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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016) Biossociabilidade e esporte: o discurso fotográfico das corridas de obstáculos 1 Renato Pezzotti 2 Mestrando do PPGCOM ESPM/SP Resumo Este artigo tem como tema o discurso de biossociabilidade presente nas corridas de obstáculos. Nosso objetivo principal é analisar comparativamente, a partir dos processos de conotação descritos por Roland Barthes, fotografias capturadas por veículos de imprensa em etapas da Bravus Race, modalidade de corrida de obstáculos realizada no Brasil desde 2014, com imagens icônicas das Primeira e Segunda Guerra Mundial. Como se materializam os discursos biopolíticos nessas imagens é a questão abordada no artigo. Para tanto, partimos do conceito de culto ao corpo de Ana Lúcia Castro, da cultura somática, de Jurandir Costa e buscamos aporte teórico nas práticas de ascese corporal abordadas por Francisco Ortega. Palavras-chave: Biossociabilidade; Biopolítica; Culto ao Corpo; Esporte; Corridas de Obstáculos 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Discursos da Diferença e Biopolíticas do Consumo, do 6º Encontro de GTs de Pós-Graduação Comunicon, realizado nos dias 14 e 15 de outubro de 2016. 2 Mestrando em Comunicação e Práticas do Consumo do PPGCOM ESPM-SP, pós-graduado em Master in Business Communication pela Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas e bacharel em Comunicação Social e em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É membro do Grupo de Pesquisa “Comunicação, discursos e biopolíticas do consumo”, da ESPM. Contato: [email protected].

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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016)

Biossociabilidade e esporte: o discurso fotográfico das corridas de

obstáculos1

Renato Pezzotti 2

Mestrando do PPGCOM –ESPM/SP

Resumo

Este artigo tem como tema o discurso de biossociabilidade presente nas corridas de obstáculos.

Nosso objetivo principal é analisar comparativamente, a partir dos processos de conotação

descritos por Roland Barthes, fotografias capturadas por veículos de imprensa em etapas da

Bravus Race, modalidade de corrida de obstáculos realizada no Brasil desde 2014, com imagens

icônicas das Primeira e Segunda Guerra Mundial. Como se materializam os discursos

biopolíticos nessas imagens é a questão abordada no artigo. Para tanto, partimos do conceito

de culto ao corpo de Ana Lúcia Castro, da cultura somática, de Jurandir Costa e buscamos

aporte teórico nas práticas de ascese corporal abordadas por Francisco Ortega.

Palavras-chave: Biossociabilidade; Biopolítica; Culto ao Corpo; Esporte; Corridas de

Obstáculos

1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Discursos da Diferença e Biopolíticas do

Consumo, do 6º Encontro de GTs de Pós-Graduação – Comunicon, realizado nos dias 14 e 15 de outubro

de 2016. 2 Mestrando em Comunicação e Práticas do Consumo do PPGCOM ESPM-SP, pós-graduado em Master

in Business Communication pela Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas e

bacharel em Comunicação Social e em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É membro

do Grupo de Pesquisa “Comunicação, discursos e biopolíticas do consumo”, da ESPM. Contato:

[email protected].

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Introdução

“Nosso corpo é o exemplo mais destacado do ambíguo”

(William James)

O objetivo do presente artigo é analisar comparativamente as fotografias

capturadas por veículos de imprensa em etapas da Bravus Race, corridas de obstáculos

realizadas no Brasil desde 2014, com imagens icônicas das Primeira e Segunda Guerra

Mundial, a partir dos processos de conotação descritos por Roland Barthes, com o

propósito de entender como se materializam os discursos de biopolítica e de

biossociabilidade nessas imagens.

Para tanto, partimos do conceito de culto ao corpo de Ana Lúcia Castro, da

cultura somática, de Jurandir Costa e buscamos aporte teórico nas práticas de ascese

corporal abordadas por Francisco Ortega.

Sucesso nos Estados Unidos, as corridas de obstáculos inspiradas nos exercícios

de treinamentos do exército americano já fazem parte do calendário de eventos no

Brasil. As provas envolvem músculos do corpo todo, trabalhando diferentes funções de

movimento. E o crescimento recente é algo assustador. Nos Estados Unidos, as corridas

de obstáculos já superam as maratonas.

No Brasil, a prova de corrida de obstáculos mais famosa é a Bravus Race.

Atualmente, conta com dez etapas em nosso país, em cidades como São Paulo, Rio de

Janeiro, Belo Horizonte e Brasília. Para se ter ideia, uma etapa realizada no Jockey Club

de São Paulo, em abril de 2016, contou com mais de nove mil pessoas inscritas, que

passaram por 18 obstáculos. Para efeito de comparação, uma etapa do “Circuito das

Estações”, uma das provas de corrida de rua mais famosa do Brasil, costuma ter, em

São Paulo, cerca de 10 mil participantes.

A sociedade do corpo

"A luta pela boa forma é uma compulsão

que logo se transforma em vício"

(Zygmunt Bauman)

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A crescente preocupação com a forma física fez nossa sociedade ser identificada

como de “cultura somática” (FREIRE, 2004): uma cultura em que se enfatiza

sobremaneira o caráter performático do corpo.

Na biossociabilidade apresentada por Francisco Ortega, o corpo ocupa o lugar

da sexualidade como fonte potencial de ansiedade. São novas regras que norteiam os

critérios de mérito e reconhecimento, criados a partir de modelos ideais que surgem a

partir do desempenho físico (ORTEGA, 2003).

Na base desse processo está a compreensão do self como um projeto reflexivo.

O autogoverno e a formação de bioidentidades se dão através de toda uma série

de recursos reflexivos e de práticas de bioascese (manuais de autoajuda,

terapias, fitness). A reflexividade é o processo de taxação contínua de

informação e peritagem sobre nós mesmos. Não só o self, mas principalmente

o corpo, aparece marcado pela reflexividade. A dieta e o fitness seriam dois

exemplos básicos desse processo de reflexividade corporal. Os alimentos que

consumimos implicam uma seleção reflexiva, refletem um estilo de vida, um

“hábito” (no sentido bourdieuano de marca de distinção), um critério da

biossociabilidade. (ORTEGA, 2003, p. 64).

Para Ana Lúcia Castro (2003), o culto ao corpo é compreendido como uma

relação dos sujeitos com os seus corpos que tem, como preocupação básica, o seu

modelamento e envolve “não só a prática de atividade física, mas também dietas,

cirurgias plásticas, uso de produtos cosméticos e tudo o mais que responda à

preocupação em se ter um corpo bonito e/ou saudável” (CASTRO, 2003 p. 12).

Segundo dados do Global Report 2015, pesquisa realizada pelo IHRSA

(International Health, Racquet & Sportsclub Association), o Brasil é o segundo país

com maior número de academias por habitante no planeta. De acordo com o

levantamento, o país possuía, em 2014, cerca de 32 mil academias, com quase oito

milhões de alunos3.

O indivíduo somático trocou a relação com o outro pelo corpo – que se tornou

parceiro privilegiado, o lugar do discurso social (ORTEGA, 2003). “Encontramos em

3 HAYDÉE, Lygia. “Brasil é o segundo em número de academias”. Portal Ativo.com. Disponível em

<http://www.ativo.com/fitness/brasil-e-o-segundo-em-numero-de-academias>. Acesso em 07/05/2016.

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nós mesmos o parceiro complacente e cúmplice que falta perto de nós” (LE BRETON,

1999 apud ORTEGA, 2003).

Se as práticas ascéticas da Antiguidade visavam a liberdade da vontade, nas

modernas bioasceses, a vontade não está a serviço da liberdade; é uma vontade

ressentida, serva da ciência, da causalidade, da previsão e da necessidade, que

constringe a liberdade de criação e anula a espontaneidade. Ela está submetida

à lógica da fabricação, do homo faber, matriz das bioidentidades. (ORTEGA,

2003, p. 72).

Ainda segundo Ortega (2003), os critérios fisicistas definem a vontade na

bioascese, referindo-se, sempre, à superação dos limites físicos: “perdemos o mundo e

ganhamos o corpo” (ORTEGA, 2003). Jurandir Freire Costa reforça que se torna mais

fácil a definição de “cultura somática” para o atual momento sociocultural, no qual a

realidade corporal, este culto à superação de desafios, é tomada como paradigma de

garantia de bem-estar e de admiração moral (CAMPOS, 2006).

Bêbedos, glutões, fumantes e sedentários – agora chamados irrisoriamente de

‘batatas de sofá’ (couch potatoes) na nova gíria pejorativa da ideologia da

saúde – são vistos como uma classe inferior de pessoas, com certeza inaptos,

independentes, ineficientes e possivelmente sujos de mente e espírito assim

como de corpo. O sentimento de desconforto que o indivíduo saudável sente

em presença do indivíduo doentio parece assustadoramente semelhante à

experiência inquieta do passado do bom povo branco quando estava na

companhia de negros. (EDGLEY & BRISSET, 1990, p. 263; apud

CRAWFORD, 1994, p. 1363, in ORTEGA, 2003, p. 73).

Assim, diversas práticas contemporâneas de esportes, criadas na segunda

década do século XXI, são resignificadas em direção destas novas práticas de saúde. A

chegada recente de modalidades como a corrida de obstáculos – com etapas da Bravus

Race em diversas capitais do país, é um exemplo claro de uma dessas novas práticas de

biossociabilidade.

Os bravus em disparada

“Essa prova requer muito rigor físico. Foi tudo perfeito.

Vale muito a pena ser Bravus!” (José Lopes4)

4 BORGLIATO, Camila. “Rio recebe etapa Speed da Bravus Race”. Disponível em

<http://www.ativo.com/destaque/etapa-speed-da-bravus-race-chega-no-rio-de-janeiro>. Acesso em

12/05/2016.

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As corridas de obstáculos são inspiradas em exercícios militares e contam com

paradas nas quais o participante precisa passar por barreiras pré-definidas, como

rastejar sobre arame farpado, correr entre labaredas, cruzar barreiras de água com a

ajuda de uma corda ou a pé e escalar paredes, entre outros desafios. As barreiras são

desenvolvidas pensando no tipo de terreno do local e na distância que será percorrida.

O objetivo é sempre o mesmo: promover a superação individual diante dos desafios

propostos.

Nos Estados Unidos, o total de participantes de provas de corridas de obstáculos

já supera o de maratonas. Os números de seguidores nas redes sociais demonstram tal

fato: as maratonas de Nova York e Chicago, por exemplo, que são duas das principais

no calendário global de provas desse tipo, têm cerca de 500 mil fãs na rede social

Facebook. Provas estadunidenses como a Spartan Race e Tought Mudder ultrapassam

os 9 milhões de seguidores na mesma rede – número quase 20 vezes maior, se

comparado aos das maratonas citadas. Em 2015, as provas de corrida de obstáculos em

território brasileiro contaram com cerca de 70 mil participantes.5

A Bravus Race, uma das provas mais famosas no Brasil, já conta com 10 etapas

no país e é realizada em cidades como Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro, São

José dos Campos e São Paulo. A organização do evento define a corrida desta forma:

A Bravus Race é a mais desafiadora corrida de obstáculos do País. Ela é

projetada para ser uma experiência única na sua vida. Você terá que superar e

redefinir seus limites a todo momento. Porque, a cada etapa, criaremos novas

metas físicas e mentais, para provar para si mesmo do que é capaz6.

As provas contam com obstáculos de mais variadas dificuldades e participam

dos eventos pessoas de ambos os sexos e de diferentes idades. Os próprios

organizadores incentivam que “atletas de fim de semana” façam parte, dando sempre

ênfase à colaboração entre os concorrentes e à diversão de participar de uma prova

dessa. Exemplo disso são os “Mandamentos da Bravus Race”, como podemos ver na

5 ESPORTE, Anuário do. Publicação comercial da Norte Mkt Esportivo. Disponível em

<www.nortemkt.com>. Acesso em 12/05/2016. 6 Citação retirada da página do evento Bravus Race 2016. Disponível em<www.bravusrace.ativo.com>.

Acesso em 12/05/2016.

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Figura 1. Metade das 10 regras são sobre superação de desafios e de medos – “Não

temerás nenhum obstáculo” e “Enfrentará todos os vossos medos” são os maiores

destaques.

Fonte: Página da rede social Facebook/Bravus Race

wwww.facebook.com.br/bravusrace

Figura 1: Mandamentos da Bravus Race

Processos de conotação: imagens de esporte e de guerra

“A fotografia de imprensa é uma mensagem”

(Roland Barthes)

Roland Barthes, em “O óbvio e o obtuso: ensaios críticos” (1990), visita noções

de denotação e conotação aplicadas à fotografia. Segundo o semiólogo francês, a

fotografia conta com uma “objetividade plena” – como defende o pesquisador Nelson

Soares Pereira Júnior:

Pensada como uma significação primeira, mais elementar, a denotação ganha

um valor muito forte quando se trata da fotografia. Enquanto outros tipos de

imagem têm uma mensagem analógica menos contundente - é o caso do

desenho, pintura e cinema -, a fotografia está quase totalmente preenchida

pelo seu valor denotacional. Isso pode ser explicado a partir da própria

evolução do pensamento acerca da imagem fotográfica e seu lugar social.

Contudo, a ideia de que a fotografia é um análogo mecânico do real faz com

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que a sua dimensão analógica, à primeira vista, tome toda sua significação -

garantindo-lhe, assim, uma “objetividade plena”. (PEREIRA JÚNIOR, 2006,

p. 05).

Para Barthes, a fotografia é única. É por definição, “a própria cena, o real literal”

(BARTHES, 1990). Mesmo assim, ela pode contar com interferências na construção de

seus sentidos, principalmente a partir da aplicação de algumas técnicas, que serão

utilizadas para a análise da empiria neste artigo, a saber:

- trucagem: processo que interfere no plano de denotação, o sentido surge a

partir da união, artificial, de duas imagens, que sozinhas teriam sentido diverso;

- pose: aqui, a leitura dos significados de denotação dependem da posição do

indivíduo fotografado na imagem, e, em muitas vezes, não se pode definir se foi

algo combinado previamente ou se foi realmente espontâneo;

- agrupamento de objetos: o sentido conotado, na verdade, pode surgir da

inserção de objetos, excelentes elementos de significação das fotografias;

- fotogenia: desta vez, a conotação da imagem está presente numa possível

alteração da imagem, modificada a partir de recursos de iluminação e

impressão;

- estetismo: recurso que permite tratar a fotografia como “arte”;

- sintaxe: por último, Barthes insere o “contexto” em que a fotografia está

encaixada: se ela é solitária ou se faz parte de um agrupamento de outros

registros, montando uma sequência com explicação própria.

Barthes ainda acrescenta o próprio texto que acompanha a fotografia aos

processos de conotação:

No obstante, es imposible (esta será la útima observació a propóito del texto)

que la palabra “duplique” a la imagen; ya que, al pasar de una estructura a

otra, aparece fatalmente una elaboració de significados segundos. ¿Qué

relación explicitación, es decir, un énfasis, hasta cierto punto; en efecto, la

mayoría de las veces el texto no hace sino amplificar un conjunto de

connotaciones que ya están incluidas en la fotografía; pero, también a

menudo, el texto produce (inventa) un significado enteramente nuevo que,

en cierto modo, resulta proyectado de forma retroactiva sobre la imagen.

(BARTHES, 1990, p. 22).

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Discurso de “Guerra e Paz” nas imagens analisadas

“A nova guerra não pode ser comparada às do passado,

sem necessidade de perturbar o apocalipse” (Norberto Bobbio)

Para entendermos os processos de produção de sentido a partir dos quais os

discursos de biossociabilidade se materializam nas fotografias da Bravus Race, iremos

compará-las com imagens das Primeira e Segunda Guerra Mundial. O processo de

escolha de tais fotos foi orientado pelo modo como elas dialogam interdiscursivamente

com as imagens de guerra.

A primeira fotografia escolhida remete às provas da Bravus Race. A Figura 2

mostra os participantes da etapa paulistana, disputada no Jóquei Clube de São Paulo,

num bairro nobre da capital paulista.

Fonte: Revista Veja – Ricardo Matsukawa/VEJA.com

http://veja.abril.com.br/multimidia/galeria-fotos/a-bravus-race-e-a-mais-desafiadora-corrida-de-

obstaculos-do-pais-2016

Figura 2: “A Bravus Race é a mais desafiadora corrida de obstáculos do país”

Agora, aqui, incluímos outra fotografia, que mostra mais um obstáculo da

Bravus Race – realizada, desta vez, no Jóquei Clube do Rio de Janeiro, também

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localizado em um bairro nobre de uma das capitais mais importantes do país. Nele, os

cerca de sete mil participantes da prova teriam que atravessar um dos lagos do local

com um saco de 10 quilos de areia nas costas (Figura 3).

Fonte: Portal Ativo.com – Daniel Werneck

http://www.ativo.com/destaque/etapa-speed-da-bravus-race-chega-no-rio-de-janeiro

Figura 3: Rio recebe etapa Speed da Bravus Race

Por outro lado, a primeira fotografia escolhida para comparação é da Batalha do

Somme, o conflito mais letal da Primeira Guerra Mundial, com mais de 1,2 milhão de

vítimas – entre mortos e feridos (Figura 4). Com cerca de cinco meses de duração, a

batalha teve início em julho de 1916 e contou com uma investida dos exércitos da

França e da Grã-Bretanha contra a linha de defesa alemã.

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Fonte: G1/Globo.com – Reuters/Archive of Modern Conflict London

http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/07/entenda-1-guerra-mundial-em-20-fotos-da-epoca.html

Figura 4: “Tropas britânicas avançam durante a Batalha do Somme, em 1916”

Outro exemplo que pode ser utilizado é uma das fotos mais famosas da Segunda

Guerra Mundial (Figura 5). No dia 06 de junho de 1944, o fotógrafo Robert Capa

acompanhou o desembarque das tropas norte-americanas na Normandia – conhecido

como o “Dia D” para o fim daquela batalha, que já durava mais de seis anos e que fora

o conflito mais letal da história da humanidade, resultando entre 50 e 70 milhões de

mortes7.

7 AGUIAR, Lívia. “Os 12 conflitos armados que mais mataram pessoas”. Portal Super Interessante.

Disponível em < http://super.abril.com.br/blogs/superlistas/os-12-conflitos-armados-que-mais-

mataram-pessoas>. Acesso em 12/05/2016.

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Fonte: Revista Vanity Fair – International Center of Photography/Magnum Photos

http://www.vanityfair.com/culture/2014/06/photographer-robert-capa-d-day

Figura 5: Dia D – Invasão da Normandia – “Robert Capa’s Longest Day”

Como primeira comparação, podemos relembrar Francisco Ortega, que coloca

os dados de desempenho com conotação quase moral. Vencer cada obstáculo da Bravus

Race remete a um prazer maximizado: quanto mais difícil o desafio, maior a satisfação

em superá-lo. É um dos resultados da otimização do corpo, que buscam saúde e

vitalidade para enfrentar provas que levam à superação física:

Poder-se-ia afirmar a partir do conceito de otimização que, frente às

possibilidades de manipulação do ser humano por ele mesmo as finalidades

do uso das biotecnologias não residem mais em curar doenças ou melhorar a

saúde, mas em maximizar, realçar e incrementar as funções do seu próprio

organismo a partir dos interesses e critérios de seus 'clientes'. (MANSK, 2013,

p. 300).

Relembrando as técnicas de análise de Barthes, as poses representadas nas

Figuras 2 e 4 são extremamente parecidas. Nas provas de obstáculos, os participantes

se ajudam a passar por mais um desafio, não se preocupando com o rastro de terra e

lama que deixarão para trás, em busca do próximo obstáculo. Na guerra, avançar sobre

as trincheiras inimigas era uma maneira de ganhar território e se mostrar vencedor

daquele pequeno momento da batalha.

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A sintaxe também é importante nesta primeira análise. Na Figura 2, o momento

é de total diversão: os competidores se revezam no auxílio àqueles que têm mais

dificuldade em superar o obstáculo e, em meio à lama, dão risadas de seus tombos e da

sujeira que fica impregnada em seus uniformes. Já na Figura 4, por sua vez, os soldados

passam por este momento após uma dura batalha, com a perda de vidas humanas. Além

disso, eles “limpam” a trincheira inimiga, recolhendo armas, água, alimentos e corpos

abandonados no local.

Na comparação entre as figuras 3 e 5, a técnica de análise da pose também é

extremamente relevante. Na Figura 3, os participantes da Bravus Race se esforçam para

atravessar um dos lagos do Jóquei Clube do Rio de Janeiro. Na Figura 5, a pose é

semelhante – mas, ali, os soldados “aliados” 8 desembarcam de navios e entram na

gelada água do Canal da Mancha, localizado entre a Inglaterra e a França, com o

objetivo de chegar à costa francesa e estabelecer um importante ponto de contato para,

dali, partirem para expulsar os nazistas de Paris. É importante perceber, ainda, que até

a altura da água é semelhante entre as fotos.

O agrupamento de objetos de Barthes também é extremamente importante:

enquanto os soldados carregam mochilas e suas armas, toda a subsistência para uma

nova batalha que virá, os competidores andam no meio da água com sacos de areia nas

costas. Podemos, aqui, exibir um quadro com uma pequena lista de “objetos de guerra”

em comparação com os das práticas de exercício físico contemporâneas:

Objetos de guerra Objetos de academias

Armas Halteres

Cantil Squeeze/Coqueteleira

Bolsa para munição Cinto de hidratação

Kit limpa-arma Porta-celular

Bolsa para remédios Nécessaire completa

Protetor auricular Fones de ouvido

8 SCHILLING, Voltaire. “Do Dia-D ao Fim da Guerra 1944-45”. Portal Terra. Disponível em

<http://noticias.terra.com.br/educacao/historia/dia-d>. Acesso em 14/05/2016.

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Considerações Finais

“Na nossa cultura somática,

a aparência virou essência”

(Francisco Ortega)

Os organizadores da Bravus Race reforçam, em suas comunicações

publicitárias, que o evento pode ser feito por pessoas de diferentes idades que “queiram

redefinir seus limites”10. A ideia de “redefinição de limites” sugere que qualquer pessoa

pode fazer uma gestão de seu próprio corpo, definindo metas de condicionamento

físico, de superação física e mental. Mas é evidente que os obstáculos são criados

especificamente para serem superados apenas pelos praticantes de atividades físicas,

como treinamento funcional, musculação e fitness.

A formação da bioidentidade acontece por meio de práticas de bioascese, como

terapias e fitness – que é apresentado como um remédio universal, que nos garante a

independência da medicina e a proteção de todos os males da sociedade moderna

(ORTEGA, 2003):

As práticas ascéticas implicam em processos de subjetivação. As modernas

asceses corporais, as bioasceses, reproduzem no foco subjetivo as regras da

biossociabilidade, enfatizando-se os procedimentos de cuidados corporais,

médicos, higiênicos e estéticos na construção das identidades pessoais, das

bioidentidades. (ORTEGA, 2003, p. 64).

O sujeito, a partir daí, se “autocontrola, autovigia e autogoverna” (ORTEGA,

2003, p. 64). Quando um participante não consegue vencer por algum obstáculo, ele

deve executar uma série de “burpees”11, movimento também popular entre os militares.

É ali que renasce a biossociabilidade dentro da prova, descrito por ORTEGA como

“critérios de mérito e reconhecimento” e “criação de modelos ideais de sujeito baseados

no desempenho físico” (ORTEGA, 2003, p. 63): quem não supera o obstáculo, seja por

10 FUJIMORI, Ana Clara. “Bravus Race: chega a São Paulo corrida de obstáculos”. Portal Ativo.com.

Disponível em < http://www.ativo.com/corrida-de-obstaculos/bravus-race-chega-a-sao-paulo-corrida-

de-obstaculos>. Acesso em 14/05/2016. 11 JUNIOR, Newton Siqueira. “Burpees: treinamento funcional e CrossFit”. Portal Dicas de Treino.

Disponível em <http://www.dicasdetreino.com.br/burpees-treinamento-funcional-crossfit>. Acesso em

14/05/2016.

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incompetência física ou medo, deve se colocar ao lado do obstáculo e ser punido à

frente dos “vencedores”.

A vida proposta nas imagens da Bravus Race é de uma vida saudável, dedicada

à performance corporal e mental, à superação de limites, à otimização do corpo por

meio de práticas dedicadas a preparação do corpo.

Sem a intenção de esgotar as comparações fotográficas entre as imagens de

guerra e da Bravus Race, buscamos, aqui, uma aproximação inicial com o objeto.

Referências

BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1990.

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