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BLIZZARD ENTERTAINMENT

A força do aço

Raphael Ahad

Koak estava caindo. Uma queda sem fim por incontáveis léguas de nuvens e chuva. A

terra lá embaixo parecia para sempre além do alcance de sua visão. Ao redor dele voavam

os dragões, com escamas vermelhas como sangue e olhos de ouro derretido, fantasmas

rubros em uma tempestade eterna. Koak podia sentir o ódio fervente contra seu corpo

órquico.

Ele ergueu o punho contra os dragões e gritou com a autoridade do clã Presa do

Dragão. — Me obedeçam! — ordenou, mas sua voz estava maculada por medo e dúvida.

— NÃO! — rugiram eles, em uníssono. Suas inúmeras sombras se fundiram em uma

única, maior que o próprio céu. O relâmpago faiscou e Koak vislumbrou Grim Batol ao

longe, uma ruína fumegante que ele outrora chamara de lar.

— Koak! — gritou alguém.

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O sopro do dragão causou uma conflagração e os céus se incendiaram. Koak uivou

de dor enquanto as nuvens de tempestade queimavam e seu mundo era consumido pelo

fogo. Sua queda acelerou de repente e o chão implacável aproximou-se para encontrá-lo…

— KOAK!

Ele acordou abruptamente no ponto de impacto, com o eco da explosão apitando em

seus ouvidos. Embaixo dele havia um convés de madeira lixada e polida. Acima, o balão

inflado de um zepelim goblínico. A nave era um inferno incandescente, e sua tripulação

lutava freneticamente para mantê-la no ar.

— Abandonar a nave! — gritou o capitão.

Koak se ergueu cambaleando. Sangue escorria de uma ferida aberta em sua testa. —

A Aliança... — disse, ainda tonto. Ao olhar por sobre a amurada, viu uma belonave

desaparecer entre as nuvens bem acima da Floresta de Jade.

Com um guinchado de metal retorcido, o zepelim se inclinou lentamente para o lado.

Koak correu para se agarrar a alguma coisa — qualquer coisa — enquanto as águas do Mar

Nebuloso apareciam a estibordo. Então outra explosão o derrubou, arremessando-o para o

ar, por sobre a amurada. Os gritos de socorro do capitão foram soprados pela brisa do

oceano.

*****

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Uma chuva leve caía e os ventos costeiros sussurravam em seus ouvidos. Koak

chegara à praia. Sua perna pulsava; a dor era contínua. A corrente o arremessara contra as

pedras e ela recebera o pior do impacto. Jazendo alquebrado, sangrando na areia, ele se

perguntou se aquilo era o que Grito Infernal tinha em mente ao ordenar que pintassem o

continente de vermelho.

Ele estava em uma ilha pequena, com uma única torre de pedra no centro, alçando-

se na direção das nuvens. Por toda a parte, destroços flamejantes do zepelim afastavam-se

da costa em direção à torre, detritos que caíram da nave em sua descida final. O resto

flutuava sobre as ondas, junto com os cadáveres calcinados dos antigos colegas.

Pela Horda, pensou, amargo. Houve uma época em que aquelas palavras tinham

significado para Koak. A dor na perna aumentou quando ele se ergueu.

Apoiando-se em uma muleta improvisada, Koak coxeou em direção ao interior,

entre os restos espalhados da nave, em busca de sobreviventes. Fumaça pungente se

evolava dos tanques de combustível rompidos, fazendo seus olhos e pulmões arderem. Ele

quase sufocou com os gases ao dar a volta em uma seção devastada do casco do zepelim.

Diante dele apareceu uma serpente das nuvens monstruosa, as escamas escarlates

cintilando com sangue úmido.

A perna de Koak cedeu e ele arquejou e cambaleou para diante. A serpente se

postava em um ninho de pedra achatada na base da torre. Seu corpo estava recoberto de

cortes e queimaduras. Ela ergueu a cabeçorra e encarou Koak.

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— Calma... — sussurrou Koak no tom mais dócil que conseguiu. A serpente tinha

nove metros de músculo sólido, com garras tão grandes que poderiam facilmente envolver

o torso de Koak e esmagar suas costelas enquanto as enormes mandíbulas o partiam ao

meio. Mas ela não se moveu para atacá-lo, e Koak percebeu que ela estava morrendo. Ele

reparou nas pilhas de metal retorcido e madeira queimada que cercavam o ninho.

Nós fizemos isso, pensou. Subitamente, sentiu-se enjoado.

Lentamente, como se quisesse mostrar algo a ele, a serpente se desenroscou. No

centro do ninho havia um único ovo do tamanho do peito de Koak, imaculado, incólume. A

casca brilhava feito granada polida. A serpente o tratava com carinho, em contraste com

sua aparência feroz. Ela podia ter escapado ao seu destino, mas ficara para proteger o ovo.

Por algum motivo, aquilo enraiveceu Koak.

— Você se sacrificou em vão — grunhiu ele. — O filhote vai morrer de qualquer

jeito, abandonado e sozinho. — Ele fez uma careta quando outro espasmo de dor percorreu

sua perna. Sangue escorria feito um rio, manchando o chão. E eu vou morrer junto.

A serpente ergueu a cauda e a enroscou no punho de Koak, puxando-o com

insistência na direção do ninho. Ela rastejou até o lado dele e o empurrou por trás. Ele se

viu diante do ovo.

Ela quer que eu tome conta dele? Eu?

— Não — protestou Koak, mas não conseguia parar de encarar o ovo.

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Ele estendeu a mão na direção do ovo. O espaço entre eles parecia espesso e pesado

como a bonança antes da tempestade. Quando ele o tocou, um choque agudo perfurou seu

braço. Koak sentiu o ovo tremer sob a palma; sutilmente no começo, mas logo começou a

sacudir com tanta força que ele se afastou apreensivo.

Então a parte superior do ovo explodiu, cobrindo Koak com fragmentos de casca.

Uma aura brilhante de fumaça vermelha saía da rachadura, avançando pelo chão como uma

parede de neblina. De dentro do ovo saiu uma serpente das nuvens brilhante com escamas

de rubi e olhos de safira, olhos tão profundos e fluidos que encará-los era como tentar

discernir o fundo do mar.

O filhote encarou Koak e susteve a mirada. Koak estendeu a mão; o filhote

serpenteou para diante e fechou as pequenas mandíbulas na carne da palma. Koak não

recuou, suportando a dor até a jovem serpente se acalmar. Ela enroscou o corpo em seu

braço.

Koak viu a mãe observá-los com uma expressão de tristeza evidente. Ela encarou

Koak uma última vez, e ele encolheu-se diante do olhar fixo. Ela fechou os olhos e seu corpo

subiu e desceu com um último suspiro ofegante. Então ficou imóvel. O filhote a viu, e seus

gritos atormentados indicaram a Koak que ele sabia o que tinha acontecido. Ele observou

em silêncio o filhote ir até o corpo da mãe, acariciá-la tristemente com o focinho e

enrodilhar-se à sua sombra.

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Nos dias que se seguiram, Koak lutou para manter os dois com vida enquanto

esperava o grupo de busca que suspeitava que o general Nazgrim não mandaria. E por que

deveria mandar? A vida de um único orc não preocupava Grito Infernal, assim como a vida

de um único dragão não importaria aos Presa do Dragão. Koak estava sozinho.

A chuva fornecia uma quantidade limitada de água doce, e o apetite da serpente

jamais se satisfazia, não importava quantos vairões-doces ele pescasse. Sua perna o

atormentava sem parar, assim como a questão do que fazer com o filhote.

No quinto dia, as chuvas pararam. As esperanças de salvação de Koak esvaíam-se e a

serpente tiritava de frio. Foi então que ele viu dois vultos aproximando-se pelo céu. Uma

dupla de serpentes das nuvens adultas dardejava graciosamente entre as outras torres

acima do oceano, cada uma com um pandaren às costas. Elas circularam agilmente pelos

picos das montanhas e voltaram aos penhascos da Floresta de Jade a uma velocidade

estonteante. Uma história que ele ouvira de um dos nativos semanas antes ecoou em sua

mente.

A Ordem da Serpente das Nuvens.

*****

Os penhascos varridos pelo vento da Floresta de Jade se erguiam íngremes e altos

sobre o Mar Nebuloso. Koak e o filhote tinham cruzado as águas em uma jangada que ele

improvisara a partir do casco quebrado do zepelim e agora avançavam penosamente ao

longo de uma trilha estreita e íngreme em direção à floresta. A perna de Koak doía sem

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cessar; dores agudas e latejantes. Para piorar, a serpente lutava por todo o caminho,

forcejando por livrar-se da corda esfiapada com que Koak a amarrara.

— Fica quieta! — bufou Koak, com a voz embargada de cansaço. — A gente vai

chegar logo, logo, aí você passa a ser problema da ordem.

As forças de vanguarda da Horda tinham chegado a Pandária fazia pouco, mas Koak

já ouvira falar bastante da Ordem da Serpente das Nuvens. Os cavalgadores de serpentes

eram guerreiros poderosos que montavam bestas ferozes. Dizia-se que eles entravam em

batalha velozes feito o vento, atacando com a força do céu e da tempestade. Koak vinha

nutrindo um desejo secreto de conhecê-los, de testemunhar seu poder e compará-lo ao dos

Presa do Dragão.

Claro que Koak não sabia muito sobre os Presa do Dragão. Ele era apenas uma

criança quando a revoada vermelha destruiu Grim Batol e um dos poucos fracos demais

para fugir da Aliança quando o resto do clã escapou para o Planalto do Crepúsculo. O que

ele sabia sobre o próprio clã, tinha aprendido de histórias contadas por veteranos da

Segunda Guerra e dos sonhos que atormentavam suas noites mal dormidas. Nunca

conseguira controlar um dragão; o filhote de serpente que ele arrastava a contragosto

colina acima já era até demais para ele.

A Ordem da Serpente das Nuvens dever ser mesmo temível, pensou Koak, para domar

feras tão turronas.

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Quando chegaram ao topo, Koak pensou por um instante que tinham subido a colina

errada. Ele esperava uma fortaleza de aço e ferro, uma cidadela poderosa protegida por

serpentes em patrulha, adornadas em armaduras e prontas para a batalha. O que ele viu em

vez disso foi um chalé modesto e um gazebo delicado, ambos construídos em madeira e

pedra, cercados de poças de lama e montes de feno.

— Não pode ser aqui — murmurou para si mesmo. Mas, ao dobrar a esquina do

chalé até a área mais adiante conduzindo o filhote, Koak viu serpentes das nuvens de todas

as cores e tamanhos. Algumas descansavam em jaulas abertas enquanto eram escovadas e

alimentadas. Outras flutuavam calmamente ao lado das companheiras, apreciando a

caminhada vespertina. Alguns filhotes sentavam-se enrodilhados e plácidos no colo de

pandarens que meditavam beatificamente à margem de um córrego tranquilo.

Koak ficou bastante confuso. Onde estavam os guerreiros lendários?

— Ah, nós temos visita! — disse uma voz tranquila às costas dele.

Koak se voltou e viu uma pandarena anciã sair do gazebo. Seus cabelos e pelo iam se

agrisalhando com a idade, mas os olhos ainda tinham o brilho da juventude. Ao lado dela

estavam outros pandarens, cada qual acompanhado de uma serpente das nuvens de cor

diferente. Ela se adiantou e se curvou.

— Bem-vindo ao nosso lar, viajante — disse ela, sorrindo. — Eu sou a Anciã Anli, e

nós somos a Ordem da Serpente das Nuvens.

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— Você está bem? — perguntou um dos pandarens que a acompanhavam. — Você

não parece muito bem.

— Ah, e quem é esse pequerrucho? — trauteou outra voz, em tom alegre.

O filhote recuou para trás das pernas de Koak, protegendo-se dos olhares dos

outros. Koak ajeitou-se, puxou a serpente e a apresentou a todos, tentando não deixar

transparecer sua perplexidade diante do comportamento dos pandarens, que brincavam,

mimavam e falavam em tatibitate com o filhote.

— Ele é todo seu — respondeu, oferecendo a ponta da corda a Anli. — E eu não

estou muito bem. Eu estou ferido e necessito de transporte até o posto da Horda mais

próximo. Se vocês puderem arranjar isso, eu terei uma dívida de gratidão.

Anli olhou para ele, pensativa, antes de sacudir a cabeça: — Infelizmente não será

possível.

— Vocês não querem se envolver no conflito. — Koak lutou para o desdém que

sentia não transparecer e para se livrar da imagem da serpente-mãe ferida. — Se vocês

puderem me levar a Flor da Manhã...

— Não — interrompeu Anli. — Eu quero dizer que você não pode deixar essa

serpente conosco e partir.

Koak franziu a testa. — Como assim, pandaren?

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— Ele parece ter se apegado bastante a você — respondeu ela calmamente. — Deve

ter sido você quem o chocou. E por isso precisa criá-lo.

Ela deu um passo na direção de Koak, fechando a mão dele na ponta da corda e

pressionando-a contra o peito dele. Os membros da ordem o observavam, acariciando as

escamas de suas serpentes como se fossem de estimação. Koak fitou-os com franca

decepção. Era para eles serem guerreiros poderosos. Ele não via nada ali além de um

berçário. E não tomaria parte naquilo.

— Acho que não — disse ele, com desprezo.

Koak deixou a corda cair no chão e se voltou para partir, mas só conseguiu dar

alguns passos. Uma dor súbita mordeu sua perna. Apertando-se contra a muleta, Koak caiu

ajoelhado e amaldiçoou os ferimentos. Ele sentiu alguém puxar sua cintura.

— Se vocês não vão me levar até Flor da Manhã... — Koak se interrompeu ao voltar a

cabeça e ver não um pandaren, mas o filhote. Ele tinha enrolado a pequena cauda em seu

pulso e o puxava na direção dos outros com um olhar de súplica.

Ele também não queria que Koak partisse.

Koak observou uma dupla de pandarens montados em serpentes voar entre as

nuvens desenhando espirais e círculos, executando manobras arriscadas com graça

rotineira enquanto apostavam corrida. A Ordem da Serpente das Nuvens não era composta

dos lutadores que Koak imaginara, mas era inegável que eles sabiam voar.

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Algo em Koak mudou. Quando olhou outra vez para o filhote, ele não viu um fardo,

mas uma oportunidade: uma chance de finalmente se tornar um orc Presa do Dragão, de

treinar sua própria montaria de guerra, de cavalgá-la em batalha e de conquistar os céus.

Que os outros preparassem suas serpentes para uma vida de paz e brincadeiras. Ele

prepararia a sua para a guerra.

— Muito bem — disse ele, tanto para o filhote quanto para Anli. Ele pegou a

serpente nas mãos e a ergueu sobre a cabeça. O sol refletiu nas escamas rubras, tão

vermelhas quanto os dragões que seu clã comandara.

Eu deixarei o clã Presa do Dragão orgulhoso, prometeu Koak.

Eu farei minha serpente obedecer.

*****

A primeira semana de treinamento não correu como Koak tinha esperado. A

serpente mostrara-se opiniosa e turrona, bem mais que qualquer outro filhote sob os

cuidados da ordem. Parecia determinada a mastigar e devorar tudo, exceto o que Koak lhe

dava para comer. Sempre que Koak tentava chamá-la, ela preferia perseguir os outros

filhotes, estalando as mandíbulas. A serpente era rápida e ágil, e a perna machucada de

Koak continuava a atrapalhá-lo, obrigando-o a se limitar a gritar com ela até ficar roxo. Os

outros estudantes o olhavam com preocupação e algum divertimento. Mas a perna estava

cicatrizando, graças aos cuidados dos pandarens, e ele pensou que qualquer ordem com o

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costume de cavalgar feras tão agitadas devia mesmo ter ampla prática no conserto de ossos

quebrados.

No oitavo dia, o sol erguia-se sobre os picos das torres no mar quando Koak viu que

o cercado da sua serpente estava vazio. Parada ao mourão da cerca, Anli sorria

afavelmente.

— Parece que meu filhote começou cedo a aprontar das suas — grunhiu Koak.

— Ah, de forma alguma — explicou Anli. — Jenova tomará conta da sua serpente

hoje. Por favor, venha comigo.

A caminhada foi quieta e erradia. Anli o conduziu pelo esplendor sereno do

Arboreto, mosqueado de sol e acariciado por uma brisa gentil, até que finalmente chegaram

à Ponte da Torre de Vento. Fiel ao nome, a ponte perfazia a distância entre várias das torres

naturais que se erguiam do oceano lá embaixo. Cada um dos seus arcos era uma maravilha

arquitetônica, um monólito de alvenaria que parecia desafiar a gravidade e se postava

resoluto contra os ventos costeiros incessantes. A própria ponte parecia uma serpente das

nuvens, uma criatura gigantesca escavada em pedra e madeira, serpenteando por sobre o

Mar Nebuloso e vigiando a Floresta de Jade eternamente.

Anli esperou até que tivessem cruzado quase toda a extensão da ponte antes de se

voltar para falar com ele.

— Você já deu um nome à sua serpente, Koak? — perguntou.

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— Não. E não darei até ela merecer. Esse é o costume dos Presa do Dragão.

— Nós não somos os Presa do Dragão — respondeu Anli. — Os costumes deles não

são os nossos.

Koak irritou-se. — Eu farei isso ao modo Presa do Dragão ou não farei de maneira

alguma. Não há opção.

— Isso parece ser bem importante para você — observou ela.

Koak parou por um instante, procurando as palavras certas antes de continuar a

andar. — Quando a Aliança me levou prisioneiro, eu fui separado do meu clã. Eu tive a

chance de me reunir a eles após o Cataclismo, mas não aceitei.

— E por que não?

— Eu não espero que você entenda — respondeu Koak —, mas eu desonrei a mim

mesmo e aos Presa do Dragão ao ser posto em correntes. Como eu poderia encará-los sem

antes provar que sou digno?

Koak virou-se na direção oposta a Anli, olhando para o mar ao norte, na direção dos

Reinos do Leste. — Eu sou Presa do Dragão no nome, mas não nos atos. Se eu domar a

serpente à nossa maneira, poderei mudar isso e me reunir ao meu povo.

— Entendo — murmurou Anli. Eles tinham alcançado o final da ponte, e o santuário

ornado ficava no topo da torre mais alta e mais distante. Atrás deles estendia-se a

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espetacular vista da costa de Pandária com a ponte serpeando entre o céu e o mar aberto e

os pagodes dourados do Templo da Serpente de Jade difusos ao longe.

Koak fez o possível para desviar a vista da beirada da torre, que o fazia pensar em

uma queda longa e fatal até o mar. Ele não teve muito sucesso, mas conseguiu disfarçar o

medo que o acossou.

Encarando o oceano, Anli disse: — A Ordem da Serpente das Nuvens foi fundada há

milhares de anos por Jiang, uma jovem de Flor da Manhã. Ela encontrou um filhote ferido,

chamou-o de Lo e o fez recobrar a saúde.

— Na época, os cidadãos de Pandária temiam as serpentes das nuvens. Pensavam

que elas eram criaturas agressivas, violentas, e até chegar perto de uma já era perigoso.

Todos acharam que os atos de Jiang causariam um desastre.

— Domar um monstro não é tarefa para garotinhas — grunhiu Koak.

— Ah, mas estavam todos errados — continuou Anli. — Quando os Zandalari

atacaram o império Pandaren e nossos exércitos lutavam uma batalha sem esperança em

uma ponte parecida com essa, Jiang montou Lo mudou e os rumos da guerra. Juntos,

derrubaram os cavalga-morcegos do céu e empurraram os trolls da ponte. Jiang fundou a

ordem logo depois, e a visão de uma serpente das nuvens enche os corações pandarens de

esperança desde então.

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Koak fez um ruído de mofa. — E agora todos vocês seguem o exemplo dela? Essas

serpentes são caçadoras e assassinas natas. Não é possível mudar a natureza de uma fera

com compaixão, assim como não é possível mudar a natureza da guerra.

— Não é questão de mudança, Koak, e sim de escolha. — Anli voltou-se para encará-

lo. — Serpentes das nuvens são selvagens e agitadas por natureza e, se forem maltratadas,

podem permanecer assim na idade adulta. Mas uma serpente das nuvens não está

indissoluvelmente ligada à sua natureza. Não mais do que você ou eu. Jiang não forçou Lo a

lutar; Lo escolheu lutar, pois Juang escolheu confiar nele e tratá-lo com compaixão. É por

isso que seguimos o seu exemplo. Todos nós escolhemos quem vamos nos tornar.

Koak permaneceu em silêncio por um longo instante. Uma coisa assim poderia

mesmo ser verdade? Alguém que montasse tal fera, com a vida em risco, soltaria as rédeas

e confiaria que a criatura fosse obedecer? Parecia loucura.

— Sentimento interessante — disse ele por fim. — Mas eu ainda acredito que

correntes funcionam melhor que escolhas.

— É mesmo? — ponderou Anli, serena.

Ela deu um passo para trás e caiu da beirada da torre.

— NÃO! — berrou Koak. Ele pulou para diante, esquecendo momentaneamente a

dor na perna. Mas era tarde demais. Anli se fora, e tudo o que restava dela era o som de sua

risada dançando ao vento. Aquilo confundiu Koak; Anli não estava rindo quando caiu.

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Mas ela estava rindo agora. Anli apareceu sob o arco mais próximo, montada em sua

serpente das nuvens ônix. Os dois se alçaram diante das vistas de Koak, volteando e

deslizando feito fumaça líquida.

— Você está louca?! — exclamou Koak. — E se sua serpente tivesse deixado você

cair?

Anli perguntou calmamente: — Você sabe qual a diferença entre o aço e o ferro?

Koak hesitou. Ela é louca, pensou.

— O aço é mais forte. Qualquer guerreiro competente sabe disso.

Os cantos da boca de Anli se curvaram em um sorriso enigmático. — Assim é.

Ela tocou o lado do pescoço da serpente, que obedeceu e partiu volteando na direção

da costa distante. — Espero que você encontre seu caminho, Koak! — gritou ela por sobre o

ombro, zarpando na direção da Floresta de Jade tão rápido quanto tinha reaparecido. —

Que a Serpente de Jade o guie!

Koak os viu se afastar, apoiando-se pesadamente na muleta. Ele ficou parado no

final da ponte sentindo o vento nos cabelos e a mente perdida em pensamentos.

*****

— Eu não concordei com isso! — gritou Koak. — Vocês me enganaram!

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— Do que você está falando? — perguntou Ás. — Anli disse que você concordou em

ser treinado de acordo com os nos nossos costumes!

Ás Pata Longa não era como os demais discípulos da ordem. Enquanto os outros

demonstravam humildade nas vestimentas e um espírito esportivo, Ás se enfeitava com

camisas de seda finas e joias chamativas. Ele mantinha o bigode encerado e o cabelo bem

penteado, e jamais perdia uma chance de se gabar de sua habilidade tanto no céu como com

o sexo oposto. Koak achava tal bufonaria muito irritante. Principalmente porque o outro

parecia pensar que os dois eram muito parecidos. Mas ele fora designado por Anli como

tutor de Koak e, após semanas bancando a babá do filhote, o orc estava ansioso para

começar o treinamento de verdade.

Mas aquilo não era o que ele tinha em mente.

— Eu concordei em treinar — disse Koak. Ele meteu a mão na bolsa que Ás trouxera

e puxou uma bola de couro. — Mas isso é brincadeira de criança!

— Então será perfeito para vocês dois — respondeu Ás, com um sorriso

insuportável. — Todos os cavaleiros da ordem brincam de bola com suas serpentes —

explicou ele. — Isso ensina a ler os movimentos um do outro e cria um relacionamento de

troca mútua vital entre serpente e cavaleiro. É uma lição importante!

— Tolice — zombou Koak. — No calor da batalha, um único momento de

deliberação pode causar a morte. Tem que haver um mestre e um servo. Não há espaço

para "troca mútua".

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— Ora, vamos, Koak — suspirou Ás. — Apenas tente, está bem?

Koak fez uma careta e olhou da bola para o filhote. Ele não tinha nada a perder; Ás já

o tinha arrastado para campo aberto a uma hora de caminhada do resto da ordem.

Assobiando para chamar a atenção da serpente, ele arremessou a bola em sua direção. O

filhote a viu e a arremessou com uma batida de cabeça na direção de Koak.

— Viu? — Cantarolou Ás, vendo Koak agarrar a bola. — Não foi tão ruim, foi? — Ele

se voltou para as instalações da ordem. — Agora repita mais vinte e cinco vezes... seguidas,

entendeu? E daí nos encontramos na ordem.

—Vinte e cinco? — chiou Koak. Mas Ás já se afastava, deixando Koak com uma sacola

de bolas de borracha e um filhote acostumado a dificultar seus dias.

— Vamos logo acabar com isso — disse Koak. Ele arremessou a bola para o filhote

outra vez. A serpente descreveu um círculo estreito e bateu na bola com a cauda. A bola

veio forte e alta demais para que Koak a alcançasse, e a perna ruim cedeu sob seu peso

quando ele foi tentar. Erguendo-se dificultosamente com a ajuda da muleta, olhou para o

filhote e pôde jurar que ele estava dando um sorrisinho.

Aquele filho de uma… pensou Koak. Ele fez de propósito!

— Você cometeu um erro grave — Koak disse, sinistro. Ele tirou outra bola do saco

enquanto o filhote o observava com atenção. Segurou a bola discretamente, escondendo-a

atrás do quadril.

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— Agora — disse ele, grunhindo — nós dois vamos brincar.

Koak tensionou o braço e atirou a bola na direção do filhote com força e velocidade.

Os olhos da serpente se arregalaram e ela pulou fora do caminho no instante em que a bola

atingiu o chão com um baque alto e uma explosão de poeira. O filhote guinchou para ele e

Koak riu.

— Foi o que eu pensei! — Koak gritou. —Tente pensar melhor da próxima ve...

O filhote prendeu a bola na cauda e a arremessou direto no peito de Koak com a

velocidade de uma bala. Ela o atingiu com um baque forte, derrubando-o, expulsando o ar

de seus pulmões e enchendo sua visão de pontos brilhantes.

Como é que pode, pensou Koak enquanto tentava recuperar o fôlego, um bicho desse

tamaninho ser tão forte?

Quando se ergueu outra vez, de bola na mão e ainda vendo algumas estrelas, Koak

encarou o campo à frente. A serpente postou-se atenta e Koak percebeu que ela tinha

entendido. A batalha estava prestes a começar.

Koak arremessou a bola com tanta força quanto pôde. O filhote girou e bateu nela

violentamente, fazendo-a retornar feito foguete na direção de Koak. O orc a agarrou antes

de ser atingido, e o som do impacto do couro contra sua palma reverberou na grama. Ele a

arremessou outra vez na direção do filhote e o ciclo recomeçou.

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Depois de algum tempo, Koak e o filhote ficaram cansados, e a ferocidade deu lugar

à fatiga. As tentativas de retaliação balística degeneraram em arremessos e devoluções

débeis, e quando o sol se pôs e as luas subiram para substituí-lo, os dois se limitavam a

pegar e devolver os arremessos. Ainda assim, o filhote aparentava estar se divertindo. Ele

pareceu genuinamente decepcionado quando Koak enfim decidiu ficar com a bola em vez

de arremessá-la outra vez.

— Já deu — disse Koak. Ele foi até a bola que começara a disputa, a que o filhote

arremessara longe demais para ele pegar. — Já passa da hora de a gente comer alguma

coisa.

Ao se ajoelhar para recuperar a bola, ele ouviu um som farfalhante atrás de si.

Olhando por cima do ombro, viu o filhote arrastar a bolsa pela terra em sua direção, a

correia de estopa entre as presas, lutando contra a exaustão. Quando alcançou Koak, o

filhote puxou a aba da bolsa para trás, deixando-a aberta.

Aquilo surpreendeu Koak. — Obrigado — disse, baixinho.

Koak jogou a bola na sacola e a fechou. O filhote se enrodilhou em seu braço e fechou

os olhos. Um instante depois ele estava dormido. Fiapos de vapor sopravam serenos de

suas narinas. Koak o observou em silêncio por algum tempo antes de levar a bolsa aos

ombros e retornar às instalações da ordem.

*****

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Dias tornaram-se semanas e semanas tornaram-se meses. As estações em Pandária

não variavam drasticamente, e Koak perdeu a noção de havia quanto tempo estava com a

ordem. Sua serpente crescera rápido e agora tinha dez vezes o tamanho que tinha quando

nasceu. Uma coroa de chifres de marfim, longos e afiados, brotara em sua nuca; o rosto,

outrora macio e arredondado, tornara-se ferozmente anguloso e definido; os bigodes

fluidos descaíam por sobre as presas letais. As unhazitas viraram garras afiadas capazes de

rasgar uma armadura em fatias. Uma barbatana larga e espinhenta decorava o longo

pescoço, que era recoberto por uma juba cheia e espessa. As escamas cor de rubi tinham-se

tornado de um tom escarlate profundo.

Koak tinha observado a serpente crescer dia após dia e acostumara-se com o ritmo

idílico da vida no Arboreto. Mas suas feridas já fazia muito tempo que suas feridas haviam

cicatrizado e ele começava a se sentir inquieto. A guerra continuava sem ele, e notícias da

batalha tinham chegado aos seus ouvidos em Pandária. A Horda fortalecera sua posição nas

costas da Selva de Krasarang, e os agentes de Grito Infernal varriam o continente em busca

de relíquias enterradas de poder ancestral, chegando até a abrir uma cratera no Vale das

Flores Eternas. Vol'jin e os Lançanegra tinham se rebelado contra o chefe guerreiro, e a

Horda estava se esfacelando à medida que os guerreiros escolhiam um ou outro lado.

Koak sabia qual lado os Presa do Dragão escolheriam. A senhora da guerra Zaela

admirava abertamente o estilo de liderança de Garrosh. Os Presa do Dragão eram tão

intolerantes à insubordinação quanto ele. Eles voariam em nome de Grito Infernal, e não

haveria melhor chance de Koak mostrar sua força perante seu clã. Ele não esperaria mais.

Chegara a hora de voar. Mesmo que isso significasse lutar contra os mesmos orcs que

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tinham cuidado dele nos campos de prisioneiros e lhe contado histórias do seu clã perdido

quando ele já não tinha mais ninguém. Os Presa do Dragão não perdoam a desobediência,

Koak disse a si mesmo, e eu também não devo perdoar.

— Não sei se é uma boa ideia — avisou Ás. — Se você quer saber, nem você nem a

serpente estão prontos.

— A essa altura, um verdadeiro orc Presa do Dragão estaria perseguindo os

companheiros pelo céu — respondeu Koak. Ele segurava uma sela e caminhava na direção

da colina que marcava o fim da pista de corridas da ordem.

— Uuh! — zombou Ás. — Eu não sabia que os Presa do Dragão gostavam de correr!

Tive uma ideia: se você conseguir montar sua serpente, eu fico devendo a você uma partida.

— Feito — concordou Koak. Ele tinha que admitir que, apesar da bufonaria, Ás se

mostrava um bom companheiro de vez em quando.

Com algum esforço, Koak chegou ao topo da colina. Sua perna ainda doía quando

sustentava todo o seu peso, e a encosta não era das mais fáceis de subir. Ele se perguntou

amuado como Ka Ebulissal conseguia empurrar as carroças até o topo da colina todos os

dias.

Koak viu sua serpente descansando bem à vontade à sombra de uma árvore.

Aglomerados nos estandes perto da linha de chegada e pelo rebordo da colina, estavam

todos os estudantes e cavaleiros da ordem.

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Koak olhou para Ás, que deu de ombros, fingindo inocência. — Eu contei para o

pessoal que você ia tentar encilhar a serpente — confessou ele, um tanto sem jeito.

— Não importa — murmurou Koak. Havia tantos deles observando, julgando. —

Não vai durar muito e não vai ter nada para ver.

Ignorando os espectadores, Koak se aproximou da serpente. Ela ergueu a cabeça ao

vê-lo e apertou os olhos desconfiada quando viu a sela. A serpente mudara ao crescer, mas

o azul cerúleo profundo de seus olhos permanecera o mesmo.

Koak fez o gesto de encilhar, mas a sela escorregou de lado quando a serpente se

moveu. — Calma — disse Koak. Ele tentou outra vez, e a serpente agarrou a sela com a

cauda e a arremessou longe. A fera estalou a língua para ele e Koak começou a se enfurecer.

Pensou ouvir os pandarens presentes sussurrar uns com os outros e rir às custas do seu

orgulho.

— Chega de brincadeira — Koak grunhiu. — É para isso que temos treinado!

Ele ergueu a sela do chão e a jogou sobre as costas da serpente outra vez,

estendendo o braço para mantê-la parada. A criatura guinchou alto e se afastou, tirando o

equilíbrio de Koak. Ele redobrou os esforços, envolvendo metade da circunferência da

serpente com o braço enquanto tentava afivelar a sela.

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A serpente não quis nem saber. Ela começou a se estorcer e sacudir vigorosamente,

batendo com a cauda na árvore e quase desenraizando-a. Koak lutou para retomar o

controle, mas a serpente era ágil e forte.

— Quieta! — ordenou ele, batendo com a mão nas costas firmes da serpente. — Eu

disse para ficar quieta!

Um arquejo coletivo veio da multidão quando a situação começou a sair de controle.

— Koak, é melhor pegar leve! — gritou Ás, por cima do burburinho.

Mas Koak e a serpente continuaram a lutar, empurrando-se contra a árvore e

desabando nos estandes. Os espectadores logo se afastaram, recuando até a parte mais

afastada da colina. Não importava o quanto tentasse, Koak não conseguia chegar perto das

costas da serpente. Com um espasmo final, ele foi arremessado violentamente contra um

dos mastros que seguravam a faixa quadriculada da linha de chegada. O mastro rachou e foi

abaixo levando cordas e bandeiras, mas Koak só tinha pensamentos para a perna recém-

curada, em cima da qual ele caíra.

Dor relampejou em sua perna e Koak sentiu sangue esquentar o rosto e nublar os

limites de sua visão com uma névoa vermelha. Como é que aquela criatura ousava desafiá-

lo? Depois de tudo o que ele fizera, depois de todo o treinamento e todas as concessões! Ele

pegou uma corda do chão e a girou acima da cabeça, estalando-a feito um chicote a

centímetros do rosto da serpente.

— ME OBEDEÇA! — gritou.

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Suas palavras ecoaram no silêncio estarrecido. A serpente, paralisada de choque

com o berro, se encolheu diante dele. Ótimo! pensou Koak. Aprenda a me temer! Aprenda o

seu lugar! APRENDA A OBEDECER! Koak estalou a corda no ar outra vez e a serpente recuou

enquanto ele se aproximava. Koak estava lívido e ouvia o próprio coração bater forte.

Ele colocou a sela nas costas da serpente e começou a apertar as fivelas. A serpente

gritou em protesto e forcejou para se livrar.

— É para obedecer! — rugiu Koak. Ele golpeou com o chicote e dessa vez atingiu as

escamas da serpente. Terrivelmente angustiada, o grito de dor da criatura ecoou pelo

Arboreto.

Ela vai me odiar.

Koak livrou-se do pensamento. Caro que a serpente o odiaria. Era apenas natural, e

ele não se importava. Ela o odiaria como os dragões odiavam os Presa do Dragão e como ele

passara a odiar Grito Infernal. Ela o odiaria como qualquer escravo odiava o mestre. Koak

agarrou a serpente pelos chifres e puxou sua cabeça, preparado para encarar de frente o

seu ódio e subjugá-lo com seu coração endurecido.

Mas, quando olhou em seus olhos, Koak não viu ódio. Ele viu um sentimento de

traição e confusão, e uma mágoa tão profunda que era possível afogar-se nela. Não viu um

monstro terrível a ser domado, mas o filhote órfão e amedrontado que chorara até ficar

rouco na noite em que sua mãe se sacrificara para salvá-lo. Koak pensou ter visto lágrimas

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nos olhos da serpente. Um momento depois, percebeu que as lágrimas eram suas. A corda

deslizou por entre seus dedos e sua raiva morreu na garganta.

Pelos ancestrais, o que ele havia feito?

— Eu não... — gaguejou. — Não era para...

A serpente o interrompeu com um rugido terrível que fez Koak estremecer até o

âmago. Ela inspirou fundo, expandindo o peito e a garganta, e depois disparou um

relâmpago com toda a fúria da tempestade. Koak saiu do caminho rapidamente e o raio

passou por cima da sua cabeça, chamuscando o cabelo. A serpente alçou-se aos céus numa

espiral e olhou para ele.

Koak não sabia o que dizer ou pensar. Observou em silêncio enquanto a sela caía das

costas da serpente e desabava no chão, quebrando-se em centenas de pedaços.

A serpente deu as costas e partiu em direção ao mar. Koak ergueu-se, trêmulo. A

multidão presenciara tudo. Sua vergonha fora súbita e completa, e em sua raiva ele tentava

eclipsá-la.

— O que vocês queriam? — perguntou. — Eu sou um orc da Presa do Dragão! Esse é

o nosso jeito! É assim que eu sou!

Ao olhar para a multidão, ele percebeu olhos viçosos e cabelos grisalhos. Quieta, Anli

estava parada entre os espectadores. Seus olhos brilhantes estavam cheios de tristeza.

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Todos nós escolhemos quem vamos nos tornar.

Os pandarens partiram e nem uma palavra foi dita. Eles desceram a encosta

lentamente, em silêncio. O fracasso de Koak envolvia a linha de chegada como uma

mortalha. Ás ainda se demorou alguns instantes, mas Anli pousou a pata em seu ombro e

sacudiu a cabeça. Depois eles também foram embora, e Koak ficou sozinho.

Voltou-se para o mar, para a direção em que a serpente fugira. Ele sabia aonde ela

estava indo, pois sabia por suas próprias experiências difíceis que existia apenas um lugar

para onde todas as criaturas iam quando seus mundos se esfacelavam e seus corações

despedaçavam.

A serpente estava indo para casa.

*****

Um pé d'água súbito escurecera os céus da Floresta de Jade e derramara chuva

copiosa sobre o mar. A noite caíra desde que a serpente abandonara Koak, e o orc lutou

para controlar o corpo trêmulo enquanto a chuva encharcava suas roupas. Ele encontrara a

jangada no local onde a escondera meses antes, milagrosamente intocada pelos elementos

e pelos ladrões. Koak nunca dera muita atenção aos elementos e, enquanto a jangada se

aproximava da ilha, se perguntou se eles tinham estado esperando uma oportunidade

perfeita para puni-lo por sua insolência.

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Acossado pelas forças do vento e da água, Koak pegou a velha muleta e chafurdou ao

longo da praia lamacenta em direção à terra firme, refazendo os passos que dera na noite

fatídica em que encontrara o ovo. Pouco tempo depois, chegou ao local em que sabia que

iria encontrar a serpente.

O ninho de pedra estava partido como na noite em que Koak o encontrara, embora

já não houvesse sinal da mãe da serpente. A serpente de Koak repousava enrodilhada no

centro do ninho. Sua juba descaía pesada com a água da chuva. Quando ela viu Koak se

aproximar, chiou para ele e recuou para a parte de trás do ninho. A visão partiu o coração

de Koak, e a vergonha que sentia voltou mais forte.

— Eu não vou machucar você! — gritou Koak por cima do ruído da chuva, e estava

sendo sincero. Ele manteve os braços afastados do corpo enquanto se aproximava

lentamente do ninho.

A serpente uivou para ele e alçou voo. Passou veloz e pousou em uma protuberância

rochosa alta, de onde continuou a observá-lo com franca desconfiança. Koak ergueu os

braços exasperado, espirrando água da chuva para todos os lados.

— Ainda? — bufou. — Até quando eu vou até você com o orgulho no chão pedir

desculpas? Até agora você resiste? — A muleta caiu entre as rochas e ele se deixou tombar

na beirada do ninho. — Por que você é sempre tão teimosa? Toda ordem você responde

com teimosia, só porque pode. Até agora, quando eu enfrentei essa maldita tempestade

procurando você! Um orc Presa do Dragão de verdade nunca toleraria isso! Um orc Presa

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do Dragão verdadeiro... — Mas ele não continuou. Seu fervor apagara-se com a chuva e suas

próprias dúvidas.

— Um Presa do Dragão de verdade... Como se eu soubesse o que é isso. Eu não sou

um "orc Presa do Dragão". E nunca vou ser.

Ele disse isso em um sussurro quase inaudível, que pairou no ar entre eles em meio

à chuva. De repente, Koan sentiu-se muito cansado. A pele nas mãos úmidas tinha-se

enrugado, os cabelos empapados colavam-se à testa. Ele suspirou profundamente,

respirando uma vida inteira de angústia junto com o ar frio da noite, e fechou os olhos

enquanto a chuva lavava o rosto e a barba.

— Eu cresci em um campo de prisioneiros — disse Koak, para o silêncio —, mas

nasci em Grim Batol. Meu pai costumava me dizer que um dia eu cavalgaria um grande

dragão, que os Presa do Dragão governariam os céus, e que o resto do mundo em breve

também seria nosso.

Ele engoliu o nó que se formara em sua garganta. — Isso foi antes dos mesmos

dragões se revoltarem e incinerarem o clã inteiro. Nós perdemos o controle e fomos fracos

demais para recuperá-lo.

"Os humanos me encontraram e me puseram ferros, pois eu não tive forças para

fugir junto com o resto do meu clã. Minha escravidão não terminou até que Thrall derrubou

as muralhas do campo de prisioneiros, assim como a revoada vermelha fizera aos Presa do

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Dragão. O mundo é assim mesmo. Com a força vem a liberdade; com a fraqueza vem a

servidão."

Ele continuou, e a confissão confrangeu seu peito: — Agora os Presa do Dragão

pertencem a Grito Infernal. Eles dependem de Garrosh para obter recursos vitais e apoio

militar. Desafiá-lo significa ser destruído. Você não consegue ver as correntes, mas elas

estão lá assim mesmo. Até que elas também sejam partidas, nós pertencemos a Grito

Infernal. E depois de todos esses anos, eu ainda busco a mesma coisa: a força para retomar

o controle.

Koak respirou fundo lentamente e expirou até os pulmões arderem sem ar. Ele

olhou para o céu, para as nuvens de tempestade e para a chuva. Ele agora chorava uma

torrente de lágrimas, como na noite em que seu clã fora destruído, e uma parte dele queria

acreditar que os espíritos do clã choravam junto.

Ele ouviu um som de raspagem vindo do alto e viu a serpente descer da face da

rocha. Ela foi até o lado de Koak e se enrodilhou em proteção contra a chuva e o vento.

Cauteloso, o orc estendeu o braço para tocar a cabeça da serpente. Ele acariciou

delicadamente sua juba. A serpente ficou tensa por um breve instante, depois relaxou.

Ele se sentaram juntos em silêncio, esperando que a tempestade passasse como

tinham feito nos primeiros cinco dias de vida da serpente. Quando a chuva passou e o vento

cessou e Koak pôde finalmente ver o reflexo das luas na superfície da água, a serpente

dormia serena e nuvenzinhas de vapor se evolavam de suas narinas.

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Koak passou o braço ao redor da serpente, fechou os olhos e caiu num sono

profundo e sem sonhos.

*****

Koak sempre apreciara a manhã depois de uma noite de chuva forte. Encontrava

alívio no ar fresco e nas folhas cintilantes, no modo como a terra parecia fresca e renovada.

Ele acordou para um céu cinzento e para o cheiro de chuva, e a névoa matinal era tão

espessa que o mundo inteiro parecia envolto em uma nuvem. Koak ficou surpreso quando

viu a anciã Anli emergir da névoa como um fantasma em um sonho, mas não demonstrou.

— Foi bem fácil encontrar você — explicou a pandarena. Ela se dirigiu para uma

trilha estreita e sinuosa que subia pela lateral da torre e fez um sinal para que a seguissem.

Koak e a serpente obedeceram, embora Koak suspeitasse que a serpente só o fizera por

causa de Anli.

— A maior parte das serpentes faz da Ilha Ventaneira o seu lar — prosseguiu Anli —

, mas algumas delas, as poucas teimosas que prezam a independência e a solidão, se

empoleiram nas torres solitárias que cercam a ilha.

— E você pensou que minha serpente puxaria à mãe — disse Koak.

Anli sorriu. — Ou ao cavaleiro.

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Koak imediatamente se sentiu envergonhado. — Eu não sou esse cavaleiro. Isso

ficou bem claro.

— Então por que vir atrás dela tão longe assim?

Koak olhou para o céu, lembrando-se da belonave da Aliança que o havia derrubado

e do grupo de busca que jamais viera. — Grito Infernal me abandonou nessa ilha. Eu não

farei o mesmo com minha serpente.

— Parece que você não gosta desse tal Grito Infernal.

Koak pensou bastante antes de responder. — A Horda é o seu exército — disse

finalmente —, mas nós não somos o povo dele. — Dizer aquilo era traição, mas apenas Anli

podia ouvi-lo. — Garrosh exige lealdade, mas para ele isso quer dizer apenas morrer sob as

ordens dele. Ele não sabe o que é lealdade. Thrall inspirava lealdade. O que Garrosh quer é

obediência.

Anli aquiesceu, compreensiva. — Não é a mesma coisa.

Koak olhou para a serpente. — Não. Acho que não.

Eles continuaram em silêncio e finalmente chegaram ao topo da torre. Os picos das

montanhas e a costa verdejante que ele vira do alto da Ponte da Torre de Vento havia tanto

tempo agora estavam encobertos pela neblina vinda do oceano. Uma chuva leve começou a

cair. As gotas eram frias como a névoa nos ombros e peito de Koak.

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— Quando você veio para cá, foi porque ouviu falar que nós éramos grandes

guerreiros. E quando viu que tratávamos nossas serpentes com afeto, você achou que as

histórias eram falsas.

"E quando eu perguntei a diferença entre o aço e o ferro, você me disse que o ferro

era o mais forte dos dois."

— É, eu me lembro — respondeu Koak, um tanto confuso. — E daí?

Anli foi até a beirada da torre, olhando para as névoas impenetráveis. — Você receia

ter afeto, Koak, mas o aço mais forte é forjados com amor. O ferreiro o dobra com todo o

cuidado, centenas e centenas de vezes. Assim é a Ordem da Serpente das Nuvens. Nós

somos os ferreiros, e as serpentes são o nosso aço.

Anli fez um gesto para que Koak se aproximasse. Quando ele chegou perto, ela

pousou a pata em seu peito e olhou-o nos olhos.

— Já o ferro — disse ela — é aquecido e martelado pelo ferreiro, que o força a

assumir uma forma pré-determinada. Quando o ferro esfria, se torna negro e quebradiço. E

embora pareça forte por algum tempo, ele quebrará na hora de mais necessidade. Você

entende, Koak?

Doía ouvir aquilo, mas Koak sabia que era verdade. Assim eram os Presa do Dragão

e assim era o vínculo entre orcs e dragões. — Eu entendo — disse, olhando para a serpente,

que estava parada em silêncio entre eles —, mas o que acontece quando o ferreiro erra?

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— Ele precisa corrigir o erro enquanto o metal ainda está quente.

Anli pisou para fora da beirada da torre. Koak não se moveu em sua direção nem

ficou surpreso ao vê-la reaparecer montada na serpente. — Você me disse uma vez que

correntes eram mais eficientes que escolhas. Bom, você tentou acorrentar sua serpente.

Talvez seja hora de tentar dar uma escolha a ela.

Koak observou Anli se afastar voando e se perguntou se um dia seria capaz de fazer

o mesmo. Ela desapareceu na névoa e Koak ficou sozinho com a serpente. A névoa ficou

mais espessa ao redor dele, cegando-o para o resto do mundo, mas ele sabia que, um passo

à frente, o chão recuava em uma queda perigosa como a que assombrava seus sonhos. Ele

se sentia como se houvesse passado a vida inteira caindo. E já era o bastante. Anli queria

que ele desse uma escolha à serpente. Então ele daria uma escolha.

— Serpente — chamou Koak. Ele se lembrou de que ainda não havia dado um nome

a ela. A serpente o encarou. Ela percebeu o que ele tencionava fazer e começou a abrir a

boca em protesto. Ele não lhe deu chance.

Koak pisou além da borda da torre e caiu no abismo.

Em um instante ele se viu despencando de cabeça por nuvens e névoa em direção à

praia invisível lá embaixo. Seu pesadelo transformara-se numa realidade apavorante.

Minha serpente não me salvará, pensou Koak de repente. É assim que eu vou morrer.

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Ele ouviu um guinchado familiar vindo do alto e olhou. Uma longa sombra coleante

mergulhava em sua direção. A serpente emergiu da névoa e voou para junto dele. Ela fizera

sua escolha.

Koak jamais ficara tão feliz por estar errado. Mas enquanto a serpente se

aproximava, ele percebeu com horror que não havia sela nem rédeas com as quais se

firmar sobre as escamas escorregadias. O pânico enfiou as garras no coração de Koak. Ele

estendeu os braços para a serpente, agarrando-a em desespero.

A serpente rugiu e esticou o pescoço, olhando nos olhos de Koak e sustendo a

mirada. Koak esperava ver medo ou dúvida na expressão da serpente. Mas não viu.

O que ele viu foi força.

Koak relaxou e rendeu-se. A serpente deslizou rapidamente sob ele e o pegou em

cheio em uma curva de suas costas. Instintivamente Koak leu seus movimentos e envolveu

o torso da fera com os braços no momento do impacto, assim como a serpente enrodilhara

o corpo em seu braço tantas vezes quando era filhote.

Com um rugido que fez tremer os céus e ecoou pelo mar, a serpente virou o corpo

para cima com toda a força. Koak sentiu um borrifo de água no rosto quando eles passaram

raspando pelas ondas, e no momento seguinte eles estavam se alçando para o céu. A névoa

se dissipava como uma cortina de veludo. O oceano, a costa e então as torres e a ponte, e

depois toda a Floresta de Jade ficaram para trás, diminuindo a distância. Koak riu, um

pouco de alegria e um pouco de descrença.

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Sua serpente não permitira que ele caísse.

— Obrigado — disse Koak, e sorriu para ela. A serpente olhou para ele, e Koak podia

jurar que ela esboçava um sorrisinho.

Eles atravessaram as nuvens na direção da luz do sol. A serpente fez um loop, e

mesmo sem sela e rédeas, Koak não caiu. Ele se segurou firme enquanto zarpavam pelo céu,

livres e fortes, rápidos como o relâmpago. As escamas da serpente faiscaram feito metal

polido ao refletir a luz do Sol.

— Aço — disse Koak, sem pensar. A serpente virou o pescoço para olhar para ele

outra vez. — Seu nome é Aço.

A serpente rugiu em aprovação. Eles passaram sob as nuvens com velocidade

estonteante, e Koak urrava e gritava para o vento. Koak estava voando — não, eles estavam

voando juntos, forjados em um só ser. Não era como havia imaginado, mas era tudo que ele

esperava.

Aço o carregou para longe da costa leste, e quando passaram pelo Arboreto, Koak

viu os membros da Ordem da Serpente das Nuvens reunidos perto dos cercados abertos,

acenando para ele com amplos sorrisos no rosto. Ás estava com a pata erguida como se o

triunfo de Koak fosse dele também, e Anli sorria com o orgulho de uma professora

competente.

— Você me deve uma corrida, Koak! — gritou Ás.

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Koak riu. — E você vai ter uma corrida! — gritou. — Mas antes há algo que eu tenho

que fazer!

Aço continuou em frente, por sobre a copa das árvores do Arboreto e os telhados de

Flor da Manhã em direção ao Vale das Flores Eternas e do Santuário das Duas Luas. Koak

tomara uma decisão. Seu povo precisava dele — não os Presa do Dragão, mas a Horda.

A Ordem da Serpente das Nuvens ensinara uma lição valiosa a Koak. Lealdade

verdadeira não pode ser forçada; só pode ser conquistada. Ele criara e nutrira sua serpente,

cuidara dela, confiara nela. Em troca, ela salvara sua vida. A horda tinha feito o mesmo por

ele: tinham-no recebido e dado a ele uma família quando ele era um órfão solitário, e agora

Koak lutaria ao lado deles contra Grito Infernal e os Presa do Dragão.

Fazer isso marcaria Koak para sempre como um pária do seu clã. Mas a Horda

nascera de párias e rebeldes, refugiados sem lar que não tinham ninguém a não ser uns aos

outros. Juntos, eles tinham construído um lar para si mesmos.

Juntos, eles reconquistariam Orgrimmar.

— Pela Horda! — exclamou Koak. Agora ele se lembrava do significado dessas

palavras. Lutar pela Horda significava lutar pelos irmãos, tornar a força de um a força de

muitos e criar um vínculo que jamais poderia ser quebrado.

Aquela era a verdadeira força da Horda. A força do aço.