bonomi (1974) - fenomenologia e estruturalismo (1)

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Page 1: Bonomi (1974) - Fenomenologia e Estruturalismo (1)

~iEates

e atestes filosofia

andrea bonomi

FENOMENOLOGIAE ESTRUTURALISMO

~\\"~~ ~ EDITORA PERSPECTIVA

- ~I\\~

Page 2: Bonomi (1974) - Fenomenologia e Estruturalismo (1)

Coleção Debates

Dirigida por J. Guinsburg

Conselho Editorial: Anato1 Rosenfeld (1912-1973), Anita No­vinsky. Aracy Amaral. Augusto de Campos. Bóris Schnaider~

man, Carlos Guilherme Mota, Celso Lafer, Dante MoreiraLeite, Gita K. Guinsburrg, Haroldo de Campos. Leyla Perrone~

Moysés. Lúcio Gomes Machado, Maria de Laurdes Santos Ma­chado. Modesto Carone Netto, Paulo Emilio Salles Gomes.Regina Schnaiderman. Robert N.V.C. NicaI. Rosa R. Krausz.Sábato Ma,galdi, Sergio Miceli. Willi Bolle e Zulmira RibeiroTavares.

Equipe de realização - Tradução: João Paulo Monteiro. Pa~

trizia Piam e Mauro Almeida Alves; Revisão: J. Guinsburg;Produção: Lúcio Gomes Macha-do; Capa: Moysés Baumstein.

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andrea bonomi

FENOMENOLOGIAE ESTRUTURALISMO

~\\II~~ ~ EDITORA PERSPECTIVA

~I\~

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© Andrea Bonomi

Direitos em Iingua portuguesa reservados àEDITORA PERSPECTIVA S.A.Av. Brigadeiro Luis Antônio, 3025Telefone: 288-838801401 - São Paulo - Brasil1974

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Per Haroldo de Campos,

con la saudadedi quattro milanesi

"Milano distendeva te Alpiimmobili nella rugiada"

(Oswald de Andrade)

São Paulo, 1973

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SUMÁRIO

I. Percepção e Linguagem em Merleau-Ponty .. 9

2. Sobre o Problema Ontológico ............ 21

a. A redução fenomenológica . ......... 21

b. Filosofia existencial e ontologia 35

c. Estrutura, percepção e latência 42

3. O Regresso à Experiência Fenomêniea na Psi-

cologia da Gestalt 69

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4. A Idéia de "Normalidade": A Fenomenologia

como Análise de Estruturas 79

5. Tendências do Estruturalismo 93

6. Implicações Filosóficas na Antropologia de

Claude Lévi-Strauss 113

1. O problema do outro e a objetividade 114

2. O inconsciente 120

3. A idéia de estrutura . . . . . . . . . . . . . .. 122

4. Diacronia e sincronia 126

5. O pensamento concreto 129

6. Ainda sobre o inconsciente 137

7. Sobre o Problema da Linguagem em Husserl 141

Apêndice 163

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I. PERCEpÇAO E LINGUAGEMEM MERLEAU-PONTY

Segundo Merleau-Ponty, o problema da significaçãodeve ser recolocado em sua matriz originária. Qual arelação entre a percepção e o mundo das operaçõesIingüísticas? Não mais de simples paralelismo: deve-seencontrar uma trama do sensível, uma configuração,uma ordem que possa prolongar-se na dímensão dosatos expressivos. É preciso, antes de tudo, anular opreconceito que faz do mundo perceptivo um universode objetos, de individualidades espaço-temporais fecha­das em si mesmas, maciças. O percebido não se dánunca em si mesmo, mas em um contexto relacional: afigura (enquanto individuum da visão) é sempre figura-

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-sobre-fundo e, como tal, é dotada de um horizonteinterno e de um horizonte externo, é indefinidamenteexplicitável na multiplicidade de suas "propriedades"constitutivas e na multiplicidade de suas relações com oque a circunda. O delineamento da coisa, oferecendo-sesempre e somente através de Abschattungen, não é umacidente que uma percepção adequada seria capaz decancelar, mas a própria estrutura do evento perceptivo.A lógica da visão é uma "lógica alusiva": vejo maisdo que me é oferecido pela visão atual e analisável, vejouma coisa onde há uma presença latente, constituo ativa­mente a coisa embora dela possua apenas certos lados.O preconceito objetivista tem sua razão de ser, enquantoassenta nesta atividade intencional que não se fecha emseus momentos constitutivos, mas vai além e põe obje­tos, como objetos para ver, tocar, manipular, etc. Estepreconceito não deve contudo ocultar-me o operar con­creto da percepção como substrato originário sobre oqual se construirá o mundo das objetividades, substratoque não é feito tanto de presenças maciças quanto de"reflexos", sombras, níveis, horizontes entre as coisas,os quais não são coisas nem são um nada mas, pelocontrário, são os únicos a delimitar os campos de varia­ção possível na mesma coisa e DO mesmo mundo"(Merleau-Ponty, S., 1960, p. 202). O visível, o perfil

~efet!v"!!1enle experimenJªºº._nãQ.. _é a~õ-<:l"-lIler_amente~lt1Vo,_ assenta num outro <iesi _,l11esll1o,_em~rge_JteÚDlà-espes~ª~ IiiVi~ver. -'Ante-s--ae fazer-nos aceder àsuposta plenitude do mlliiõo, a atividade perceptiva "dis­põe certos vazios, certas fissuras, figuras e fundos, unsem cima e outros embaixo": é acima de tudo um poderde articulação e de diferenciação.

Compreender-se-á melhor, à luz destas considera­ções, o alcance que tem para o filósofo a reflexão sobrea palavra. Se o sentido de ser das coisas não é, napercepção, algo isolável e auto-suficiente, e sim o resul­tado de uma certa articulação do sensível, desaparecenesse caso o problema de instituir um paralelismo entrea ordem - considerada positiva - das coisas perce­bidas e a ordem - confirmada na idealidade - dascoisas ditas. Há agora uma base comum na intenciona­lidade do corpo-homem como poder de abrir certasdimensões, de instituir diferenciações no continuam

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espaço-temporal. :B sob esta perspectiva que a expe­riência da Lingüística (particularmente a lingüísticaestrutural) assume para Merleau-Ponty uma relevânciaespecial. Já no Cours de Saussure ela sublinha, comefeito, que o sentido não é algo de positivamente dado,não é "aderente" ao signo como sua propriedade per­manente, mas emerge de uma certa distância entre osvários signos: a linguagem, a totalidade dos signos,perde SUa substancialidade e se configura como sistemadiacrítico. O siguo é significante apenas na medida emque Se insere num conjunto de distâncias diferenciais,numa estrutura cujos elementos constitutivos não pos­suem valor por si mesmos, mas apenas em relação àtotalidade: a unidade da lingua é uma "unidade decoexistência". Quanto a este aspecto, a Escola de Pragaviria posteriormente aprofundar a formulação saussu­riana da crítica da concepção substancialista: comoescreve Jakobson, ele não se libertou inteiramente da"crença tradicional no caráter linear do significante",continuando ligado a um certo tipo de mecanismo (cl.Jakobson, E.L.G., 1963, p. 48; S.W., 1962, p. 327).Tal como a percepção, a linguagem é antes de maisnada atividade de articulação, de estruturação, e se ins­titui originariamente como découpage no continuum fo­nético primitivo, empobrecimento que constitui uma pri­meira doação de forma ao mundo sonoro. Já ao nívelde suas unidades constitutivas mais elementares a lin­guagem é um sistema diferencial, uma totalidade rela­cional: o fonema não é uma substância, e sim um "feixede traços distintos".

Merleau-Ponty mostra como é possível à reflexãofenomenológica, partindo de uma ordem diversa de ques­tões, ir ao encontro das análises lingüísticas. Vejamospor exemplo o problema da transcendência do signi­ficado em relação ao significante. Como vimos, o sen­tido não está nos signos, mas entre os signos, emergeno horizonte de uma multiplicidade de atos expressivos:é uma "idéia" em sentido kantiano, o pólo intencional(que nunca será completamente preenchido) de umasérie aberta, mas convergente, de significações - étranscendente. Se não queremos fazer dessa transcen­dência uma pura exterioridade, que como tal se sub­trairia a qualquer dilucidação, precisamos ver quais sãoas operações originárias que a tornam possível, preci.

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samos redescobrir, sob o sentido final para onde remetea cadeia de significações, a praxis orientada que é cons­titutiva deste sentido. Em virtude de uma síntese obje­tivante, o sujeito põe o sentido, e os atos preparatóriosse dão enfim, mediante uma espécie de inversão de pers­pectiva, como "derivados deste sentido"; do mesmomodo que percebe uma coisa onde há apenas perfis,o sujeito percebe um sentido onde é dada uma multi­plicidade (descontinua) de significantes. Mas este para­doxo será esclarecido se reconsiderarmos - genetica­mente - a teleologia da expressão que, tal como a dapercepção, não assenta numa finalidade mística (exte­rioridade recíproca dos termos a relacionar, e exteriori­dade, em seus confrontos, do princípio de relação: oque faria da própria relação um mistério), mas na estru­tura relacional intrínseca (temporalidade) do desenvol­vimento intencional. O problema central é portanto oda sedimentação, da contração de uma constelação demomentos em um único sentido. 1l a sedimentação queestá na base da sintese de transição, síntese operada pelasubjetividade enquanto campo de presença - a que éinerente uma multiplicidade de horizontes temporais ­enquanto unidade articulada. A sintese temporal, através

As diversas Erlebnisse que possuem uma duração, queadvêm entre segmentos desta duração, os quais são separadosno âmbito do tempo fenomenológico, têm uma relação reci­proca e constituem algo permanente, que dura [ . .. l, (HusserI,Id. II, 1965, p. 510).

da qual os atos transcorridos se saldam na apreensãoatual do sentido, pode portanto dar conta da trans­cendência presuntiva do significado em relação ao sig­nificante: a inerência do passado ao presente, a ativapermanência no horizonte dos momentos parciais daexpressão e, mais profundamente, a acumulação deoutras apreensões e constituições de sentido, permitema "transgressão intencional" graças à qual acedo aosignificado, oferece-me o terreno em que posso apoiar­me para operar este enjambement. Isso não quer dizerque o significante desempenhe o papel de mero suportedo significado, e que entre ambos exista uma relaçãode simples exterioridade como afirma o empirismo.Mesmo no âmbito de diversas estratificações consti­tutivas (da constituição da coisa "material" ao "sen-

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tido" que a habita), eles formam uma unidade indisso­ciável: "O livro, com suas folhas feitas de papel, comsua encadernação, etc., é uma coisa. A esta coisa nãoé ligada uma segunda, o sentido: este último penetra otodo físico,

[ .. .] "animando-o" de Uma certa maneira. E isso enquantoanima cada palavra, mas não cada palavra por si, e sim 08nexos das palavras, que através do sentido se ligam em cOn­formações provisórias de sentido, e estas últimas, depois, emconformações superiores, etc. (lbid., p. 630).

Torna-se agora claro porque Merleau-Ponty exigea superação da suposta dicotomia saussuriana entre dia­cronia e sincronia. Estabelecer uma cisão rígida entreestas duas dimensões temporais equivale a fechar a pos­sibilidade de compreender a própria gênese da estruturalingüística: encerra-se no reino da casualidade e docapricho aquilo que, pelo contrário, deve ser interro­gado como essencial à língua e, ao tentar purificar aomáximo o modelo estrutural, reduz-se seu valor heurís­tico. A estrutura não é apenas um modelo ideal (emboraesta abstração seja legítima, tal como é legitima a dis­tinção metodológica entre um estudo diacrónico e umestudo sincrônico), mas também, como nos ensina aGestalpsychologie, um processo temporal, investidonuma praxis, e seu estudo postula a recusa de umaredução atomística do tempo. A exigência de urna con­cepção temporal que fosse além da dicotomia saussu­riana tinha aliás surgido no próprio interior da Lingüís­tica (cf. Vachek, P.R.S.L., 1964, pp. 33-4 e 481-5), enela Jakobson havia insistido particularmente, ao rei­vindicar uma consideração teleológica do fenômeno lin­güístico (Jakobson, S.W., 1962, pp. 1-6 e E.L.G., 1963,pp. 36). O conceito de teleologia indica aqui urna finali­dade (a da comunicação: na linguagem, observa Jakob­son, não existe propriedade privada) que toma corpo nacoexistência, no conjunto das relações inter-hurnanas, eque é sempre um fazer-se concreto (como mostra o fenô­meno das primeiras oposições fonológicas ou o da re­duplicação, que fazem a criança sair da fase do simplesbalbuciar e elevar-se a um primeiro terreno de comuni­cação possível com o outro), e não um princípio exte­rior. E precisamente este aspecto antepredicativo dalinguagem - o fato de, para falar, o sujeito não pre-

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cisar proceder à tematização explícita das leis lingüís­ticas, de haver um uso "inconsciente" da linguagem euma funcionalidade efetiva da palavra antes de qual­quer idealização retrospectiva - que constitui um dosnúcleos centrais da reflexão de Merleau-Ponty. Elimina­se assim, como já se viu, o problema do paralelismoentre a palavra e o pensamento:

A fraqueza de todo "paralelismo" consiste em estabelecercertas correspondências entre as ordens e em ocultar as ope­rações que as produziram originariamente por transgressão(Merleau-Ponty, S., 1960, p. 26).

A linguagem não se introduz na ordem do "eupenso" mas na do "eu posso", como sede de umapraxis orientada: a gênese do sentido deve ser pro­curada do lado do sujeito agente e concreto, tomado notecido das relações inter-h=s. Torna assim a sur­gir, como constante ponto de referência, o problema daintersubjetividade.

O ensaio sobre Husserl ("Le philosophe et sonombre") publicado em Signes encerra algumas indica­ções esclarecedoras quanto ao lugar ocupado pelo pro­blema da intersubjetividade no pensamento fenomeno­lógico, particularmente no de Husserl. ];; certo quenesse texto Merleau-Ponty continua conservando firme­mente sua maneira característica de enfrentar a fenome­nologia de Husserl, baseado na oposição entre um pri­meiro período da filosofia husserliana - que se arti­cularia em volta dos dois temas fundamentais da redu­ção transcendental e da Wesensschau - e um segundoperíodo - que insistiria primacialmente sobre a redu­ção ao mundo da vida, sobre o regresso ao precategorial(temática da Urdoxa) e sobre a necessidade de umafenomenologia genética. Estes dois períodos parecemconstituir-se, aos. olhos de Merleau-Ponty, como duasfaces da fenomenologia, como momentos de uma tensãodialética que se representa (e permanece por resolver)em todo o arco da reflexão husserliana. Veremos emseguida qual é o alcance teórico destas considerações.Por enquanto é suficiente sublinhar que permanece porresolver o problema da unidade fundamental (no âm­bito de constantes reproblematizações e de reelabora­ções temáticas sempre novas) da reflexão husserliana,unidade que tem sua matriz no problema da consli-

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tuição. É este o .problema que orienta toda a obra deHusserl e faz que textos como Ideen I e Philosophie aisstrenge Wissenschaft, de um lado (os quais segundoMerleau-Ponty são os mais marcados pelo método"eidético") e como Ideen II e Krisis de outro lado (nosquais Merleau-Ponty encontra os momentos mais fecun­dos da fenomenologia "genética"), se encontrem subs­tancialmente numa relação de reciprocidade. O queMerleau-Ponty reconhece em parte, ao afirmar que oque Husserl procura fazer em toda sua obra "é encon­trar um caminho entre o logicismo e o psicologismo",que Ideen II deixa entrever uma problemática diferenteda que lhe é atribuída tradicionalmente, ou que, mesmono periodo maduro do pensamento husserliano, perma­necem certas formulações originárias (Merleau-Ponty,F.P., 1945, p. 419, n.o 1). Mas permanece o fato, atra­vés de todos os matizes de ele continuar considerandoa temática da constituição como o índice de um certo"consciencialismo" oniexplicativo, o que o impede dever até ao fundo que ela implica, na fenomenologiahusserliana, toda uma série de estratificações (proble­mas da materialidade, da corporeidade, da necessidade,etc.). Ou melhor: Merleau-Ponty reconhece esta impli­cação, sobretudo quanto ao último Husserl, mas atribuí­lhe um significado de radical transformação em relaçãoao projeto primitivo da fenomenologia; projeto que eleassimila, para recusá-lo, à tentativa de redução a umaconsciência absoluta que seria constitutiva, numa ati­vidade transparente para si própria e livre de qualquerinerência, de "puras" coisas (onde o conceito de cons­ciência absoluta possui, como por exemplo no tão con­testado e mal compreendido § 49 de Ideen I, um valoressencialmente metodológico). Não é preciso escolher,como erradamente supõe Merleau-Ponty, entre a redu­ção à Lebenswelt e a redução à subjetividade transcen­dental; trata-se de "dois graus" de um úuíco movi­mento redutor, que se propõe precisamente como re­gresso à subjetividade transcendental, e a propósito daqual Husserl escreve:

No conceito de transcendental não se deve colocar senão omotivo original, inaugurado por Descartes, do regresso às. fontesúltimas das formações cognoscitivas... (Husserl, E.G., 1965,p. 47).

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De modo semelhante, torna-se também problemá­tica a alternativa repetidamente proposta por Merleau­-Ponty em diversos textos, entre um "primeiro" Hus­serl ainda ligado a uma posição eidético-transcendentale um "segundo" Husserl voltado para uma problemá­tica de tipo existencial. Por outro lado, se formos alémdestas formulações, descobriremos em Merleau-Pontyuma maneira extremamente fecunda de reler os textoshusserlianos. Antes de mais nada há o reencontro, nOinterior da redução fenomenológica, de uma proble­mática inerente à praxis. Como Se viu a propósito dalinguagem, para Merleau-Ponty a consciência - ou maisgenericamente a atividade intencional - não é origina­riamente reconduzível ao ~'eu penso", mas deve serinvestigada como modalidade do "eu posso". Já naStructure du comportement, sobretudo nas passagensescritas em polêmica com a teoria do isomorfismo,Merleau-Ponty acentua ser necessário não fixar a Ges­ta/t numa realidade física independente, redescobrir aconstelação de acontecimentos que levaram à sua cons­tituição, e explicitar a atividade em virtude da qual osujeito estrutura o próprio mundo circundante comocampo prático. A prioridade do momento prático-per­ceptivo em relação às idealizações que ele permite ins­taurar, o caráter fundante da experiência antepredicativaem relação à investigação reflexiva, constituirá umdosprincipais núcleos temáticos em redor dos quais se arti­culará depois a pesquisa de Merleau-Ponty. Em LephilosopJue et son ombre insiste no fato de a reduçãonão ter o encargo de permitir-me o acesso a uma puradimensão de consciência, e sim o de trazer à luz oestrato originário em que a corporeidade, como praxisintencional, serve de. vinculum entre mim e as coisas,é o sujeito-objeto da experiência sensível. Mas o sujeitocomo encarnação de uma praxis não é compreensível àluz da estrutura intersubjetiva em que se insere: Mer­leau-Ponty retoma a perspectiva husserliana que fazconfluir o problema da subjetividade transcendental parao da intersubjetividade. Há uma dimensão primitiva ­anterior a qualquer fixação objetiva do outro - na qualeU e o outro nos eucontramos numa relação de impli­cação recíproca, de complementaridade na praxis: a re­dução à subjetividade transcendental remete para a inter-

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subjetividade como esfera de uma praxis originária quea filosofia tem precisamente a função de explicitar:

Chamar-se-á filosofia à consciência que é preciso conservarda comunidade aberta e sucessiva dos alter ego viventes, falan·tes e pensantes (um na presença do outro e todos em relaçãocom a natureza que acreditamos estar por trás, em volta eperante nós, nos limites de nosso campo histórico) como rea~

lidade última da qual nossas construções teóricas delineiam ofuncionamento e à qual não poderiam substituir-se (Merleau~

-Ponty, S., 1960, p. 138).

É sob essa perspectiva que a experiência etnoló­gica e antropológica interessa à filosofia de Merieau­Ponty. O problema do chamado pensamento "primitivo"era tocado, juntamente com o do fenômeno patológico(que aliás já estava no centro de algumas análises bas­tante penetrantes da Structure du comportement,) naPhénoménologie de la perception. Merieau-Ponty haviaaqui insistido no fa~9de_~ __~nsaID:~~tc> "priplj!ivo" _!!~P.ser redutivel à forma degradada ou lacunar de _umara:cionalidade adquirida, tal como a dimensão p,;icoló&~_

constitUi um fato total que nã~J' susc~tlvel <!e. §eL<!eª=,_<:rIto como mera normalidade menos acabada: em últimaanállse,li-allií.ens]o -- patõiÓgícá ~_até ajtI<!ar-nOs(c0ltl0_acol)!",_e preçisament~ _na l'hénoménologie de laperception) a fazer surgir o que na experiência Hnormal"é por assim dizer latente, estando e!1volv'idQ_ no_ me~nstilufgQ.. São bem conhecidos os preconceitos quetêm dificultado a abordagem da experiência patológica;geralmente eles derivam da construção de um modelode "normalidade" cristalizada, concebida segundoesquemas causais e deterministas, em que o conceito detotalidade intervém apenas como simples soma, quanti­tativamente definida, das partes constitutivas. Da mesmaforma, no caso da Antropologia, era o conceito de racio~

nalidade, como sistema rigidamente fechado, que levavao pensamento "primitivo" a ser constituído pelo pro­gressivo empobrecimento do nosso. Ele poderia nomáximo configurar-se como uma fase embrionária desteúltimo, fase ainda viciada por atitudes "animistas" "su­persticiosas" ou "místicas", destinadas a desaparecer(precisamente enquanto prefigurações destorcidas) como advento da racionalidade "exata". Mas trata-se menosde reduzir o outro que de compreendê-lo: ampliar omais possível a esfera da razão e, em vez de negá-Ia

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(seja fechando-a sobre si mesma, seja pelo contráriodesagregando-a num relativismo cético), colocá-Ia emcantata com uma experiência diversa da nossa. Por­tanto o problema configura-se nestes termos:

• .. Como compreender o outro sem sacrificá-lo à nossa lógica,ou sem sacrificar esta última? (Merleau-Ponty, S.• 1960, p.144).

:E nesta direção que se movimenta a antropologia"strutural de Lévi-Strauss. Já em Mauss o fato socialperdia suas características de "coisa" e tendia a emergircomo totalidade, como "rede de valores simbólicos".Mas em Lévi-Strauss a hipótese estrutural se libertaposteriormente dos resíduos substancialistas e, COmona Lingüística, dá lugar à formação de um modelocujos elementos constitutivos contam menos pelo valorintrínseco que se supõe possuírem que pelas correla­ções e oposições que se estabelecem entre eles. Mais:esta estrutura relacional não é válida apenas no inte­rior de um único modelo cultural, estende-se tambémao conjunto das diversas culturas entre as quais seobservam relações de transforIlUlção. Vai·se assimdelineando uma universalidade que não !\e impõe àcusta dos traços peculiares (os quais, por sua vez, sesubtraem a qualquer cristalização, assumindo pelo con­trário o aspecto de emaranhados de relações), e comoescreve Merleau-Ponty é "lateral", emergindo de umamultiplicidade de confrontos, de intercâmbios, de trans­formações. b3strutur'l.é_,!~ .sisteIna.funcional queIla~ num contexto de relações entre 0.h"meme. aªªture~_._~~~n.:t~~_Q_J~omem e o homem, reI~~§---ffi!~,como Lévi-Strauss acentua(llVersas"'~vezes~~ ~estª--l!e::lece!Jl~riginariamente aum nível "inconsciente". (istoé~ 'pré-ren~óT,:-9ojnesmQ'moôQoomo'Q ~uj;ol!o. fac)ant" .1!ãº- pre.cisa fazer constantement". a teoria dalíngua para exprimi!:~. :E neste caráter relacional dofato social, surgido da praxis inter-humana concreta,que se encarna o modelo estrutural:

tlNenhuma relação pode ser arbitrariamente isolada de todasas outras nem é possível permanecer aquém ou além do mundodas relações: o ambiente social não deve ser concebido comouma moldura vazia no interior da qual os seres e as coisaspodem ser ligados. ou simplesmente justapostos. O ambiente é

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inseparável das coisas que o povoam; o conjunto destas constituium campo de gravitação no qual as cargas e as distânciasformam um conjunto coordenado em que cada elemento, modi­ficando-se, provoca uma mudança no equilíbrio total do sistema(Lévi-Strauss, S.E.P., 1967, p. 553).

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2. SOBRE O PROBLEMA ONTOLúGICO

a. A redução felWmelW/ógica

Na primeira nota de trabalho publicada em apên­dice a Le visible et l'invisible, Merleau-Ponty indicaem seu artigo sobre Husserl (em Signes, pp. 201-28)uma antecipação da ontologia cujas linhas essenciaisde desenvolvimento precisamente ali está esboçando,a título programático. Esta indicação é significativa,sobretudo na medida em que Se lembre que um dosproblemas centrais tratados no artigo em questão é oda redução. A maneira como Merleau-Ponty retomao problema da redução é característica de todo o de­senvolvimento de sua filosofia. Veremos agora como

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aí se encontra um dos caminhos possíveis para a abor­dagem da temática ontológica de sua última obra.

E necessário primeiramente reiterar, lembrandouma passagem de Le philosophe et son ombre, que paraMerleau-Ponty o significado autêntico da redução con­siste em trazer à luz uma zona do ser onde subjetivi­dade e objetividade se envolvem uma na outra, e onde,no limite, são indissociáveis. Esta dimensão pré-refle­xiva - que é a dimensão da crença perceptiva, daUrdoxa, que me abre ao mundo e que constitui o subs­trato de toda posição de ser - é sobreposta, já na Phé­noménologie de la perception, à Lelknswelt husserlianae constitui, precisamente devido a seu caráter originário,um termo último e fundante. Por isso, segundo Merleau­-Ponty, a redução à r..ebenswelt não implica subseqüen­tes passos redutivos. Coerentemente com esta posição,a fenomenologia husserliana fica colocada perante umaalternativa: ou a redução ao mundo da vida efetivamenteme dá acesso a uma primariedade irredutível, e, nestecaso, toda a problemática egológica e transcendental sópoderia pôr-se com instância derivada, ou a redução aoeu transcendental, assimilando a redução ao mundo davida como sua fase preparatória, resolve o ser-aí domundo na atividade de uma consciência constituinte.Daí, sempre segundo Merleau-Ponty, a dupla orientação- que já se esboçava nos capitulos anteriores - dafenomenologia husserliana, que de um lado se movi­mentaria (sobretudo em seu primeiro "período") emdireção à problemática do sujeito transcendental, daconstituição, e de outro lado em direção a uma proble­mática de tipo "existencial", interessada em encontraras estruturas peculiares do ser-no-mundo. :E significativoque a crítica dirigida por Merleau-Ponty a Husserl - oumelhor, ao que ele chama o "primeiro" Husserl - partade uma instância inicialmente próxima, embora diferen­temente orientada, à de Heidegger 1: isto é, da contes­tação da legitimidade da redução transcendental. Surgeassim o problema de investigar, pelo menos em grandeslinhas e tendo presente o núcleo central das questõesaqui discutidas, o significado e o alcance do problema

1. "Será verdadeiramente evidente, a priori que o acesso ao ser-aídeve ser uma reflexão puramente perceptiva sobre o eu dos atos? [ ... )A interpretação positiva do ser-aí ( ... ) baata para impedir que l;e parlada datldade formal do eu [ ... ]" (Heidegger, E. T., 1953, p. 149).

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da redução transcendeutal na fenomenologia de Husserl;investigação essa que, conforme veremos, não se esgotaránum discurso "local", circunscrito ao território husser­liano, mas nos servirá para abordar a totalidade da obrade Merleau-Ponty e, particularmente, Le visible etl'invisible. E é necessário desde já reiterar, para evitarqualquer possibilidade de equívoco, que com esta brevepassagem pelos textos husserlianos não se pretende demodo algum restabelecer uma pretensa "ortodoxia" ouestabelecer coordenadas sólidas, à luz das quais seriamidentificados supostos "desvios", e sim, pelo contrário,delinear qual pode ser para nós o sentido da pesquisafenomenológica. Aliás, mesmo na diversidade da abor­dagem dos textos, é o próprio exemplo de Merleau­-Ponty que podemos invocar, sua capacidade de ler osfilósofos sem embalsamar-lhes o pensamento, de pensar,como uma vez ele escreveu, "em seu rastro", e de nelesencontrar mais um incitamento para a pesquisa do querespostas já prontas.

A colocação do conceito husserliano de epokê natradição "idealista" assenta numa dupla incompreensão.Antes de mais, numa incompreensão do próprio idea­lismo, na medida em que nos eximimos imediatamenteda explicitação do projeto filosófico que o idealismoesconde (o que, pelo contrário, Husserl procura fazerdiversas vezes, de uma perspectiva teórica e precisamentedo ponto de vista da fenomenologia transcendental, comotentativa de fundamentação da problemática idealista).Em segundo lugar - e precisamente pela maneiracomo se assume a problemática idealista - numa in­compreensão da redução fenomenológica, à qual seatribui um duplo significado: de negação do mundodado na experiência para depois construí-lo a partir deuma consciência constituinte. Na realidade, enquantoatitude livremente assumida na inv~stigaçã<.!J~9_~~a, a...edução fenomenológiç]t não implica nem urnª--'!!1ul~º

nem uma constru窺~_~"veser "sslltnid'li'Jlf_a esilnples­mente com()_Ut!1"_'J!o4ificação <lo Olhar, dirigida para ainvestigacão dal'!Qrrr!aexperiência natural. Sob o re­gime da redução, a crença original em um mundo, aUrdoxa, não é dissolvida, e nada se subtrai daquelascertezas que se estratificaram na experiência perceptivae são precisamente o que me leva a falar em um mundo,neste mundo concreto que cotidianamente experimento,

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e que é para mim, enquanto sujeito natural, uma certezaúltima 2. Mas esta obviedade, abalada pela skepsis,torna-se agora tema de uma investigação fenomenológica.Em certo sentido a epok~, e a conseqüente redução à sub­jetividade, é a resposta que o fenomenólogo dá perante adúvida, perante o questionamento operado pela skepsis:uma resposta que surge precisamente da exig~ncia deconfirmar em sua validade de ser a certeza da experiên­cia natural. A dúvida (e, no limite, a própria negação)só é possivel perante o horizonte de uma certeza ori­ginária, a qual tacitamente abrange. :E: só por ter expe­rimentado algo que posso pôr em dúvida o algo: logoque a dúvida deixa de se apresentar como um fingimento(em si legitimo) e tende a transformar-se numa negação(ontológica), ele acaba inevitavelmente por conduzir auma posição (a posição do nada é também uma po­sição). "Nos mais estáveis e universais de nossos hábitoso mundo vige e persiste para nós, seja qual for o interesseque persigamos, em sua validade atual" (Husserl, 1965,p. 398). No entanto a atitude cética, legitimada pelapossivel contrariedade da experiência natural (na ati­vidade perceptiva posso sempre ser vitima de uma ilusão,confundir uma coisa com outra, ou mesmo ver umacoisa onde não há nada, e a skepsis filosófica amplia egeneraliza esta dúvida até incluir toda a experiência domundo; mas já aqui eSsa skepsis revela sua naturezaaporética, sua incapacidade para permanecer comoskepsis, porque a ilusão implica por essência a possi­bilidade de ser "corrigida" por uma observação con­cordante ulterior e porque é somente a posteriori, combase numa adequação perceptiva, que posso falar deilusão: a ilusão pressupõe sempre a percepção adequada,e a eventual contraditoriedade da experiência naturalencerra portanto a possibilidade de ser resolvida por umaobservação concordante), a atitude cética, dizíamos,constitui uma provocação consciente que não pode serignorada. A própria evidência do mundo, sua certeza,se encontra agora em questão, e a tarefa da investigação

2. o mundo é e continua sendo o que era para mim - nestesentido a redução não muda nada [ ... I Não deve confundir-se a epoklem nosso sentido [ ...1 com uma epoM que quer abster-se de uma vezpara sempre de todo juízo sobre o mundo, de todo reconhecimento deseu ser" (Husserl. manuscrito BIS IX).

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fenomenológica não é desagregá-la (o que a recondu­ziria às dificuldades do ceticismo), nem "construí-la" exnovo como se nunca tivesse existido, mas pelo contráriofundá-la perante a skepsis através de uma investigaçãoimanente voltada para a explicitação de seus nexos essen­ciais e constitutivos. Precisamente porque é a atitudenatural que necessita ser fundada, não posso perma­necer nela, mas preciso reduzi-la a simples fenômenono interior da atitude reflexiva, preciso modificar a di­reção do olhar, que não será mais dirigido, como naatitude natural, para o mundo e as coisas da experiência,mas para aquela dimensão em que se constituem essascoisas e esse mundo. Esta nova atitude implica portantoa suspensão de qualqner posição de ser, de qualquer cer­teza constitutiva, de qualqner valor, etc., e isto preci­samente na medida em que se pretende esclarecê-los. Aepok~, a colocação entre parênteses de todo interesse"naturalmente" orientado, não tem portanto uma cono­tação ontológica, mas se propõe imediatamente comouma simulação metodológica, com a condição de seentender por esta expressão não apenas a simples puri­ficação do que se revelaria prejudicial para a própriainvestigação (isto é, apenas um momento, poderíamosdizer óbvio, da redução: nma atitude implícita em todointeresse científico, ou mesmo natural, sempre que setrata de isolar um certo âmbito de pesquisa, de recusarcertas teorias, etc., tendo em vista precisamente aqueleinteresse peculiar), mas mais profundamente a consi­deração da g~nese constitutiva das objetividades inves­tigadas. Como observa Merleau-Ponty, é verdade quea redução fenomenológica encontra já, na atitude natu­ral, uma prefiguração. Mas, conforme mais adianteveremos, trata-se de uma prefiguração que, para assumirseu pleno alcance fenomenológico, necessita de desen­volvimentos que de certo modo implicam uma inversãoda atitude natural e que portanto, por assim dizer, con­trastam com ela. O ato intencional, o meu ser dirigidopara um objeto, é sempre orientado por um interesseque, por uma necessidade essencial, põe à margem demeu campo de atenção todo outro interesse, põe-nomomentaneamente fora de jogo. Na Krisis (§ 35),Husserl fala do cientista que, assumindo atualmente a

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atitude teórica, "suspende" os outros interesses, vivenum "tempo profissional" concentrado nO objetivo dainvestigação. Ampliando o alcance da observação hus­sediana, poder-se-ia dizer que também - e originaria­mente - o sujeito que assume a atitude prática, numapraxis concreta orientada para uma realização peculiar,desenvolve uma atividade intencional que é, por assimdizer, "redutiva" dos outros horizontes de interesse, ini­bindo-os. Num sentido muito particular, o problema daredução pode portanto ser reconduzido ao âmbito daatitud.e natural, mas na medida em que toda praxis "in­teressada", concentrada num objeto, num fim, num valor,etc., implica uma conversão do olhar atencional: e é issoque se dá também na reflexão fenomenológica enquantopraxis exercida na atitude teórico-transcendental, coma condição todavia de ficar bem claro que a conversãodo olhar por ela imposta possui, além das modalidadesjá inerentes às conversões operadas na atitude natural,um sentido radicalmente novo e "não" natural, ou antes:é uma conversão tal que, precisamente por seguir umadireção, por assim dizer, inversa em relação às outras,me permite o esclarecimento destas e a consideração desua gênese constitutiva. Na experiência cotidiana, nahabitual atividade prática, perceptiva, valorativa, etc., osujeito está "naturalmente" voltado para os objetos, emcerto sentido só tem olhos para eles e, na medida emque os percebe, manipula-os, deseja-os, etc., em suafatualidade, é levado a dissimular os atos intencionaisque os constituíram. Precisamente na medida em queé concreta e efetivamente operante, a intencionalídadepermanece inacessível. Na percepção, por exemplo,

[... ] a consciência ingênua que se dirige ao objeto emsua identidade, através das várias perspectivas, da sombra eda luz, etc., em que este aparece na percepção, carrega sempreno olhar ° resultado deste fazer. ou seja, o ohjeto enquantose dá à· percepção em seu modo particular. Esta consciência,porém, não percebe que a datidade do ohjeto determinado emseus traÇOs sensíveis é já sua própria operação [... J (Husserl,E.G., 1965, p. 58).

:e. certo que já na atitude natural é possível, atécerto ponto, uma inversão do olhar para o sujeito en­quanto sujeito de seu mundo circundante, que já narelação intersubjetiva da experiência não é como objeto

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entre objetos qne apreendo o outro, mas como pessoa",como centro de um comportamento ativo. Não obstante,a redução à subjetividade transcendental é artificial"implica uma reviravolta total do olhar natural, a redu­ção de todo ente a mero fenômeno para uma consciênciatranscendental, a consideração não mais dos objetosdados mas de como eles vêm a ser constituídos. -e porisso que, precisamente na medida em que é consciente­mente artificial, a redução fenomenológica, a purificaçãodos objetos de toda posição de ser, não tem nada demistificador. Os objetos continuam a estar lá, a formarmeu mundo circundante, no qual ajo, percebo, desejo,etc., simplesmente são agora puros correiatos de umasubjetividade, em relação aos quais suspendo toda ati­tude predicativa, ou mais simplesmente toda atribuiçãode existência, para considerar as modalidades de seudar-se:

[... ] o mundo, que antes era válido para mim através dosmodos subjetivos, e que continua a sê-lo, enquanto mundo meu,nosso, humano, !Ião desapareceu; enquanto a epokê atual, elepermanece como puro correlato da subjetividade que lhe confereseu sentido de ser [ ] O mundo é sempre um mundo jádado e indubitável [ ] Mesmo que eu não o tenha "pressu-posto" como terreno, ele é válido para mim [... ] Não existeportanto um realismo mais radical do que o nosso, desde queessa palavra signifique simplesmente isto: "estou certo de serum homem que vive neste mundo, etc., e não tenho disso amennr dúvida" (Husserl, C.S.E., 1961, pp. 178-80).

Até aqui estas observações sobre o problema da re­dução em Husserl foram mantidas num plano deliberada-

3. A respeito das relações entre atitude "personalis.ta" e atitudetranscendental, d. Idem 11 (Apêndices X e XII, e § 49). Deve-sesublinhar qUe a atitude personalista ("a pessoa como centro de um mundocircundante") se contrapõe à atitude naturalista (própria de quem semovimenta no âmbito das ciências naturais como ciências de uma naturezaobjetiva), mas não à atitude natural (isto é, a atitude pré-refletiva daexperiência cotidiana). :a: certo, no entanto, que freQÜentemente, sobre­tudo na ldeen II, ao falar da atitude natural, Huissed não insiste tantoem seu caráter "ingênuo" e não artificial quanto sobre o {ato de elapfJT uma natureza objetiva, que portanto serve de fundamento à atitudenaturalista. Este duplo matiz não é certamente um descuido termino­lógico, mas, pelo contrário, traduz uma conotação peculiar da atitudenatural, que é ao mesmo tempo o lugar de uma experiência orlRinária(poderíamos dizer da experiência da Lebenswelt) e - na medida em quea atiVidade intencional permanece oculta de si mesma pelo dar·se dosob/elos e de um mundo ob/etlvo - o terreno onde ganha corpo o obje­tivismo das ciências naturais. ~ por isso que a atitude naturaUsta umasvezes é oposta, e outras, assimilada à atitude natural.

4. Evidentemente o que aqui é artificial é o ato, e não a dimensãoa que este ato dá acesso. O sujeito transcendental a que a reflexãoconduz não é, numa palavra, "construído", mas é aquele mesmo sujeitoque é operante, como pólo unitário, na multiplicidade dos atos inten.cionais.

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mente geral. Mas é verdade que HusserJ, em diversos tex­tos, apresenta várias modalidades de abordagem desteproblema, variedade essa que talvez provenha de diferen­tes exigências temáticas e expositivas que vão sucessiva­mente solicitando o discurso husserliano. Já ficou dito,no capítulo anterior, que o conjunto destas "variações"pressupõe uma unidade temática constante, que se con­cretiza na idéia de constituição. Passemos à explicaçãodeste aspecto. Quer em Erfahrung und Urteil quer naKrisis, Husserl refere-se a dois momentos, ou dois"graus" da operação redutiva. ll. preciso desde já escla­recer que aqui se deve ver unicamente uma das possíveisvias de acesso à temática da redução, não havendo por­tanto motivo para absolutizar esta linha expositiva, emuito menos suas articulações internas (por exemplo,a definição dos diversos passos redutivos). Se apesardisso se insiste neste tipo de formulação é porque, pre­cisamente devido a sua conotação, ela é pertinente àordem de considerações que estamos desenvolvendo.

Nos textos acima citados, a operação redutora seconfigura inicialmente como redução do mundo dasobjetividades científicas ao da experiência pré-científicae extracientífica, à experiência natural - anterior aqualquer objetivação "naturalista" - onde o mundo,como campo de experiências perceptivas, práticas, etc.,se me oferece em sua originariedade e onde vivo espon­taneamente como sujeito que desde sempre tem estemundo, que não põe em dúvida seu ser aqui e agora,sua dispouibilidade para uma série aberta e concordantede experiências variadamente "interessadas". Mas,mesmo a este uiveI preliminar, a redução fenomenoló­gica revela sua peculiaridade: para que esta atitudenatural de meu viver cotidiano passe a exercer o papelde tema da investigação, em vez de ser simplesmentevivido em sua evidência, é necessârio que de certo modoeu já esteja fora dela, que me distancie dela e a torneobjeto de um olhar reflexivo. Os dois "graus" da re­dução passam assim a delinear-se, não já como duasfases distintas (a distinção de que brevemente se tratoué ditada apenas por exigências de exposição), mas comodois aspectos de um único movimento redutivo, desti­nado a esclarecer as modalidades entre as quais seconstituem os objetos de qualquer experiência possível.

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A redução à Lebenswelt implica a redução ao eu trans­cendental, na medida em que é no campo da subjeti­vidade, transcendentalmente depurado de todo interesse"naturalmente" orientado, e investigado em seu merofuncionamento, que apreendo a origem última das for­mações cognoscitivas. Enquanto análise intencional, ouseja, explicitação das operações intencionais (que naatitude natural permanecem latentes) através das quaisse constitui o sentido de ser de qualquer objetividade, afenomenologia se propõe programaticamente como crí­tica da experiência (natural e científica). Com a redu­ção fenomenol6gico-transcendental são postos entreparênteses os predicados de validade inerentes a todoexistente naturalmente dado, tornando-se esse existenteum puro índice de operações constitutivas. Graças aesta inversão do olhar, operada na reflexão, não estoumais interessado no ser de minhas representações, vistoque deste ser passam a ser tematizados apenas os modosde datidade para uma consciência fenomenologicamentereduzida, da qual ele é o simples fenômeno, o correlatointencional. Trata-se de uma reflexão "genética", e não"psicoI6gica": genética porque remonta às formaçõesoriginárias de sentido (apresentadas, precisamente, nocampo transcendental) nas quais se constitui o objeto­-mundo, ao passo que a Psicologia investiga a esferasubjetiva enquanto ente no mundo, aborda esta comotrama de processos psicofísicos localizados no contextodos eventos do mundo já constituído:

a realidade ohjetiva em seu conjunto, a objetividade científicade todas as ciências reais e possíveis, e também a ob;etividadepré-científica do mundo-da-vida, com todas as suas "verdades desituação" e com a relatividade dos objctos que nela se encon­tram, tomaram-se um problema para a filosofia transcendental[.. .] qualquer objetividade real e mundana, inclusive a doshomens e dos animais [... J deve ser considerada uma operaçãoconstituída. Portanto o ser psíquico [ . .. ] e a própria psicologiareingressam no problema transcendental (Husserl. C.Se.E.• 1961,pp. 228-9).

Compreende-se assim o sentido da redução feno­menol6gica. Por detrás das "variantes" de exposiçãoque Husserl dela apresenta, emerge como núcleo cen­tral, do qual desbastamos as diversas elaborações temá­ticas, o problema da constituição. Este aspecto aparecejá nitidamente nas Lições de 1905 sobre a consciência

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interna do tempo, nas quais desde as primeiras páginasse coloca, a título programático e metodológico, a exi­gência da redução do tempo "objetivo" à esfera ima­nente das Erlebnisse, constitutiva do fluxo temporais, ese encontra no centro de Philosophie ais strenge Wissen­schaft, embora num contexto temático diferente. Estassimples indicações são suficientes para sublinbar a soli­dariedade oculta entre os escritos menos recentes deHusserl e os dos últimos anos. Observação esta que,para além de sua obviedade "historiográfica", nos per­mite focalizar um problema teórico que tem a maiorrelevância para Merleau-Ponty. Efetivamente, verifi­camos como este insiste na exigência de reconduzir ainvestigação fenomenológica para o âmbito da Lebens­welt, rejeitando a problemática transcendental (pelomenos na medida em que esta se identifica com a pro­blemática da constituição), e como esta posição teóricacaracterística é freqüentemente exemplificada pela refe­rência aos dois possíveis "momentos" (que por outrolado, e isso é significativo, Merleau-Ponty nunca esta­belece rigidamente) da reflexão husserliana. Por outrolado, as páginas precedentes devem ter deixado claroo que inicialmente foi dito, isto é, que a investigaçãoaqui desenvolvida não pretende, através de um con­fronto textual de cada página de Husserl, proceder a umlevantamento de eventuais "falsificações" - como foidito, para Merleau-Ponty a fenomenologia husserliananunca foi objeto de uma "interpretação", e sim de umasolicitação problemática -, mas pretende pelo contráriofocalizar um núcleo teórico que poderia servir de intro­dução a uma reflexão crítica sobre a filosofia de Mer­leau-Ponty particularmente sobre a ontologia de Le visi­ble et l'invisible. O que acima de tudo aqui importa evi­denciar é a impossibilidade de separar a temática daLebenswelt e a temática transcendental.

Voltando agora ao problema da redução, pareceoportuno insistir novamente no fato de a redução trans­cendental, enquanto "delimitação metodológica", não

5. o problema da "origem" do tempo está na base da critica queRusserl desenvolve no embate com o psicolOgismo de Brentano. Enquantoa Psicologia considera as Erlebnisse como estados psíquicos de sujeitosempíricos, e portanto em sua realidade psicofislca, a fenomenologia sus­pende esta posição de realidade e considera-as puros atos intencionais,constitutivos das diversas objetividades representadas. Para ela trata-se dedestacar aqueles a priori eidéticos "que pertencem aos momentos consti~

t\ltivos da objetividade". Já aqui aparece claramente o nexo essencialque une a fenomenologia genética e a fenomenologia eidética.

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implicar a negação do mundo existente, mas simples­mente sua modificação COmo correlato intencional dasubjetividade. A análise fenomenológica é, com efeito,a análise dos atos intencionais em sua estrutura bipolar:por um lado (análise noética) considera as modalidadesestruturais das cogitationes, por outro lado (análise noe­mática), a dos cogitata por elas intencionadas. Na ati­tude natural meu olhar volta-se espontaneamente paraos objetos da experiência, é por assim dizer cego paraos atos intencionais que os constituíram, e na atitudetranscendental, pelo contrário, volta-se exclusivamentepara estes atos (para suas estruturas noéticas), e ospróprios objetos constituídos entram no campo da inves­tigação como puros correlatos (não estão mais em causaseus predicados de existência, seus títulos de validadepara a experiência cotidiana, mas simplesmente suasestruturas noemáticas). Em suas relações com a atitudenatural, a atitude transcendental não desempenha por­tanto tarefas "construtivas", mas simplesmente tarefasdescritivas, ou seja, visa a uma explicitação do que estálatente no operar cotidiano. A análise fenomenológicanão é propriamente "constitutiva", mas explicita umaatividade de constituição operante desde sempre: somentenestes termos é lícito falar de análise constitutiva. Éprecisamente por este motivo que a redução ao eu trans­cendental não esconde nada de milagroso; a distânciaque, em regime de redução, se introduz entre a atitudenatural e a atitude transcendental só é possível em vir­tude de uma vizinhança originária:

Eu, enquanto adoto a atitude natural, não deixo de ser sem­pre um eu transcendental. mas só tomo consciência disto gra­ças à efetivação da redução transcendental. Mediante esta novaatitude vejo que o mundo em seu conjunto, assim como todoexistente natural em geral, somente é para mim enquanto valepara mim com seu sentido determinado, como cogitatum deminhas cogitationes mutáveis e ligadas umas às outras nestamutabilidade (Husserl, M.C., 1960, pp. 83-4).

Por outro lado, a partir do momento em que colo­camos o problema da redução ao eu transcendentaldescobrimos sua íntima relação com a redução eidética.O eu transcendental é, por assim dizer, a estrutura per­manente no âmbito dos múltiplos atos intencionais quefluem na vida subjetiva concreta. A investigação daesfera transcendental é portanto uma investigação estru-

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tural, que uão está voltada para os múltiplos atos emsua singularidade (e por isso não se trata, romo porvezes se julgou, de um regresso à imediatidade do vivido,a qual nunca "coincide" com o ato tematizado), maspara seus nexos essenciais: o eu é apreendido em suatipicidade. Mais: dado que a análise eidética visa aoobjeto em sua imanência, despido de toda posição deexistência e apreendido em sua pura "forma", pode-sedizer que, em certo sentido, a análise transcendental éa análise eidética por excelência, na medida em queela me coloca numa esfera de imanêucia primária, a dasubjetividade transcendental. Efetivamente a análiseeidética implica uma redução de todas as "apercepçõestranscendentes" 6, a purificação do objeto temático dassituações empírico-fatuais em que este objeto se apresen­ta na experiência comum. O objeto está aqui à miullafrente: posso captá-lo em sua efetividade concreta, comoobjeto que está aqui e agora diante de meus olhos eque posso perceber, manejar, desejar, etc., precisamenteenquanto o ponho como efetivamente existente, ou possocolocar-me perante ele numa atitude por assim dizerfantástica, posso submetê-lo a meu bel-prazer a umalivre variação, no termo da qual o que me será dadonão será mais o ohjeto corno "este" existente, mas suaessência. Se faço variar, na imaginação, o tamanho, acor, etc., do lápis que vejo na minha escrivaninha (possoimaginá-lo grande em vez de pequeno, preto em vezde amarelo), o que permanece nesta variação é preci­samente a essência "lápis" 7. Na visão da essência oobjeto não é captado em sua efetividade, mas em suapura possibilidade eidética (e por isso na introdução àsLições sobre a consciência interna do tempo o problemada possibilidade da experiência é identificado com o daessência da experiência). Essa visão assenta na colo·cação entre parêuteses de toda posição de ser, de tododado de fato. Por outro lado, esta redução de todo

6. Quando vejo uma coisa, na percepção comum, sempre a vejoatravés de seus perfis, mas plenamente, na totalidade simultânea de seusperfis. Mesmo na percepção adequada, baseada numa multiplicidade deatos perceptivos concordantes que em sua síntese me dão a própriacoisa, esta coisa é sempre por assim dizer excedente em relação aesses atos, é uma transcendencia. Pelo contrário, a peculiaridade daessência consiste em não se dar através de um jogo de luz e sombra,mas numa visão plenamente adequada.

7. Todavia deve ficar claro que a essência não é uma substânciacristalizada, e ela também deve ser submetida a uma análise genético­aconstitutiva.

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coeficiente de realidade só é possível, em últíma análise,na medida em que o objeto temático é considerado emseu puro dar-se a uma consciência transcendental 8.

Precisamente por este motivo, análise eidética e análisetranscendental acabam em última análise por identificar.se. Na multiplicidade de seus horizontes temáticos, ainvestigação fenomenológica comporta urna "norma"unitária:

não tirar proveito de nada que não possamos tomar "essencial­mente" intuitivo na pura imanência da consciência (Husserl,ld. I, t965 a, p. 130).

Fica assim esclarecida a metáfora husserliana do"espectador desinteressado". A redução fenomenoló­gica não é urna conversão mística do olhar, é um fazerativo; só que se trata de um fazer que, em vez deinteressar-se pelo ser das coisas, volta-se para as moda.­lidades constitutivas deste ser. A redução eidética, afaculdade de libertar o objeto temático de sua efetivi·dade e de captá-lo em sua pura tipicidade eidética, deoperar ativamente uma livre variação, reaparece comopossibilidade essencial na estrutura da subjetividade, queé antes de mais nada um "eu faço"9, uma disposiçãoativa do constituído: se por atitude "contemplativa" seentende uma atitude que se limita a "registrar" o objetoem sua fatualidade, nesse caso a análise eidética é, decerto modo, o contrário desta atitude. Por outro lado,vimos que a redução do dado à mera possibilidade ím·plica o acesso a uma esfera imanente em que o objetoinvestigado se torna precisamente um símples índice dosatos intencionais da subjetividade, independentemente dequalquer posição de ser. Na multiplicidade das direçõestemáticas em que se desenvolveu (uma multiplicidadeonde se entrelaçam os discursos sobre a Lebenswelt, oeidos e o transcendental), o problema da redução é,em última instância, o problema da constituição. O nú­cleo fundamental a que deve ser reconduzida toda ainvestigação fenomenológica é, portanto, o eu transcen-

8. "Um conhecimento propriamente fundamental [ ... ) é aquelepara o qual toda objetividade diretamente constituída, como por exemploum objeto da natureza, remete de maneira correspondente para seutipo essencial (a coisa física em geral), para uma forma essencial cor~

relativa da variada, real e possível intencionalidl1de (que no exemploapresentado é infinita) que é constitutiva para tal objetividade" (Husserl,L.F.T., 1966, p. 303).

9. '<Tudo o qUe pode ser transformado imediatamente num 'eufaço' é originariamente sub;etivo" (Husserl, Id. II, 1965 a, p. 70S).

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dental como "momento estrutural de todas as cogita­tiones", como centro funcional último de toda consti­tuição" (Husserl, Id. I, 1965 a, p. 707). Ou seja, é opólo permanente de onde se desprendem os atas inten­cionais variáveis, o conjunto das estruturas típicas e apriori sob as quais se recolhem esses atas, ou então, se sepreferir, o que permanece como invariante (estruturaeidética) na variação das Erlebnisse singulares. A tarefada fenomenologia transcendental é justamente procedera uma descrição eidética das formas constitutivas daconsciência e, como já se viu, estas formas não são"construídas" na atitude transcendental: são as própriasformas que operam na experiência natural e que, nestaexperiência, permanecem latentes. Mas, na medida emque é uma explicitação, esta descrição exige que mesmoa dimensão da Lebenswelt - isto é ';;!uela dimensãoem Q)le a sybjetiVjdade experimenta Co êretamente seumundo circunstante g,ye é um centro ativo de "interesses"diversamente orientados e vive neles. constitujndQ assimuma primeira estratificação de sentido, na qual poderãodepois instalar-se todas as outras se tOlne tambémum índice para uma investigação dirigida para a tipi­cidade das estruturas intencionais. Aos olhos destainvestigação, a Urdofa, a crença perceptiva, deixa depoder ostentar qualqller direito de prioridade, precisa­mente na medida em que ela própria. precisa ser confor­mada (isto é, explicitada em suas formas constitutivas)perante a skepsis. A Urdoxa é reduzida a simples cor­relato das estruturas eidéticas da consciência, que passaassim a configurar-se como um conjunto permanente depossibilidades, como um eu posso e núcleo permanentede uma atividade" constitutiva. Conseqüentemente,mesmo a temática inerente ao ser aparece dissolvida nocampo fenomenológico-transcendental, ou seja, na temá­tica da constituição:lIy", " .-somente através do desnudamento da operação que constitui osentido de ser do mundo dado podemos libertar-nos de todaabsolutização absurda do ser deste mundo, e podemos tambémsaber [... ] o que [ ... ] devemos supor acerca desse ser (Husserl,L.F.T., 1966, p. 30t).

Toda transcendência é assim abrangida pela redu­ção, todo ente serve de mero correlato de atos inten­cionais, e portanto a própria ontologia, como ciência do

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ser em geral, é subsumida pela investigação fenomeno­l6gica:

Tudo o que as ciências dos onta [ ... ] têm para oferecer"se resolve na fenomenologia" [... l. O que precisa ser rea­lizado nesta ordem de considerações [... ] pressupõe uma feno­menologia transcendental, transcendental no sentido bem precisoque já delimitamos, de uma ciência que, através das "reduções"que descrevemos, se apropria no campo da consciência trans­cendental (Husserl, Id. III, 1965 a, p. 895).

Estas indicações sobre o problema da redução nointerior da fenomenologia hnsserliana poderão agoraservir-nos como orientação no exame da problemáticaontol6gica de Merleau-Ponty. Como vimos, segundoMerleau-Ponty, a fé perceptiva, que se origina naLeltenswelt, constitui um primum refratáno a toda redu­ção. "há ma coisa" a tese tácita da erce ção,não é redutível a suas possibilidades ei etlco-constltu­tjyas as Q.Yais pelo contrário são tematizadas, no âmbito

. funda ão ela fenomenolo ia trans-cendental. :E: contra este pano de fundo que se ese ao problema do ser.

b. Filosofia existencial e ontologia

É significativo que em Le visible et l'invisible Mer­leau-Ponty esboce algumas notas críticas a respeito daPhénoménologie de la perception, obra que, segundo opr6prio Merleau-Ponty, não teria realizado uma "expli­citação ontol6gica" dos problemas nela levantados. Poroutro lado, o termo "explicitação" não é aqui usadocasualmente, mas quer denotar precisamente a diferença,ainda que latente, de uma perspectiva "ontoI6gica" que,com Le visible et l'invisible, é precisamente desenvolvidade maneira coerente. As páginas anteriores podem agoraservir de fio condutor no esclarecimento do sentido e doalcance desta presença que, conforme vimos, se encontraintimamente ligada aos limites impostos por Merleau­-Ponty às tarefas da redução. Em resumo, trata-se devoltar a percorrer, apenas em seus pontos de passagemessenciais, a investigação de Merleau-Ponty, e de mos­trar como a problemática ontol6gica volta a apresentar­-se, embora de maneira apenas Uimplícita", ao longo detodo o arco de sua reflexão.

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:Ê interessante notar que numa de suas primeirasproduções '0, Merleau-Ponty apresenta uma caracteriza­ção "eidética" da análise fenomenológica, insistindo pre­cisamente em sua tarefa de levantamento das essências,tarefa aliás ligada à da redução à esfera da subjetividade,conforme se vê claramente nesta passagem:

A "suspensão" (epokêl do movimento natural que leva aconsciência para o mundo, para a existência espaço-temporal,aí encerrando-a, é uma redução que não conduz apenas a UD1é:l.introspecção mais fiel; leva verdadeiramente a um novo modode conhecimento, que de resto terá como objeto O mundo ou oeu. A partir deste momento, como deixamos de dar qualquerprioridade irrefletida às coisas, aos estados de consciência inse­ridos no espaço e no tempo e às explicações causais que estesadmitem, como passamos a seguir as articulações dos ''fenô­menos" na consciência viva, as propriedades, as conexões queeles manifestam com evidência são leis novas que nos apa­recem, é uma necessidade que não é mais física, mas essencial.

Num artigo 11 do ano seguinte, o sentido atribuídopor Merleau-Ponty à redução fenomenológica - nopróprio ato de encaminhar sua reflexão filosófica - jápossui uma fisionomia bem precisa. Criticando a ati­tude "espetacu]ar" (a mesma que mais tarde virá achamar "sobrevôo", e implica o desconhecimento dasestruturas peculiares do ser-no-mundo, a redução destasestruturas - e sobretudo da corporeidade - a umarede de concatenações causais, das quais o sujeito filo­sófico seria precisamente um simples "espectador"), eleefetivamente indica na tematização da corporeidade,enquanto constitutiva de toda experiência do objeto, ocaminho a seguir para explicitar a conexão consciência­-mundo, sujeito-objeto. A descrição das estruturas docogito aparece como subordinada a esta tarefa. Minbainerência concreta a um corpo - e portanto, atravésdesta situação, ao mundo -é o fenômeno central emtorno do qual deve-se desenvolver a investigação, queconseqüentemente não se orientará tanto para uma pers­pectiva de tipo transcendental (pelo menos no sentidoque anteriormene delimitamos), quanto para uma pers­pectiva "existencial", destinada a iluminar a estruturade minha relação com o ser do mundo. Precisamente

10. Trata-se de uma longa resenha da tradução francesa de DasRessentlment im Aufbau der MoraJen, de Max Scheler, resenha publi­cada com o título "Christianisme et ressentiment" em La vie intellectuelle,n. Z, pp. 278·306, 1935.

11. ".atre et avoir", resenha da obra homônima de Gabriel MareeI,publicada em La vie intellectuelle. n. 1, pp. 98-109, 1936.

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por este motivo, na Structure du comportemen/ o pro­blema do transcendentãl é Iden!Ülcado com o da dlal..tiCã~"M·põfern:iZâ~~_E~~pÕSíÇãõ-'"4crfficista"(remon­tando até Kant), Merieau-Pont mostra como o ob'etoa mvestl~ação transcen en o e o conjunto das

-estruturas a conscIência en uanto condI ôes de Sl-1 a e da ex nenci mas o com ortamento sí nico­

-hwnano eD uanto tota i a e ue inclui e ' arma' osmVClS enores se o uma estrutura"'30 lar.

qm a re erencla a egel e exp cita: um dos problemascentrais é o da Aufhebung, ou seja, da maneira comoestão presentes à consciência as "etapas dialéticas" queela superou. Justamente porque estas etapas não sãoabolidas, mas integradas numa totalidade mais compre­ensiva, o problema do a priori transcendental se resolve,segw1do Merieau-Ponty, numa consideração genéticaque, tematizando os vários estratos constitutivos docomportamento, deve, enfim, patentear a pertinência daconsciência a um organismo, a totalização dos váriosmomentos dialéticos que ela opera. A consciência não.é.- algo que relW1a do exterior a "raxis do comportamentQ mas é seu sentido imanente. sua, unidade inteo..ciona! atualjzada nas múltiplas camadas. A hipótese

. realista, que consiste na postulação de um mundo "iã• feito" regulado por uma rede de leis causais e do qual_.Q "'º!!!Il9rtamento humano seria s6 uma particularização,.~recisa, num certo sentido, ser invertida: isto é, trata-

. -s constatar como o su'eito rático- erce tivo forma.....Q • fite de r CD ecer como Of]

rio o par "situação percebida-trabalho". Merieau-Pontyenfrenta aqui o problema hegeliano da relação entreexterioridade e interioridade, o problema de uma fina­lidade que não seja transcendente a este processo ­enquanto exigência posta do exterior -, mas que surja,precisamente, como a totalização dos vários momentosconstitutivos, orientada pelo significado de que a situa­ção vital se reveste para o organismo agente. Assim, emrelação aos outros tipos de comportamento, o trabalhohumano institui uma nova dialética (que, não obstante,conserva em si as outras), porque

projeta entre o homem e os estímulos físico-químicos "objetosde uso" [ ... ] e "objetos culturais" [ ... ] que constituem oambiente próprio do homem e fazem emergir novos ciclos docomportamento (Merleau-Ponty. S.C., 1942, p. 175).

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E é desta perspectiva que deve ser investigada aatividade perceptiva. Se, por exemplo, cousideramos oconceito de Gestalt, vemos que ele não é definível emtermos de realidade (isto é, como um acontecimentonatural ou como um objeto que se encontra no mundopré-constituido), mas em termos de "conhecimento": Lforma pressuPÕe a atividade de estruturação, desenvol­vida pela percepção e tem. nesta última, a sua gênese.E é aqui interessante salientar que, como aparece clara­mente em uma nota da Structure du comportement, de­dicada à relação entre Psicologia e investigação trans­cendental, para Merleau-Ponty o problema da origempsicológica "não se distingue", em última análise, doda origem transcendental, caso a Psicologia renuncie atodo pressuposto realístico-causal. E é precisamentebaseado nesta confluência que Merleau-Ponty insiste nanecessidade de "realizar" a consciência transcendentalna exist2ncia.

Compreende-se, então, por que, na última parte daPhénoménologie de la perception, Merleau-Ponty afirmao caráter central do problema da contingência. Trata-seaqui de uma contingência ontológica, isto é, não de umasimples "lacuna" que uma investigação exaustiva deveriaresolver, descobrindo suas razões ocultas, mas do ser-aído mundo, face ao qual o necessário e o possível sãoapenas modalidades particulares e não fundantes. Écerto que Merleau-Ponty sublinha igualmente a neces­sidade de passar do campo fenomênico (o que me érevelado pela Psicologia, o mundo da experiência con­creta e pré-reflexiva) para o campo transcendental (te­mática da constituição). Exatamente nesta perspectiva,ele analisa a consciência como atividade intencional,como um eu posso no qual vêm se entrelaçar a praxise a percepção: a constância do objeto percebido, porexemplo, o permanecer de sua forma ou cor sob con­dições perceptivas diversas, perde todo caráter "realista",não adere mais ao objeto como seu atributo intrínsecoe "explicável" através das leis do mundo pré-constituído,mas é justamente constância para a percpeção, e o cor­relato das sfnteses por ela ativamente realizadas. Mas, deoutro lado, a descrição da consciência como um fazerque continuamente transcende o dado natural, bruto,traz para o primeiro plano a fatualidade, a contingênciaem face da qual se explica este poder de transcendência.

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"Trata-se sempre de saber", escreve Merleau-Ponty numapassagem já citada, "de que modo posso estar aberto a fenôme­nos que me ultrapassam e que, não obstante, existem apenas namedida em que eu os retomo e os vivo, assim como a presençaa mim mesmo (Ur-praesenz) que me define e condiciona todapresença estranha é, no mesmo tempo. desapresentação(Entgegenwaertigung) e me lança fora de mim (Merleau-Ponty.F.P., 1945, p. 417).

O problema gnosiológico, que pertence à inves­tigação fenomenológica prolonga.-se aqui como problemaexistencial: o cogito - enqnanto situado - precisa servisto contra o pano de fundo do ser-aí do mundo. Háum sentido "autóctone" do mundo e, segundo Merleau­-Ponty, a análise constitutiva nos colocará enfim, inevi­tavelmente, perante algo que não é produto de qualquerconstituição transcendental, isto é, perante a faticidade,a inerência do próprio cogito a uma situação, seu per­filar-se no horizonte do ser. Percebe-se assim por querazão a problemática existencial implica a passagem auma problemática ontológica. Compreende-se o que Mer­leau-Ponty quer dizer ao escrever, em algumas notasde trabalho de Le visible et l'invisible, que a "psico­logia" da Phénoménologie de la perception é, na reali­dade, uma ontologia ou, mais criticamente, que "osproblemas colocados na Phénoménologie de la percep­tion são insolúveis, porque nascem com base numa dife­renciação excessivamente marcada entre sujeito eobjeto: numa certa medida, ou seja, na medida emque tinham em vista a atividade intencional da subje­tividade como gênese de sentido, as análises da Phéno­ménologie de la perception podiam fazer perder de vistaaquela dimensão primordial do ser "bruto", anterior atoda diferenciação em termos de subjetividade, que seencontra agora situada ao centro da perspectiva onto­lógica.

Com alguns ensaios publicados em 8ignes surge oproblema do sentido diacrítico da linguagem, isto é, deum sentido que não adere positivamente aos termos sin­gulares da expressão, mas nasce dos desvios diferenciaisque entre eles se verificam. Já tivemos ocasião de in­sistir sobre este ponto, mas o que interessa salientaraqui é o fato de esta estrutura diacrítica introduzir, porassim dizer, a própria configuração do ser: nos ensaiosde 8ignes e nos relatórios dos cursos dados no Collegede France, o ser não se apresenta como positividade,

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plenitude, densidade, mas se define justamente comoum campo em que se abrem dimensionalidades diversas,em que todo ente é sempre, de certo modo, (figura­sobre-fundo), relevo em relação a uma profundidade.Meu próprio corpo não é uma presença maciça, masum "campo de localização" onde se efetua a articulaçãodo sensível, assim como "ter consciência" significa"realizar um certo desvio, uma certa variante numcampo de existência já instituído, que está sempre atrásde nós". Da mesma forma, é preciso reexaminar oproblema da Natureza como "ser envolvente", é preciso"identificar de alguma maneira o ser primordial que nãoé ainda nem o ser-sujeito nem o ser-objete, e descon­certa a reflexão sob todos os aspectos" 12.

A reflexão de Merleau-Ponty sobre a pintura, nasua última obra publicada em vida, nos coloca nestadimensão do ser primordial, bruto, anterior a toda ela­boração reflexiva. Trata-se de se recolocar na zona dohá preliminar, de nosso cantata originário com o sef,onde o saber não operou ainda a cisão entre o "subje­tivo" e o "objetivo'" e no qual se institui uma primeiraestratificação de sentido, sobre a qual todas as outraspoderão depois ser edificadas. Não se deve ver aquiuma rejeição da ciência, das "manipulações" de que estalança mão em face do mundo, ou de sua liberdade ope­rativa, mas uma reflexão destinada a trazer à luz oque está antes de toda ciência e a que toda ciênciatacitamente recorre. O regresso à fé perceptiva é aquio regresso à corporeidade pré-categorial, ao paradoxooriginário de um corpo que é um sensível-consciente:coisa entre coisas que eu e sobretudo os outros podemosver, tocar, ouvir, etc., e, ao mesmo tempo, centro deuma experiência em virtude da qual as coisas· me sãodadas. O gesto do pintor, as linhas e as cores que elepõe na tela, não são uma reprodução, nem o decalquede uma fisionomia do mundo já constituída, mas merestituem, ou melhor, são a articulação originária, graçasà qual há para mim um mundo, um campo de expe­riência sempre aberto, sobre o qual se destaca o per­cebido. Na experiência cotidiana, a visão me dá objetos,coloca diante de mim uma exterioridade, uma alteridadeque eu pareço não ter construído, separada do próprio

12. "Le probleme do la passivité", Annualre du College de FrU'nce.1955, f. 161; "Le concept de nature". lbid., 1958, p. 203.

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operar; no gesto do pintor, pelo contrário, assiste-se aesta gênese: as coisas - as linhas, as luzes, as sombrase os horizontes que formam estas coisas - tomamcorpo sob a mão do pintor, e a visão torna-se visãooperante. Ela não é mais espetáculo, é um fazer. Masesta peculiaridade da pintura não é uma criação mís­tica, funda-se, pelo contrário, na corporeidade comoabertura primordial ao ser do mundo. O gesto do pintoré, num certo sentido, o gesto de todo corpo quando sefaz corpo percipiente, é a articulação de uma fisiono­mia sensível do mundo, uma fisionomia feita de emer­gências, de eliminações, de relevos. No corpo, naturezae cultura se entrelaçam. Ele é natureza, na medidaem que é, por assim dizer, submetido às coisas, namedida em que as "sofre" e se dispõe receptivamenteem relação a elas - e é aquilo sem o que a ordem dacultura seria impossível, na medida em que abre dimen­sões no entrelaçamento contínuo do real, e institui níveis- é, como ficou dito, poder de articular e de dife­renciação. Há uma "pré-constituição" corpórea suben­tendida em toda postulação explícita de objetos, e talpré-constituição é possível exatamente porque o corpose encontra como que atado ao próprio tecido dascoisas, isto é, porque o corpo não é apenas consciente,mas também sensível".

O sentido bruto atingido pela pintura nasce preci­samente nesta zona de indistinção, onde há reciproci­dade entre meus atas perceptivos e as configurações dascoisas, - uma reciprocidade que deriva de sua cooper­tinência à trama do sensível. Segundo Merleau-Ponty, afilosofia deve precisamente investigar esta zona semprepressuposta mas inexplorada: um ser em que sujeito eobjeto, corpo e coisa estão como que enxertados umno outro. O mundo percebido e meus órgãos percep­tivos são formados pela mesma "carne", são "partes domesmo Ser", que é feito de desvios, de níveis e dedimensionalidades diversas porque

"na carne da contingência há uma estrutura do acontecimento[... ] que não impede a pluralidade das interpretações" e por­que "todo 'algo' visual funciona também como dimensão, dan-

13. Eis Por que, quando nas últimas produ7ões de Merleau-Pontyse fala de "sensível", por exemplo, do corpo senslvel, o termo é tomadoao pé da letra, isto é, como "corpo que pode ser sentido", do mesmomodo que se fala de algo visível, tang[vel, etc.

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do-se como resultado de uma abertura do Ser". B isso significaque 'la peculiaridade do visível é ter um forro de invisível emsentido estrito, que ele torna presente como uma certa ausência"(MerJe.u-Ponty, O.E., 1961, pp. 61 e 85).

c. Estrutura, percepção e latência

Voltemos ao problema da linguagem. Na Phéno­ménologie de la perception, conformemente à atitudegeral da obra, Merleau-Ponty sublinha principalmentea pertinência do ato lingüístico ao movimento inten­cional do corpo, à expressividade geral do corpo queé já verificável, por exemplo, ao nível da percepção.Desta maneira, mais do que analisada em suas moda­lidades essenciais, a linguagem é inserida na correnteexistencial do ser-na-mundo, num poder geral de signi­ficação do qual ela seria apenas um "caso particular".É preciso acrescentar, por outro lado, que na Phéno­ménologie de la perception a significação do ato lin­güístico não é ainda investigada como valor diacrítico,mas principalmente em sua "gestualidade", isto é, apartir do fato de essa significação assentar numa intençãocorpórea concreta, não sendo uma idealidade imposta aum suporte material passivo (fonemas, sinais escritos,etc.) e sim a emergência do sentido dos próprios mate­riais preparados pela operação expressiva. Como sesabe, o conceito de sentido diacrítico é focalizado prin­cipalmente nos dois ensaios sobre a linguagem publi­cados em Signes (1951 e 1952) e nos cursos do Collegede France (sobretudo os de 1953 e 1954). Esta modi­ficação de perspectiva - que é acompanhada, é neces­sário acentuá-lo, por um interesse muito mais relevantepelo fato lingüístico, - tem sérias motivações teóricas.Antes de mais nada, a própria estrutura da lingnagem,constituída mais de diferenças do que de entidades posi­tivas, tem um alcance ontológico:

A análise saussuriana das relações entre significantes e dasrelações entre significantes e significados e das significações(como diferenças de significações) confirma e reencontra aidéia da percepção como desvio em relação a um nível, isto é,a idéia do Ser primordial [... ] (Merleau-Ponty, V. I., 1964,p. 255).

A percepção e o próprio pensamento são, reto­mando a expressão de Lacan, citada por Merleau-Ponty,"estruturados como uma linguagem". Esta estrutura é

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antes de mais nada articulatória, na medida em queinstitui diferenciações no interior do campo, desenterradimensões, traça linhas de força, diversifica níveis priví­legiados em volta dos quais o campo inteiro vai gravitar.São aqui essenciais as relações que as várias figuras docampo mantêm entre si - suas conexões laterais numaestrutura de conjunto - assím como são importantessuas relações com o fundo, dado que toda figura pres­supõe sempre um fuudo contra o qual se destaca pordiferenciação. Um fundo que é a totalidade das outrasfiguras tomadas na sua latência, no seu permanecer emprofundidade, justamente para permitir o emergir destafigura atualmente visível. Mas não é suficiente dizer quea linguagem interessa aqui pelo seu valor estruturante,como exemplificação de um poder articulatório geral.Na perspectiva ontológica assumida por Merleau-Ponty,a linguagem é efetivamente proposta como via de acesso,à problemática do Ser. Não porque o problema dosentido do ser do mundo seja redutível a uma análiselingüística formal, mas porque, no próprio ato de pro­ceder à descoberta da própria estrutura - e antesainda, no freqüentar espontâneo do mundo, na medidaem que estamos envolvidos numa dimensão intersubje­tiva - eu uso uma linguagem e esta linguagem nãopode ser dispensada, não pode ser descartada em bene­fício dos significados finais aos quais remete. SegundoMerleau-Ponty, o que a redução não pode pôr entreparênteses é justamente esta linguagem originária emque me encontro mergulhado, como membro de umacomunidade intersubjetiva, linguagem que não é feitade puros significados ideais, mas visa a "um universo deser bruto e de existência". A partir desta colocaçãose explicam algumas referências críticas à Phénoméno­logie de la perception como vimos anteriormente. Ocogito tácito que, como intencionalidade latente, está nocentro das análises conclusivas da Phénoménologie de laperception deíxa um problema em aberto: o da pas­sagem do mundo perceptivo para o mundo da linguagem.De que modo o "silêncio" da percepção se encontradisponível para as siguificações exprimidas pela lin­guagem, e de que modo, correlativamente, a linguagemrecolhe esta atividade silenciosa? Trata-se de um dosproblemas centrais levantados pela última obra de Mer­leau-Ponty, onde infelizmente não se pode encontrar

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nenhuma resposta formulada, em virtude do inacaba­mento do texto. Vamos, portanto, limitar-nos a apre­sentar algumas indicações, essenciais. Antes de maisnada, a análise está voltada para o sujeito falante comOsujeito de uma praxis (Merleau-Ponty, V.I., 1964, p.255). Se remontamos a este nível da palavra operante,não fixada ainda nas relações inteligíveis apresentadaspelo Iingüista, descobrimos, como observa Merleau­-Ponty, que o fenômeno originário é o da reversibilidadecorpórea, o mesmo fenômeno pelo qual, realizando umaespécie de reflexão sobre si mesmo, o sensível se fazconsciente ou o visível vidente:

Num certo sentido, se se explicitasse completamente a arqui­tetônica do corpo humano, sua armação ontológica e a maneiracomo ele se vê e se ouve, verificar-se-ia que a estrutura de seumundo mudo é tal que todas as possibilidades da linguagemjá nele estão dadas. Nossa existência de videntes, ou seja,[... ] de seres que fazem girar o mundo sobre si mesmo e pas­sam para o outro lado, que se vêem reciprocamente, que se en­xergam uns através dos olhos dos outros, e, principalmente,nossa existência de seres sonoros para os outros e para nósmesmos, já encerra tudo o que é necessário para haver palavrade um para outro, palavra sobre o mundo (Merleau-Ponty.V.I., 1964, p. 203).

Segundo Merleau-Ponty, a este nível, o problemada conservação do silêncio não se coloca, pois a estru­tura do uníverso perceptivo e a do universo lingüísticose implicam mutuamente na abertura de um campo: avisão já fervilha de significações lingüísticas sedimen­tadas, assim como a palavra se instala na espessura daexperiência visual. Se as ~~coisas" da visão não sãopresenças plenas, mas emergências em relação a umaprofundidade de perfis que não são possíveis ao mesmotempo, se elas são variantes ou diferenças em relação aum horizonte latente, se, por ex-emplo, o vermelho queestá sob os meus olhos não é uma pura qualidade queadere maciçamente ao pacote de cigarros sobre o qualcai o meu olhar, mas um certo desvio, no campo dasvisões de vermelho passadas ou futuras, isto é, de umvermelho geral, então a natureza, por assim dizer "em­blemática", já é inerente às próprias coisas da expe­riência perceptiva 14.

14. Permanece, contudo, aberto o problema que o próprio Merteau­-Ponty revela em uma nota de trabalho, segundo o qual em um casonós nos reportamos a um sentido não proferido e, no outro, a umsentido expresso em um ato de sIgnificação. Ou melhor: segundo Merleau-

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o problema é portanto remetido para sua matrizontológica, para o problema das dimensionalidades doSer e de nossa relação com ele".

Mas, antes de entrar nesta ordem de consideraçães,é oportuno salientar uma importante indicação de Mer­leau-Ponty a respeito da temática da linguagem, ou seja,sua constante referência ao inconsciente. Já em Signes,como pudemos constatar, a praxis do sujeito falante éconsiderada em seu caráter pré-reflexivo e as leis, asestruturas ou as formas do ato expressivo são, precisa­mente, investigadas geneticamente a partir de seu cons­tituir-se nesta praxis. Em Le visible et l'invisible afunção do inconsciente se precisa como atividade estru­turante, como articulação primária de um sentido. En­quanto delineia ativamente uma fisionomia sensível domundo, enquanto abre dimensões, institui níveis, o in­consciente está aquém das dimensões e dos níveis e éo núcleo originário - a presença - a partir do qualeles se organizam; na medida em que é princípio ativode estruturação e permite assim a percepção (comoapreensor de uma figura sobre um nível), o inconscientee não-percebido, permanece no fundo como nível pri­mário que torna os outros possíveis. Portanto, ele nãoé um concreto de experiências passadas (ainda que asedimentação dos atas anteriores nele reapareça) mas,como dissemos inúmeras vezes, um poder de articulação;neste sentido ele deve ser procurado "não em nossointerior, atrás de nossa 'consciência', mas à nossa frente,como articulação de nosso campo. Ele é inconscientepelo fato de não ser objeto, e sim aquilo graças a queos objetos são possíveis" (Merleau-Ponty, V.I., 1964,p. 234).

Sob um outro aspecto, o inconsciente funcionacomo charneira entre mim e os outros. Fica claro, pelas

-Panty. trata-se sempre "daquele lo/{os que se pronuncia silenciosamenteem toda coisa sensível, enquanto varia ao redor de um certo tipo demensagem, de que não podemos formar uma idéia a não ser em virtudede nossa participação carnal em seu sentido, a não ser assumindo comnosso corpo a sua maneira de 'significar' - ou daquele logos proferidocuja estrutura interna sublima nossa relação carnal com o mundo". Masnem por isso se elimina o fato de haver entre a percepção e a lin­guagem esta diferença: eu vejo as coisas. percebidas, ao passo que ossignificados são invisíveis (Merleau-Ponty, V.l., 1964, pp. 261 e 267).

15. "Apalavra é parte total dali significaÇÕes como a carne dovisível, tal como é re'lação com o Ser através de um ser [ .•• l. Naverdade, há aqui mais solidariedade e trama do que paralelo e analoDa:[••. ] a palavra [ ... ] prolonga no invisível, isto t, estende às operaçõessemânticas~ a pertença do corpo ao ser e a pertinência corpórea detodo ser [ ..• l (Merleau-Ponty, V.l., 1964, p. 158).

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indicações anteriores, que ele é, em certo sentido, aprópria corporeidade como organizadora de um campo.Entretanto, nas páginas de Le visible et l'invisible estacorporeidade assume cada vez mais o aspecto de umaintercorporeidade. Merleau-Ponty retoma e desenvolveaqui o conceito de sinergia, que já havia sido focalizadopela fenomenologia da percepção. Trata-se de ver comoa implicação recíproca entre o~ diversos órgãos do sen­tido, que desemboca na constituição de um único mundosensível para o sujeito percipiente, pode prolongar-se naimplicação entre corporeidades diversas, como terrenooriginário para a constituição de um único mundo inter­subjetivo. Ou melhor, a própria investigação sobre aatividade perceptiva já implica a referência ao outro,pois o próprio perspectivismo da percepção, sua própriainerência a um ponto de vista localizado no espaço e notempo, me permite falar de um mundo de experiência"privado", pressupõe a presença de um mundo inter­subjetivo, como horizonte aberto de possíveis experiên­cias alheias, que é precisamente onde se recorta estaperspectiva. A certeza perceptiva nunca será, por simesma, autêntica certeza, se não remeter para esta di­mensão de coexistência na qual a minha perspectiva ea do outro se envolvem mutuamente, como outras tantasaberturas para um único campo de experiência. li porisso que eu e os outros podemos figurar como órgãosde uma única intercorporeidade. A presença do outroé aqui um aspecto essencial do fenômeno de reversibi­lidade de que já se falou, pois o ser consciente qne estáaqui na minha frente, este olhar que se dirige às mesmascoisas às quais se dirige o meu olhar, e esta mão queapalpa as mesmas coisas a que se abre a minha expe­riência tátil é, ao mesmo tempo, um objeto sensível, umolhar que eu posso ver, uma mão que eu posso tocar.Assim, a minha perspectiva e a alheia são possíveis aomesmo tempo: são dimensionalidades que se implicam,análogas às que são abertas pelos vários sentidos naunidade da experiência subjetiva. Eu e o outro nos des­tacamos precisamente contra este pano de fundo de gene­ralidades, nos eucontramos envolvidos em uma atmosferapré-pessoal, no anonimato de uma corporeidade da qualemergimos como desvios, relevos, ou variantes:

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Toda VISao monocular, todo toque com uma s6 mão,mesmo tendo seu correspondente visível, seu correspondentetátil, está ligado a todas as outras visões, a todos os outrostoques, de modo tal que constitui COm eles a experiência deum único corpo diante de um único mundo, por uma possi­bilidade de inversão [... ], segundo a qual o pequeno mundoparticular de cada um não se justapõe ao de todos os outros,mas é circundado por este, saído deste. Todos juntos constituemum consciente genérico diante de um Sensível genérico. Ora,por que esta generalidade que forma a unidade do meu corponão haveria de abri-lo aos outros corpos? (Merleau-Ponty, V.I.,1964, pp. 186-187).

Compreende-se agora por que Merleau-Ponty insisteno fato de a redução à subjetividade ser, na realidade,redução à intersubjetividade e também por que a suacrítica à outologia sartriana visa particularmente ao pro­blema do outro. A relação intersubjetiva não é direta,imediata, não põe uma consciência diante de outra cons­ciência como duas mônadas, cada uma das quais de­veria "comparar" com a outra o próprio patrimônioparticular de experiências, mas se instaura a um nívelmais profundo, é mediada por um terreno comum depertença no qual tomam corpo minha atividade práticae perceptiva e a do outro. Quando o problema daintersnbjetividade aparece identificado com o problemado reconhecimento direto entre duas consciências dife­rentes, com o problema da objetividade recíproca queelas perseguem com o olhar e com o problema doconjlito ,. que daí deriva, perde-se de vista o fato deeu encontrar o outro no mundo euquanto campo abertode experiêucias perceptivas e práticas, de não haverduas consciências puras ou dois olhares absolutos, cadaum dos quais reivindicaria a exclusividade do próprioacesso ao mundo, que não há um simples confronto adois: entre mim e o outro há toda a espessura dascoisas sensíveis, dos utensílios humanos e dos produtosda cultura; esta espessura não é só distância e motivode conflito, é também, correlativamente, o terreno deuma reciprocidade. Se o sujeito é definido como umpoder modificante perante a plena positividade do ser, oolhar de um outro sujeito não pode deixar de ser paramim uma "catástrofe", porque, reduzindo-me a coisa

16. ":é: portanto em vão que a realidade-humana procura sair destedilema: transcender o outro ou deixar-se transcender por ele. A essênciadas relações entre consciências não é o Mitsein, mas o conflito" (Sartre,L'lttre et le Néant, Gallimard. Paris, 1943, p. 503).

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vista, pregando-me no meu ser-situado, relega-me paraa positividade do ser. Meu corpo, enquanto objeto queo outro vê e que se torna aos olhos dele o índice deminha faticidade, é portanto, motivo de escândalo: parame subtrair à objetivação que o olhar do outro meimpõe, só posso negar este olhar, objetivá-lo em contra­partida, negando-lhe a transcendência que ele me nega:o conflito entre mim e o outro deriva, portanto, da ati­vidade modificante da consciência, da sua exigênciainterna de transcender a faticidade, de negar a situa­ção. Assim, toda ontologia sartriana encontra-se aquiem jogo. MerIeau-Ponty assinala que a dicotomia entreo ser e o nada escamoteia o problema da corporeidade,da articulação do mundo segundo uma multiplicidade dedimensões que se subtraem àquela alternativa, do emer­gir neste mundo de uma trama de perspectivas que,sendo todas parciais, se solicitam, justamente por isso,reciprocamente, quer dizer, oculta o problema da per­cepção mútua dos corpos que não é um. puro uver-se",um objetivar-se sob a transparência dos olhares, mas é,antes de mais nada, a percepção de objetos comuns para08 quais se dirigem atos comuns, a percepção, enfim,de uma convergência que faz que sejam as mesmas ascoisas a serem vistas, tocadas, etc., por mim e pelooutro. O fato é que, para Sartre, o nada, o poder modi­ficante da consciência, é fixado como um concreto onto­16gico, é o outro do sef, e não é visto contra o pano óefundo de uma crença originária que surge primeira­mente no nível da atividade perceptiva do corpo. ParaSartre o corpo surge na esfera do em si, é essencial­mente uma ínércia que se contrapõe ao para si daconsciência, à sua liberdade e à sua atividade. O corpo,como coisa, como faticidade, é simplesmente uma pre­sença opaca que, portanto, não constitui uma primeiraestratificação de sentido: por este motivo, escrevendoa propósito da análise das emoções, Sartre pode afirmarque o estudo dos fatos fisiológicos é inútil "justamenteporque, considerados em si mesmos e isoladamente, elesnão significam quase nada: existem, e é tudo" 17.

Na realidade, se passamos a refletir sobre a cor­poreidade, sobre a percepção como primeira articulaçãodo sentido de ser do mundo que torna possível o fenô-

17. Sartre, Esquisse d'une théo,le des tmottons. Hermann, Paris,1960, p. 16.

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meno da crença, é a própria dicotomia entre o ser eo nada que é descartada, dado que a negação, nestecaso, precisa ser investigada como uma modalização dacrença do ser, da certeza, e não como seu contrapostoontológico. Vale a pena lembrar o qne Husserl Jáescreve a este propósito em Erfahrung und Urtei/:

A negação pressupõe aqui, no plano da originalidade, aconstituição normal originária de objetos que nós designamoscomo percepção normal, explicação normal, e ininterrupta dointeresse perceptivo. Ela deve necessariamente existir para poderSeT originariamente modificada. A negação é a modificaçãoprópria da consciência que se anuncia a si mesma como tal,pelo seu sentido próprio. Ela é sempre um cancelamentoparcial, que se dá no plano de uma certeza que é mantida nela,e posteriormente no plano da crença universal do mundo 18.

A reflexão sobre a corporeidade nos revela umainadequação das categorias descritivas vulgares, como"sujeito" e "objeto", "interioridade" e "exterioridade",etc. Este é o sentido, como vimos, das análises desen­volvidas nas obras anteriores de Merleau-Ponty, mas oque interessa notar aqui é que em Le visible et l'invi­sible estas análises recebem um estatuto ontológico.Antes de falar em corpo "objetivo" (fixado pela reflexãocientífica, inserido em uma trama de relações causais)ou em corpo "fenoménico" (o corpo pré-reflexivo,como atividade significante e formadora do mundo cir­cundante), Merleau-Ponty prefere falar do corpo como"trama ou quiasma" de um sensível e de um consciente.Com efeito, a peculiaridade do corpo é de ser inerenteao mundo dos objetos sensíveis e, ao mesmo tempo, deser o lugar em que eles são experimentados. Antes quede uma interioridade e de uma exterioridade convém,portanto, falar de um "direito" e de um "avesso" docorpo, de duas estratificações reversíveis que derivamda cesura de uma trama sensível única. Ou melhor:nem se deveria falar em cesura, já que o corpo é estatrama mesma, e, como escreve Merleau-Ponty, um sen­sível exemplar: um sensível não de fato, por uma con-

18. Husserl, E. G., 1965, p. 56. ef., a respeito deste ponto, Mer1eau.·PontY. V.l. 1964, p. 65: "A desilusão é a perda de uma evidência s6enquanto é aquisição de uma outra evidência". A desilusão. portanto,só é possível com base na crença em um mundo único, o mundo aoqual temos acesso pela nossa percepção e do qual irradiam as própriasilusões, como suas possibilidades falhadas. Neste sentido. as ilusões"nunca voltam ao nada ou i\ subjetividade, como se nunca tivessemaparecido, mas são antes, como diz Husserl, 'canceladas' ou 'depenadas'pela 'nova' realidade".

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tingência da natureza de homem, mas de direito, porqueum consciente que não seja sensível é impensável, por­que o corpo é antes de mais nada o lugar de uma ine­rência. Tal como a figura que se destaca do fundo éfeita de linhas, luzes, cores, etc., que são também cons­titutivas do fundo, como essa figura não é outra emrelação ao fundo, mas uma emergência, assim tambémo corpo se destaca do sensível justamente por ser umaconcreção dele. E significativo que Merleau-Ponty intro­duza aqui o termo carne, com o qual pretende evi­denciar precisamente o caráter de "elemento" 19, degeneralidade. Deste modo, o conceito de intercorporei­dade é estendido não só à pluralidade dos corpos per­cipientes, mas ao próprio conjunto das coisas sensíveis,ambos tomados na mesma trama "carnal". Mas é neces­sário aqui sublinhar que a carne do sensível não é umapresença plena e maciça, não é constituída só pelo"visível" ou pelo "tangível", que efetivamente se deli­neia perante meu olhar ou meu tato, mas que ela com­porta dimensões, profundezas latentes: aquela mesmaespessura de invisível (p. ex.: os lados ocultos do objetoque tenho aqui diante de meus olhos, que é semprepara mim um objeto e não uma simples série de perfis)sobre a qual repousa o objeto visto. E essencial subli­nhar a importância que assume a idéia de relação nareflexão de Merleau-Ponty. Consideremos, por exemplo,a percepção. A sua estrutura relacional se dispõe sobrevários planos: primeiramente sobre o plano, que jámencionamos várias vezes, do conectar-se das váriasperspectivas em um sistema de relações de reciprocidadeno horizonte do campo intersubjetivo. Aquém desta di­mensão intersubjetiva, a estrutura relacional da percep­ção volta a encontrar-se na articulação que ela juntaao conjunto perceptivo, articulação essa que se desen­volve conjuntamente na ordem da sincronia e na dadiacronia: o branco da folha que está na minha frenteemerge como um certo relevo ou diferenciação relativa­mente à totalidade dos outros objetos que constituem ocampo perceptivo atual e, ao mesmo tempo, em relaçãoà totalidade dos brancos experimentados ou experimen­táveis na sucessão dos atos perceptivos. O este percep-

19. "Deve-se pensar a carne não a partir das substâncias corpoe espírito, isto é, como unilio de contrários, mas como elemento, emblemaconcreto de um modo de ser geral" (Merleau-Ponty. V.I., 1964, pp.193-194),

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tivo configura-se como uma trama de relações que,adotando os termos da Lingüística, poderíamos definirrespectivamente como sintagmáticos e paradigmáticos.A percepção atinge um ser de latência (latência dosperfis não vistos da coisa e dos objetos à margem docampo perceptivo e, correlativamente, das coisas"como" esta que já percebi em outras experiências), éjustamente este ser que funciona como tecido conectivo,como trama relacional ou, já se disse, como carne dascoisas:

Um visível não é uma amostra de ser absolutamente duro,indivisível [... l, mas antes algo que toca docemente e fazressoar a distância diversas regiões do mundo [... ] visível,uma certa diferenciação, uma modulação efêmera deste mundo,e, portanto, menos uma coisa do que uma diferença entrecoisas, cristalização momentânea [... ] da visibilidade. Entreos assim chamados visíveis, reencontrar-se-ia o tecido que osforra, os sustenta, os alimenta e que, por sua vez, não é urnacoisa, mas possibilidade, latência e carne das coisas (Merleau­·Ponty, V.I., 1964, p. 175).

Esta estrutura relacional define a própria cons­ciência, já que, enquanto fundada sobre a atividadesinérgica das várias dimensionalidades perceptivas docorpo, ela é caracterizável como feixe de relações late­rais com estas dimensionalidades.

:Ê na percepção, portanto, que se deve procurar oconstituir-se de um primeiro sentido de ser do mundo,e é na crença perceptiva que se encontrará a respostaà dúvida cética. Para dizer a verdade, esta dúvida, selevada além do simples e legítimo questionamento dacrença numa adequação de princípio entre a percepçãoe o ser do mundo, revela que sua própria problemati­cidade. assenta numa postulação dogmática implícita: apresença de um mundo em si, de um ser maciço e com­pacto, de um texto transparente do qual as nossas per­cepções seriam só gaguejas snbjetivos ou, para usar alinguagem do psicologismo, "estados de consciência".Portanto, a investigação da atitude perceptiva vai mos­trar, pelo contrário, que a diferença entre a percepçãoe, por exemplo, o imaginário da ilusão ou do soubo nãoé um absoluto, mas uma diferença estrutural (fundadana própria peculiaridade de suas tramas e, como se viu,na respectiva disponibilidade ou não-<1isponibilidade parauma série concordante de observações explorativas) e

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que, por si mesma, nenhuma percepção pode pretenderdar-me acesso ao real, visto que ele se perfila só ccntrao pano de fundo das percepções no seu conjunto. Assim,a dúvida pode atingir uma percepção particular, masnão a crença num mundo como terreno permanente daminha atividade perceptiva. Chegamos assim à temáticada crença perceptiva, ou, para retomar o termo husser­liano freqüentemente usado por Merleau-Ponty, daUrdoxa. Como tivemos ocasião de acentuar várias vezes,esta temática não está no centro de uma investigaçãoconstitutiva (no sentido transcendental delimitado ante­riormente), mas, pelo contrário, revela-nos, segundoMerleau-Ponty, os limites próprios de tal investigação,na medida em que patenteia um núcleo originário quenão deriva de nenhuma constituição e que as sustentaa todas: a certeza vem sempre antes das razões que,por via reflexiva, podemos encontrar para ela (Merleau­-Ponty, V.l., 1964, p. 75). E é claro que esta obser­vação é de grande importância para o método e os finsda investigação filosófica. Com efeito, a crítica de Mer­leau-Ponty não visa aqui apenas à 'filosofia reflexiva detipo tradicional, mas à própria fenomenologia husser­liana, na medida em que esta última pretendeu procederà explicitação transcendental da Urdoxa. Ora, paraMerleau-Ponty, o que caracteriza a crença perceptiva ésua impossibilidade de ser traduzida em teses, emenunciados explícitos, pois ela tem sua gênese numfreqüentar ingênuo do mundo e, uma vez reduzida asuas "razões", leva inevitavelmente a situações aporé­ticas. "Nós vemos as próprias coisas, o mundo é aquiloque vemos": esta crença primordial, nunca contestadana atividade tácita do corpo percipiente no qual seforma, começa a suscitar contradições a partir do mo­mento em que tento resolvê-Ia em seus elementos cons­titutivos. Aliás Merleau-Ponty sublinha que não se trataaqui de uma certeza apodítica, nem de uma certezaexemplificável em termos tradicionais:

Os métodos de prova e de conhecimento, que um pensa­mento já instalado no mundo inventa, os conceitos de ob;etoe su;eito que ele introduz, tomam impossível compreender oque é a crença perceptiva, justamente por ela ser uma crença,isto é, uma adesão que se sabe além das provas, não necessária,entremeada de incredulidade, ameaçada a cada momento pelanão-erença (Merleau-Ponty, Ibid., p. 48).

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]; contra este pano de fundo que deve ser visto oproblema da Filosofia.

Ora, se se liberta a crença perceptiva de todo cará­ter de apoditicidade, de plena e constante autopresença,se lhe reconhece uma genêse no tecido da contingênciae uma estrutura aberta, então não se estranhará o fatode ela poder interrogar-se a si mesma; e, num certosentido, a Filosofia é exatamente esta auto-interrogaçãoda crença perceptiva (Merleau-Ponty, Ibid., p. 139).Esta não pode, portanto, ser identificada com um penosarnento "de sobrevoo" livre de toda inerência à situa­ção de origem da qual brota a interrogação filosófica,mas deve constantemente pôr em jogo o problema desua própria gênese, da fonte de sentido na qual nuncadeixa de tocar.

Precisamente na medida em que é um ato de reto­mada, a reflexão não pode absorver aquilo em queassenta este ato, não pode construi-lo com base nosresultados da própria percepção (assim como somostentados a "construir" a percepção com o percebido),mas precisa levar em conta a artificialidade do seuoperar, da mudança que ela introduz na situação per­ceptiva originária: em resumo, precisa pôr em jogo suaprópria presença e prolongar-se numa "super-reflexão"que me dê acesso à percepção bru ta, ainda não elabo­rada pela atividade reflexiva - uma atividade que jáse inicia na fixação em significados lingüísticos. Nãose trata aqui de um regresso ao imediato ou ao vivido.O irrefletido, enquanto tal, é inatingível: entre ele e areflexão há sempre o espaço preenchido pelo próprioato reflexivo, e não pode haver adequação. Neste sen­tido, a reflexão será eternamente uma "tradução" dapercepção bruta em significações expressas; só que elafaz entrar em consideração também esta operação: háum comércio recíproco entre a reflexão e o irrefletido,ou uma relação de Fundierung. E é precisamente desta"situação total", desta reciprocidade entre a reflexão eo irrefletido, que a ontologia tradicional não dá conta.Falando aqui de ontologia tradicional, Merleau-Pontynão visa somente a uma problemática filosófica delimi­tada, mas àquelas coordenadas metodológicas e concei­tuais genéricas sobre as quais se articulou a ciênciapós-cartesiana, isto é, uma ciência fundada na sepa­ração de princípio entre o observador e o observado,

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na colocação de um puro objeto na frente de um purosujeito contemplador e des-situado, na determinação dasdependências "funcionais" (no sentido em que se falada relação função-variável), numa dicotomia entre ares cogitans e a res extensa, na identificação, enfim,do verdadeiro com o objetivo. De resto, o problemanão é aqui simplesmente recusar o pensamento "obje­tivo" ou desconhecer seu alcance, porque, embora nãose possa falar de instauração da razão (precisamente namedida em que tudo aquilo que é qualificado como"não-objetivo" ou não-<1eterminável segundo princípios"exatos" do método causal é mantido fora do campo deaplicabilidade da razão), é possível ver naquele pensa­mento uma primeira delimitação do irracional. Não setrata, em resumo, de dar vida a uma anticiência, dereivindicar os direitos da subjetividade em oposição aosda objetividade ou de circunscrever uma zona de fenô­menos que não seria suscetível de uma investigação"científica", como faz o espiritualismo. Trata-se, pelocontrário, de refletir sobre seus pressupostos ontológicosimplícitos, precisamente para explicitar a legitimidadeou não de suas operações (cf. Merleau-Ponty, Ibfd.,1964, pp. 41-45).

"A reconquista da Lebenswelt", escreve Merleau-Pontynuma Dota de trabalho, "é a reconquista de uma dimensão, naqual as próprias objetivações da ciência conseIVam um sentido edevem ser compreendidas como verdadeiras [... l, O pré-cientí­fico não é mais do que um convite para compreender o meta­científico. e este último não é não-ciência. Pelo contrário, eleé desvelado pelos procedimentos constitutivos da ciência, coma condição de estes serem reativados [... ]" (Merleau-Ponty,Ibid., p. 236).

Encontramos portanto aqui o problema da Lebens­welt, que, como já constatamos, se acha estreitamenteligado ao problema da crença perceptiva. Aliás, a refe­rência à problemática husserliana é explícita", mastrata-se de ver em que sentido Merleau-Ponty a retomae a desenvolve numa direção própria. Ainda em Levisible et l'invisible, assim como na Krisis, a consta-

20. "Ao mostrar a distância entre a Física e O ser da Physis,entre a Biologia e o ser da vida, trata-se de efetuar a passagem doser em si, objetivo. ao ser da Lebenswelt. B esta passagem já significaque nenhuma forma de ser pode ser posta sem referência. à subjetividade[ ... }. Nós fazemos uma filosofia da Lebenswelt, nossa construção [ ...Jnos faz reencontrar este mundo do silêncio" (Merleau-Ponty, Ibld., 1964,pp. 220-224).

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tação fundamental, que nunca deixa de solicitar umacompleta investigação, é o "estado de não-filosofia", acrise, e em particular o ceticismo, que dominam o hori­zonte teórico 21. Mas deve-se pôr em evidência imedia­tamente o significado que Merleau-Ponty atribui à pas­sagem de uma perspectiva transcendental, como a deHusserl, para uma perspectiva ontológica. Visto quea ontologia

seria a elaboração das noções que devem substituir a de sub­jetividade transcendental, as de sujeito, objeto, sentido - adefinição da Filosofia implicaria uma dilucidação da própriaexpressão filosófica (portanto uma tomada de consciência doprocedimento empregado naquilo que antecede "ingenuamente",como se a Filosofia se limitasse a refletir sobre aquilo que é)enquanto ciência da pré·ciência, enquanto expressão do queestá antes da expressão [ ... ] (Merleau-Ponty, lbid., 1964,p. 22t).

Esclarece-se assim, somente agora, o significado denossa investigação desenvolvida no começo deste capí­tulo: segnndo Merleau-Ponty, a temática da Lebensweltnão pode ser remetida para uma análise "constitutiva",voltada para a elucidação das modalidades transcen­dentais da formação da própria LebensWelt, não podesuspender a tese da existência do mundo para ver asua gênese"; precisamente porque a Filosofia parte"daquilo que é", não pode deixar de voltar a encontrarsua própria origem na fórmula "há ser, há mundo, háalgo". Desta maneira, Merleau-Ponty aceita o programahusserliano de descrição das estruturas pré-categoriaisem que assenta o mundo "objetivo", mas nega que estadescrição possa segnir o caminho eidético-transcendental.Mais uma vez, diante daquilo que considera ser a reso-

21. E IS significativo que esta constatação esteja justamente nocentro da primeira nota publicada em apêndice ao texto. De resto,quanto ao que diz respeito à relação com a Krisis, veia-se a t10ta defevereiro de 1959 (PP. 236-237), pertencente à primeira parte da obrana qual Merleau_Ponty tinha começado a trabalhar: "Desnudamento doser selvagem ou bruto, através do caminho de Husserl e da Lebensweltem que se vai desembocar [. .. l. Toda a minha Primeira Parte deveser concebida de modo muito direto, atual, como a Krlsis de Russerl:mostrar nossa não-filosofia para depois procurar sua origem numa Selbst_~esin!1ung h~~tórica e numa Selbstbesinnrmg sobre nossa cultura, que éclênCla [ ... ] .

22. Vale a pena lembrar que também, e principalmente, em suaúltima obra, Merleau-Ponty identifica a redução trans.cendental com aefetiva neutralização da existência do mundo, com a redução a um grauzero a partir do qual se deveria reconstruir o mundo fenomênico (cf.Merleau-Ponty, Ibid., 1964, p. 125); atribuindo-lhe, portanto, um alcanceque transcende aquele significado metodológico que, como se viu, nosparece caracterizar o conceito husserliano de redução.

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lução do ser-aí na pura atividade de um sujeito oni­constituinte, Merleau-Ponty acredita poder postularcomo originário e insuprimível o fenômeno da inerênciado sujeito a um corpo situado, do qual o sujeito trans­cendental não pode prescindir, assim como a essêncianão é pura possibilidade a priori, mas pressupõe justa­mente um campo de existência. Não é por acaso queMerleau-Ponty insiste no caráter de processo própriode ideação, da descoberta da essência: precisamente namedida em que assenta na livre variação do dado empí­rico e remete para uma invariante que é "animada pelonosso poder de variar a coisa", na medida em que, por­tanto, não é uma pura positividade separada dos fatos,a ideação implica uma espessura de duração. É estaespessura, esta multiplicidade de atos sedimentados, queliga a idéia, a essência, ao tecido do mundo sensível.

Com a primeira visão, com o primeiro contato [ ... ] háabertura de uma dimensão que nunca mais vai poder serfechada, e se estabelece um nível em relação ao qual todaoutra experiência passará a ser referida. A idéia é este nível,esta dimensão, e, portanto, ela não é uma invisibilidade defato, como um objeto oculto atrás de outro, nem uma invisi­bilidade absoluta, que nada teria a ver com a visibilidade,mas é a invisibilidade deste mundo [ ... ] a sua possibilidadeinterna e própria, o Ser deste ente (Merleau-Ponty, lbid.,1964, p. 168).

Define-se assim o sentido da ontologia projetadapor Merleau-Ponty. A reflexão deve exercer-se sobreuma "situação de fato", deve instalar-se na dimensãoperceptiva como lugar de uma experiência bruta, nãofixada ainda nos significados discretos do pensamento"objetivo", isto é, deve explicar o fenômeno originárioda nossa abertura ao mundo: uma abertura que, comoespecifica Merleau-Ponty, "não exclui seu possível ocul­tamento". É precisamente desta perspectiva que a tarefainerente à reflexão filosófica se define. Com efeito,numa das últimas notas de trabalho, o mesmo Merleau­-Ponty sublinha que o problema fundamental é o dasedimentação e da reativação. Trata-se, em outros ter­mos, do problema da gênese do objetivo, entendendo­-se aqui a palavra gênese em seu pleno significado tem­poral. A constituição do objetivo é possível exata­mente na medida em que há sedimentação, em quetodo ato intencional se instaura numa dimensão tem-

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poral onde é ao mesmo tempo fundado e fundante,visto que se incorpora numa estratificação de atos ante­riores precisamente na medida em que institui uma novadisponibilidade: isto é, a possibilidade de ser retomadopor outros atos. Ora, esta sedimentação é inconsciente,não é posta pela consciência, mas se efetua, por assimdizer, no anonimato do corpo percipiente. É certo quehá também a lembrança, o ato explícito de ligar estae aquela situação perceptiva, mas esta rememorizaçãosó é possível porque aquelas situações Se concatenaramna quase-passividade e na espontaneidade da tempora­lização inconsciente. O barulho que ouvi há um ins­tante é re-tido no barulho que ouço agora, apesar deter passado ainda está de certo modo presente no camposonoro, é o mesmo barulho que perdura sem eu ternecessidade de fazer conscientemente sua síntese e dedizer continuamente: é o barulho de uma motocicletaque antes estava no começo da rua e agora está pas­sando precisamente embaixo da minha janela. É certoque eu posso, a cada momento, proceder a este tipode reflexão, mas o que importa salientar é que a cone­xão por ela instituída não é primária, mas precisamenteé tornada possível por uma conexão constituída ante­riormente na sedimentação dos atos perceptivos, oumelhor, nem sequer se deveria falar em conexão, já quese trata aqui de um único barulho que ouço, de umaunicidade que já era para mim sabida na atividade arti­culatória do inconsciente, mesmo antes de eu fixar osseus diversos momentos e de atribui-los à deslocaçãode uma motocicleta quo permanece id€ntica. Natural­mente este exemplo respeitante ao objeto sonoro valetambém para o objeto tátil, visual, etc., e de maneiraainda mais pertinente", para o objeto em geral. Epodemos formular a partir de agora uma primeira obser­vação, que nos parece implícita na reflexão de Medeau­-Ponty: o caráter inconsciente da atividade perceptivase encontra estreitamente ligado a sua estrutura tempo­ral. Mas prometemos elucidar melhor esta considera­ção. :E necessário primeiramente sublinhar, como decerto modo já se fez, que esta relação entre incons­ciente e temporalidade não deriva aqni de suposta exis-

23. Mais pertinente: porque a delimitação de um objeto comomeramente sonoro é uma abstração, e principalmente porque a ainteaeoperada pela retenção é tanto mais significativa quanto melhor permitauma unificação interscnsorlaI.

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tência positiva de um inconsciente COmo receptáculo deexperiências passadas. Pelo contrário, a relação é estru­tural, isto é, inerente à própria estrutura da atividadeintencional. O objeto da percepção me é dado nofim (um fim que não deve ser considerado real, jáque até a percepção do objeto mais simples é em prin­cípio indeterminável, mas como ponto ótimo de umprocesso perceptivo) de um desenvolvimento e de umaconcatenação temporal dos atos singulares perceptivos,uma concatenação que, como acabamos de ver, se de­senvolve num nível inconsciente 24. Toda percepçãoexige por essência outra percepção, e isso não por causade uma lacuna de fato, que um olhar não situado viriapreencher, mas pela própria estrutura perspéctica, eportanto aberta, do campo perceptivo. O objeto emerge,pois, de uma estruturação inconsciente que se desenvolvena temporalidade, toda coisa percebida pressupõe umasedimentação de atos perceptiveis que permanecem emestado de latência, justamente pelo fato de eu ter naminha frente esta-coisa e não sua gênese perpectiva (comefeito meu olhar estf dirigido para a coisa como coisaa ser vista, tocada, manipulada, etc., e não para comoela pôde constituir-se para mim). O inconsciente não ésó o passado, mas também o próprio presente, na me­dida em que é nele que toda apreensão perceptiva seliga às outras, ou mais precisamente: o inconsciente é,em certo sentido, a própria temporalidade como fenô­meno originário da estruturação. O objeto assenta numasérie de múltiplas estratificações: desde as da experiên­cia perceptiva atual em que se ligam as diversas pers­pectivas que tomei do objeto (por exemplo, o conjuntode percepções que tenho a partir do momento em que,há pouco, comecei a perceber esta folha, a apreensãode sua brancura, de sua leveza, do ruido que produztoda vez que é movida), que são as mais próximas dasuperfície, até aqueles que se aprofundam cada vez maisnuma "história" perceptiva, até às percepções primofw

diais nas quais, pela primeira vez, se constitui para mim

24. 1: supérfluo sublinhar que, nesta ordem de considerações, otermo "inconsciente" não implica a idéia de passividade, nem a idéiade mecanismo, porque, neste caso, enfrentaríamos· as dificuldades típicasdo associacionismo. FaIa-se antes em quase-passividade, justamente paradüerenciá-Ia, seja de uma passividade de tipo mecânico-receptivo, seja deuma atividade tética, posicionai: uma quase-atividade, portanto, estrutu­rante.

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um objeto, um "algo". Vimos que o preconceito daobjetividade consiste em assumir o objeto já feito dapercepção, sem espessura de sedimentações que o sus­tente, em construir a percepção com o percebido, istoé, com seu resultado. Portanto, reativação não significaapelo a faculdades inatualizadas ou de qualquer modopassadas, mas explicitação daquilo que desde sempreestá operante em SUa latência. Mas não é suficiente. Asargumentações desenvolvidas até aqui, de maneira vo­luntariamente limitada, a propósito do objeto, devemabordar o próprio problema do ser-aí do mundo como"objeto" primário, sobre cujo fundo se torna possíveltoda experiência singular do sujeito. O problema da re­ativação consiste aqui, em outros termos, no problemado sentido de ser do mundo.

Voltemos agora a considerar a questão da profun­didade, já posta em evidência a propósito da Phénomé·nologie de la perception. Como certamente se recor­dará, a investigação sobre a profundidade ocupa umlugar central nas páginas aqui dedicadas ao problemado espaço, seja por revelar mais uma vez e com eficáciaparticular os limites do método "objetivo", em suastentativas de explicação total, seja - e principalmente- por revelar o caráter "existencial" da constituiçãodo espaço. Isto é, o problema da profundidade, en·quanto dimensão de co-presença em que os objetos seimplicam entre si, é definido com base no poderpróprio do corpo, de estruturar o campo perceptivo 25.

Mas o que é fundamental notar aqui é que esta análiseexistencial tem desenvolvimentos ontológicos. Comefeito, a primeira característica da profundidade é ofe­recer-nos 08 objetos "escalonados", isto é, semi-escon­didos um do outro, e de ligar na simultaneidade pers­pectivas que não são possíveis ao mesmo tempo, arti­culando o visível (por exemplo, a fachada da casa quevejo agora da minha janela) sobre uma espessura deinvisível (p. ex.: os outros lados da casa, que entrevejo

25. "[...] Sob a profundidade como relação entre coisas ou entreplanos, que é a profundidade objetivada, abstraída pela experiência etransfonnada em largura, deve~se redescobrir uma profundidade primor­dial que dá sentido à primeira, que é a espessura do medium semcoisa (... ]. Quando dizemos que um objeto é gigantesco ou minúsculo,que ele está longe ou perto, freqüentemente afirmamo-lo sem recorrer auma comparação. ainda que implícita, com um outro objeto ou com agrandeza e a posição objetiva do nosso próprio corpo, mas s6 emrelação a um certo "alcance" dos nossos gestos, a urna certa "tomada"do corpo fenomênico sobre o seu mundo circundante" (Merleau-Ponty,F.P.• 1945, p. 308).

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atrás da fachada ou que estão fora da minha vista). Aprofundidade me revela que o invisivel não é meraausência, mas presença latente sob a crosta do visivel.Merleau-Ponty retoma aqui, para desenvolvê-Io emdireção própria, o problema husserliano das relaçõesentre Kern e Abschattungen, entre o núcleo de presençada coisa experimentada e suas aparições perspectivadas.O núcleo de presença, enquanto é atualmente preenchidopor uma multiplicidade de aparições perspectivadas (aspercepções destes e daqueles lados do objeto), pressu­põe também, ao mesmo tempo, a possibilidade deoutras aparições perspectivadas. O primeiro plano(Vordergrund) só é possível sobre um fundo (Hinter­grund) não explicitado e todo dar-se em perspectiva,todo perfil atualmente experimentado, é circundado porum halo de possibilidades, por uma zona de sombraque é como seu outro. Mas é preciso salientar imedia­tamente que, para Husserl, a possibilidade de ser preen­chida é inerente à essência desta carência e que a uni­lateridade (o constituir-se sempre através de Abschat­tungen, perspectivas parciais) da experiência perspéc­tica é superada pela síntese ativa operada na tempo­ralidade. Contudo, justamente pelo fato de o preen­chimento de todas as perspectivas possíveis ser umatarefa sem fim, trata-se de uma síntese presuntiva, istoé, assente Da antecipação de evidências exclusivamentepotenciais e portanto capazes de serem desmentidas.Daí a transcendência do mundo em relação à cons­ciência, a excedência do percebido em relação à per­cepção atual, o que não significa, sublinha Husserl, queesta transcendência não tenha de ser investigada nostermos de uma análise genético-transcendental.

Só a revelação do horizonte da- experiência esclarece a reap

lidade efetiva do mundo e sua transcendência. mostrando queo mundo real e a transcendência são inseparáveis da subjeti­vidade transcendental que constitui em geral o sentido e a reali­dade efetiva de um sentido (Husserl, M.C., 1960, p. 110).

Por outras palavras: o que permanece como outrodo perceptum dado na presença só se define enquantomodalidade desta presença; não é fixado ontologicamentenuma invisibilidade de princípio e, pelo contrário, ésuscetível de um esclarecimento transcendental. Oobjeto aparece na intersecção de um horizonte externo

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(relações do objeto com o mundo circundante) e deum horiwnte interno (a conjunção de todas as suasdeterminações possíveis). Ambos esses horizontes sãocaracterizados pela sua pertença a uma estrutura gno­siológica peculiar e, portanto, devem ser explicitadosatravés de uma descrição fenomenológica. Diferente­mente, em Le visible et l'invisible, esta temática sofreuma transformação radical: atribuindo ao ser de latên­cia um estatuto ontológico, Merleau-Ponty identifica o"invisível", o "oculto", com o próprio tecido em quese recorta toda experiência possível do mundo. O visívelé a concreção de uma profundidade invisível que, porprincípio, é inesgotável.

Quando Husserl fala do horizonte das coisas - de seuhorizonte externo, que todo o mundo conhece, e de seu "hori­zonte interno", as trevas densas de visibilidade das quais asuperfície das coisas é apenas o limite - a expressão deve sertomada em sentido rigoroso: tal como o céu ou a terra. ohorizonte não é uma coleção de coisas tênues, ou um títulode classe, ou uma possibilidade lógica de concepção. ou umsistema de "potencialidades da consciência". É um novo tipode ser, um ser de porosidade, de pregnância ou de genera~

lidade, é aquele diante do qual o horizonte se abre, é captu­rado e englobado (Merleau-Ponty, V.l., 1964, p. 195).

Não que o invisível seja a negação do visível, jãque a relação entre eles é uma relação de envolvimentorecíproco: só posso falar do invisível porque tive aexperiência do visível e, correlativamente, esse visívelse destaca contra um horizonte de latência. Mais umavez o fenômeno central é o da pertença do conscienteao mundo das coisas sensíveis: há reversibilidade, a mãoque toca pode ser tocada, o olho que vê pode ser visto,e esta reversibilidade não é um dado acidental. Pelocontrário, testemunha a presença de uma única Ilcarne"do mundo. Todavia, a rigor, não se pode sequer falarde um ser de indistinção. Ao lado do problema dageneralidade surge também o da individuação, que cha­mamos, anteriormente, estrutura diacrítica. A mão quetoca não pode ser mais, simultaneamente, mão tocada:assim que procuro tocar a mão esquerda com a mãodireita, no ato de tocar, a primeira é removida do objetode modo tal que, quando a toca, ela deixa de tocar: hãum desnivel entre os dois momentos. De maneira maisgeral: a estrutura do ser é formada de múltiplas indivi-

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dualidades, e o individual se configura como desnível ediferenciação de um único campo de ser. SegundoMerleau-Ponty, é precisamente este campo de ser quedeve ser investigado. O problema do sentido de ser domundo, que se formula no terreno de uma análise feno­menológico-transcendental, destinada a reencontrar asmodalidades constitutivas da experiência, é assim deslo­cado para o terreno ontológico, e passa a apresentar-secomo problema do Ser.

A obra que deveria constituir esta ontologia ficouinacabada. Como se disse, as partes publicadas, exceçãofeita à última (L'entrelacs-Le chiasme), têm uma cono­tação essencialmente "negativa", estão voltadas princi­palmente para a crítica de certas posições teóricas queinteressavam Merleau-Ponty muito de perto. Por issodeles só podemos deduzir algumas indicações de base.Por outro lado, esta estrutura "negativa" da obra nãoé motivada exclusivamente pela interrupção que a mortedo autor brutalmente lbe impôs. Merleau-Ponty insiste,inúmeras vezes, no fato de a própria ontologia deverdistanciar-se da ordem do enunciado, da expressão posi­tiva, para, em vez disso, se voltar para a estrutura di­mensional do Ser, para sua estrutura "diacrítica" relacio­nal e não-positiva em qne cada nível pressupõe sempre arelação com outros níveis. É por isso que, numa notade trabalho, encontramos a expressão "ontologia nega­tiva". Em outra ocasião, Merleau-Ponty fala tambémde "hiperdialética", isto é, de uma dialética que nãose fixa em formulações positivas, em teses ou enunciados,mas que restitui nossa abertura ao ser anterior à sepa­ração operada pelo pensamento reflexivo. Ele mesmoaproxima este ser "bruto", pré-reflexivo, da Lebenswelthusserliana. Mas vimos em que sentido deve ser assu­mida esta atitude. Trata-se, com efeito, apenas dedesenvolver a problemática constitutiva, e de explicitara modalidade subjetiva transcendental da constituiçãodo sentido de ser do muodo, visto que a própria subje­tividade não passa de um "campo de ser", uma dimensãoque nele se abriu. Já no prefácio de Signes, atribui-seà Filosofia a tarefa de "procurar o contato com o serbruto", e se sublinha seu caráter de interrogação. Opróprio esforço de renovação lingüística, verificável emLe visible et l'invisible, é significativo do tipo de inves­tigação que Merleau-Ponty tentava desenvolver: os

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termos "bruto", "selvagem", "vertical", com os quaismais freqüentemente designa o Ser denotam justamentea exigência de reportar-se a uma dimensão pré-reflexiva,de latência. Por outro lado, termos como "desvio", "re­levo", "nível", introduzem à estrutura relacional e dia­crítica do Ser, em confronto com a qual a Filosofia sópode se opor como interrogação aberta. Justamente por­que Se propõe como regresso à fé perceptiva, isto é, àinerência originária do sujeito ao mundo, na qual sefunda toda possibilidade de certeza, a reflexão deveexplicitar a modalidade desta abertura ao Ser: um Serque não está portanto diante do sujeito percipiente, masao redor dele. Reencontramos aqui o problema da cor­poreidade como ser de generalidade, como carne dosensível, que se articula numa multiplicidade de níveis.Não que haja aqui coincidência entre o sujeito perci­piente e o percebido: a própria carne de que sou feitonasce por diferenciação, como "desvio" de uma carne,de uma generalidade anônima: minha vizinhança do Seré ao mesmo tempo minha distância. O Ser não é puraplenitude, positividade ou identidade na qual eu meencontraria englobado, mas é antes de mais nada umcampo em que se entrelaçam dimensionalidades diversas,é uma "tumidez de possibilidades". Toda percepção,todo ato humano, é "uma certa subtração do Ser indi­viso", o "o Ser é o 'lugar' em que os 'modos de cons­ciência' se inscrevem como estruturações do Ser [... ] eem que as estruturações do Ser são modos de consciên­cia" (Merleau-Ponty, V.l., 1964, p. 307). É nesta dire­ção que, segundo Merleau-Ponty, se deve procurar a su­peração da antinomia entre a subjetividade e a objetivi­dade. Trata-se de trazer à luz aquelas experiências"brutas", ainda não elaboradas "que nos oferecem con­temporaneamente, mesclados, ora o 'sujeito' ora o 'obje­to' ora a existência, ora a essência [ ... ] (Merleau-Ponty,IbM., p. 172), isto é, de restituir o Ser em sua "verti­calidade", na profundidade de suas sedimentações tem­porais, na espessura de uma "história". Por oposiçãoa Heidegger, não há aqui cesura entre o nível ônticoe o nível ontológico, já que os entes que emergemcontra o pano de fundo do Ser devem precisamente serinvestigados como suas matrizes simbólicas ou emble­máticas. Precisamente pela profundidade que oculta, oente me dá acesso ao Ser, e Merleau-Ponty toma aqui

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emprestado da Psicanálise o termo de sobredeterminaçãopara indicar a estratificação de significados latentes emque assenta o visível, a excedência do significado emrelação ao significante, a pregnância do seutido em tododado experimentável 26. "O presente, o visível não valetanto para mim, não tem para mim um prestígio absolutosenão em razão daquele imenso conteúdo latente depassado, de futuro e de alhures, que ele esoonde" (Mer­leau-Ponty, Ibid., p. 193). Enquanto reflexão sobreeste ser de latência, caracterizado pela multiplicidade desuas dimensões de sentido - uma multiplicidade quenasce na espessura de uma temporalidade, de uma his­tória e na disponibilidade do Ser para uma pluralidadede perspectivas -, a Filosofia está destinada a introdu­zir-me a outra coisa que não aquilo que ela explicita, apermanecer como reflexão aberta. Desta reflexão, destaontologia, Le visible et l'invisible, no seu inacabamento,nos dá só algumas indicações problemáticas. É impos­sível sondar, ainda que apenas em linhas gerais, o quepoderia ter sido o desenvolvimento de toda a obra. Eé esta mesma problematicidade que nos é sugerida pormna das passagens mais significativamente programá­ticas do texto:

Explicitaremos a coesão do tempo, a do espaço, a do espa­ço e do tempo, a "simultaneidade" de suas partes (simultanei­dade lateral no espaço e simultaneidade em sentido figurado notempo), o entrelaçamento do espaço e do tempo e a coesãodo direito e do avesso de meu corpo, a qual faz com que,visível e tangível como uma coisa, seja o corpo precisamentea possuir esta visão de si mesmo, este contato consigo mesmo,em que ele se desdobra, se unifica de maneira que corpoobjetivo e corpo fenomênico giram um em tomo do outro ouavançam um contra o outro (Merleau·Ponty, IbM., p. 157).

26. Esta problemática aparece claramente nos resumos dos doiscursos dados em 19S5 no College de France. No prImeiro, o problema daInstituição está ligado ao da temporalidade e da sedimentação: "Enten·demos aqui por instituição aqueles acontecimentos de uma experiênciaque lhe atribuem dimensões duradouras, em relação aos quais toda umasérie de outras experiências adquirem sentido, formam um séquito pen­sável ou uma história [ ... J" (Annuaire dl4 College de FrQ1lce, 1955, p.158). Correlativamente, surge o problema da estrutura diacrítica dassignificações e o da sobredeterminação: "'ter consciência' não é darum sentido, que se possui no próprio intimo, a uma inefável matériade conhecimento, mas realizar um certo desvio, uma certa variante nosempre nesta múltiplos estratos de significação, que eles têm todos a suaconsiste em ter demonstrado que sob a aparência há uma realidadeinteiramente diferente, mas que a análise de uma conduta encontrasempre nesta mú:tiplos estratos de significação, que eles têm todos a suaverdade, que a pluralidade das interpretações possiveis é a expressãodiscursiva de uma vida mista, em que toda escolha tem sempre maisde um sentido [...]" (Merleau-Ponty, IbM., pp. 161-163).

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As indicações anteriores podem portanto esclarecer,até certo ponto, o nexo existente entre uma temática exis­tencial e uma temática ontológica. Vimos como nafenomenologia hussediana o problema da intencionali­dade era colocado nos termos de uma descrição trans­cendental, que pretende deliberadamente desenvolver-seno plano das modalidades do dar-se do objeto e quepretende, portauto, remeter para o terreno transcenden­tal das modalidades de constituição o problema do sen­tido de ser do mundo. Assumindo, pelo contrário, aintencionalidade como e-xistência, como o poder, pró­prio da consciência, de abrir-se a algo e, portanto, detranscender-se para o outro, a filosofia existencial põeem primeiro plano a exigência de tematizar este pólode alteridade para o qual se inclina o movimento inten­cional da consciência, este "algo" para o qual ela se abre.Do problema, originariamente configurado em termosgnosiológicos, de "como" se constitui o objeto, passa-separa o problema ontológico do ser-aí do objeto em umaesfera de faticidade, ou melhor, como já se disse: doproblema do sentido de ser do mundo, passível de inves­tigação no terreno de uma crítica da experiência, passa­-se para o problema do ser em geral. Estas conside­rações são, voluntariamente, esquemáticas; poder~se-ia

facihnente nos objetar que, na realidade, por exemplo,na Phénoménologie de la perception, deve-se, pelo con­trário, ver a tentativa de descrever a "formação", porparte do sujeito, do próprio mundo circundante e agênese de sentido que atua na percepção. E não hesi­tamos em reconhecê-lo, já que foi justamente nestadireção que se desenvolveu nossa tentativa de leiturae que procuramos individualizar a temática, para nós,mais fecunda de Merleau-Ponty. Mas nesse caso é aprópria perspectiva "ontológica" que fica desta formaposta em jogo, pelo menos na medida em que insistena faticidade do ser-aí do mundo (uma faticidade que,comovimos, não poderia ser investigada em termos de"constituição"), mais que na exigência de revelar amodalidade de experiência deste ser-aí. Por outras pa­lavras: como é possível falar do ser, senão explicitandoas estruturas da experiência em que este ser me é dado,que constitui a única instãncia à qual posso reportar-me?Encontramo-nos então em face de outro problema.Descrevendo a intencionalidade como um estar-em-

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-situação "ambíguo" em que o objetivo e o subjetivo sãoem última análise, indiscerníveis (precisamente porquea consciência é sempre abertura para . .. ) e, correlativa­mente, como movimento de totalização e de integraçãodos vários estratos, em que medida são mantidos osníveis de especificidade das estruturas? Em que medida,por exemplo, são descritas em sua tipicidade as estru­turas da espacialidade ou da linguagem? :e. certamenteindispensável considerar a experiência como totalidade,como trama de relação, e é sobre este terreno, aliás,que se deve colocar uma investigação que se pretendaestrutural. Mas do mesmo modo a generalização doconceito de intencionalidade nos põe diante do riscooposto: o de perder de vista a especificidade internadas estruturas. Vimos, para não sair dos dois exemploscitados, como, na Phénoménologie de la perception, aestrutura da espacialidade e a da linguagem podem serremetidas para as modalidades intencionais gerais doser-no-mundo, isto é, como nomeadamente a linguagemnão passa da particularização de uma função expres­siva geral. Isto quer dizer que permanece aberto oproblema da estruturação pertinente do fato lingüístico.E é, da mesma maneira, significativo, para reportar-nosa um último exemplo, que, no seu prefácio à obra deHesnard sobre a Psicanálise, Merleau-Ponty reconheçater dissolvido, na Phénoménologie de la perception, oproblema do inconsciente no da intencionalidade emação. Mas talvez possam se tornar úteis aqui - aindaem relação à problemática ontológica levantada por Levisible et l'invisible - as indicações que demos emrelação ao problema da redução, visto que, sublinhandoa conexão entre a redução eidética e a redução trans­cendental, pretendíamos justamente verificar a possibi­lidade de considerar uma estrutura (ou um eidos) emsua pura formalidade, isto é, na especificidade dos seusnexos essenciais constitutivos, possibilidade que nos pa­receu assentar na faculdade de suspender 27 toda pos­tulação de ser (avaliadora, prática, etc.) a respeito doobjeto investigado, para referir-se às modalidades de suaconstituição em uma experiência transcendental, umaexperiência no interior da qual surgiria também o pro-

27. Operação esta que se coloca deliberadamente como uma abstra·ção: assim como o lingüista, por exemplo, mesmo sabendo que a lin­guagem tem uma fUnção sociai, afetiva, etc" pode abstrair de tudo issoe considerá-la na peculiaridade de seus nexos estruturais.

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blema ontológico. Naturalmente, limitamo-nos aqui aindicar um horizonte problemático que emerge da obrade Merleau-Ponty, a esboçar o sentido possível de umapesquisa que pretenda colocar-se neste horizonte e que,em particular, pretenda enfrentar um dos problemascentrais que vimos em evidência no seu último escrito:o problema da relação entre percepção e linguagem.

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3 . O REGRESSO A EXPERffiNCIAFENOMENICA NA PSICOLOGIA

DA GESTALT

Kõh1er concorda com o comportamentismo, comoaliás com a orientação geral da psicologia contemporâ­nea, ao recusar o método introspectivo tradicional. Massurge simultaneamente o problema: o fim do métodointrospectivo é também o fim de qualquer referênciapossível, por parte da Psicologia, à experiência con­creta? A resposta negativa a esta pergunta caracteriza,segundo KõWer, a posição da Gestalllhearie em relaçãoao comportamentismo:

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Para a Psicologia, exatamente como para todas as outrasciências, parece haver um único ponto de partida: o mundo,assim como o encontramOs ingenuamente ao nosso redor [... l.I á que o mundo da experiência direta é aquele que conheciprimeiro, e tudo o que agora sei a respeito do mundo físicofoi inferido mais tarde de certos eventos do mundo vivido naexperiência direta [el.per;enced]. como se pode esperar que euprescinda do mundo de que tenho experiência? (Kõhler, P.G.,1961, pp. li, 26).

Por outras palavras: reconhecido o caráter originá­rio da experiência perceptiva, a tarefa da psicologia daGestalt deve ser precisamente restituir esta mesma expe­riência em seu fazer-se, sem reduzi-la antecipadamenteaos propósitos de uma teoria pré-constituída (por exem­plo, um modelo mecanicista do sistema nervoso). Oponto de partida é portanto o próprio fenômeno, talcomo Se dá em suas modalidades perceptivas concretas:a percepção não deve ser "construída" com base nosdados obtidos por via analítica, visto que suas formaçõessão aquilo de que dispomos preliminarmente e que nãopodemos descartar, exatamente porque é delas que épreciso dar conta. Veremos agora como, sob esta pers­pectiva, é essencial o problema da constituição doobjeto.

Partamos irticialmente da segrtinte observação: umateoria de tipo associacionista não pode dar conta daconstituição do objeto. Se se perguntasse a um associa­cionista por que motivo um certo agregado de sensaçõesme dá exatamente aquele objeto circunscrito, dotadode uma forma peculiar e isolada do contexto em queaparece, ele responderia que isso é possível graças auma sólida trama de associações, que, no acumular deexperiências sucessivas, funcionaria como armação uni­tária do próprio objeto. Numa perspectiva associacio­rtista, o ponto de partida é constituído por um mosaicode dados sensoriais "atômicos" para os quais se tratade encontrar um princípio de coligação (visto que, afinalde contas, mesmo o associacionista não ignora que omundo perceptivo é organizado e sabe que todos têmexperiência apenas de "coisas" articuladas), mas, exata­mente por isso, tal princípio não poderá deixar de serexterior em relação a eles. Por isso é apenas secun­dariamente, e por dedução, que o associaciortista podefalar de objetos. Fica claro assim o motivo pelo quala dúvida cética encontra seu terreno mais propício numa

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gnosiologia de tipo associacionista. Com efeito, uma vezdesmembrada a percepção numa miríade de sensaçõesprecisas, de sense-data, quem nos poderá garantir a vali­dade de nossa apreensão do objeto? Minai de contas,"os dados" não se organizariam diferentemente se o"hábito" tivesse dado lugar a relações e constâncias dife­rentes? Ora, a psicología da Gestalt inverte esta pers­pectiva: a idéia do dado sensorial "elementar" é umaabstração freqüentemente enganadora, o que conta é aestrutura do campo. A organização do conjunto per­ceptivo (e, portanto, de sua articulação em "coisas")é um fato primário, e não é dedutível de uma multipli­cidade de partículas elementares. Uma consideraçãoestrutural deste tipo é, assim, levada a insistir menos nocaráter elementar e na "localização" das sensações doque naquela interdependência funcional presente noconjunto a que Kõhler chama togethemess dos estímulos.O problema central é portanto o do sentido (Sinn) ine­rente à experiência perceptiva, da articulação origínáriadesta última em configurações globais dotadas de sen­tido, e não em simples agregados sensoriais. Na teoriatradicional, o campo é definido como a soma dos ele­mentos locais independentes e assim, sendo "efetiva" aseparação entre estes elementos, deve-se recorrer, paraexplicar a organização, a coligações "efetivas". Obtém­-se assim uma máquina de perceber, onde as diversasvias de condução em que Se desenvolvem os váriosprocessos locais (ativados por outros tantos estímuloslocais) devem comunicar entre si mediante sutis coli­gações. Por mais complicado que seja, o modelo ésempre o de uma máquina, isto é, de um agregado onde,graças a coligações rígidas, uma parte age sobre a outrade fora, onde "o estatuto do dispositivo pode ser uui­vocamente estabelecido conhecendo-se uma só variável"(Kõhler, P.T.G,G., 1960, p. 190). Mas, exatamentedevido à exterioridade de suas partes constitutivas e àconseqüente rigidez das coligações, a máquina, sublinh'aKohler, certamente não é o melhor modelo para carac­terizar o processo de estruturação, a auto-regulaçãodinâmica que rege a percepção. Consideremos, porexemplo, a visão. Evidentemente nenhuma teoria ba­seada na distribuição local dos estímulos sobre a retinapoderá jamais dar conta do fato de eu "ver" os objetosque se articulam em meu campo, visto que os estímulos

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contam menos por sua localização anatómica (porexemplo, por sua distribuição "geométrica" sobre a re­tina) do que por suas conexões recíprocas na totalidadedo processo. Numa teoria inspirada no princípio quan­titativo, a relação entre visão e explicação é, por assimdizer, invertida, enquanto postula: a) que a percepçãoé um mosaico de percepções exteriores umas às outras;b) que havendo experiência de "coisas" dotadas de umaforma peculiar, essa forma não pode deixar de ser uma"projeção na retina" (uma espécie de cópia encolhida)da coisa exterior: esta última agiria sobre o órgão per­ceptivo ponto por ponto, e a disposição geométrica dosestímulos sobre a retina "reproduziria", assim, a figurageométrica da coisa; c) ou que, caso se renuncie a esteúltimo tipo de explicação, a constituição do objeto, aarticulação da visão num conjunto organizado de"coisas", só pode depender do hábito, da repetição deexperiências práticas, perceptivas, etc., que viriam adeterminar, graças ao peso adquirido, a individualiza­ção atual do objeto. No primeiro caso haveria circnitospreestabelecidos de tipo anatómico, no segrmdo esses cir­cuitos seriam oriundos da acumulação da experiência.Pelo contrário, o que é peculiar ao ponto de vista dapsicologia da Geslall é a consideração imanente docampo perceptivo, a determinação de uma estrutura queatua na própria percepção 1 e nela encontra sua moti­vação. O próprio campo sensorial não é, assim, ummosaico de estímulos, mas é originariamente organizado,é estruturado desde o início. E claro que nesta abor­dagem - que chamamos imanente para sublinhar queela se encontra voltada para as formações perceptivastais como se dão na experiência concreta, e se recusaa remetê-las para um aparato explicativo pré-constitnido(por exemplo, a decomposição analítica em "dados")- está fora de questão tanto a hipótese de uma esti­mulação ponto por ponto, destinada a reproduzir asrelações geométricas próprias do objeto, quanto a deuma intervenção das experiências anteriores (apesar dese reconhecer o influxo que elas podem exercer e seupeso efetivo), intervenção essa que deveria explicar aarticulação aluai do campo. Com efeito, admitindo que

1. Nos confrontos com a fenomenologia, Koffka é ainda maisexplícito: "For us phenornenology means as naive and full a descriptionof direct experience as possible" (Koffka, P. G. P .. 1962, p. 73).

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as experiências agissem diretamente sobre a percepçãoatual e que fosse, por exemplo, determinante a funçãoda "lembrança", como será possível a própria inter­venção da recordação se não houver uma configuraçãoatual dos estímulos, adequada precisamente para "re·clamar" uma representação anterior? Como poderá arecordação de uma caSa intervir se em meu campo atualde visão certas linhas não se organizarem já de modo talque eu possa falar de uma "semelhança" desta casa comoutra que eu já vi? E mais: mesmo admitindo que sejadeterminante a recordação de uma organização prece·dente, é preciso ainda dar conta desta organização pri­mária:

Nós reconhecemos que o fato de uma Gestalt ter se reali­zado uma vez pode influenciar a formação de uma Gestalt pos­terior, e que a primeira deixa atrás de si predisposições para averificação de processos análogos no futuro, como aliás qual­quer outro aspecto das percepções. Desta maneira, portanto, aspropriedades das Gestalten presentes na percepção não devemser remetidas a efeitos de experiências passadas, como se istoresolvesse o problema das próprias Gestalten: pelo contrário,toda influência da experiência pas<;;1(} 1 sobre a formação dasGestalten deve ser remetida a percepções anteriores de Gestal­ten e, portanto, as pressupõe (Kõhler, P.T.G.G., 1966, p. 166)

E evidente que se delineia aqui uma orientaçãogenética da investigação, onde genética siguifica: deter­minação de uma estrutura em seu próprio caráter ori·ginal, em suas modalidades constitutivas. Isso não pres·supõe o recurso a fatores explicativos externos. Esseaspecto é bem sublinhado por Wertheimer, quandoescreve:

-o problema de uma estruturação sensata, de uma organi­zação, de uma combinação recíproca das partes, de sua comple­mentação, etc., não está necessariamente ligado à consideraçãode múltiplos casos: pode ser visto e compreendido num casosingular, concreto, examinando de modo cuidadoso a sua estru~

tura particular (Wertheimer, P.P.• 1965, p. 52).

Fica, então, claro o que pretendem os gestaltistasquando falam de um sentido autóctone (cf. Kiihler,P.T.G.G., 1966, p. 161) da organização sensorial: trata·-se de assumir em sua evidência primeira a estruturaçãopeculiar do campo; a crítica do conceito de "localização"conduz a uma restauração da evidência perceptiva.

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Tem-se denunciado, algumas vezes, na idéia deuma organização espontânea dos estímulos sustentadapela psicologia da Gestalt, um certo "misticismo". Eentretanto, claro que deste modo se deixaria escapar umaspecto esseucial da Gestalttheorie, a qual, exatamentepelo fato de Se abster de recorrer a fatores que nãosejam "autóctones", isto é, inerentes à configuração docampo tal como se dá numa percepção imanente, eranecessariamente levada a excluir mesmo a hipótese deuma certa "função superior", encarregada de dar contada organização sensorial. Evidentemente, na medidaem que se renuncia a fazer-se da percepção um mosaicode dados sensoriais, não se coloca mais o problemade encontrar um princípio exterior de coligação dessesdados. A própria idéia de uma consideração do fenô­meno em sua imanência, nas modalidades de seu dar­-se a um sujeito percipiente, implica aqui o questiona­mento de todo princípio explicativo que transcenda essaesfera de presença: "Qualquer que seja o processo quese julga presidir à organização do campo da vísão, estanão pode ser lá introduzida sem preexistir na regiãona qual se diz que tem origem" (Kõhler, P.G., 1961,p. 120). E é preciso sublinhar que, por outro lado, aorganização do campo sensorial é possível somente emreferência a um sujeito orientado, para o qual o campoespaço-temporal se articula num "adiante" e num"atrás", num "antes" e num "depois", etc. E vale tam­bém a pena recordar que, na psicologia da Gestalt(quanto à presença desse problema na fenomenologia,remetemos para o capítulo seguinte), o conceito deestrutura Se encontra intimamente ligado ao de per­cepção átima: a articulação do campo, ao invés de serdeterminada por vias de condução preestabelecidas epor coligações mecânicas, é polarizada pela realizaçãode um optimum perceptivo (cf. Kõhler, P.T.G.G., 1966,p. 192).

Mas voltemos ao problema da constituição do obje­to, que o próprio KõWer indica como essencial quandoescreve que:

uma das tarefas principais da teoria da Gestalt consiste exata4

mente em indicar aquelas que se verifica serem as autênticaspartes dos inteiros diferentemente de qualquer tipo de partesimaginárias. Todas as coisas visíveis são partes autênticas doscampos em que aparecem e a maior parte das coisas tem por

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sua vez partes subordinadas. Os próprios princípios da organi­zação se referem ao isolamento de tais partes, não menos quea seu caráter unitário (Kõhler, P.G .• 1961, p. 131).

o problema se apresenta, portanto, nos seguintestermos: se "tudo depende de tudo", se a característicaprimeira da Gestalt é sua irredutibilidade à "localiza­ção", em que sentido se pode falar das coisas como deunidades circunscritas, emergentes do ambiente circun­dante e dotadas, portanto, de uma "localidade" peculiar?É na intersecção de seu horizonte externo com seu hori­zonte interno que a coisa vem a se constituir: por umlado, encontra-se em relação com conjuntos mais com­preensivos (introduz-se num campo), por outro ladocompreende uma multiplicidade de subconjuntos (éanalisável em suas partes internamente constitutivas).Nos termos da psicologia da Gestalt, esse problemaremete para o das relações entre figura e fundo: há umadiferença estrutural intrínseca entre a figura e o fundo,visto que somente a respeito da figura podemos falarde compacidade, solidez, colocação no espaço, forma,etc., atributos que, pelo contrário, estão ausentes, dofundo (Kõhler, P.D.P., 1966, p. 19). Por outro lado,uma vez afastada a hipótese de uma rede de vias decondução preestabelecidas ou de uma intervenção deter­minante das experiências passadas, surge o problema desaber como certas partes do campo tendem, espontanea­mente, a contrair-se num todo circunscrito (numa"coisa"), principalmente observando-se que as análisesde Rubin sobre as figuras "ambíguas" testemunham (seisso fosse preciso) uma reversibilidade entre figura efundo. E é neste ponto, segundo Kõh1er, que é precisosair da esfera fenomênica e, conseqüentemente, da esferada investigação psicológica, investigação essa que nãopretende mais do que determinar as relações de depen­dência funcional:

As leis que exprimem estas relações implicam que certasfunções ocorrem num reino que não é, certamente, o reino fe­noménico. Como psicólogos não podemos dizer. a propósitodesse reino de dependência funcional, mais do que está contidonestas leis: as próprias leis nos desiludem enquanto aparecemcomo abstratas e formais. As pesquisas psicológicas, por si mes­mas, não nos dão nenhuma visão completa de um reino bemdefinido, no qual estas leis possam ser verdadeiramente com­preendidas, postas em relações recíprocas e derivadas de prin­cípios gerais (Kõhler, Ibid., 1966. p. 37).

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~ sabido que Kõhler procura a solução desse problemana teoria do isomorfismo.

~ preciso eliminar aqui um mal-entendido bastantepropagado. Com efeito, acredita-se freqüentemente queKõWer, propondo uma homologia entre a esfera darepresentação fenomênica e a esfera dos processos fisio­lógicos (e, mais do que isso, apontando na segunda a"explicação" da primeira, já que insiste na necessidadede ir além da investigação meramente psicológica), pre­tende restaurar uma espécie de teoria do reflexo, fun­dada na hipótese de uma ação direta das Gestaltenexternas sobre o organismo onde se "projetariam" e sereproduziriam. ~ necessário, entretanto, sublinhar, comKõWer, que não se supõe aqui uma determinação exte­rior das Gestalten perceptivas, mas, como se viu, umahomologia de formas entre a organização do mundoperceptivo (como, concretamente, o experimentamos)e os processos nervosos que o subentendem, homologiaessa que se origina na comum pertinência ao universofísico (no sentido da Física). Quanto a este últimoaspecto, é siguificativo que, quando critica o mecani­cismo, KõWer tenha em vista o mecanicismo que seinspira naquele modelo da "máquina" que, comovimos, é para ele o menos indicado para caracterizar ouniverso físico: na máquina não temos, além de umcomportamento "mecânico" (que é exatamente o dese­jado por seu construtor quando prepara uma série deligações rígidas num sistema fechado), aquele livre jogode forças, aquela capacidade de "responder" a situaçõesnovas, aquela auto-regulação dinâmica que, para KõWer,caracteriza, ao contrário, Os processos físicos. Destaforma, ele se vê obrigado a reivindicar um fisicalismoautêntico (na acepção que ele mesmo nos fornece: pro­cessos "compreensíveis nos termos das ciências natu­rais") reservado à psicologia da Gestalt, refutando omecanicismo tradicional (Kõhler, P.T.G.G., 1966, p.152).

Mas, mesmo depois desta observação, ainda nãose encontrou uma resposta às interrogações formuladas.Havíamos dito que, relativamente à temática da consti­tuição do objeto, o problema central para a psicologiada Gestalt é, segundo a nossa opinião, o problema dosentido (Sinn), o problema da consideração imanenteda articulação perceptiva. Entretanto, será ainda nessa

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direção que Kõhler caminha quando, sob a escolta deum paralelismo psicofísico, procura na distribuição dacorrente num campo elétrico a "explicação" das estru­turas perceptivas? Será mesmo verdade que as difi­culdades encontradas nesse caminho derivam tão­-somente do "caráter rudimentar" de nosso conhecimentodos processos cerebrais? Parece muito sintomático queKõhler estabeleça a exigência de "sair" da Psicologia,exatamente quando se encontra perante o problema daconstituição da coisa. Por outro lado, devemos nos per­guntar Se é exatamente no sentido de um fisicalismoradical (inteiramente depurado de toda instância "meca­uicista") que se pode eucontrar uma solução para oproblema. Não é por acaso que os exemplos adotadospor Kõhler se reportam sempre a articulações extrema­mente simples do campo perceptivo (por exemplo, for­mações de grupos por contigüidade ou semelhança) e,quando chama a atenção para a constituição de umobjeto ~'tridimensional", o faz recorrendo à imagem deuma figura plana que, "tornando-se cada vez maisespessa", geraria uma coisa no sentido perceptivo dotermo: teríamos o mesmo processo (embora mais com­plexo) que Se verifica na constituição de conjuntos muitosimples, por exemplo no reagrupamento espontâneo daslinhas mais próximas em uma série de paralelas. Assim,quando fala da constituição do objeto, Kõhler escreve:

Na realidade, a articulação de nosso campo visual correspondenormalmente aos objetos de nosso ambiente físico e isso porque,em tais objetos, se realizam as condições que fazem complexosópticos adequados produzir os correspondentes objetos visuais(Kõhler, lbid., 1966, p. 166);

observação que, apesar da sua aparente evidência, éextremamente problemática, na medida em que pres­supõe a hipótese realista de uma presença no objetode suas próprias possibilidades e condições de percepção.

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4. A IDÉIA DE "NORMALIDADE":A FENOMENOLOGIA COMOANALISE DE ESTRUTURAS

O problema da "normalidade" deve ser colocadonum quadro mais amplo, isto é, deve ser consideradocomo um aspecto da questão, mais geral, do recursoa uma outra experiência que não a experiência "nor­mal": àquela experiência, por exemplo, que é investi­gada pela Psicologia Infantil ou pela Etnologia. E. claro

. que se encontra aqui em jogo a própria idéia de nor­malidade, que passa a constituir um problema. Poroutras palavras: que sentido tem, para uma investigaçãofenomenológica de tipo genético, a utilização dos dadosfornecidos pela Psicopatologia ou pela Etnologia? Em

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que termos, no âmbito desta investigação, é aiuda pos­sível falar de "normalidade"? Ou ainda: a própria pro­blematização do conceito de normalidade não corretalvez o risco de desembocar numa espécie de relati­vismo cético, no qual todas as experiências se equivale­riam umas às outras?

Comecemos, imediatamente, por esclarecer algunsequívocos. Antes de mais nada cumpre salientar que,precisamente na medida em que o conceito de norma­lidade se torna problemático, a pretensa "diversidade"da experiência outra é também posta em questão.Tomemos, por exemplo, o caso da Etnologia. Se serenuncia a assumir como parâmetro central da investi­gação a "normalidade" representada pelo homem adulto,branco e civilizado, então também a alteridade do cha­mado pensamento primitivo deixa de constituir um pos­tulado da investigação. Por outras palavras, trata-se deum aspecto do problema do reconhecimento do outro.Como é possível uma abordagem de uma outra subje­tividade ou de uma outra cultura, sem reduzi-Ias preli­minarmente às nossas coordenadas? Mas aqui o pro­blema se complica, porque aparece também o avesso daíndagação que acabamos de formular. Com efeito, souespontaneamente levado a me perguntar: o fato de pre­servar em sua peculiaridade a experiência para a qualme volto, não a transforma em algo insignificante paramim, já que corro o risco de privá-Ia daquilo que atorna comum à minha experiência? A orientação dasinvestigações (psicopatológicas, antropológicas) a quese fez referência esboça-se na resposta a estas duas per­guntas simétricas, e por outro lado é esta orientação quedá conta do interesse manifestado em seu confronto coma fenomenologia genética. Com efeito, assistimos a umduplo movimento: de um lado trata-se de reconhecer aexperiência do outro (seja ele a criança, o indígena, ouo doente) em sua especificidade, isto é, de não deduzi·-la como manifestação simplesmente embrionária, degra­dada ou falhada da nossa; de outro, trata-se de expli­citar o quanto há de comum entre elas, já que é sódesta perspectiva que a interrogação tem sentido paramim, enquanto sujeito situado num universo culturalconstituído. É imediatamente claro que o primeiromov:imento deve necessariamente. configurar-se comocrítica de um aspecto da ideologia, na medida em que

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põe em questão a própria idéia de normalidade comoalgo pré-constituído. É aqui que este primeiro movi­mento revela seu caráter complementar e sua insepara­bilidade do segundo. Com efeito, a consideração deuma experiência diferente da nossa é significante paranóS apenas na medida em que nos implica, em quecoloca em causa nossa própria experiência: há entãoreciprocidade entre o observador e o observado. Emparticular, esta consideração nos leva a questionar aspróprias possibilidades de constituição de uma norma­lidade, o que só é viável de um ponto de vista genético,para o qual, portanto, esta normalidade irá delinear-secomo campo de investigação e não como parâmetro pré­-constituído. A ampliação, por assim dizer horizontal, daexperiência - o seu abrir-se ao outro - produz simul­taneamente um movimento em sentido vertical, em pro­fundidade, onde esta mesma experiência é obrigada alançar luz sobre suas modalidades constitutivas. Nãoestá em jogo somente o mundo do outro ~ para o qualeu me voltaria em virtude de uma certa curiosidade emrelação à "estranheza", ou do gosto pelo exotismo -,mas o seu e o meu conjuntamente, ou melhor, surge oproblema da gênese de um mundo em geral.

Começa assim a esclarecer-se a importância queassumem para a fenomenologia as considerações desen­volvidas no interior da Psicopatologia, por exemplo.Basta aqui lembrar como Merleau-Ponty recorre fre­qüentemente, principalmente na Phénoménologie de laperception, a experiências de tipo patológico e, emparticular, às descritas e analisadas por Gelb e Gold­stein. Na verdade, este recurso coloca-se sempre nointerior de uma investigação genética, seja, por exem­plo, sobre a espacialidade ou sobre a linguagem. Maseste discurso necessita de mais um esclarecimento: pro­curemos, portanto, desenvolvê-lo em suas implicaçõesfundamentais. Retomemos o exemplo da Psicologia..Infantil e da Etnologia e comecemos por perguntar;~mque sentidQ__ª_l~IJom~Jl.<?JºgÜl_~tá _"int~_r~~sada" nestescampos de pesquisa? É necessário· iIDooiataniente rejeJ!ar

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lizado, quer do ponto de vista temporal em sentidoestrito, quer do ponto_ª,"-vlsta inOrfOIOgICO: A resposta,pelo contrário, implica razões fundamentars, situadas naconfignração do campo de investigação próprio da aná­lise fenomenológica. Com efeito, a tarefa da reduçãofenomenológica é afastar a investigação da suposta cons­ciência imediata, que "possui" o objeto em SUa fati­cidade, para as modalidades genético-constitutivas doobjeto (ou de qualquer outro correlato intencional, porexemplo o mundo circundante). Esta peculiaridade nãoé tão óbvia, já que leva a individualizar como fundantea dimensão do irrefletido, da praxis constitutiva pré­-categorial e, portanto e por outras palavras, a tomarcomo centro temático o inconsciente, em lugar da cons­ciência imediata. Ou melhor: a própria idéia de cons­ciência imediata está aqui em questão, visto que acaracterística essencial desta consciência é estar apon­tada para seu objeto intencional, é não se ver para vero objeto. Se a consciência se voltasse constantementepara si mesma para revelar suas operações constitutivas(constitutivas do objeto intencional) , não haveriaobjeto, mas sempre e apenas autoconsciência vazia. Afenomenologia, que tem sido freqüentemente apresentadacom consciencialismo, implica, pelo contrário, tal comoa Psicanálise, uma inversão da concepção tradicional daconsciência. Constituinte é o inconsciente enquanto atri­buição originária de um sentido, e não a reconsideraçãoreflexiva desta praxis, reconsideração que só pode limi­tar-se a explicitar o sentido já constituido. E desta pers­pectiva que, em relação à constituição do mundo da ex­periência, e, portanto, de um ponto de vista genético, sepode falar de uma preeminência da intencionalidadefuncionante (isto é, por assim dizer, aquela intencionali­dade que é agida antes de ser reflexiva) em relação àintencionalidade temática (que põe reflexivamente o seuobjeto). Muitos equívocos (e, mais do que todos, o dopretenso "consciencialismo" husserliano) derivam do fatode essas duas intencionalidades terem sido freqüente­mente confundidas. O que pretende dizer Husserlquando em ldeen II escreve que "um homem não se'conhece', não 'sabe' o que ele é, mas aprende a conhe­cer-se"? A resposta se encontra no mesmo texto: o su­jeito age mas não é tema. Na atitude natural o tema não éo sujeito, enquanto pólo de uma auto-reflexão, mas o

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mundo enquauto campo prático-perceptivo, enquantoconjunto aberto de "coisas" a serem percebidas, mani~

puladas, trausformadas, desejadas, etc. Quando diz queo homem ~'aprende" a conhecer-se, Husserl pretendeafirmar exatamente isso: que para a inteucionalidadenão é essencial ser autopresença, mas permanecer latenteem seu próprio operar, e que esta intencionalidade sópode ser captada em virtude de uma inversão do olhar,que não aponta mais para as coisas, e sim para ela. Essainversão não se realiza na atitude natural, pois esta ati­tude é tal enquanto continua a "dedicar-se" às coisas domundo circundante cotidiano, mas se realiza na atitudereflexiva. Assistimos portanto aqui a uma espécie deparadoxo: a preeminência do irrefletido, da intencio­nalidade operante (enquanto praxis constitutiva) só éverificável na atitude reflexiva. Este é o significado daafirmação de Merleau-Ponty segundo a qual o irrefletidoe a reflexão se fundam mutuamente, e vale também apena lembrar que este paradoxo é comum à fenomeno­logia e à Psicanálise. Desenvolveremos agora uma úl­tima consideração que se liga manifestamente ao proble­ma que estamos discutindo: a investigação fenomenoló­gico-genética pretende remontar, além do constituído, àsfunções constitutivas originárias. Ora, naquilo que secostuma chamar um adulto "normal", estas funções seencontram em grau peculiar de integração, estão emseu próprio operar por assim dizer escondidas pelosestratos sedimentados de um mundo prático-perceptivoque se dá sempre como "constituído", voltam sempreà esfera do adquirido. Quando Gelb e Goldstein, emseus estudos sobre os feridos de guerra, examinam certosfenômenos de reestruturação da atividade orgânica, ouquando Grégoire, em sua obra sobre o aprendizado dalinguagem na criança, ilumina certas atividades funda­mentais que se acham na base de qualquer experiêncialingüística, ou enfim quando Lévi-Strauss, ao estudaro pensamento dos chamados primitivos, nos mostra umalógica que se exprime através das qualidades sensíveise que se encontra também nas formas "ocidentais" depensamento, em todos estes exemplos (escolhidos entreos muitos possíveis) podemos reconhecer a tentativa deindividuar certas funções que, justamente por sUa ori­ginariedade, são gerais, entram na constituição de todoe qualquer modo de experiência. Num certo sentido, é

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mais difícil identificar essas funções numa experiência"normal", na medida em que o normal é o adquirido,ou seja, a sedimentação dos resultados destas funções.É clMO que o conceito de normalidade se encontra aquiproblematizado, justamente devido ao caráter genéticoda investigação em apreço. Vamos ter assim à segundaquestão formulada inicialmente: será ainda possível,deste ponto de vista, evitar as dificuldades de um rela­tivismo cético, disposto a aceitar como igualmenteválida qualquer experiência e, sem se pronunciar, porexemplo, quanto à consistência de uma imagem aluci­natória, quando comparada com uma imagem percep­tiva? Dito de outra forma: depois do questionamentoradical provocado pela abordagem de uma experiênciadiferente, é possível conservar a idéia de normalidade?

Voltemos ao exemplo, que a seu tempo foi indi­cado, da ilusão, tendo presente que as consideraçõesque desenvolveremos possuem um valor puramente indi­cativo. Sua função é identificar - no interior do pro­blema geral, levantado inicialmente, da normalidade ­a possibilidade de reexaminar a idéia de normalidadenum setor particular: o da relação entre percepção eilusão. Tal restrição, porém, não deve esconder queeste setor não é escolhido por acaso, mas precisamentedevido à sua representatividade, visto ser nele que aobjeção cética (ou, por outras palavras, a contestaçãoda possibilidade de fundar uma idéia de normalidade- a eqUiparação de todas as experiências) se exercecom maior força. Estamos aliás procurando apenasindicações metodológicas, para eventualmente poderestendê-las a outros campos problemáticos. Deve-sesalientar o fato de o discurso se desenvolver aqui numplano voluntariamente abstrato, isto é, no interior daexperiência solipsistica. Como se disse, pretendemosverificar a possibilidade de fundar uma primeira idéiade normalidade, isto é, flcaremos no lâmbito de uma únicaexperiência perceptiva, evitando deliberadamente a refe­rência à intersubjetividade. Mas é claro que o apro­fundamento do problema tratado exige necessariamenteo desenvolvimento nesta direção. No interior de umaexperiência solipsística, o anormal, o patológico se con­figura sempre como uma ruptura somente parcial daestrutura "normal"; para que eu, enquanto sujeito quenão comunica com os outros, possa falar em anomalia,

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é necessário que no interior da minha experiência con­tinue subsistindo algo de normal, em relação a que euteuba a possibilidade de definir a própria anomalia. Énecessário, por exemplo, que se um dos meus órgãossensoriais está afetado, ou sob a influência de qualqueralucinógeno, pelo menos um outro órgão continue fun­cionando "normalmente". Caso contrário, não podereimais falar da anomalia daquele órgão sensorial. Se naexperiência solipsística, a anomalia fosse total (isto é,se afetasse todo o meu campo de experiência), ela seconfundiria com a própria normalidade, seria impossí­vel distingui-la enquanto faltasse um elemento de discri­minação. Esta última consideração nos explica por que,em sentido pleno. a "normalidade" - assim como seucorrelato, a anormalidade - só pode ser definida emrelação à intersubjetividade. A "norma", em seu signi­ficado autêntico, só pode ser atingida na unidade daexperiência intersubjetiva. É neste problema funda­mental, que não será enfrentado aqui, que desembocamas questões aqui em causa. E todavia, apesar destareserva sobre sua limitação, as breves consideraçõessobre a relação entre ilusão e percepção conservarão seuvalor exemplificativo, visando a um esclarecimentometodológico.

Imaginemos que meu olhar, que neste momentovagueia livremente pelo quarto onde me encontro, vej aum livro onde há, "na realidade", uma caixa dotada deuma certa forma e nma certa cor. Digamos antes demais nada: inegavelmente, neste momento, a caixa valepara mim como livro; mais: é um livro, e eu acreditorealmente ver um livro, caso contrário não se tratariade uma autêntica ilusão (caracterizada pela atitude decrença que ela implica), mas de uma simples impostura.Mas ao dizer que a ilusão não difere da verdadeirapercepção, no que diz respeito à atitude de crença, nãoesgotamos o problema. O fato de não ser possívelapontar esta diferença ao nível da crença nos obriga adirigir nossa investigação para as modalidades consti­tutivas interiores da ilusão e da percepção. Surge aqniuma primeira consideração: o anormal não é algo deabsolutamente diferente do normal, a ilusão tem semprealgo em comum com a percepção, visto que, afinal decontas, ela também é formada de perfis, de luzes, desombras, etc., do mesmo modo que uma percepção qual-

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quer. Sem dúvida, mas neSSe caso se trata de analisarcomo eu vejo este conjunto de dados da representação.A análise deve então referir-se, não já à esfera de crençana qual esta visão está envolvida, mas à própria estru­tura da visão. Trata-se, em resumo, de encontrar umcritério interno de discriminação, capaz de me permitirfalar de ilusão num casO e de percepção no outro.Quanto a este aspecto, o método fenomenológico revelaseu empirismo radical: não se trata aqui do ser - oudo não-ser - do objeto representado, pois em virtudeda redução fenomenológica este ser é inteiramente resol­vido no dar-se do objeto a uma consciência experiente.E são precisamente as modalidades deste dar-se que sãoválidas COmo tema de investigação. É por isso que sefala de investigação estrutural, isto é, voltada para aestrutnra interna da relação intencional com o objeto.Se me movimento ueste terreno, descubro então que ailusão e a apercepção não são equivalentes. A estrutura:lo livro que "acreditei" ter visto não é articulada, nemtampouco é articulável: para que esta forma saia de seuestado de esboço, eu precisaria diferenciá-la em suaspartes constitutivas, vê-la ora de um lado, ora de outro,e ligar todas estas perspectivas numa síntese concor­dante e unitária, ao fim da qual a forma livro se meapresentaria como algo adequadamente preenchido: pre­enchido, precisamente, por uma atividade articulatóriaconduzida numa atitude explorativa. O que certamentenão é possível no caso da ilusão. O que interessa,escreve Merleau-Ponty numa passagem já referida, "éa articulação do conjunto do campo, a riqueza e a finuradas estruturas que ele comporta". O problema portantonão é mais o de uma adequação ou não à suposta "coisaem si", nem de um espelhamento do ser da coisa, maso da formação do semido da coisa, um sentido queemerge da atividade de estruturação do sujeito prático­-perceptivo. Só assim podemos compreender as páginasonde Husserl fala de uma "não-realidade" da descriçãofenomenológica. O que deve ser assumido como temanão é a pretensa "realidade" da coisa perceptiva, maso sentido que provém das operações constitutivas, e istoporque o critério de verdade da percepção deve serprocurado na própria percepção (em SUa estrutura), enão numa idéia de realidade que só existe na medidaem que me é oferecida pela percepção. Por outras

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palavras: a resposta à skepsis empirista só pode surgirno próprio terreno escolhido por esta skepsis (o terrenoperceptivo) e não recorrendo a critérios "externos"(como por exemplo o da "realidade" ou o do "ser",etc.), precisamente os que ela pôs em questão. Por­tanto, a problemática inerente à descrição fenomenoló­gica se caracteriza aqui como uma problemática funcio­nal, isto é, voltada para a explicitação das modalidadesoperativas, constitutivas das várias objetividades. Nãose trata de suprimir o objeto, simplesmente este passaa assumir o papel de mero correlato intencional (noema)de uma série de atas significantes (noesis). Paralela­mente, a idéia de "realidade" não é mais algo de adqui­rido, torna-se problema (e, em última instância, é oproblema): deve ser investigada em suas próprias pos­sibilidades constitutivas. Mas surge aqui um novo pro­blema. Se permanecemos no âmbito da percepção, ainvestigação das noesis será suficiente por si só paraexplicitar a estrutura das objetividades perceptivas?Evidentemente que não. As noesis, que qualificamoscomo atas significantes, se definem enquanto "funçõesintencionais", encarregadas de dar forma a um estadomaterial (o que Husserl chama hylé sensorial). Vere­mos em seguida como este problema da materialidadetem grande importância para o discurso que estamosdesenvolvendo. Por agora basta salientar como umainvestigação de tipo estrutural é obrigada a não decrarnada fora de seu próprio campo de aplicabilidade ecomo, no caso que nos interessa em particular, o aspectoda "estrutura" não é atribuído apenas à atividade estru­turante por excelência (o conjunto das noesis), masao próprio conteúdo material sobre o qual se exerce estaatividade: não existe portanto nenhum elemento último,nenhum "átomo" que em si mesmo seja neutro, bruto,e portanto disponível para qualquer doação de forma:todo dado (mesmo o mais ínfimo dado sensorial) apa­rece num contexto relacional, participa de uma estru­tura. Mas voltemos à caracterização do elemento noé­tico. Num certo sentido, podemos até dizer que este seconfigura como o elemento unificante que permite aconstituição das objetividades enquanto unidades sinté­ticas. Surge aqui a perspectiva "teleológica" da des­crição fenomenológica, uma perspectiva que podemosarticular sobre estes dois pontos: o que é pertinente é

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a consideração daquelas funções que, na multiplicidadedas apreensões sensoriais, tornam possível a formaçãode unidades sintéticas perceptivas; estas unidades nuncasão fechadas em si, ou antecipadamente dadas, mas re­sultam de uma atividade que em princípio (mesmo quede fato não seja assim) é indefinidamente prolongável(já que as perspectivas que eu posso ter de uma coisasão infinitas) e portanto podem propor-se só comofinalidades funcionais que, na prática da percepção, sevêem realizadas. O objeto único que eu capto, nestemomento e deste ponto do espaço, é a contração detodas as perspectivas temporais e espaciais que eu játive, que terei ou que, em todo caso, poderia ter, desteobjeto: uma contração que é tornada possível por meucorIX> percepcionante visto que, na explicitação concretade suas possibilidades matrizes, este conjuga numa uni­dade articulada aqueles perfis que, para a análise abs­trata, se dão apenas como aspectos descontínuos, oU

como "índices", de um objeto. O corpo não Hdeduz"o objeto da percepção dos seus perfis mas percebe ime­diatamente estes perfis como perfis do objeto, articula­ções de um todo. Chegamos assim à primeira conse­qüência relevante para os problemas aqui considerados:a unidade do objeto percebido não é algo de "pré-consti­tuído" (não adere ao objeto como sua qualidade própriae Unaturar, uem si"), conta só como norma a ser reali­zada concretamente na praxis perceptiva. Voltandoagora à questão inicial, a respeito da possibilidade deindicar uma diferença de essência entre a percepção ea ilusão, podemos constatar a inerência desta diversi­dade às estruturas respectivas de cada uma. Como seviu, a noesis, enquanto função intencional encarregadade unificar a multiplicidade das matérias sensoriais, seencontra numa relação de fundação recíproca oom esseestrato material: por um lado, ela constitui, com efeito,o elemento mais propriamente "farmante" no interiorda Erlebnis, aquele elemento sem o qual nunca atin­giria a apreensão do objeto como unidade sintética; poroutro lado, e relativamente à percepção, esta tem seuúnico campo de aplicação nos conteúdos sensoriais ouHprimário~', constituintes do estrato material. Desen­volvamos principalmente este segundo ponto, recorrendobrevemente às análises husserlianas de Ideen II. Umaprimeira observação é que a diversidade intrínseca que

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Husserl aponta entre o "fantasma" (ou seja, uma coisacaptada em sua mera "forma", sem ser preenchida poruma série adequada de apreensões sensoriais) e a coisaplenamente perceptiva é constituída justamente pelo fatode a esta última pertencer inseparavelmente o estratoda materialidade sensorial. Mas o mais importante éque Husserl põe esta materialidade sensorial da coisadiretamente em relação com a dependência das circuns­tâncias. Isto é: o esquema sensorial da coisa (o con­junto das apreensões de forma, cor, etc.) é adequada­mente preenchido quando as qualidades da coisa sãoexperimentadas em sua dependência funcional do con­texto, ou seja, em seu modo de comportar-se em relaçãoà ação exercida pelo mundo circundante. A idéia derealidade liga-se aqui à de causalidade:

[.. .] na apreensão da coisa o esquema não é percebidosimplesmente como uma extensão preenchida sensivelmente, épercebido, pelo contrário, como o "testemunho" (a manifestaçãooriginária) de uma qualidade real, e, precisamente por isso,coroo estado da substância real num determinado momento dotempo. A própria qualidade só atinge uma datidade realmentepreenchente e portanto originária, quando as séries funcionaischegam a um decurso originário em que as dependências dascircunstâncias inerentes atingem uma datidade originária. são.por outras palavras, dependências causais [ ... l. As qualidadesreais são eo ipso qualidades causais. Portanto conhecer umacoisa significa: saber por experiência como se comportará sobo efeito de um empurrão, de uma pressão, quando será ver­gada [... ]; ou seja: como se comportará no contexto de suascausalidades, em que estados virá a encontrar-se e de quemodo se manterá idêntica em todos estes estados (Husserl, Id.II, 1965, II, § 15).

Mas não é suficiente: o "comportamento" da coisanos confrontos com as outras coisas que constituem seumundo circundante, e a cuja ação "causal" ela está sub­metida, deve ser investigado também e principalmentenuma sua modalidade peculiar, isto é, como comporta­mento em relação ao meu corpo percipiente, o qual nãoé manifestamente uma coisa como as outras, mas o lugaronde estão localizadas as apreensões (sensoriais) dasrelações entre as coisas. Nos confrontos cOm a coisapercebida o corpo não se limita a explicitar, com efeito,uma ação "causal" - mesmo que isto faça parte de suasfaculdades (o corpo pode modificar eficazmente o"estado" e a forma de uma coisa através de uma açãofisica, assim como pode fazê-lo por exemplo uma fonte

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de calor) -, mas mantém com ela relações motivacio­nais: isto na medida em que o corpo é um poder motor,um órgão livremente móvel no qual necessariamenteestão localizadas todas as apreensões das qnalidades sen­soriais da coisa, e que portanto tem a função de centrode orientação na exploração perceptiva, de"comporta­mento" originário em relação ao qual os "comporta­mentos" da coisa se configuram, visto que é justamentea orientação atuaI do corpo percipiente, ou sua postura,ou seu movímento, que me leva a ter esta apreensãosensorial em vez de uma outra. Retomando agora nossoproblema, e tendo presente estas últimas considerações,podemos observar: é manifesto que a "coisa ilusória"não se "comporta", isto é, não se encontra numa tramarelacional de circunstâncias, e, correlativam"ente, nãosuporta a mobilidade do corpo, desagrega-se logo queeste começa a movimentar-se numa atitude :explorativa.Surge aqni com toda a evidência o caráter relacional dapercepção, ou seja, o relativismo das coisas em relaçãoàs "outras" coisas e em particular (de modo essen­cial) em relação ao corpo. O fato de eu, enquantocorpo móvel, ser obrigado a proceder à exploração damultiplicidade dos perfis da coisa para captar a coisaem toda a riqueza de suas relações funcionais com oambiente demonstra que estas duas modalidades de re­lação estão intimamente ligadas e constituem, na reali­dade, uma única relação: para o corpo, como atividade"imóvel" de espelhamento, não haveria um mundo arti­culado, captado na multiplicidade de suas relações cons­titutivas. Relativamente a nosso problema, segue-se aquiclaramente que a diversidade entre a percepção e ailusão é determinada no âmbito de suas respectivasestruturas, ou seja, no fato de estas estruturas seremou não preenchidas (ou melhor: de por essência pode­km ou não poderem ser preenchidas) por uma sérieconcordante de apreensões sensoriais (onde é precisoter em conta a relação deste estrato material seja coma esfera das dependências funcionais, com a causalidadedas "circunstâncias", ou com a mobilidade do corpo).A "normalidade" da percepção se define portanto comOaquela estrutura ótima que estende a própria percepção.E é preciso sublinhar que o termo "ótimo" se refereaqui tanto às chamadas condições exteriores da percep-

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ção, à dependência do percebido em relação a seu con­texto relacional (por exemplo a relação entre a corpercebida e a iluminação), quanto às chamadas con­dições internas, pertinentes à situação intra-orgânica docorpo percipiente: situação que por Sua vez é polarizadapara o funcionamento "ortoestêtico" do corpo perci­piente, no qual a coisa é experimentada na unidade deuma síntese concordante, que é portanto um funciona­mento a valer como norma para todo decurso percep­tivo. A análise, aqui apenas esboçada, das estruturasperceptivas nos conduz assim - sem que seja precisorecorrer a critérios exteriores a essas estruturas - auma possível fundação da idéia de normalidade, na quala "norma" não é mais uma sedimentação ideológica, esim uma regra operante - e sempre a realizar - noÍntelior do próprio processo de estruturação.

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5. TENDENCIAS DO ESTRUTURALISMO

Pretendo aqui indicar como, no panorama deli­neado por Piaget (1968), em termos talvez demasiadosimplificados, surgem algnmas importantes questõesepistemológicas. O discurso aqui desenvolvido nãoabrangerá todos os campos tomados em consideraçãopor Piaget, limitando-se a dar algnns exemplos tiradosdo domínio das "ciências humanas", onde o conceitode estrutura se revela particularmente novo e relevante,com uma referência especial à Lingüística (utilizandonisso uma indicação de Lévi-Strauss, A.S., 1958, p. 37).De resto, apesar desta limitação, não fugiremos a umainevitável genericidade, aquela mesma que, como disseironicamente, Vigotski, corre o risco de fazer do estru-

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turalismo uma espécie de noite em que todos os gatossão pardos.

O fato é que se insistiu propositadamente em certas"coincidências" interessantes do ponto de vista episte­mológico, deixando de lado as divergências e os con­trastes que animam o quadro, e que dão vida a umadialética à luz da qual deveriamos nos perguntar se otermo estruturalismo ainda pode eventualmente serutilizado sem dar origem a possíveis confusões e mal­-entendidos fundamentais.

Antes de maís nada, as considerações de Piagetcontribuem para nos livrar de algumas falsas antino­mias em que o debate sobre o estruturalismo freqüente­mente se embrenhou. Podemos escolher, a título deexemplo, três dentre as mais conhecidas: sincronia/diacronía, estrutura/gênese, objetividade/subjetividade.

Da distinção metodológica entre análise sincrónicae análise diacrónica tem sido extrapolada uma oposição,quase ontológica, entre estático e dinâmico. Deste modo,umas das objeções fundamentais dirigidas contra oestruturalismo (principalmente contra o de derivaçãomais estritamente saussuriana) assentou freqüentementena constatação de um dualismo irredutível entre sistemae história. Na realidade, as coisas se colocam de formabem diferente, pois uma das funções da investigaçãosincrónica é precisamente permitir uma fundação daconsideração histórica. Contra boa parte da tradiçãoexegética que se dedicou ao Cours de Saussure (e que,como nota De Mauro 1, não podia deixar de ser desviada.por certos endurecimentos - às vezes verdadeiros mal­-entendidos - devidos aos organizadores do texto), éprecisamente esta observação que se impõe de maneiraevidente, tanto no plano da realidade como no metodo­lógico.

Sob o primeiro ponto de vista, é essencial o con­ceito de arbitrariedade: reconhecendo que o signo não

1. F. de Saussure, Corso di Unguistica generale, BaTi, Laterza,1967. Um dos muitos méritos da edição italiana do Cours, organizadapor T. De Mauro, é justamente o de mostrar a incons.istência dealgumas grandes antinomias, entre as quais a que está aqui em causa,atribuídas indevidamente a Saussme com base numa leitura unilateral dotexto (unilateralidade que, como se viu, vez por outra derivoudo trabalho dos editores), enquanto a totalidade do discurso saussurianose movimenta exatamente na direção contrária. Cf. a introdução deDe MaurO e principalmente, para maiores detalhes, o conjunto das notas,nas Qua:s é amplamente utilizado o material manuscrito em via depublicação na edição crítica de R. Engler.

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tem uma motivação ''natural'' (não depende das carac­terísticas próprias das substâncias fônica e psicológica),mas assenta numa atividade de articulação, de análisedo contínuo em unidades finitas e delimitadas, Saussurecriou os pressupostos para uma consideração de tipohistórico. Com efeito, se a comunidade dos falantesnão está vínculada à matéria à qual dá forma, isto é,se não é determínada pela "natureza" dos meios quefornece, ela não está exposta a outra coisa senão suaspróprias necessidades internas: necessidades sociais, eportanto em devir, na base das quais a temporalidade dalíngua não só é aceita, mas é até postulada. Está abertoportanto o discurso sobre a geratividade, sobre a possi­bilidade do "novo", ligada à necessidade, para o orga­nismo, de enfrentar situações mutáveis. Se a funçãodo siguo consiste em mediar a relação homem-natureza,subtraindo o primeiro a uma determinação direta porparte da segunda, então a atividade semiológica está, poressência, em devir. Para a falta de reconhecimentodeste aspecto presente em Saussure tem talvez contri­bufdo em parte uma jnstificadíssima desconfiança emrelação a toda forma de reducionismo, isto é, em relaçãoàs tentativas de extrair as modalidades de uma determi­nada ordem estrutural diretarnente das de uma outra(esquecendo-se, no caso em questão, de que o fato lin­güístico tem uma especificidadQ estrutural própria, cujostraços não são "deduúveis" dos da ordem social), des­confiança que encontra em Sanssure uma das suas maisrigorosas formulações. Mas o fato de estas duas ati­tudes (reconhecimento da pertínência da língua ao con­junto da "vida social" e reconhecimento de sua especi­ficidade estrutural) não só coexistirem, mas se impli­carem reciprocamente em Saussure, é testemunhado,entre outras coisas, por aquela famosa página do Coursdedicada à Serniologia, na qual Saussure chega até aindicar nesta ciência (em cujo âmbito se insere a Lin~

güística) "uma parte da psicologia social" e na qual,por outro lado, afirma que "é tarefa do lingüista defíniraquilo que torna a língua um sistema especial no con­junto dos fatos semiológicos" (Sanssure, Ibid., 1967,p. 26). Na realidade, no fundo do discurso saussurianohá uma forte intuição, que será explicitada posterior­mente, sobretudo no domínio antropológico: a da pe­culiaridade das operações exercidas pela cultura sobre

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o dado natural. Mas retomemos o nosso discurso. Aonível metodológico deve ser colocado em primeiro planoo conceito de imanência. Por consideração imanenteentende-se aqui a explicitação dos nexos internos dosistema isolado, a deterrníuação de sua forma intrínseca,fazendo abstração das ligações que ele mantém com oexterior (quer se trate, na temporalidade, dos elementospertencentes a um outro sistema anterior ou sucessivo,ou, na contemporaneidade, dos elementos inerentes asistemas de uma ontra ordem). Isto é, o ideal de uma"inteligibilidade intrínseca" é o qne Piaget indicacomo distintivo do estruturalismo. Este princípio já écoerentemente desenvolvido, por exemplo, pelos teóricosda psicologia da Gestalt, em polêmica com a posiçãoassociacionista. Sabe-se como, do ponto de vista doatomismo, as estrutnrações atnais do campo perceptivoeram remetidas para a força construtiva de estrnturasanteriores ou, mais simplesmente, para o "costume" de­corrente da acumulação quantitativa das experiências.Mas neste caso o problema da estrutura era adiado aoinfinito, com esta dificuldade de princípio: para qne umaestrutura anterior possa agir sobre o campo perceptivoatnal, é necessário que este campo já esteja "formado"de maneira a tornar possível tal ação (de modo que eupossa exercer, por exemplo, a rememoração de umacerta figura já vista por outra figura semelhante queatualmente vejo: "semelhança" que só é possível se afigura atual já está estruturada). O que de qualquermodo põe em primeiro plano o problema da estruturaimanente: "Ninguém pretende negar o papel tremenda­mente amplo desempenhado pela lembrança na vidamental, mas ela só pode desempenhar esse papel porqueo mundo sensorial é dotado, por si próprio, de atri­butos específicos suficientes que lhe vêm da organização.Um puro e simples mosaico de sensações seria incapazde dar à lembrança as direções específicas certas"(Kõhler, P.S., 1961, p. 154). Atitude :Jne, no domínioda Antropologia, foi vigorosamente defendida por Lévi­-Strauss no caso, por exemplo, dos sistemas de paren­tesco. Nesta circunstância também, diante da tentativa,própria da antropologia tradicional, de remeter umadeterminada estrutura de parentesco para outras estru­turas, Uvi-Strauss reivindica o primado (do ponto de

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vista heurístico) da estrutura considerada em sua ima­nência:

Era preciso procurar interpretar esta estrutura através deseus caracteres globais, antes de desmembrá-la numa multipli­cidade de fragmentos cuja justaposição pode depender de umainterpretação histórica, mas permanece privada de significadointrínseco (Lévi-Strauss, S.E.P., 1967. p. 143).

Compreendida assim esta orientação, como podeafirmar-se que ela implica a eliminação, ou pelo menoso obscurecimento do fator temporal? Bem vistas ascoisas, a exigência aqui implícita tem exatamente osentido contrário, desembocado na exigência de umaanálise estrutural da temporalidade e de suas modali­dades de ação. Por outras palavras: a comparação dóelementos pertencentes a sistemas situados diferente­mente no contexto temporal não pode deixar de assentarna consideração preliminar destes elementos no interiordas respectivas estruturas imanentes, ou seja, dos sis­temas de relações que, na contemporaneidade, corre­latam os vários elementos, e à luz dos quais estes ele­mentos adquirem seu sentido pleno, tornando-se assimdisponíveis para a comparação. De outro modo, comoseria possível evitar as mais fantasiosas aproximações?Esclarece-se assim o que pretendíamos dizer ao falarmosdo "primado heurístico" da consideração sincrônica: semela a análise diacrônica não encontraria garantias paraseu rigor. Proposição que postula sua inversa na medidaem que (cf. Jakobson, P. Ph. H., 1949, pp. 333-336) osistema, inclusive quando considerado na sincronia, nãoé nada de "estático", mas, como sublinha repetidamentePiaget, é um sistema de transformações.

];, supérfluo acrescentar que o conceito de totali­dadeé necessário mas não suficiente para definir umaanálise estrutural. Que o todo seja algo mais do quea simples soma das partes, que as propriedades que elepossui enquanto conjunto não sejam redutíveis às daspartes, é um princípio que tem uma longa história. Semir longe demais, considere-se a morfologia de Goethe:o conceito de organismo como um conjunto no qualcada elemento depende da configuração global a quepertence, organismo que, enquanto forma (ou "tipo"),é capaz de permanecer na variação das partes (d. Cas-

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sirer, S.M.L., 1945, p. 105); considere.se também afunção que a idéia de totalidade desenvolveu no vita­lismo 2. Mas o qne é peculiar a uma orientação de tipoestrutural (inclusive, como observa Piaget, na multiplici­dade dos contrastes nele distinguíveis) é uma atitude 'ex­plicativa nos confrontos das estruturas. Isto é, não setrata de considerá-las simplesmente como "totalidadesemergentes", como formas não analisadas a contraporàs entidades atómicas do associacionismo, do mecani­cismo, etc., mas de analisá-las em sua constituição in­terna, segundo uma perspectiva relacional em cujoâmbito, e em última instância, é eliminada também aoposição entre sistema e elementos constitutivos, poiso conceito de estrutura opera em todos os níveis: mesmoas unidades mínimas só podem ser definídas em termosrelacionais, ou seja, como formas (enquanto em vonEhrenfels, por exemplo, a forma é ainda algo que sesobrepõe do exterior aos dados sensoriais atómicos).Esta complementaridade da forma e do conteúdo (ondea forma se insere em estruturações superiores, tendodeste modo função de conteúdo, e onde, reciprocamente,o conteúdo apresenta sempre um caráter sistêmico, tendoportanto função de forma para os elementos subordi­nados) não pode deixar de recolocar o problema de umadialética dos níveis ou, na terminologia hegeliana, daAujhebung.

Por outro lado, o questionamento de toda perspec­tiva atomística deveria necessariamente abranger o con­ceito de indução. O que interessa não é mais a acumu­lação dos dados, mas sua "tipicidarle", princípio queencontramos coerentemente formulado, por exemplo,tanto no domínio da Psicologia - "O problema de umaestruturação sensata, de uma organização, de uma com­binação recíproca das partes, de uma complementari­zação entre elas, etc., não está necessariamente ligadoà consideração de muitos casos: pode ser visto e enten­dido em seu caso singular, examinando-se de modo de·

2. Evidentemente, a afirmação de que o todo não é a simplessoma das partes. ou de que a forma é anterior a seus elementos, nadanos diz ainda quanto à estrutura interna desta forma e, sobretudo,quanto às modalidades precisamente sob as quais ela pode arlicaNle aestes elementos. Deste modo, a forma acaba por caracterizar-se comoprincípio regulador puramente externo. Sesue-se daí o fato de, justa­mente na medida em que é pressuposto mas não explicado, isto é, nioanalisado em seus nexos constitutivos, o conceito do forma (ou de estru­tura) se prestar a qualquer extrapolação.

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talhado sua estrutura particular" (Wertheimer, P. P.,1965, p. 52) - quauto no domínio da Antropologia,onde Uvi-Strauss insiste na necessidade de

limitar-se resolutamente à análise aprofundada de um númerorestrito de casos, e provar desta forma que. afinal de contas.uma experiência bem feita vale por uma demonstração (Lévi~

-Strauss, A.S.. 1958, p. 317).

Na Lingüística, como se sabe, foi em Hjehnslevque o conceito tradicional de indução foi submetido àcrítica mais rigorosa. O que aqui importa sublinhar éque tal crítica implica: a) que os dados sobre os quaisse exerce a teoria não são acumulados, mas "escolhidos";b) que a teoria tem um caráter puramente formal, ouseja, não é determinada pelos objetos empíricos aosquais "se aplica"; c) que justamente na medida em queé formal, ela não incide sobre datidades fatuais, massobre puras possibilidades (cf. Hjelmslev, F.T.L., 1968,pp. 15-25). Esta relação entre formalização e possi­bilidades tem, como veremos em breve, uma impor­tância essencial para o problema genético. Por enquanto,é oportuno insistir no fato de uma orientação de tipoformal (que encontramos em Lógica, por exemplo, nascríticas de Husserl ao psicologismo) remeter para oproblema das invariantes, ou seja, puras possibilidadesdotadas de um primado lógico em relação a Suas ré­plicas empíricas. Daí a idéia de uma álgebra da línguabaseada naquelas "entidades sem desiguação natural",naquelas formas mínimas que Hjelmslev chama glosse­mas (Hjelmslev, Ibid., pp. 85-86), ou, na lógica husser­Iiana, a idéia de uma gramática das puras formas (cf.Husserl, R.L., 1968) '.

Se se levar em conta a crítica do método indutivo(ou melhor: do absolutismo com o qual foi formulado eaplicado, o valor heurístico da indução, do conhecimentoadequado dos fatos, etc., certamente não está em causa)não será surpreendente que, em muitos casos, uma for­malização rigorosa desemboque no problema genético(desaparecendo deste modo mais uma das falsas anti-

3. Podemos ver que esta aproximação não é forçada, inclusive emBr4Jndal. EL.G., 1943, p. 97, Vale a pena acrescentar também. que umaanálise do significado lógico e metodo16gico do conceito husserliano deeidos (como invariante ou possibilidade pura) servirá pata separá-lo dotodas as Ilações "essencialistas" que têm sido feitas e têm prestado tãobem a certas liquidações apre85adas. da fenomenologia (enquanto espi­ritualismo, idealismo. etc.).

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nomias a que me referia uo início). O essencial é queo método rigidamente indutivo (tomado de um tipo par­ticular de cientificidade, que teve no modelo mecani­cista sua formulação mais conseqüente) pressupõe geral­mente uma atitnde fisicalista, com dois corolários bas­tante importantes: a) utilização exclusiva do dado obser­vável, captável no contexto dos acontecimentos exterio­res; b) desconfiança de princípio em relação a qual­quer referência às operações do snjeito, confinadas numreverso não investigável, ou investigável só em suasmanifestações empiricamente perceptíveis. Mas, comose viu, aquilo que uma orientação estrutural põe emquestão é tanto a auto-suficiência do dado (que agorasó pode ser entendido como um conjunto de relações:crítica do substancialismo, que encontramos nas váriasdisciplinas e a todos os níveis), quanto a prioridadelógica e epistemológica do fatual sobre o possível (comopura invariante em relação à multiplicidade de suas ré­plicas empíricas). Mais uma vez, é em Saussure queencontramos uma formulação rigorosa deste princípio,com a distinção entre langue e parole (que, mesmoem meio a todos os mal-entendidos 4 que a acompa­nharam, revelar-se-ia extremamente fecunda, não só emLingüística - veja-se a referência que, de pontos devista diferentes, lhe fazem Hjelmslev (F.T.L., 1968,pp. 82-88) e Chomsky (A.T.S., 1965, p. 4), com asrespectivas distinções entre esquema/uso e competence/performande - mas também em outras disciplinas,começando pela antropologia de Lévi-Strauss (A.S.,1958, pp. 230 e ss.). Simplificando, poder-se-ia dizerque a relação entre langue e parole é precisamente a dis­tinção entre um sistema de virtualidades abstraias e oconjunto de suas realizações empiricamente observáveis,entre forma pura e uso concreto. De onde a definiçãosaussuriana de langue:

Esta é [... ] um sistema gramatical existente virtualmenteem cada cérebro ou, mais exatamente, no cérebro de um conjun~

to de indivíduos, já que a língua não é completa em nenhumindividuo singular... (Saussure, lbid., 1967. p. 23; o grifoé meu).

4. Antes de ma's o que fez desta distinção, metodológica e dialética,uma dupla de contrários que se excluem mutuamente no plano ontológico.Mal-entendido este facilitado não 56 pela formulação, mas pela própriaarticulação que os editores. deram ao texto de Saussure. Sobre esteponto, d. em particular a n. 6S de De Mauro, na edição italiana doCours (cit., pp. 385-389).

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Há mais: em Saussure podemos encontrar nãoapenas, como se sabe, o problema da langue como "sis­tema", como forma pura anterior, do ponto de vistalógico e epistemológico, a suas manifestações fatuais,mas também o problema genético: ligação que freqüen­temente passou despercebida, o que constribuiu para ra­dicalizar a dicotomia entre análise estrutural ou formale análise genética, dicotomia cuja inconsistência é subli­nhada repetidas vezes por Piaget. Em Saussure, comose dizia, ao mesmo tempo que se explicita o caráterpuramente formal da língua, é colocado o problemade seu estudo genético. Vimos anteriormente que nãoé por acaso que Saussure considera a Lingüística umaparte da Semiologia - que, por sua vez, se inscrevena Psicologia - e insiste vigorosamene no caráter psí­quico da língua (cf. Saussure, Ibid., pp. 23-24). Emtermos muito simplificados, o esquema do discurso saus­suriano poderia ser indicado desta forma: a considera­ção meramente formal da língua nos coloca perante umconjunto restrito de princípios de estruturação, e trata­-se de ver como estes princípios ("psíquicos") se inse­rem numa atividade de estruturação geral que é peculiarà criação dos siguos, isto é, se inserem naquela atividadearticulat6ria que é subjacente ao processo semiológico.Justamente por esse motivo, ele elucida claramente estesdois pontos: a) através da mediação da Semiologia (queé psicologia social na medida em que o signo não é umproduto individual, mas decorre de um "liame social"),a Lingüística é englobada (com a condição fundamental,a que DOS referimos anteriormente, de não se escamoteara especificidade estrutural da lingua) na Psicologia(Saussure, Ibid., p. 26), à qual compete estudar aquelaatividade articulatória geral que constitui o fundamentode todo o sistema lingüístico historicamente determinado(onde se tem uma prefiguração da problemática psico­lingüística)S; b) a questão das "origens" não é por­tanto redutível a uma perspectiva diacrônica, identifi-

5. Cf. G.A. Miller (P.S., 1967), principalmente as páginas iniciaisdo ensaio dedicado à psicolingUfstica c, sempre no mesmo ensaio, asdedicadas à atividade combinatória: "Man is lhe only animaI to havea combltuttoriall;y productlve language". Mas é preciso dizer que em quasetoda a literatura psicolingiiistica americana Saus.sure é freqüentementeesquecido. Há uma referência importante em Diebold (S.P., 1967, P.212), onde a distinção competence/per!ormance é referida à distinçiosaussuriana liJnglUl/plUole.

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cando-se com a das condições permanentes formais:uma das tarefas esseuciais da Lingüistica é "procurar asforças que de modo permanente e urtiversal estão emjogo em todas as línguas, e extrair as leis gerais a quepodem ser reduzidos todos os fenômenos particularesda História" (Saussure, Ibid., p. 15).

Trata-se evidentemente, em Saussure, de indicaçõesprogramáticas, mas não é dificil ver nelas uma das di­reções de pesquisa que polarizam a situação atual daschamadas ciências humanas. O problema das "forçaspermanentes e universais" está, por exemplo, em pri­meiro plano na antropologia de Lévi-Strauss, e cabenotar que este problema não é colocado à custa dasdiferenças verificáveis entre os vários sistemas culturais,mas, pelo contrário, pressupõe-nas. Isto é, impôs-se aidéia do conjunto intercultural como sistema de desviosdiferenciais, regido por um número limitado de prin­cípios estruturais que, participando de diversas confi­gurações, agem nas várias culturas. Estas propriedadesgerais, manifestadas pelas diferenças interculturais, sãoo objeto próprio da Antropologia, pois esta procurajustamente distinguir as constantes ligadas aos desviosdiferenciais. Se a recolha "indutiva" de dados tinhalevado a um certo tipo de relativismo cultural, a pro­cura estrutural dos universais não nega. a especificidadedas culturas (e portanto, no limite, sua relatividade),mas procura trazer à luz aquele fundo de identidadessobre o qual justamente as diferenças podem se des­tacar:

Por trás da diversidade aparentemente infinita dos modelosculturais há uma fundamental uniformidade (Linton, U.E.P.,1952, p. 646).

:e portanto esta idéia reguiadora que orienta a aná­lise do antropólogo e lhe determina a posição estraté­gica que ele assume quanto à relatividade, pois no con­junto diacrítico oonstituido pelos vários sistemas cul­turais ele escolhe exatamente aqueles

cuja divergênc'ia lhe parece mais acentuada, na esperança deque as regras metódicas que se lhe imporão para traduzir estessistemas nos termos de seu próprio sistema, e reciprocamente,tornarão viSÍvel uma rede de constrições fundamentais e comuns(Uvi-Strauss, C.C., 1964, p. 19: cf. A.S., 1958, pp. 325 e 379).

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Tudo isso não nos surpreenderá se pensarmos queuma rigorosa formalização, baseada no aspecto sistêmicodo objeto investigado, leva à formulação de alguns prin­cípios essenciais, que surgem precisamente na medidaem que tal objeto perde sua substancialidade (ou, se sequiser, a espessura material que o sustenta) e configura­-se como um emaranhado de relações redutíveis a umnúmero restrito de traços fundamentais. Isto é, "for­mas" comuns, princípios de estruturação que dão vidaàs diferentes configurações, podem ser captadas pordetrás da heterogeneidade das substâncias preparadas.Em Hjelmslev este assunto foi desenvolvido com umrigor tal que se postulou, como se viu, uma "álgebralingüística" baseada num "cálculo" geral, sob a formade uma tipologia cujas categorias são as línguas singu­lares, ou melhor, os tipos lingüísticos singulares. E aquié preciso prever todas as possibilidades, inclusive asque se encontram virtualmente no mundo da experiên­cia, sem terem uma manifestação "natural" ou "atua!"(Hjelmslev, F.T.L., 1968, p. 113). Não é este o lugarpara delinear as dificuldades implícitas em semelhanteatitude, pelo menos em seus aspectos mais extremos6 ;

o que aqui interessa observar é qUe muito se caminhou- e não só, como se viu, em Lingüística - depoisda conhecida afirmação de Bloomfield, segundo a qual"as únicas generalizações úteis, sobre a linguagem, sãoas indutivas". Certamente não é por acaso que o pro­blema dos universais se coloca com urgência maior nointerior das várias disciplinas justamente quando, gra­ças à rigorosa aplicação do método "indutivo", dis­pomos de uma massa tal de materiais que até as gene­ralizações mais audaciosas implicam todo um campo deverificabilidade. Afinal, a relação entre um Boas e umLévi-Strauss (para citar um exemplo) é uma relaçãode reciprocidade, mais do que de oposição: o que de­veria salvar-nos da tentação de criar mais uma absurdaantinomia. Mas, por outro lado, não se pode deixar derealçar um novo estilo teórico, baseado na exorci1..açãodo "fato" e no pressuposto de que, para proceder ateorizações coerentes, o mais necessário não é a quan­tidade de dados (e aliás a possibilidade de obtê-los emsua totalidade fica, em muitos casos, exclulda por prin-

6. Sobre H;eImslev em particular, d. Martinet <S.F,T.L.." 1946,pp. 35-42) e Lepschy (em Hjelmslev, E.T.L., 1968, pp. XXVIII-XXXI).

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cípio), e sim a sua representatividade. Além disso, éimportante frisar ainda que a procura dos traços comunse universais não tende nem para uma hipótese de tipomonogenético (urna única fonte de derivação), nempara urna hipótese baseada nos contatos, nas trocas, nasinfluências, etc. (apesar de seu efetivo alcance não serdesprezado), mas, pelo contrário, encaminha-se no sen­tido de uma explicitação de possibilidades estruturais.Não é possível referir aqui os esforços realizados nestadireção, apesar de constituírem experiências germinais,por vezes discutíveis e certamente abertas: é suficientecitar, a título puramente exemplificativo, no plano daIingüística geral, os universais inventariados por Ho­ckett (L.C.S.A.C., 1960; e, mais sinteticamente: 1966),e no plano fonológico a teoria dos traços distintivos delakobson (P.S.A., 1961), ou finalmente, em Antro­pologia, os princípios constitutivos dos sistemas de pa­rentesco analisados por Lévi-Strauss (S.E.P., 1967).Caso significativo de investigação interdisciplinar, Lenne­berg chegou a considerar o problema dos universaislingüísticos do ponto de vista biológico, partindo dahipótese (motivada em vários níveis) de que os meca­nismos biológicos subjacentes à linguagem enquantotraço species-specific sejam invariantes. Do ponto devista biológico, as diferenças entre as várias línguas se­riam "mínimas":

Apesar de as famílias lingüísticas serem tão diferentesumas das outras que não podemos encontrar nenhum nexo his­tórico entre. elas. toda língua, sem exceção, se baseia nos mes~

mos prindpios universais [ . . .] (Lenneberg, B.P.L., 1966, p. 68).

Vale a pena enfim observar que é justamente naaplicação sistemática do conceito de invariância que épossível ver um dos elementos destinados a contribuirpara o questionamento da tradicional oposição entre asciências humanas e as chamadas ciências exatas que,anteriormente formulada nos termos de uma oposiçãoentre "ciências do espírito" e "ciências da natureza",parece reviver hoje com novas roupagens na distinçãoentre ciências dialéticas e ciências analíticas.

Mas para compreender claramente como um mé­todo rigorosamente formal pode, no limite, desembocarno problema genético, é necessário se deter um mo­mento no caráter inconsciente que, no interior desta

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perspectiva, é atribuído às operações do sujeito. E oque observa Piaget, quando afirma que a tarefa própriado estruturalismo metódico é procurar aquelas estruturassubjacentes que não se verificam ao nível dos "fatos"observáveis, e, sobretudo, quando frisa que a "estru­tura não pertence à consciência, mas ao comporta­mento". :a possível entrever aqui uma orientação que,mesmo na multiplicidade contrastante das perspectivas,é comum a boa parte do pensamento contemporâneo,e que considera mais pertinentes para a investigação asoperações funcionais do sujeito do que as construçõesreflexivas que ele lhes sobrepõe. Viu-se como em Saus­sure a língua é uma espécie de saber virtual subjacenteàs realizações expressivas concretas do falante. Isto é,ela é um sistema de estruturação que não é dedutíveldo imediatamente observável (da "substância") e que,sobretudo, não é redutível às operações da consciência:com efeito, ela não é uma convenção ou um "contrato"estipulado reflexivamente; o falante "ignora" seu meca­nismo, pois a língua "não implica nunca premeditação,e a reflexão só intervém nela para a atividade classifi­catória" (Saussure, Ibid., 1967, p. 23; cf. pp. 89 e 91).Não sendo possível determo-nos nas múltiplas conside­rações que foram feitas sobre o aspecto inconsciente dosiguo, de Sapir até à Escola de Praga, é preferível re­ferir-se brevemente a dois casos particularmente repre­sentativos (segundo, de resto, a indicação de Piaget):Lévi-Strauss e Chomsky.

Tomemos como exemplo a análise feita por Lévi­-Strauss de um problema essencial em Antropologia, aproibição do incesto. Este problema é enfrentado pre­liminarmente por Lévi-Strauss no interior de uma con­sideração puramente formal dos sistemas de parentesco,que tende precisamente a trazer à luz a sua estruturainterna. Ora, a proibição do incesto constitui o verda­deiro fundamento desta estrutura, pois representa oprincípio mínimo de reciprocidade (proibição de tomara mulher do próprio grupo familiar, o que tambémsiguifica o direito de obter de um grupo diferente umaontra mulher em troca), princípio formal e indetermi­nado a partir do qual pode ser gerada a complexa rededos diferentes sistemas de parentesco como sistemas detroca. Dois pontos principalmente devem ser sublinha­dos: a) a descoberta, mediante uma análise puramente

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formal, de um princípio (o de reciprocidade) simplese universal, subjacente a todas as configurações pos­síveis que os sistemas de parentesco podem assumir;b) o fato de, justamente na medida em que se trata deum princípio formal que pode subsumir conteúdos dife­rentes (a proibição pode, conforme os casos, dizer res­peito a diferentes tipos de parentes, mas o que interessaé !1 permanência, numa forma ou na outra, da proi­bição), ele atuar a um nível inconsciente, isto é, nãopoder ser extraído do. conteúdos concretos (ou, sequisermos, das racionalizações reflexivas) que lhe atri­buem 08 vários sujeitos e as várias sociedades; antes demais nada, a idéia de que tal proibição é motivada porrazões eugênicas, pelo temor de comprometer a integri­dade da descendência, etc., idéia essa desmentida portoda uma série de observações. Numa palavra: o queé pertinente não é tanto aquilo que o sujeito pensa"reflexivamente", os conteúdos ideol6gicos que atribui,quanto as efetivas operações de estruturação que rea­liza, neste caso, no contexto das relações de parentesco.Nesta altura, mais duas considerações se impõem. Aprimeira é que uma perspectiva estrutural deste tipoestá bem longe de implicar uma exclusão ou, em todoo caso, uma desvalorização da consideração funcional:o fato de um sistema ser encarado preliminarmente doponto de vista "16gico", na tentativa de explicitar seusprincípios estruturais intrínsecos, não exclui a análiseda função específica que ele desempenha no conjuntodos fatos humanos. Não é por acaso que Lévi-Straussse detém longamente na relação mútua entre o princípiode reciprocidade (dar para ter) e o problema da escas­sez (das mulheres, como neste caso, e em geral dosbens à disposição do grupo), precisamente para o qual,afinal, aquele princípio procura apresentar uma solução,ou pelo menos uma resposta. Não levar em conta esteaspecto seria o mesmo que dizer que a análise das engre­nagens e das ligações de uma máquina impede a com­preensão da sua função, quando é o contrário que éverdadeiro. A segunda constatação é que os modelosobtidos pelo te6rico no decorrer da formalização, ouseja, os princípios "invariantes" que emergem da hete­rogeneidade dos dados, são aqueles mesmos princípiosoperat6rios inconscientes em que assenta a atividade dosujeito. E por isso que se pode falar aqui de problema

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genético: que é, em definitivo, o problema das opera­ções constitutivas ou, como diz o próprio Piaget, "cons­trutivas" do sujeito.

Deste ponto de vista, compreende-se o interesse dePiaget pela obra de Chomsky, interesse que tambémneste caso será aqui exemplificado com algumas obser­vações de ordem extremamente geral. Com o questio­namento do proceder rigidamente "indutivo", a inves­tigação deixa de caracterizar-se como processo de seg­mentação e de classificação dos dados observáveis, e seorienta para as operações que geram aqueles dados. Istoé, o discurso segue uma direção que conduz da hetero­geneidade dos fatos empiricamente perceptíveis para umnúcleo limitado e homogéneo de possibilidades consti·tutivas: em outras palavras, adquire relevãncia (comojá acontece em Saussure) o problema de explicar a mul­tiplicidade, que no limite se apresenta como infinita, dasproduções através da capacidade geradora de um reper­tório finito de possibilidades formais: isto é, através docaráter combinatório e recorrente destas possibilidades.Em termos gerais, pode-se dizer que o problema centralconsiste em dar conta da capacidade, por parte do orga­nismo, de gerar o "novo", da sua produtividade. Nointerior desta atitude, o interesse é polarizado, não sópelas estruturas "de superfície", mas também pelasestruturas "profundas", ou seja, pelo conjunto restritodas estruturas elementares em que se baseia a comple­xidade (e a variedade) das estruturas empiricamenteobserváveis. O que é pertinente ueste nível é portantoa estrutura formal das operações do sujeito (isto é,suas possibilidades geradoras, a competência tácita queele tem da lingua) , e não o uso observável que dela fazem situações concretas. Poder-se-ia dizer, portanto, que,na medida em que subimos dos dados empiricameuteperceptíveis para sua possibilidade geradora, lidamos comum sujeito em certo sentido idealizado (idealized nativespeaker). Este é um significado da teoria chomskianada competência que foi por vezes mal compreendido, emparticular quando se acusou Chomsky de recorrer incri­ticamente às "opiniões" do falante, e de ser desta formavítima de um ingéuuo subjetivismo. Na realidade, uestecaso também, o ponto crucial é constituído pelo con­ceito de inconsciente, neste sentido: o recurso à sub.­jetividade não conduz aqui a suas operações empiri-

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camente ~bserváveis (apesar de esta perspectiva se jus­tificar plenamente ao nível "psicológico"), nem~ sobre­tudo, às operações tematizadas no plano da consciência,àquilo que o sujeito "pensa" delas. Este fato é impor­tante, pois revela que a recusa do consciencialismo éconcomitante com a do fisicalismo. Trata-se, em re­sumo, de um duplo movimento redutivo: é preciso, deum lado, abstrair das crenças do sujeito a respeito daprópria praxis constitutiva, e de outro distinguir entrea teoria da língua (como conjunto de possibilidades for­mais, de regras geradoras que fundam aS locuções empí­ricas) e a teoria do usuário (ou seja, das modalidadesconcretas de atuação daquelas possibilidades, que seinsere num campo de investigação mais psicológico doque "formal"). Em outros termos, o que está em jogoaqui não são os juíws reflexivos do sujeito, mas suasintuições profundas, o conjunto de regras por ele tacita­mente aceitas, que agem a um nível inconsciente:

Toda gramática gerativa relevante ocupar-se-á geralmentede processos mentais que se encontram muito além do nível deconsciência real ou mesmo potencial; além disso, é perfeita­mente evidente que os detalhes e os pontos de vista do falantea respeito do próprio comportamento e da própria competênciapodem estar errados. Assim, uma gramática gerativa procuraespecificar aquilo que o falante efetivamente sabe, não aquiloque ele pode relatar a respeito deste conhecimento (Chomsky,A.T.S., t965, p. 8).

Esta caracterização inconsciente das operações dosujeito tem aspectos importantes. Antes de mais nada,como se viu no caso de Lévi-Strauss, graças ao desli­gamento simultâneo do terreno do observável e do daconsciência reflexiva do sujeito, torna-se possível consi­derar as estruturas formais abstratas não mais enquantosimples "ficções" metodológicas preparadas pelo teórico,mas como aquelas mesmas regras que (mesmo que nãoie integrem geralmente no campo do observável e da:onsciência) desempenham originariamente o papel deprincípios reguladores da atividade constitutiva própriado sujeito. Eis por que, num certo sentido, o primeiro"teórico" é o próprio falante e, em particular, duranteo período de aprendizagem, a criança, que precisaelaborar uma estratégia para extrair dos dados obser­váveís à sua disposição os princípios internos de estru­turação da língua (cf. Chomsky, IbM., p. 25). Em

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segundo lugar, o recurso de Chomsky às estruturas pro­fundas projeta como linha de desenvolv;mento umaexplicitação dos universais, ou seja, daquelas "facul­dades mentais" subjacentes e comuns à luz das quaisadquirem sentido pleno as diferentes configurações daslínguas (cL Chomsky, c.L., 1965; p. 118; A.T.S.,1966, p. 45). Finalmente, é importante sublinhar aquique a formulação do problema gerativo leva Chomskya recusar, como destituída de sentido, a velha antino­mia entre objetivismo e subjetivismo (cf. Chomsky, CL.,1965, p. 20).

Na realidade, o problema genético é um problemaaberto, e um dos méritos de Piaget é tê-lo distinguidoclaramente, indicando-o como uma tarefa urgente queo estruturalismo (admitindo que este termo ainda sejautilizável) precisa enfrentar. E é significativo que asreflexões de Piaget culminem não tanto nUma crítica"negativa" quanto na elucidação de algumas questõesfundamentais: em primeiro lugar, como se disse, oproblema genético, graças ao qual pôde apontar demaneira construtiva as zonas deixadas a descoberto,e perante o qual certas soluções (como um certo imo­bilismo da estrutura de Lévi-Strauss ou a hipótese doinatismo em Chomsky) se revelam como inadequadasou pelo menos suscetíveis de reconsideração.

Por outro lado, compreende-se a cautela com quePiaget introduz o problema do "sujeito", dado o caráterfetichista que a palavra assumiu e, do lado oposto, olongo hábito (não menos fetichista) de desconfiança quea acompanha, suficiente, pelo menos, para tornar sus­peito de "idealismo" ou "consciencialismo" aquele quea pronuncia. Mas a opção colocada por Piaget é clara:ou fazer das estruturas entidades transcendentes (e ver­-se-á que se trata de uma possibilidade que a muitos nãopareceu tão absurda, pelo menos em sua versão "natu­ralista") ou procurar sua gênese numa atividade consti­tutiva, o que equivale a dizer que "o ser das estruturasé sua própria estruturação". Esta segunda proposta DOSconduz de um nível ontológico para um nível opera­tório, e coloca em primeiro plano o problema da "cons­trução" das estruturas por parte do sujeito. Só que,cOmo se viu anteriormente, o sujeito não é aqui o daconsciência reflexiva, mas aquele núcleo de coordenaçãoe correlação dos vários estratos operatórios, constante-

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mente descentralizado em direção aos prodntos das pró­prias operações, ao invés de reflexivamente voltado paraelas, de modo que estas operações só têm função aonível inconsciente:

e. preciso opor à tomada de consciência, sempre fragmen­tária e freqüentemente deformante, aquilo que o sujeito conse­gue fazer em suas atividades intelectuais, das quais conhece osresultados e não o mecanismo.. Mas se assim dissociamos o su­jeito do "eu" e do ''vivido'', permanecem as suas operações[... l. A atividade do sujeito pressupõe uma descentralizaçãocontínua que o liberta do seu egocentrismo intelectual espontâ­neo em benefício [ ... ] de um processo ininterrupto de coorde­nações e de atas de reciprocação: ora, é precisamente este pro­cesso que gera as estruturas, em sua construção ou reconstruçãopermanente.

Esta indicação é estimulante e crítica, sobretudo,se se pensar na tentação, freqüentemente verificada nasvárias orientações estruturais, de resolver o problemagenético em termos naturalistas. Quanto a este aspecto,é típica a atitude assumida pelos teóricos da psicologiada OestaU. Perante as questões levantadas pelos pro­cessos de estruturação que eles esclareceram tão bem,procuraram uma solução na hipótese do isomorfismo,segundo a qual as estruturas psicológicas se encontra­riam (graças à mediação dos processos nervosos que asgeram, e que se inserem no mundo dos acontecimentosfísicos) numa relação de "homologia de formas" comas estruturas físicas. O pressuposto fisicalista, porém,comporta pelo menos dois pontos bastante discutíveis:sendo a hipótese de uma determinação direta (ou "pro­jeção") do físico sobre o psicológico justamente excluí­da pelos gestaltistas, é por outro lado dificilmente veri­ficável a postulação de um "acordo" isomórfico e àsvezes, como diz Piaget, desmentido pela experiência,para não falar do fato de o modelo usado pelos gestal­tistas, ou seja, o campo eletromagnético, ser somenteum dentre os muitos verificáveis, DO mundo físico; emsegundo lugar, cai-se inevitavelmente Dum certo imobi­lismo das modalidades de estruturação, onde a inves­tigação genética incide precisamente sobre a possibili­dade de proceder a novas estruturações. De maneirasemelhante, é significativo que, de modo muito maiscauteloso e, parece-me, ocasional (como Se se tratassede um ponto secundário da teoria), a hipótese do iso­morfismo parece às vezes aflorar em Lévi-Strauss tam-

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bém, com a afirmação de uma identidade entre as leisdo pensamento e as da realidade física (cf. por exem­plo, Uvi-Strauss, S.E.P., 1967, p. 520). Mas, por outrolado, retomando o conceito saussuriano da arbitrarie­dade do signo, Lévi-Strauss mostra precisamente comoas modalidades operatórias da cultura não são redutíveisao fato natural: a rede biológica das relações naturais deparentesco é arbitrariamente reestruturada pelos sistemassociais de parentesco, o "pensamento selvagem", comsuas taxinomias, insere uma descontinuidade arbitráriano conjunto contínuo das espécies animais e vegetais,assim como todo sistema fonológico torna discreto aquelecontinuum constituído por todos os sons disponíveis innatura. Numa palavra, o estímulo natural faZ-se signo,e passa a obedecer a leis estruturais que lhe são peculia­res. Neste sentido, e precisamente do ponto de vistagenético, adquire uma revelância particular a propostasaussuriana de uma ciência semiológica " que se deli­neia, no limite, como ciência daquela atividade articula­tória, estruturante, que é própria do operador humano

7. ~ significativo que para Cassirer (F.F.S., 1961-66) o conceitode "simbólico" não se refira s6 à atividade expressiva em sentido comum(linguagem, arte, mito, etc... ) mas a um conjunto de atividades dosujeito (da percepção ao conhecimento cientifico). A razão disso estáno fato de, partindo de uma investigação da "função" (da atividadllconstitutiva), e no do obJeto constitufdo, Cassirer pretender definir asmodalidades genéticas da cultura segundo as leis que lhe são próprias,Na medida em que se coloca entre parênteses a hipótese de uma "coisaem si" de uma "natureza" pré-constituída que as várias produções dosujeito se limitariam a refletir (por exemplo, no caso da percepção),abre--se o discurso s.obre as modalidades intrínsecas (e não mais dadallpelo objeto) destas produções. Dai o caráter unitário da atividade sim­bólica, que é de qualquer modo e sempre "constitutiva" (também. porexemplo, ao nível da percepção) e a problematicidade do texto de Cu­sirer. que se propõe mostrar tanto este aspect() unitário e relacional DOinterior do sujeito. quanto a especü!cidade das vátlas estruturas (percepção,linguagem, etc.).

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6. IMPLICAÇOES FILOSóFICAS NAANTROPOLOGIA DE CLAUDE

LflVI-STRAUSS

O problema que surge preliminarmente diz respeitoao caminho a ser seguido para um exame filos6fico daobra de Lévi-Strauss. E necessário deixar de lado ime­diatamente a solução mais cômoda ou, pelo menos naaparência, mais óbvia, que consiste em isolar no inte­rior da problemática antropol6gica as generalizaçõesmais imediatamente filos6ficas - apresentadas pelopr6prio autor ou conseguidas mediante um progressivoesvaziamento das instâncias mais concretas - e consi­derá-las em seguida à luz de certas coordenadas filo­s6fico-culturais, deixando filtrar o que pode ser assimi-

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lado pela perspectiva adotada e ignorando aqnilo quese lhe revela refratário. Mas não se trata de estabelecer"comparações", o que acaba inevitavelmente por levara discussão para o terreno preconceituoso das petiçõesde princípio, e sim de encontrar os problemas concretospostos pela antropologia de Lévi-Strauss à investigaçãofilosófica. As páginas que se segnem têm precisamenteo propósito de fornecer uma contribuição neste sentido,constituindo o terreno preparatório para uma reflexãocrítica ulterior.

1. O problema do outro e a objetividade

Adotemos, como ponto de partida, aquilo queLévi-Strauss chama a "dúvida antropológica" (L./.,1965 a, p. 34), isto é, a exigência de que a pesquisadeva tomar, preliminarmente, a atitude de um autên­tico questionamento do saber adquirido. :l! o próprioparâmetro da "normalidade" - como concreção ideo­lógica do homem branco, adulto e civilizado ­que deve ser posto em questão, não já para tentar ins­tituir um relativismo cético, mas para verificar sob quecondições é possível o próprio conceito de universali­dade. O que é a temática do "exotismo" senão a ten­tativa de confinar no irracional e no estranho uma expe­riência diferente da nossa? Com efeito, a etnologiatradicional só tinha dois caminhos, para garantir a boaordem de uma suposta objetividade cientifica: ou re­meter o universo de pensamento dos chamados primi­tivos para a natureza, a animalidade, ou reduzi-lo a umestádio embrionário do nosso. Na realidade, este redu­cionismo não atingiu apenas a experiência primitiva, mastambém a patológica e a infantil. E significativo que aPsicopatologia e a Psicologia Infantil exijam, tal comoa Etnologia, uma espécie de reviravolta da perspectiva:a primeira tornando evidente a dependência do com­portamento "anormal" em relação ao contexto social,sua pertinência ao "sistema total" (l.M., 1950, p. XX),e a segnnda dirigindO a investigação exatamente paraaquilo que o pensamento infantil possui em comum como pensamento adulto (sem, por outro lado, comprometerSua esfera de especificidade). Em particular, é precisosublinhar que a tematização do pensamento infantil nãosignifica tanto um regresso a certas formas "arcaicas"

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e rudimentares do desenvolvimento do pensamento,quanto nma tentativa de isolar um estrato ainda ope­rante no adulto mas, por assim dizer, latente. Para cap­tar o fundamental é necessário, portanto, ir além daesfera do adquirido:

As observações da Psicologia Infantil revelam [ . . . ] meca·nisIDOs [ ... ] dificilmente captáveis na análise teórica, pois cor·respondem a exigências e a formas de atividades fundamentaise. justamente por isso, sepultadas DOS recônditos mais profun­dos da mente. A criança deixa-as perceber, não porque seupensamento ofereça a imagem de um pretenso "estádio" da evo­lução intelectual, mas porque sua experiência sofreu em graumenor que a do adulto a influência da cultura particular a quepertence (S.E., 1967, p. 99).

De maneira semelhante, o qne caracteriza a Etno­logia é a abertura para o outro. Tal atitude exige, antesde mais nada, a suspensão das categorias operantes nopensamento constituído: isto é, põe em questão tanto apsicologia intelectualista do "adulto europeu" quanto ospróprios quadros da lógica tradicional (l.M., 1950, p.XXX; A.S., 1958, p. 228). Mas qual é o significadodeste alargamento da experiência? Sua tarefa não é sórevelar·nos uma experiência estranha à nossa, mastambém, e principalmente, trazer à luz certas funçõesuniversais do sujeito humano: a investigação etnológicanos levará a mudar, além da imagem que tínhamos do"primitivo", a imagem que tínhamos de nós mesmos. Adistância introduzida entre o observador e a sociedadeestudada é garantia de objetividade, na medida em queimpede a identificação do observador com seu objeto, aredução deste último à perspectiva pré-constitnída doprimeiro. Mas ao mesmo tempo esta distância não pos­sui um caráter exclusivamente limitativo: constitui o ter­reno de uma possivel comunicação. Se a estranhezaeutre o observador e seu objeto é total, se eles não dis­põem de nada em comum, então este objeto se fechaem sua opacidade e permanece refratário à investigação,e a própria diferença (a diferença entre as duas culturas- através da qual o outro se constitui enquanto tal)torna-se ininteligivel (T.T., 1955, p. 33; 1957, pp. 356­-357). O conceito de objetividade assume então um valorproblemático, não marCa mais somente uma ruptura,uma distância, mas também uma reciprocidade, umasolidariedade entre o observador e o observado - dá

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lugar ao paradoxo de um objeto que seja "objetiva­mente muito distante e subjetivamente muito concreto",de uma verdade que se situa "na intersecção de duassubjetividades" (L.I., 1965 a, pp. 13 e 14). Na rea­lidade, o que caracteriza a iuvestigação etnol6gica é arecusa da antinomia entre sujeito e objeto, pois estaciência visa àquela estratificação da experiência socialonde o individuo está sempre inserido numa rede deinstituições objetivas e onde as relações objetivas (porexemplo um sistema de parentesco) são sempre expe­rimentadas por uma consciência. A apreensão do fatosocial é concreta enquanto totalizante, envolvendo numúnico movimento as propriedades objetivas e a expe­riência subjetiva: desta perspectiva, não tem sentido,por exemplo, falar de qualidades primárias e quali­dades secundárias, pois a instância última em funçãoda qual a análise antropol6gica pode ser verificada éconstituída pela experiência vivida:

não podemos nunca estar certos de termos captado o sentidoe a função de uma instituição, se não conseguirmos reviver suaincidência sobre uma consciência individual [ ... l. Toda inter­pretação válida deve fazer coincidir a objetividade da análisehistórica ou comparativa com a subjetividade da experiênciavivida [... l. Em nenhum caSo a cicatrização histórica ou geo­JU"áfica poderia fazer esquecer ao sujeito [ ... ] que estes ohjetos[os ohjctos da etnografia] derivam dele e que a análise delesrealizada da maneira mais objetiva não poderia deixar dereintegrá-los na subjetividade (I.M., 1950, pp. XXVI-XXX). ~

O problema da relação entre a experiência con­creta e a análise científica aparece freqüentemente nasobras de Lévi-Strauss. Quanto a este ponto, seu pen­samento tem sido amiúde objeto de mal-entendidos(como no caso do ensaio, aliás profundo, de Ricoeur),na medida em que a investigação estrutural foi identi­ficada com uma análise meramente formal. Mas destamaneira se absolutizava, abstraindo-o de todo o restante,o que na realidade é uma fase preliminar e fundamentalda pesquisa. A definição da forma (estrutura) intrín­seca do objeto estudado, a delimitação e o isolamentode seus traços pertinentes, o estudo imanente de seusnexos essenciais, independentemente do problema de suagênese ou de suas relações com o exterior (motivaçõesbiológicas ou psicológicas, influências sociais, etc.). Oestudo do sistema de parentesco, por exemplo, exige pre­liminarmente uma abordagem do interior, voltada para

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a definição das estruturas lógicas internas, ignorando­-se as relações existentes entre este sistema e a organi­zação econômica e social, outras esferas de crenças, etc.Poderia ser referido a esse problema o que Hjelmslevescreve a propósito da linguagem:

(A nossa hipótese) nega o direito de considerar a lingua­gem como mera função biológica, psicológica, fisiológica, socio·lógica. Ela não nega o fato de a linguagem desempenhar estasfunções, o que seria absurdo; nega somente que este fato esgotea essência do seu ser (Hjelmslev, E.L., 1959, p. 23).

Mas, por outro lado, uma vez cumprida esta im­prescindível exigência metodológica, a Antropologia sedefine, em relação à linguagem, pelo caráter concreto desua investigação (A.S., 1958, pp. 79-80). É certo quea análise dos vários níveis do conjunto social nos. revelaque cada um deles constitui um sistema, que portantoé suscetível de ser estudado por meio de modelos ideaiscujo valor heurístico é função de sua generalidade, masé também verdade que todo sistema nasce de uma praxisinter-humana e que a realidade social é um conjuntoarticulado onde os vários níveis se encontram numa re­lação de interação. Se o fato social é um todo, suaapreensão não pode ser parcelada e deve sempre pro­ceder ao isolamento dos nexos essenciais que rela­cionam os diferentes estratos. E, em outros termos,o problema da relação entre o abstrato e o concreto.Deve-se lembrar que, sob este aspecto, a resposta for­necida por Lévi-Strauss se aproxima da oferecida porMarx na Introdução à critica da economia politica: paraLévi-Strauss a investigação antropológica se desenvolvesegundo um movimento que vai do concreto (riquezade determinações imediatas no material etnográfico) aoabstrato (constituição do modelo) e daqui novamenteao concreto (agora como realidade estruturada e refe­rida à experiência do sujeito social) (cf. S.F., 1960, p.123). A experiência concreta desempenha portanto opapel de ponto de partida e de chegada: é por isso que,segundo Lévi-Strauss, Uos princípios de uma classifi­cação não devem nunca ser postulados; somente a pes­quisa etnográfica, isto é, a experiência, pode descobri­-los a posteriori" (PS., 1962, p. 79); correlativamente, aúltima instância a que devem ser remetidos os resul­tados da investigação é o fato social tal como é vivido

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pelo sujeito (Mauss: "O melanesiano desta ou daqnelailha", I.M., 1950, p. XXV). O recurso ao modelo (in­clusive matemático) é portanto essencial para a com­preensão da realidade etnográfica, mas com a condiçãode o próprio modelo poder fundar-se nessa realidade(veremos como este problema está ligado ao do incons­ciente) e de possuir um valor heurístico, não-absoluto.A descoberta, por exemplo, de relações de homologia,oposição e correlação entre uma multiplicidade de fenô­menos "totêmicos" não é exaustiva em relação à reali­dade concreta (embora possua uma exaustividade in­terna, no âmbito do sistema estrutural estudado): sejaporque há sempre uma redundância irredutível, sejaporque, ao nível etnográfico, subsiste uma defasagementre a regularidade matemática do modelo e o fenô­meno empírico (cf. S.E., 1967, p. 511). Em outrostermos, como fica bem claro no ensaio sobre Propp, ainvestigação nunca pode limitar-se à sintaxe, precisadirigir-se também ao léxico, a análise morfológica nãopode prescindir da observação etnográfica concreta. Ésempre possível operar ao nível da sintaxe com ummétodo de transformações, mas correlativamente estastransformações devem ter seu eqnívalente no plano doléxíco, o qual, por sua vez, está ligado à realidade etno­gráfica. Assim, no estudo da série de mitos bororos exerentes sobre a origem da cozinha, a inversão das fun­ções respectivas do fogo e da água, que se verifica pas­sando dos Bororos aos Xerentes, tem seu correlato numadiferenciação da situação ecológica e religiosa das duastribos, descoberta pela observação etnográfica. Dadoque em virtude de um modo diferente de experimentara realidade ambiental e de pensá-Ia num sis>tema de cren­ças, a conotação do fogo ou da água é benéfica parauns e maléfica para outros, a transformação lógica seimpõe. Mesmo gozando de uma autonomia relativa(garantida pelo fato de as relações entre as várias mani­festações de vida do grupo nunca serem relações dedependência mecânica, mas consentirem - através deuma longa série de mediações - um certo jogo), adimensão mitica está relacionada com todas as outras:com a religiosa assim como com a econômico-social, etc.;e é exatamente com esta realidade estratificada que ainvestigação estrutural deve comparar seus resultados(C.C., 1964, pp. 199-202 e 337-342). Reencontramos

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assim a idéia de fato social total que, como vemos,denota esse conjunto articulado tal qual é experimentadopor mu sujeito concreto. Se por outro lado passamosa considerar a posição da subjetividade no interior daanálise antropológica, constatamos que ela se encontrasempre presa nmua rede de relações inter-humanas. Jáa este nível, antes mesmo da convergência metodológica,transparece a afinidade entre a Antropologia Estruturale a Lingüística: em ambos Os casos a estrutura fun­dante é a da reciprocidade. Tal como a linguagem, osistema de parentesco tem a função de instituir umcampo aberto de comunicação, no qual cada sujeito sóse define por sua situação em relação ao outro. SegundoLévi-Strauss, é neste terreno que se dá a passagem danatureza para a cultura. Arrancando o individuo dasua mera constituição biológica, a proibição do incestotorna-o disponível para a coexistência; com a passagemda consangüinidade para a alliance, ele não se situamais apenas em relação à família biológica, mas tambémem relação ao grupo, e a regra exogâmica tem justa­mente a função de assegurar a permanência do grupo,que ficaria seriamente comprometida se a família bio­lógica se fechasse sobre si mesma e subtraísse seus indi­viduos à circulação no seio do próprio grupo. Por de­trás de sua conotação negativa, a proibição do incestoesconde na realidade uma norma positiva, pois a renún­cia a encontrar o companheiro no âmbito da própriafalUl1ia biológica siguifica ao mesmo tempo, para osujeito, a reivindicação de introduzir uma outra mulherno grupo. E com efeito a regra exogâmica constitui onúcleo originário, ainda indeterminado, de toda formade troca. Sob este aspecto, mesmo a propriedade sedefine em termos de relação: o bem possuído (seja muamulher, ou um objeto, ou mu sinal) é apenas o pontode partida ou de chegada de uma constelação de rela­ções, e não basta mais a necessidade de satisfação paradefini-lo, mas um conjunto de relações significantes (porexemplo, com a idéia do dom, ou do sacrifício, ou doprestígio: em cada caso cOm momentos intersubjetivos)que ajuntam ao seu valor biológico ou econômico umvalor semiológico. Se na linguagem os elementos cons­titutivos valem menos por suas propriedades intrínsecasdo que pelas relações que os ligam nmu sistema dedesvios diferenciais, nos sistemas de parentesco as mu~

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Iheres - isto é, os objetos e os instrumentos da comu­nicação se configuram como valores num conjunto derelações de reciprocidade, sustentado por princípios deoposição e correlação análogos aos que estão subjacentesà comunicação lingüística. Esta exigência de reciproci­dade é preenchida, conforme as diversas configuraçõessociais, por formas de troca mais ou menos complexas(troca limitada ou generalizada, organização em meta­des, seções ou subseções, etc., segundo modelos ideaisque não coincidem necessariamente com a realidade em­oírica, mas que constituem sempre seu critério nQrmiJ­tivo, sua trama inteligível), formas que assumem seusentido pleno à luz da estrutura relacionística inerenteao estado de sociedade.

[As regras do parentesco e do matrimônio] são o próprioestado de sociedade, o qual modifica as relações biológicas e ossentimentos naturais, lhes impõe uma posição em estruturas queOs implicam em conjunto com outros, e os obriga a superar suascaracterísticas primeiras (S.E., 1967, p. 555).

Em termos gerais, e antecipando aqui uma temáticaque será retomada mais tarde, é essencial salientar quea subjetividade não pode ser simplesmente definida emtermos de sua relação com a natureza, visto que estarelação é sempre mediada pela cultura (T.O., 1962, p.94), isto é, pelo conjunto das aquisições inter-humanas:o complexo das necessidades, das pulsões, das solici­tações biológicas, etc., se constitui desde logo a um nívelonde minha relação com o outro é operante.

2. O inconsciente

Esta relação se instaura antes de mais nada noplano do inconsciente. O encontro entre subjetividadesdiferentes não se dá apenas nas instituições elaboradasconscientemente, tendo em vista um fim intersubjetivo.mas tem a sua gênese na pertença delas a uma estruturacomum, e universalmente válida, da atividade incons­ciente. Ora, segundo Lévi-Strauss, a tarefa da Etnologiaé justamente delinear os traços essenciais desta ativi­dade, descobrindo aquelas leis universais que ligamsujeito cam sujeito e sociedade com sociedade. E ésempre através do inconsciente que se realiza o para­doxo, peculiar à Etnologia, de ser uma ciência objetiva

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e subjetiva ao mesmo tempo, pois as leis do iucons­ciente transcendem a dimensão subjetiva, são por assimdizer "externas" a ela e, ao mesmo tempo só podem sercaptadas no operar efetivo da subjetividade. Sob ofervilhar das diversas formas para que remete a ativi­dade dos sujeitos, de cultura a cultura, a Etonologia isolaas caiegorias recorrentes que constituem o fator primá­rio de toda estruturação, o substrato comum sobre oqual poderá articular-se em seguida uma série de expe­riências diferenciais. Neste caso também, a Antropo­logia Estrutural recorre ao exemplo da Lingüística e,em particular, da Fonologia. A Fonologia, com efeito,lembra Lévi-Strauss citando Trubetzkói, mostrou anecessidade de passar do estudo dos fenômenos cons­cientes da linguagem para o dos fenômenos inconscien­tes, de descobrir aquele conjunto de leis elementares euniversais que, na comunicação lingüística real, perma­necem latentes. O uso da linguagem não implica nosujeito a tematização explícita, por exemplo, dos prin­cípios de oposição e correlação que ele faz intervir nocontinuum fônico: pelo contrário, estes princípios ope­ram a um nível muito mais profundo e representam aestrutura de base mais elementar - comum a tOCos ossujeitos falantes - sobre a qual toma corpo a comple­xidade dos fenômenos lingüísticos. O ato expressivopressupõe portanto, em sua dimensão mais originária,uma teleologia (Jakobson) operante mesmo antes deser fixada pela reflexão, uma tensão para a significaçãoe a comunicação que polariza o campo fonológico inteiro.Se, à luz destas considerações, passamos a tematizaruma outra ordem da realidade intersubjetiva, por exem­plo a dos sistemas de parentesco, vemos que Deste casotambém a estruturação se efetua antes de mais nada aum nível inconsciente e que o fim essencial é ainda oda comunicação. Ora o que caracteriza o objeto daAntropologia é justamente o fato de ser pré-reflexivo(a lei age na experiência concreta antes de ser fixadana objetivação científica) e intersubjetivo (o fim daestrutura é articular, diferenciar um continuum - sejao dos sons vogais ou o das mulheres - para permitira significação, que assenta precisamente sobre um sis­tema de desvios diferenciais: e a significação é por suavez o suporte de uma comunicação entre sujeitos). Aprocura das invariantes elementares que para Lévi-

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-Strauss define a Antropologia se identifica assim coma procura de modelos estruturais que, em sua simplici­dade e universalidade, podem fazer convergir soluçõesculturais diferentes e constituem um fundo sobre o qualse encontram a minha experiência e a do outro, a expe­riência do civilizado e a do "primitivo":

Se [ ... ] a atividade inconsciente do espírito consiste emimpor formas a um conteúdo e se estas formas são fundamen­talmente as mesmas para todos os espíritos [... ] é necessárioe suficiente atingir a estrutura inconsciente, subjacente a todainstituição e a todo costume, para obter um princípio de inter­pretação válido para outras instituições e costumes, com a con­dição. claro, de a análise ser levada bastante longe (A's., 1958,p.28).

A análise das estruturas inconscientes implica por­tanto um profundo trabalho de formalização, ao cabodo qual o conceito de estrutura adquire seu pleno valorheurístico. Mas qual é o significado desta formalização?O movimento até aqni esboçado vai, assim, se preci­sando: o problema do outro nos conduziu - atravésdo problema da objetividade da investigação - ao doinconsciente como fundamento da intersubjetividade,como termo mediador numa comunicação: a partir daí,enfim, passamos a nos perguntar que significado tem eque posição ocupa no âmbito desta temática a idéia deestrutura.

3 . A idéia de estrutura

Antes de mais nada é necessário não cair na ten­tação de traduzir o conceito de estrutura através defórmulas como "o todo não é a simples soma das par­tes" ou de identificá-lo simplesmente com a exigênciade uma consideração das relações constitutivas do con­junto. Toda fórmula deste gênero resultaria aqui par­cial e indeterminada, até se levar em conta tanto asmotivações de fundo que levaram à constituição da in­vestigação eslrutural como o alcance metodológico destainvestigação. Na realidade a simples reivindicação deuma consideração totalizante dos fenômenos estudadosainda não uos esclarece a respeito das relações quedevem existir, no interior do sistema em questão, entreos elementos constitutivos do próprio sistema (pois estestanto podem ser concebidos nos termos de uma causa­lidade mecânica como nos de uma interdependência dia-

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lética), assim como deixa em aberto o problema darelação que o modelo obtido mantém com a experiênciaconcreta (trata-se de uma mera abstração teórica ou deum esquema já operante a um nível mais originário?)As páginas anteriores forneceram uma resposta, pelomenos parcial, a este segundo problema: a determina­ção do caráter inconsciente do modelo estrutural fazdele, não só uma instância analítica, mas também umprincípio efetivo de articulação, de organização da ati­vidade mental: veremos mais tarde que esta formulaçãoesconde por sua vez um grande nó problemático. Con­vém portanto orientar o discurso para a outra questãoe assumir como ponto de partida aquilo que já surgiu,embora marginalmente, de uma ordem diferente de con­siderações: isto é, o fato de, preliminarmente, a investi­gação estrutural visar à delimitação, através de umatematização imanente, da forma essencial do objeto estu­dado tal como ele se configura em sua tipicidade e inde­pendentemente de considerações de ordem externa. Destamaneira, porém, se fornece uma indicação metodológicaque, apesar de fundamental, não esgota todo o cursoda investigação estrutural. Se, por exemplo, conside­ramos o problema dos sistemas de parentesco, vemosque a fixação de alguns modelos elementares (princípiode reciprocidade, troca limitada e generalizada, casa­mentos entre primos cruzados, etc.) é concomitante àanálise das formas, quase sempre complexas, assumidaspor estes modelos no contexto etnográfico concreto.Mais: a atividade lógica que leva à constituição dossistemas de parentesco se inscreve numa praxis maiscompreensiva, que determina a constituição das rela­ções intel-humanas (sociais, econômicas, religiosas, etc.),particularmente a constituição da esfera lingüística. Oobjetivo é portanto duplo: por outro lado, trata-se deevitar que a caracterização de um nível específico sejafeita por mera dedução, a partir de outro nível assu­mido como privilegiado; por outro lado, quer-se impedirque os diversos componentes da realidade antropológicase transformem em outros tantos compartimentosestanques. •

Este segundo aspecto aparece de forma particular­mente nítida nas páginas que Lévi-Strauss dedicou aoproblema do chamado totentismo. Não é por acaso queele sublinha como primeira exigência a de dessubstancia-

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lizar o fenômeno "totêmico", de arrancá-lo da crista­lização à qual a Etnologia tradicional o tinha subme­tido, fazendo dele uma realidade autônoma (T.O., 1962a,p. 66). Esta crítica se desenvolve simultaneamentesobre dois eixos; isto é, visa a dissolver a "atomização"dos elementos constitutivos do pretenso totemismo, seuparcelamento em entidades dotadas de um significadointrínseco (associação de uma espécie animal ou vege­tal com um grupo ou uma classe, sistema de denomi­nação, proibições alimentares, etc.), insistindo na mul­tiplicidade de relações que ligam o fenômeno particularao contexto global e lhe conferem seu poder significante;correlativamente, visa fazer sair o totemismo dos limitesque tradicionalmente lbe foram impostos, para inseri-lonuma estrutura de conjunto onde ele deixa de definir-secomo forma fechada e auto-snficiente. Surge assim umaprimeira peculiaridade do método estrutural: cada uni­dade constitutiva do conjunto estudado é destituída deseu caráter de coisa e passa a confignrar-se como umemaranhado de relações: o sentido desta unidade nãoé intrínseco, e sim de posição, e só pode ser captadodepois de ter sido permutado em todos os seus contextos(S.F., 1960, p. 26). O fulcro da investigação não émais constitnido pelos elementos em si mesmos, maspelas relações entre eles estabelecidas, pois somente asrelações são constantes, ao passo que os elementospodem variar (sem contudo serem arbitrários). A estru­tura relacional se manifesta portanto desde as unidadesconstitutivas de base, e é focalizada por toda uma sériede oposições e correlações:

o método comparativo consiste em integrar um fenômenoparticular num conjunto que é tornado mais geral pelo desen­volvimento da comparação (T.O., 1962 a, p. 122).

Consideremos, por exemplo, a análise dos mitos.Antes de mais nada é preciso proceder à decomposiçãosintagmática da pura narração mítica, isolando as uni­dades constitutivas da seqüência; em segnndo lugar, cada

• uma destas unidades deve ser inserida num conjuntoparadigmático: e só depois que esta operação tiver sidoacabada ela poderá apresentar um sentido. Originaria­mente, não se pode atribuir um sentido próprio à cadeiasintagmática,

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a significação reside inteiramente na relação dinâmica quefunda simultaneamente vários mitos ou pares do mesmo mito,e, por efeito dela, estes mitos, e estas partes, são promovidosà existência racional e chegam juntos ao fim, como pares opo­níveis de um mesmo grupo de transformações (C.C., 1964,pp. 313-314).

Em seguida podem ser isoladas certas unidades debase, os mitemas, que, semelhantemente aos fonemas,valem pelas relações de oposição e correlação que manotêm entre si. O campo originário, que inicialmenteparecia composto por uma massa confusa de elementosheterogêneos, começa deste modo a revelar linhas deforça, centros de articulação, entre os quais trauspareceuma primeira dimensão de sentido. Esta procura dasrelações constitutivas da totalidade não deve porém serconcebida em termos reducionistas, como nivelamentode certas unidades a outras unidades, mas antes comouma procura de hom%gias que preserva os níveis deespecificidade e garante - graças a uma série de per­mutações uma conexão dialética e não mecânica. Justa­mente por este motivo, o conteúdo não representa umdado puramente exterior e indiferente em relação àforma. E certo que, principalmente em polêmica coma teoria junguiana dos arquétipos, Lévi-Strauss insisteno fato de só as formas e não os conteúdos poderemser comuns, (P.S., 1962, p. 88), que à constância dasformas se contrapõe a variabilidade dos conteúdos(S.F., 1960, p. 16), mas por outro lado sublinha que,longe de constituirem uma antinomia, forma e conteúdosão suscetíveis da mesma análise estrutural, pois a não­-arbitrariedade dos conteúdos é revelada pela sua trans­formabilidade recíproca, mediante permutações que res­peitam as condições impostas pela estrutura de con­junto:

o conteúdo deriva sua realidade da sua estrutura, e o quese define como forma é a "estruturação" das estruturas locaisem que consiste o conteúdo (S.F., 1960, p. 22).

A definição de forma e conteúdo como "pontos devista complementares" (C.C., 1964, p. 106), como •momentos correlativas da investigação estrutural, tra­duz na realidade uma atitude mais geral, que é de recusada oposição entre o abstrato e o concreto. Esta obser­vação nos remete para outro problema, que já apareceu

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nas páginas anteriores: o da natureza e limites da for­malização. Com o avanço da investigação estrutural osistema estudado tende cada vez mais a manifestar suaunidade interna, sua coesão e seu caráter exaustivo emrelação aos fenômenos examinados. As estruturas des­cobertas perdem progressivamente sua particularidadeinicial e tendem a generalizar-se, por trás da multipli­cidade dos dados empíricos transpareoem relações cadavez mais simples que, pela sua recorrência, abrangemum campo de fenômenos muito amplo e garantem suainteligibilidade: desenha-se então como termo ideal aexistência de uma meta-estrutura. Mas a unidade assimexplicitada não é uma forma fechada sobre si mesma,caracteriza-se por uma constante abertura para o evento,por uma capacidade de extensão. Sua exigência de COe­rência de um lado a leva a uma espécie de "conserva­dorismo" e a colocar em primeiro plano o problema desua própria sobrevivência, por outro lado a induz aassimilar o maior número possível de eventos, a vivernum estado de tensão permanente:

todo sistema é simples e coerente, mas está sempre rodeadopor outros sistemas, que assentam em princípios que lhe sãoestranhos (S.E., 1967, p. 529).

Exatamente na medida em que é ideal, a unificaçãovisada pela investigação estrutural nunca é concluída: asestruturas, nascendo de relações inter-humanas concre­tas, têm uma vida e uma história.

Não existe um termo verdadeiro e final da análise mítica,nem uma unidade secreta, que possa ser captada no fim do tra­balho de decomposição [ . . . l. A unidade do mito é apenas ten­dencial e projetiva [ ... ] O conjunto dos mitos de uma popu­lação pertence à ordem do discurso. A não ser que a popula­ção se extinga física ou moralmente, este conjunto nunca éfechado (C.e., 1964, pp. 13-15).

Encontramos assim o problema das relações entrediacronia e sincronia.

4 . Diacronia e sincronia

Como é retomada por Lévi-Strauss a distinção saus­suriana entre estas duas dimensões da temporalidade?Mas talvez seja necessário, antes mesmo de pôr este

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problema, sublinhar o fato de o sentido desta oposição

freqüentemente ter sido mal compreendido, seja ao atri­

buir-lhe um valor antinómico, quando ela tem antes demais nada uma função metodológica, seja não levando

em conta o enrijecimento que ela pode ter sofrido na

redação do Cours devida a Bally e Sechehaye (cf.Oodel, S.M...., 1957). De qualquer modo, não há

dúvida de que a formulação saussuriana reflete uma visãoparcialmente mecanicista, que sua concepção do tempoé ainda tributária, em ampla medida, das velhas teorias

atomisticas e que, pelo menos nas páginas do Cours, a

dimensão diacrónica tende a contrapor-se à sincrónica

como fator inverso. É sabido que a Escola de Praga

criticou estes pontos de vista: em particular, Jakobson

mostrou como uma concepção teleológica da linguagem

implica uma consideração renovada da diacronia, que

revela sua estruturação em vista de um fim e recusa aredução atomística e mecanicista do tempo (Jakobson,

S.W., 1962, pp. 1-6 e 327; E.L.G., 1963, pp. 36-37)e como é justamente em virtude desta perspectiva teleo­

lógica que é superada a falsa antinomia entre diacroniae sincronia:

Seria um eITO grave considerar a estática e a sincronia

como sinônimos. O corte estático é uma ficção: é só um pro­

cedimento científico auxiliar, não um modo particular do ser

[ ... l. As tentativas de identificar a sincronia, a estática e o

campo de aplicação da teleologia de um lado, e a diacronia, a

dinâmica e a esfera da causalidade mecânica de outro [... ]

criam a ilusão superficial e nociva de um abismo entre os pro­blemas da sincronia e os da diacronia (Jakobson, in: Tru·

betzk6i, P. Ph., 1964, pp. 333-336).

E significativo que Lévi-Strauss se refira justamente

a estas páginas para colocar o problema da relação entrediacronia e sincronia na investigação antropológica.Antes de mais nada ele reconhece na distinção saussu­riana um significado metodológico preliminar, assente

na necessidade, a que acima nos referimos, de proceder

à coleta dos nexos lógicos, das determinações internasdo objeto investigado, antes de investigar sua origemou sua evolução. A Etnologia parte do presente, poisgeralmente é no presente que o contexto etnográficopode ser diretamente atingido, e portanto se pode foca­

lizar a relação intrínseca entre o aspecto estrutural (a"forma", revelada pela análise científica) e o plano dos

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conteúdos (que, como se viu, está ligado à realidadeetnográfica). Na medida em que pretende ser umaprocura do concreto, a Etnologia precisa referir-se cons­tantemeute a uma realidade diretamente experimentada:em resumo, pressupõe o trabalho "de campo". De certomodo ela inverte as relações tradicionais e insiste sobrea necessidade de compreender o presente para proceder àcompreensão do passado (cf. S.E., 1967, p. 558). Umavez isso esclarecido, o problema de saber se o relativoprivilégio do sincrônico (e é necessário insistir no termo"relativo", pois a análise sincrônica não pode Duncaprescindir totalmente de considerações de ordem diacrô­nica [C.C., 1958, p. 102] revela-se um falso problema.Se a estrutura não é uma realidade estática, mas, comose viu, um feixe de relações fuudadas uuma dimensãoteleológica, a relação entre diacronia e sincronia deixade constituir uma antinomia, e a uma incompatibilidadese substitui uma complementaridade. A estrutura sin­crônica é "vulnerável" em relação ao evento: opõe-lheuma resistência própria, mas, ao mesmo tempo, dispõe­-se a assimilá-lo graças a um jogo de compensações etransformações que tem a tarefa de tornar possível asobrevivência da própria estrutura, e contudo, no limite,pode conduzir a sua dissolução numa outra estrutura.Antes de falar de conflito, portanto, é mais convenientefalar de encontro, de interação dinâmica entre a ordemda estrutura e a do evento. Se por exemplo conside­ramos a regra exogâmica (que constitui o princípio maiselementar das relações de parentesco), veremos que elaassume formas cada vez mais complexas (p. ex., a datroca generalizada), precisamente em virtude de suafuncionalidade, baseada na necessidade de garantir acirculação das mulberes deutro do grupo - aquelacirculação que em formas mais simples como aS orga­nizações duaIísticas está sempre correndo o risco deempobrecer-se, se não de anular-se (S.E., 1967, p. 544).A natureza teleológica do sistema, seu constitnir-se numapraxis intersubjetiva em vista de uma comunicação fun­ciona, portauto, como tecido de ligação entre o própriosistema e a História. O problema colocado acima deveportanto ser reformulado, dado que a

antinomia que alguns pretendem descobrir entre Históriae sistema apareceria [ ... ] só com a condição de ignorarmosa relação dinâmica que se manifesta entre estes dois aspectos.

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Como existe transição de um para outro, há entre estes lugarpara uma construção diacrônica e não~arbitrária (P.S., 1962,p. 212).

Sob este ponto de vista, parece-me que as criticaslevantadas por Ricoeur (Esprit, 1963) pressupõe umcerto equívoco. Dizer que a análise estrutural está irre­mediavelmente limitada à ordem sincrónica e que, justa­mente por causa disso, é necessariamente obrigada apermanecer no plano sintático, sem nunca poder passarao da semântica, a investigar as formas desprezandocomo insignificantes os conteúdos e perdendo assim devista o sentido, equivale a desconhecer o fato de, paraa investigação antropológica, o problema dos conteúdossemânticos não poder ser colocado separadamente dode sua inerência a uma estrutura de conjunto: é signi­ficativo o fato de Ricoeur parecer invocar, pelo menosem certos casos, o caráter intrínseco do sentido em re­lação ao signo, pondo assim em jogo toda a posiçãoestrutural, segnndo a qual o sentido não é uma proprie­dade do termo singnlar, mas surge sempre de um con­texto relacionai, de uma rede de desvios diferenciais:não está nos signos, mas entre os signos. Na realidade,a referência à Lingüística - a menos que nos limitemosà de Saussure - não implica a eliminação da pers­pectiva diacrónica, como julga Ricoeur, mas acentua aexigência de uma integração das duas perspectivas:

[ .. . ] entre todas as ciências sociais, só uma atingiu o pontoonde as explicações sincrônica e diacrônica se confundem,dado que a primeira permite reconstituir a gênese dos sistemase proceder a sua síntese, ao passo que a segunda põe emevidência sua 16gica interna e capta a evolução que os dirigepara um fim. Esta ciência social é a Lingüística. concebidacomo um estudo fonológico (S.E., 1967, p. 558).

Na investigação do pensamento dos "primitivos" e,em particular, de seus mitos, o problema da temporali­dade surge com toda sua evidência, em conexão como da estrutura musical dos mitos.

5. O pensamento concreto

Convém afugentar imediatamente o fantasma deuma pretensa mentalidade primitiva, dado que o pensa­mento "selvagem" se revela não já como uma forma

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destorcida ou arcaica do uosso, mas como uma expe­riência dotada de uma lógica interna que é tão exigentee rigorosa como a que é realizada pelo pensamento "oci­dental". Quando por exemplo um indigena usa, parao seu sistema de classificação, certas categorias repre·sentadas pelas espécies animais, não se deve ver nissouma exigência Hanimista" (conceito equívoco, que narealidade escoude sempre a convicção de que o indígena- como em outros casos a criança - não sabe pen­sar), mas pelo contrário uma exigência lógica: a sub­divisão das espécies animaís ou vegetaís ínstitui paraele um primeiro esboço da articulação do real, introduzaquela descontinuidade que é preciso enxertar sobre ocontinuum originário, se queremos que uma certa fisio­nomia, um certo sentido, comece a surgir. Ora o pensa­mento "selvagem" opera justamente através de um con­junto de desvíos iliferenciaís - tal como o sujeito falante"empobrece" e seleciona o continuum sonoro por meiode oposições e correlações (só estando assim articuladaa matéria pode desempenhar o papel de substrato deuma significação), do mesmo modo o pensamento sel­vagem institui no ínterior da totalidade empírica umsistema de oposíções graças ao qual esta totalidade co­meça a estruturar-se e a tornar-se disponível para umaatividade de sigrtificação. Na base de toda conceitua­llzação, portanto, há sempre a instituição de uma des­continuidade: a atividade de significação assenta anfesde mais nada num poder de articulação. Fica imedia·tamente claro que esta ordem de problemas não temimportância apenas lingüística e antropológica, mastambém gnosiológica: justamente por isso, talvez, aquestão de uma atividade articulatória originária pode­ria constituir um dos pontos de passagem das investi­gações que dizem respeito à esfera perceptiva para asque dizem respeito à esfera lingüística. Mas o discursoé demasiado complexo e por enquanto não pode ir alémdessa simples indicação problemática. Limitamo-nosportanto a sublinhar que a significação pressupõe sem­pre um trabalho de recorte, que ela é diacrítica e nãopositiva: a atividade simbólica se exprime inserindo osdados naturais num sistema de desvios diferenciais, e éjustamente nesta liberdad., da cultura em relação ànatureza que assenta a arbitrariedade (a não naturali­dade) do signo. Mas quais são, se é que existem, os

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limites desta arbitrariedade? A resposta de Lévi-Straussé conhecida: o signo é arbitrário a priori, mas não aposteríori:

quando consideramos o vocabulário a posteriori, isto é, ovocabulário já constituído, as palavras perdem muito de suaarbitrariedade, já que o sentido que lhes atribuímos não émais somente função de uma convenção. Ele depende do modocomo cada língua decompõe [découpe] o universo de signifi­cação de onde retira o termo [ ... l. Assim, o caráterarbitrário do signo lingüístico é apenas provisório. Uma vezcriado o signo, sua vocação se precisa, de um lado em funçãoda estrutura natural do cérebro, e de outro lado em relaçãocom o conjunto dos outros signos, isto é, o universo dalíngua, que tende naturalmente a constituir~se em sistema (A.S.,1958, pp. 107-108).

O que aqui se volta a propor é, por outras pala­vras, o problema semiológico: a cultura (como vidaem sociedade) submete os dados naturais, ou mais emgeral os objetos, a um processo que poderíamos definircomo semantização: o fonema não é mais um simplessom vogal pertencente ao mundo natural dos ruídos, éum instrumento (por si mesmo não significante) designificação: a posse de um bem não representa apenasa satisfação (ou a possibilidade de satisfação) de umanecessidade biológica ou econômica, mas por exemplono potlatch, uma possibilidade de troca ritual ou umsímbolo de prestígio baseado na idéia de reciprocidade;a variedade das espécies animais ou vegetais perde seusignificado exclusivamente biológico e se confignra, aosolhos do pensamento indígena, como um instrumentocapaz de articular ou organizar a totalidade do nni­verso. A cultura, portanto, não se limita a sofrer pas­sivamente o dado natural, mas e1abora-o em vista deuma significação ou - também - de uma comuni­cação; e ela o faz precisamente, numa fase inicial,estruturando aquele dado, submetendo-o a um trabalhode diferenciação, instituindo nele um sistema de des­vios, operando uma seleção ativa, dado que existe, noestado natural, um excedente dos significantes possíveisem relação aos significados. Por este caminho se con­fignra, portanto, uma certa proeminência do social emrelação ao natural. A cultura dispõe agora de um cam­po de autonomia no qual pode aprofundar-se, mesmosem romper os vínculos que a unem à natureza. ~ porisso que a hipótese funcionalista é sempre parcial. Antes

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ainda de nos pergunbumos para que serve uma certainstituição, de remetê-la para a esfera das necessidadesbiol6gicas, devemos estudar sua tipicidade essencial paradepois inseri-la no contexto das relações de cultura.Consideremos, por exemplo, o problema das chamadasclassificações totêmicas. As qualidades sensíveis ine­rentes a cada espécie animal ou vegetal aparecem aquicomo instrumentos operativos que permitem realizar umaconceituação do real; utilizando as diferenças constatá­veis entre elas (e orgauizáveis numa série de oposiçõese correlações), o pensamento indígena pode empreenderum trabalho de estruturação do universo fisico e social.Através das propriedades naturais, este pensamento ex­prime concatenações 16gicas, as quais participam de umaatividade sistemática geral, tendente a verificar comotudo tem um sentido e como toda coisa participa deum sistema de relações significantes. Trata-se portantode uma atividade totalizante que pretende não deixarescapar nada, seja para cima (isto é, para os níveis demaior abstração e universalidade: categorias), seja parabaixo (isto é, para as individualidades singulares e con­cretas: nomes pr6prios). Sob este aspecto adquire rele­vância particular a noção de espécie, que tem justa­mente a missão de garantir a passagem dos niveis supe­riores para os inferiores e vice-versa, e funciona, porassim dizer, como charneira, como elemento mediadorentre a universalização e a individuação. :B portantopossível falar de uma atividade l6gica geral, no interiorda qual vai tomar lugar aquele conjunto de fenômenosque antigamente eram isolados sob o nome de tote­mismo. A noção de totemismo assentava no pressupostode que os indivíduos concebiam uma relação "substan­cial" entre as várias espécies animais ou vegetais e osvários grupos ou indivíduos humanos, enquanto na rea­lidade Se trata de uma relação de homologia que par­ticipa de um contexto taxinômico mais amplo:

quando a natureza e a cultura são concebidas como dois sis­temas de diferenças entre os quais existe uma analogia formal,o que é colocado em primeiro plano é o caráter sistemáticopróprio de cada um dos dois reinos (P.s., 1962, p. 154).

Estabelecendo uma rede de relações de oposição,correlação e homologia, a atividade taxinômica visa a umuniverso estruturado, no qual cada elemento do real

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(seja um homem, uma coisa, um animal ou uma planta)se define por sua relação com a totalidade dos outros,torna-se significante graças ao conjunto de desvios dife­renciais em que se insere. Mas qual é o nexo entre aconoeituação teórica e a esfera das relações sociais, entreo pensamento indígena e as condições práticas de vidado grupo? fi preciso, antes de mais nada, excluir umarelação de dependência linear. Como se viu, a ativi­dade de conoeituação exercida pelo indígena goza deuma autonomia própria, não é o reflexo mecânico desuas condições reais de vida. Ela pode, por assimdizer, "dialogar consigo mesma", seguir linhas de desen­volvimento que não são apresentadas diretamente pelasmodalidades práticas da sua relação com o ambiente:estudando as taxinomias definidas como "primitivas",descobre-se até um gosto efetivo pela atividade espe­culativa, um desejo de conhecimento, em virtude doqual

o universo é objeto de pensamento pelo menos na mesmamedida em que é um meio para satisfazer necessidades.

Correlativamente, a história das sociedades e dasculturas não é redutível a seu aspecto "biológico", maspressupõe o reconhecimento dos vários níveis de espe­cificidade em que o fato social se articula (R.H., 1952,p. 249). Conforme atrás se viu, nas classificações "to­têmicas" os animais, as plantas ou as coisas em geralnão agem mais só como estímulos naturais, mas antescomo signos: além de servir como alimento, o animalagora "serve para ser pensado" (T.O., 1962 a, p. 93).Se por outro lado, uma vez garantida a autonomia dasestrnturas lógicas através de uma investigação imanenteque as considera exclusivamente em sua tipicidade essen­cial, tematizamos o contexto etnográfioo concreto (e,como se viu, entre estes dois momentos não há relaçãode prioridade, mas, pelo contrário, de complementari­dade), peroebemos que não estamos tratando com duasordens de considerações estranhas uma à outra. Assim,por exemplo, a análise do princípio de reciprocidade(regra exogâmica), que representa o princípio "lógico"mais elementar dos sistemas de parentesco, nos conduzao problema da escassez das mulheres no interior dogrupo (S.E., 1967, p. 45). Recusada a hipótese fun­cionalista, é necessário procurar, entre as várias dimen-

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sões constitutivas do fato social, uma relação que lhegaranta a especificidade e ao mesmo tempo a comple­mentaridade: ou melhor, é necessário procurar "umaorigem simbólica da sociedade". A cultura passa assima configorar-se como um conjunto de sistemas simbó­licos irredutíveis uns aos outros e ao mesmo tempo rela­cionados por todo um substrato de mediações. Em par­ticular, no que diz respeito à relação entre a esfera daatividade conceitual e a esfera das relações sociais, Lévi­-Strauss escreve:

Apesar de existir sem dúvida alguma uma relação dialéticaentre a estrutura social e o sistema das categorias, este últimonão é wn efeito ou um resultado do primeiro: ambos tra­duzem, à custa de laboriosos ajustes ,reciprocos, certas moda­lidades históricas e locais das relações entre o homem e omundo que constituem seu substrato comum (P.S., 1962, pp.283-284).

Até agora vimos a emergência da cultura enquantoelaboração de um dado natural. Mas em que termos sedesenvolve esta elaboração? Mais precisamente: quesignificado tem para nós a explicitação das modalidadesconceituais utilizadas pelo indígena? Sob um certoaspecto, podemos dizer que o pensamento "selvagem"representa uma redenção da sensibilidade. Viu-se queos animais e as plantas - precisamente enquanto obje­tos dotados de qualidades experimentáveis sensivelmente,como as formas, as cores, os cheiros, etc. - funcionamcomo verdadeiros operadores lógicos em vista de umaconceituação. Trata-se portanto de uma "especulaçãosensível" onde a atividade perceptiva serve de substratoa uma atividade lógica, na qual a sensibilidade deixade opor-se à inteligibilidade. As conexões lógicas ope­radas pelos "primitivos" são concretas na medida emque abrem a reflexão à esfera do sensível enquanto sen­sível, em que não rompem o cordão umbilical com afisionomia perceptiva do mundo. A íntima relação queo indígena mantém com o ambiente circundante ­relação que não é exclusivamente de manipulação emvista de uma necessidade, mas é também de conbeci­mento: o mundo dos acontecimentos naturais é cons­tantemente o objeto de uma atenção interessada - fazsurgir nele a exigência de um pensamento em que acultura é como que enxertada na natureza. J; portantonatural que esta série de considerações leve o antro-

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pólogo a ampliar o conceito de pensamento, Se não apôr em qnestão seus limites tradicionais: ele deixa deser incompatível, não só com a sensibilidade, mas tam­bém com aquilo que costumamos encerrar na esfera daefetividade:

[... ] o saber teórico não é incompatível com o sentimento,o conhecimento pode ser ao mesmo tempo objetivo e sub­jetivo [ ... ] e as relações concretas entre o homem e os seresvivos colorem às vezes com seus matizes afetivos [ ... ] todoo universo do conhecimento científico, sobretudo em civili­zações onde a ciência é integralmente "natural" (P.S., 1962,p. 53).

Não é por acaso qne a última obra de Lévi-Straussestá centrada na musicalidade do pensamento mítico:assim como a música utiliza para expressar-se, seja odomínio da sensibilidade e da natureza (corporeidadedos sons, efeito destes sobre nossa constituição psico­fisiológica), seja o da abstração conceituai e da cultura(organização dos sons segundo as relações da escalaadotada, formalização operada na partitura) fundando­os um no outro, assim o pensamento mítico utiliza cate­gorias fornecidas pela experiência sensível (como porexemplo as de cru e de cozido, ou de putrescível eimputrescível) para exprimir relações inteligíveis. Tendofunção de signos, os elementos constitutivos da reflexãomítica acham-se numa posição intermédia entre o dadoperceptivo, tal como é experimentado em sua concre­tude, e o conceito: assim, a investigação nos levará adescobrir que num grupo de mitos a oposição vida­-morte - que por si mesma constituiria uma abstraçãoconceitual - é expressa por meio de códigos sensíveis(por exemplo, o código tátil: duro-mole; ou olfativo:imputrescível-podre) e que estes códigos são transpo­níveis entre si. Ambos estes aspectos (codificações sen­soriais e sua transponibilidade) iluminam a função de­sempenhada pela corporeidade (enquanto atividadesinérgica: aquilo que aqui é testemunhado precisamentepela transponibilidade recíproca dos códigos) na cons­tituição da esfera categorial; problema ligado ao da re­lação entre natureza e cultura. Já se viu que a pas­sagem da primeira para a segunda pode ser exemplifi­cada como a passagem de uma quantidade contínua parauma quantidade discreta: DO continuum originário é

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necessano introduzir intervalos suficientemente amplospara que este continuum possa articular-se numa sériede unidades isoláveis (deste modo, para dar algunsexemplos, as oposições fonológicas constituem uma de­composição do continuum sonoro; a proibição do in­cesto substitui a reciprocidade - e portanto a dife­renciação - social pela biológica; a escala musicalopera uma seleção no mundo dos sons, etc.): intervalosque, em certas formas de "cromatismo" testemunhadaspelos mitos, tendem a reduzir-se perigosamente, atéameaçar a separação da cultura em relação à natureza.Ora, a condição de homem se define exatamente peraintegração que ela impõe a seus elementos constitutivos,dado que

a cultura não é nem simplesmente justaposta nem simplesmentesobreposta à vida. Num certo sentido, ela se substitui à vida,em outro, a utiliza e a transforma, para realizar a síntese deuma ordem Dova. Se é relativamente fácil estabelecer a dis­tinção de princípio, a dificuldade começa quando se queroperar a análise. Esta dificuldade é portanto dupla: por umlado pode-se tentar definir uma causa de ordem biológica esocial para cada atitude, por outro lado pode~se procurar qualé o mecanismo através do qual certas atitudes de origem cuI·tural podem juntar-se a comportamentos que, pelo contrário.são de natureza biol6gica, e conseguir integrá-los (S.E., 1967,p. 8).

Há porém casos privilegiados, como por exemploa música e o pensamento mítico, em que a complemen­taridade da ordem natural e da ordem cultural se mani­festa em toda sua evidência. Extraindo da experiênciasensível e perceptiva as categorias que utiliza para expri­mir certas concatenações conceituais, o pensamento dos"primitivos" nos oferece a imagem de um pensamentoconcreto que não procedeu ainda às distinções entreobjetivo e subjetivo, entre qualidades primárias e secun­dárias, que revela sua inerência a um mundo primor­dial: oferece-nos a imagem de um pensamento selvagem

que não é, para n6s, o pensamento dos selvagens, nem o deuma humanidade primitiva ou arcaica, mas o pensamento noestado selvagem, distinto do pensamento educado ou cultivadOem vista de um rendimento (P.S., 1962, p. 289).

~, portanto, o nosso pensamento na sua originari­edade.

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6 . A inda sobre o inconsciente

Desta livre reconstrução de uma certa problemá­tica presente no pensamento de Lévi-Strauss - recons­trução que, aliás, assumindo uma perspectiva volunta­riamente limitada, não visava a restituir os desenvolvi­mentos internos de cada texto e por isso deixou na som­bra múltiplos aspectos - me parece emergir um movi­mento de fundo centrado sobre problemas da relaçãointer-humana (possibilidade de aproximar-se de umaexperiênCia diferente da nossa, relação entre objetivi­dade e subjetividade, constituição do social), do signi­ficado do conceito de estrutura (sua gênese na expe­riência concreta, universalidade, formalização), da tem­poralidade (relação entre diacronia e sincronia) e final­mente da recuperação de um nível de originariedade(pensamento concreto). Entre estes diferentes desenvol­vimentos da investigação a questão do inconsciente fun­ciona por assim dizer como uma charneira, como umsubstrato comum, e é precisamente no inconsciente queLévi-Strauss vê uma resposta a muitas das interroga­ções levantadas. Surge portanto o problema: o incons­ciente, assim como se configurou até agora nas obrasde Lévi-Strauss, pode servir de verdadeiro fundamentopara uma temática tão profunda? Viu-se como, paraLévi-Strauss, o inconsciente é mais do que um depósitode conteúdos ou de figuras arquetípicas, um princípioativo de articulação e de estruturação que responde àexigência de encontrar, por baixo dos significados con­solidados, uma praxis constitutiva de sentido que apre­sente modalidades operativas universais. A investigaçãode Lévi-Strauss parece desenvolver-se entre dois pólos:por um lado - enquanto a experiência concreta, otrabalho "de campo", nos coloca em presença de umamultiplicidade de figuras culturais - ela tende a pre­servar a originalidade do fato cultural, a sublinhar queo dado natural nunca é imediato, mas está inserido numtrabalho ativo de significação (P.s., 1962, pp. 125-126);por outro lado, tende a reintegrar as estruturas do in­consciente num universo de coisas ("o espírito revela[ .. . ] SUa natureza de coisa entre as coisas" [C.C.,1964, p. 18]. Por um lado, assistimos à critica - ditadapelas próprias exigências da investigação - do deter­minismo associacionista (S.E., 1967, pp. 120-121), por

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outro - e precisamente em virtude de uma declaradaperspectiva "associacionista" - à redução da lógica a"expressão direta da estrutura do espírito (e, por trásdo espírito, sem dúvida, do cérebro)" (T.O., 1962 a, p.130). Esta última citação é particularmente significa­tiva, dado que imediatamente depois Lévi-Strauss espe­cifica que a lógica não é "um produto passivo da açãodo ambiente sobre uma consciência amorfa": são assimprecisados os traços de um possível "determinismo", quenão assenta mais no pressuposto da determinação ime­diata (como ação, influxo, etc.) por parte da natureza,da atividade psíqnica, mas na postulação de um isomor­fismo entre as leis naturais e as leis psíqnicas ("comoo espírito também é uma coisa, o funcionamento destacoisa nos instrui sobre a natureza das coisas: até a re­flexão pura se resume numa interiorização do cosmos"[P.s., 1962, p. 328, nota]). Portanto, a procura dasformas invariantes e universais tende também a traduzir­-se num inventário de possibilidades previamente dadas,que são objeto de uma atividade combinatória: a pró­pria História parece surgir de uma colaboração dasvárias culturas similar a

uma coalizão de apostadores, que jogam as mesmas sériesem valor absoluto, mas sobre diferentes roletas, e que seconcedem o privilégio de pôr em comum os resultados favo~

ráveis de cada um (R.H., 1952, pp. 272-274).

Desta perspectiva, o inventário das "limitações fun­damentais e comuns" verificáveis na atividade do incons­ciente leva a uma espécie de monismo naturalista ondeo psiqnismo e o social aparecem como epifenômenosda realidade natural:

as leis do pensamento - primitivo ou civilizado - são asmesmas que se exprimem na realidade física e na realidadesocial, que por sua vez é só um dos aspectos da primeira(S.E., 1967, p. 521; o grifo é meu).

Trata-se portanto de ver se esta posição não com­porta o risco de hipostasiar o conceito de inconsciente,conceito que aliás, como Se viu, parece responder à exi­gência de fazer surgir uma intenção significante origi­nária e que está intimamente ligado ao problema teleo­lógico. Não é por acaso que este problema parece levarLévi-Strauss a uma ulterior reflexão sobre a extensão

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do conceito de inconsciente. Com efeito, a propósitodas conseqüências que implica a recusa de uma filo­sofia ingenuamente naturalista, escreveu recentemente:

ln my own pas! work, I may have been trying in somedegree to evade lhe issue when I invoked ralher hastily lhe un­conscious processes Df lhe human mind, as iI lhe so-called pri­mitive could nol be granted lhe power to use his intellectotherwise lhan unknowingly 1 (F.K., 1965, p. 15).

Viu-se que o pensamento "selvagem" nos colocaperante uma atividade primordial em que a percepçãocorpórea - como primeira articulação de uma fisio­nomia sensível do mundo - gera um campo de signi­ficação e de cultura. E é precisamente nesta direçãoque a iuvestigação filosófica pode enfrentar um dosproblemas mais fecundos levantados por Lévi-Strauss:o do inconsciente como lugar de encontro entre mim eo outro, entre a natureza e a cultura.

1. "Em minha própria obra, talvez em certa medida eutenha tentado evitar o problema, ao invocar um tanto apressa­damente os processos inconscientes do espírito humano, comose s6 pudesse atribuir-se ao chamado primitivo a capacidade deutilizar seu intelecto sem disso tomar conhecimento:'

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7. SOBRE O PROBLEMA DA LINGUAGEMEM HUSSERL

Sumário: o escopo deste texto é definir a orien­tação básica que guia as considerações husserlianassobre o problema da linguagem. Antes de mais nada,(I . I) trata-se de diferenciar o conceito de expressãode outros conceitos de ordem semiol6gica, como porexemplo o de sinal. Com base nesta diferenciação épossível (l. 2) caracterizar positivamente a expressão,que aparece fundada em unidades de tipo abstrato, ouseja, em classes de variantes. Disso se segue (1. 3)que o sentido global dos esboços de investigação deli­neados por Husserl reside na proposta de uma análiseformal da linguagem, tendo em vista a ordem da langue

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em lugar da ordem da parole. Esta orientação mani­festa-se em particular no projeto de uma "gramáticapura" (2.1), considerada precisamente como uma com­binatória de tipo formal e abstrato. Graças a esta com­binatória pode-se delinear (2. 2) o conceito de grama­ticalidade do enunciado (que põe o problema da auto­nomia do componente sintático em relação ao semân­tico) e dar conta (2.3) da virtual infinidade dos enun­ciados possíveis em relação ao todo finito dos dispo­sitivos gramaticais, dentre os quais se reveste de umaimportância essencial o de transformação. O fato dea multiplicidade dos enunciados ser redutível a umnúmero restrito de estruturas elementares volta a colocar(2.4) o velho problema da gramática universal, ou seja,de uma teoria das formas possíveis da gramática. Final­mente, no apêndice, o método da variação eidética éconsiderado do ponto de vista da relevância que estaassume para a investigação lingüística.

Em Husserl, o problema lingüístico coloca-se nointerior de uma temática mais ampla de ordem guosio­lógica. A questão da linguagem é portanto vista nocontexto do discurso fenomenológico global, orientadoem direção ao levantamento da estrutura inerente à ex­periência coguoscitiva e do emaranhado de operaçõesconstitutivas subjacentes a esta estrutura. As páginasque se seguem abstrairão deliberadamente deste hori­zonte ampliado para discutir, seja alguns traços essen­ciais da investigação que Husserl dedica ao problemada linguagem, seja algumas questões gerais de ordemteórica, próprias da fenomenologia husserliana, que pa­reCe particularmente útil reconsiderar do ponto de vistados desenvolvimentos sucessivos da pesquisa lingüística.De resto, os limites assim estabelecidos para esta dis­cussão não derivam apenas da peculiaridade da pers­pectíva adotada, mas também do próprio movimento dodiscurso husserliano que, apesar de partir de uma pro­blemática de tipo guosiológico geral, pretende antes demais nada proceder, pelo menos em forma de esboço,a nma explicitação intrínseca do fato lingüístico.

1 . 1 . Interessa-nos aqui sublinhar o aspecto posi­tivo da crítica que Husserl desenvolve contra o psico­logismo: a proposta, delineada nas Investigações Lógicas

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(1900-1901, RL) de uma consideração formal da lin­guagem '. O que se manifesta claramente desde aspáginas iniciais da Primeira Investigação, onde se for­mula a tarefa de caracterizar o conceito de expressão,estabelecendo os limites que o diferenciam de outrosaspectos da atividade semiológica. Aquilo que definea expressão é, em primeiro lugar, a relação entre doistermos heterogêneos: o aspecto físico (por exemplo, aseqüência dos sons de uma palavra) e o psíquico, istoé, o "significado". Husserl se detém sobre o segundotermo da relação, justamente porque foi sobre ele queos equívocos da posição psicologista se estratificaram.O que Husserl entende por significado pode ser sufi­cientemente esclarecido Se acompanharmos, em todasas suas implicações, a contraposição estabelecida naPrimeira Investigação, entre sinal e expressão. O con­ceito de sinal parece aqui incluir, entre outras coisas, aárea ocupada em Peirce pelo conceito de índice e pelode ícone; efetivamente Husserl fala de sinal no casode um objeto que remete para outro em virtude deuma certa contigüidade, seja "física" (sobretudo emsentido causal: por exemplo a fumaça que remete parao fogo como sua origem), seja perceptiva (como nocaso de um desenho que reproduz os traços essenciais doobjeto representaáo). Esta caracterização, porém, éinsuficiente. Efetivamente, é necessário acrescentar quepara Husserl a essência do sinal consiste na relaçãode indicação que este instaura, e que pode haver sinalmesmo sem aquela contigüidade que referimos, ou seja,numa base puramente arbitrária, sem relação causal ouisomorfismo perceptivo entre indicante e indicado; o queinteressa é que. na relação de indicação, a presençaalUaI de certos objetos motiva a apreensão de certosoutros objetos.

Se A chama B à consciência, não só eles estão presentes aela contemporaneamente e sucessivamente. mas geralmente se

1 . No que diz respeito à relação que se pode estabelecer entreesta orientação epistemológica e a saussuriana, cf. mais adiante 1.2 e1.3. Em particular, no que diz respeito à gramática geral, a exigênciade uma orientação antipsicologista é formulada nitidamente por Hjelmslev(P.G.G., 1928, pp. 25~28). correlativamente à exigência de consideraro fato gramatical do ponto de vista da forma. Não é por acaso, porém,que a única referência dos Prlncipes (Hjelmslev, Ibid., p. 40) à QuartaInvestigação Lógica de Husserl tenha um caráter polêmico: em contra~

posição às posições expressas no período "g\ossemático", nos Prlnclpes.Hjelmslev insiste várias vezes sobre o fato de que o método próprio daLingüística deve ser do tipo empírico-indutivo. assumindo deste modouma atitude diametralmente oposta à husserliana (e à da própria ~os~semática).

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impõe também um nexo sensível segundo o qual um remetepara o outro e este último existe como inerente ao primeiro(R.L., I, p. 297).

1 .2 . No que diz respeito à liuguagem, as coisasse colocam de forma diferente. F. certo que também naexpressão podemos identificar um conjunto de aspectosque o aproximam do fenômeno da indicação: particular­mente em sua função comunicativa normal, todo fatode palavra desempenha o papel de "tornar conhecidos"determinados conteúdos psíquicos, o que equivale a dizerque uma certa manifestação verbal que eu percebo podeter para mim a função de "índice" de um certo pensa­mento ou estado emotivo do falante; o que ele me dizme informa sobre um seu juizo, um seu desejo, etc.Sob este aspecto, a expressão exerce também funçãode sinal, o fato físico constituído pela seqüência fônica(ou pela mímica que a acompanha) indica uma outrarealidade, à qual está ligado no ato concreto e fatualda locução, e esta fatualidade é uma condição neces­sária para que a locução desempenhe sua função ínfor­mativa, dado que só a partir de um acontecímento de­terminado e empiricamente percebido (a locução) possocaptar um conteúdo psíquico igualmente determinado.Mas em que assenta essa função "informativa" que ligaesta realidade percebida A a este conteúdo psíquico B?Ou melhor: o que me permite estabelecer tal ligação?Evidentemente não posso procurar uma resposta a estainterrogação no interior do fluxo concreto da locução,pois neste fluxo os dois termos da correlação são sub­metidos respectivamente a um desligamento constante:para retomar a argumentação saussuriana, certa palavra,pronunciada em momentos diferentes, ou por locutoresdiferentes, sofre variações seja no plano fonético (nuncaé pronunciada exatamente da mesma maneira), sejano plano semântico (ci. os exemplos de Saussure, CL.G.,1967, p. 132, como: a flor da macieira / a flor da no­breza, etc.). F. preciso, portanto, abandonar o terrenodas realizações concretas, dos atas efetivos de palavra,e remeter para um plano de elementos abstratos, cadaum dos quais delimita um conjunto virtualmente ilimi­tado de variantes. Tais variantes são precisamente asque são realizadas na execução fatual, e são "reconhe­cíveis" (quer dizer, podem desempenhar uma funçãodistinta) justamente graças à sua inclusão numa destas

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classes: isto é, graças à mediação desenvolvida por umoperador abstrato subjacente, que remete cada locuçãosingular para seu "tipo" invariante. Compreende-seassim a diferença que Husserl estabelece entre a indi­cação (ou a informação, no caso da linguagem enquantosinal) como ato constitutivo do sinal, e a significação,como marca essencial da expressão (isto é, da lingua­gem em sentido próprio): a siguificação é aquilo queresta se prescindirmos da circunstancialidade concretaem que ela é realizada, se tematizarmos o que perma­nece como invariante de todas as fonações possíveis e detodas as constituições possíveis de sentido, ao invés daseqüência fônica dada e do conteúdo psíquico dadoque nela se manifesta:

A idealidade da relação entre expressão e significado, emreferência a ambos, revela-se imediatamente no fato de, ao co­locar o problema do significado de uma expressão qualquer (p.ex.: resto quadrático), obviamente não entendemos por expres­são esta formação fonética pronunciada hic et nunc, este somfugaz que nunca volta a repetir·se da mesma maneira. Enten­demos a expressão in specie. A expressão resto quadrático per­manece idêntica a si mesma, independentemente de quem apronuncia. E isto é verdadeiro também para o significado (R.L.,I. p. 309).

A definição inicial da expressão como relaciona­mento entre um aspecto físico e um aspecto "psíquico"fica assim ulteriormente precisada e determinada, neu­tralizando toda possível argumentação psicologista, numduplo sentido:

a) de um lado, o componente fônico desloca-seem dois planos: o material sensível e, o que interessamais, aquele que é constituído por uma combinatóriaformal. Sob este ponto de vista, porém, deve-se dizerque, em Husserl, o· aspecto fonético do signo não estásuficientemente caracterizado, a não ser por alguns inte­ressantes acenos. Husserl reconhece na expressão um"ato unitário global", graças ao qual o aspecto fonético,que por si mesmo é privado de significado, pode desem­penhar a função de veículo do siguificado. Entre afonia e o significado não subsiste nenhuma relaçãonatural ou intrínseca, o que equivale a dizer que osegundo não determina a primeira e que, do ponto devista da sua relação, tomada em si própria, não hámotivo algum para que a um certo conceito (p. ex: ode "pêra") deva corresponder um determinado con-

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junto fonético (por exemplo/pêra/em vez de/repa/loTodavia, esta arbitrariedade é por assim dizer neutra­lizada do ponto de vista da língua como sistema global,onde cada unidade se acha inserida num conjunto derelações que a vinculam com outras unidades: é porisso que existe para o falante uma conexão íntima entrefonia e conceito expresso, a tal ponto que ele reco­nhece na primeira algo que de certa forma "pertence" aosegundo (cf. R.L., V, p. 194). De qualquer forma, oque deve ser sublinhado agora é que o aspecto fônicointeressa a Husserl do ponto de vista "formal" (ouseja, do ponto de vista da função distintiva que desem­penha) e não dos sons materiais e concretos: talcomo a representação escrita, a fonia de uma dadapalavra pode variar amplamente, mas "o qne interessaé somente a reconhecibilidade constante da forma(Gesta/t)" (R.L., VI, p. 389).

b) Por outro lado, Hnsserl caracteriza o siguifi­cado de modo a distingui-lo das objetualidades extralin­güísticas (mesmo sublinhando a possibilidade e a neces­sidade de conexões a priori com elas), quer se trate,por exemplo, de formações perceptivas, qner Se tratede estados de consciência que o ato lingüístico "tornaconhecidos". Se, por exemplo, exprimo um juízo deordem perceptiva, o siguificado desta expressão não re­side propriamente no estado de coisas, captado numapercepção atual, para o qual o juízo remete, porquepodem subsistir juízos vazios que nenhuma intuiçãode ordem perceptiva pode preencher adequadamente,porque siguificados diferentes podem referir-se a ummesmo objeto ou estado de coisas e, reciprocamente,um mesmo significado pode referir-se a diferentes obje­tos, e porque, em todo caso, toda representação extra­lingüística precisa ser filtrada através da trama dascategorias lingüísticas para atingir a expressão; demaneira semelhante, o significado não reside na "in­formação" que o ouvinte pode extrair da minha lo­cução, isto é, no fato de que num dado momento eudeva ter realizado um determinado ato psíquico, porexemplo ter executado certas operações de coleção, terdepositado uma certa "crença" no juízo ou simples­mente desejado tal coisa, etc., visto que tudo isso repre­senta os fenômenos que acompanham o significado, queo localizam num conjunto determinado de circunstan-

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cialidades, mas não constitui o significado propria­mente dito, enquanto unidade "ideal" e invariante. Esteproblema se esclarece se levarmos em conta que a tarefaque Husserl se atribui em primeiro lugar (sem por issocomprometer, como se disse, a possibilidade de inves­tigações ulteriores uo interior do problema gnosiológicoglobal) é a de proceder a uma caracterização da ex­pressão em sua especificidade, tarefa que pressupõe queas substâncias extralingüísticas e a tematização da ex­pressão enquanto forma sejam colocadas entre parên­teses. Veremos como esta afirmação se precisará naspáginas segnintes.

1 . 3 . Portanto, o que é essencial à expressão e adiferencia da sua função indicativa ou informativa (quesão próprias, respectivamente, do sinal e da própriaexpressão enquanto sinal, isto é, em seu estatuto"comunicativo") é a presença de uma intenção signifi­cante específica. Este ato, dotado de uma confignraçãoautônoma própria mesmo na multiplicidade dos nexosque o relacionam com o conjunto global dos atas cog­nascentes, tem precisamente a função de reestruturar, napeculiaridade da esfera lingüística, os conteúdos extra­lingüísticos procedentes da percepção externa, da apre­ensão dos estados psíquicos, etc. Deste ponto de vista,chega até a desvanecer-se a diferença entre os conteúdosde origem "exterior" e as chamadas vivências psíquicas:efetivamente, nem os primeiros nem as segnndas cons­tituem o significado diretamente, mas para serem "ex­pressos", devem ser mediados pelo ato lingüístico espe­cífico, devem ser subsumidos por uma intenção signi­ficante que os insere em unidades categoriais invariantes.Como se viu, este conceito de invariância é estranho ahipóteses de tipo metafísico, e é caracterizâvel em ter­mos puramente funcionais, sendo chamado a dar contada forma de proceder específica do componente lingüís­tico, que consiste sobretudo em mediar conteúdos hete­rogêneos, como por exemplo a seqüência fónica de umaexpressão e a representação do objeto ou estado decoisas para que tal expressão remete. O significadodesta última, com efeito, não consiste na representaçãoperceptiva propriamente dita, mas numa "unidade ideal"que pode subsumir representações diferentes do próprioobjeto ou representações de outros objetos "parecidos"

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num âmbito virtualmente infinito de variabilidade. Egraças a este trabalho de "fixação" 2, desenvolvido pelaintenção significante, que é possivel relacionar dois ele­mentos heterogêneos, como por exemplo um conjuntofonético e uma percepção, e subtraí-los aos desliga­mentos contínuos que, como dizíamos, os caracterizamrespectivamente se os isolarmos da unitariedade daexpressão:

por expressão entende-se a expressão animada por todo o seusentido, que é colocada aqui numa certa relação com a per­cepção, e é justamente em virtude dessa relação que a percepção,por sua vez, se diz expressa. Por esta mesma razão, entre apercepção e o conjunto fonético está inserido um outro ato (ouum conjunto de atos) [ ... l. Deve ser este ato de mediação queopera propriamente como conferidor de sentido; ele pertenceà expressão dotada de sentido como seu componente essencial,fazendo que o sentido permaneça idêntico, quer se lhe associeou não uma percepção que o confirme (R.L., VI, pp. 316-317).

Compreende-se então por que HusserI, assim comoSaussure, é levado inicialmente a desenvolver uma cri­tica cerrada daquela concepção que faz da "nomencla­tura" a essência da língua: o que está em jogo, comefeito, é a autonomia da esfera Iingüística, autonomiaesta que se desvanece, se reduzirmos o fato Iingüísticoà atribuição de "nomes" a conteúdos preformados,como por exemplo certas objetualidades perceptivas.Neste sentido, podemos reconhecer, seja nas Investiga­ções Lógicas, seja no Cours de Saussure, uma orien­tação comum antipsicologista que assenta na exigênciade distinguir uma estrutura categorial abstrata subja­cente às manifestações singulares de palavra e que, emparticular, tendo, por assim dizer, a função de ossatura

2. Esta função de mediação e de fixação desempenhada por uni­dades conceituais abstratas face aos conte6dos múltiplos da representação(ou seja. em outros termos, a prioridade lógica de um operador abstratoem relação ao conjunto das representações) constitui um dos traçoscomuns a muitas pesquisas contemporâneas, de várias orientações, sobrea função "cognoscitiva" da linguagem. Cf., p. ex., Cassirer (F.F.S., 1961,p. 299). "Para que as representações possam ser ligadas na forma deum pensamento, cada uma delas precisa de uma formação prelinúnar,mediante a qual somente em geral ela se torna material de cODstruçãológica," Como se sabe, a função de mediação conceituaI desempenhadapela linguagem vem analisada no interior de uma perspectiva psicoUn­glHstica por YigotskI (P.L., 1966, pp. 82 e ss.) sobretudo no que dizrespeito à gênese do conceito. Yigotski fala de um "domínio sobre aabstração", que é o pré-requisito essencial para a formação de conceitose na obtenção da qual a linguagem tem um "papel decisivo" (Ibid., p.102). Em Jespersen também (Ph. G., 1924, p. 63) o problema da funçãocognoscitiva da linguagem está ligado ao da elaboração de unidadesabstratas.

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permanente, permite a correlação entre o significante e o

significado, por baixo de todas as suas flutuações pos­

síveis. Obviamente, esta orientação antipsicologista não

prejudica a possibilidade de considerar o problema darelação que os atos especificamente lingüísticos mantêm

com o conjunto global dos atos cognoscentes, tanto que,

como se disse, para Husserl uma das questões essen­ciais é constituída pela função de que a lingnagem se

reveste no interior da mais ampla esfera cognoscitiva,

e que Saussure, desmentindo antecipadamente todas asinterpretações apressadas que reconheceram nele um

obstinado defensor do isolamento da Lingüística perante

outras disciplinas, concebe a Lingüística, no limite, como

"uma parte da psicologia geral" (Saussure, C.L.G.,

1967, p. 26). É portanto evidente que o termo "anti­psicologismo" não significa aqui uma espécie de seto­

rialização da pesquisa, mas um conteúdo epistemológico

preciso: isto é, o fato de se dever orientar a investigação

para a forma do fenômeno lingüístico, em vez de reduzi­-lo preliminarmente aos atos concretos em que ele se

realiza, e- de que estes atos concretos (pertencentes à

esfera da parole) só se tornam compreensíveis com base

em uma explicitação de uma esfera muito mais abstrata,

que é justamente a da langue'. Todavia, o discurso de

Husserl parece tomar um rnmo diferente daquele que

será traçado pelo Cours saussuriano, se tomarmos em

consideração o problema da arbitrariedade do signo. Se,

numa acepção extremamente ampla, ligarmos este pro­

blema ao da autonomia da esfera lingüística, não é difícil

perceber, como se disse, uma convergência significativa;

porém, as coisas mudam se se considerar que a maneira

pela qual se coloca a questão da arbitrariedade do signono Cours leva Sanssure a ver no trabalho desenvolvidopela língna uma atividade de articulação e de estrutu­

ração do pensamento enquanto massa em si mesma

amorfa:

o papel característico da língua diante do pensamento éservir como intermediário entre o pensamento e o som, em con-

3. Se levarmos isto em conta, não surpreenderá o fato de os

desenvolvimentos mais recentes da investigação lingüística - justamente

no momento em que esta investigação atinge um grau elevado de forma­

lização - colocarem o problema da superação da separação entre a

Lingüística e as outras disciplinas e o dar consideração da linguagem do

ponto de vista de um "sistema cognoscitivo" geral (cf. Chomsky, L.M..

1968, pp. 1 e 4).

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diçóes tais que a junção deles desemboque necessariamente emdelimitações recíprocas de unidades. O pensamento, caótico pornatureza, é forçado a precisar-se decompondo-se (Saussure,C.L.G., 1967, p. 132; grifo meu) 4.

De resto, é indicativo o fato de Saussure limitara análise não-lingüística do pensamento a uma "psico­cologia pura" que é o paralelo exato (Saussure, CL.G.,1967, p. 137) da Fonologia; tal como esta última estudao som do ponto de vista naturalista ("fisiologia dosom"), ou seja, enquanto matéria bruta em relação àestruturação operada pela língua (lbid., p. 45), assimtambém a primeira teria a tarefa de analisar o pensa­mento justamente enquanto "massa amorfa". Mas épelo menos problemático que uma perspectiva natura­lista deste tipo possa dar conta da relação linguagem/pensamen10. A questão muda se se sublinhar, comofaz Chomsky (cf., p. ex., L.M., 1968, pp. 12, 24 e62), a exigência de considerar o ato Iingüístico do pontode vista de um "sistema cognoscitivo" altamente abstratoe caracterizável como um conjunto formal de princípiosconstitutivos. Todavia, no que diz respeito a Saussure,cumpre dizer que para considerar este problema seriapreciso referir-se ao sentido global do discurso saussu­riano, que caminha justamente numa direção antinatu­ralista. Em particular, dever-se-ia examinar, em todasas suas implicações, a proposta saussuriana de umasemiologia como estudo da "vida dos signos" e da leisque os regem (Saussure, CL.G., 1967, p. 26), estudo

4. Mesmo que, como salienta De Mauro (Saussure, C.L.G., 1967,p. 439), não seja aceitável a interpretação que vê nesta parte do Coursuma antecipação da hipótese de Sapir e \V'horf sobre o relativismolingüistico (segundo a qual a organização do pensamento decorre daestruturação Ungüística e, portanto, sistemas conceituais diferentes cor­respondem a Unguas diferentes), resta porém o problema de saber se opensamento pode ser caracterizado como "massa amorfa", antes da suaassunção por parte do ato lingüístico. De Mauro indica uma soluçãoobservando que o pensamento seria aqui, para Saussure, lingüjsticamenteamorfo, o que não exclui obviamente a possibilidade de explicitar suaestrutura fora da Lingiiística, por exemplo em Psicologia. Tal soluçãoporém, não é totalmente convincente. sobretudo se se considerar apaSiSagem citada acima, onde Saussure fala do pensamento como de algo"caótico por natureza", o que está perfeitamente claro também nasfontes manuscritas do Cours (Saussure, C.L.G., 1968, pp. 1821 C e1829 G): "Psychologiquement, que sont nos idées abstraction faite dela Jangue? Elles n'existent probablement pas. Ou s.ous une forme qu'onpeut appeler amorphe [... l. La pensée, qui est de sa nature chaotique,se précise eD se décomposant" (que são nossas idéias, psicolQgica·mente, se abstrairmos da língua'? Provavelmente não existem. Ou sobuma forma que pode chamar-se amorfa [ ... l. O pensamen:o, que pornatureza 6 caótico, precisa-se se decompondo").

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este que não por acaso Saussure atribui à PsicologiaGerai.

Mesmo não sendo possível aqui penetrar no trata­mento específico que Husserl dedica a este problemacom referência à temática gnosiológica geral, deve-seporém ressaltar que as Investigações Lógicas procuramjustamente explicitar a ligação que relaciona o ato lin­güístico com a legalidade global dos atos psíquicos.Limitemo-nos aqui a breves notas, extraídas das consi­derações husserlianas a respeito da relação percepção/expressão. Husserl reconhece repetidamente que nãoexiste uma relação de espelhamento ou "paralelismo"entre pensamento e linguagem, e isto porque, como seviu, a intenção significante opera segundo modalidadespróprias que não são necessariamente identificáveis comas de outras funções cognoscitivas: significados simplespodem remeter para objetos compostos e, reciproca­mente, significados compostos podem remeter para obje­tos simples (cf. R.L., IV, p. 89), algo "não indepen­dente" (como uma certa qualidade) pode ser subsumido(por exemplo, no caso da chamada substantivação) porum significado "independente" (cf. R.L., IV, p. 104),etc. Em vez de multiplicar os exemplos, podemos resu­mir tudo isso brevemente repisando num ponto sobre oqual já se insistiu várias vezes: o significado da expressãonão deve ser procurado fora da expressão (neste caso naintuição perceptiva), mas na própria expressão, o queexclui a hipótese de um mero "paralelismo" entre osconteúdos de ordem perceptiva e as unidades lingüís­ticas, o que equivale a dizer que estas últimas não selimitam a repetir estruturas preformadas. Todavia, afalta de uma relação de correspondência membro amembro não prejudica a possibilidade de uma perti­nência a um campo comum de estruturação. O objetoperceptivo não se apresenta sob a forma de uma intuiçãobruta para a "mediação" (cf. acima) desenvolvida pelaintenção significante; ele já foi submetido a um pro­cesso de mndelamento, o que equivale a dizer que amediação lingüística Se efetua a partir de uma mediaçãoanterior, constituída pela atividade classificatória. Osatas de significação e os de conceituação situam-se numconjunto unitário de leis, e é esta unitariedade entre omomento lingüístico e o conceituai que permite à ex-

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pressão encontrar uma tradução intuitiva na esfera dapercepção. Antes de ser assumido pela intenção signi­ficante, o objeto perceptivo é inserido, graças a umaatividade classificatória, numa estrutura categorial:

[ .. . ] na medida em que a expressão significante formauma unidade particularmente íntima com o ato classificatório,este por sua vez, como conhecimento do objeto percebido, seunüica com o ato perceptivo, a expressão se apresenta, porassim dizer, como se fosse imposta à coisa, como se fosse suaroupa (R.L., VI, p. 324).

o discurso husserliano, portanto, parece desenvol·ver-se segundo uma dupla perspectiva: por um lado,trata-se de distinguir aquele conjunto específico de nor­mas que regem o funcionamento lingüístico; por outro,trata-se de focalizar o nexo essencial que une esta estru­tura determinada à estrutura global dos atos cognos­citivos. Tal constatação dissolve o aparente paradoxode uma investigação que pretende salientar ao mesmotempo os traços formais e intrínsecos da expressão eos conteúdos cognoscentes sobre os quais opera a ex­pressão. Porém, o que deve ser sublinhado é o fatode este segundo aspecto não significar uma reintrodu­ção de elementos extralingüísticos na esfera da expres­são; com efeito, antes mesmo de explicitar a função daexpressão no conjunto do processo cognoscente, Husserlpretende esclarecer o conjunto de leis que regem a pró­pria expressão, e é claro que se trata de uma prioridade16gica. Em outros termos, para captar a função que alinguagem desempenha do ponto de vista guosiológico,precisamos antes captar aquilo que leva a linguagem adesempenhar esta função: isto é, explicitar sua estruturaformal. Com efeito, são inerentes, à esfera da expres­são, leis que lhe são peculiares e cuja eliminação impedea constituição da própria expressão e, conseqüentemente,sua possível referência a outros atOS cognoscentes. Com­preende-se assim por que a análise husserliana da lin·guagem assume uma caracterização formal e postulacomo momento preliminar a colocação entre parêntesesdos conteúdos materiais que contribuem para a consti­tuição do fato lingüístico. Como Se viu a propósito daarbitrariedade, um dos aspectos essenciais do signo comoexpressão é constituído pelo fato de, contrariamente, porexemplo, ao ícone, lhe faltar uma motivação "natural":

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Em geral, o signo não tem intrinsecamente nada emcomum com o designado, pode designar da mesma forma algoque lhe é homogêneo e algo que lhe é heterogêneo. A imagem,pelo contrário, refere-se à coisa em virtude da semelhança e,se faltar a semelhança, nem se fala mais em imagem (R.L.,VI, p. 353).

Portanto o que interessa é aquela intenção signi­ficante que é constitutiva da expressão e que opera pormeio de procedimentos distintivos, e perante isto as"substâncias" que ela utiliza para seu operar são indi­ferentes. Conseqüentemente, a investigação deve situar­-se numa óptica particular, que se voltará para as rela­ções formais que regulam a expressão e não para assubstâncias (seja de ordem física, seja de ordem "psí­quica") que ela utiliza: no interior desta perspectiva,como se disse, a matéria fónica dá assim lugar a umacombinatória abstrata, que não é outra coisa senão oconjunto das propriedades distintivas graças às quais asvárias Gelstalten fónicas se diferenciam entre si; poroutro lado, ao conjunto de todos os referentes possíveispara os quais o significado remete, se substitui uma sériede normas abstratas que presidem à formação do pró­prio significado. Se os conteúdos materiais são variáveis,nem por isso a sua "reconbecibilidad.e" deixa de sergarantida pela constância da forma. Veremos em se­gnida como este conceito de forma c.omo invariante podeser interpretado nos termos de um procedimento de tipodistribucional baseado no método da variação eidética,em vez dos de um platonismo metafísico (como se dissefreqüentemente, de maneira mais ou menos explícita,adotando uma solução comodista); o que interessa sali­entar aqui é a própria orientação da análise husserliana,na qual a exigência de prescindir da consideração dassubstâncias extralingüísticas é motivada pela exigênciade proceder à identificação da estrutura intrínseca dalinguagem:

A palavra pronunciada, o discurso que se acaba de pronun­ciar, entendido como um fenômeno sensível e precisamente umfenômeno acústico, são por nós distinguidos da palavra e daproposição "elas mesmas", ou de uma sucessão de proposiçõesque constituem um discurso mais longo. Não é sem razão que- quando não fomos compreendidos e nos repetimos - fala­mos precisamente de uma repetição das mesmas palavras epreposições [... ]. A mesma e única estrutura lingüfstica éreproduzida milhares de vezes (Husserl, L.F.T., 1966, p. 25).

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Prefigura-se desta forma o sentido da propostahusserliana de uma gramática lógica pura: a crítica dopsicologismo é na realidade a crítica de todo propósitometodológico que, para dar conta da estrutura da lin­guagem, apela para as substâncias nas quais esta estru­tUfa Se realiza, em vez de recorrer aos nexos formaisque elas determinam. E não nOs surpreenderemos se,como mostra a passagem seguinte, para esclarecer talorientação epistemológica Husserl recorre - quinzeanos antes da publicação do Cours, e embora partindode um horizonte disciplinar diferente - àquela exem­plificação saussuriana que tanto sucesso iria ter nahistória da Lingüística:

o sentido verdadeiro dos signos em questão revela-se nomomento em que pensamos na conhecida comparação entre asoperações de cálculo e as que são realizadas nos jogos que sedesenvolvem segundo regras, como o xadrez. As figuras doxadrez não intervêm. no jogo, como coisas de marfim ou demadeira, que têm uma forma determinada ou uma cor deter·minada. O que as constitui do ponto de vista físico ou feno­menal é totalmente indiferente e pode variar à vontade. Elasse tomam figuras do xadrez, isto é, peças do jogo em questão,graças às regras do jogo que lhes atribuem seu preciso signi­ficado de iogo (R.L., I, pp. 336-337) '.

2. 1 . O aparente paradoxo do qual a teoria gra­matical deve dar conta, segundo Husserl, é constituídopelo fato de um conjunto finito de meios, como são pre­cisamente os dispositivos gramaticais de qualquer língua,produzirem um conjunto virtualmente infinito de enun­ciados. Husserl reconhece esta capacidade geradora narepetibilidade das regras gramaticais e a tarefa precípuaque atribui à "morfologia" pura dos significados con­siste em identificar aquele conjunto de regras formais

S. Na realidade, a passagem em questão se refere ao problema dalinguagem "simbólico-aritmética", ou seja, ao problema das puras possi­bilidades combinatórias inerentes a signos que, deste ponto de vista,podem ser considerados intuitivamente vazios. Mas. como se disse, oque interessa salientar aqui é a orientação epistemológica geral sub­jacente ao discurso husserliano, orientação onde se sublinha precisamentea necessidade de uma abordagem puramente formal. De resto, na épocadas Investigações Lógicas O recurso ao exemplo do jogo de xadrez paraexplicar o vaIor combinatório dos elementos de um sistema lingUísticoera bastante comum. sobretudo no que diz respeito ao problema daslinguagens lógicas (ver. p,e.. Frege). A comparação com o texto saus­surlano revela uma consonância surpreendente: "A língua é um sistemaque conhece apenas a ordem que lhe é própria. Uma comparação como jogo de xadrez vai possibilitar uma melhor compreensão de tudoisso [..• ]. Se substituir pedaços de marfim por pedaços de madeira, amudança é indiferente para o sistema [ ... ] (Saussure, C.L.G., 1967.p. 33).

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que presidem à formação e à combinação dos enun­ciados. O termo "formal" deve ser aqui tomado pelomenos num sentido duplo. Por um lado, significa queo conceito de gramaticalidade de um enunciado não ésuscetível de uma interpretação de ordem "estatística",baseada no grau de aceitabilidade que o enunciado podeter para um número mais ou menos grande de falantese no cálculo das respostas que eles podem dar a even­tuais testes operatórios. Sob este aspecto, é importantesublinhar que para Husserl a investigação gramaticalnão exerce uma função prescritiva, isto é, não visa afornecer regras "práticas" para o comportamento efetivodo falante, mas é movida exclusivamente por um inte­resse teórico 6, que orienta uma pesquisa sistemáticadas formas possíveis de enunciado e das leis de suacombinabilidade. Por outro lado, a caracterização for­mal da investigação implica a abstração da esfera semân­tica, pois, conforme veremos, a gramaticalidade de umenunciado não se identifica com o fato de ele ser dotadode sentido (mesmo constituindo sua condição essencial).

O ponto de partida da Quarta Investigação Lógica,que Husserl dedica ao problema da "gramática pura",é constituído pela subdívisão dos significados 7 emsimples e compostos. Se eu tomar um enunciado qual­quer, posso por exemplo decompô-lo num grupo nomi­nal e num grupo verbal, depois dividir estes dois grupos

6. Dado que uma pesquisa definida deste modo não tem funçõcsprescritivas. para ela não se põe o problema de saber o que é "certo"e o que não o é. Num certo sentido, pode-se dizer que a gramáticade uma língua (e portanto f) conceito de gramaticalidade que se lherefere) é algo "óbvio", o que equivale a dizer que faz parte da praxbcotidiana de qualquer falante daquela língua. Mas o fato de algumacoisa ser "óbvia" não significa que ela seja por si s.ó transparente. Orauma pesquisa que se orienta teoricamente (oomo a gramatical) excluiqualquer tarefa de avaUação: ela não tem que nos dizer o que está"certo", pala em seguida extrair dai prescrições pala o falante, masexplicitar aqueles princípios formais dados em que assenta a atividadedo falante e que, justamente por serem adquiridos ou "óbvios", tendema ficar latentes nesta atividade. isto é, são inconscientes. Idêntica carac­terização do conceito de "teórico" se encontra na gramática transforma­cional. Cf., quanto ao problema da "obviedade", Chomsky, L.M., 1968,p. 22 e E.M.L., 1962, pp. 528.530, onde se sublinha a pertinência de ummodelo abstrato para dar CORta das operações lingUísticas.

7. Como se viu, Husserl entende por expresMo a "unidade entreconjunto fonético e significado" (cf. R.L., IV, p. 105), mas vê no signi~

ficado o que é proprilUl1ente essencial à expressão: isto explica a razãopela qual, no decorrer da Quarta Investigação, e em ge1'al em todas asInvestigações L6glcas, ele usa freqüentemente a palavra "significado" paradenotar a expressão inteira. Apesar de ser possivel desenvolver o pensa­mento husserliano em outra direção, deve-se reconhecer com Bar-Hillel(H.C.•.• , 1957, p. 366) que esta restrição ao plano do si~nificado constituium sério limite para a pesquis,a esboçada por Husserl na Quarta Inl'e8­tigação. Dai algumas dificuldades evidentes: eL, a propósito disso, anota seguinte.

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em outros constituintes e assim por diante, até chegara unidades mínimas que não podem mais ser decom­postas no plano sintático, unidades que se configuramjustamente como expressões simples no interior de ex­pressões compostas mais amplas. O que se deve aquisalientar é como é inerente à expressão, por essência, apossibilidade de se combinar com outras expressões paraproduzir sintagmas cada vez mais complexos, e nempor isso menos unitários. No interior das expressõescompostas, as expressões constituintes (que, por suavez, podem ser simples ou compostas) se dividem entreduas classes, as expressões categoremáticas (isto é,independentes, dotadas de uma estrutura autônoma)e as sincategoremáticas, que s6 podem figurar napresença de outras expressões, ou seja, no âmbito deum todo mais amplo', de uma estrutura mais vasta.

8. Do ponto de vista lingüístico, a distinção entre expressões cate-­goremáticas e express6es s,incategoremáticas é pelo menos problemática.HusserI, com efeito, baseia-se na distinção entre significados indepen­dentes e não-independentes, a qual, todavia, não parece suficientementeexplicitada. Ele vê aqui uma relação entre aquilo que acontece aouiveI da "representação" (onde se fala, por um lado, de ;:epresentaçõesenquanto totalidades unitárias e fechadas, e, por outro lado, de momen·tos parciais nestas totalidades e de formas de conexão entre representaçõesunitárias) e aquilo que acontece ao nível do significado (onde haveria,de um lado, significados independentes e unitários ....... p. ex., o fundadorda ética - e, de outro, partes não~independentes e conectivas: p. ex.,da, e). Ora para Huss.erl o plano estritamente lingUístico - ou sejao da expressfJo como unidade do significado e do significante, v. notaanterior - não faz outra coisa senão refletir algumas propriedades doplano do significado (deste modo, é neste último plano que se colocaa distinção originAria entre categoremático e sincategoremático, enquantoa que tem a expressfio pOr objeto é apenas derivada. Em geral. comojá foi sugerido, parece-me que o limite das, análises husserlianas resideno caso de o plano lingUístico ser tratado como tradução fatuaI ("898i.mUar", Signatur) do plano do significado: portanto Husserl pode falarde uma gramátIca lingüfstica, como "morfologia" da expressão, e deuma gramática lógica, como "morfologia" do significado, a qual temuma função prioritária, A partir daí, poder.-se-ia conceber uma inter­pretação do texto husserliano consideravelmente diferente da proposta em2.1 e SS., em particular n'! que diz respeito ao problema da relação entregramaticalidade e congruência semântica. Efetivamente, poder-se-ia afir­mar que o que interessa para Husserl é justamente uma análise do planodo significado, a que está subordinado todo o restante, e que não temsentido, segundo o texto husserliano, isolar o momento estritamentegramatical do momento semântico, dado que as combinações sintáticasde que fala na Quarta Investigação Lógica são sempre combinações designificados. O fato é que me dirigi aqui às análises que Husserl dedica Aspossibilidades de constituição do significado, ou seja, em definitivo, aum nível que, como se verá em seguida, não é propriamente o dosignificado, mas lhe é anterior: um nível definido por certas possibili­dades combinatórias ou de "cálculo" (numa palavra: por uma sintaxe).A problematicidade das Investigações LógiCXls consiste no fato de Hus·sed, ao tematizar este nivel formal, continuar considerando-o como umnivel caracteriZável exclusivamente nos termos do significado (isto é, dasregras de combinação dos, significados), julgando não pertinente a ex~

pressão no seu conjunto, cujas regras de combinação seriam uma simplesréplica das que regem o significado (apesar de não ser diffcil ver que,na realidade, as categorias de significado qlle Husserl sugere são, apro­ximadamente, categorias lingüísticas, aUás discutíveis).

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Agora, o que interessa aqui, não é tanto penetrar nadiscussão que Husserl dedica ao problema da justifi­cabilidade desta subdivisão das expressões em categore­máticas e sincategoremáticas, quanto ressaltar como oproblema central desta Quarta Investigação Lógica éconstituído precisamente pelas leis de composição daexpressão. O fato de existirem regras combinatórias emcada âmbito da experiência cognitiva (por exemplo napercepção, onde determinados conteúdos podem se uni­ficar apenas em determinadas sinteses) e de se poderfalar de uma combinatória geral (no sentido da mathesisleibniziana) não deve levar a ignorar a especificidadecom que essa combinatória opera ao nível lingüístico:

Em nenhum campo podemos unificar quaisquer singulari­dades mediante quaisquer formas: o campo das singularidades,pelo contrário, delimita a priori O número das formas possíveise determina as leis de sua saturação. Todavia, a generalidadedeste fato não dispensa da obrigação de mostrar sua presençaem cada campo dado e de investigar as leis determinadas emque ele se desdobra (R.L., IV, p. lO?).

2.2. Se tomarmos uma locução não-gramaticalComo( I ) o profundamente dormepercebemos que a incompatibilidade que a caracterizanão diz respeito aos vários membros enquanto mem­bros especificos desta locução, mas à própria forma dalocução, o que equivale a dizer que qualquer outralocução caracterizada pela mesma estrutura, mas compalavras diferentes, por exemplo(2) um violentamente enfureceé igualmente não-gramatical. Por outras palavras, se sesubstituir os membros de (1) por variáveis que repre­sentem as palavras pertencentes a uma classe dada,obter-se-á uma forma de locução que é não-gramaticale que permanece tal em todas as suas possíveis ocor­rências. A compatibilidade ou a incompatibilidade sin­tática, portanto, consiste na possibilidade ou não-possi­bilidade de combinar membros segnndo um conjunto deregras formais que têm por objeto classes de palavras(categorias) :

Toda vez que, em relação aos significados dados [cf. acima,nn. 7 e 8, A.R], compreendemos com evidência a impossibi­lidade da conexão, esta impossibilidade remete para uma leiincondicionalmente geral, segundo a qual, em geral os signi~

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ficados das categorias correspondentes de significado, ligadosentre si na mesma ordem e segundo a norma das mesmasformas puras, têm necessariamente que ser destituídos de umresultado unitário - numa palavra: trata-se de uma impos­sibilidade a priori (R.L., IV, p. 108).

:É possível agora especificar aquilo que foi suge­rido no início desta segunda secção, quanto à caracte­rização "formal" da pesquisa esboçada por Husser!. Talcaracterização pode aqui ser reduzida a três implicaçõesfundamentais: a) o conceito de gramaticalidade, na me­dida em que é definido por princípios gerais de combi­nabilidade, não pode ser "estatisticamente" extraído dasrealizações concretas (ou seja, é um conceito próprioda langue e não da parole); b) ele incide, não sobre as"substâncias" da locução, mas sobre sua estrutura, istoé, sobre o conjunto das relações verificáveis entre ascategorias (nomes, verbos, etc.) às quais pertence cadamembro da locução; c) a gramaticalidade da locuçãoé independente de sua congruência semântica. Esteúltimo ponto merece maiores esclarecimentos. Ao falarda independência da gramática em relação à esfera se­mântica·, Husserl não pretende afirmar também suacompleta estranheza. Pelo contrário vê no funciona­mento do nível gramatical um pré-requisito para a con­gruência do enunciado ao nível semântico. Dado que oconjunto das regras gramaticais interessa à própria pos­sibilidade da constituição do enunciado, é óbvio que umdesvio de uma destas regras provocará a formação deenunciados anômalos (e, no limite, de não-enunciados),cuja congruência semântica é proporcional ao grau dedesvio gramatical. Se, por exemplo, como no caso de(I) e (2), há uma violação das categorias lexicais I.,

9. Uma posição semelhante é sustentada, mas de modo muito maispreciso por Chomsky (cf. p. ex. A"T.8., 1965, pp. 151 e sS), o qllal nuncaafirmou que a gramaticalidade ou a não-gramaticalidade de um enun­ciado seja irrelevante para sua interpretação semântica, mas pelo con­trário que ela é sua condição. Todavia, dado que n~ interpretação de umenunciado entram também outras condições (p. ex.: o grau de capacidademnemônica para ligar os vãrios constituintes de um enunciado complexo),está claro que gramaticalid·ade e interpretabilidade não podem ser iden­tificadas. Além disso, e é o mais importante, dado que a "boa formação"de um enunciado constitui condição imprescindível de sua interpreta­bilidade plena, é necessário estudar prelimin«l'mente as regras formaisque a determinam: ou seja, estudá-la por aquilo que ela é, e nãoatravés de seus efeitos (para produzir os quais contribuem outros com­ponentes).

10. Recorro aqui a exemplos de violações macroscópicas porqueem Husserl há, simplesmente, uma distinção entre gramaticalidade e não­-gramaticalidade e falta qualquer referência a possíveis graus de grama­ticalidade. Assim, por exemplo, uma locução como "Ele teve umpensamento verde" (Ziff), que viola uma regra de seleção, é considerada

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teremos não-enunciados semanticamente incongruentes.Isso não significa, porém, que o uivei gramatical e osemântico sejam indistintos, como demonstram os exem­plos de enunciados gramaticais mas semanticamenteanômalos, como(3) A não é Aou, pelo contrário, os exemplos de locuções não-grama.ticais mas semanticamente congruentes, como

(4 ) Se dependesse de mim, eu partiria.

Husserl retoma tudo isto, afirmando que enquanto ocnmponente propriamente semântico (que na Lógicaformal e transcendental vai atribuir à lógica da não­-contradição) tem a função de impedir o contra-senso ­ou seja, a constituição de enunciados como (3) - ocomponente gramátical (e particularmente a sintaxe) édestinado a impedir a formação do não-sentido, isto é,a constituição de locuções como (1). Traduzido emtermos positivos, isto significa que o componente gra­matical opera a um nível preliminar, nível este que incidesobre a própria possibilidade, para uma locução, de tervalor de enunciado e que portanto define sua estruturaformal. O fato de uma transgressão neste plano implicaruma anomalia no plano semântico não significa queesta anomalia seja suficiente para dar conta daprópria violação; pelo contrário, para dar conta da inter­pretação semântica é necessário ter antes explicitado aspropriedades estruturais do componente gramatical.

2. 3. Como se disse, para Husserl, a peculiaridade dasintaxe consiste no fato de ela operar sobre um númeroexíguo de estruturas primitivas para obter um númeropotencialmente ilimitado de enunciados. Isto se tornapossível graças à propriedade combinatória da sintaxe,que pode inserir aquelas estruturas primitivas no inte­rior de estruturas mais completas.

Se se proceder à decomposição de um determinadoenunciado, chegar-se-á, depois de ter passado por umasérie mais ou menos longa de graus, a membros últimosque, do ponto de vista sintático, não são mais decom~

gramatical por Husserl, que limita sua análise aos casos de violação dascategorias nos aspectos maiores (na prãtica as lexicais). sem se preo·cupar com possibilidade de subcategorizações ulteriores. ef., a propó­sito, Chomsky, A.T.S., 1965, p. 152.

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powvelS: o que equivale a dizer que se trata de uni­dades combinatórias mínimas que podem apresentar-seem um númerO indefinido de enunciados diferentes manotendo, mesmo assim, a sua identidade. Husserl chamaestas unidades mínimas de "matérias" sintáticas e pro­cura definir a SUa relação com as "formas" sintáticas.

Efetivamente, a função de uma forma sintáticaconsiste em ligar os vários membros dentro da totalidadedo enunciado; deste modo, graças a este processo deestruturação, a cada membro (a cada "matéria") é atri­buída uma função, denotando o termo função precisa­mente a relação daquele membro com a forma globaldo enunciado (ou com as estruturas intermediárias quese ligam a esta forma).

Neste momento duas observações se tornam neces­sárias: a) as matérias siutáticas não são distinguidassegundo SUa "substância" (isto é, mediante consideraçõesde ordem extra-sintática), mas com base em conside­rações de ordem distribucional, salientando suas possi­bilidades de ocorrência em determinados contextos sin­táticos: isto é, as matérias são elementos que "emergempor abstração das formas funcionais" (Husserl, L.F.T.,1966, p. 373); b) o processo de modelamento é reite­rável indefinidamente, o que equivale a dizer que deter­minadas formas podem ser subsumidas por outras degrau superior (isto é, podem por sua vez ter função dematérias), através de dispositivos de ligação, subordi­nação, etc., que, podendo ser repetidos à vontade e com­binados um com o outro, são capazes de gerar um con­junto virtualmente infinito de enunciados. Na "gramá­tica lógica pura", a pesquisa sintática é precisamentechamada a explicitar os princípios abstratos que regemesta atividade combinatória, definindo em primeirolugar relações de compatibilidade e de incompatibili­dade.

Dentre os vários dispositivos utilizados pelo com­ponente sintático, Husserl dedica particular atenção aoconceito de transformação. Dissemos anteriormente quede um número extremamente limitado de estruturasprimitivas (caracterizadas por sua "simplicidade": po­deríamos falar, por exemplo, das estruturas subjacentesa enunciados declarativos, ativos e não-compostos) épossível derivar tantos enunciados de estrutura maiscomplexa quanto quisermos. E isto se torna possível

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justamente por um dispositivo de transformação. A estepropósito, o exemplo que Russerl utiliza mais freqüen­temente é o da nominalização, que pode ser sumaria­mente definida nestes termos: é inerente a todo enun­ciado a possibilidade de aparecer como membro deum outro enunciado, e isto graças a uma "modificação"de sua forma superficial.

"No campo dos significados 11, existem leis a priori, segun·do as quais os significados se transformam de várias formas emnovos significados, conservando um núcleo essencial", e é neces­sário pôr em evidência "aqueles casos particularmente notáveisonde proposições inteiras podem, mediante a nominalização,ocupar o lugar do sujeito, assim como qualquer outro lugarque exija membros nominais" (Husserl, L.F.T., 1966, p. 114).

Portanto, de um enunciado 12 como "o ministrochegou" pode ser derivado um sintagma como "a che­gada do ministro" que pode, por exemplo, ter funçãode sujeito em outro enunciado (cf. R.L., V, pp. 254 ess.). Russerl usa como exemplos, além da nominali­zação, outros tipos de transformação, como a "atribui­ção", que permite a passagem do enunciado-base "8 épI' para o enunciado derivado "Sp é q", ou a "conjun­ção", que permite a passagem dos enunciados-base "Aé p" e "B é p" para o enunciado derivado "A e Bsão p". Em termos gerais, se é certo que toda línguanatural submete as estruturas subjacentes a processos demodificação e de reelaboração (como por exemplo aselipses, as conjunções, etc.), não é menos certo que ainterpretação dos enunciados derivados assenta naque­las formas-base, e o problema essencial da Lingüísticaconsiste justamente em identificar aquele conjunto deregras que preside à combinação das estruturas primi­tivas:

Para captar a idéia desta morfologia pura, é preciso ter bemclaro que, no plano de uma classificação de juízos possíveisem geral, que se refira à sua forma, se destacam "formasfundamentais", ou seja, um sistema fechado de formas funda­mentais a partir das quais podem ser produzidas por construção(graças a uma legalidade essencial própria delas) formas sem­pre novas e cada vez mais amplamente diferenciadas [ ... ](Husserl, L.F.T., 1966, p. 62).

2.4. Tais considerações servem para esclarecer

11 . Quanto ao uso do termo sigllÜicado, cf. nota 7.12. O termo "enunciado", adotado aqui para simplificar, é impr6­

prio. já que se deveria falar de estrutura subjacente do enunciado.

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o projeto husserliano de uma "gramática pura". Nabase deste projeto encontramos uma exigência radicalde formalização e, como se viu, a razão desta exigênciaconsiste no fato de uma pesquisa assim definida terpor objeto as possibilidades de construção do enunciado,ou seja, um conjunto de princípios formais que impõemrestrições às escolhas combinatórias do falante. Exata­mente pelo fato de incidirem sobre possibilidades, estesprincípios operam a um nivel abstraIO, o que eqnivalea dizer que se aplicam a classes ou categorias mais doque aos membros efetivos destas categorias, de modotal que sua identificação deve traduzir-se numa "sinopsesistemática" do conjunto potencialmente ilimitado dosenunciados deriváveis de um número restrito de estru~

turas-base por combinação e transformação. Alémdisso, dado que estamos lidando com formas e nãocom substãncias (graças à resolução dos elementos con­cretos em variáveis), é natural que tal formalização seoriente no sentido de uma algebrização da gramática. Aformulação das leis que presidem à construção e àcombinação dos enunciados não contém portantonenhuma referência às substâncias, mas utiliza simbolosalgébricos (cf. R.L., VI, p. 491) que denotam os con­juntos indeterminados dos membros das várias catego­rias (p. ex.: da categoria "adjetivo"). Justamente poreste motivo, ta!s leis não tem valor prescritivo parasubstãncias determinadas, mas se referem a puras possi­bilidades formais. Compreende-se agora a razão pelaqual Husserl fala de uma gramática "pura", e é supér­fluo salientar que esta última, definida nestes termos,assume o estatuto não já de ciência descritiva da gra­mática de uma língua dada (ou de mais de uma lin­gua), mas de teoria das formas possíveis de gramática.E neste sentido que Husserl recupera, mesmo com re­servas explícitas, o conceito tradicional de gramáticauniversal". Se a Lingüística Descritiva parte do dado

13. :t interessante Dotar como esta recuperação se realiza na pers­pectiva de uma orientação (partilhada por outros tipos de pesquisa, d.n. 2) tendente a sublinhar a função prioritária desemrenhada por umcomponente "abstrato" (caracterizado por um conjunto de restriçõesformais) em relação aos conteódos empírico~concretos. Por outraspalavras, o conjunto de regras abstratas que caracterizam a linguagemnão pode ser empiricamente inferido de um conjunto mais ou menosvasto de "dados" (p. ex.: o comportamento lingÜístico observado): pelocontrário, s6 se pode dar conta deste comportamento à luz de umaexplicitação prelim:nar da componente abstrato. É s6 neste sentido limitadoque se pode falar da normatividade deste óltimo em relação ao obser~vado: "O que vem compreendido in specle como incompatível não podeser unificado e portanto nem ser compatível, nos casos empíricos singu·

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efetivo da diversidade das línguas, e deve portanto darconta de dispositivos gramaticais particulares que sub­metem as estruturas primitivas a processos de construção,transformação, etc., próprios das várias línguas, poroutro lado a função de uma "teoria", entendida comogramática pura, é a de iluminar as possibilidades estru­turais comuns de entre as quais aqueles dispositivos sãoselecionados. Daí a referência ao problema dos "uni­versais" que Husserl diferencia em universais empíricos(baseados em dados fatuais, como por exemplo aconstituição psicofísica, que determina algumas pro­priedades acústico-articulatórias comuns a todos os fa­lantes de qualquer língua) e universais em sentido pró­prio, constituídos por regras de ordem formal que pre­sidem à constituição de qnalquer estrutura lingüística (edotadas de uma necessidade "lógica" intrínseca) 14. Porbaixo das diferenças que se verificam entre as váriaslínguas, é possível entrever uma "ossatura ideal" comum,cuja explicitação, própria de uma teoria geral da lin­guagem, se impõe como exigência epistemológica preli­minar:

Por mais que seja assim determinada pelo conteúdo fatuaIdas línguas históricas, pelas suas formas gramaticais, toda línguaestá contudo ligada a esta ossatura ideal; e portanto sua pes­quisa teórica deve constituir um dos fundamentos para o escla­recimento científico final de toda língua em geral (R,L., N,p. 127).

Apêndice

Nas páginas precedentes se insistiu repetidamenteno fato de, justamente por causa de sua orientação em

lares" (R.L., VI, p. 499). Esclarece-se assim a razão pela qualHussert fala de uma estrutura lógica subjacente aos vários dados tin­gllisticos, que pelo contrário é ne~ada. por exemplo, por Hjelmslev (P.G.G.,1928, p. 22). Mas é significativo que, para fazer isso, Hjelmslev recorraao conceito de mentalidade pré-lógica introduzido por Lévy-Bruhl; istoé, existiriam línguas, como as dos "primitivos". que trariam a marca detal mentalidade e que, portanto, seriam carentes do ponto de vista"lógico". Todavia, é sabido que a antropologia contemporânea colocouem questão a hipótese de uma mentalidade pré-Iógica, particularmenteem referência às capacidades taxin8micas do chamado penSamento pri­mitivo. Sobre Husserl e o problema da gramática universal, d. Jakobson,E.L.G., 1963 a, pp. 275-276.

14. Tal distinção pode ser compreendida melhor à luz da estabe­lecida por Chomsky (A.T.S., 1965, pp. 27 e ss.) entre substantive universaise formal universais: OS primeiros são introduzidos pela afirrD3ção segundoa qual certos traços de toda lingua (p. ex., os fonéticos) são extraídosde um conjunto determinado de traços independentes de toda línguaparticular; no exemplo citado, este conjunto é representado por uma

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sentido "formal", a análise husserliana visar prelimi­narmente a classes abstratas, categorias, em vez de subs­tâncias concretas. Trata-se agora de esboçar rapida­mente os pressupostos metodológicos do conceito declasse de variantes e indicar a sua relevância para ainvestigação lingüística. No seu ensaio sobre a QuartaInvestigação Lógica, Bar-Hillel (H.C., 1957, p. 366)observa que Husserl fornece uma antecipação signifi­cativa do conceito de comutação, tal como foi desen­volvido na investigação lingüística posterior, e acres­centa que o alcance desta intuição é limitado: a) pelorecurso exclusivo à esfera do significado lO; b) pelautilização de categorias próprias da Lingüística dotempo, na realidade inadequadas. Já tivemos oportuni­dade (cf. acima, nn. 7 e 8) de mostrar quanto é subs­tancialmente fundamentado o primeiro ponto. Pode-sedizer o mesmo a respeito do segundo, mas é precisoacrescentar que para compreender plenamente a impor­tância de que se reveste o conceito de "tipo" para aLingüística é preciso ir além das análises específicasque Husserl dedica ao problema da linguagem, e expli­citar os seus temas metodológicos gerais.

Por "variação eidética" Husserl entende um pro­cedimento de ordem geral encarregado de identificarclasses de variantes. Tal procedimento pode ser des­crito sumariamente nestes termos: o ponto de partidaé constituído por um ou mais dados escolhidos arbitra­riamente; vem aplicado a eles um dispositivo que ossubmete a um conjunto teoricamente ilimitado 16 de va­riações e que seleciona os resultados equivalentes; oponto de chegada é o "tipo" 17 abstrato (eidos, essên­cia) que inclui os resultados equivalentes. Este tipo

série de propriedades acúsfco-articulatórias; os segundos são muito mais"abstratas", e podem, por exemplo, dizer respeito a certas condiçõesformais que qualquer gramâtica tem que respeitar.

IS. A respeito desta afirmação, que parece plausível, d. n. 7.16. Evidentemente, um inventário de todas as ocorrências passiveis

é uma tarefa absurda para qualquer pesquisa: pelo contrário, o quese exige são considerações sistemáticas. Do ponto de vista da lingUísticadistribucional, isto já foi esclarecido por Harris (SL., 1960, p. 13):"[ ... ] A análise de um corpus particular adquire interesse apenas sefor virtualmente idêntica à análise que teríamos igualmente obtido apartir de qualquer outro corpus, suficientemente amplo, de materialextraído do mesmo dialeto. Se for este o caso, podemos predizer asrelações entre elementos em qualquer outro corpus da lingua, com basenas relações encontradas no corpus que analisamos: conseQÜentemente, esteúltimo pode ser considerado um modelo descritivo da língua".

17. Entre os termos adotados por Husserl dei preferência a '<tipo",para ,alientar sua relação com o par type/token.

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tem portanto a peculiaridade de unificar dentro de seupróprio âmbito (o domínio da variabilidade, que incluias várias realizações do tipo em suas diversas ocorrên­cias) membros que, do ponto de vista material, podematé diferir notadamente - dado que a função da varia­ção é precisamente a de ensaiar o "comportamento"dos dados em contextos situacionais diferentes - masque não deixam por isso de apresentar traços formaiscomuns. Ora, com base na variação eidética, dois dadosquaisquer podem ser incluídos no mesmo tipo, desdeque se leve em conta uma destas duas condições 18: a)quando podem substituir-se livremente no interior deum certo contexto, sem que a forma complexa do todoseja por isso modüfcada; b) quando, tendo por prin­cípio contextos diferentes (e estas diferenças de con­texto determinam diferenças entre os dois dados emquestão), apesar disso apresentam traços formais co­muns, que se inserem em um conjunto sistemático derelação com outros traços. E necessário salientar que,como se disse, cada tipo se caracteriza por um "domíniode variabilidade" e que qualquer dado que cai fora destedomínio entra automaticamente em choque com qual­quer outro que, pelo contrário, 1be pertença. Isto é,existem duas espécies de "diferenças" possíveis: por umlado, as que se referem a membros do mesmo tipo e queportanto podem ser consideradas não-pertinentes (Hus­serl chama-lhes "não-essenciais", porque não são redu­tíveis a duas essências ou tipos diferentes: isto é, trata­-se de diferenças dependentes do contexto ou de dife­renças dependentes da variabilidade das situações emque o tipo foi realizado); por outro lado, as que se re­ferem a dois tipos - ou me1bor, às respectivas reali­zações destes dois tipos --l e que portanto são essenciaisdo ponto de vista do sistema global (cf. Husserl, E.G.,1965, pp. 386 e ss). O procedimento da variação eidéti­Ca pode portanto ser interpretado como método distribu­cional num triplo sentido: a) SUa função consiste em

18. Esta formulação é aqui imprecisa, porque coloca no mesmoplano aquilo que, em Fonologia, Se chama variantes livres (que satisfazemo ponto a) e as. variantes combinatórias (que satisfazem o ponto b).Na realidade, entre estas duas espécies de variantes há uma diferençaessencial, que consiste no fato de a natureza das primeiras ser deter­minada por regras dotadas de uma necessidade intrfnseca (regras, justa­mente, de tipo combinatório), enquanta a das segundas não o é. Naterminologia saussuriana, poderfamos dizer que as primeiras são unidadesde parole e as segundaa de Zangue.

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identificar tipos ou classes de variantes; b) para fazerisso precisa distinguir as diferenças pertinentes das quedependem do contexto; c) tal distinção só é possívelcom base na consideração sistemática dos contextos pos­síveis em que os dados em questão podem ocorrer.Segue-se daí que o tipo não é uma coleção de membrosconcretos, mas uma possibilidade abstrata suscetível demúltiplas realizações e inserida num conjunto de relaçõesformais com outros tipos. Retomando a observação deBar-Hillel, é agora possível precisá-la deste modo: aofalar da prioridade lógica do abstrato sobre o concreto ­prioridade segundo a qual as realizações concretas são"reconhecíveis" e podem portanto desempenhar umafunção distintiva, não tanto devido a suas diferençasmateriais intrínsecas (que podem ser não-pertinentes,e portanto privadas de valor distintivo do ponto devista do sistema), quanto devido à sua pertinência acategorias abstratas -, Husserl antecipa a orientaçãoepistemológica que é própria da investigação lingüís­tica pós-sanssuriana e que subordina, do ponto de vistaheurístico, a parole à tangue. Esta afinidade epistemo­lógica liga, em particular, o método da variação eidé­tica com a análise fonológica da Escola de Praga. Efe­tivamente, nesta última o problema central é o da iden­tificação das oposições pertinentes, a partir da qual épossível instituir classes variantes (livres on combina­tórias), cada uma das quais é dotada, apesar das pos­síveis diferenças verificáveis entre os seus membros, deuma identidade funcional. Todavia, sob este ponto devista, é necessário mais uma precisão. Corno se sabe,a prova da comutação, que desempenhou um papelessencial nas pesquisas da Escola de Praga, consiste emsubstituir, no interior de um mesmo contexto, uma rea­lização fónica por uma outra: se esta substituição pro­duzir paralelamente uma modificação no plano do signi­ficado, nesse caso os dois sons em questão serão reali­zações de fonemas (isto é, de "tipos") diferentes, casocontrário teríamos duas variantes livres de um mesmofonema (cf. Trubetzkói, P. Ph., pp. 33 e 47) ". Poroutras palavras, isto significa que as oposições perti­nentes são registradas com base em dados não-fonoló-

19. Pelo contrário, a distinção das variantes combinatórias realiza­·se sobre bases puramente distribucionais, isto é, independentemente daesfera semântica.

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gicos, ou seja, com base em diferenças de significado.Ora, o método da variação eidética se caracteriza tam­bém pelo fato de proceder à distinção das variantes( eportanto do tipo "abstrato" como classe de variantes)sobre bases puramente intrínsecas, isto é, registrando asvariações às quais se submetem os dados em exame, semrecorrer a planos diferentes daquele que é o próprio atais dados. Neste sentido, parece que se torna neces­sário corrigir parcialmente a observação de Bar-Hillel,para, pelo contrário, aproximar os pressupostos meto­dológicos aos quais Husserl se refere de um procedi­mento de tipo integralmente distribucional.

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COLEÇAO DEBATES

1. A Personagem de Ficção, A. Rosenfeld, A. Candido,Décio de A. Prado, Paulo Emilio S. Gomes.

2. Informarão T insuogem Comunicação; Décio Pignatari.3 . Q Ba/anço da Bossa. Augusto de Campos4. Obro Aberta. Úmberto Eco.5. Sexo e Temperamento, Margaret Mead.6. Fim do Povo Judeu?, Georges Friedmann.7. Texto/Contexto, AnatoI Rosenfeld.8. O Sentido e a Máscara, Gerd A. Bombeim.9. Problemas de Fisica Moderna, W. Heisenberg, E. Schroe­

dinger, Max Born, Pierre Auger.10. Distúrbios Emocionais e Anti-Semitismo. N. W. Acker-

man e M. Jaboda.11. Barroco Mineiro, Lourival Gomes Machado.12. Kafka: pr6 e contra, Günther .Anders.13. Nova História e Novo Mundo, Frédérlc Mauro.

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14. As Estruturas Narrativas, Tzvetan Todorov.15. Sociologia do Esporte, Georges Magnane.16. A Arte no Horizonte do Provável, Haroldo de Campos.17. O Dorso do Tigre, Benedito Nunes.18. Quadro da Arquitetura no Brasil, Nestor Goulart Reis

Filho.19. Apocalípticos e Integrados, Umberto Eco.20. Babel & Antibabel, Paulo Rónai.21. Planejamento no Brasil. Betty Mindtin Lafer.22. Lingüística. Poéticà. Cinema, Roman Jakobson.23. LSD, John Cashman.24. Critica e Verdade, Roíand Barthes.25. Raça e Ciência I, Juan Comas e outros.26. Shazaml, Alvaro de Moya.27. As Artes Plásticas na Semana de 22, Aracy Amaral.28. História e Ideologia, Francisco Iglésias.29. Peru: Da Oligarquia Econômica à Militar, Arnaldo Pe-

droso D'Horta.30. Pequena Estética, Max Bense.31. O Socialismo Utópico, Martin Buber.32. A Tragédja Grega Albjo I.e.slu'.33. Filosofia em Nova ChOl'e, Susanne K. Langer.34. Tradição, Ciência do Povo, Luís da Camara Cascudo.35. O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco, Affonso

Ávila.36. Sartre, Gerd A. Bomheim.37. Planejamento Urbano, Le Corbusier.38. A Religião e o Surgimento do Capitalismo, R. H. Tawney.39. A Poética de Maiakóvski, Bóris Schnaiderman.40. O Visivel e o Invisível, Merleau-Ponty.41. A Multidão Solitária, David Riesman.42. Maiakóvski e o Teatro de Vanguarda, A. M. RipelIino.43. A Grande Esperança do Século XX, J. Fourastié.44. Contracomunjçqção. Décio Pignatari.45. Unissexo, Charles Winick.46. A Arte de Agora, Agora, Herbert Read.47. Bauhaus - Novarquitetura, Walter Gropius.48. Signos em Rotação, Octavio Paz.49. A Escritura e a Diferença, Jacques Derrida.50. Linguagem e Mito, Ernst Cassirer.51. As Formas do Falso, Walnice GaIvão.52. Mito e Realidade, Mircea Eliade.53. O Trabalho em Migalhas, Georges Friedmann.54. A Significação no Cinema, Christian Metz.55. A Música Hoje, Pierre Boulez.56. Raça e Ciência 11, L. C. Duno e outros.57. Figuras, Gérard Genette.58. Rumos de uma Cultura Tecnológica, A. Moles.59. A Linguagem do Espaço e do Tempo, Hugh Lacey.60. Formalismo e Futurismo, Krystyna Pomorska.61. O Crisdntemo e a Espada, Ruth Benedict.62. Estética e História, Bernard Berenson.63. Morada Paulista, Luís Saia.64. Entre o Passado e o Futuro, Hannab Arendt.65. Política Cientifica, Darcy M. de Almeida e outros.

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66.67.68.69.70.71.72.73.74.75.76.77.78.79.80.81.82.83.

- 84.85.86.87.88.89.90.91.92.

94.95.96.97.98.99.

100.101.

102.103.104.105.106.107.108.109.110.

A Noite da Madrinha, Sergio Miceli.1822: Dimensões, Carlos Guilherme Mota e outros.O Kitsch, Abraham Moles.Estética e Filosofia, Mikel Dufrenne.Sistema dos Objetos, Jean Baudrillard.A Arte na Era da Máquina, Maxwell Fry.Teoria e Realidade, Mario Bunge.A Nova Arte, Gregory Battcock.O Cartaz, Abraham Moles.A Prova de Goedel, Ernest Nagel e James R. Newman.Psiquiatria e Antipsiquiatria, David CooperoA Caminho da Cidade, Eunice Ribeiro Duchan.O Escorpião Encalacrado, Davi Arrigucci Júnior.O Caminho Crítico, Northrop Frye.Economia Colonial, J. R. Amaral Lapa.Falência da Crítica, LeyIa Perrone-Moisés.lAzer e Cultura Popular, Jeffce Dumazedier.Os Signos e a Crítica, Cesare Segre.Introdução à Sem ' fac Julia Kristeva. ?

rlses a epública. annah ren _. .Fórmula e Fábula, Willi Bane.Saída, Voz e Lealdade, Albert Hirschman.Repensando a Antropologia, E. R. Leach.Fenomenologia e Estruturalismo, Andrea Bonomi.Limites do Crescimento, Donel1a H. Meadows e outros.

anico . s, Prisões e Conventos, Erving Goffman.Maneirism : O Mundo como Labirinto, Gustav R. Hocke.Semiótica Literatura Décio Pi at ri.

ozm as, c., ar os . C. mos.]h....""'!.~l'ões dos Oprimidos, Vittorio Lanternari.Os Três Estabelecimentos Humanos, Le Corbusier.As Palavras sob as Palavras, Jean Starobinski.Introdução à Literatura Fantástica, Tzvetan Todorov.O Significado nas Artes Visuais, Erwin Panofsky.Vila Rica, Sylvio de Vasconcellos.Tributação lndireta nas Economias em Desenvolvimento,John F. Due.Metáfora e Montagem, Modesto CaTone Netto.Repertório, Michel Butor.Valise de Cronópio, Julio CortázaT.A Metáfora Crítica, João Alexandre Barbosa.Mundo, Homem, Arte em Crise, Mário Pedrosa.Ensaios Críticos, Ramón Xirau.Do Brasil à América Frédédc Mauro. ?

-8 J~JoachimE. Berendt. .Um LivroJO~~~Brasileiro, Blaise Cendrars.

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Próximo lançamentoLimites do Cre9cimentoOonella H. Meadows e outros

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Através do estruturalismo, 11 fenom.enologia lem sido redes­coberta e aprofundada. Por sua vez a' moderna compreen.s3odo méfodo fenomenológico imprime nova qualidade à aplicu­ção do rooceilo de estrutura ao estudo das dêm:ias do homem.Andrea Bonomi, ensaísta e pensador italiano já conhecido noBrasil por sua atuação como conferencirta, religa ambos oslDélooos com rdnt felicldade. Husserl. Merleau..Ponb. Kõhler.Lévi-Strllu~",. Piagel~ con.st.ifuern os marcos para 111 feCUlldll cor­relação estabelecida ao longo do livro. A experiência fenomi.­dca na ps"kologia da Geslalt, o entendimento da 1inlo.'1Jagemcomo primeira doação de fonna ao mundo sonoro, as im:plica·ções filOSÓfic"'dS na antropologia est.rutural, a idéia de "nomu­lidade", a fenomenologja <.'0010 análise de estruturas, são te·mas que marcam o desenvolvimento upositi"o. 'iA reduçãofenom.enológica não é uma conversão mística do olhar, é umfazer ativoj voltu·se par... as lIlodalidadeS" constitutivas do serdas cubas." Nessa afirmação, basbmte esclar«edonl, o el\.­IruhJmlismo, ..a..rente da aüvidade espeooJativll ....ontempor.'inea,rttuperd, como seu aliado, o passado filosófico mais recentec o relança para um futuro critico em processo.

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