biografema como estratégia biográfica

Upload: henrique-julio-vieira

Post on 03-Jun-2018

230 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    1/180

    ______

    1

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    2/180

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    Programa de Psgraduao em Educao PPGEdu

    Linha de pesquisa: Filosofia da Diferena e Educao

    rea temtica: Fantasias de crticaescrileitura

    BAA AA BA: , , B

    Tese de Doutorado

    Orientadora: Prof. Dr. Sandra Mara Corazza

    Orientando: Luciano Bedin da Costa

    Porto Alegre

    Agosto de 2010

    ______

    2

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    3/180

    Luciano Bedin da Costa

    BAA AA BA:

    , , B

    Tese apresentada ao Programa de PsGraduao em Educao da Faculdade de

    Educao da Universidade Federal do RioGrande do Sul, como requisito parcial paraobteno do ttulo de Doutor em Educao.Orientadora: Profa. Dra. Sandra Mara Corazza.

    Defendida em 24 de agosto de 2010

    Profa.Dra.Sandra Mara Corazza Orientadora FACED/UFRGS

    Profa. Dra. Paola Basso Menna Barreto Gomes Zordan FACED/UFRGS

    Profa. Dra. Tania Mara Galli Fonseca PPGPSI/UFRGS

    Prof.Dr.Eduardo Anbal Pellejero UFRN

    Prof.Dr.Silas Borges Monteiro UFMT

    ______

    3

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    4/180

    Agradeo Sandra Corazza, minha amiga e orientadora emseis anos de aventuras acadmicas e de vida exemplo derigor e paixo pela pesquisa; Mayra, meu amor ecompanheira em tudo que esta Tese passou e no passou;

    aos meus pais e famlia Walder, Marlene, Dani e Teteu,pelo que me deram e ainda do; ao Hugo, pela sempresimptica acolhida desde os tempos de AlunoPEC; a todosque fazem parte e passaram pelo Bando de Orientao dePesquisa (BOP) Chico, Eduardo, Marcos, Ester, Gabriel,

    Jane, Mximo, Betina, Patrcia, Deniz, Karen, Dayana, Ana,Maira, Cludia, Luiz, Rosiara...; Tania Galli, pela paixoque tem pelas coisas que nos deixam vivos e por acreditarem mim e nas coisas que acredito; Barbara Neubarth eTania Capra, por darem vida Oficina de Criatividade; a

    todos os amigos e integrantes do acervo Eu sou Voc doHospital Psiquitrico So Pedro Blanca, Leonardo,Gabriela, Sara, Andresa, Vitor, Juliane, Jlia, Fbio,Guilerme, Leonora, Mrio, Regina, Luis Arthur, poracreditarem na vida que h mesmo nas coisas ditas mortas;ao DIF e matilha de Paola Zordan, pelos uivos dadiferena; ao Eduardo Pellejero e Silas Monteiro, porestarem juntos desde o projeto de Tese; ao Tomaz Tadeu,pela intensidade dos tempos de ritornelos; ao intenso einesquecvel amigo Fbio Parise, pela presena e

    sensibilidade; Larisa Bandeira, pela genialidade daspequenas percepes e por me dizer que hora de dar umponto final; Adriana Thoma, por me fazer pensar abiografia dentro de outros domnios; equipe de psicologiada SETREM Rita, Lilian, Jeane e Vanda, pela compreensoe pacincia; famlia Redin Euclides, Mayana e Marita,por serem sempre especiais e por tambm serem minhafamlia; Renata Roos, por ter me colocado nisso tudo; aoamigo Rafael Ribeiro, pelas geologias da vida alm da Tese; Alexandra Bello, pela leveza e amizade tambm na

    leveza; ao Andr Pietsch Lima e Anglica Munhoz, pelafora na ida Frana; Vitria e Jana, pelas importantes edeliciosas aulas de francs; ao professor Dominique Viart,coorientador na distante e glida Lille; Capes, peloinvestimento e apoio desde o mestrado; UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul e Faculdade de EducaoFACED, pela estrutura e suporte para minha pesquisa; porfim, agradeo VIDA, por me deixar diante de todos estesque aprecio e amo.

    ______

    4

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    5/180

    Como escrever uma vida? Essa pergunta aparentemente simples a questo quemovimenta este texto. A escrita de vida chamada aqui de biografia (b b,

    vidae ge, escrever) um tema transversal, compreendendo nosomente a literatura, como tambm outros domnios das Cincias Humanas e daSade, como a psicologia, educao, antropologia, histria e cincias sociais. Abiografia comporta um tecido amplo de operacionalizaes e metodologias; elaaparece nas histrias de vida, na formao profissional, nas anamneses, nos relatos

    de experincias, nos projetos de vida, nos estudos de caso, etc. O binmio vidaescritura tratado a partir da perspectiva levantada pelos filsofos FriedrichNietzsche e Gilles Deleuze, como a fora capaz de criar, e sobretudo, criar a simesma. A noo de biografema, proposta por Roland Barthes, uma potenteestratgia para se pensar a escritura de vida aberta criao de novas possibidadesde se dizer e, principalmente, de se viver uma vida. O surgimento do biografemaacompanha uma mudana de abordagem em relao s prprias vidas biografadas,acarretando num novo tratamento biogrfico por parte das disciplinas. Tratase deoutra postura de leitura, de seleo e de valorizao de signos de vida. Ao invs depercorrer as grandes linhas da historiografia, a prtica biografemtica voltase para

    o detalhe, para a potncia daquilo que nfimo numa vida, para suas imprecises einsignificncias. Tomar partido da biografia enquanto criao (e no somentecomo representao de um real j vivido) colocarse diante de uma poltica quese mostra contrria a todo uso biogrfico que sufoca a vida, a toda estratgia oumetodologia thanatogrfica. O prprio sujeito se desloca ele passa a ser, nestesentido, tambm um criador, um fabulador de realidade, um ator mesmo deescritura e de vida. Afinal, haveria outro sentido em se escrever uma vida que nofosse o de acreditar na potncia de reinveno desta prpria vida?

    AAAA

    Biografema, Escrita de Vida, Nietzsche, Barthes, Deleuze, Educao, Psicologia

    ______

    5

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    6/180

    Comment crire une vie? Cette question apparemment simple est la question quianime ce texte. L'criture de la vie qu'on appelle ici la biographie (b bios, vieet graphein, crire) est un thme transversal. L'criture biographiquecouvre pas seulement la littrature mais aussi d'autres domaines de la sant et dessciences humaines, comme la psychologie, l'ducation, anthropologie, histoire etsciences sociales. La biographie comprend un large tissu de mthodologies; elleapparat dans les histoires de la vie, dans la formation professionnelle, dans les

    tudes cas dans, dans les projets de vie, tudes de cas, etc. Le binme viecritureest trait avec la philosophie de Friedrich Nietzsche et Gilles Deleuze, comme laforce capable de crer, et surtout, crer ellemme. La notion de biographmepropos par Roland Barthes, c'est une stratgie puissante pour une rflexion surl'criture de la vie ouvert la cration de la possibilit de dire et surtout de vivrecette vie. L'apparition du biographme conduit un nouveau traitementbiographique de l'histoire. C'est une autre position de lecture, de slection et dercupration des signes de vie. Plutt que de passer par le contour del'historiographie, la pratique biographematique se tourne vers le dtail, lepouvoir du minuscule, vers le insignifiant et inexact. En pensant la biographie

    comme cration (et pas seulement comme une reprsentation du rel, dj vcu)c'est mis en avant d'une politique contre l'utilisation de la biographie qui toufflela vie, contre toute la stratgie ou mthodologie thanatographique. Le sujet luimme se dplace aussi il devient, en effet, aussi un crateur, une ralitincroyable, mme un acteur d'criture et de la vie. Aprs tout, estce qu'il y avaitun autre sens par crit une vie qui n'est pas de croire en la puissance de larinvention de cette vie?

    Biographme, Rcit de vie, Nietzsche, Barthes, Deleuze, ducation, Psychologie

    ______

    6

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    7/180

    CINCO POSES

    Beckett, Barthes, Blanchot, Brenda e Brenner 9

    NO LIMBO EPISTEMOLGICO 23

    DA CONSCINCIA HISTRICA CONSISTNCIA BIOGRFICA 32

    A INVENO DA VERDADE BIOGRFICA 47

    THANATOGRAFIAS E A AUTPSIA DA HISTRIA 53

    THORUBOS DA PALAVRA 68

    DA ORELHA DO LEITOR AO TMPANO DO TEXTO 79Nietzsche, Derrida e Barthes, otobigrafos

    A ECOGRAFIA E O DRAMATURGO DA HISTRA 90

    UM CORPO SENO SUFOCO 97

    BIOGRAFEMA

    o amigvel regresso e a impossibilidade da biografia 104

    PESQUISA BIOGRAFEMTICA, MODOS DE USAR 118

    REFERNCIAS 127

    ANEXO: BIOGRAFIAS FUZILADASseguido de 10 fotografemas

    ______

    7

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    8/180

    A palavra AutoBioGrafia uma palavra feia,artificialmente mdica, uma palavra sem alma,

    desprovida de vibrao histrica e deencantamento potico, tida como necessriaaos profissionais da crtica literria. Mas estaantiptica palavra tem ao menos um mrito: ode dizer o que ela diz com uma rara preciso.

    GUSDORF,ABGae

    ______

    8

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    9/180

    Existem palavras que deveriam fazer parte de uma nova categoria

    gramatical chamada de . No por serem perfeitas ou por muito

    designarem as supostas que elas representam, mas por

    serem justamente esfareladas, poeirentas, e por mais sobrecodificados que sejam

    os sentidos a elas concebidos, basta um sopro para que um outro sentido

    as coloque fora de rota.

    ***

    Biografia uma dessas .

    ______

    9

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    10/180

    B, BA, BA, BA,B

    ______

    10

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    11/180

    1961 e Samuel Beckett est sentado no trono junto aos grandes de todos

    os tempos. Como Shakespeare, Dante, Hugo e Joyce, o escritor irlands tem sua

    imagem revestida de imaginrios dinsticos. Beckett rei. desta imagem real

    que Pierre Michon inicia seu C d R (2002). Segundo Michon (2002, p.1316), ao rei destinado dois corpos: um corpo eterno, dinstico, o qual a biografia

    sacraliza; e um outro corpo, mortal e funcional, vestido de pequenas

    precariedades. Lutfi zkk, fotgrafo turco, o responsvel pela fotografia que

    haveria de imortalizar Beckett em seus dois corpos. Ele est presente no charme

    dos lbios rigorosamente perfeitos, na brancura do cigarro que pende em sua

    boca, nas sombrancelhas negras e grossas e nas rugas que desenham em seu rosto

    uma prateada cartografia. O rosto de Beckett pe em questo a justa imanncia da

    imagem, a apario simultnea do corpo do Autor e de sua encarnao pontual, o

    verbo sacro do rei e seu acc eda. Na imagem de Beckett os signos

    transbordam e o corpo apresentase ntegro em sua ciso.

    ***

    Tudo est

    N e agee.

    ______

    11

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    12/180

    Os dois corpos de Samuel Beckett

    ______

    12

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    13/180

    incio de 1980. Mesmo contrariado, Roland Barthes deixase fotografar

    como poucos. Sua imagem preenchida de um charme aristocrtico, seus lbios

    portam o cigarro que tambm o cigarro de Beckett. Barthes velho e bonito. Seu

    rosto invadido por sombras perfeitas e a flacidez da pele confudese com a

    mesma textura prateada que encobre a face do escritor irlands. ric Marty no o

    fotgrafo mas o autor de Rad Bae, fc de ecee (2009), a fotografia

    literria dos corpos que se insinuam no corpo nico que atende por Barthes. A

    biografia do escritor assediada por comoventes biografemas. Marty o aluno eamigo de Barthes, aquele que recebe um telefonema dizendo: Rad fe

    acdee.... Barthes atropelado por uma caminhonete quando atravessa a rue des

    coles, em Paris. No hospital, recebe a visita do amigo que v nos olhos do escritor

    o olhar de desespero, do tipo verificado nos prisioneiros de morte. O quarto

    branco, to claro a ponto de quase cegar, ele est deitado numa cama mais alta do

    que as camas normais, o que d a sensao de um corpo em exposio, sem mais

    nenhum elo com o solo, o corpo coberto por um lenol branco e repleto de tubos,

    de fios de controle, corpo que perdeu toda a sua existncia vital. Mas, esse corpo

    estrangeiro, nohumano, est ligado a uma cabea desesperada, que me olha

    enquanto atravesso lentamente o quarto para me aproximar dele (MARTY, 2002,

    p.116).

    ***

    Marty passa os dias ao lado do amigo que haver de morrer logo. Fiquei ao

    lado da sua cama, quis pegar na sua mo, mas fiquei achando que ele podia ler no

    meu rosto a sua prpria morte, ento virei o rosto e sa sem dizer quase nada

    (MARTY, 2002, p.118).

    ***

    A morte enfim chega e ric Marty o primeiro a vlo. Na sua memria, o rosto de

    Barthes tinha voltado ao normal.

    ______

    13

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    14/180

    Em estado normal: Roland Barthes

    ______

    14

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    15/180

    outono de 1949 e Maurice abandona seu apartamento em Neuilly.

    Blanchot continua a ser um homem pblico mas seu rosto no aparece. Ele no

    tem voz, no fala Radio France e seu corpo e no participa da cena mundana

    francesa. Longe de Paris, ele est tambm longe dos amigos e de Bataille. Seu

    corpo o corpo usurpado pela misria fisiolgica e pelo cansao das coisas que

    acontecem. Blanchot habita o minsculo vilajero de ze, a dois passos de Nice e de

    Cap Ferrat. Do seu pequeno quarto, avista o penhasco rochoso que outrorainspirou Nietzsche a compor a terceira parte de seu Zaratustra. ze oferece a

    Blanchot uma dupla reserva: de espao e de assdio. Um pequeno jardim

    delimitado por muros espessos e um quarto que no o prolonga nem o reduz. Ali

    Blanchot est na medida certa. Christophe Bident (1998, p.308), o competente

    bigrafo, constri o cenrio que nos parece fugidio: O espao real (a casa, o quarto

    de ze) se ausenta, para dar lugar a um espao difuso, difratado, disseminado, s

    vezes alucinado, espao de escritura, espao literrio, espao abrindo o espao ()

    espao que permite entrar no vazio silencioso da obra e na ausncia do tempo. Ocerto que ze conhece esse Blanchot sobre o qual pouco sabemos. Alguns turistas

    por vezes assediam a residncia. Eles fotografam e olham para a pequena janela

    lateral fechada que teria sido do escritor. Blanchot no est l.

    ______

    15

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    16/180

    Um quarto de Maurice Blanchot

    ______

    16

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    17/180

    maio de 1980 e Henry Miller tem 88 anos. Fisicamente ele a expressoviva de uma runa. O caminhante de Paris sabe que a vida logo o deixar. Ele se

    tornou frgil, seu corpo agora esqueltico. Os msculos definharam. Seu corao

    inquietantemente bate com a ajuda de uma grande artria artificial.

    Completamente cego do olho direito, esforase para enxergar o pouco de vida que

    ainda lhe resta esquerda. Brenda Venus, o ltimo dos amores de Miller, est

    sentada ao seu lado. Brenda sua amante e derradeira musa. Num curto espao de

    tempo, a ela dedicoulhe mais de 1500 cartas. Ele escreve duas, trs vezes por dia,

    em frases que se tornam cada vez mais enxutas. Brenda tem 22 anos, um amordesprezado por aqueles que se dizem mais prximos do escritor. Ela bem sabe

    disso e se mantm distncia. Costumase dizer que, s paixes mais

    arrebatadoras, o lado de fora o mais conveniente. O certo que, com a entrada

    de Brenda, a vida do velho escritor havia mudado radicalmente. Ela devolveulhe o

    poder de domesticar suas enfermidades e de conhecer as ltimas alegrias do

    paraso em vida. Miller no se cansava quando me falava de Brenda Venus; ele

    no passava um dia sequer sem deixar de escrever uma mensagem para ela. O

    pensamento de Brenda era onipresente testemunha o amigo Lawrence Durrel,

    no prefcio de Lee d'a Beda Ve (1986, p.9).

    ***

    Uma equipe de televiso chega para fazer um documentrio. Em seu

    quarto, a cmera o filma deitado na cama. Sua ltima cama. Ele sabe disso. Esta

    cama porta um nome: leito de morte1. Ao lado, silenciosamente Brenda o observa.

    Ela tambm parece saber.

    1Batrice Commeng,Henry Miller: ange, clown, voyou, 1991, p.330.

    ______

    17

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    18/180

    Brenda Venus e o pensamento onipresente

    ______

    18

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    19/180

    1877. A Villa Rubinacci uma casa de campo simples e clara, nutrida pela

    presena de dois modestos terraos um projetado sobre a falvel borda que

    entorna o golfo de Npoles, e o outro debruado sobre o limite do real impostopelos paredes de pedra. Deste segundo, podese melhor sentir o odor do bosque

    ocupado por limoeiros, banharse na frescura da brisa proveniente dos assdios da

    montanha prxima. De longe avistase o Vesvio, o magnfico tormento de

    Pompia. Vivese numa atmosfera buclica de recolhimento e introspeco. Trata

    se de uma penso alem, destas destinadas a acolher viajantes germnicos. As

    janelas, costumeiramente entreabertas, so protegidas pela aprazvel sombra

    oferecida pelos pinheiros, dando a ver o inesgotvel

    movimento repetitivo do mar. A pequena casa est situada em Sorrento, naCampnia italiana, ao sul deste imenso pedao de terra chamado Europa. o lugar

    onde o calor e a luminosidade mediterrnea banham os espritos. Villa Rubinacci

    um destes lugares para onde se pode ou se quer fugir.

    O quarto de Malwida de Meysenbug est situado no primeiro andar. Ele

    tem o conforto necessrio. Seus trs nicos hspedes ocupam, por sua vez, o

    suficiente espao do trreo. As manhs so consagradas ao trabalho solitrio e aos

    momentos de meditao. Aquele que assina Pf. D. F.N ao final de suas cartas,

    acorda em torno de seis horas da manh, quando dia e noite ainda esto em

    comum acordo de convivncia. F.N prepara calmamente seu desjejum e logo se

    coloca diante de sua obra. Durante as manhs, cada um dos habitantes trabalha

    solitariamente no seu canto at que o odor da panela quente e temperada

    lentamente percorra os poucos corredores da casa anunciando a hora do almoo.

    As tardes reservam caminhadas. Trs horas de marcha moderada costumam

    ser suficientes, por entre magnficos caminhos montanhosos que cortam os

    campos de oliveiras, prximos a desfiladeiros, de onde se avista o oceano de

    laranjeiras carregadas de frutos dourados.

    noite, antes do jantar, sesses de leitura, geralmente confiadas a Paul Re.

    Sua voz densa e carismtica. Mesmo srio, Re provoca risos. Os quatro solitrios

    da Villa Rubinacci esto sentados na sala de estar. Acomodado numa poltrona,

    Nietzsche observa calmamente cada uma de suas polidas unhas, abrigado pela

    cndida luz de um pequeno abajur. Re, o leitor, sentado em frente mesa, sobre a

    qual uma outra lamparina continuamente queima. Perto da lareira, Malwida

    ______

    19

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    20/180

    descasca laranjas para o almoo, num silncio que sobretudo ctrico. Uma hora

    aps o jantar, todos se retiram aos seus quartos. No relgio, 21hs.

    De todos os quatro solitrios, Paul Re o nico com uma sade invejvel.

    Villa Rubinacci tambm um lugar onde a vida transita abraada sua realprecariedade. Friedrich Nietzsche, hspede da senhora Meysenbug, amigo do Dr.

    Re. Eles se conheceram na Basilia, na primavera de 1873, quando Nietzsche era

    seu professor. Dr.Re escrever uma dezena de livros importantes e ter um papel

    privilegiado na vida do filsofo alemo e de Lou Salom. Malwida de Meysenbug

    uma notria idealista, a escritora que se tornar clebre no seleto crculo dos

    wagnerianos.

    Albert Brenner, o quarto e ltimo dos solitrios. O jovem Brenner foi

    tambm aluno do professor Nietzsche e ter uma vida breve. No to brilhantecomo Paul Re. Tuberculoso, morrer aos 22 anos, muito jovem, sem receber os

    louros da eternidade. Passar pela vida quase margem da histria, como muitos

    outros personagens do vivido. Entretanto, ter convivido com os grandes, como

    poucos. Ter escrito algumas inexpressivas novelas, nenhuma delas publicada em

    sua vida breve. Brenner aparecer em algumas memrias de Nietzsche e de

    Malwida de Meysenbug. O jovem rapaz est muito doente e vai morrer. A nica

    alegria que ele conheceu foi a sua estadia na Itlia2. H muitas coisas para as

    quais gostaria de me calar: a morte e o ltimo perodo de ede Brenner, o

    estranho afastamento de muitos amigos3.

    Ento, a grafia do nome Brenner ser timidamente mencionada em alguma

    escassa biografia que no a sua. Brenner no a ter pelo fato de no ter sido

    suficientemente interessante aos olhos e ouvidos dos grandes contadores dos fatos

    ditos reais. Sua fotografia no estar dentro da sua biografia que nunca ser escrita.

    Quando muito, aos esfarelados da histria resta o rido intervalo entre duas

    inspidas datas, sobre as quais costumase depositar um incio e um fim.

    2Malwida von Meysenbug.Le soir de ma vie, suite des Mmoires d'une idaliste, 1908.3Friedrich Nietzsche.Lettres Peter Gast, 1957.

    ______

    20

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    21/180

    Albert Brenner(18561878)

    ______

    21

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    22/180

    10 de abril de 1877. terafeira e o tempo est encoberto. O jovem Brenner,

    tuberculoso, est partindo da Villa Rubinacci com Paul Re. Brenner estava

    totalmente desnorteado de dor, ele queria a todo tempo dar meiavolta e retornar a

    Sorrento. Re tambm estava igualmente calado, mas se controlava, mantendo

    uma postura sbria e bela, assim como a sua pessoa. Eu estava sinceramente

    desolada por ver Brenner nesse estado, e disse adeus Re como a um filho

    querido. Talvez a gente se reencontre, mas de forma alguma ser to belo como foi

    nestes 5 ltimos meses carta de Malwida4. E ento Brenner salta rapidamenteno vago enquanto Malwida procura seu rosto por entre as pequenas janelas

    embaadas. A tuberculose logo terminar e com ela a vida do jovem. Restaro

    brevidades.

    4Friedrich Nietzsche. Correspondance avec Malwida von Meysenbug,2005.

    ______

    22

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    23/180

    Beckett, Barthes, Blanchot, Brenda, Brenner.

    A biografia comea com corpos que escapam.

    ______

    23

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    24/180

    B

    ______

    24

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    25/180

    .

    Embora seja um dos gneros literrios mais lidos no Brasil e no mundo,

    ainda so poucos os estudos acadmicos que tomam a questo da biografia em sua

    transversalidade, conforme afirmam Schimidt (2000; 2004) e Vilas Boas (2003).

    Tratase, segundo este autor, de uma tessitura delicada, onde universos se

    entranham e, por vezes, at se estranham, fazendo com que os estudos sobre

    biografias ainda sejam ocasionais, restando apenas iniciativas isoladas, quesomente tangem o gnero como parcela secundria ou complementar de uma

    pesquisa maior. Pena (2004, p.51) dir que, ao no ser reconhecida como gnero

    autnomo de discurso (situandose entre a histria e a fico), a biografia desliza

    num certo b eegc, justificando esta suposta falta de interesse da

    crtica universitria em relao ao tema.

    A questo da escrita da vida, da (do grego: b b,vida e

    ge, escrever), pelo seu carter heterogneo e deslizante, assume uma

    perspectiva transversal. Tendo em vista a multiplicidade de tratamentos aos quais submetida, falar sobre biografia se torna uma conversa difcil, indireta e

    ininterrupta, como bem sinaliza Sabina Loriga (2003, p.17). No que diz respeito a

    uma definio geral do que seja biografia, Gobbi (2005, p.90) dir que se trata de

    uma tarefa impossvel, justamente pelo carter transdisciplinar que a envolve. O

    campo que faz uso da escrita biogrfica abrange no somente a literatura, como

    tambm a histria, a psicologia, a pedagogia, a antropologia e cincias sociais.

    Para que a biografia no fique limitada ao gnero literrio propriamente

    dito, pesquisadores como Dominique Viart (2002 b) e Benito Bisso Schimidt(2000) preferem utilizar o termo biogrfico. Mesmo que faa uso de elementos de

    uma concepo tradicional de biografia (recorrentes em pesquisas documentais e

    historiogrficas), o biogrfico seria esse material processado pela escritura.

    Segundo Viart (2002 b), o biogrfico esse efeito do vivido; a questo da realidade

    histrica deste material no o mais importante no que diz respeito ao

    biogrfico, o que se coloca em questo a maneira como o texto apresenta seu

    ______

    25

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    26/180

    material. Tomando o biogrfico como efeito de escritura, possvel produzir um

    distanciamento, uma da dcaacerca do que se entende por fidelidade

    histrica ou historiografia de vida. O biogrfico, neste sentido, opera com aquilo

    que Deleuze & Parnet (1998, p.58) chamam de traio da escritura, onde o trair colocado ao lado da criao, distante dos ditames identitrios produzidos pela

    idia de babiogrfica de um autor. Escrever uma vida, ou a prpria vida,

    ficcionalizar; toda representao de vida , desde o incio, fictcia, afirma Viart

    (2002b,p.211). Dessa forma, ao introduzir a fabulao no prprio cerne biogrfico,

    operase uma nova poltica, tal como Deleuze & Guattari (1977) anunciam: a de

    propor novas entradas, e principalmente, inventar novas sadas. Tratase de tomar

    a biografia a partir da articulao entre a inveno fictcia e o pensamento crtico

    (VIART, 2005), num gesto que , sobretudo, de sada. O componente biogrficopassa a ser compreendido como um empreendimento de sade, naquilo que Viart

    (2002 b, p.73) apresenta como a inveno de si como se fora um outro. A histria

    , pois, atravessada pela fabulao, sendo o biogrfico o plano onde estas misturas

    efetivamente se do.

    Ao considerar o texto um gesto coletivo, sempre escrito e lido a vrias

    mos, Barthes (2004, p.74) solicita do leitor uma colaborao prtica. Mesmo nos

    escritos autobiogrficos, o que est em jogo , menos a monotonia de um sujeito

    consciente que busca exprimir sua interioridade, e mais aquilo que a assemblia

    viva de leitores e escritores lhe solicita (ibid, p.99). Ser por esta solicitao de

    escritura que o trabalho de uma biografia ser assumido. Tratase de um coletivo

    engendrado pelo prprio bigrafo, do qual ele tambm faz parte, e sobre o qual ele

    mesmo se dilui. A biografia pode ser pensada, ento, como a grafia possvel das

    vidas que correm e avanam sobre o texto escrito, sobre a dita bade um autor,

    fazendo desta um Texto. Para Barthes, o Texto aquilo que se atravessa na obra e

    que a coloca em movimento, tudo o que passvel de ser lido e que no est

    intimamente ligada obra propriamente dita (uma imagem, uma fotografia, uma

    pintura, uma anotao...). Entretanto, fazse necessrio reforar que o movimento

    produzido pela concepo de Texto biogrfico outro, pois o que avana no a

    escrita sistemtica de uma vida (com sua cronologia, fases, perodos, etc), mas as

    vidas que se engendram e que tornam a biografia sempre aberta, produzindo sadas

    para as vidas mais aprisionadas.

    ______

    26

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    27/180

    . A

    A insero do leitor dentro do problema biogrfico aproximase daquilo que

    Philippe Lejeune (1980; 1984; 1996) apresenta como pacto autobiogrfico. A

    assinatura de um Texto biogrfico ser, tambm, do leitor que, lendoo, convocado a fazer algo com aquilo que l. Uma leitura acompanhada de um desejo

    por escrever, de ce(BARTHES, 2005, p.1920). desse leitorscriptor que

    Corazza (2008) retirar subsdios para pensar o que define como escrileitura, ou

    seja, o movimento de escrita testemunhal daquilo que faz corpo entre o escritor

    leitor e seu autor a ser escrito. O agenciamento escrituraleitura constitui essa

    mquina de escrileitura literria (CORAZZA, 2008, p.183) que se pe a minorar as

    grandes entidades metafsicas encarnadas na figura do Escritor, do Leitor e do

    Crtico. O movimento de escrileitura acompanha o que Viart (2000, p.75)apresenta como o novo movimento da crtica. Ao contrrio da postura clssica

    (que exaltava a imitao das grandes obras) e das vanguardas (que preconizavam

    uma ruptura total com os modelos), a atitude contempornea privilegia o gesto de

    leitura, sem exclusividade ou excluses prvias. Este novo tipo de postura no

    busca um modelo para testemunhar fidelidade e nem tampouco rechaa as

    prticas mais antigas; a postura crtica contempornea trabalharia, ento, a partir

    do transbordamento de suas prprias interrogaes (VIART, 2000, p.76), numa

    escritura que situa a leitura no corao de seus prprios princpios. Para Viart &

    Vercier (2006), a literatura contempornea ajudanos a pensar a natureza

    fragmentria e descontnua do real. Segundo Loriga (2003, p.19), se escritores

    como Gide, Musil e Valry criticavam a biografia, era com a inteno de instigar e

    fomentar as prprias variaes do dito eu substancial. Uma vez admitidas a

    fragmentao do ser e o estilhaamento do olhar individual, tais escritores

    buscavam adentrar ao universo daquilo que virtual e hipottico. Tratase, atravs

    da experincia individual, de promover o rompimento com o excesso de coerncia

    do discurso histrico, instaurando a pluralidade e a virtualidade que h na

    tentativa de se reescrever um passado.

    Essa nova posio frente ao campo biogrfico coloca a biografia dentro de

    uma historicidade capaz de sugerir espaos de liberdade frente aos sistemas

    normativos vigentes. o que Schimidt (2003, p.69) afirma, quando se refere a essa

    histria tomada pelas margens, a qual nos faz responder, mesmo que

    tangencialmente, a uma importante questo existencial: qual a nossa

    ______

    27

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    28/180

    possibilidade de individuao, de criatividade, de interveno no curso dos

    acontecimentos?. Ao no pactuar com o determinismo histrico, a biografia passa

    a ser um dispositivo para que a prpria produo de vida seja colocada em questo,

    tal como Corazza (2006, p.29) escreve: os modos de vida inspiram maneiras depensar e escrever; os modos de pensar e escrever criam maneiras de viver. Pensar,

    ler e escrever a vida de um outro passam a ser trs movimentos indissociveis. A

    escrileitura biogrfica teria a marca dessa indiscernibilidade. A obra de um escritor

    seria, ento, isso que permite ler a vida dele como um Texto, e no o apanhado

    histrico e seco do que fora o registro das suas experincias vividas.

    .

    Para romper com a concepo majoritria de biografia, este texto faz uso danoo barthesiana de biografema. Em Rad Bae Rad Bae(1975), o

    biografema entendido como uma espcie de anamnese factcia, de uma

    imitao que mais da ordem da fabulao, daquilo que no toma como modelo

    um Realimaginrio, mas que o inventa na sua necessidade de fazer algo com ele.

    Em Se Ec (1979), o biografema tratado como o amigvel regresso ao

    autor, no o autor identificado pelas grandes instituies como a histria (da

    literatura ou da arte), e tampouco o heri recorrente das grandes biografias. Em

    Sade, Fe e La(1971), este autor se mostra disperso: um pouco como as

    cinzas que se lanam ao vento depois da morte, e que trazem no mais do que

    clares de lembrana e eroso da vida passada. Em A caa caa (1980), o

    biografema apresentado como um trao biogrfico, como o ponto (c)

    que coloca o observador para fora da obra histrica propriamente dita. O princpio

    biografemtico que envolve essa nova escrita da vida diz respeito fragmentao e

    pulverizao do sujeito; o autor da biografia no a testemunha de uma vida a ser

    grafada por ele, mas o ator mesmo de uma escrita. De acordo com Moiss (1983),

    ao estabelecer aquilo que chama de biografemtica, Barthes aponta para dois tipos

    de biografias possveis: uma bgafade, onde todos os dados e

    acontecimentos histricos parecem se ligar e fazer sentido; e um segundo tipo

    biogrfico, a bgafadeca, que toma para si a prpria potncia dispersiva

    do biografema, criando uma ordenao outra. Enquanto o primeiro tipo de

    biografia direciona o sentido, a biografia calcada na biografemtica cria sentidos

    outros sempre que o leitor toma para si a multiplicidade de signos dispersos que

    ______

    28

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    29/180

    povoam o Texto. Segundo Noronha (2001), a prtica de uma biografemtica

    envolve a constituio de um retrato de vida, este, porm, nunca acabado. O que

    h o desejo de encontrlo, um rosto que ser sempre etreo. Tratase de um

    outro tratamento para aquilo que a cultura nos oferece acerca do autor (atravs doslivros, fotos, manuscritos, filmes, entrevistas, documentos, etc): a relao

    biografemtica faz uso deste material, porm tomao como um compsito de

    signos soltos, prontos para pontilharem outros rostos, culminando em novos jogos

    de mentiras e verdades. Desta rede de signos dispersos, Pignatari (1996, p.1319)

    estabelece o que chama de semitica da biografia. Prope a concepo de

    bdagaa como o conjunto de biografemas, destas quaseunidades que

    compem a narrativa de uma histria a ser documentada. Ao extrair fios da mais

    variada natureza sgnica, o bigrafo arma uma espcie de teia (bdagaa),graas qual apreende, capta e l a vida de algum, tal como a aranha em relao

    mosca. Formado pelo acmulo e ordenao destas quaseunidades, o e

    biodiagramtico passa a apresentar enormes lacunas quantitativas e qualitativas,

    transformandose naquilo que Pignatari (1996, p.16) chama de arquiplago

    bizarro de biografemas f lutuantes. Ao se mostrar fragmentrio e incompleto, este

    conjunto de ilhas biografemticas libera a escritura para aquilo que ela tem de mais

    potente, ou seja, seu movimento de criao e recriao de mundos.

    De toda forma, o surgimento da biografemtica barthesiana acompanhou

    uma mudana de abordagem no que diz respeito s prprias vidas biografadas,

    acarretando num novo tratamento biogrfico da histria. De acordo com

    Caramella (1996, p.2122), a noo de biografema envolve uma outra postura de

    leitura, de seleo e valorizao de determinados resduos sgnicos. Ao invs de

    modelos exemplares, de biografias de heris ou de personagens religiosos

    (hagiografias), a prtica biografemtica voltase para aquilo que mais comum,

    para o potente que se entranha no ordinrio, para as imprecises do rosto, uma

    espcie de etnologia do minsculo, um inventrio de banalidades (OLIVEIRA,

    2010, p.9). Atravs da anlise de Vda Mca (2004), do escritor Pierre

    Michon, Viart (2004) evidencia o desvio do olhar contemporneo para aquilo que

    nfimo e o insignificante. Segundo o autor, a prpria biografia passou a se tornar

    minscula, provando o xito literrio do biografema barthesiano (VIART, 2002a,

    p.70).

    ______

    29

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    30/180

    .

    Ao se pensar o biogrfico a partir de sua fora minoritria, a prpria

    concepo de biografia passa a assumir um sentido outro. Falar em biografia ,antes de tudo, apontar para a fora que a prpria noo possui, em seus dois

    principais componentes: a escrita e a vida. Tomar partido da biografia enquanto

    criao (e no somente como representao de um real j dado por um passado

    vivido) colocarse diante de uma poltica que se mostra contrria a todo uso

    biogrfico que sufoca a vida, de toda estratgia ou metodologia thanatogrfica.

    Neste sentido, outras noes caras s cincias humanas e da sade, como anamnese

    e histrias de vida, podem ser repensadas, aproximandose daquilo que Marre

    (1991, p.88) chama de um outro futuro para o mtodo biogrfico propriamentedito. O autor questiona o uso da Histria de Vida como uma simples tcnica de

    investigao e ilustrao emprica, afastandoa da concepo de que seja apenas um

    mtodo realista de recolher informaes exemplares sobre a vida de algum ou de

    algum grupo especfico. O realismo biografemtico sustentase na idia de um real

    sempre em vias de ser feito, um real impossvel de ser aprisionado, pois no se

    trata de dizer o que foi, mas de avanar em direo ao que vem (VIART &

    VERCIER, 2006, p.50).

    Em L bgae, Pierre Bourdieu (1998) faz uma interessante

    crtica a certos procedimentos biogrficos. Segundo o autor, a concepo de

    Histria de Vida guarda consigo algumas importantes iluses produzidas na

    modernidade, e que ainda permeiam a lgica dos estudos nas Cincias Humanas.

    Uma grande iluso diz respeito vida como uma histria passvel de ser relatada,

    vida esta compreendida como um encaminhamento de acontecimentos lineares

    delimitado por dois pontos estanques: um comeo (estria) e um fim, este

    entendido como trmino e finalidade. Esta perspectiva acerca da vida aponta,

    segundo Bourdieu (1998), para aquilo que se entende como cronologia, para uma

    vida marcada por um tempo c e por uma lgica sustentada por uma verdade

    lgica discursiva. No lugar da fragmentao, buscase o sentido lgico, uma

    razoabilidade retrospectiva e prospectiva que permita olhar para trs e ver as

    causas, assim como olhar para frente e projetar de forma mais segura as aes

    vindouras. O problema apontado por Bourdieu diz respeito ao sufocamento da vida

    em seu devir, pois ao buscar incessantemente uma lgica coerente, uma constncia

    ______

    30

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    31/180

    de simesma, a vida mesmo que acaba se mostrando aprisionada, sufocada,

    distante da criao e de sua reinveno.

    Para que se possa escapar dessa dureza despertada pelo excesso de realismo

    biogrfico, necessrio, de acordo com Vilas Boas (2003, p.18), que as prticas semisturem, que haja uma exposio literatura e suas tcnicas narrativas. Nesse

    sentido, tratase de investir naquilo que Deleuze e Guattari (1992, p.260) anunciam,

    no cruzamento e entrelaamento dos planos e disciplinas, tomando como critrio

    as suas diferenas e especificidades, assim como (e principalmente), suas sombras e

    zonas de indistino. quando a Filosofia, a Literatura, a Crtica Literria, a

    Psicologia e a Educao importam, mais pela potncia de afeco gerada pelos seus

    cruzamentos, do que pelo estudo ou anlise dos seus campos especficos. Segundo

    Deleuze (2002, p.226), de grande interesse pedaggico jogar no interior de cadadisciplina as ressonncias entre estes nveis e domnios de exterioridade.

    No que tange ao campo educacional, ao aproximar as prticas biogrficas

    pedaggicas das problematizaes promovidas pela crtica literria

    contempornea, abrese um campo problemtico bastante interessante. De acordo

    com Viart & Vercier (2006, p.27), a literatura contempornea, jogando com as

    formas e modelos tradicionais, acaba turvando o quadro do gnero (auto)biogrfico

    propriamente dito, deslocando os lugares seguros que a crtica estruturalista dos

    anos 70 estabeleceu. Ao buscar novas possibilidades de expresso para a escritura, a

    prpria concepo de sujeito acaba sendo colocada em xeque. Conceitos como

    autofico e fico biogrfica destituem o lugar legtimo dos escritos

    biogrficos, colocando as prticas biogrficas ao lado da fabulao. Neste sentido,

    cabe aos escritores (e no somente aos tericos ou cientistas humanos), a tarefa

    de criar outras possibilidades, de produzir variaes autobiogrficas, como bem

    apontam Viart & Vercier (2006, p.29). Ao invs de sustentar suas criaes literrias

    sob o terreno das terminologias tradicionais, a escritura contempornea opta pela

    inveno: Serge Doubrovsky fala em autofico, Claude LouisCombet cria sua

    automitobiografia, Derrida fala em otobiografia, Michel Butor recria o

    curriculum vitae, Alain RobbeGrillet apia seus escritos no que chama de novela

    autobiogrfica estes so apenas alguns exemplos daquilo que a literatura capaz

    de oferecer aos estudos (auto)biogrficos; os biografemas de Barthes poderiam,

    tambm, constar nesta lista que, de acordo com Viart & Vercier (2006, p.29), ser

    sempre aberta. O sujeito autntico e verdico d lugar a escritos e prticas

    ______

    31

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    32/180

    biogrficas que se assentam em sua prpria incapacidade, na certeza de sua

    inautencidade e de seu empreendimento impossvel. A prpria crtica tambm se

    desloca o crtico, neste sentido, passa a ser um criador, um fabulador de

    realidade, um ator mesmo de escritura.

    ______

    32

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    33/180

    A A A A BA

    ______

    33

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    34/180

    Pouco a dizer acerca de Michel de Montaigne e Ren Descartes. Tantas

    foram as edies para Ea e Dc d Md, que uma anlise

    acerca dessas mesmas edies seria uma tarefa quase impossvel. Embora seja

    mais uma a editar duas obras clssicas, h de se considerar um ponto importante

    no que diz respeito coleo Bbeca d Peae V5: alm dos textos

    escritos pelos dois filsofos, os volumes sobre Montaigne e Descartes

    oferecem ao leitor o sabor de dois interessantes prefcios, assinados por AndrGide e Paul Valry, respectivamente. primeira vista nada de novidadeiro, pois a

    presena de prefcios recorrente em obras literrias. O que causa surpresa ao

    leitor que, em especial, estes dois prefcios esmagam a necessidade histrico

    biogrfica que costuma se impor aos escritos que apresentam obras clssicas.

    Embora se consiga, por exemplo, ter uma boa idia acerca da presena da vida de Descartes na produo de seu Dc, o que salta aos

    olhos do leitor a presena de seu prefaciador Paul Valry. No se trata de um

    egocentrismo por parte do escritor que prefacia . de um Valry egosta que o prefcio fala, naquilo que ele mesmo chama

    de Me Decae. Um egosmo intrnseco a toda escrita que faz uso do mundo

    segundo os problemas por ela criados. Pouco a explicar do mundo, nenhuma

    verdade deste a ser descoberta. A escrita toma o mundo para si com a inocncia de

    quem sabe que nada deve a este mundo por cometer tamanha

    apropriao. Inocente abandono daquilo que fora exigido de tal escrita:

    a devoluo de um mundo mais compreensvel . Valry abraa Descartes e o

    efeito deste abrao gatuno o que se pode ler no prefcio do livro. Tratase de uma

    outra sada para a empresa cartesiana: a de avaliar o filsofo por sua linguagem,

    nas claridades particulares de seu pensamento e no modo como se apresenta

    expectativa daquele que o l. Ou como Valry mesmo escreve, a e a

    5Os volumes acerca de Montaigne e Descartes fazem parte da referida coleo, organizada em

    1960 pela Martins Editora.

    ______

    34

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    35/180

    eca caeaa e e a acea e a , e a ccee e e

    ecbe, a de ee e fada , ee.Ao final de sua

    leitura, o leitor no ter um retrato aproximado de ,

    mas to somente sua ade de aaece aos olhos do leitor Valry.

    ***

    E a vontade de Valry em aparecer aos olhos do leitor.

    ***

    Uma epstola traioeira essa histria de prefcios ou apresentaes de

    outros. Epstola porque se dirige a um outro em sua transitividade . Traioeira porque sempre envolve um ,

    no c eea que a expresso corriqueira nos sugere. Mas para que se possa

    necessrio um certo grau de afinidade. O

    traioeiro ser aquele que inocula o veneno naquilo que anteriormente se

    mostrava apenas como consanginidade. Ou seja, para trair necessria a crena numa certa fidelidade.

    ***

    Dizse que todo verboso traioeiro possui virtudes ciceronianas. Uma

    eloqncia capaz de apaziguar at mesmo os ouvidos mais adversativos, tornando

    os igualmente cmplices quando na virada das costas. O grande ato traioeiro de

    falar s costas introduz um quando tudo parecia girar em torno do . Um que sempre exterior, uma profana consanginidade que se

    coloca da consanginidade primeira. Ea

    a faa de c.O do prefcio o corpo que envolve o daquele que

    prefacia e o daquele que se apresenta como leitor. Um que exclui o eu

    do escritor e que faz do falar s costas um ato de irmandade coletiva. De

    todo modo, uma traiocriadora porque se pe a constituir um outro

    corpo.

    ______

    35

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    36/180

    ***

    Ao arquitetar novos enredos e estabelecer outros graus de parentesco,

    o corpo ser um traidor.

    Referindose ao Dde Andr Gide, Roland Barthes escreve:

    ce eg, e ad Gde faa d 6. Em se

    tratando de dirios, dos escritos ditos , h de se tolerar estas

    posies egostas. Porm, quando se trata de uma escrita sobre a vida de outro, de

    uma biografia, esperado que o bigrafo assuma uma posio neutra . Ao tentar se excomungar de tal incmodo, Valry ensaia

    aquilo que se tomar, aqui, como um primeiro ponto acerca de uma biografia:

    cede aageaee c d ca da defaee

    aagada e efe d e, eeeae e ee de d e

    de abaee dea de eeece, a c a caa gegfca

    ab eeece7. Ao ceder calor, o bigrafo componente da

    biografia, no apenas o escrevente que comunica ao mundo a vida de um outro.

    ***

    Um corpo rouba calor.

    ***

    De qualquer forma, no ser Histria que a biografia oferecer seus

    prstimos. Embora porventura s vezes o faa, ela no se presta a recuperar antigas

    coordenadas. Ao oferecer calor carta geogrfica envelhecida, cria condies para

    que novas rotas possam ser tomadas. Lida com textos e signos

    apagados, mas no fazda sua leitura um purgatrio da Histria.

    6Barthes. Notas sobre Andr Gide e seu dirio. In:Inditos, vol.2 crtica, 2004.7 Paul Valery. Descartes. In: O pensamento vivo de Descartes, 1961.

    ______

    36

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    37/180

    ***

    Um ou dois pequenos esclarecimentos acerca da biografia: ao invs daquilo

    que se costuma chamar de , o biogrfico tomar para si a

    concepo deleuzeana de 8, ou seja, aquilo que garante acomposio de elementos aparentemente heterogneos e divergentes entre si. Em

    outra instncia, o projeto dito colocar sob suspeita todo e qualquer

    apego consciente memria historiogrfica, o que j o

    reveste de uma certa infidelidade. Tratase de uma prtica de escrita

    infiel quilo que Philippe Lejeune9chama de , ou seja,

    d ea eeeee c e ceaee dd b

    ge bgfc. contra a naturalizao dessa ordem cronolgica que uma biografia assenta sua artilharia, entendendo, por tal, a buscade uma certa justia.

    ***

    Assim Amar + Escrever = fazer justia queles que conhecemos e amamos,

    isto , testemunhar por eles 10.

    ***

    Escrevemos aqueles que amamos 11

    ****

    Mais do que uma substituio da leitura historiogrfica, a

    concepo de consistncia biogrfica parece acompanhar e fazer justia ao prprio

    movimento descontnuo e rtmico da vida. Rgca da12. Se por um lado a

    conscincia histrica tida como arquivo de vida , a consistncia biogrfica tornase a

    outra voz que se coloca sobre a ponta da lngua e da memria. Tratase do ritmo

    disparatado que se volta contra a cadncia ordenada daquilo que ritmado. Se a

    conscincia histrica nutrida pela iluso de um retorno possvel ao absoluto do

    8 Deleuze e Guattari. Introduo: Rizoma e Plat 3: A geologia da moral. In:Mil Plats, vol.1, 1995.

    9Philippe Lejeune.Le pacte autobiographique,1996.10Barthes.A preparao do Romance I, 2005.11Sandra Corazza. Introduo ao mtodo biografemtico. In: Fonseca & Costa. Vidas do Fora:habitantes

    do silncio, 2010.12Andr Pietsch Lima.Ritmologia, 2006.

    ______

    37

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    38/180

    vivido , a consistncia biogrfica aquilo que, junto a este

    oceano de representaes, invade a cadeia mnemnica com os heterogneos que

    nela j pululavam, bastando apenas um componente organizador, um plano capazde tornlos possveis . A prtica da

    consistncia a trama deste plano, em favor dos matizes, das gradaes e das

    nuances, daquilo que Nietzsche chama de o e beefc da da 13. A prtica

    diz respeito quilo que no se d pelo simples fato de se retornar, mas no ato

    mesmo do retorno . A consistncia biogrfica a investida dos demnios que j andavam a

    sobrevoar, introduzindo a raridade naquilo que acostumouse a ser duro e grave

    g ae ea a a, a aa a ea

    ecea aa aeae d ae, e aa agaa a

    fa e cabe14.

    ***

    Um apego:

    cronologia,

    historiografia,

    narrativa,

    linearidade,

    memria,

    profundidade,

    causa,

    finalidade,

    ao contexto,

    inteno,

    influncia,

    profundidade,

    ao conjunto,

    ao explicvel,

    ao que fica.

    13Quando se jovem se venera ou se despreza indiscriminadamente, sem considerar o conceito de valor

    do matiz, que o melhor benefcio da vida. In: Nietzsche.Alm do bem e do mal, 31, 2002.14Nietzsche.Alm do Bem e do Mal, 275, 2002.

    ______

    38

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    39/180

    Um apego:

    s sries disjuntivas,

    ao fragmento,ao paradoxo,

    ao efeito,

    superfcie,

    ao inusitado,

    ao ahistrico,

    ao acontecimento,

    ao esquecimento,

    ao expressvel,ao que foge.

    Sabe, o bigrafo, que no se trata de escrever. Sabe que, assim

    como as grandes filosofias, uma biografia constitui novos mundos, na

    condio de darlhes uma certa consistncia. Tanto em vidas para as quais

    documentos mingam , quanto em

    vidas saturadas de testemunhos , o que h de ser

    registrado ter o tom dessa sismografia impossvel, de uma zona de

    distanciamento entre o que se julga e o que se tem . Em outras

    palavras, a vida biografada no puro reflexo de uma vida vivida, mas o vivido em ato presente.

    ***

    .

    O bigrafo suspeita da figura do espelho.

    ***

    maneira clssica, uma biografia lida como um texto espelho. Algo como

    um segundo texto, um espelhamento daquilo que teria sido a , ou

    ______

    39

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    40/180

    aquilo se toma por . Ao considerar essa relao como princpio, a leitura

    de uma biografia ser sempre segunda, sempre este que se

    coloca aps o . A biografia como espelho seria esse texto refletido

    do real, com a incumbncia de trazer todas as imperfeies e deslizes do textoprimeiro , oferecendo um olhar sobre aquilo que a cegueira

    inerente do momento passado no pode trazer. Ora, nesse caso h de se considerar

    um primeiro paradoxo, pois o que haver de ser refletido pelo espelho ser sempre

    da ordem do . A leitura de uma biografia seria este em ato, texto

    enquanto reflexo de um j vivido por outrem. Como efeito, uma biografia costuma

    transformar em aquilo que possivelmente fora somatrio de

    vidas provisrias e efmeras.

    ***

    Nas linhas de uma biografia o outrora dito

    como tempo do vivido .

    ***

    comum que se tome o espelho como o , a sentena que

    se afirma no exato momento do olhar, embora no se costume incluir nesse

    julgamento o prprio olhar daquele que olha. O orculoconselheiro, em

    ; o estranho unificador no ; ou, ainda,

    o metonmico olhar que aspira a um terceiro . De todo

    modo, ser o espelho esse , o que em no passa desse . Uma duplicao de superfcies

    oferecida aos olhos.

    ***

    o j vivido

    outro

    ***

    O bigrafo sabe que pouco acerca de espelhos, e com este pouco

    sabido costumase construir a verdade sobre si mesmo. Qe ge

    d e e, e e efed ee ae de e e

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    41/180

    enunciado>. Os olhos vem aquilo que na

    profundidade da superfcie espelhada se apresenta como superfcie do prprio

    corpo que v. Condenado invisibilidade, o rosto este estranho que tudo v e que

    no conhece a si prprio seno por algo que o espelhe.

    ______

    41

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    42/180

    A superfcie do rosto to estranha

    quanto a mucosa que reveste o corao.

    ______

    42

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    43/180

    Se procurarmos observar o espelho em si, nada descobriremos afinal, seno

    as coisas nele. Se ee aede a ca, ada acaa aee,

    ece ee.

    ***

    A arte de caminhar em duas direes faz do bigrafo o amante das

    superfcies por justamente no temer as profundidades. Nada h de mais secreto

    a ponto de tornar a superfcie mais ou menos verdadeira. Se o

    bigrafo desce caverna platnica, no ser para iluminar as verdades que se

    encontram acorrentadas ao obscurantismo. A caverna ser, entretanto, espelho

    para uma outra caverna e assim conseqentemente. O bigrafo lana a linha do

    tempo para trs porque entende melhor do que ningumdessas ca de ca15. Ele sabe que tudo aquilo que se refere a datas, perodos,

    fases, nomes e nmeros so como anzis

    para que outras coisas se deixem iscar.

    ***

    No h biografia por natureza, tampouco

    bigrafo. O bigrafo no busca o sentido intrnseco da vida a ser biografada

    porque sabe que biografar criar novos sentidos e vidas, e que ao jogar o canio

    possvel que ele mesmo seja pescado.

    ***

    O mar dos signos biogrficos no carrega paradoxos em si. No disperso e

    disparatado oceano semitico, o bigrafo lida com aquilo que ao seu corpo

    impregnado e com aquilo que dele insiste em fugir. A vida a ser biografada tem o

    movimento disso que adere e que desgruda, disso que tem consistncia

    justamente porque num instante foi possvel de se viver .

    ***

    O bigrafo leitor que tambm biografa.

    15Nietzsche. Para Alm do Bem e do Mal, 1. In:Ecce Homo, 1995.

    ______

    43

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    44/180

    ***

    Barthes adverte para o uso ordinrio daquilo que os gneros

    literrios costumam chamar de biografia16, na qual se espera que a vida de um

    escritor oferea informaes sobrea sua obra. Isto que Barthes chamar de a biografia operada por

    linhas de causalidade entre os fatos verificados na vida do escritor e os episdios

    narrados em sua obra. Tratase da busca pelas causas da obra como autenticao

    da fbula literria, atravs da . Barthes v esse

    projeto ordinrio ser interrompido pois . Com Barthes,

    somos conduzidos seguinte setena: o mundo no haver de fornecer as chaves

    do livro pois ser o livro que abrir este mesmo mundo.

    ***

    Abrir um mundo abrir uma nova deciso

    possvel que a pergunta pela acabe levandonos a

    Plato. possvel que Scrates seja o exemplo mais notrio de uma

    vida retratada por outrem. Scrates platnico personagem de muitos dilogos e,

    como tal, suscetvel mistura de corpos, to temida em seus discursos na plis. O

    bigrafo toma Scrates platnico como um dos Scrates possveis,

    tambm oferecendo no seu banquete biogrfico o riso aristofnico e os

    memorveis ditos e feitos de Xenofonte. Nas nuvens ou no mercado, Scrates

    que as linhas biogrficas havero de fabular. Alis, ser

    Olimpiodoro que apresentar o desejo

    de Plato em se tornar um grande dramaturgo. Oa, ae a edade e a

    Scae?Mesmo L.F.Stone, na busca de seu , deixarse trair

    por seu prprio projeto. A frieza historiogrfica do projeto cede lugar paixo do

    escritor. E no toa que nas listas dos livros socrticos O gae de Scae17esteja entre os mais lidos.

    16 Barthes. Vidas Paralelas. In:Inditos, vol.2 crtica, 2004.17

    L.F.Stone. O julgamento de Scrates, 2005.

    ______

    44

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    45/180

    ***

    TBULA RASA: A biografia no trabalha sobre nada. Nenhuma idia de

    tbula rasa lhe estimada. Ela luta contra os fascnios despertadospela idia de nada, contra o brilho narcisista de uma que se diz vir

    .

    ALFAIATARIA: O bigrafo no veste terno novo porque

    sabe que prefervel que se vista com o tecido mais

    gasto ao invs de ostentar a patifaria de um brilho que no se sustenta aps a

    primeira secagem.

    CLICH: O bigrafo no ignora os

    clichs porque sabe que estes esto impregnados na matria, e da matria queele parte.

    MATERIALISTA: O bigrafo um amante da matria porque ela haver de ser

    molecularizada.

    ESPIRITISMO: O bigrafo acredita em espiritismo: ele biografa para os

    espritos livres que povoam a superfcie do texto. , ele sabe que

    dotado de um esprito coletivo, na medida em que no conta apenas com o seu

    prprio esprito, mas tambm com o esprito de seus amigos .

    RABUGENTO: O bigrafo resmunga sempre que algo afirma ter sado

    somente de si e que no h nada mais a ser escutado do que o seu

    prprio pequeno ritornelo existencial. Ele lana seus olhos a essa vida

    universal cujo pensamento vai alm de si mesmo.

    PARADOXAL: O bigrafo biografa com as sadas de si, mesmo que

    nunca saiam de si.

    ASSUSTADO: O bigrafo se assusta com o fato de ser um

    inventor.

    ***

    Como pesquisador, o bigrafo sabe que est sendo lido ou o ser em algum

    momento. Sabe que a polifonia biogrfica que se desprende na sua prtica de

    escritura tem ouvidos que se colocaro a escutlo.

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    46/180

    Nietzsche> ele trata de estabelecer a poltica de sua bgafa18: nenhuma

    neutralidade da escrita, ao ser a lana que escolhe os

    ouvidos certos para ouvila e exclui aqueles que nada fariam com aquilo que

    escutassem. possvel que estes ltimos sejam os grandes ecompetentes cacarejadores a servio da humanidade, e que os primeiros pouco

    contribuam para aes futuras, pois havero de escutar a partir de suas

    paixes presentes.

    ***

    a prtica de uma biografia tambm uma poltica de abalo

    a duas grandes fices: a de que a escrita biogrfica apenas expe uma

    determinada realidade investigada, fazendo da escrita a operao de se ofereceruma forma final acerca de uma vida; e a de que o da

    biografia exterior ao Texto, e que por uma contingncia de pesquisa, ele

    se pe a definitivamente ser escrito. Em ambas as fices h de se constatar o

    princpio de exterritorialidade, ou seja, a fico do escritor enquanto personagem

    exterior dita vida do outro sendo escrita.

    ***

    Esta vida no era.

    No h vida pregressa vida posta pela escritura.

    ***

    Tae aba ca aea e caa faa de eca

    e a aaa de e Pa ca a e f ad. Ora, ser com

    estes farrapos entranhados por significantes despticos que o trabalho de um

    bigrafo comea.

    Leitores hereditrios encontram alvio quando o cdigo gentico

    decifrado, pois sabero falar sobre suas descobertas e constataes.

    Mas nada querero saber acerca dos desvios, das infimidades

    18 Derrida. Otobiographies: lenseignement de Nietzsche e la politique du nom propre, 1984.

    ______

    46

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    47/180

    de uma fagulha. O mximo a que conseguiro chegar a suspeita dos porqus da

    fagulha, mas de fagulhas felizmente ficaro privados.

    ***Na infimidade de uma fagulha e na enfermidade dos seus porqus

    .

    ***

    Tudo aquilo que vive, movese;

    esta atividade no responde a fins precisos

    19.

    19 In: Nietzsche.Escritos sobre Histria, 2005.

    ______

    47

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    48/180

    A A A BA

    ______

    48

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    49/180

    Mesmo encoberto pela euforia da escrita consumada , h de se constatar um certo grau de melancolia ou tristeza frente

    verdade da biografada. Tade dea! , ou

    sua decorrncia aos olhos do leitor: E ea ea a da?Ao colocar a

    no seu eixo, restaria uma indigesta amargura impregnada de paixes

    tristes, nisso sobre o qual no haveria mais nada a ser feito.

    ***Remexer montes de coisas em todas as direes

    20.

    ***

    preciso ser suficientemente organizado

    para produzir algum tipo de espalhamento.

    ***

    A literatura costuma no dar muita ateno a um aspecto fundamental no

    que diz respeito ao tratamento da linguagem: tratase daquilo que Barthes chama

    de gea21. Inclui nessa nobreza de escritores Sade, Fourier e Loiola. certo

    que essa classe de inventores no funda uma lngua de cunho comunicacional.

    Nietzsche dir que este tipo de servio se presta somente ao uso mediano, daquilo

    que persegue to somente a mediocridade da experincia. Ora, preciso no ceder

    aos anseios do hlito das lnguas ordinrias. Para isso, os logotetas tratam de

    retalhar e dilacerar o comum linguageiro. O comunicvel o menos interessante

    ou, antes, comunicase a disperso, o que se dispersa por entre fagulhas e farrapos.

    Mas o retalhar sempre seguido de um novo agrupamento, de uma nova

    combinatria. N ee ga e ee g ddd fe de

    agad a a cbaa . Sim, os fundadores de novas

    20Barthes. Sollers Escritor, 1982.21Barthes. Prefcio de Sade, Fourier e Loiola, 1979.

    ______

    49

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    50/180

    lnguas produzem novas regras de conjunto, que se assentam no ordinriocaduco

    lingstico, embora no sucumbam s suas armadilhas. Fazem do ordinrio da

    linguagem a cama dura de campanha, boa para um breve descanso e

    suficientemente dura para que ningum pense em permanecer deitado nela pormuito tempo.

    ***

    Na ausncia de uma lngua

    forjla.

    ***Em sua invencionice de lnguas, os logotetas ainda precisam operar com

    um ltimo componente: a teatralizao.N e aa de deca a eeea

    a de a a gage. A lngua nova pouco comunica se o outro

    no e c. Barthes fala de um na escrita

    sadeana, algo como injetar fragmentos de fala sadeana na fala cotidiana.

    Entretanto, viver com o escritor no imitlo . Mmese

    alguma. Os logotetas estipulam o principio da entre o escrito e

    aquilo que transmigra para a cotidianidade do leitor.

    ***

    O princpio da coexistncia o que torna possvel biografar sem o rubor

    daquilo que apequena a vida. Vae aa a da d ec bed

    age ege . O escritor que retorna no o

    identificado pelas grandes instituies histricas e literrias, tampouco o heri

    sacro corriqueiramente traado por aquilo que os cdigos literrios chamam de

    biografia. A este tipo de biografia, o retorno sempre do estatuto do sujeito. No

    h espao para coexistncia quando se opera sob a lente do heri ou

    biogrfico. O regime passa a ser desptico , numa

    grafia que consegue, no mximo, reforar os contornos.

    ______

    50

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    51/180

    ***

    Quando a biografia vira thanatografia.

    ***O retorno amigvel da coexistncia inaugura a presena do amigo

    nietzschiano e

    devolve o corpo ao texto.

    ***

    Dme

    um

    outro

    ***

    O e e ?. H de se pensar em duas

    classes de biografia segundo seu componente gentico: uma primeira, da ordem

    das desprezadoras do corpo ; e

    uma outra, da ordem das afirmadoras do corpo .

    ***

    O e e ? a prova de fogo para qualquer escrito biogrfico, na

    medida em que instala um novo componente: a vontade. A pergunta primeira

    ento deslocada para e e ?Desta, duas qualidades do querer: a vontade

    de verdade e a vontade de potncia. Ou : Qe, afa, e a

    ega?Ua ca a edade?

    ***

    Acerca da verdade,

    ningum at agora foi suficientemente verdadeiro.

    ______

    51

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    52/180

    ***

    Sejamos justos: estamos desde j liquidados

    postura de um bom bigrafo diante de sua grande biografia.

    ***

    o que se quer uma vida verdica

    sustentada por um homem verdico . possvel que se

    acrescente a esta vida o ada seriedade, sob o rtulo de . S a, eada e ae o que diz a

    mquina rangente que se proclama como a Verdadeira Biografia.

    ***

    U d edc.

    possvel que sob esta absoluta vontade de verdade se oculte uma outra vontade

    ainda mais corpulenta ou ainda mais . O bigrafo ento ruboriza quando suspeita

    que algo no anda bem. provvel que algo no bem e bem provvel

    que ele se volte contra o rudo produzido. ,

    pergunta este bigrafo de ouvidos entupidos.

    ***

    Acontece que no querer enganar a si mesmotraz consigo um

    outro problema: a moralidade . O problema

    parece surgir quando o verdadeiro bigrafo tornase vigilante das boas ou ms

    condutas. Prestarse ele a enganar? . Caso sim, ser

    tomado por um rubor. Caso no, entrar no estatuto dos bigrafos.

    ***

    O perjrio do Eu o pecado original de toda biografia do sim.

    ***

    O bigrafo no querer ser o grande falsrio pois, assim

    sendo, quem ir assegurar a veracidade da biografia? O

    ______

    52

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    53/180

    projeto da verdadeira biografia trepida sempre que se levanta suspeita sobre o

    . Oa, se eu sou fruto de uma falsificao, o que se dir do?

    ***

    A lgica de uma biografia :

    1. querse um mundo verdadeiro;

    2. preciso sustentar a integridade da verdade;

    3. uma verdade ntegra uma verdade imutvel;

    4. verdades mutveis no so ntegras;

    5. aquilo que no muda traz consigo a verdade absoluta;

    6. a verdade absoluta de uma coisa a sua essncia;7. s a essncia confivel;

    7. aquilo que muda no confivel;

    9. a vida mudana contnua;

    10. a vida se d no mundo;

    11. o mundo no confivel;

    12. a vida no confivel;

    13. um outro mundo preciso;

    14. que se acabe com a vida.

    ***

    Ao querer um extramundo onde as permanncias sobrevivam,

    a vontade do bigrafo querer o fim da vida. Se a vida

    movimento e criao, afirmar o imutvel afirmar a morte deste mesmo mundo.

    a vontade de verdade oculta uma outra : a

    vontade de morte.

    ***

    Na medida em que exigem de si o estatuto de uma vida confivel

    as biografias majoritrias so grandes thanatografias.

    ______

    53

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    54/180

    AAAA

    A AA A A

    ______

    54

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    55/180

    Quem no morre muitas vezesantes de morrer,

    est arruinado quando morre.

    ______

    55

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    56/180

    A histria dos historiadores : permitir reconhecer um

    Todo, e dar a todos os disparates passados a forma de reconciliao . A linha restituir o suposto corpo perdido do biografado,

    oferecendoo ao leitor em doses homeopticas . Uma homeopatia

    que permite ao leitor curarse de sua maior doena: a ignorncia em relao ao

    corpo biografado.

    ***

    Thanatgrafos gostam destas pequenas dosagens.

    ***

    22.

    22, de Rembrandt .

    ______

    56

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    57/180

    ***

    O brilhantismo de Rembrandt no est na sua capacidade de retratar a leo

    a dissecao pblica do cadver. Em h algosurpreendentemente mais cortante que a lmina do instrumento que rasga a

    superfcie do brao morto. No olhar fixo do patologista um

    rudo se desprende. Tudo est posto, a ser explicado pelo espetculo visual

    oferecido pelo corpo dissecado. S a morte consumada desvendar o

    grande segredo da vida ag de dee c? . Apenas o murmrio

    silencioso dos dezesseis olhos abertos e o abrasivo murmrio provocado

    pelo par de olhos fechados.

    ***

    O propsito de uma autpsia responder s principais perguntas

    que se impem ao corpo morto.

    ***

    Fazem parte de uma autpsia os seguintes procedimentos: 1. anlise externa

    do cadver; 2. exame cdos rgos internos a partir da abertura das cavidades;

    3. retirada dos rgos das cavidades, do pescoo e do retroperitnio para avaliao

    macro e microscpica; 4. lavagem e fechamento do corpo; 5. relatrio ; 6. atestado de bito.

    ***

    Carlos Camejo foi declarado morto aps um acidente de trnsito,

    sendo levado para a morgue, onde os peritos comearam a autpsia. Logo na

    primeira inciso , perceberam que o

    mesmo sangrava abundantemente e que aquilo no era movimento esperado de

    um cadver. Os peritos trataram de fechar o corte , de modo a

    evitar maiores constrangimentos ao mortovivo.

    ______

    57

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    58/180

    ***

    E acde e a d ea ee relata Camejo para a imprensa,

    com a ordem de autpsia em suas mos.

    ***

    Thanatgrafos escrevem em morgues

    porque confiam no trabalho dos anestesistas.

    ***

    Em geral, uma autpsia realizada em casos de morte violenta

    ou por desconhecidas causas. Todas as mortes com suspeita de envenenamento

    tm indicao para que se realize uma autpsia .

    ***

    Uma vez limpo e fechado por suturas, o corpo morto devolvido aos

    responsveis, em condies para realizao de um funeral adequado. Frente ao

    cadver vestido, ningum dir que o mesmo sofreu uma autpsia, evitando

    maiores constrangimentos famlia.

    ***

    olhar para o morto como um quebracabea.

    Seu trabalho resolver o enigma, dandolhe uma causa .

    ***

    : Me e a e ec, a

    c a e abaad. O historiador s existe para reconhecer um calor

    do corpo sobre o qual se debrua. Seu e: ser um magistrado civil

    encarregado de administrar a fortuna dos mortos23. Ainda, tratase de estabelecer a

    grande fraternidade dos mortos, oferecendolhes uma coerncia a partir da matria bruta e dispersa que lhe foi possvel acessar com o

    23Barthes. Michelet, 1991.

    ______

    58

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    59/180

    encontro morturio. O grande delrio da histria esta linha congruente a ser

    traada, esta grande voz que assumiria o coro disperso que a vida.

    ***Quem ouve uma s voz no percebe o coro>.

    24

    ***

    O bigrafo traa uma linha a quatro mos , enveredando pelos murmrios do Texto. No esquecendo

    que um texto sempre parte. Ele nunca chega.

    ***

    Thanatogrfica no somente a morte do autor, a eliminao do , ou o

    esmagamento do sujeito. Tratase da morte daquele que sempre se pe a partir e

    que acredita ter definitivamente chegado. Barthes diz que o

    definitivo, , e infinitamente aberto 25.

    ***

    Aberto

    nele se l.

    ***

    para onde o termo grego aaaponta

    . O vocbulo foi primeiramente empregado

    a partir do trabalho executado pelo legista que, pondose minuciosamente a

    examinar o cadver, estaria examinando de forma meticulosa a si

    mesmo.

    24Donald Schler.Herclito e seu curso, 2001.25Barthes. Sollers Escritor, 1982.

    ______

    59

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    60/180

    ***

    O propsito de uma autpsia

    responder s perguntas dos vivos.

    ***

    A promessa histrica sustentada pelo Grande Olho capaz de dissecar a

    suposta trilha deixada pelo real. A sua crena: em tudo haveria um rastro ou

    espalhamento de vestgios prontos para serem compilados e devidamente

    ordenados pelo sisudo par de olhos do esprito historiogrfico. Para este, a

    eadade ea cda eee, a ea a

    eca ccea, eead aea aa ee decbe26. To logo

    descobertos e agrupados, o grande olhar deve tornarse paulatinamentedesinteressado, cedendo lugar a uma linguagem capaz de comunicar a verdade

    arduamente conquistada. Do mundo j visto, restar a grosseira coleo de

    enunciados mdios tambm chamada de . Uma crena

    incondicional nisso que a linguagem produz. O colecionador constri seu objeto

    mdio e os espectadores assumem a crena dessa verdade. Uma certa irmandade

    nesse compsito : da viso com a grandeza de uma

    lngua capaz.

    ***

    Grandes olhos se perdem diante das pequenas lnguas

    e dos ouvidos curtos.

    ***

    A biografia v com os prprios olhos sabendo

    que estes esto j dispersos. No os dezoito olhos da L de Aaa d D.

    T,mas o seu rudo. Da autpsia, to somente o , aquilo que se dispersa a

    linguagem e que faz da lngua o deserto das verdades a serem vistas. O como este

    rudo do olhar, aquilo que inviabiliza o pressuposto de uma viso do

    mundo, e que instaura uma outra poltica acerca do que se entende por clnica. Ao

    invs da captura por uma linha estendida na relao pureza X silncio

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    61/180

    eaa gad a a eca eca>27, a clnica daquilo que

    incessantemente foge. Da poltica das linhas estendidas ao que se distende em

    vrias direes. Poltica da distenso, dedee clnico. No mais o trajeto entre a

    coisa e seu sentido, mas as flutuaes deambulatrias operadas pela prpriaproduo do sentido. Da linearidade obsessiva de Descartes aoa

    desviante de seu prprio mtodo. Ao querer lanar um olhar sobre todas as coisas,

    o seu cg eg apaixonadamente irrompido por um , como num

    golpe de fora. Enquanto a histeria do esprito histrico busca atrair para si o olhar

    do mundo , o de

    uma clnica esquizolgica28instaura o regime cartesiano do signo fugidio,

    em colees sempre distendidas por este apaixonado.

    ***

    Em todo estudo thanatogrfico, o que h a insistente

    permanncia do mundo. Mesmo nos processos bruscos ou violentos,

    buscase o componente mnimo originrio que se mantm intacto e a partir do

    qual se instaurou todo o movimento. A morte implicada numa thanatografia no

    a grafia das mortes que se amarram a qualquer teia de escrituras, mas

    a prpria concepo de imortalidade que se inscreve na alma dos corpos. Ou seja,

    o corpo, uma vez biografado, tornase imortal. O thanatgrafo busca as palavras

    como se estas preservassem seu sentido e como se as idias que

    as amarram sustentassem sua lgica .

    ***

    A e a e a.

    As ltimas palavras do matrimnio thanatolgico.

    ***

    Recado de Nietzsche ao circunspecto thanatgrafo: d da ca

    da & eca cece ae, a, aa, dface e

    aca.Thanatografias sonham com este na medida que o colocam como

    sentena de morte e condio de permanncia da o gozo quando se acredita ter

    27Foucault. O nascimento da clnica,2004.28Felipe Ribeiro.Esquizopathologos: musicae.

    ______

    61

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    62/180

    algo, pois este descoberto haver de ficar para a eternidade. J

    decb! grita ao mundo o thanatgrafo, tomado por uma alegria quase

    arquimediana. Como Arquimedes, nu pelas ruas, gritando aos passantes: eea!

    Entretanto, o bigrafo descobrir neste , o rumor de uma coletividadeconvulsiva, o murmrio daquilo que carregou consigo uma matilha e que se

    mostra sempre prestes a novas e indevidas apropriaes. Se haveria algo a ser

    descoberto, seria este plexo disparatado.

    ***

    O e e eca ce c

    de ae ca daae 29.

    ***

    Trabalhar, o bigrafo, sobre esta matria que por desvio. Tal

    como artista que se depara com a madeira: as fugas criativas partem desta e no da

    cabea ou das mos sublimes do dito criador. O xilgrafo se entrega s fugas que

    seu material oferece, estas produz sua xilogravura. Da mesma forma haver

    sendas, em todo dito e escrito, para que se possa justamente desviarse das

    formas dadas pelo fatalismo histrico.

    ***

    Onde tudo parece tender ancoragem segura do ,

    o bigrafo dispara a buzina do .

    ***

    Tratase de reconhecer a essncia exata da

    coisa, sua possibilidade mais pura, sua identidade cuidadosamente envolvida

    sobre si mesma, sua forma imvel e anterior ao que externo, acidental e

    sucessivo. Comprometerse a encerrar todas as mscaras para desvelar, no fim,

    uma identidade primeira. A condio: um fiel apego verdade. O objetivo: chegar

    s profundezas da origem para buscar o que existia. A concluso: ento era

    isso mesmo ...

    29Foucault.ietzsche, La genealogia e la historia, 1988.

    ______

    62

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    63/180

    ***

    A origem est ao lado das nuvens e a quilmetros do corpo.

    Uma questo pertinente: de e c e e faad? O corpo

    nietzschiano : efce de c d acece, ga de

    dca d 30. Ainda que a linguagem o marque e as idias o dissolvam,

    tratase de um volume em perptuo desmoronamento. De toda forma, o corpo no

    teria outras leis que no as de sua fisiologia, da o trabalho sintomatolgico e

    clnico daquele que se presta a biograflo. Cabe ao sintomalogista mostrar este corpo impregnado de histria, esse que

    oferece to somente seus pedaos. Cuidadoso estar aquele que se presta a

    reconstitulo, que pacientemente procura por fragmentos encobertos, que v em

    cada migalha de documento, em cada nota, em cada escrito, relato, em cada dito

    visto, a possibilidade de completar seu servio. Ora, dir Nietzsche que

    sua obsessiva fome por encontrar marcas no corpo o impede de ver o

    corpo em sua plenitude, ou seja, como o lugar de excelncia no enfrentamento de

    novas foras.

    ***

    Biografar escrever de corpo todo

    para tudo o que o atravessa.

    ***

    Os sintomas de um corpo impregnado de histria aponta para um outro

    diagnstico da modernidade: a senilidade. Nietzsche tratar este corpo como o

    velho operrio, mquina rangente que desaprendeu a rir, pondose apenas a

    pestanejar. Hae de e a edade ecdda e a da ed aa ea

    da eeecda pensa o pesado esprito. Ser preciso, pois, mais uma vez

    retornar, mesmo que seja em nome de uma esterilidade e de uma

    assepsia quase hospitalar. Eduardo Pellejero escreve que se trata de uma

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    64/180

    turstica com o passado>31, de um fascnio pelas possibilidades que este passado

    pode reservar, tornando o presente o fruto mximo da

    debilidade.

    ***

    Thanatgrafosturistas

    sempre retornam ao lar das suas certezas.

    ***

    Tendo como critrio , foras estas

    provindas de rapinas, desvios e apropriaes indevidas, o bigrafo lida com um

    corpo sempre da ordem do mltiplo. O corpo biografado ser o estado de forasresultante dos encontros e foraes maquinadas em sua pesquisa. Tratase de

    misturas de corpos, na relao entre o corpo com o c , ou o que se trava na fronteira entre os dois: lutas, rapinas e pactos

    diablicos. Disto resulta sua poltica do abandono, na dissociao do

    soberano, fazendoo pulular no que sua constituio Deleuze e

    Guattari falam em corpo sem rgos. Nem o grande do bigrafo tampouco a

    figura sacra do a ser biografado.

    ***

    No caber histria a sano de toda a verdade, pois a verdade ser

    sempre a verdade de um estado de foras, de um corpo constitudo enquanto

    problema biogrfico.

    ***

    Contra aquilo que chamou de histria dos Historiadores, Nietzsche

    apresenta sua Wce He : 32

    1. no apoiarse em nenhuma constncia;

    2. introduzir o descontnuo no ser;

    3. dividir sentimentos, dramatizar instintos, multiplicar o corpo e o opor a si

    31Eduardo Pellejero. Nietzsche, Foucault, Deleuze: de la utilidad y los inconvenientes de los

    estudios histricos para la vida. In: Lins e Gadelha. ietzsche e Deleuze: o que pode o corpo,

    2002.32Foucault.ietzsche, la genealoga e la historia, 1988.

    ______

    64

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    65/180

    mesmo;

    4. no deixar nada sobre si que tenha a estabilidade tranqilizadora da vida;

    5. socavar aquilo sobre o que se quer fazer repousar;

    6. lembrar que o saber no feito para compreender mas para resolver;7. trabalhar num mundo como uma mirade de acontecimentos emaranhados, e

    no um fio de constncia estendido;

    8. dirigir a viso para o mais prximo para dele bruscamente apartarse,

    voltando a captlo histrica e fisiologicamente ;

    9. menos o veneno e mais a alquimia;

    10. no temer ter um saber perspectivo.

    ***O bigrafo da Wce e no ignora aquilo que pode tralo, o lugar

    de onde olha, o momento no qual est, o partido que toma, o inevitvel de sua

    paixo. Ele se coloca a um certo ngulo com o

    propsito deliberado de apreciar, de dizer sim ou no, de seguir as pegadas do

    veneno e de encontrar o melhor antdoto .

    ***

    o bigrafo pestaneja e ri.

    ***

    Um devir da histria naquelas vidas biografadas por Emerson e Plutarco33.

    Encontro de vidas nobres com o tratamento devido por parte dos bigrafos.

    Emerson no resgatam grandes homens de um

    mas tornam o prximo, atravs da grandeza afirmativa que perpassa o

    enunciado acerca dos seus biografados. Este o estado de

    foras produzido pelas flechas histricas das vidas biografadas, que s criam

    sentido quando efetivam sua potncia no cda escritura criado. Diria que no

    est em Emerson nem em suas vidas biografadas, tampouco em Plutarco. No se

    trata dos sujeitos ou personagens histricos, e tampouco dos seus respectivos

    33Trata-se, respectivamente, dos livros Os Super-Homens, deRalph Waldo Emerson e Vidas Paralelas, de

    Plutarco.

    ______

    65

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    66/180

    bigrafos. A fora que ativa a escritura o

    corpo criado e com a pluralidade de vidas que se colocam entre o

    Texto e seu leitor, fazendoos transbordar em seus lugares.

    ***

    O texto transbordante aquilo que cria condies para o Texto.

    ***

    Tae fceeee cfe. provvel que tenha que

    desenvolver uma aptido social centrada em abstraes gerais, como as

    idias de respeitabilidade e confiabilidade, arquitetando um aparelho que lhepermita no se asfixiar com o pesadume atmosfrico do panorama para si traado.

    ***

    O bigrafo passa o olho pela estante e suspeita das biografias confiveis.

    Ele no .

    Charles Feitosa, analisando o carter da obra de

    Nietzsche, apresenta Ecce Hcomo um estudo thanatogrfico34. Relaciona o

    termo aos signos de morte presentes no livro, no s a morte do pai ou da ptria

    alem, como do autor enquanto sujeito estvel e monoltico. O

    carter thanatogrfico estaria ligado a esta outra tipologia autobiogrfica, uma

    espcie de heterografia. De toda forma, uma grafia de morte marcada pela

    perturbao de um outro, de um que se coloca frente ao suposto

    sujeito que escreve sua prpria histria. Ecce H seria o livro das vrias

    assinaturas, o libreto de Dioniso, O Crucificado e de Nietzsche . No mais a morte da biografia

    enquanto cmera anecica

    34Charles Feitosa. Labirintos: corpo e memria nos textos autobiogrficos de Nietzsche. In: Lins

    e Gadelha.ietzsche e Deleuze: o que pode o corpo, p.2002.

    ______

    66

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    67/180

    mas as mortes operadas pelo prprio ato biogrfico.

    ***

    Do thanatgrafo ao thanatgrafo de um sempre outro edesviante. Um thanatogrfico.

    ***

    O sim biogrfico diz sim thanatografia

    .

    ***

    Desse mpeto na busca por biografias de grandes homens , ofenmeno de transformao dos biografados em grandes

    personalidades histricas. O acmulo de conhecimento acerca dos mesmos parece

    engessar o que antes era da ordem das possibilidades. Algumas vidas j nos

    chegam soterradas por todo um deserto erudito de biografias , so obrigadas a responder a uma mirade de perguntas

    impertinentes. o que Nietzsche j nos atentava acerca de Mozart e Beethoven.

    Algumas dezenas de anos se passaram e o entulho sobre estes continua a proliferar

    nas prateleiras das grandes e pequenas bibliotecas.

    ***

    Um conhecimento que aniquila a vida, aniquila a si mesmo.

    ***

    O que as thanatografias esquecem que h sempre ataques,

    exigncias, impulsos de vida e paixes, comprimidos em toda e qualquer

    generalizao. isto que faz com que mesmo a biografia mais asfixiante tenha

    suas pontas e desvios. Ao tomar para si a clausura destas biografias , ser trabalho de um outro bigrafo suspeitar destes desvios e

    inventar outros.

    ______

    67

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    68/180

    ***

    Desaprender nossas antinomias, eis nosso papel 35.

    ***A atmosfera de uma biografia se desdobra na dobragem de outras biografias

    e thanatografias. Instaurase no e da da, nunca como zona fronteiria entre

    vida e morte, mas como o fim da oposio entre be aa. E

    ee e e dee e de de e de ecee, alertanos Derrida36.

    35In: Pierre Chassard.ietzsche: Finalisme et Histoire, p.64.36

    Derrida.Otobiographies:lenseignement de Nietzsche e la politique du nom propre, 1984.

    ______

    68

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    69/180

    B A AAA

    ______

    69

  • 8/12/2019 Biografema como estratgia biogrfica

    70/180

    Scrates foi alvo do primeiro grande julgamento da histria. O pomo de

    discrdia do estado ateniense foi colocado em xeque na assemblia dos quinhentos

    heliastas, consumandose o exorcismo. Deste, poucos so os relatos. de Plato o

    escrito mais notrio, ainda que Xenofonte tambm o tenha relatado em sua

    Aga37. Culpado por negar os deuses reconhecidos da cidade, e por introduzir

    outros tantos, oaa eac38 levado ao tribunal, sendo posteriormente

    condenado. Teria sido possvel a aplicao de alguma pena mais amena, masScrates teria produzido o seu fim atravs da sentena de morte. Esta

    atitude de Scrates diante dos juzes levou L.S.Stone a debruar seus estudos sobre

    aquilo que relata como seu maior tormento: decb a e Pa

    eea, e a ca e de Aea39. Em Plato, Xenofonte e em L.S.Stone, a grafia acerca de Scrates gravita sobre aa.

    Escrituras thanatogrficas na medida em que procuram elucidar aquilo que fora

    silenciado pela morte do filsofo. bem certo que Scrates fora aconselhado pelo

    seu da a proferir seu discurso em viva voz, sem recurso a nenhum escrito

    prvio . Desse discurso , Plato trata de escrever, mais

    interessado pelo contedo dialtico do que pelo registro novelstico propriamente

    dito. A Apologia platnica toma para si a contradio provocada pelo discurso de

    seu mestre, fazendo do escrito um relato daquilo que

    ficara registrado em sua memria. Sbed a edade d fa talvez seja isso

    que Plato tenha buscado produzir. Ora, em sua Aga de Scae, Plato

    mesmo se omite enquanto personagem da cena. Em ltima instncia, fazendo uso

    de Francis Ponge, um Scae e 40parece ser o que se desprende do texto

    platnico. Um Scae e Papelo fato deste, Plato, no ter mencionado a si

    37Trata-se das duas verses deApologia de Scrates,porPlato e por Xenofonte.38Referncia satrica a Scrates por Aristfanes