biografias construção e reconstrução da memória

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BIOGRAFIAS: CONSTRUÇÃO E RECONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA Wilton Carlos Lima da Silva* RESUMO: A partir de questões sobre construção social da memória, apresentadas por Maurice Halbwachs, Pierre Nora e Michael Pollak, busca- mos oferecer alguns subsídios para a percepção do biografismo, as práti- cas narrativas que envolvem a seleção, descrição e análise de uma trajetória individual, como forma de apreensão do passado. PALAVRAS-CHAVE : Biografia; memória; Maurice Halbwachs; Pierre Nora; Michael Pollak. ABSTRACT : From questions about the social construction of memory, presented by Maurice Halbwachs, Pierre Nora and Michael Pollak, we offer some subsidies to the perception of “biographysm”, narrative practices involving the selection, description and analysis of an individual trajectory, in order to apprehension of the past. KEYWORDS: Biography; memory; Maurice Halbwachs; Pierre Nora; Michael Pollak. Nunca conheci quem tivesse levado por- rada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. (Álvaro de Campos, Poema em linha reta.) Álvaro de Campos nasceu, ao final do século XIX, em pequena cida- de portuguesa, onde recebeu uma educação vulgar de Liceu, mas que lhe permitiu estudar engenharia mecânica e naval na Escócia. Tornou-se um homem alto e magro, desses que parecem ligeiramente curvados, com a pele entre o branco e o moreno, de cabelos lisos e óculos. Nunca exerceu a profissão de engenheiro, por não suportar viver confinado em escritórios. Viajou ao Oriente, conhecendo a Índia e a China, que declarou não valerem muito a pena serem vistas. Tinha um temperamento triste e foi uma perso- nalidade do não (VASCONCELOS, 1953). Fronteiras, Dourados, MS, v. 11, n. 20, p. 151-166, jul./ dez. 2009. * Professor Assistente Doutor da UNESP, Campus de Assis. E-mail: wilton@ assis.unesp.br.

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A partir de questões sobre construção social da memória,apresentadas por Maurice Halbwachs, Pierre Nora e Michael Pollak, buscamosoferecer alguns subsídios para a percepção do biografismo, as práticasnarrativas que envolvem a seleção, descrição e análise de uma trajetóriaindividual, como forma de apreensão do passado.

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  • BIOGRAFIAS: CONSTRUO ERECONSTRUO DA MEMRIA

    Wilton Carlos Lima da Silva*

    RESUMO: A partir de questes sobre construo social da memria,apresentadas por Maurice Halbwachs, Pierre Nora e Michael Pollak, busca-mos oferecer alguns subsdios para a percepo do biografismo, as prti-cas narrativas que envolvem a seleo, descrio e anlise de uma trajetriaindividual, como forma de apreenso do passado.PALAVRAS-CHAVE : Biografia; memria; Maurice Halbwachs; PierreNora; Michael Pollak.ABSTRACT : From questions about the social construction of memory,presented by Maurice Halbwachs, Pierre Nora and Michael Pollak, we offersome subsidies to the perception of biographysm, narrative practicesinvolving the selection, description and analysis of an individual trajectory,in order to apprehension of the past.KEYWORDS: Biography; memory; Maurice Halbwachs; Pierre Nora;Michael Pollak.

    Nunca conheci quem tivesse levado por-rada. Todos os meus conhecidos tm sidocampees em tudo.(lvaro de Campos, Poema em linha reta.)

    lvaro de Campos nasceu, ao final do sculo XIX, em pequena cida-de portuguesa, onde recebeu uma educao vulgar de Liceu, mas que lhepermitiu estudar engenharia mecnica e naval na Esccia. Tornou-se umhomem alto e magro, desses que parecem ligeiramente curvados, com apele entre o branco e o moreno, de cabelos lisos e culos. Nunca exerceu aprofisso de engenheiro, por no suportar viver confinado em escritrios.Viajou ao Oriente, conhecendo a ndia e a China, que declarou no valeremmuito a pena serem vistas. Tinha um temperamento triste e foi uma perso-nalidade do no (VASCONCELOS, 1953).

    Fronteiras, Dourados, MS, v. 11, n. 20, p. 151-166, jul./dez. 2009.

    * Professor Assistente Doutor da UNESP, Campus de Assis. E-mail: wilton@ assis.unesp.br.

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    Fernando Pessoa fez pequenas biografias imaginrias para seusheternimos, e descreveu dessa forma aquele que a crtica literria aproxi-ma com maior facilidade do criador, ressaltando a proximidade de temasentre a obra assinada pelo primeiro e a ltima fase do segundo ondeambos parecem compartilhar o supremssimo cansao, ssimo, ssimo,ssimo, / cansao em meio a palavras de solido, descrena, nostalgia,estranheza e perplexidade1 (PAIS, 1984; QUADROS, 1999).

    Um outro heternimo, Alberto Caeiro, disse em seus versos: Se,depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, No h nadamais simples. Tem s duas datas - a da minha nascena e a da minha morte.Entre uma e outra cousa todos os dias so meus2.

    Versos que falam sobre a impossibilidade de se narrar uma vida, e queparecem condenar a ambio biogrfica como o pecado de algum dese-jar se apropriar daquilo que no lhe pertence no impediram FernandoPessoa (em carta a Adolfo Casais Monteiro) informar que Caeiro terianascido em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. No teveprofisso nem educao quase alguma... Era louro sem cor, olhos azuis;morreram-lhe cedo o pai e a me, e deixou-se ficar em casa, vivendo deuns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-av. Morreu detuberculose em 1915.

    A preocupao de Fernando Pessoa em dotar seus heternimos deuma historicidade pode tanto estar relacionado a necessidade delimitar en-faticamente as particularidades de estilo de cada um, se tornando mais umaforma de diferenciao atravs de uma vida imaginada, quanto pela per-cepo do autor de que aquilo que ele mesmo chamou de drama emgente era necessrio para a construo de identidades e alteridades em suaprpria poesia.

    Mais discutida do que as origens da heteronomia no poeta portugus a temtica do biografismo, um gnero literrio e historiogrfico no qual ohibridismo origina paixes, censuras e tenses.

    Entendo como biografismo as prticas narrativas que envolvem aseleo, descrio e anlise de uma trajetria individual a partir de diversosenfoques e metodologias que permitem sua incorporao atravs do ro-

    1 O Poema em Linha Reta tem um narrador que se mostra tanto reflexivo quanto irnicoe crtico a respeito de si e do mundo, apontando para a necessidade social da manuteno daauto-imagem e de proteo da intimidade e desencantando-se com o cinismo social.2 CAEIRO, Alberto. Poemas inconjuntos. In: Revista Atena, n. 5, fev. 1925. Os versosteriam sido escritos entre 1913-1915,em uma Europa de tempos sombrios.

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    mance histrico, das memrias pessoais (autobiografias e testemunhos), daliteratura escolar e das biografias propriamente ditas3.

    A construo de uma biografia exige o dilogo com as diferentesformas de controle simblico do tempo e da individualizao nas socieda-des humanas, na busca de traduzir uma experincia de durao e estruturasimaginativas que relacionam uma vida e suas relaes com a cultura na qualse insere uma vida pstuma na qual mortos e vivos dialogam a partir dasheranas dos primeiros e das carncias dos segundos.

    A existncia de uma biografia sintoma dessa curiosidade na qualdiferentes espectadores e narradores se envolvem em concesses aovoyeurismo.

    Em meio s discusses tericas sobre a legitimidade dos mtodos edas ambies das biografias enquanto manifestao da cultura tal fato temsido pouco estudado no meio acadmico, ou seja, a crescente demandascio-cultural pelas publicaes de natureza biogrfica, no qual intelectuais,polticos, aventureiros, cientistas, poetas, escritores e artistas passam a seralvo da curiosidade pblica sobre esses indivduos ou sua poca na espe-rana de encontrar no outro um reflexo de si mesmo no tem sido encara-da como objeto4.

    A produo bibliogrfica do biografismo brasileiro tradicionalmentevincula-se a uma humanizao da histria e a criao de uma pedagogiamoral e cvica, com um volume relativamente tmido quando compara-do com outros biografismos nacionais de obras que a partir demetodologias e enfoques semelhantes na produo historiogrfica, no ro-mance histrico, nas memrias pessoais, na literatura escolar e nas biografi-as no sentido estreito do termo.

    3 BOAS (2006, p. 21) cita a forma de classificao das biografias de Luis Viana Filho asdividindo entre simples relao cronolgica de fatos relativos algum, trabalhos noquais, ao par duma (sic) vida, se estuda determinada poca, trabalhos nos quais descri-o duma (sic) existncia se conjugam apreciaes crticas sobre a obra do biografado; etrabalhos em que a narrao da vida constitui o objetivo primacial e a convenes epressupostos ocidentais do gnero para Norman Denzin 1) textos biogrficos devemser escritos tendo-se outros textos biogrficos em mente; 2) dar importncia s influnciasde gnero e classe; 3) estabelecer origens familiares como o ponto zero da histria dapessoa em foco; 4) o autor deve interpretar a histria da pessoa; 5) demarcar momentos davida em questo a fim de atingirem uma coerncia; e 6) pessoas so reais e possuem vidasreais que podem ser mapeadas e significadas.4 Uma revista semanal, em 1995, j apontava o crescimento desse segmento no mercadoeditorial, que s perdia para as publicaes de auto-ajuda tanto que entre julho de 1994e julho de 1995 haviam sido lanados 181 biografias, o que significa uma a cada dois dias,e quatro a cada semana. (VEJA, 26/07/1995)

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    Mas a reconstruo de uma trajetria individual (quer de outro ouprpria) significa tambm a percepo de uma rede de relaes a partir daidia de individualidade, com diferentes temporalidades (o ontem e o hoje),vnculos e pertencimentos que dizem respeito tanto sobre quem se escreve,quem escreve e para quem se escreve.

    Uma referncia negativa recorrente ao biografismo se relaciona comsua imediata vinculao narrativa apologtica de homens da elite econ-mica, poltica ou religiosa, que so retratados como extraordinrios. Em-bora esse tipo de enfoque seja o mais tradicional, por si s se mostra o maisempobrecido dos enfoques possveis, e resultado de um reducionismo amuito superado.

    Em um texto adorvel, em formato de carta, o cronista Paulo Men-des Campos enderea, a partir de comentrios sobre o livro Alice no Pasdas Maravilhas, conselhos para uma menina que completa quinze anos,Maria da Graa, e em determinado momento comenta:

    Disse o ratinho: A minha histria longa e triste!Ouvirs isso milhares de vezes. Como ouvirs a terr-vel variante: Minha vida daria um romance. Ora,como todas as vidas vividas at o fim so longas etristes, e como todas as vidas dariam romances, pois oromance s o jeito de contar uma vida, foge, polidamas energeticamente, dos homens e das mulheres quesuspiram e dizem: Minha vida daria um romance!Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediveis, Ma-ria. (CAMPOS, 1979, p. 75).

    Concordamos com o cronista em que todas as vidas vividas ato fim so longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, assimcomo poderiam originar uma biografia, e a historiografia recente temdemonstrado como indivduos comuns podem ser dotados de umasignificativa densidade narrativa sobre suas pocas, ou ainda, como indi-vduos notveis no so slidos monolitos de virtudes, mas seres humanosdotados de complexas dimenses e relaes que esto ligadas aos con-textos em que viveram e nos quais suas memrias foram construdas ereconstrudas.

    Particularmente nos interessa a forma como a memria, quer comonotoriedade quer como esquecimento, construda ao longo do tempo eno interior de diferentes grupos, assim, por exemplo, inevitvel perceberque muitos livros ou autores que gozam de igual prestgio em um mesmoperodo podem ter destino distinto ao longo do tempo, quando uns con-seguem manter vivo o interesse que despertam e levar busca do

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    aprofundamento e da renovao do conhecimento sobre estes, outros sedesgastam e so redimensionados de forma negativa e abandonados aoesquecimento ou a indiferena.

    Construo, afirmao e desaparecimento de uma obra se relacio-nam com um tempo de apropriao, de definio de um cnone literrio,no qual o tempo da memria, diferenciado do tempo cronolgico, serelaciona com uma dinmica dual de aproximao e afastamento - o autore o texto so sacralizados, tornam-se referncias obrigatrias, modelos eexemplos, mas passam a serem mais reverenciados do que lidos, mais ima-ginados do que conhecidos, domnio de uma monumentalidade que osafasta da realidade mundana e os transformam em produtos da imagina-o criadora.

    O mesmo ocorre com personagens que a histria oficial acolhe comosmbolos cvicos, em um processo de afirmao de valores e refernciasno qual as grandes datas e os grandes feitos se ligam aos homens extraordi-nrios que permite ao passado legitimar o presente, em um processo deconstruo da memria que na maioria das vezes se distancia da vigilnciacrtica e fidelidade ao passado.

    Quando Levi-Strauss lana algumas questes sobre a forma comomito e histria se relacionam nas sociedades indgenas do Canad, discutin-do a organizao interna da narrativa mtica, sua representatividade dentrode uma cultura com identidades diversas (famlias, cls e tribos) ou a rela-o entre narrador, verdade e subjetivao, est oferecendo elementos parapensarmos nosso prprios mitos e a forma como nos apropriamos damemria no simples coincidncia que, segundo o autor, os ndiosutilizam-se de uma reafirmao de seus mitos como forma de atingir de-terminados objetivos como a de que sua lngua e a sua mitologia sejamensinadas na escola elementar e utilizar as tradies lendrias para funda-mentar reivindicaes territoriais, polticas e outras, enquanto a memriahistrica, apropriada diferentemente por diversos grupos, tambm poderesponder por objetivos semelhantes ou correlatos (LEVI-STRAUSS, 1987,p. 51-54).

    necessrio em relao aos povos indgenas, ainda segundo Levi-Strauss, entender seus mitos como parte da construo do passado queesses grupos consciente e inconscientemente fazem e que uma arqueologiade salvamento, ou seja, a busca de indcios materiais e o estabelecimentode correspondncias entre os diferentes relatos possibilitaria no s a com-

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    preenso de cada grupo em si mas tambm o aprimoramento do saberhistoriogrfico5.

    No ando longe de pensar que, nas nossas sociedades, aHistria substitui a Mitologia e desempenha a mesmafuno, j que para as sociedades sem escrita e sem arquivosa Mitologia tem por finalidade assegurar, com um altograu de certeza a certeza completa obviamente impos-svel -, que o futuro permanecer fiel ao presente e aopassado. Contudo, para ns, o futuro deveria ser semprediferente, e cada vez mais diferente do presente, depen-dendo (de) algumas diferenas, claro, das nossas prefe-rncias de carter poltico. (LEVI-STRAUSS, 1987, p. 64).

    A memria talvez possa ser uma forma de manuteno de mitos,mas que desenvolvem uma caracterstica dinmica, de manuteno e trans-formao que permite a presena do passado a partir do presente, queseleciona e representa em termos individuais e coletivos e experincia vivi-da e seu significado em processos de construo de identidades e alteridades,do contraste do eu e do outro, de ns e eles6.

    Maurice Halbwachs, socilogo que pretendeu formar uma sociolo-gia da memria coletiva identifica essa dimenso da vida social comouma mitologia dinmica que para alm do indivduo formaria uma es-trutura social moldada pelas relaes de fora entre diferentes grupos soci-ais que determinam o que no deve ser esquecido7.5 O conceito de mito poltico, que tem um papel secundrio no presente trabalho, une emduas palavras as grandes questes metafsicas do nascimento, sexualidade e morte, doritual, do local e da origem, com as questes pragmticas do poder e da dominao. Nessaconvergncia ocorre um processo de naturalizao, que nega a sua historicidade e suatemporalidade, atravs do que eventos ou personagens se tornam sempre presentes ourepetitivos a partir de uma universalizao de referencias na estrutura social. Barthes(1989) discute a forma de mascaramento que se estabelece com o mito na sociedadecontempornea, como na publicidade ou na poltica, a partir de um processo de desfigura-o (mais prximo da deformao do que do ocultamento), pois aquilo que smbolo apresentado como fato e ostensivamente reafirmado a um conjunto de receptores dodiscurso. Esse processo de desfigurao permite ainda o que Eliade (1986, p. 52) caracteri-zou como a mobilidade da origem, ou seja, aquilo que o smbolo representa no estasomente no passado supostamente vivido, mas no futuro desejado. Para uma viso panor-mica sobre o mito poltico recomendamos a leitura de Miguel (1998).6 Existe uma produo terica no s extensa, mas tambm diversa e profunda sobre amemria, com perspectivas que delimitam especificidades e generalidades que atravessamos campos da histria, das cincias sociais, da filosofia, da psicologia, das neurocincias,entre outros. Parece proveitoso identificar algumas categorias e conceitos utilizados nasreflexes sobre a memria, e apontar seus limites e possibilidades quando relacionadas coma construo biogrfica, particularmente no trabalho do socilogo Maurice Halbwachs, dohistoriador Pierre Nora e do socilogo Michel Pollak.7 Diz Halbawachs (2004, p. 75-76): a lembrana em larga medida uma reconstruo dopassado com a ajuda de dados emprestados do presente, e alm disso, preparada por outrasreconstrues feitas em pocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se jbem alterada.

    Paola AlvesRealce

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    O esquema explicativo de Halbwachs (1990) apresenta a forma comoo indivduo se apropria da memria coletiva, ao se identificar com os acon-tecimentos pblicos que so representativos para seu grupo, embora o so-cilogo francs mantenha-se tributrio do contraste entre a reconstruosocial da memria, que por estar emaranhada s vivncias seria subjetiva, ea memria histrica, que por ser escrita e incorporada ao cnone, detinha ostatus de objetiva.

    Halbwachs (1990, p. 80-81) separa claramente histria e memria aoatribuir segunda uma dimenso de vivncia (fsica ou afetiva) e identidadede um grupo, enquanto primeira, escrita e impessoal, seria a expresso deum esforo exterior:

    [...] fix-las por inscrito em uma narrativa seguidauma vez que as palavras e os pensamentos morrem,mas os escritos permanecem. Se a condio necessria,para que haja memria, que o sujeito que se lembra,indivduo ou grupo, tenha o sentimento de que bus-ca suas lembranas num movimento contnuo, co-mo a histria seria uma memria, uma vez que huma soluo de continuidade entre a sociedade que lesta histria, e os grupos testemunhas ou atores,outrora, dos fatos que ali so narrados?

    A influncia do pensamento de Durkheim, a partir dos conceitos deconscincia coletiva e de solidariedade grupal, permitiram a Halbwachspropor modelos explicativos da forma como diferentes grupos se suce-dem na manuteno da memria e da histria:

    [...] do passado somente, aquilo que ainda est vivo oucapaz de viver na conscincia do grupo que a mantm.Por definio, ela no ultrapassa os limites deste grupo.Quando um perodo deixa de interessar ao perodoseguinte, no um mesmo grupo que esquece umaparte de seu passado: h, na realidade, dois grupos quese sucedem. A histria divide a seqncia dos sculosem perodos, como se distribui o contedo de umatragdia em vrios atos. Porm, enquanto que numapea, de um ato para outro, a mesma ao prosseguecom os mesmos personagens, que permanecem at odesenlace de acordo com seus papis, e cujos sentimen-tos e paixes progridem num movimento ininterrupto,na histria se tem a impresso de que, de um perodoa outro, tudo renovado, interesses em jogo, orientaodos espritos, maneiras de ver os homens e os aconte-cimentos, tradies tambm e perspectivas para o futu-ro, e que se, aparentemente reaparecem os mesmos gru-pos, porque as divises exteriores, que resultam dos

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    lugares, dos nomes e tambm da natureza geral dassociedades, subsistem. (HALBWACHS, 1990, p. 81).

    Na perspectiva de Halbwachs, se h uma diferena clara entre mem-ria e histria devido ao fato de que no processo de apreenso da segundaocorre uma descontinuidade entre o seu pblico e os diversos grupos,testemunhas ou atores nela abordados.

    Ela (histria) obedece, assim fazendo, somente a umanecessidade didtica de esquematizao. Parece que elaconsidera cada perodo como um todo, independenteem grande parte daquele que o procede e daquele que osegue, porque ela tem uma tarefa, boa, m ou indiferente,a cumprir. Enquanto essa obra no estiver acabada, en-quanto tais situaes nacionais, polticas, religiosas notenham desenvolvido todas as conseqncias que com-portavam no levando em conta as diferenas de idade,tanto jovens como os velhos se limitariam ao mesmohorizonte. Uma vez concluda, e que novas tarefas seofeream ou se imponham, a partir deste momento asgeraes que vm se encontram numa outra vertentediferente das precedentes. (HABLWACHS, 1990,p. 82-83).

    Burke (2000) aponta, embora de forma verdadeira mas no original,para a ruptura da viso historiogrfica tradicional sobre as relaes entrehistria e memria, na qual o historiador era guardio de uma memriapblica de grandes fatos e homens notveis, e que d lugar uma novaperspectiva, no s fragmentria em diversas identidades e narrativas, mastambm condicionadas socialmente pela seleo consciente e/ou inconsci-ente e pelos desafios da interpretao.

    Para Burke (2000) o avano historiogrfico em relao s idias deMaurice Halbwachs, no qual mantm-se a perspectiva da construo cole-tiva, mas incorpora-se a diversidade, a fragmentao, a multiplicidade dediscursos e atores sociais, o que possibilita pensar em uma histria socialda memria que d conta dos processos conscientes e inconscientes dostestemunhos e tradies assim como tambm dos registros histricos demodo que uma perspectiva histrica da memria deve considerar sua di-menso como fonte histrica e como fenmeno histrico assim como osprincpios de lembrana e esquecimento entre diferentes grupos e tempos.

    Se nos parece inquestionvel a influncia da sociologia durkheiminianano modelo explicativo de Halbwachs, no qual a memria individual de-rivada de uma memria coletiva, a partir do pertencimento grupal do indi-vduo e da existncia dos mecanismos de coeso social, isso no descarta aexistncia de conflitos, influncias e negociaes8 atravs das quais o passa-

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    do transformado em uma imagem engajada em outras imagens.(HALBWACHS, 1990, p. 75-78).

    Torna-se enriquecedor a diferenciao entre memria, passado e his-tria9, em uma distino que ser posteriormente retomada por Nora (1993):

    A histria no todo o passado, mas tambm no tudo aquilo que resta do passado. Ou, se o quisermos,ao lado de uma histria escrita, h uma histria vivaque se perpetua ou se renova atravs do tempo e onde possvel encontrar um grande nmero dessas corren-tes antigas que haviam desaparecido somente na apa-rncia. (HALBWACHS, 1990, p. 67).

    Ou ainda:[...] porque geralmente a histria comea somente noponto onde acaba a tradio, momento em que se apa-ga ou se decompe a memria social. Enquanto umalembrana subsiste, intil fix-la por escrito, nemmesmo fix-la, pura e simplesmente. Assim, a necessi-dade de escrever a histria de um perodo, de uma so-ciedade, e mesmo de uma pessoa desperta somentequando eles j esto muito distantes no passado, paraque se tivesse a oportunidade de encontrar por muitotempo ainda em torno de si muitas testemunhas quedela conservem alguma lembrana. (HALBWACHS,1990, p. 80).

    nas bordas de fronteiras entre histria, memria e tradio que sepercebem aproximaes e afastamentos entre as leituras de Halbwachs(1990) e Nora (1993).

    De certa forma Nora (1993) se aproxima da afirmao de Halwachs(1990) de que a histria comea somente do ponto onde acaba a tradi-o, como se a histria surgisse da deteriorizao da memria social, e decerta forma radicaliza essa idia ao identificar os lugares da memria.

    No entanto, se Halbwachs (1990) entende que a memria incorpo-rada pela histria de acordo com que os grupos que a sustentam desapare-cem, Nora (1993) identifica no processo de incorporao pela histria acausa da diluio da memria.

    8 A dinmica social da memria percebida como fragmentria, mltipla, provisria,movente, pois criada pelas relaes entre diferentes grupos e h tantos grupos quantasso as origens dos diferentes tempos. No h nenhum deles que se imponha a todos osgrupos. (HALWACHS, 1990, p. 113)9 Em relao distino entre a memria autobiogrfica e a memria histrica, Halbwachs(1990, p. 55) as diferencia, atribuindo primeira uma relao de apoio com a segunda, poistoda histria de vida faz parte da histria em geral, mas adverte que se a segunda maisampla tambm resumida e esquemtica, enquanto que a primeira nos apresentaria umquadro bem mais contnuo e denso.

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    Nora (1993) estabelece um dilogo inevitvel com Halbwachs (1990)ao discutir a forma como a memria uma experincia de apropriao dovivido por diferentes grupos, sendo portanto afetiva, atual e criativa, emcontraste com uma histria que se corporifica no registro contido nas exi-gncias de distanciamento e crtica, de forma racional, nostlgica e limitada.

    A histria reconstruo sempre problemtica e in-completa do que no existe mais. A memria umfenmeno sempre atual, um elo vivido no eterno pre-sente; a histria, uma representao do passado. Por-que afetiva e mgica, a memria no se acomoda adetalhes que a confortam; ela se alimenta de lembran-as vagas, telescpicas, globais ou flutuantes, particula-res ou simblicas, sensvel a todas as transferncias,cenas, censura ou projees. A histria, porque opera-o intelectual e laicizante, demanda anlise e discursocrtico. A memria instala a lembrana no sagrado, ahistria liberta, e a torna sempre prosaica. A memriaemerge de um grupo que ela une, o que quer dizer,como Halbwachs o fez, que h tantas memrias quantosgrupos existem; que ela , por natureza, mltipla edesacelerada, coletiva, plural e individualizada. A hist-ria, ao contrrio, pertence a todos e a ningum, o quelhe d uma vocao para o universal. A memria seenraza no concreto, no espao, no gesto, na imagem,no objeto. A histria s se liga s continuidades tem-porais, s evolues e s relaes das coisas. A memria um absoluto e a histria s conhece o relativo. (NORA,1993, p. 09).

    Nora (1993, p. 7) aponta para a fora com que o presente buscaguardar traos e vestgios como forma de minimizar sua voracidadediluidora, diminuindo a distncia entre a memria coletiva e a histria emuma sociedade condenada ao esquecimento pela forma vertiginosa comque se transforma e pela insistncia em registrar, arquivar e sintetizar a ex-perincia passada, de modo tal que aquilo que lembrado apenas vestgiode algo preservado justamente porque deixou de existir.

    Nora (1993, p. 8) contrape a manuteno de dinmicas da memriaque se mostram integradas e inconsciente de si mesmas, capazes de organi-zar espontaneamente o presente, e outras, nas quais o passado se dilui comoherana e no antigamente dos ancestrais e no tempos indiferenciado dosheris, das origens e do mito, sendo que em ambas a histria se conver-teu somente vestgio ou trilha.

    Tal qual o sentido atribudo por Jorge Luis Borges frase latina magisterdixit que expressava no a rigidez da palavra escrita, mas a flexibilidade dapalavra falada10, Nora (1993) positiva a relao direta entre experinciasocial e memria, que evolui na dialtica da lembrana e do esquecimen-

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    to, na qual ocorrem deformaes inconscientes e sucessivas, usos e mani-pulaes, longas latncias e revitalizaes repentinas.

    Justamente a partir desse movimento dialtico que se torna social-mente necessrio a construo coletiva e social dos lugares de memriaque se convertem na manifestao material e simblica de referncias eidentidades, nas quais se criam tenses entre tradio e experincia.

    A guarda e preservao da tradio se relaciona com duas dinmicasdiferentes, a experincia e intimidade da memria e a reflexo que buscacriar uma reconstituio a partir da produo historiogrfica, que conver-gem em direo de uma herana consolidada, na qual

    [...] os lugares de memria (museus, arquivos, ce-mitrios e colees, festas, aniversrios, tratados, pro-cesso verbais, monumentos, santurios, associaes)nascem e vivem do sentimento que no h memriaespontnea, que preciso criar arquivos, que precisomanter aniversrios, organizar celebraes, pronunciarelogios fnebres, notariar atas, porque essas operaesno naturais. por isso a defesa pelas minorias, deuma memria refugiada sobre focos privilegiados eenciumadamente guardados nada mais faz do que le-var incandescncia a verdade de todos os lugares dememria. Sem vigilncia comemorativa, a histria de-pressa as varreria. So basties sobre os quais se escora.Mas se o que eles defendem no estivesse ameaado,no se teria, tampouco, a necessidade de constitu-los.Se vivssemos verdadeiramente as lembranas que elasenvolvem, eles seriam inteis. E se, em compensao, ahistria no se apoderasse deles para deform-los,transform-los, sov-los e petrific-los eles no se tor-nariam lugares de memria. este vai-e-vem que osconstitui: momentos de histria arrancados do movi-mento da histria, mas que lhe so devolvidos. (NORA,1993, p. 13).

    Outra perspectiva que poderia se somar as anteriores a idia dememria subterrnea elencada por Pollak (1989 e 1992), ao tratar dasformas de manuteno da memria entre grupos que de alguma formasustentam memrias marginalizadas, no como material extinto, mas como

    10 Pitgoras no deixou uma linha escrita. Conjectura-se que no queria atar-se a um texto.Queria que o seu pensamento continuasse vivendo e se ramificando, na mente dos seusdiscpulos, depois de sua morte. Da provm o magister dixit, que sempre mal empregado.Magister dixit no quer dizer o mestre disse, e fim de discusso. Um pitagrico proclamavauma doutrina que provavelmente no estava na tradio de Pitgoras, por exemplo, adoutrina do tempo cclico. Se algum o atalhava isso no est na tradio, ele respondiamagister dixit, o que lhe permitia inovar. Pitgoras pensara que os livros atam, ou, para diz-lo nas palavras da Escritura, que a letra mata e o esprito vivifica. (BORGES, 1999, p.301-302).

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    outra dimenso, que embora oculta significa um esforo de subverso nosilncio e nas sutilezas de suas manifestaes, e que pode aflorar em mo-mentos de crise atravs de sobressaltos bruscos e intensos.

    Embora dialogando com as idias de Halbwachs (1990), para quemas relaes entre memria e histria se dariam pela incorporao da pri-meira pela ltima a partir das ameaas do esquecimento (ou porque fossemdeixando de existir ou os grupos que a mantinham iriam desaparecendo),Pollak (1989) identifica a memria como campo de disputa entre umaelaborao oficial (da memria oficial ou nacional) e as chamadas mem-rias subterrneas que sobrevivem em meio s camadas populares11.

    Quando Pollak (1989) identifica um processo de disputas entre amemria oficial e as memrias subterrneas est, partindo da concepode multiplicidade da memria de Halbwachs (1990) e superando-a ao in-corporar o papel do conflito na anlise do sistema social.

    A memria ganha sua dimenso de campo de afirmao de identida-des, no qual as dimenses subterrneos seriam a expresso de grupos mar-ginalizados, silenciados, minoritrios, que buscariam o reconhecimento desua existncia, a afirmao de seus direitos e a apropriao de suahistoricidade12.

    CONSIDERAE S FINAIS

    A biografia como objeto de estudo permite a discusso sobre osvnculos sociais e histricos que se relacionam com a forma como opersonagem teve sua obra e sua trajetria lembrada ou esquecida ao longodo tempo, sua vinculao com diferentes grupos e movimentos, a pro-duo editorial, acadmica e jornalstica, o envolvimento de instituies, da

    11 Outro socilogo francs tambm chamou a ateno para esse campo de luta, utilizando-se do conceito de capital simblico uma das dimenses da memria: As diferentesclasses e fraes de classe esto envolvidas numa luta propriamente simblica para impo-rem a definio do mundo social mais conforme os seus interesses, e imporem o campo dastomadas de posies ideolgicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posi-es sociais. Elas podem conduzir esta luta quer diretamente, nos conflitos simblicos davida quotidiana, quer por procurao, por meio da luta travada pelos especialistas daproduo simblica (produtores a tempo inteiro) e na qual est em jogo o monoplio daviolncia simblica legtima [...], quer dizer, do poder de impor e mesmo inculcar -instrumentos de conhecimento e de expresso (taxionomias) arbitrrios embora ignora-dos como tais da realidade social. (BOURDIEU, 1998, p. 11-12).12 Pollak (1989, p. 205) relaciona a construo da identidade aos critrios de aceitabilidade,de admissibilidade, de credibilidade, e atravs da constante negociao direta com osoutros.

    Paola AlvesRealce

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    promoo de diferentes eventos e de acontecimentos especficos, alm decaracterizando-a como documento, mdia e manifestao poltica e cultural.

    Diversos estudos apontaram e discutiram o biografismo, desde suasorigens literrias, seus vnculos com o subconsciente, suas relaes com oindividualismo, os aspectos formais e literrios dessa forma de narrativa,suas ligaes com a indstria cultural, entre sentenas seguras sobre seusmuitos vcios e poucos mritos13.

    A biografia como objeto de anlise oferece muitas questes a seremrespondidas: os limites da idia de verdade e de representao, o papelsocial do mito, as relaes entre pblico e privado, as ligaes entre a narra-tiva e sua poca, entre diversas outras.

    Pensar o biografismo como forma particular de memria, dialogan-do com as idias de Halbwachs (1990), Nora (1993) e Pollak (1989) pode-ria oferecer pelo menos trs questes que nos parecem dignas de reflexo.

    A primeira deriva da constatao de que a existncia de uma biografiasupe a ampla utilizao de foras sociais pela manuteno de uma mem-ria, ou de um certo tipo de memria, no qual um indivduo no somenteuma unidade, mas parte de um grupo e representao de ideais e expecta-tivas que j no so subterrneas, mas que convivem junto a outras mani-festaes de superfcie.

    A segunda, desdobrada da constatao de que esse indivduo, enca-rado como notvel e por si s visto como diferenciado dentro do grupoe da sociedade da qual faz parte, no representando, a priori, grupos mar-ginalizados, silenciados, minoritrios, tambm esta situado em um campode disputa no qual memria e esquecimento tambm se estabelecem emrelao a sua trajetria de outros de seu mesmo grupo.

    De tal modo que as transformaes histricas e sociais podem privi-legiar diferentes notveis em diferentes contextos, de modo que prpriamemria oficial se altera ou se mostra capaz de incorporar variantes ou

    13 O artigo j clssico de BOURDIEU (1986) sobre as construes da narrativa biogrficae do peso da trajetria no percurso individual lembrana obrigatria quando nos referi-mos aos vcios do gnero, ao falar de iluso biogrfica e criao artificial de sentido.Mas Bourdieu, original em seu argumento, no nico ou pioneiro em sua crtica Freud,em carta-resposta a Arnold Zweig, ex-paciente, amigo e correspondente do psicanalista,que lhe pedia autorizao para escrever uma biografia do pai da psicanlise recusa de formaenftica o pedido: Aquele que empreende uma biografia est comprometido com menti-ras, dissimulao, hipocrisia, disfarces, bajulao... A verdade biogrfica no existe... (Car-ta de Freud a Arnold Zweig, citada por Ernest Jones, bigrafo oficial do psicanalista, apudYORKE, Clifford. Review: Anna Freud: A Biography By Elisabeth Young-Bruehl, In:The International Journal of Psychoanalys, n. 71, p. 167, 1990).

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    mesmo contradies.E, finalmente, em terceiro, a percepo de que o biografismo um

    objeto propcio para se constatar a multiplicidade de significados e expec-tativas que uma mesma matria narrativa, uma trajetria individual, podeassumir em diferente obras/autores/pocas.

    Artigo recebido em 2 de setembro de 2009.Aprovado em 10 de outubro de 2009.

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