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BLIZZARD ENTERTAINMENT

Sol Sangrento

por Matt Burns

Dezco apanhou um cacho de cabelo da esposa morta e esperou o início do ritual.

O Santuário das Duas Luas estava às suas costas, sombrio e silencioso. Era noite. Até o

Terraço Dourado da cidade montanhosa, em geral fervilhante de vida, estava quieto. Dezco

estava grato por isso. Ele e sua tribo, os Grelmadruga, tinham a grande plataforma de pedra só

para eles. Não era hora para distrações.

Um sopro de ar morno adejou sobre o terraço, agitando as penas de águia-da-planície

brancas e pequenos amuletos de madeira cor de terra amarrados aos chifres, pulsos e colete de

couro de Dezco. Ele olhou desapontado para as vestes cerimoniais. Se estivesse em casa, em

Mulgore, estaria usando as vestes ritualísticas apropriadas. Mas ali, na estranha e distante terra

de Pandária, era forçado a se virar com os recursos disponíveis.

"Leza entenderia", pensou. "Ela não se importaria".

Dezco afastou as preocupações e, do terraço, olhou para as colinas iluminadas pela lua e

os bosques e sebes que recobriam o Vale das Flores Eternas. Mesmo à noite o lugar era

deslumbrante.

"Um crisol de mudança" era como Leza chamava o lugar. "Um vale repleto de flores

douradas, cheio da esperança da paz."

Durante meses, ela sonhara com o vale. Dezco e outros taurens também tinham tido

visões, mas as de Leza eram mais fortes. Sem ela, a tribo jamais teria conseguido encontrar

Pandária após uma árdua jornada, nem, partindo dali, chegar ao vale oculto no coração do

continente.

A busca tinha sido brutal. Tempestades violentas destruíram três navios repletos de

membros da tribo de Dezco. Amigos. Família. Quando a última nau remanescente aportou na

quente selva costeira de Pandária, houve mais mortes. O fato de Leza estar grávida fazia com

que Dezco se preocupasse cada vez mais com a situação difícil. Então sua esposa contraiu uma

febre que, apesar dos esforços da tribo, parecia incurável. Em meio a tudo isso, Leza sempre se

mantinha resoluta, o farol de esperança que todos os Andarilhos do Sol almejavam se tornar.

— Ainda é noite — dizia ela —, mas logo o Sol vai nascer. Eu sinto, está perto.

Quando ela entrou em trabalho de parto, o esforço foi demais para seu corpo adoecido.

Morreu semanas antes de a tribo encontrar o vale, ainda acreditando que as vicissitudes da

jornada estavam quase acabando. Dezco se recordava daquele dia sombrio com clareza

dolorosa: o último lamento atormentado da esposa, a febre minando a vida de suas veias, suas

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tentativas fracassadas de salvá-la da morte e, mais tarde, a fumaça e o fogo que subiam da pira

funerária…

— O Sol Sangrento! — gritou um dos taurens atrás de Dezco, trazendo-o de volta ao

presente.

Luz baça afastava as trevas, pintando o vale em tons de ouro e violeta. Era o momento

que antecedia o amanhecer, a hora fugaz em que An'she, o Sol, ainda se escondia, mas em que de

alguma forma um vislumbre de sua luz conseguia se derramar pelo mundo.

— Traga as crianças. — Dezco fez um gesto, mantendo os olhos no leste.

Nala, a prima de Leza, se aproximou em silêncio, com duas crianças taurenas nos braços.

Penas e contas cerimoniais pendiam dos seus chifrinhos. O primeiro se chamava Chifre Rubro, e

o segundo, Casco das Nuvens. Dezco entregou o cacho de cabelo da esposa a Nala e então

acolheu os últimos presentes de Leza nos braços.

— Comecem! — comandou ele. Sem hesitar, doze taurens sentados suas às costas

começaram a bater com as patas em pequenos tambores de couro. O ritmo era acelerado como o

coração de um guerreiro na véspera da batalha.

Enquanto Nala trançava o cacho de Leza na cabeleira de Dezco, ele se debruçou sobre os

filhos. — Observem bem, pequeninos — sussurrou. Eles eram jovens demais para entender o

que estava acontecendo, mas parecia certo lhes dizer. Seus filhos bocejaram e olharam para a

frente com olhos semiabertos.

— Toda manhã, An'she sangra — continuou Dezco. — Ele sacrifica parte de sua luz para

nos avisar que a aurora se aproxima. Mas ele não faz isso sozinho. Os yeena'e o ajudam. Sua mãe

o ajuda.

No dia anterior, as luas gêmeas apareceram durante o dia pela primeira vez desde a

morte de Leza, sinalizando que seu espírito finalmente se juntara aos yeena'e, "os que anunciam

a aurora". Agora estava em boa companhia, junto a todos os veneráveis ancestrais que

morreram no processo de salvar vidas ou, como no caso de Leza, no de criar novas vidas.

As batidas ficaram mais lentas, e An'she surgiu sobre as montanhas inexpugnáveis do

vale. A luz do sol faiscou pelos campos de grama cor de mel. Folhas douradas se agitavam na

brisa em altas árvores de pau-marfim. Dezco já tinha visto o nascer do sol naquele lugar muitas

vezes, mas ainda se surpreendia com a intensidade do brilho da luz de An'she. Era como se o

olhar do astro se fixasse apenas no vale, e todas as outras terras apenas se banhassem no

reflexo difuso de sua luz.

A beleza do lugar era cruel, de certa forma. Era para as coisas terem ficado mais fáceis

desde que Dezco e sua tribo alcançaram o vale, mas não tinham. A batalha continuava. A

politicagem da Horda se tornara um aborrecimento diário. Dezenas de refugiados de terras

devastadas pela guerra a norte dali vinham em grandes grupos até o santuário, dia e noite, em

busca de comida, abrigo e descanso das tribulações.

E então, alguns dias antes, seus filhos adoeceram, chorando e recusando-se a comer.

Dezco e Nala tentaram decifrar qual seria a doença, sem sucesso. Pela graça de An'she, Chifre

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Rubro e Casco das Nuvens pareciam normais aquela manhã. "Talvez o ritual os tenha curado de

alguma forma", imaginou Dezco.

— Olhe. — Nala adiantou-se, apontando para o vale.

Dezco olhou por sobre a amurada. Uma aglomeração de vultos avançava por uma das

trilhas de pedra e barro bastante gastas que levavam até o santuário. À luz da manhã, suas

sombras se alongavam pelo chão como braços estendidos.

— O Lótus Dourado — disse Dezco, reconhecendo um membro do grupo que era

diferente dos demais. O gingado de Mokimo, o Forte, era inconfundível, mesmo de longe. Como

todos da raça hozen, ele tinha longos braços musculosos que quase arrastavam no chão quando

caminhava. Dezco não conseguiu identificar os outros membros, mas se surpreendeu ao ver que

tantos guardiões ancestrais do vale vinham para o santuário. Normalmente ficavam no Pagode

Dourado, seu local de encontro, aninhado bem no centro da região.

— Você acha que isso tem algo a ver com os boatos? — Havia preocupação na voz de

Nala.

— Não acredite em boatos — respondeu Dezco. Ele também os ouvira: histórias sobre

os guardiões do vale se reunindo em segredo e visitando certos pontos do continente para

algum propósito desconhecido. Como mediador entre o Lótus e o povo de Dezco, Mokimo

poderia explicar o que estava acontecendo, mas tinha se ausentado do santuário fazia mais de

uma semana. De qualquer forma, Dezco não via motivo para se preocupar. O Lótus era uma

ordem misteriosa, sem dúvida, mas também era uma aliada confiável.

— Eu sei. — Nala aquiesceu lentamente. — Mas estou mais preocupada com as crianças.

Não temos certeza se a doença passou. Visitantes podem piorá-la. — Ela afagou a bochecha de

Chifre Rubro. Desde o falecimento de Leza, sua prima protegia ferozmente as crianças. Dezco

simpatizava com ela. Tão longe de casa, as crianças eram toda a família que Nala tinha.

— Leve-as para dentro enquanto o Lótus estiver aqui — disse Dezco, e depois

acrescentou: — Depois da cerimônia.

Então ele se voltou para o sol nascente. Vozes altas e passos pesados começaram a ecoar

pelo terraço; os madrugadores começavam a sair dos salões e catacumbas do santuário.

Mercadores bocejavam ao montar suas barracas frágeis. Refugiados se reuniam e

compartilhavam comida. Orcs, elfos sangrentos e outros membros da Horda que tinham seguido

Dezco até o vale se misturavam na plataforma.

As batidas cessaram quando An'she, em todo seu brilho, despontou sobre as montanhas.

Por um instante, Dezco sentiu-se em paz. Talvez aquele fosse o dia em que as

dificuldades finalmente acabariam, pensou, com otimismo cauteloso. Talvez a aurora de que

Leza sempre falava tivesse chegado finalmente.

***

Dezco ordenou que mais guardas patrulhassem o terraço e mantivessem a ordem em

preparação para receber os visitantes. Ele já estava no santuário havia semanas, agindo como

líder interino da cidade, e quase todos os dias tinha que lidar com lutas e discussões que

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eclodiam entre os membros da Horda. As rusgas não eram sérias, mas ele temia que o Lótus

visse quão caótico o lugar podia ficar. Eles tinham recebido Dezco e seu povo calorosamente

naquele lugar — uma terra que o Lótus já protegia fazia muitos séculos — de braços abertos.

Era responsabilidade do tauren honrar aquela confiança.

Depois de retirar as vestes ritualísticas e vestir sua armadura, Dezco reuniu os quatro

guardas Grelmadruga e esperou pelo Lótus em uma das grandes escadarias em espiral que

levavam ao terraço. Duas estátuas douradas dominavam cada lado dos degraus. As figuras

monstruosas tinham carrancas terríveis e apontavam lanças de gume longo na direção das

escadas, como se expulsando qualquer um que ousasse subir ali. O sangue de Dezco fervia só de

olhar para elas.

Eram mogus, uma raça bruta que já governara o vale, usando seu poder para erguer um

império de ódio e escravização. Dezco lutara com alguns deles antes. Eram oponentes poderosos

e implacáveis, sem honra alguma. Felizmente, seu império se esfacelara havia muito.

Mas as coisas estavam mudando. Um clã de mogus, conhecido como Shao-Tien, tinha

conseguido se infiltrar no vale. Dezco ouvira inúmeros relatórios sobre seus números

crescentes. Enquanto aguardava nos degraus, ele se perguntava se a guerra entre os Shao-Tien e

o Lótus tomara novos rumos. Por que outro motivo tantos protetores do vale iriam até o

santuário?

A pergunta permaneceu em sua mente até que os visitantes chegaram. Dezco ficou feliz

por ter tido tempo de arrumar o terraço ao ver Zhi, o Harmonioso, entre os guardiões. Havia

poucas pessoas em Pandária que ele respeitava mais que o sábio líder pandaren do Lótus

Dourado.

— Esperamos não estar interrompendo nada. Ouvimos sons de tambores no caminho —

disse Zhi, enquanto Dezco o conduzia, junto com os demais membros do Lótus, para a sombra

de uma árvore buzao no centro do terraço.

— De maneira alguma. Era um ritual para honrar minha esposa, mas terminou ao

amanhecer.

— Ah, sua esposa, sim. — Zhi acenou gravemente com a cabeça. — Todos os taurens

honram os mortos desse mesmo jeito?

— Alguns. Esse ritual é antigo. Quase se perdeu na memória de nosso povo, mas os

Andarilhos do Sol lhe insuflaram nova vida. A cerimônia é bem adequada às nossas crenças.

— Interessante. — Zhi cofiou a barba cinzenta trançada. — Há muitas coisas que desejo

saber sobre sua ordem. Vejo muitas similaridades entre ela e o Lótus. Quando a tribulação no

vale cessar, precisamos conversar.

— Seria bom — disse Dezco, e olhou para os membros do Lótus que estavam próximos.

Os taurens tinham conhecido alguns deles quando chegaram ao vale, mas muito

superficialmente. Um rosto familiar era o de Weng, o Misericordioso, um pandaren de voz

macia, gorducho, que estava sempre no santuário.

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E também havia Mokimo. O imenso hozen vestia pedaços de uma robusta armadura feita

de ferro e madeira. Usava um rabo de cavalo curto. Tufos de pelo grisalho emolduravam um

rosto comprido e imberbe, marcado por tinta verde-azulada. Mokimo olhava furtivamente para

o terraço e então, como fazia de quando em quando, cuspia uma sequência de palavras

incompreensíveis em sua língua nativa.

— Cadê os filhotes? — perguntou o hozen, dessa vez em uma língua que Dezco

compreendia.

— Infelizmente precisam descansar. Eles estavam acordados desde o amanhecer.

— Entendo. — A cauda branca de Mokimo baixou, demonstrando desapontamento.

— Talvez mais tarde. — Dezco deu uma batidinha no ombro do hozen, embora estivesse

feliz por seus filhos estarem dentro do santuário com Nala. A doença retornara depois da

cerimônia yeena'e, causando grande consternação a Dezco. Mas mais do que isso, o desastre lhe

parecia iminente toda vez que Mokimo se aproximava dos seus filhos. Os hozens eram um povo

espalhafatoso, dados à espontaneidade e a traquinagens. Embora Mokimo se portasse mais

como um pandaren que como um hozen, as crianças faziam seu temperamento hozen aflorar.

— Do jeito que Mokimo fala, parece até que são os filhotes dele — disse Zhi, e riu. — Mas

falando nas crianças… elas estão bem de saúde?

— Bom… — disse o tauren, e silenciou. Não queria preocupar Zhi com a doença,

principalmente por não saber quão séria era. — Elas estão crescendo rápido, como deve ser.

— Entendo. — Zhi pareceu perder-se em pensamentos por um instante. Sacudiu a

cabeça como se para desanuviar a mente e olhou para Dezco. — É melhor começarmos a

trabalhar. Sei que você está ocupado aqui. Não quero afastar você de suas responsabilidades

mais do que já afastamos.

Zhi fez um gesto para os membros do Lótus que aguardavam. Eles entraram em ação.

Alguns seguiram na direção de um grupo de refugiados perto da entrada do santuário. Os

demais destravaram um grande baú de madeira que tinham trazido.

— Se houver algo que eu possa fazer para ajudar, basta dizer — disse Dezco, sentindo a

curiosidade aumentar.

— Bem que eu queria que houvesse. Mas a verdade é que viemos aqui a mando dos

celestiais.

Dezco tentou disfarçar a surpresa. Os celestiais os tinham enviado? Zhi uma vez lhe

dissera que os quatro grande espíritos vigiavam Pandária desde o início dos tempos. Pelo que

Dezco sabia, eles eram como deuses. Foram eles que abriram o vale para os forasteiros havia

não muito tempo, na crença de que pessoas como Dezco e seu povo pudessem ajudar o Lótus a

defender a região.

— Como você sabe — continuou Zhi —, o vale é grande, e nós do Lótus somos poucos.

Agora, com os Shao-Tien se aproximando, temo que o nosso contingente vá diminuir ainda mais.

Nós viemos aqui para procurar novos membros.

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— Há muitos na Horda que ficariam honrados em se unir a vocês — disse Dezco.

— Infelizmente não é assim tão simples. Os celestiais nos guiam nessa tarefa; eles nos

dizem exatamente quem devemos procurar… quer dizer, era o que faziam até há pouco tempo.

Os grandes espíritos estão inquietos. Suas mensagens tornaram-se confusas. Recentemente, os

celestiais me disseram que há um guardião digno logo aqui no vale. No passado, nossa ordem

sempre teve que explorar a região fora do vale para encontrar novos guardiões. Então eu

percebi por que os espíritos nos enviaram para cá: esta terra agora é o lar de muitas outras

pessoas.

— Mestre Zhi! — gritou Weng, do outro lado do terraço. — Estamos prontos!

Perto de Weng, haviam colocado um gongo de prata, no qual estavam gravados os

símbolos que representavam os quatro celestiais: Niuzao, o Boi Negro; Yu'lon, a Serpente de

Jade; Xuen, o Tigre Branco, e Chi-ji, a Garça Vermelha. Alguns refugiados pandarens se

aglomeravam diante do gongo.

— Um momento! — respondeu Zhi, e então voltou a falar com Dezco. — Tudo o que nos

resta agora é realizar um pequeno teste. Será rápido. Falo com você depois.

— Eu… — começou Dezco, mas Zhi já se aproximava do gongo. O tauren ficou olhando,

desapontado. Esperava que o Lótus fosse lhe pedir algo, alguma ajuda qualquer. A Horda estava

ajudando com os esforços de guerra, mas o próprio Dezco começava a se sentir cada vez mais

inútil. Quase todo o seu tempo era gasto vigiando o santuário.

Mokimo foi até Dezco enquanto Zhi começava a falar com os refugiados.

— Ah, eu espero que funcione — disse o hozen, esfregando as mãos. — Nós andamos

por todo o vale semana passada. Já nem lembro em quantos filhotes fizemos esse teste.

— Filhotes? — perguntou Dezco. Subitamente, ele notou que todos os refugiados

parados perto do gongo traziam crianças pequenas no colo.

— Nossos membros são sempre escolhidos ainda na infância. Quando eu era só um

filhote, Zhi viajou até minha aldeia na Floresta de Jade e me propiciou uma nova vida. Mas agora

nós usamos outros meios para encontrar novos membros. Há três dias, soamos o Gongo

Cantante. Ele envia um chamado a todas as crianças que têm algum vínculo com os celestiais.

Bom, pelo menos é o que os textos antigos dizem. Esse teste só começou a ser realizado

recentemente.

— Três dias atrás… — disse Dezco, de si para si. Ele tentou lembrar quando fora que

Chifre Rubro e Casco das Nuvens tinham adoecido. Parecia ter sido uns três dias antes. Ou mais

tempo? Não sabia ao certo.

— O que acontece quando soa o gongo? — perguntou.

— Eu não sei. Ninguém sabe. Acho que a criança talvez fique… perturbada. Quase como

uma doença. O propósito é saber qual tem o potencial. Soar o gongo uma segunda vez

supostamente alivia o sofrimento do filhote afetado e, assim, atesta que é o escolhido. A isso se

seguiria algum sinal dos celestiais.

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A pulsação de Dezco acelerou. Suor começou a porejar de seu focinho. Uma doença…

Um dos membros do Lótus deu uma marreta de ferro a Zhi. O ancião apanhou-a e

golpeou o gongo com ela. O disco de prata vibrou e balançou para a frente, mas não houve som.

Pelo menos, nada que Dezco ou qualquer outra pessoa pudesse ouvir. Nenhum dos casais

pandarens reagiu, nem seus filhos. Não houve sinal dos celestiais.

— Nada aconteceu. — Dezco sentiu ondas de alívio ao pensar em seus filhos. E por que

algo aconteceria com eles? O Lótus Dourado era composto pelas raças pandarianas: jinyus,

pandarens, hozens e outros, que já viviam naquelas terras havia muitos milhares de anos. Seus

filhos eram taurens. Estrangeiros.

— Nada… — Mokimo baixou a cabeça. Os outros membros do Lótus olharam em volta,

como se procurassem explicação para o que ocorrera. Zhi girou a marreta nas patas, desolado.

Dezco sentiu uma pontada de pena deles. Os membros da ordem tinham vivido em paz

por tanto tempo. Agora, a guerra se avizinhava. Agora, os celestiais que os conduziam estavam…

Alguém gritou em meio à multidão.

O gongo tremeu violentamente. Rachaduras se espraiaram do centro até as bordas feito

teias de aranha. O artefato de prata se esfacelou no chão do terraço. Uma esfera de luz azul e

dourada flutuava no ar. Lentamente ela girou e cresceu, assumindo a forma de uma garça

gigante. A criatura estirou o pescoço e agitou a plumagem branca, vermelha e amarela ao longo

do corpo.

— Chi-Ji — disse Zhi, mantendo a calma. Ele e os outros membros do Lótus se curvaram

ao mesmo tempo.

— O chamado foi respondido — disse o avatar da Garça Vermelha, numa voz diáfana e

atroante. O celestial, que tinha o dobro da altura de Dezco, olhou para cada um dos filhotes

pandarens.

— Não está aqui — disse por fim. A cabeça do celestial se voltou na direção da fachada

do santuário, que se projetava do flanco da montanha. Subitamente, ele avançou e atravessou a

imensa entrada da cidade. A multidão ficou parada um instante e depois seguiu a Garça

Vermelha.

Dezco avançou, pensando em Chifre Rubro e Casco das Nuvens. Ele atravessou os altos

corredores do santuário, correndo até o Repouso do Verão. Sabia que Nala levara seus filhos

para a estalagem, que ficava do lado ocidental da fortaleza.

E Chi-Ji também sabia.

Para o horror de Dezco, a Garça Vermelha já estava lá, pairando sobre um dos biombos

de madeira e papel que demarcavam cada "aposento" da estalagem. Nala estava ali, em posição

defensiva entre dois bercinhos.

— Você não é a mãe — disse Chi-Ji, com curiosidade.

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Dezco passou pelo celestial e pôs a mão no ombro de Nala para acalmá-la. Chifre Rubro e

Casco das Nuvens observavam dos berços. Estavam rindo pela primeira vez em dias, esticando

os bracinhos na direção de Chi-Ji.

— Deve haver algum engano. — Dezco teve que fazer um esforço supremo para

controlar o tom da voz.

— Você é o pai. — Os olhos do celestial se fixaram em Dezco, queimando feito sóis

gêmeos, incandescentes e implacáveis. O tauren sentiu a Garça Vermelha observando-o,

vasculhando seus pensamentos e memórias. — A mãe se foi. Morreu no parto. Mas, na morte, ela

gerou duas vidas.

Chi-Ji inclinou a cabeça. — Você os chama de Casco das Nuvens e Chifre Rubro, mas

esses não são seus nomes reais.

— Não são os nomes reais? — Mokimo abriu caminho entre os refugiados, membros do

Lótus e da Horda que se aglomeravam ao redor do biombo, ávidos por ver o que se passava.

— Não. — Dezco olhou para a Garça Vermelha, atônito. Chifre Rubro e Casco das Nuvens

eram os nomes de desmama de seus filhos. Aquela era uma tradição rara, que sua tribo ainda

mantinha. No momento certo, receberiam seus nomes reais: o de um velho e querido amigo que

morrera na selva costeira de Pandária e o de um novo amigo que ajudara a tribo.

— Eu não esperava gêmeos. — O avatar de Chi-Ji se voltou para Zhi. — Só um precisa

servir o vale.

— Eu entendo — Zhi aquiesceu. A expressão calma do ancião sumira. Havia choque

genuíno em seu rosto. Seus olhos encontraram os de Dezco. — Crianças forasteiras… eu jamais

esperaria por isso, amigo — disse o líder do Lótus. — Passou pela minha cabeça, claro, mas

jamais pensei que fosse uma possibilidade real.

— Eles são meus filhos. — Dezco se esforçava por compreender o que se passava. Tudo

tinha acontecido tão rápido… — Você está me pedindo que…

— Que você proteja aquilo pelo qual viajou de tão longe para proteger — respondeu a

Garça Vermelha. — Que honre o sonho de sua esposa. Que se sacrifique pelo vale, como ela se

sacrificou. É bom que você tenha dois filhos. Um ajudará o vale; o outro ficará com você. Só resta

escolher. — O avatar de Chi-Ji começou a esvanecer-se no ar feito fumaça.

— Espere! — gritou Dezco.

Mas não houve resposta. A Garça Vermelha desapareceu. Os membros do Lótus

aplaudiram, celebrando. Atrás deles, os refugiados abriam caminho até as crianças. Os rostos se

misturaram. Nala empurrou um pandaren que se aproximava de Chifre Rubro, arremessando-o

contra o biombo.

Alguém bateu forte nas costas de Dezco. Ele se voltou para se defender e viu Mokimo

com um largo sorriso no rosto. — Que dia! — gritou o hozen, acima do barulho da multidão. —

Que dia glorioso hoje se revelou!

***

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Escolha…

A ordem de Chi-Ji perturbava Dezco e o seguia como um fantasma durante horas a fio.

Ele andou sem rumo por muito tempo e, quando finalmente chegou ao Terraço Dourado, An'she

já havia desaparecido atrás do horizonte.

Chifre Rubro e Casco das Nuvens dormiam tranquilamente em duas cestas — uma no

peito e outra nas costas de Dezco. Ele as confeccionara logo depois de as crianças nascerem;

eram unidas por um pedaço de corda amarrada em seus ombros. Aquele sistema o ajudara

bastante durante sua jornada por Pandária, pois permitia que os filhos ficassem perto dele e

mantinha suas mãos livres para usar escudo e maça. Aquelas terras escondiam tantos perigos

que ele se recusava a desviar os olhos dos filhos por um instante que fosse.

"De nada servem minhas armas agora" , pensou ele, enquanto observava o terraço.

Àquela hora da noite, a plataforma estava quase vazia. Alguns orcs se agachavam sob a árvore

buzao, afiando as lâminas em uma pedra à luz de um lampião. Perto da entrada do santuário,

elfos sangrentos de longas vestes esvoaçantes conversavam animadamente sobre as

propriedades mágicas do vale. Normalmente, Dezco os teria cumprimentado, mas, daquela vez,

passou por eles sem lhes dirigir a palavra.

— Uma oportunidade de ouro, se você quer saber — ouviu um dos orcs sussurrando

para os camaradas. — Há poder no vale, não é? Foi por isso que viemos. Bom, a Aliança também

veio para cá. No momento, estamos em pé de igualdade. Mas, se a Horda tivesse um de seus

membros no Lótus…

— Não seja tolo — respondeu alguém. — O filhote não seria mais um de nós. A Horda

não significaria mais nada para a criança. Veja Mokimo. Ele não age como os hozen que

conhecemos. O Lótus tomou sua cultura. Sua identidade.

Dezco se afastou para não ouvir a conversa. Ele já ouvira discussões como aquelas

centenas de vezes. O dia passara como um sonho. Não: um pesadelo. Só se lembrava de trechos:

o Lótus Dourado lhe dando os parabéns e desaparecendo tão rapidamente quanto surgira,

reuniões intermináveis com outros membros da Horda para discutir o acontecido, o afluxo

interminável de refugiados que queriam ver seus filhos, como se fossem objetos sagrados.

Ele estava aliviado por estar finalmente sozinho. Tinha chegado ao limite da paciência e

dispensara seus conselheiros — e até Nala — havia muitas horas. Dezco suspirou, frustrado: o

dia começara tão bem, apenas para terminar em meio ao caos.

Dezco recostou a maça de cristal e o escudo de bordas serrilhadas contra a balaustrada

de madeira envernizada do terraço. Mais adiante, fogueiras e tochas espalhadas queimavam,

iluminando o terreno. Cinco fontes sagradas brilhavam com uma luz azul feérica ao longe.

Mokimo falava das águas frequentemente. Eram o poder do vale: seu sangue vital. Talvez Dezco

e seu povo tivessem sido atraídos para lá a fim de protegê-las ou usá-las de alguma maneira.

Eram seis fontes no total, mas uma não estava exposta: ficava bem no interior do Palácio

Mogu'shan. Ele discerniu vagamente a fachada da fortaleza colossal, outrora sede do império

mogu, escavado no flanco das montanhas a leste do vale.

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Ele sempre achara estranho que o Lótus Dourado jamais tivesse derrubado as estátuas e

prédios pertencentes aos antigos senhores do vale. Deixá-los de pé era como dar um motivo

para os mogus retornarem. Certa ocasião, mencionara aquilo a Mokimo, que replicara: — Os

mogus acreditavam que o vale servia a eles. O Lótus acredita que nós servimos ao vale. Deixamos

as estátuas como recordações de sua arrogância e vaidade.

Na época, a sabedoria daquelas palavras o convencera, mas agora lhe pareciam vazias.

Uma desculpa para não agir. Se os celestiais eram tão poderosos, por que não rechaçavam os

invasores mogus? Se o vale era um crisol de esperança e paz como Leza imaginara, por que as

energias que fluíam por aquela terra não ajudavam o Lótus Dourado a dar um fim rápido à

guerra?

Dezco inspirou longa e profundamente. Perguntas demais. Incertezas demais.

— Noite bonita, não é? — perguntou alguém.

O tauren se voltou e viu Mokimo se aproximando lentamente.

— Você voltou — disse Dezco, ríspido. O hozen havia desaparecido com o resto dos

membros do Lótus depois do teste, deixando o tauren sozinho para ponderar sobre os eventos

daquele dia. Mokimo nunca parecia estar por perto quando Dezco precisava.

— Acabei de chegar. — O hozen se apoiou na balaustrada ao lado de Dezco. — Zhi me

pediu para acompanhá-lo. Encontramos alguns membros da minha ordem que acabavam de

voltar da batalha. Há mais Shao-Tien entrando no vale do que esperávamos. Ainda bem que você

não viu o os defensores. Eles estavam à beira do desespero… muito assustados.

— Sinto muito. — Dezco procurou esquecer a própria frustração e pensou nos mogus

conquistando mais vitórias.

— Mas, quando falamos para eles da Garça Vermelha e dos seus filhos… como eles

mudaram! Num minuto, tristeza; no outro, alegria. Num minuto, desespero; no outro, esperança!

— Mokimo pulava animado, curvando as perninhas atarracadas.

— Eles são crianças — disse Dezco. — Não fariam diferença na guerra.

— Nós do Lótus vivemos e morremos pelo amanhã. A Garça Vermelha nos prometeu um

futuro. Não teria vindo aqui se não acreditasse que precisaríamos de uma nova geração de

protetores. — Mokimo tirou um pequeno entalhe em madeira de sua túnica e o depôs sobre a

balaustrada diante de Dezco. — Pegue. Pertenceu a alguém da minha ordem. Ele foi morto

ontem. Não consigo pensar em melhor maneira de honrá-lo que dando a você.

Dezco inspecionou o objeto: uma imagem intricada da Garça Vermelha. Estranhos

caracteres de um alfabeto que ele não conhecia se espiralavam ao redor do corpo de Chi-Ji, dos

pés ao bico. Era apenas um pedaço de madeira, mas o deixou inquieto.

— Está inscrito: "O Destino é o vento, sempre cambiante. A Vida é a nuvem, some em um

instante. O vale é o céu perene." É um antigo ditado de nossa ordem. Ele nos lembra de que,

mesmo na pior época, ainda há esperança. De que, mesmo na morte, a luta continua. Achei que

você gostaria. Você fala muito da sua esposa, da aurora que ela vislumbrou.

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— Mokimo, você sabe que eu quero ajudar vocês. Mas eu… — começou a dizer, mas

parou ao ver a expressão de alegria no rosto do hozen. Ele não seria capaz de destruir o sonho

de Mokimo. Não tinha nem certeza de que o protetor entenderia. O Lótus parecia pensar que

não importava se Dezco decidiria ou não. Aquilo era o esperado.

— Não precisa falar disso agora — disse Mokimo. — Eu nem deveria estar aqui. Zhi

disse para eu não falar com você, para deixar você pensar e escolher com calma. Eu só queria

entregar isso. Queria agradecer. — O hozen se afastou da balaustrada. — É melhor eu ir. Devem

estar me procurando no pagode.

Mokimo desceu rapidamente a escada. Dezco ergueu o entalhe de Chi-Ji da balaustrada.

A voz do celestial ecoava em sua cabeça: Escolha. Escolha o quê?, ele quis gritar. O Lótus agora

via seus filhos como salvadores. Se não obedecesse e ficasse no vale, sabia que ele e os filhotes

se tornariam uma mácula na terra, um lembrete constante de um sonho despedaçado.

Dezco depôs a figura outra vez e tirou Casco das Nuvens e Chifre Rubro das cestas. Ele os

apertou firme nos braços e os imaginou nos anos seguintes, aprendendo os costumes dos

Andarilhos do Sol, ajudando nos rituais para honrar An'she e a Mãe Terra, escutando histórias

sobre a valentia de Leza às portas da morte.

— Leza… — sussurrou Dezco, desejando que ela estivesse ao seu lado para ajudá-lo,

imaginando o que ela faria em seu lugar. Súbito, ele se lembrou de algo que sua esposa disse

antes de morrer. Meu amor… o que quer que aconteça… você tem que proteger… nossos filhos…

Ela não sabia que daria à luz gêmeos. Para Dezco, aquilo tornava seu último desejo ainda mais

premente.

E sua escolha ficou clara.

— Eu escolherei — disse, olhando para seus filhinhos.

— Nala! — gritou Dezco, virando a cabeça. Imaginava que ela estava ali por perto, nas

sombras. Pedira que ela não o acompanhasse, mas a conhecia bem o suficiente para saber que,

naquele ponto, não o obedeceria.

A prima de Leza apareceu de detrás da árvore buzao. — O Lótus não entende, não é?

— Não é culpa deles.

— O que vamos fazer? — perguntou Nala, aproximando-se da balaustrada.

— Nós… — disse Dezco. — Eu quero que você assuma o controle do santuário.

— O quê? — Nala olhou para ele, perplexa. — Por quanto tempo?

Dezco olhou uma última vez para a figura de Chi-Ji. — Permanentemente.

***

Estava quase amanhecendo quando Dezco partiu do santuário com Chifre Rubro e Casco

das Nuvens dormindo nas cestas. Despedir-se de Nala tinha sido bem triste, mas no final ela

entendeu. Nala era uma Andarilho do Sol e sabia que em todas as coisas só havia um caminho

verdadeiro, uma decisão certa.

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Qual caminho poderia ser mais verdadeiro que manter a família protegida? Que mantê-

la unida?

A preocupação de Nala advinha mais do seu desejo de acompanhar Dezco e cuidar das

crianças, mas ele precisava dela no santuário. Ele não conseguia imaginar ninguém mais capaz

de impedir que o lugar se esfacelasse. Assim como Leza, Nala sempre sabia quando ser firme e

quando ser flexível. Era uma líder nata.

Além disso, Dezco queria se distanciar ao máximo de seus camaradas. Aquela escolha

era sua e de ninguém mais. Ele não sabia como o Lótus Dourado reagiria, nem — mais

importante ainda — a Garça Vermelha. A última coisa que queria era ameaçar o lugar que a

Horda conquistara no vale. Aquela terra, apesar dos acontecimentos recentes, ainda significava

alguma coisa para o futuro do seu povo.

Dezco se envergonhava de não avisar Mokimo, mas não havia o que fazer. Uma fuga

rápida, por mais que doesse, era a melhor opção. Tornaria mais fácil para o Lótus seguir em

frente.

O tauren avançou bastante pela manhã. Ele ficou longe das estradas principais, seguindo

pelos sopés das montanhas ao norte. Estimava que antes do anoitecer chegaria ao Portão dos

Celestiais Majestosos, que demarcava a saída do vale.

Perto do meio-dia, ele parou ao sopé de uma colina e depositou os filhos no chão.

Apanhou um odre de leite de iaque misturado com ervas que Nala lhe ensinara a preparar. Ela

garantira que a bebida manteria seus filhos saudáveis até que chegassem a Mulgore e

encontrassem uma taurena que pudesse alimentá-los adequadamente. No entanto, ela não

avisara que os pequeninos odiariam tanto a bebida. Depois de um gole, ambos começaram a

chorar, recusando-se a beber mais.

— Não é tão ruim assim — grunhiu Dezco. Ele tomou um gole da mistura. A bebida

espessa, insuportavelmente amarga, o fez tossir de forma incontrolável. O choro de Chifre Rubro

e Casco das Nuvens logo se transformou em gargalhada.

— Não é sábio desrespeitar os mais velhos assim, pequeninos — resmungou Dezco de

maneira brincalhona.

Dezco estava prestes a tentar outra vez quando o chão começou a tremer. Três carroças

puxadas por iaques assomaram barulhentamente no topo da colina, carregadas de pandarens.

Os iaques fungaram, bocas pingando espuma e saliva.

— Mogus! — gritou um dos passageiros quando as carroças passaram às pressas por

Dezco. — Estão no portão!

Impossível. Dezco apressou-se a colocar os filhos outra vez nas cestas. Lentamente, subiu

pela colina com o escudo levantado. No topo, uma rajada de vento passou por ele, trazendo

cheiro de fumaça e batalha.

Ele viu mais à frente o Portão dos Celestiais Majestosos. Havia incêndios por toda a

parte. Um exército de Shao-Tien de pele azul-escura enxameava à entrada do vale. Aglomerados

de formas vestindo armaduras leves — o Lótus Dourado — avançavam contra os mogus

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invasores. Tiros de canhão estouravam feito trovões pelo vale. Um grupo inteiro de defensores

do Lótus desapareceu em uma torrente de fogo e sangue. O resto dos guerreiros da ordem bateu

em retirada rapidamente com os mogus em seus calcanhares, eliminando os retardatários.

Dezco praguejou baixinho. Seu caminho estava bloqueado. Ele se voltou e desceu a

colina, considerando as opções. Ouvira falar de outro portão a oeste, mas não tinha certeza se

estava aberto. Talvez ele pudesse encontrar uma passagem… uma trilha secreta nas montanhas

ou um túnel que os nativos conhecessem.

Ele só sabia que não poderia voltar ao santuário. Já não fazia parte daquele lugar, não

agora, depois de ter feito sua escolha. Aferre-se à escolha que fez. Fique firme, pensou.

Um dos fugitivos esperava por ele na base da colina. Era um velho pandaren com uma

barba longa e rala que descia do seu queixo. — Naquela direção só há morte — disse ele.

— É o que parece. Para onde você está indo? — perguntou Dezco.

— Bruma Baixa. Muitos de nós fomos separados das famílias. Parece que alguns podem

estar lá. Estou procurando meus netos. Para onde o vento leva você?

Dezco meditou sobre o pouco que sabia a respeito da Vila da Bruma Baixa. O pequeno

campo de refugiados ficava perto do lado sudoeste do vale. De lá, Dezco poderia saber mais

sobre o outro portão. E se aquele lado também estivesse bloqueado, pelo menos a jornada lhe

permitiria passar mais tempo afastado do santuário. Talvez até tempo suficiente para o Lótus

rechaçar os Shao-Tien e retomar o Portão dos Celestiais Majestosos.

Se tiverem força para tanto, pensou, sombrio.

— Bruma Baixa — disse Dezco.

***

Dezco e os refugiados passaram pela parte leste do vale, colocando as montanhas

gêmeas que havia no centro da região entre eles e a frente mogu. A presença de pandarens

idosos e feridos conferiu à jornada a velocidade de uma lesma, mas Dezco não se importava.

Gostava de ficar com as crianças e mantinha-se afastado dos outros a maior parte do caminho.

Sua única preocupação real era encontrar membros do Lótus, mas não via sinal deles.

Logo antes do anoitecer do segundo dia, a caravana se aproximou dos limites sul do vale

e da passagem montanhosa que os levaria à Vila da Bruma Baixa. As fontes sagradas brilhavam à

luz do pôr do sol, a sul, a leste e a oeste. Tão perto das águas, o ar parecia zumbir com um poder

estranho, quase tangível. Dezco admirava as fontes distantes, quando a caravana parou.

— Tem algo lá na frente! — Um grito veio da frente da coluna de refugiados.

Dezco abriu caminho entre os outros viajantes para sair do final da coluna, lutando

contra a fadiga. Mal dormira durante a jornada. Os refugiados tinham bons corações, mas

careciam de treinamento militar. O tauren não confiava neles o suficiente para deixar seus filhos

desprotegidos, nem que fosse apenas por algumas horas à noite.

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Havia um grupo de refugiados perto da carroça principal, discutindo algum assunto.

Dezco viu uma grande fogueira queimando ao longe, perto da passagem, bloqueando o caminho.

— Alguém sabe quem pode ser? — perguntou aos pandarens ali reunidos.

— Nós mandamos alguém para ver — disse um jovem refugiado metido em trapos. Ele

fez um gesto com a pata na direção dos outros pandarens próximos. — Alguns acham que são os

mogus. Mas eles não fariam uma fogueira assim tão exposta.

— E você agora virou perito nos mogus? — desdenhou um pandaren. — Ouvi dizer que

há grupos de saqueadores Shao-Tien por todo o vale, assassinando todos que encontram e

desaparecendo feito fantasmas. A fogueira pode ser uma armadilha para nos atrair.

Um silêncio desconfortável se abateu sobre o grupo. A cauda de Dezco abanava de um

lado para outro, sinal de que ele tentava conter a ansiedade, dizendo a si mesmo que os mogus

não poderiam ter adentrado tanto no vale.

O batedor voltou algum tempo depois, acenando para que a caravana seguisse. — É

seguro! —

Os pandarens ao redor de Dezco suspiraram de alívio, mas ele manteve a cautela.

— Mais refugiados? — gritou para o batedor. Além dos mogus, havia outro inimigo que o

preocupava: a Aliança. Os rivais da Horda tinham estabelecido uma embaixada em uma

fortaleza semelhante ao Santuário das Duas Luas naquele canto do vale. Dezco formara um

vínculo com um dos líderes da Aliança, o príncipe Anduin Wrynn. Assim como os taurens, o

jovem humano não desejava o conflito. Ele viera ao vale atraído pela promessa de esperança e

paz. Ainda assim, o tauren não sabia qual era o peso real daquela amizade. Havia tantos

fanáticos beligerantes na Aliança quanto na Horda.

— Não — respondeu o batedor. Dezco discerniu seu sorriso ao longe. — É o Lótus

Dourado!

***

— Sentem! Comam! Descansem! — gritou Mokimo com os braços erguidos.

Uma grande fogueira crepitava atrás do hozen. Vapor se evolava das panelas de ferro

penduradas sobre as chamas. Perto dali, Weng, o Misericordioso, pegava arroz dos caldeirões e

o despejava em tigelas lisas de madeira entalhadas com símbolos dos quatro celestiais. Um

pandaren que Dezco não conhecia desembalava copos de capangas de couro. Ele era enorme, a

ponto de fazer o tauren parecer minúsculo, e vestia enormes placas de armadura negra. À

exceção do coque e da barba castanhos, seu pelo era todo branco.

Os refugiados passaram por Dezco e precipitaram-se em direção à fogueira, famintos e

exaustos. O estômago do tauren também roncou quando o vento levou o cheiro de comida

quente até ele, mas Dezco não se moveu. A presença do Lótus o irritava. Àquela altura, com

certeza já estavam a par de sua escolha. O mais honrado teria sido deixá-lo seguir caminho e

encarar as consequências de sua decisão.

Em vez disso, tinham-no seguido.

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— Dezco! — Mokimo acenou para ele. — Venha! Você deve estar faminto!

Dezco abanou as orelhas e bufou, irritado com o tom casual. Do jeito que Mokimo falava,

até parecia que encontrar o tauren no meio do vale não era surpresa nenhuma.

Sem responder, o tauren se afastou um pouco do acampamento e escolheu um terreno

desimpedido. Não demorou muito e ele já tinha sua própria fogueira crepitando na noite. Tirou

Casco das Nuvens e Chifre Rubro das cestas e começou a alimentá-los com o preparado de leite

de iaque. Alimentá-los tornara-se mais fácil. Os pequeninos até estavam começando a gostar da

bebida.

As crianças tinham acabado de comer quando Mokimo se aproximou da fogueira de

Dezco. — Eu teria vindo antes, mas os refugiados estavam com muita fome — disse o hozen. —

Graças aos celestiais você e seus filhos estão bem. Nós estávamos preocupados. — Ele se

agachou e sorriu francamente para Chifre Rubro e Casco das Nuvens. Os jovens riram e ficaram

pegando nos longos tufos de pelo branco ao redor das bochechas do hozen.

— Você já conhece Weng. — Mokimo apontou para seus dois companheiros, que se

misturavam aos refugiados. — E o grandalhão é Rook. Ele nunca foi bom com formalidades, mas

é extremamente leal. Um amigo gentil, e também um inimigo feroz. Acho que você ia gostar dele.

Não quer se juntar a nós? Tem bastante espaço em nosso…

— Vocês me seguiram — disse Dezco.

— Bem… não exatamente — respondeu Mokimo. — Nós adivinhamos para onde você

estava indo. Com o Portão dos Celestiais Majestosos fechado, não há muitos lugares aonde ir no

vale.

— Eu fiz minha escolha, Mokimo — afirmou Dezco, com a voz firme. — Foi errado de

minha parte não dizer a vocês pessoalmente. Peço desculpas por isso. Mas me seguir não muda

nada. O lugar dos meus filhos é em casa, em Mulgore. Juntos. Essa é a minha decisão. —

Acrescentou: — Os resto do pessoal no santuário não teve nada a ver com isso.

— Nala me contou. Eu me encontrei com Zhi, e ele concordou que, se o seu desejo é

partir, então você é livre para fazê-lo.

Dezco não sabia como reagir. Ele esperara alguma resistência. — Outro dia mesmo você

falou da importância dos meus filhos para o futuro da sua ordem — disse o tauren.

— E eu fiquei feliz. E os membros do Lótus também. Mas isso não é minha decisão, não

é? Isso é com você.

— Então por que vocês estão aqui?

— Seus filhos foram escolhidos; estão vinculados a Chi-Ji e, assim, ao vale. O Lótus jurou

defender esta terra para sempre. Até que seus filhotes partam daqui, nós os vigiaremos. Mas por

que você quereria partir, isso é o que não entendo. Pensei que você tivesse viajado tanto para

ficar aqui.

— Sim, é… foi por isso. — Dezco baixou a cabeça. — Se Chi-Ji tivesse mandado que eu

avançasse sobre as linhas mogus sozinho, eu teria honrado seu pedido sem pensar duas vezes.

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Teria feito qualquer coisa. Qualquer coisa menos isso… — Ele olhou para Mokimo. — Não foi

para isso que eu vim aqui.

— Como você sabe?

— Não foi — disse Dezco, sentindo a raiva aumentar. Ele percebeu o que estava

acontecendo: Mokimo estava tentando convencê-lo. Zhi provavelmente enviara o hozen e os

outros para dissuadi-lo de partir.

— Já perdi demais — continuou o tauren. — Não vim para cá para perder tudo.

Prometeram paz à minha tribo. Esperança. Nós… Eu não encontrei nada do que esperava. — O

tauren respirou pausadamente, tentando se acalmar. Sem sequer se aperceber, já estava na

ponta dos cascos. Weng, Rook e os refugiados em volta da outra fogueira o encaravam em

silêncio.

Mokimo permaneceu impassível. — Expectativas são… perigosas. — Ele cutucou a

fogueira com um graveto. — Eu esperava muitas coisas quando me uni ao Lótus. Mas à medida

que os anos foram se passando, eu comecei a odiar este lugar. Tudo era tão estranho e confuso.

Queria ir para casa. Bom, um dia eu decidi ir mesmo, mas Zhi me flagrou quando eu estava

tentando escapar do vale. Mas ele não me repreendeu. Ele entendeu. Na verdade, prometeu que

me levaria para ver minha família. É raro que um membro do Lótus saia do vale se não for em

ocasiões oficiais. Ele me fez uma grande honra.

"Quando chegou o dia, nós viajamos até minha aldeia nas colinas enevoadas da Floresta

de Jade. Eu me sentia assustado e empolgado ao mesmo tempo. Já fazia anos que não via minha

família. — Mokimo desamarrou uma pequena tira azul-esverdeada do rabo de cavalo e a

mostrou a Dezco. Não era nada de mais: uma tira de couro simples, envelhecida, gasta pelo

tempo. — Foi da minha mãe. Nós a encontramos nas ruínas da velha cabana da família. A aldeia

inteira tinha sido destruída. Todos tinham morrido. As tribos hozen frequentemente lutam

entre si, sabe.

— Sinto muito — disse Dezco, envergonhado por sua explosão de raiva.

— Por quê? Se eu não tivesse sido escolhido, não estaria vivo aqui hoje. Nós não

podemos prever aonde a vida nos levará. É melhor não lutar contra o que nos foge ao controle.

O momento em que você abandona as expectativas é o momento da verdadeira liberdade. Tudo

o que podemos fazer é servir ao vale sabendo que, aonde quer que o vento nos leve, teremos

vivido por algo maior do que nós mesmos. Para nós, é o que basta.

Mokimo se ergueu e bateu o pó das roupas. — Volte ao santuário. É tudo o que eu peço.

Para que arriscar a vida dos filhotes aqui? Nenhum lugar é seguro no vale. Nenhum.

Dezco respirou fundo e olhou para as chamas que tremeluziam, cambiantes. Sempre em

movimento, nunca estáveis. Imprevisíveis, como tanta coisa em Pandária. A única constante era

ele mesmo, suas próprias escolhas. Viajara pela selva costeira, pelas montanhas do norte e por

outras regiões com os filhos. Enfrentara inimigos brutais, como os mogus, que espreitavam em

cada reentrância escura daquele continente. Todo aquele tempo, sempre protegendo os filhos.

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O santuário não era uma fortaleza inexpugnável. Na verdade, parte de Dezco suspeitava

que o Lótus o queria ali apenas para ter uma chance de convencê-lo. Ele ficaria encurralado.

Preso.

Dezco sacudiu a cabeça. — Você tem razão quando diz que esta terra é perigosa, mas

existe um lugar seguro para meus filhos: ao meu lado. É onde eles vão ficar. Se você quiser nos

seguir, que seja, mas nosso destino é Bruma Baixa.

***

Ainda estava escuro quando Dezco acordou de súbito.

Ele se apoiou nos cotovelos, zangado por ter caído no sono. Planejara continuar a vigília

noite adentro, mas a longa jornada finalmente cobrara seu preço.

Perto dali, os iaques bufavam e batiam com os cascos no chão, apavorados.

Os pensamentos de Dezco voltaram-se para Chifre Rubro e Casco das Nuvens. Eles

estavam seguros, dormindo um sono tranquilo sob cobertores perto da fogueira. Ele colocou os

filhos nas cestas com cuidado e prendeu-as ao corpo.

No outro acampamento, alguns refugiados acordavam aos poucos, esfregando os olhos

cansados. Mokimo, Weng e Rook estavam imóveis do outro lado da fogueira, olhando para as

trevas.

— O que foi? — perguntou Dezco ao se juntar a eles.

Mokimo levou o dedo aos lábios. — Rook está vendo alguma coisa — sussurrou.

Um grunhido cavo ressoou na garganta de Rook. Sua pata apertou uma maça de ferro

gigante adornada de pregos. — Rook não gosta daquelas rochas ali — disse o pandaren branco.

— Por que você não gosta delas? — perguntou Weng.

— Não ficam paradas. — Rook rilhou os dentes. — Rochas más. Rochas burras.

Dezco ficou de costas para o fogo a fim de que seus olhos se acostumassem à escuridão.

Lentamente, os detalhes foram ficando mais nítidos: uma encosta íngreme, o lado da montanha

por onde eles planejavam passar. Rochedos de vários tamanhos pontilhavam a encosta. Mas

nada parecia fora do lugar. Era só uma…

Houve um movimento rápido na encosta. Foi só por um instante, mas Dezco viu.

— Weng — disse Mokimo. — Acorde os refugiados. Em silêncio. Prenda as carroças aos

iaques.

Weng aquiesceu e partiu.

Dezco mantinha os olhos na montanha, sem saber se o que vira fora real ou um simples

fruto da sua imaginação. Então houve movimento outra vez. E não parou.

— Corra. — Mokimo voltou-se para Dezco. — Corra!

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Dez rochedos gigantes começaram a descer pela encosta em uma avalanche.

Não… não simplesmente descer, concluiu Dezco. Eles estavam correndo.

Rook ergueu os braços e rugiu; os rochedos pularam da encosta e os detalhes de suas

carrancas e corpos quadrúpedes atarracados foram realçados à luz do fogo.

— Quílens. — Dezco sugou ar por entre os dentes.

As feras corriam na direção do acampamento, e suas peles de granito ondeavam de

maneira estranha e antinatural. Eles eram os sabujos dos mogus, criaturas cruéis com a mesma

pele de pedra viva dos mestres.

Os iaques ergueram as patas dianteiras. Apenas dois estavam presos às carroças. Weng

os segurou pelas rédeas, forcejando para impedi-los de correr. Os refugiados corriam pelo

acampamento, acendendo pedaços de madeira na fogueira para usar como tochas. Chifre Rubro

e Casco das Nuvens choravam de medo.

Em vez de atacar, os quílens formaram um amplo semicírculo ao redor do

acampamento, criando uma barreira entre os refugiados e o vale ao norte, mas deixando a

passagem da montanha franqueada.

— O caminho até Bruma Baixa está livre! — gritou Weng. — Vão para…

— Mantenham a posição! — berrou Dezco, ciente do que estava acontecendo. — Estão

tentando nos conduzir para a passagem.

— Ele está certo. — Mokimo pulou para o lado de Dezco respirando pesadamente. Os

quílens estalaram as bocarras e se aproximaram do acampamento, mas não atacaram ainda. —

Precisamos voltar para o norte, para o meio do vale.

— Rook abre caminho. — O pandaren branco ergueu a carroça que não estava amarrada

e seus braços grossos feito troncos de árvore tremeram com o esforço. Com um rugido

ensurdecedor, arremessou-a diante de si. O veículo se estraçalhou no centro da linha ofensiva

quílen, forçando as feras a se espalharem.

— Agora! — Dezco fez um sinal.

Os refugiados avançaram. Quílens os cercaram de todos os lados. Rook acertou um em

pleno salto com a maça. Outros quatro investiram contra Dezco. Ele orou para An'she, e o ar frio

ao seu redor eriçou-se de poder, esquentando e fulgurando como se a noite tivesse virado dia.

Ele soltou o escudo do braço e arremessou a placa de ferro serrilhado contra o quílen.

Brilhando, o escudo girou pelo ar e acertou a primeira fera, cravando-se em sua cabeça. O

impulso do arremesso fez com que a criatura caísse em cima de um de seus irmãos, partindo-o

ao meio.

As duas feras remanescentes continuavam incólumes. Mokimo deu uma cambalhota na

direção deles apoiado em seus braços longos, acertando um dos quílens com o pé. Dezco teve

tempo apenas de virar de lado e cobrir o peito com a mão livre, protegendo Casco das Nuvens,

quando o outro quílen pulou na direção dele e o acertou.

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Algo rasgou. Dezco sentiu um peso sair dos seus ombros. O quílen rompera a corda.

O tauren agarrou a cesta de Casco das Nuvens no ar. Ele girou a maça erguida, mas o

quílen já fugia na direção da passagem.

O monstro arrastava a outra cesta pela corda. Chifre Rubro, lá dentro, estava gritando.

O tauren correu na direção do filho, e seus cascos escavavam fundo o solo. Mokimo

correu ao seu lado e puxou seu braço com força suficiente para fazê-lo parar.

— Eu vou atrás dele — disse o hozen. — Pegue Casco das Nuvens e vá com os

refugiados.

— Não vou abandonar Chifre Rubro! — Dezco soltou o braço das mãos de Mokimo.

— Então me entregue Casco das Nuvens e eu o levarei para um local seguro — pediu o

hozen.

Dezco hesitou, acossado pela indecisão. Os refugiados batiam em retirada caótica,

perseguidos de perto pelos quílen. Duas das feras levaram Rook ao chão. Ele batia

freneticamente em suas cabeças com as patas.

— Para onde?! — gritou o tauren. — Eu já falei que…

Um grito de gelar o sangue irrompeu da passagem.

Dezco empurrou Mokimo e correu na direção do som, com a cesta de Casco das Nuvens

presa firme sob o braço. Ele sussurrou uma oração para An'she e teceu um escudo de luz ao

redor de Casco das Nuvens para mantê-lo a salvo da batalha iminente.

Ao se aproximar da passagem escura, o tauren sabia que Mokimo estava atrás dele, mas

sua atenção estava toda nos gritos longínquos de Chifre Rubro. Luz do fogo bruxuleava mais à

frente, um refulgir alaranjado que enfraquecia e ficava mais forte contra os flancos da

montanha. Ele seguiu a luz, ouvindo seu sangue bombear forte nos ouvidos.

Logo depois de entrar na passagem, Dezco encontrou seu filhote.

Chifre Rubro estava dependurado do enorme punho cinzelado de um Shao-Tien. À

exceção de um kilt de couro inticado, o brutamontes musculoso não usava armadura. Sua pele

de rocha azul-escura rebrilhava à luz da tocha que ele trazia na outra mão. O quílen se postou a

pouca distância do mogu, junto com mais dois Shao-Tien de armadura pesada e lanças de gume

longo.

Os mogus não disseram nada. Dezco não esperava que o fizessem. Não se podia arrazoar

com aquela raça. Suas ações desafiavam a lógica pela qual viviam as raças honradas. Ficaram

apenas observando Dezco, fazendo caretas de desdém. O Shao-Tien líder sacudiu Chifre Rubro

no ar como se em sinal para o tauren se aproximar.

Ele aceitou o desafio.

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— Dezco! — gritou Mokimo, ainda na entrada da passagem, mas o tauren o ignorou. Os

únicos sons que ouvia eram os gritos de Chifre Rubro e de Casco das Nuvens, e a voz longínqua

da esposa, implorando:

Meu amor… o que quer que aconteça… você deve proteger… nosso filho…

Os mogus de armadura e o quílen saltaram. Dezco bateu com a maça no sabujo,

estilhaçando sua cabeça. Uma onda de luz explodiu do golpe, indo em direção a um dos Shao-

Tien. O mogu pulou para o lado, mas não foi rápido o suficiente. Metade de seu corpo, atingido

pela luz de An'she, se esfacelou.

Mais à frente, o líder dos mogus cambaleou para trás, protegendo os olhos da luz. Ele

sacudiu a cabeça e atirou a tocha ao chão. O brutamontes puxou uma lâmina curta do kilt.

Longas gavinhas de energia negra e rubra coleavam da arma, deslizando no aço.

Dezco observou com horror o Shao-Tien erguer o braço armado, preparando-se para

atacar Chifre Rubro.

A luz da tocha esmaeceu e a escuridão envolveu a passagem. Uma sombra moveu-se no

alto: Mokimo, saltando no ar. O último mogu de armadura pulou na frente de Dezco, bloqueando

sua visão. O Shao-Tien girou a lança nas mãos e a arremessou contra o tauren. Ele se esquivou

da lâmina pesada, mas o cabo de madeira da arma quebrou contra seu pulso, derrubando a

maça. O mogu adiantou-se e atingiu Dezco, na tentativa de derrubá-lo. O tauren aguentou o

impacto e bateu com a cabeça no rosto do brutamontes. O Shao-Tien cambaleou para o lado,

atordoado.

Dezco caiu de joelhos, cegado pelo sangue que escorria da testa para os olhos.

Ele procurou uma arma freneticamente. Qualquer coisa. Sua mão livre encontrou o

quílen morto.

Dezco agarrou a perna traseira da fera e se ergueu, jogando o peso para frente e girando.

Cada músculo em seu corpo tornou-se duro feito aço. A passagem nas montanhas quedou-se em

silêncio. Todo o choro cessou.

— Chifre Rubro! — rugiu ele, ao bater com uma só mão a perna do quílen no peito do

mogu de armadura. Houve um estalo alto. O brutamontes foi arremessado para trás e caiu

imóvel no chão.

Sombras bruxuleavam adiante. Dezco cambaleou na direção delas. Ele sentia a cesta de

Casco das Nuvens balançando sob o braço esquerdo, a salvo. O tauren limpou o sangue dos

olhos até sua visão voltar. Mokimo estava ajoelhado. O líder dos mogus jazia perto dali, com a

própria lâmina enfiada na cabeça de pedra.

— Onde ele está? — disse Dezco.

— Aqui. — A voz de Mokimo era áspera e úmida. Sangue fluía de uma ferida profunda

em seu pescoço. Ele estendeu os braços, segurando Chifre Rubro. Os olhos do filhote estavam

fechados. Estava coberto de sangue, e um pouco era dele próprio.

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Antes de estender as mãos para pegá-lo, Dezco pediu a An'she que curasse as feridas do

filho. Luz amarela envolveu a criança, mas, quando esmaeceu, ela não abriu os olhos.

— Não… — Dezco rilhou os dentes de raiva. Ele estava impotente. Inútil. Como quando

Leza morrera. Ele tentara tanto salvá-la, mantê-la em sua vida. Não conseguira. Nada funcionara.

— A lâmina do mogu foi mais rápida — disse Mokimo, com a voz rouca. — A arma

estava envenenada. É forte demais para você curar as feridas deles… ou as minhas. Mas ainda

resta esperança. — Mokimo pegou debilmente a mão de Dezco e a levou até o peito de Chifre

Rubro. Havia um batimento. Suave e baixinho, mas estava lá. — O filhote ainda vive.

— Eu não posso ajudá-lo… — Dezco bateu com o punho no chão, frustrado.

— Há outra saída. — Mokimo levantou-se lentamente. Ele balançou de lado um instante

e quase caiu. — As fontes sagradas. Enquanto ainda houver vida no filhote, as águas do vale

podem…

Ele parou de falar e seus olhos se arregalaram. — Casco das Nuvens — disse o hozen.

Dezco olhou para onde seu filho estava, seguro sob seus braços.

— Ele está…? — Lágrimas surgiram no canto dos olhos de Mokimo. — Não.

A cesta dependurada estava em frangalhos. Casco das Nuvens jazia preso ao braço de

Dezco; seu corpo estava mutilado, esmagado. O tauren caiu de joelhos e soltou a cesta, fazendo o

filho cair em seu colo. Ele ficou imóvel, aninhando o filho, e o entendimento o trespassou como

uma lâmina no coração.

Toda a sua atenção estivera em Chifre Rubro. Ele nem notou quando Casco das Nuvens

morreu.

***

— Por aqui! — gritou Mokimo. De alguma forma, o hozen encontrara forças para se

mover, apesar dos ferimentos. Ele agitava a tocha mogu no ar, chamando Dezco. O tauren o

seguia, segurando cuidadosamente Chifre Rubro em um braço e o corpo de Casco das Nuvens

em outro.

Atrás do hozen, uma grande fonte brilhava suavemente na noite. Arcadas intricadas de

madeira cercavam-na, subindo de pedras chatas ao redor das águas sagradas. Era a fonte mais

ao sul do vale, não muito distante de onde ocorrera o ataque.

Dezco se esforçava para acompanhar Mokimo. Pela centésima vez, sua mente repassava

a batalha. Ele se lembrou da sequência de eventos, numa tentativa de localizar o ponto exato em

que morrera Casco das Nuvens. Quando? Quando o mogu o atingira, quase derrubando-o? Ou

ele mesmo teria provocado aquilo?

Teria ele esmagado o próprio filho?

O tauren tombou, sentindo o estômago revirar. — Por An'she, fui eu — disse. — Eu sei.

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— Levante-se! — Mokimo bateu na cabeça de Dezco com a ponta da tocha. O golpe

arrancou o tauren do transe. Ele olhou ao redor até que seus olhos pararam no hozen

ensanguentado.

— Ele se foi. Como, você jamais saberá — disse Mokimo. — O que importa agora é Chifre

Rubro.

Dezco ergueu-se lentamente e seguiu Mokimo até a margem da fonte.

— Os mogus já usaram essas fontes para o mal, mas elas podem ser usadas para o bem

também — disse o hozen. — Cada fonte dessas representa uma emoção. Coragem… paz… —

Mokimo entrou na fonte, fazendo uma careta. O sangue da sua ferida se espalhou pela água. —

Esta é a fonte da esperança.

— O que… o que eu faço? — perguntou o tauren. Alguns peixes, iluminados pelas

energias da fonte, fugiram enquanto ele avançava.

— Dê-me Chifre Rubro.

Dezco entregou o filho sem hesitar. Não havia mais nada que ele pudesse fazer. Nada.

Tudo o que o tauren podia fazer era observar enquanto Mokimo cuidadosamente —

amorosamente — baixava Chifre Rubro até a água, até o nível do pescoço.

Ele ficou tocado com a cena: pelo modo como Mokimo segurava o filho como se fosse

dele, pelo quanto o hozen tinha arriscado para dar uma chance de vida a Chifre Rubro, ainda que

tênue. Em retrospecto, era claro o que havia acontecido na batalha. Mokimo interpusera-se

entre a lâmina do mogu e a criança. Embora a arma tivesse atingido Chifre Rubro ainda assim,

Dezco sabia que seu filho estaria morto se não fosse pelo hozen.

— Venha. — Mokimo fazia esforço para mexer a mão. Ele estava quase apagando. —

Deixe… Casco das Nuvens na margem.

Hesitante, Dezco colocou o corpo de Casco das Nuvens perto da fonte e entrou na água.

— Pegue… mancheia de água… — disse Mokimo. — Derrame sobre… Chifre Rubro.

Dezco obedeceu com o coração acelerado. Ele deixou a água escorrer pela cabeça do

filho. Mokimo fez o mesmo. Gotas brilhantes desciam pelo focinho de Chifre Rubro. Aquilo não

pareceu afetar a criança.

— Não está acontecendo nada. — Dezco pegou mais água, mas Mokimo agarrou sua

mão.

— Deixe… o vale… trabalhar — disse o hozen, com a respiração entrecortada. — Você

não pode controlar isso. Só pode ter… esperança. Acredite como Leza acreditou… Ao enfrentar a

morte… ela se desesperou?

— Não. — Dezco fechou bem os olhos. Ela sempre acreditara. Sempre fora forte. Leza

merecia estar ali. Não ele. Se ela estivesse viva, nada disso teria…

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Uma onda de calor inundou Dezco e ele abriu os olhos. Uma imagem translúcida de Chi-

Ji caminhava sobre a água como se fosse chão sólido. Luz dourada se irradiava dos pontos em

que suas patas tocavam a fonte. A cada passo, um tilintar se fazia ouvir.

O celestial abriu as asas e a súbita rajada de ar soprou água sobre o tauren e o hozen.

Mokimo se endireitou e tocou o pescoço. A ferida tinha sarado.

Chi-Ji inclinou-se para diante, perfurando a água com o bico e tocando o peito de Chifre

Rubro. Dezco observou e esperou. O momento parecia durar para sempre. E justo quando ele

começara a temer pelo pior, a criança se mexeu. Dezco olhou para ele, descrente. Os olhos de

Chifre Rubro se abriram e vagaram de um lado a outro até que ele viu o pai. Então estendeu os

braços na direção de Dezco, chorando.

— Obrigado! — Dezco abraçou forte o filho. E então se lembrou de Casco das Nuvens.

Voltando-se na direção da margem da fonte, onde depositara o corpo do filho, disse: — Meu

outro filho. Garça Vermelha, ainda há algum jeito de…

Mas, voltando-se para Chi-Ji, ele se calou. A Garça Vermelha se fora.

***

— Quílens mortos. Refugiados com Weng. — Rook bateu a pata gigante contra o peito.

Ele chegara às fontes logo após Chi-Ji aparecer. Quando o pandaren monstruoso soube do que

acontecera a Casco das Nuvens, ele tinha se sentado e soluçado por um bom tempo antes de se

recuperar. Dezco jamais esperara que aquela morte tivesse algum impacto em Rook. Ele mal

conhecera as crianças.

Mas teve. O Lótus se importava muito com elas. Dezco gostaria de entender por quê.

Tudo o que ele sabia é que a preocupação da ordem era genuína. De alguma forma, os

pequeninos eram como membros da família para eles.

— Ótimo! — Mokimo disse a Rook, e então se voltou para Dezco. — É melhor voltarmos

ao santuário agora. Eu sei que você quer partir, mas precisamos nos preparar. Custe o que

custar, eu vou encontrar uma passagem para você e Chifre Rubro.

Lar. Dezco pensou no pequeno lar de sua tribo nas planícies ensolaradas de Mulgore.

Quando ele e Leza partiram, tinham se perguntado se algum dia as veriam novamente. Ele

acreditara que sim, mas a esposa, não. Ela sempre falara da terra que aparecia em suas visões

como se fosse seu lar. Um lar ao qual sempre tivessem pertencido, mas que ainda não

conheciam. Ele finalmente entendeu o que ela queria dizer. Dezco vira o poder do vale, seu

potencial, não só para ele, mas para as vidas de tantas pessoas pelo mundo.

— Eu não vou embora — disse Dezco.

— Sério? — respondeu Mokimo.

— Tem outra coisa — acrescentou Dezco. Ele olhou para Chifre Rubro em seus braços.

— Vocês ainda… — começou, mas era difícil demais. Ele entregou a criança a Mokimo.

— Não é necessário. — Mokimo sacudiu a cabeça. — Se você acha que Chi-Ji quer algo

em troca do que fez, você está enganado. A dádiva foi dada de graça.

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— Leve-o — pediu Dezco. — Foi para isso que viemos. Foi para isso. — Por An'she, ele

pensou, tolice minha não ter percebido antes. Eles tinham vindo de tão longe para encontrar o

vale, para vê-lo com os próprios olhos, para morar nele. Mas ser uma parte dele… tornar-se um

com ele. Aquilo era muito mais.

— Se isso é o que você quer — disse Mokimo —, o que você quer de verdade, então é

claro que aceitamos.

— Sim, é — respondeu Dezco. — Há algo que precisamos fazer? Quer dizer, para tornar

oficial.

— Nós… — Mokimo baixou a cabeça. — Sim, há alguns rituais. Eu levarei a criança até

Zhi, e ele a apresentará a Chi-Ji para a unção. Infelizmente, apenas o Lótus Dourado pode estar

presente quando isso acontecer. Sinto muito.

— Eu entendo. — A voz de Dezco ficou presa na garganta. — Vá, então.

— Não precisa ser agora — disse o hozen. — Podemos voltar ao santuário primeiro.

— Vá. Antes que eu mude de ideia.

— Quando os rituais terminarem, você poderá vê-lo — disse Mokimo, ao receber Chifre

Rubro nos braços. — Ele estará ocupado pelos próximos anos em treinamento, mas ficará aqui

no vale.

— Membro do Lótus Dourado.

— E seu filho — disse o hozen. — Sempre seu filho, mas agora, algo maior também.

Mokimo olhou para a cesta dependurada no peito de Dezco, onde estava Casco das

Nuvens. O tauren consertara os restos da cesta, amarrando-a no pescoço. — E ele? — indagou o

hozen.

— Eu vou construir uma pira e acendê-la ao amanhecer para que An'she possa ver o

passamento do meu filho — respondeu Dezco. — Eu… preferia fazer isso sozinho.

Mokimo aquiesceu lentamente. Sem outra palavra, ele fez um gesto na direção de Rook.

Quando estavam prestes a partir, Dezco os chamou, lembrando-se de algo.

— Esperem. — O tauren pegou o cacho de cabelo de Leza e o destrançou de sua juba. Ele

entrelaçou o cacho nos cabelos de Chifre Rubro e então, inclinando-se, tocou a testa da criança

com o focinho.

Depois disso, Rook e Mokimo partiram. Dezco passou a hora seguinte juntando lenha

para a pira, pensando no dias por vir. Ele retomaria seus deveres no santuário, mas não estava

ansioso por contar a Nala e aos outros o que acontecera. O que ele ia dizer? Será que o

perdoariam pela perda de Casco das Nuvens? Será que ele se perdoaria? Talvez não. Mas ele

merecia aquilo. Tudo fora sua escolha: uma escolha terrível e errada.

Dezco sentou-se para descansar antes de iniciar o funeral. Ainda estava escuro lá fora,

mas a aurora chegaria logo. Ele podia sentir. O quando já não o preocupava.

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— Estamos em casa — disse Dezco. Segurou Casco das Nuvens no colo e acariciou a

cabeleira da criança. Ele se voltou para encarar o leste, sabendo que era apenas questão de

tempo até que as yeena'e aparecessem.