não é entre o empiricismo puro e o racionalismo absoluto. A opção é entre a impossibilidade lógica e o erro controlado, a validação empírica, e não-empiricista, do pensado. É que a estatística não tem como produzir os princípios de sua construção. Somente uma análise estrutural pode fornecer os princípios de uma seleção de fatos capaz de dar conta das suas propriedades de posição (Bourdieu, 1992b:186). Por isso, a construção das hipóteses tem o caráter fundamental de dar uma explicação provisória, uma explicação que se põe por baixo (hüpó) de uma tese, da relação entre um ou vários fenômenos.

Segue-se ao estabelecimento das posições objetivas, a análise das disposições subjetivas dos agentes, que é feita a partir da construção da gênese social do problema, o que implica inscrevê-lo em uma teoria, em nos perguntarmos: quais são os conceitos universais? Quais são os objetos universalizáveis neste campo específico? O habitus estrutura o mundo social, mas isto não quer dizer que se possa inferir mecanicamente o mundo social a partir do habitus, como não se pode inferir o conhecimento dos produtos a partir do conhecimento das condições de produção. Além disso, enquanto as disposições são duráveis, o campo é dinâmico, o que gera efeitos de hystéréris (de deslocamento) das condições de geração das disposições, e, portanto, do habitus, em relação ao momento histórico das posições no campo (Bourdieu, 1984:135).

Neste processo, o que é percebido, dito, escrito, descrito deverá ser absolutamente rigoroso e específico. Por esse motivo, a construção de objetos e a crítica das pré-noções decorrem da epistemologia relacional adotada por Bourdieu. O que ele busca são as "relações objetivas". O que ele formula são conceitos sistêmicos, relacionais, válidos em um contexto dado, o campo, não conceitos substanciais, válidos em qualquer contexto. A conceitualização é a base do esforço que tem por objetivo precisar a gênese do social, em reconstruir a prática tal qual ela é.

O modo como Bourdieu forma seus conceitos é característico. Primeiro, mantendo o princípio da vigilância epistemológica, ele evita a contaminação das pré-noções. Evita, também, o uso de metáforas, analogias e homonímias (Bourdieu et al., 1990:32). Os conceitos que utiliza são sistêmicos, pressupõem uma referência permanente ao sistema completo de suas inter-

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relações, pressupõem uma teoria. Ele define o elenco de conceitos, a formulação lógica de pré-noções, tanto pela coerência do que exclui, quanto pela coerência do que estabelece (Bourdieu et al., 1990:32-80). Bourdieu elabora conceitos da tradição filosófica clássica — /habitus/, /hétis/ — e provenientes de outros segmentos do saber — /capital/, /campo/ —, mas sempre procurando romper com a filosofia (Bourdieu, 1984:37). Em vez de tomar conceitos consagrados ou de depurar conceitos de uso comum, ele forja novos conceitos a partir de termos conhecidos. Com isto, não só ilumina segmentos obscuros do fenômeno social, como renova conteúdos e traz luz nova ao que se pretendia conhecido e sabido.

Havendo demarcado o campo da investigação, construído os sistemas de relações, analisado as posições objetivas dos agentes e a gênese das disposições, estamos em condição de finalizar a matriz estrutural e de discutir a problemática do nosso objeto.

Na forma de pesquisar de Bourdieu, a análise estrutural e a pesquisa empírica se dão simultaneamente. A construção da matriz de relações, a estrutura de articulação entre as posições, acompanha, corrige e arremata a análise da lógica do campo. Bourdieu realiza uma crítica continuada ao longo da pesquisa. Não só mantém a vigilância epistemológica como se pergunta sobre o que as estatísticas realmente dizem, sobre o que os discursos realmente revelam. A partir desse cuidado, faz retificações sucessivas no esquema conceitual, procurando com que o conceito expresse logicamente a completude da noção, ainda que sabendo perfeitamente que toda a representação, toda imagem implica uma redução do real (Bourdieu et al., 1990:175).

Na investigação empírica, Bourdieu faz uso de técnicas convencionais, tanto qualitativas quanto quantitativas, sempre por referência à significação epistemológica do tratamento a que será submetido o objeto. As técnicas qualitativas que utiliza são a entrevista, a conversação a partir de um roteiro de temas a serem abordados, e a observação. As técnicas quantitativas são instrumentos estatísticos — basicamente correlações e análise fatorial — aplicados sistematicamente aos resultados das entrevistas e das observações, procurando o distanciamento com o discurso particular e, por esta via, a objetivação dos fatos observados (Bonnewitz, 2002:30).

Bourdieu insiste que suas demonstrações têm caráter estatístico. Quer ele dizer com isto tanto que o que sustenta está firmado na realidade empírica quanto que o afirma é probabilístico e não absoluto. Que os números que apresenta não são cifras discretas, mas frações, que não revogam as leis da amostragem estatística: permanência dos pequenos números, confiabilidade limitada, contradições etc. Diferentemente do estruturalismo de Lévi-Strauss, objetivista, para quem os indivíduos são determinados pelas estruturas, do subjetivismo, que foca o sujeito como cerne do fato social e do individualismo metodológico, que analisa os sujeitos para chegar ao fato social, Bourdieu entende que não há, no processo de construção da pesquisa, possibilidade de uma objetivação

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completa. Entrevistador e entrevistado, observador e observado, questionador e respondente operam sob a coação de estruturas em que se inserem. Interagem a partir da sua história pessoal, da sua vivência social, o que afeta o resultado da investigação, o que, por fim, pode se tornar um artefato, um fenômeno produzido pelo pesquisador ou, na melhor das hipóteses, pela interação. Ele toma cuidados extremos para evitar a imposição da problemática, para não inquirir sobre temas sobre os quais os indivíduos não têm nenhuma competência e para não levantar questões que os entrevistados nunca se colocaram anteriormente.

A teoria que Bourdieu leva à prova empírica não é um modelo, mas um referencial de conceitos relacionais — /campo/, /habitus/, /capital/, /estratégia/... — que são tanto a grade quanto o conteúdo da explicação. A construção ou teorização, que completa a etapa propriamente estruturalista da forma de investigar de Bourdieu, encerra em si os pecados do estruturalismo convencional: a idealidade, o ser puramente descritivo e a impossibilidade de integralizar elementos cuja conceitualização é difícil, tais como /estilo/ ou /jeito/, ou impossível, como acontece com as estratégias, os modos de proceder individualizados que sustentam ou solapam o modelo vigente em um campo. Ele se previne contra estes riscos mediante a imersão na particularidade empírica situada e datada, condição essencial para se compreender a lógica mais profunda da realidade do social e determinar o invariante, a estrutura, no variante observado (Bourdieu, 1992b:16 e segs.).

Bourdieu escapa à rigidez universalista do estruturalismo ao operar com a dinâmica das relações sociais. Na medida em que os campos estão em permanente ebulição, as estruturas podem ser subvertidas, sofrerem influências aleatórias. Uma vez em que estruturam o campo, elas são continuadas, mas não são permanentes. Isto é, a estrutura se reproduz, mas, dependendo dos resultados das lutas internas, da influência da lutas externas em outros campos, ela pode não conservar a integridade dos seus elementos. As posições podem ser alteradas. Por exemplo, o campo simbólico pode se sobrepor a outro, como a moda se sobrepõe à lógica econômica em determinadas circunstâncias e épocas. A estrutura de um campo é um estado das relações de força entre os agentes ou as instituições que lutam para determinar a distribuição do capital específico, acumulado no curso de lutas anteriores, que orienta as estratégias vindouras (Bourdieu, 1984:114).

Ao seguir Bourdieu, não devemos privar a análise da abstração. Havendo recuperado a subjetividade objetiva, o indivíduo desencarnado das estatísticas, devemos recuperar a objetividade subjetiva, o social no indivíduo. Ele tendo presente que o habitus do observador pode levar a considerar como constatação o que é aspiração, que as respostas obtidas nos questionários tendem a ser sinceramente equivocadas; que a "opinião pessoal" tende a refletir a doxa ética, política, estética do campo (Bourdieu, 2001:83 e segs.), devemos interpretar efeitos como o de hystérésis, a separação entre o habitus e o campo, que pode ser tanto espacial como temporal, e da inércia, a permanência de elementos herdados de situações e estruturas passadas.

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Na prática, Bourdieu procede a busca da lógica das ações como produto do habitus no meio considerado. Ao analisar as estruturas internas do campo, ele produz interpretações conforme um projeto, um instrumento pelo qual o sentido é reintroduzido nas relações estatísticas (Bourdieu, 2005:191; Delsault, 2005:222). Para concluir a pesquisa devemos nos colocar as questões de saber: como são adquiridas as estruturas cognitivas, isto é: quais os capitais, principalmente, qual o capital simbólico em jogo? Como o mundo é percebido, dividido, registrado pelos agentes? Como as estruturas cognitivas se ajustam às estruturas objetivas? E de precisar: quais as coerções, quais as relações de dominação que elas exercem? Quais os interesses de perpetuação da riqueza, do status, da dominação envolvidos? Quais os grupos de interesse? Quais os conflitos que se dão no interior do campo? Ao respondê-las, encerramos o ciclo investigatório que desvela a síntese da problemática geral do campo.

6. Crítica e herança

Bourdieu construiu uma teoria da prática, que pode ser contestada, o que só lhe confere mérito científico, e que contém os elementos da sua superação, o que a constitui como referência obrigatória no pensamento social deste início de século. Seu trabalho marca o "retorno ao sujeito" e a inflexão interpretativa que deságuam nas teorias da crítica social da atualidade.

As maiores resistências à Bourdieu se encontram entre os partidários do individualismo metodológico — corrente segundo a qual os fenômenos sociais são o resultado de escolhas individuais racionais, tenha esta racionalidade raiz econômica ou outra qualquer — que não aceitam o "determinismo social" implicado no seu trabalho, que daria o indivíduo como marionete animada por uma lógica que o ultrapassa (Bonnewitz, 1998:37). Os individualistas recusam a concepção unilateral da pessoa como agente de e a partir de um grupo social, de um campo de forças que não leva em conta atores, agentes e instituições sem papel relevante no jogo concorrencial, como, por exemplo, os atores do universo familiar. Consideram que a interação de ações individuais, ainda que modificando a sociedade, não a reproduz de forma idêntica.

Também são avessas às teorias de Bourdieu as correntes convencionalistas, da teoria da ação (Thévenot, Boltanski e outros), e as que trabalham com a noção evolucionista de tipos de sociedade caracterizadas por um conflito social determinante, como por exemplo a idéia da sucessão da sociedade industrial pela pós-industrial (Tourrain, Dubet e outros). Os partidários dessas correntes não aceitam nem o conceito de /habitus/, que desconsideraria as relações de cooperação, de amizade, de responsabilidade etc., nem o conceito de /campo/, que não daria conta da mudança social e da inovação (efeitos de inércia e hystérésis). Argúem que a idéia de estratégias de conservação e acumulação de capital reduz o social a um mercado em que os ganhos materiais e simbólicos seriam maximizados, e que a ampliação das possibilidades de autonomia e a indução à individualidade fizeram do conflito

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social biunívoco, seja a luta de classes, seja a luta entre dominantes e dominados, uma noção obsoleta.

Os críticos de Bourdieu não aceitam, sobretudo, a concepção utilitarista, a redução da vida social à lógica do interesse e da concorrência. Argumentam que uma vez que o capital econômico é a base da constituição de outras formas de capital, a concepção de campo "relativamente autônomo", não é generalizável, já que tal "relatividade" compreenderia um amplo espectro indeterminado de possibilidades. Outros, enfim, criticam a aproximação de Bourdieu com as ciências monológicas, não-históricas, como, por exemplo, de Giddens (1978), que julga o conhecimento teórico e o conhecimento prático como "entrelaçados".

Apesar dessas críticas, muitos pesquisadores e teóricos tomam emprestados os conceitos de Bourdieu, seja para aprofundá-los, seja para aplicá-los a contextos diferentes. É o caso de Boltanski e Thevenot (1991), que mostraram como a noção de /quadros/ foi produzida como categoria por um trabalho de representação e de codificação — as lutas de classificação, em que cada grupo tenta impor sua representação subjetiva como representação objetiva. É o caso de Kaufman (2001) e de Lahire (1998), que rediscutem o campo e o /habitus/, para incluir o ator social plural a partir da constatação de que as disposições interiorizadas não são unas, mas variáveis ao longo da vida. De que há repertórios de influência, que constituem estoques de disposições que podem ou não serem ativados ao longo da trajetória dos agentes.

Ainda em vida, Bourdieu foi acusado de não citar os autores de quem toma emprestado seus conceitos e de não dar crédito aos seus colaboradores (Singly, 1998). Foi responsabilizado por ter contaminado suas análises com as mágoas acumuladas ao longo da sua difícil trajetória pessoal — de filho de um humilde funcionário do interior até o cume da aristocracia intelectual francesa — e de ter estabelecido um modelo determinista na apreciação do social. Apesar da sua inquietação a respeito do problema da reflexividade, a objetividade do seu método é questionada, já que, seguindo a sua própria lógica, ela só seria possível mediante a neutralização dos interesses econômico, social, cultural e simbólico do pesquisador (Maton, 2003).

Bourdieu incomodou muita gente. Foi um pensador original, um crítico impiedoso. Tinha alguns dos defeitos comuns às inteligências privilegiadas: a vaidade não sendo o único. Mas teve o mérito de sacudir o marasmo político e intelectual da sua época. Como ativista político, tentou opor violência simbólica à violência simbólica. Como pesquisador, trouxe uma contribuição inestimável à discussão epistemológica e ampliou significativamente a temática das ciências humanas e sociais.

Referências bibliográficas

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Comunidades virtuais - Uma abordagem teórica1

Raquel da Cunha Recuero

Índice Reinventando o Conceito de Comunidade Comunidade Virtual Conclusão Referências Bibliográficas

Resumo: O presente trabalho buscar fazer uma reconstrução teórica do polêmico conceito de comunidade virtual e discutir em que medida ele pode ser aplicado diante das relações que surgem entre as pessoas online. Trata de uma reconstrução das principais teorias da sociologia clássica, passando pelas transformações ocorridas com a modernidade e discutindo os principais teóricos que tratam da idéia de comunidade virtual, tratando de seus fundamentos, seus elementos e sua caracterização no ciberespaço.

Palavras-Chaves : Comunidades Virtuais, sociabilização no ciberespaço, virtual settlement.

As novas tecnologias de comunicação têm, como é natural, agido de modo a reconfigurar os espaços como os conhecemos, bem como a estrutura da sociedade. A Comunicação Mediada por Computador (CMC) também trouxe as mais variadas modificações para o meio. Com isso, alguns conceitos da sociologia, como o de comunidade, foram transpostos para os novos fenômenos, recebendo críticas por isso. Com este trabalho, pretendemos fazer uma discussão teórica do conceito de comunidade e sua aplicação aos agrupamentos formados no ciberespaço. Acreditamos, deste modo, poder contribuir para o saudável debate em torno do tema.

Reinventando o Conceito de Comunidade

Historicamente, o ser humano sempre foi um animal gregário. Para sobreviver e conseguir reproduzir-se, trabalhava em grupos, que mais tarde, evoluíram para as primeiras comunidades. O conceito, no entanto, nunca foi uma unanimidade. Max Weber, quando procurou traçar algumas premissas sobre o assunto, ressaltou que "O conceito de comunidade é mantido aqui deliberadamente vago e conseqüentemente inclui um grupo muito heterogêneo de fenômenos" (1987:79), pois também considerava que a idéia de comunidade compreendia relações muito abrangentes. Os autores clássicos, como Ferdinand Tönies, procuravam conceituar a comunidade em oposição à sociedade. Tönies era inspirado no método galilaico, que era fundado em duas invenções da cultura grega, a teoria das idéias de Platão e a geometria de Euclides. "O método consistia em escolher somente um caso e livrá-lo das impurezas do mundo

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observável, a fim de encontrar o princípio de acordo com o qual o caso em questão `funcionaria' em circunstâncias ideais" (Töttö 1985:49). Por isso, Tönies procurou criar um conceito de comunidade "pura", idealizada, oposta ao conceito de sociedade, criado pela vida moderna. Para Tönies, Gemeinschaft (comunidade) representava o passado, a aldeia, a família, o calor. Tinha motivação afetiva, era orgânica, lidava com relações locais e com interação. As normas e o controle davam-se através da união, do hábito, do costume e da religião. Seu círculo abrangia família, aldeia e cidade. Já Gesellschaft (sociedade) era a frieza, o egoísmo, fruto da calculista modernidade. Sua motivação era objetiva, era mecânica, observava relações supralocais e complexas. As normas e o controle davam-se através de convenção, lei e opinião pública. Seu círculo abrangia metrópole, nação, Estado e Mundo. Para Tönies, a comunidade seria o estado ideal dos grupos humanos. A sociedade, por outro lado, seria a sua corrupção.

A mudança social, de acordo com Tönies, seria fruto de dois princípios aparentemente conflitantes: o aristotélico de que o homem é um ser social e o hobbesiano, no qual o homem é de natureza anti-social. Estes dois princípios constituiriam a natureza contraditória do homem. O ser humano, portanto, aspiraria à união e ao mesmo tempo, seria contra ela, oscilaria entre a conexão e a separação, o coletivo e o individual. Embora o trabalho de Tönies constitua-se em uma referência, o próprio autor reconhecia que sua obra baseava-se em tipos "normais", de inspiração platônica: "Não conheço nenhum estado de cultura ou sociedade em que elementos de Gemeinschaft e de Gesellschaft não estejam simultaneamente presentes, isto é, misturados" (In Tötö 1995:50).

Emile Durkheim escreveu, pouco após a publicação de Gemeinschaft Ud Gesselschaft2, uma resenha à obra de Tönies. Nesta resenha (que está reproduzida em Aldus, 1995:113), criticou algumas das idéias do autor e expôs o seu próprio pensamento a respeito dos conceitos de comunidade e sociedade. A crítica que Durkheim imputa a Tönies foi a de que a Gesellschaft também teria um caráter orgânico, ou seja, natural. Tönies havia dito que apenas a comunidade ( Gemeinschaft ) teria um caráter natural, sendo a sociedade uma "corrupção" do primeiro conceito, realizada pela modernidade. Segundo Durkheim, a sociedade não teria um caráter menos natural do que a comunidade, pois existiriam pequenas semelhanças de atitude nas pequenas aldeias e grandes cidades. Além disso, ele afirma (acabando por não confrontar-se totalmente com a idéia de Tönies de comunidade e sociedade, pois a mesma baseia-se em tipos ideais, e não na observação empírica, como era o método de investigação social defendido por Durkheim), que nem Gemeinschaft nem Gesellschaft possuem características que podem ser encontradas unicamente em um agrupamento social (Aldus 1995:118). Durkheim acredita, comoTönies, na natureza da dicotomia entre Gemeinschaft eGesellschaft . Admite também que aquela desenvolve-se primeiro e, a segunda, é seu fim derivado.

No entendimento de Weber, o conceito de comunidade baseia-se na orientação da ação social. Para ele, a comunidade funda-se em qualquer tipo de ligação emocional, afetiva ou tradicional. Weber utiliza como exemplo básico de comunidade a relação.

"Chamamos de comunidade a uma relação social na medida em que a orientação da ação social, na média ou no tipo ideal- baseia-se em um sentido de solidariedade: o resultado de ligações emocionais ou tradicionais dos participantes". (Weber 1987:77)

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A idéia de "tipos normais" (como Tönies preferia chamar o "tipo ideal") através da qual Tönies constrói sua teorização é extremamente semelhante à de Weber. Segundo Merlo (1995:128), é "explicitamente retomado em Tönies a distinção entre comunidade e associação; a própria teoria da racionalização pode ser expressa, em termos tönesianos, como a tendência para a substituição do agir comunitário pelo agir societário". Em Weber, comunidade e sociedade não são mais necessariamente alternativas de integração do indivíduo nas estruturas sociais, nem tampouco conceitos que se excluem mutuamente, ou ainda, que se opõe frontalmente. Para Weber, como para Durkheim, a maior parte das relações sociais tem em parte o caráter de comunidade, em parte o caráter de sociedade. Em qualquer comunidade seria possível encontrar as situações de conflitos e opressão, que de acordo com Tönies não fariam parte da idéia de comunidade. Para Weber, a comunidade só existiria propriamente, quando sobre uma base de um sentimento de situação comum e de suas conseqüências, está também situada a ação reciprocamente referida e que essa referência traduz o sentimento de formar um todo.

A visão de uma comunidade como "redentora" e tipo "ideal" de convivência humana permeia muitas das visões e idéias da sociologia clássica, bem como a dicotomia entre comunidade e sociedade.

A idéia de comunidade moderna começou a se distinguir de seu protótipo antigo, apoiando-se em diferentes princípios de coesão entre os seus elementos constituintes, como o contraste entre parentesco e território, sentimentos e interesses, etc. O conceito de comunidade foi identificado com diversos aspectos, como a coesão social, a base territorial, o conflito e a colaboração para um fim comum, e não mais a idéia de uma relação familiar, como na Gemeinschaft tönesiana.

Palacios (1998, online ) enumera os elementos que caracterizariam essa comunidade: o sentimento de pertencimento, a territorialidade, a permanência, a ligação entre o sentimento de comunidade, caráter corporativo e emergência de um projeto comum, e a existência de formas próprias de comunicação. O sentimento de pertencimento, ou "pertença", seria a noção de que o indivíduo é parte do todo, coopera para uma finalidade comum com os demais membros (caráter corporativo, sentimento de comunidade e projeto comum); a territorialidade, o locus da comunidade; a permanência, condição essencial para o estabelecimento das relações sociais.

Outros autores, como Beamish (1995, online ), explicam que o significado de comunidade giraria em torno de dois sentidos mais comuns. O primeiro refere-se ao lugar físico, geográfico, como a vizinhança, a cidade, o bairro. Assim, as pessoas que vivem em um determinado lugar geralmente estabelecem relações entre si, devido à proximidade física, e vivem sob convenções comuns. O segundo significado refere-se ao grupo social, de qualquer tamanho, que divide interesses comuns, sejam religiosos, sociais, profissionais, etc. Ou seja, Beamish já separa o conceito sob dois aspectos: o do território como elemento principal na constituição do grupo ou do interesse comum (e neste caso, o território comum não é mais condição para a existência das relações entre as pessoas) como cerne da constituição do grupo.

Como é observa-se, o termo "comunidade" evoluiu de uma sentido quase "ideal" de família, comunidade rural, passando a integrar um maior conjunto de grupos humanos com o passar do tempo. Com o advento da modernidade e da urbanização,

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principalmente, as comunidades rurais passaram a desaparecer, cedendo espaço para as grandes cidades. Com isso, a idéia de "comunidade" como a sociologia clássica a concebia, como um tipo rural, ligado por laços de parentesco em oposição à idéia de sociedade, parece desaparecer, não da teoria, mas da prática. Ray Oldenburg, citado por Hamman (1998, online ) e Rheingold (1994:61), afirma, em sua obra textitThe Great Good Place ", que as comunidades estariam desaparecendo da vida moderna devido à falta dos lugares que ele chamava textitgreat good places ". Segundo ele, haveriam três tipos importantes de lugar em nossa vida cotidiana: o lar, o trabalho e os "terceiros lugares", referentes àqueles onde os laços sociais fomentadores das comunidades seriam formados, como a igreja, o bar, a praça e etc. Esses lugares seriam mais propícios para a relação social que ele julga necessária para o "sentimento de comunidade", porque seriam aqueles onde existe o "lazer", onde as pessoas encontram-se de modo desinteressado para se divertirem (lugares de vida pública "informal" nas palavras do autor). Como esses lugares estariam desaparecendo da vida moderna, devido às atribulações do dia a dia, as pessoas estariam sentindo que o "sentimento de comunidade" estaria em falta. O trabalho de Oldenburg revelou que na maior parte das cidades da América e do Ocidente realmente havia um declínio desses "terceiros lugares". Oldemburg acredita que esse desaparecimento ocorreria por diversas razões, entre elas, a construção padronizada, típica do modernismo, constituía subúrbios e hostilizava o espaço com suas estruturas (Oldenburg, In Hamman, 1998, online ). Rheingold aponta para esta ausência do "sentimento de comunidade" como uma das causas do surgimento das comunidades virtuais.

A decadência do senso de comunidade, em nossa sociedade, foi também atribuída ao surgimento e consolidação do individualismo, ao culto à personalidade, de acordo com autores como Sennet (1997), citado por Fernback e Thompson (1998, online ). Sennet acredita que a noção de comunidade desenvolveu-se da Gemeinschaft para a Gesselschaft , assim como Tönies explicitou, quando as pessoas passaram a associar a ação pública à expressão da psique individual de cada um. Com o avanço da industrialização e o surgimento do conceito de `sociedade de massa', as pessoas tornaram-se atomizadas e a ordem social foi caracterizada por uma "anomia"(anomie). Sennet acredita que a noção de comunidade como um território limitado foi, neste ponto, substituída pela noção de comunidade como a de "mentes iguais", ou de pessoas com pensamentos semelhantes. As idéias de Sennet evidenciam um importante traço na definição de uma comunidade: um senso de traço comum, característica, identidade ou interesses.

Comunidade Virtual

Muitos autores têm ressaltado a importância dos meios de comunicação que, através de sua ação modificam o espaço e o tempo, modificam também as relações entre as várias partes da sociedade, transformando também a idéia de comunidade (McLuhan, 1964). Deste modo, também a Comunicação Mediada por Computador está afetando a sociedade e influenciando a vida das pessoas e a noção de comunidade. Por isso, muitos autores optaram por definir as novas comunidades, surgidas no seio da CMC por "comunidades virtuais" (Rheingold, 1996 Palacios, 1998, Donath, 1999 Smith, 1999 Wellman e Gulia, 1999 Paccagnella, 1997, entre outros.)

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"Comunidade Virtual" seria o termo utilizado para os agrupamentos humanos que surgem no ciberespaço3, através da comunicação mediada pelas redes de computadores (CMC).

Rheingold (1996: 20), um dos primeiros autores a efetivamente utilizar o termo "comunidade virtual" para os grupos humanos que travavam e mantinham relações sociais no ciberespaço, define-a:

"As comunidades virtuais são agregados sociais que surgem da Rede [Internet], quando uma quantidade suficiente de gente leva adiante essas discussões públicas durante um tempo suficiente, com suficientes sentimento humanos, para formar redes de relações pessoais no espaço cibernético [ciberespaço]4.

De acordo com a definição de Reinghold, destacamos, como elementos formadores da comunidade virtual as discussões públicas, as pessoas que se encontram e reencontram, ou que ainda, mantêm contato através da Internet (para levar adiante a discussão), o tempo e o sentimento. Esses elementos, combinados através do ciberespaço, poderiam ser formadores de redes de relações sociais, constituindo-se em comunidades. Rheingold deixa de lado um dos pontos mais essenciais da definição do que até então a maior parte dos sociólogos convencionou chamar de comunidade : um agrupamento humano dentro de uma determinada base territorial. E este constitui-se um dos grandes problemas da aplicação do conceito de comunidade ao ciberespaço, para a definição da comunidade virtual, que foi logo apontado por diversos pesquisadores: a ausência de uma base territorial, até então um dos sustentáculos da idéia de comunidade desenvolvida pela sociologia clássica. Alguns autores (Weinrech, 1997 In Jones, 1997, online ) criticam a idéia de comunidade virtual justamente por não conseguirem conceber a idéia de uma comunidade sem um locus específico, trazendo à discussão a necessidade de um local onde a comunidade se estabeleça, ponto este que discutiremos, com a ajuda do conceito de Jones (1997) de virtual settlement .

Jones (1997, online ) vê dois usos mais comuns do termo "comunidade virtual". O primeiro refere-se simplesmente como comunidade virtual das diversas formas de grupos via CMC, o que ele diz ser uma "comunidade virtual - lugar no ciberespaço". É o que se entende por suporte da comunidade: as classes de grupos de CMC, como por exemplo, o IRC, os e-mails , etc. O segundo explica que "comunidades virtuais" são novas formas de comunidade, criadas através do uso desse suporte de CMC. Ele chama a primeira definição de textitvirtual settlement " (estabelecimento virtual) e a segunda como verdadeira "comunidade virtual". Jones tenta distinguir a comunidade virtual do lugar que ela ocupa no ciberespaço (virtual settlement ). Em sua teoria, ele afirma que a existência de um virtual settlement geralmente está seguida da existência de uma comunidade virtual associada. Portanto, seria possível identificar comunidades virtuais a partir do encontro de virtual settlements. Ovirtual settlement é um ciber-lugar, que é simbolicamente delineado por um tópico de interesse, e onde uma porção significativa de interatividade ocorre. Eles seriam caracterizados por: (1) um nível mínimo de interatividade, que, para Jones, trata-se da extensão em que essas mensagens em uma seqüência têm relação entre si e, especialmente, como as mensagens posteriores têm relação com as anteriores. É a expressão da extensão de uma série de trocas comunicativas; (2) uma variedade de comunicadores, que é condição associada à primeira característica da interatividade, (3) um espaço público comum onde uma porção significativa do grupo de comunicação mediada por computador interativa de

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uma comunidade ocorre, onde ele coloca o espaço público como um fator importante na existência da comunidade virtual, e diferencia o espaço público, onde está a comunidade, do espaço privado, onde ocorrem as trocas de mensagem individuais; (4) Um nível mínimo de associação sustentada, ou ainda, uma quantidade de membros relativamente constante, necessária para o nível razoável da interatividade exposta pela primeira característica.

As idéias de Jones trazem alguns pontos que podem ajudar-nos a esclarecer um pouco a idéia de "comunidade virtual". Se agregarmos, como o próprio autor determina, ao conceito de comunidade virtual o de virtual settlement , veremos que também existe como condição para a comunidade virtual, a existência de um espaço público, onde a maior parte da interação da comunidade se desenrole. Este espaço, por si só não constitui a comunidade, mas a completa. A comunidade precisa, portanto, de uma base no ciberespaço: um lugar público onde a maior parte da interação se desenrole. A comunidade virtual possui, deste modo, uma base no ciberespaço, um senso de lugar , um locus virtual. Este espaço pode ser abstrato, mas é "limitado", seja ele um canal de IRC, um tópico de interesse, uma determinada lista de discussão ou mesmo um determinado MUD. São fronteiras simbólicas, não concretas.

A comunidade virtual é, também, diferente de seu virtual settlement , mas este é parte necessária para a existência da primeira. Logo, a comunidade é diferente de seu suporte tecnológico e não pode ser confundida com ele. "Um servidor de IRC contendo milhares de canais que não possuem relações entre si, por exemplo, não demonstra a existência de uma comunidade virtual, embora um canal ou um pequeno conjunto de canais possa demonstrar." (Jones, 1997, online ). Isso porque o servidor de IRC é o suporte no qual as pessoas podem conectar-se para acessar canais e trocar mensagens. Ele, por si, não é uma comunidade virtual. Da mesma forma, um sistema que permite que várias listas de discussão possam ser geradas através dele (como o Yahoo Groups , por exemplo), não é em si uma comunidade virtual, assim como qualquer outro serviço online onde várias pessoas que não possuem quaisquer relações entre si e cujo único ponto comum é a busca do serviço, não pode ser determinado como uma comunidade virtual.

A comunidade pressupõe relações entre os seus membros: a interatividade. Essa questão tem suscitado as mais variadas discussões. Jones (1997, online ) afirma que a interatividade não é uma característica do meio, mas "a extensão em que as mensagens, em uma seqüência, relacionam-se umas com as outras, especialmente na extensão em que mensagens posteriores tem relação com as anteriores5. A idéia de Jones que relaciona a interatividade com as trocas comunicativas. Semelhante é a idéia de Primo (1998, online ). Ele acredita que é preciso partir da interação humana para compreender a interatividade na comunicação humano - computador pois, deste modo, o humano não seria apenas colocado como disparador de programas. Para compreender a interatividade nos meios informáticos, Primo propõe dois conceitos: o de interação mútua e o de interação reativa . A interação mútua se dá de forma negociada, que acontece entre agentes, de forma aberta, através de um processo de negociação, com ações interdependentes que geram interpretações, possuem fluxo dinâmico e cuja relação se dá através da construção negociada. A interação reativa dá-se em um sistema fechado, num processo de estímulo-resposta, com fluxo linear e determinado, relação causal e baseada no objetivismo. Segundo Primo, é nas reações mútuas que se encontra um textitpoderoso canal ou meio que é o computador ligado em rede ". A interação

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mútua é, portanto, a interação onde as trocas não são predeterminadas, mas caóticas, complexas e imprevisíveis. É a interação que um chat , por exemplo, proporciona. Já a reativa, ao contrário, constitui-se num sistema fechado, de respostas pré-programadas, onde as trocas são determinadas, previsíveis.

Nesta construção a interação é classificada pelo modo através do qual se utiliza o meio. A interatividade é, deste modo, uma característica do meio, mas não uma garantia deste meio, pois depende dos usos que cada parte da relação comunicativa fizer. Ela é, como diz Jones, associada às relações entre as trocas comunicativas, mas, trocas essas que só poderão ser possibilitadas pelas ferramentas de que o meio dispõe. A interatividade é um característica da Internet (Palacios, 1998), bem como a massividade. No entanto, só é possível interagir de forma mútua , como a concebida por Primo, se o meio permitir, oferecendo as ferramentas necessárias, se o meio possuir a característica aberta, de via de duas mãos, para as trocas comunicativas. E mesmo que o meio possua essa característica, é ainda, necessário que os elementos ativos efetivamente realizem essas trocas para que se possa afirmar que existe interatividade. A interação mútua é, do nosso ponto de vista, a única capaz de gerar trocas capazes de construir relações sociais e, portanto, comunidades virtuais. O ciberespaço, enquanto espaço comunicativo, permite que esse tipo de interação ocorra, mas não é garantia dela.

As características de variedade de comunicadores (pressuposto da interatividade proposta por Jones) e estabilidade de membros demonstram que a comunidade deve ser composta por várias pessoas que estabeleçam trocas entre si. Além disso, as relações sociais devem ser forjadas e mantidas também no ciberespaço, para que a quantidade de membros participantes do virtual settlement permaneça relativamente estável. Essa estabilidade é, em nossa opinião, a característica da permanência. A permanência é outra característica da comunidade virtual. Isso porque, sem a existência em um plano de tempo, as relações entre as pessoas não poderão ser aprofundadas o suficiente para que constituam uma comunidade. Imaginemos que a cada vez que o indivíduo retornar ao virtual settlement , ele precise reiniciar a operação de travar relacionamentos com os demais indivíduos. Parece-nos que seria impossível que um dia estas relações pudessem aprofundar-se de modo suficiente a dar aos indivíduos um senso de pertencimento, pois a cada desconexão tudo aquilo que havia sido construído seria imediatamente destruído. A permanência é o oposto da efemeridade.

O pertencimento é o próximo elemento da comunidade virtual. Ele é explicado por Palacios (1998, online ) como um sentido de ligação. Este sentimento para com a comunidade, pode ser encontrado nas noções de Gemeinschaft de Tönies ou mesmo na comunidade emocional de Weber. A comunidade é constituída também sobre sentimento. Primo (1997, online ) afirma que este sentimento é também encontrado na comunidade virtual: "Os participantes de chats reconhecem-se como parte de um grupo e responsáveis pela manutenção das relações." Este sentimento é visto como condição necessária para a existência de comunidade no ciberespaço por diversos autores, como Beamish (1995, online ), que acredita que uma comunidade para ser caracterizada, necessitaria, antes de tudo, de um "sentimento de pertença", ou de ter-se algo em comum. Segundo ela, é preciso que os indivíduos tenham consciência de que são partes de uma comunidade e sintam-se responsáveis por ela, como "partes de um mesmo corpo".

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No ciberespaço, entretanto, este sentimento é diferenciado da idéia de comunidade offline . Palacios (1998, online ) chama a atenção para o desencaixe entre o pertencimento e a territorialidade. A noção de comunidade offline compreendia o pertencimento como associado ao território geográfico. O pertencimento aqui, se associarmos o território geográfico com o "lugar" determinado no ciberespaço, é efetivamente desencaixado do lugar - território concreto, e associado ao lugar-ciberespacial da comunidade. Mesmo para aquelas que são associadas a uma representação de um espaço territorial real, o sentimento de pertencimento é associado à comunidade em primeiro lugar e não ao território ou mesmo à representação do território. Palácios também fala de uma segunda característica importante do pertencimento na comunidade virtual. Segundo ele, existe uma eletividade do pertencimento, ou seja, é possível escolher a comunidade da qual se deseja fazer parte. "(...)o indivíduo só pertence se, quando e por quanto tempo estiver, efetivamente, interessado em fazê-lo."

Wellman, citado por Hamman, afirma que a comunidade virtual não seria uma nova forma de sociabilização, mas simplesmente a comunidade tradicional transposta para um novo suporte para manter seus laços sociais. "[A] CMC é apenas uma das muitas tecnologias utilizadas pelas pessoas através das quais as redes de comunidades existentes comunicam-se 6. Essa crítica fundamenta-se no fato de que grande parte das comunidades virtuais que sobrevivem no tempo trazem os laços do plano do ciberespaço para o plano concreto, promovendo encontros entre seus membros.

Acreditamos, pela nossa experiência no estudo do assunto, que muito provavelmente, grande parte dos laços sociais forjados no ciberespaço sejam transpostos para a vida offline das pessoas. No entanto, esses laços continuam a ser mantidos prioritariamente no local onde foram forjados: na comunidade virtual. E mesmo assim, alguns destes laços podem nunca passar para o plano offline , devido à distância geográfica. O que nos interessa, e que cremos que é importante, é não somente analisar como se formam esses laços online , mas também em que medida afetam a vida offline das pessoas. A comunidade virtual pode ser estendida ao espaço concreto, mas continuará tendo seu virtual settlement no ciberespaço. E continuará como um espaço social onde as pessoas poderão reunir-se para formar novos laços sociais. E prioritariamente, essas relações sociais foram estabelecidas no ciberespaço, através da comunicação mediada por computador, de uma forma completamente diversa do estabelecimento tradicional de relações sociais, sem o contato físico, invertendo o processo de formação do laço social (Palacios, 1998, online ). Não é, deste modo, a mesma coisa. Existem diferenças bastante importantes, como procuramos investigar neste trabalho. Essas diferenças estão diretamente relacionadas ao suporte, mas não se resumem a ele.

Conclusão

Existem muitas críticas à idéia de comunidades virtuais Alguns explicam seu posicionamento dizendo que as comunidades virtuais não são nada mais do que comunidades tradicionais mantidas através da CMC (Wellman, citado por Hamman, 1998, online). Outros, no entanto, afirmam que a comunidade virtual não possui um território e, portanto, não seria uma comunidade stricto senso (Weinrech, citado por Jones,1997 online ). O que procuramos demonstrar neste trabalho foi uma discussão teórica a respeito do que viria a ser a comunidade virtual. Apesar da polêmica, diversos autores têm apresentado soluções e argumentos consistentes para a utilização do

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conceito no ciberespaço. Apesar da modificação de algumas noções da idéia de comunidade offline , os elementos são semelhantes. A comunidade virtual é um elemento do ciberespaço, mas é existente apenas enquanto as pessoas realizarem trocas e estabelecerem laços sociais. O seu estudo faz parte da compreensão de como as novas tecnologias de comunicação estão influenciando e modificando a sociabilização das pessoas. Por isso, acreditamos que a construção teórica do conceito possa ser útil para futuros estudos.

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Notas de rodapé...orica1

Trabalho apresentado no V Seminário Internacional de Comunicação, no GT de Comunicação e Tecnologia das Mídias, promovido pela PUC/RS.

... Gesselschaft2 Nome da obra de Tönies, no original alemão.

...co3 Na definição de Lemos (1998, online), o ciberespaço pode ser entendido sob duas perspectivas: "como o lugar onde estamos quando entramos em um ambiente virtual", ou seja, num ambiente como as salas de chat, por exemplo, ou ainda, como o "conjunto de redes de computadores, interligadas ou não, em todo o planeta". Ele seria caracterizado como um espaço virtual, não oposto ao real, mas que o complexificaria, público, imaterial, constituído através da circulação de informações. (Lévy, 1999:94, Manta e Sena, 1998 online).

...ço]4 Las comunidades virtuales son agregados sociales que surgem de la Red cuando una cantidad suficiente de gente lleva a cabo estas discusiones públicas durante un tiempo suficiente, com suficientes sentimentos humanos como para formar redes de relaciones personales en el espacio cibernético.

... anteriores5 "Interactivity is not a characteristic of the medium. It is the extent to which messages in a sequence relate to each other, and especially the extent to which later messages recount relatedness of earlier messages".

... 6 CMC is just one of the many technologies used by people within existing network communities to communicate

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