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Eustáquio Blesa Serrano fonte: www.robertolettiere.com.br Escritor Roberto Lettière 1 BLESA SERRANO EUSTÁQUIO BLESA SERRANO Não se pode falar de personalidades de Belo Campo, sem mencionar, com ênfase, a extraordinária figura que foi o professor público Eustáquio Blesa Serrano, infelizmente, quase que totalmente esquecido da população de Belo Campo, com exceção, talvez, de pouquíssimos dos antigos moradores da cidade. Eustáquio Blesa Serrano nasceu na Espanha, na província de Albacete, no ano de 1868 e chegou ao Brasil ainda jovem, tendo-se naturalizado brasileiro. Era Filho de Aureliano Blesa e Anna Serrano. Apesar de serem poucas as informações sobre sua pessoa, a pesquisa feita apenas nos permite traçar modesta biografia que não faz jus a um sábio de sua envergadura, contudo, vale a intenção em apresentá-lo a esta geração, que pode orgulhar-se em saber que um sábio aqui viveu, formou família e deu sua contribuição cultural e científica para o engrandecimento deste Município, quando era ainda o Districto de Bello Campo. São poucos os documentos existentes sobre o professor Eustáquio, presume-se que ele chegou à Belo Campo, entre os anos de 1913 e 1914, não se sabendo de onde veio, como não se sabe quando e onde aportou em terras brasileiras. Sabe-se, contudo, que Eustáquio foi contemporâneo de Fabrício César Freire, o professor que o Coronel Napoleão Ferraz de Araújo contratou em Salvador, através de seu irmão o Tenente Coronel Cícero Ferraz de Oliveira, para lecionar em Belo Campo. Eustáquio casou-se entre os anos de 1905 e 1906, com Maria da Glória Alves Blesa, com a qual teve sete filhos: Anna, Francisca, Maria, José, Helena, Oscar e Valdomiro. Sua mulher, Maria da Glória morreu em 3 de janeiro de 1922, com 35 anos de idade, ao dar a luz, a um filho que também não sobreviveu, sendo que ambos foram enterrados antigo cemitério do Distrito de Belo Campo. Quando o professor Fabrício César Freire foi para Vitória da Conquista, convidou o professor Eustáquio para lecionar no Colégio Pestalozzi, que tinha fundado em 1916. Isso vem demonstrar que os

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Eustáquio Blesa Serrano

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Escritor Roberto Lettière

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BLESA SERRANO

EUSTÁQUIO BLESA SERRANO

Não se pode falar de personalidades de Belo Campo, sem mencionar, com ênfase, a extraordinária

figura que foi o professor público Eustáquio Blesa Serrano, infelizmente, quase que totalmente esquecido da

população de Belo Campo, com exceção, talvez, de pouquíssimos dos antigos moradores da cidade.

Eustáquio Blesa Serrano nasceu na Espanha, na província de Albacete, no ano de 1868 e chegou ao

Brasil ainda jovem, tendo-se naturalizado brasileiro. Era Filho de Aureliano Blesa e Anna Serrano. Apesar de

serem poucas as informações sobre sua pessoa, a pesquisa feita apenas nos permite traçar modesta

biografia que não faz jus a um sábio de sua envergadura, contudo, vale a intenção em apresentá-lo a esta

geração, que pode orgulhar-se em saber que um sábio aqui viveu, formou família e deu sua contribuição

cultural e científica para o engrandecimento deste Município, quando era ainda o Districto de Bello Campo.

São poucos os documentos existentes sobre o professor Eustáquio, presume-se que ele chegou à Belo

Campo, entre os anos de 1913 e 1914, não se sabendo de onde veio, como não se sabe quando e onde

aportou em terras brasileiras. Sabe-se, contudo, que Eustáquio foi contemporâneo de Fabrício César Freire,

o professor que o Coronel Napoleão Ferraz de Araújo contratou em Salvador, através de seu irmão o

Tenente Coronel Cícero Ferraz de Oliveira, para lecionar em Belo Campo.

Eustáquio casou-se entre os anos de 1905 e 1906, com Maria da Glória Alves Blesa, com a qual teve

sete filhos: Anna, Francisca, Maria, José, Helena, Oscar e Valdomiro. Sua mulher, Maria da Glória morreu em

3 de janeiro de 1922, com 35 anos de idade, ao dar a luz, a um filho que também não sobreviveu, sendo que

ambos foram enterrados antigo cemitério do Distrito de Belo Campo.

Quando o professor Fabrício César Freire foi para Vitória da Conquista, convidou o professor

Eustáquio para lecionar no Colégio Pestalozzi, que tinha fundado em 1916. Isso vem demonstrar que os

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professores Eustáquio e Fabrício eram conhecidos e que este último, sabia da capacidade intelectual e

científica de Eustáquio.

Eustáquio, senhor de invulgar cultura, dedicou-se aos estudos durante toda sua vida. Estudava todas

as ciências e lia tudo o quanto caia em suas mãos. Lia e estudava até altas horas da noite, à luz de vela de

sebo, em contínua pesquisa de fatos, datas e nomes de lugares. A História e a Arqueologia eram suas

ciências preferidas e as conhecia com profundidade, mantendo correspondência e trocando informações

com outros sábios, inclusive com o famoso Padre Camilo Torrend.

Feliz ou infelizmente, Eustáquio era um nômade! Mudava-se frequentemente de cidade, sempre

acompanhado de sua família [filhos]. Ensinou em Belo Campo por muitos anos; em Vitória da Conquista

ensinou no Colégio Pestalozzi e foi sócio fundador do Grêmio Ruy Barbosa, fundado em 1918, juntamente

com os conhecidíssimos Dr. Crescêncio Antunes da Silveira, Professor José Lopes Viana, Alziro Prates,

Newton Álvares de Lima, Fabrício César Freire e demais intelectuais da época; ensinou em Tremedal,

Ribeirão do Largo, Macarani e em Encruzilhada, onde exerceu o cargo de Agente de Estatística.

Entre os anos de 1920 e 1927, encontrava-se novamente em Belo Campo, onde atuou como professor

e serviu de testemunha em vários registros nos Livros de nascimento e casamentos e óbitos no Cartório Civil

do então Distrito de Belo Campo, em 1925 foi Escrivão de Paz desse mesmo Cartório conforme os termos

lavrados por ele e que constam nos mencionados livros.

Estando com idade avançada e doente, o velho professor Eustáquio afastou-se de todas as suas

funções e, residindo em Macarani, se recolheu ao Povoado de Itabaí [onde ainda residem seus

descendentes], indo morar em pequena casa e passando por toda sorte de dificuldades, o que levou o

Prefeito de Macarani a conceder-lhe – até sua morte – uma modesta pensão para poder sobreviver. Antes,

porém, o velho professor Blesa, conforme notícia do jornal 'O Combate' de 27.09.1949, Blesa estava

escrevendo a 'História Descritiva de Macarani'

Apesar de passar por necessidades atrozes, o velho professor continuava a ler e estudar através dos

livros, revistas e jornais que os velhos amigos lhe enviavam de outras cidades.

Se Eustáquio não fosse possuidor de um caráter e personalidade extremamente humilde e de ser

totalmente desprendido dos bens materiais, poderia ele, por seus atos, por suas palavras, pelos seus

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profundos conhecimentos, participar dos grandes centros culturais, aonde, sem dúvidas, seria admirado,

conhecido, cortejado e até mesmo bem pago pelos seus serviços intelectuais de poeta, de escritor, de

jornalista e de cientista. Infelizmente, pela vida nômade que levava, todos seus escritos foram se perdendo e

hoje nada mais restam deles, o que é uma grande perda para a história de nossa região.

O Professor Eustáquio Blesa Serrano, que tinha sido, antes do ano de 1918, agraciado com a Patente

de Tenente da Guarda Nacional, faleceu com a idade avançada de 95 anos, no mês de 04 de agosto de 1963,

no Povoado de Itabaí, Município de Macarani, Bahia.

HOMENAGENS

Em homenagem ao grande professor Blesa Serrano destaca-se três artigos jornalísticos feitos em

datas diferentes, mas que se entrelaçam, apresentando as diversas fases da vida desse grande personagem.

O primeiro de Maurício Raynal, escrito em setembro de 1935, relatando o encontro que teve com

Blesa Serrano em Encruzilhada. O segundo foi escrito pelo jornalista Aníbal Lopes Viana e que consta na sua

'Revista Histórica de Conquista' e o terceiro de Camilo de Jesus Lima, os quais se transcrevem:

A] Jornal 'O Combate', de Vitória da Conquista, Bahia, de 29 de setembro de 1935.

O Velho Blesa

Que sei eu de Eustáquio Blesa Serrano?

Chegado aqui soube, nos primeiros meses, da existência excêntrica, nestas matas, de pessoas que a

sociedade já incensou com seus louvores. E nesse número estava o velho Blesa.

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Teria mesmo este venerável espírito sentido o fumo leve do louvor e sofrido desilusões no burburinho

das sociedades metropolitanas? Espanha, Chile, Brasil, e no Brasil, este longínquo Município, hoje

Encruzilhada, e neste Município, São Mateus, uma Fazenda. Que teria sucedido, ou que jogo de azar o

destino, atirou para aqui esse espírito culto e superior a findar seus dias vegetativos clamando, num último

esforço de sobrepor o espírito à Matéria, que na natureza derredor o avassala, domina, esmaga:

'Eu quero, almejo, sinto, meu coração palpita,

Sou gladiador cansado, porém, vencido, não'.

Quem ouve este grito sente um espírito novo e forte; quem vê a pessoa sofre o frio da velhice.

Fevereiro do corrente ano levou-me a uma Fazenda, e lá conheci o velho Blesa que fora assistir as

núpcias de um dos seus iniciados no segredo dos livros. Médico, viajado. Vinte anos de vida fizeram um

homem, e vinte anos de vida escoaram do velho Blesa. Esquálido; bigode e barba sóbria, uma expressão

suave da fisionomia, de pequena estatura. Fisicamente um corpo desvalido, sem nenhum sinal de poder

suportar ainda este espírito vigoroso que vive em 'ignorada cripta'.

Entrou por esta zona, animoso e forte. Aqui, onde em tudo lhe gritava a natureza, respondeu-lhe

constituindo família; e a família aqui o acorrentou.

Proveu-a com o magistério.

E é este o isolador que impediu a vida animal, lhe sugar até matar, a vida intelectual, como pouco a

pouco o parasita mata a árvore frondosa.

Sente-se a luta, neste homem, entre o espírito e o corpo: a solidão, a pobreza, a vida exclusivamente

animal dos que o rodeiam, as desilusões e de longe em longe um leve contato com a crosta daquele mundo

de vida mental, quase irreal, a centenas e milhares de quilômetros, nas revistas, jornais e espaçadas cartas.

A cultura e a erudição seguras, verdadeiramente notáveis, reacendiam-se no calor que lhes trazia o

magistério na recordação da vida passada.

Correram os anos e o espírito sobreviveu ao aniquilamento orgânico. E tão impiedosamente se impôs

que naquele corpo, hoje, sente-se apenas o espírito.

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Sua alegria é puramente intelectual. Quase impossibilitado de se transportar, seu maior júbilo é

receber um jornal, uma carta. Procura, pede que lhe sejam intermediários entre este retiro que lhe dão

almas piedosas, e qualquer bolha da efervescência intelectual da periferia.

E, em São Mateus vive uma inteligência seus últimos dias enquanto o corpo é amparado pela

caridade, e gritam nestas duas poesias toda a sua vida, e o seu último desejo.

Íntimas

Anacoreta, monge, asceta, cenobita, Alheio ao pulular de atra multidão, No báratro loquaz de acerva confusão Eu só vivo cismando, em ignorada cripta. E quero, almejo, sinto; meu coração palpita; Sou gladiador cansado, porém, vencido, não! Aspiro a ser feliz, mas que desejo vão. Se encontro só os frutos de seara maldita! E, embora eu nunca tenha nem nome nem história, Continuarei na senda do mais puro ideal, Mito falaz talvez, miragem ilusória, Sem elmo nem couraça, no meio do areal, Para alcançar um dia a verdadeira glória, O prêmio ao justo, ao bom; a glória perenal.

***

Minha mãe quando eu esteja Ante Deus, no Tribunal Reto e justo; faz que seja Indulgente, benfazeja, A minha sentença final.

B] Revista Histórica de Conquista, Volume 2, página 453. [texto original, sem correção gramatical]

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Professor Eustáquio Blesa Serrano

'Não poderia ser deixado sem registro nesta 'Revista Histórica' o nome do insigne Professor Eustáquio

Blesa Serrano.

Foi mestre de centenas de conquistenses inclusive, do autor deste livro.

Depois do fechamento do 'Colégio Pestalozzi' do qual foi um dos membros do seu corpo docente, o

Professor Blesa, ausentou-se desta Cidade, continuando as suas andanças foi parar no arraial de Itabaí, do

Município de Macarani'.

Por ocasião de seu falecimento 'O Jornal de Conquista' divulgando o acontecimento publicou em

editorial, na edição de 14 de setembro de 1963 este necrológio:

'No Povoado de Itabaí, Município de Macarani, onde vivia há alguns anos faleceu em dia do corrente

mês o Prof. Eustáquio Blesa Serrano.

Com a idade avançada de 95 anos o velho Blesa – como era geralmente conhecido – foi um incansável

estudioso, até poucos dias antes de seu falecimento. Os amigos lhe enviavam jornais, revistas e livros que

eram por ele, lidos, assimilados e anotados na Tebaida onde ocultava a grande inteligência e a cultura que

possuía.

Nascido na Espanha justamente na Mancha, por várias vezes ele relembrava aos íntimos algumas

passagens de sua vida, considerando-se um autêntico D. Quixote, o manchego ensandecido pela obstinação

de uma ideia.

Chegado ao Brasil ainda jovem e naturalizado brasileiro o Prof. Blesa deu à Terra que o acolheu os

frutos do seu saber, espalhando o Alfabeto por vários recantos, durante toda uma vida de amarguras,

decepções e dificuldades.

Sábio – podemos aclama-lo com justiça – no tugúrio onde vivia, após uma existência nômade, passada

em vilarejos e cidades do interior, sempre seguido pela família numerosa, era vê-lo até altas horas da noite

debruçado sobre os alfarrábios, à luz de uma vela de sebo, escarafunchando datas, pesquisando fatos,

anotando feitos, num trabalho silencioso, sem ambição de publicidade.

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A História e a Arqueologia eram ciências de sua predileção. Seus trabalhos de Arqueologia, hoje

dispersos e inéditos foram apreciados, com calorosos elogios, por outro sábio de seu quilate o Padre Camilo

Torrend, com quem correspondeu até que a morte os levasse para as paragens ignotas.

O sábio Eustáquio Blesa Serrano foi professor nesta nossa Cidade, no Colégio Pestalozzi, a melhor

escola particular do passado conquistense; ensinou em Belo Campo, Tremedal dos Ferraz, Encruzilhada,

Ribeirão do Largo e Macarani e em outros lugares para onde o destino o conduzia. Exerceu o cargo de

Agente de Estatística do Município de Encruzilhada, dali se transferiu para Macarani quando se deu a

mudança de sede daquela para essa Cidade.

Já avançado em anos e doente afastou-se das funções e recolheu-se ao Povoado de Itabaí onde

moram alguns de seus filhos.

A Prefeitura de Macarani concedeu-lhe até a sua morte, uma modesta pensão. Dela e do auxílio de

seus filhos valia-se o grande homem a que uma modéstia exagerada que chegava à humildade não permitiu

fosse conhecido e admirado nos grandes centros culturais. Sabe-se que o Prof. Blesa escreveu a História de

Vitória da Conquista, porém não se sabe o porquê do desaparecimento dos folhetos escritos.

Grande número de médicos, advogados, engenheiros desta região foram alunos do velho manchego

de saudosa memória.

O Acervo literário – porque Blesa foi poeta, escritor e jornalista – e os profundos trabalhos de

pesquisa histórica e científica deixados por ele ainda permanecem na casinha onde viveu, [com exceção da

nossa História] por último e cerrou os olhos para a vida'.

C] Jornal 'O Combate', de Vitória da Conquista, Bahia, de 30 de novembro de 1948. Camilo de Jesus Lima.

[texto original, sem correção gramatical]

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PROFESSOR BLESA

Era uma vez, há muitos anos, em um colégio qualquer de uma cidade, em Espanha. Fazia-se em aula o

exercício de tradução. O aluno Eustáquio Blesa Serrano traduzia seu trecho, sem perder uma vírgula. Era de

admirar aquilo, quando outros o faziam comendo palavras, gaguejando, deturpando o pensamento do

autor. Irado, o lente deu com a régua na mesa. Tinha a certeza de que o aluno traduzira assim, tão bem,

porque 'pescara'. Era um trecho difícil, e que não era possível que Blesa o soubesse tão a contento. Baldadas

foram as explicações do aluno, humilhado ante as invectivas do lente que não aceitava justificativas. Foi

assim que o aluno Eustáquio Blesa, por ter perdido a noite toda, estudando e aprendendo, viu-se posto fora

da aula, sob o olhar zombeteiro da classe e sob o olhar chispante de ira do mestre.

Desse incidente nasceu o seu navegar infatigável contra a corrente, nos mares da vida. Quantas vezes

a viagem da vida é desviada do seu curso por um passo, por um gesto somente!

Aquela injustiça se gravou para sempre na consciência do adolescente, fez nascer um tímido, um

céptico, um descrente dos homens e da Justiça. Por causa dela o Brasil ganhou mais um imigrante espanhol

que, desde então, nunca mais conseguiu por os olhos nos sangrentos crepúsculos da velha Espanha lendária

e fanfarrona...

Enquanto outros, no Eldorado das patacas, ajuntavam dinheiro, vendendo cebolas, Eustáquio Blesa, -

perseguido eterno da tendência intelectual, - entregou-se, aqui, ao doloroso mister de ensinar crianças.

Encaneceu sem fortuna, ensinando o abecê a alunos, as mais das vezes ingratos e ríspidos, de aldeia em

aldeia. Por este interior esquecido da Bahia. No seu peregrinar de professor municipal, muitas vezes tremeu

de pavor, cercado da esposa e dos filhinhos, quando o cangaço enchia de tiros e sangue os povoados

perdidos, festejando um São João temporão de estampidos e morte. Pobre, como aqui chegou, chegou à

velhice. Nunca disse a ninguém naquele sotaque castelhano que os tantos anos de Brasil não conseguiram

consertar, das privações por que tem passado na luta desigual de todos os pobres sob cuja guarda andem

bocas de filhos exigindo pão.

A custa de estudo e esforço, conseguiu armazenar uma cultura considerável. Eu o reputo uma

autoridade, em conhecimentos históricos, em ciências naturais, muito especialmente no que tange à

geologia e arqueologia. Pesquisador por temperamento é de ver-se a volúpia com que fala das suas

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descobertas; das inscrições misteriosas que andam por ai, perdidas neste Brasil misterioso e grande. Sua

velhice deveria estar sendo divida no recinto dos museus, entre alfarrábios amarelos e o escarafunchar de

antiguidades; entre coleções de fósseis e a catalogação de restos de civilização que já se foram. Jamais ouvi

de alguém melhores dissertações, a cerca da vida e do movimento dos astros, ou da viagem maravilhosa da

civilização pela terra, através de milênios.

Ultimamente, os filhos e filhas, honestos e simples lavradores, conseguiram leva-lo para o campo. Em

uma rocinha, a duas ou três léguas de Macarani vive, hoje, cercado dos netos, gatos e galinhas, o velho

professor Eustáquio Blesa Serrano, que a injustiça de um mestre bilioso e hemorroidário arremessou aos

mares incertos do mundo, arrancando-o, para nunca mais, das velhas e doces terras da Espanha.

De lá, de seu exílio, em troca dos livros e jornais que lhe envio, quando posso, me manda sempre as

suas lucubrações literárias e científicas. As científicas, demonstrativas de um espírito pesquisador minucioso

e paciente. As literárias vazadas de um lirismo suave e bucólico, - consequência da influência campestre e da

vida simples dos seus dias rurais, - todas elas, porém, repassadas de uma profunda dose de humor e

temperadas de um delicioso sal picaresco.

Prefaciando o 'Gil Blás de Santilhana', José Perez sugere a ideia de que a legião de pícaros, presente

em quase todas as novelas espanholas, é uma resultante das ambições burguesas, geradas pelos

descobrimentos marítimos, que, sem escrúpulos, contribuíram para desacreditar as virtudes cristãs

medievais 'Os que não pudessem enricar honestamente, que enriquecessem como pudessem’. E todos,

neste particular, eram uns bons pícaros', afirma José Perez, concluindo daí ter sido maior o picarismo em

Espanha do que em qualquer outra terra, de vez que a Espanha foi mais que outro qualquer, o país por

excelência dos descobrimentos. Certa ou não a conclusão de José Perez, o de que não há dúvida é ser a

picaresca, de fato, uma qualidade por excelência da terra e das gentes de Espanha.

As cartas e as lucubrações literárias do professor Blesa, versam elas sobre cousas ou sobre tipos,

sejam divagações idealistas ou observações realistas, sempre vem temperadas com uma dose de picaresco

cem por cento espanhol mais apurado e mais vivo se o autor fala de si mesmo, de algumas passagens da vida

aventurosa do transplantado de além-mar que aqui chegou, como uma semente viageira, ao sabor do vento.

Nada falta na literatura do professor Blesa daquilo que caracteriza o picaresco: há nela o cunho

autobiográfico, entremeado de situações tragicômicas, há o senso, o entoado de conformismo, que faz

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aceitar os revezes e os trambolhões com uma paciência que chega às vezes irritar. De tudo isto destila um

travor indisfarçável que trai a simulação do céptico - uma simulação propositada - que não pode escapar a

qualquer espírito mais arguto. Em tudo o que escreve há algo daquela alegria dolorida, presente na

tragicomédia do seu patrício Dom Quixote, é em quase todas as atitudes de Charlie Chaplin. E reparem que o

velho professor ‘é manchego da gema, como o cavaleiro de triste figura...'.

Vejamos o senso de humor com que ele fala do seu criatório de gatos: Desde que ninguém tem

criação neste Município, resolvi a criar gatos em grande escala. Já houve chefe político no sertão de Mato

Grosso, advogado notável, que criava cães de raça e obteve pingues resultados...

Não há como deixar de sentir fina ironia com que ele se fere a si mesmo, ante seu fracasso econômico

na vida...

'É uma ideia genial, como todas as minhas’.

Ainda uma autocrítica, velada e irônica:

'FUZARCA, faz poucos dias, trouxe para os filhos um coelho tão grande como ela; faz-nos lembrar

aquela história do Gato de Botas que tanto nos entretinha na infância...'.

A reminiscência tem um sabor lírico e de profunda saudade que emerge da ironia, como uma flor das

escuras de um poço fundo.

'Participo-lhes, para gáudio de todos os corações bem formados que, ontem,, às 11 horas e 14

minutos exatos, 'FUZARCA', a filha primogênita de MARCOLFA, minha gata velha, foi visitada pela cegonha. O

negócio correu sem maior novidade'.

João Paulo Richter dizia que o humor é a lágrima que ri. Alguém já tentou demonstrar ser ela uma

válvula para a compreensão do céptico, ao perceber a decadência de sua época. Não é por acaso que

existem nas produções literárias do professor Blesa – e todas as suas cartas, seus menores bilhetes, são

legítimas produções literárias – um autêntico tom picaresco espanhol que revela um dos aspectos do humor.

Percebe-se nelas o gesto de impotência do que não crê nas soluções para os problemas humanos e sociais.

Com tiradas de humor, a que o picaresco espanhol empresta tem sabor especial, ele procura adoçar seu

pessimismo de céptico. Vejamos, ao acaso:

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'Dai-me a ira de Anacreonte. Quero cingir de verde hera a minha fronte; Quero beber, quero cantar, Para esquecer, para zombar Deste mundo tão grande e mesquinho. Dai-me, dai-me bom vinho. Enchei-me o copo; Que seja de cerveja, ou de rum, ou do Porto mais fino, Ou de Xerez, ou do conhaque beneditino! Quem bebe vinho, garanto: nunca mente, E dirá o que sente. O vinho faz do homem mais mofino O homem mais corajoso e mais valente, Quem bebe vinho está sempre contente. Um rapazola qualquer, sem um vintém, Desposa velha viúva, Fria e rica: MUITO BEM! Isto é mesmo uma uva... Diz alguém. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

De Figueira num mar Aprenderei a nadar. O mundo há de se acabar Diz Fulano de Tal Por uma bebedeira universal.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

... Sua peroração É mesmo a fiel expressão Do seu exato pensamento? ... Não. Quem me a ditou foi o dinheiro De um velho meu amigo taverneiro...'.

Em toda a sua obra está presente a reação de quem não se quer deixar vencer pelo ostracismo, a

pobreza e o isolamento. Em um dos seus sonetos, o velho Blesa já se retratou, com sinceridade, como

sendo:

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'um lutador cansado, porém, vencido não...'.

Ao escrever estas palavras, sem outra pretensão que a de lembrar um autêntico valor – oculto do

mundo graças a uma timidez doentia, que beira o complexo de inferioridade – tenho a impressão de estar a

ver o professor Blesa: as barbas longas, cor-de-neve, [...] conhecidos e fontes sagradas, na companhia

inocente dos animais, das árvores e das águas. Tenho na mente a visão singela de um quadro virgiliano, ou

dos dias finais de Tolstoi, um exílio plácido de Isnaia Poliana...

Macarani, 10.11.[19]48