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Saúde, Ética & Justiça. 2005;10(1/2):29-37. 29 Principais aspectos legais e constitucionais da clonagem reprodutiva humana Human reproductive cloning: main legal and constitutional aspects Nathan Glina1 1 Advogado. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. E- mail: [email protected] Endereço para correspondência: Alameda Ribeirão Preto, 438. Ap. 1501. Bela Vista. CEP 01331-000. São Paulo, SP. Glina N. Principais aspectos legais e constitucionais da clonagem reprodutiva humana. Saúde, Ética & Justiça. 2005;10(1/ 2):29-37. RESUMO: O objetivo do estudo é delinear os principais aspectos da clonagem humana reprodutiva, sob a ótica da Constituição Federal Brasileira de 1988. Para atingir esse objetivo, foram realizadas a pesquisa e análise relativa aos aspectos constitucionais e da legislação atual que podem ser aplicados à clonagem humana reprodutiva. DESCRITORES: Clonagem de organismos/legislação & jurisprudência. Clonagem de organismos/ética. Temas bioéticos. INTRODUÇÃO: ASPECTOS GERAIS DA CLONAGEM Clonar significa produzir uma cópia geneticamente idêntica de uma célula ou até mesmo de um indivíduo, ou seja, fabricar desde uma célula até um ser idêntico

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Saúde, Ética & Justiça. 2005;10(1/2):29-37.29Principais aspectos legais e constitucionaisda clonagem reprodutiva humanaHuman reproductive cloning: main legaland constitutional aspectsNathan Glina11 Advogado. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. E-mail:[email protected]ço para correspondência: Alameda Ribeirão Preto, 438. Ap. 1501. Bela Vista. CEP 01331-000. São Paulo, SP.Glina N. Principais aspectos legais e constitucionais da clonagem reprodutiva humana. Saúde, Ética & Justiça. 2005;10(1/2):29-37.RESUMO: O objetivo do estudo é delinear os principais aspectos da clonagem humana reprodutiva, sob a ótica daConstituição Federal Brasileira de 1988. Para atingir esse objetivo, foram realizadas a pesquisa e análise relativa aosaspectos constitucionais e da legislação atual que podem ser aplicados à clonagem humana reprodutiva.DESCRITORES: Clonagem de organismos/legislação & jurisprudência. Clonagem de organismos/ética. Temas bioéticos.INTRODUÇÃO: ASPECTOS GERAIS DACLONAGEMClonar significa produzir uma cópiageneticamente idêntica de uma célulaou até mesmo de um indivíduo, ouseja, fabricar desde uma célula até um ser idênticoem sua constituição genética, a outro do qual foioriginado. Com isso, utilizando-se determinadaconstituição genética, existe a possibilidade deoriginar-se infinitos novos seres iguais,geneticamente iguais, àquele de cuja estruturagenética foi copiada.Zatz1 define clones naturais como os gêmeosidênticos que se originam da divisão de um óvulofertilizado. Os clones que se formam naturalmente,ou seja, sem a intervenção bio-científica de outrosseres humanos, são naturais, enquanto aquelesoriginados da intervenção de médicos e cientistasseriam clones não naturais, os quais interessam parao presente estudo.

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A clonagem tem sido facilitada pelo avançoda humanidade no tocante ao conhecimento genéticodos seres vivos, em especial do ser humano, quevem ocorrendo há décadas, sendo certo que oprincipal estudo que vem sendo feito com relação àestrutura genética humana é o Projeto Genoma30 Saúde, Ética & Justiça, São Paulo. 2005;10(1/2):29-37.Glina N. Principais aspectos legais e constitucionais da clonagem reprodutiva humana.Humano, o qual, segundo Cárdia2 “é um consórciointernacional, composto pelos EUA, Europa e Japão,que tem por objetivo mapear todos os genes daespécie humana, com os seguintes objetivos na áreada saúde: a melhoria e simplificação dos métodosde diagnóstico de doenças genéticas, a otimizaçãodas terapêuticas destas doenças e a preservaçãode doenças multifatoriais”.Importante frisar-se que a clonagem diferencia seda técnica de modificação genética, a qual serefere à alteração dos genes de uma célula viva doorganismo. Pode ser de dois tipos: hereditária e não hereditária.A modificação genética não-hereditáriaé aquela que altera os genes de células que nãosejam óvulos e esperma. As alterações não hereditárias não são passadas para a descendência,pelo que apresentam uma maior aceitação social.A clonagem, no caso humano, divide-se emDuas espécies, que são a Clonagem Reprodutiva ea Clonagem Terapêutica. A Clonagem Terapêuticaé a clonagem de células, em especial as células troncototipotentes e também de blastocistos, ouainda células somáticas, que são aquelas células quetêm capacidade de se dividirem para formar osdiversos tecidos que compõe o indivíduo e efetuaras diversas tarefas necessárias à vida, através dochamado processo de divisão E diferenciação celular.A finalidade dessa espécie de clonagem é a suaAplicação em tratamentos de doenças ou problemas

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Relacionados a acidentes, com a vantagem de evitar sea rejeição do novo tecido, ou até órgão a serimplantado, vez que o doador seria o próprio receptor,não havendo, portanto incompatibilidade genética.Assim, seria possível reconstituir ou substituir órgãose tecidos em seres humanos.Por outro lado, a Clonagem Reprodutivaapresenta finalidade diversa da Terapêutica, sendoque, conforme Zatz1 sua proposta retirar o núcleode uma célula somática, que teoricamente poderiaser de qualquer tecido de uma criança ou adulto,inserir esse núcleo em um óvulo e implantá-lo emum útero (que funcionaria como uma barriga dealuguel). Se esse óvulo se desenvolver, teremos umnovo ser com as mesmas características físicas dacriança ou adulto de quem foi retirada a célulasomática. Seria como um gêmeo idêntico nascidoposteriormente. A finalidade dessa espécie declonagem é produzir um outro ser humano,geneticamente idêntico àquele que lhe deu origem,ou seja, fazer uma cópia geneticamente idêntica aodo ser humano cuja célula somática diferenciada foiutilizada.A clonagem humana reprodutiva pode serdefinida como a clonagem de seres humanos, ou depessoas, cuja finalidade é produzir um novo serhumano, idêntico geneticamente, àquele que ooriginou. A clonagem se baseia no fato de que cadacélula de um organismo contém todos oscromossomos com as informações codificadas parao indivíduo completo, ou seja, contém a identidadegenética daquele indivíduo. Conseqüentemente, oser humano clônico, também chamado clone, seriauma cópia de outro indivíduo, produzida com ainformação genética obtida por meio de uma únicacélula. Assim, se vários forem os clones serão elesetimologicamente indivíduos de mesma identidadegenética, porque provêm de um organismo único dereprodução.Em síntese, pode-se dizer que: “Clonagem é

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a criação de uma duplicata genética de umorganismo existente. A clonagem humana é iniciadacriando-se um embrião humano que carrega omesmo conjunto de genes de uma pessoa existente.Se esse embrião for usado para fins de pesquisa porexemplo, para gerar alguns tipos de células troncoo processo chama-se clonagem parapesquisa. Se, ao contrário, o embrião for implantadono útero de uma mulher e levado a termo paraproduzir uma criança, o processo chama-seclonagem reprodutiva”9.VISÃO INTERNACIONAL DA CLONAGEMREPRODUTIVA HUMANANo mundo, a clonagem humana reprodutivavem sendo estudada e tem sido utilizada em diversospaíses, ainda que de maneira extra-oficial, porémnão há um consenso internacional ou normasinternacionais de aceitação unânime a esse respeito,sendo que cada país tem ditado internamentenormas permissivas, restritivas ou proibitivas.No ano de 1998, ou seja, pouco tempo após aclonagem da ovelha Dolly, o Conselho Europeu paraa Convenção de Direitos Humanos e Dignidade naBiomedicina, fez um protocolo que proíbe “qualquerintervenção que procure criar um ser humanogeneticamente idêntico a outro ser humano, vivo oumorto”, o qual foi aberto para assinaturas em 12 dejaneiro de 1998 em Paris.Porém um ano antes, em 1997, a UNESCO,órgão vinculado à Organização das Nações Unidas,adotou uma Declaração sobre o Genoma Humano eDireitos Humanos, sem força jurídica vinculante, ouseja, não obrigatória, a qual assinada por 186nações, como uma “recomendação internacional”.Essa Declaração, em seu artigo 8 veda “práticascontrárias à dignidade humana, como a clonagemreprodutiva de seres humanos”.No dia 06 de novembro de 2003, aSaúde, Ética & Justiça, São Paulo. 2005;10(1/2):29-37. 31Glina N. Principais aspectos legais e constitucionais da clonagem reprodutiva humana.Organização das Nações Unidas (ONU) haviaagendado votar a respeito da proibição ou liberação

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da clonagem reprodutiva humana, porém tal votaçãofoi adiada e ainda não ocorreu. Entre as propostasde resoluções que seriam votadas, uma proibiria acriação de todo embrião clonado, não importa arazão, enquanto a outra permitiria apenas a criaçãode embriões para pesquisas médicas, proibindo afinalidade reprodutiva. Em ambas propostas aclonagem de animais seria permitida.Nesse sentido, o jornal Folha de São Paulodivulgou em matéria datada de 04 de novembro de2003, que na ONU: “Todos os Estados-membrosconcordam que a chamada clonagem reprodutiva,destinada a produzir uma criança com os mesmosgenes de seu pai genético único, deveria ser proibida.Para além disso, o consenso se desfaz. O campo jácomeçou a se dividir em dois partidos decididos einflexíveis. Um grupo, liderado por EUA e Costa Ricae composto por pelo menos outros 61 países,patrocinou uma resolução conclamando por umaconvenção que baniria todas as formas de clonagem.Ou seja, que proibiria a criação de todo embriãoclonado, não importa a razão. O segundo grupo,liderado pela Bélgica e integrado por pelo menos 22outras nações, defende uma contra-resolução queconduziria a uma convenção banindo a criação deembriões clonados para produzir outro ser humano,mas permitindo o uso de tais embriões para pesquisamédica”.Atualmente, a Assembléia Geral das NaçõesUnidas (ONU) discute a criação de um tratadoproibindo a clonagem de seres humanos, ou seja,vedando de forma absoluta a clonagem reprodutivahumana. A questão mais debatida é se deve ou nãoser permitida a clonagem terapêutica, ponto em quenão há um consenso entre os países-membros. AFrança, por exemplo, decidiu proibir a clonagemhumana, qualificando-a como crime contra a raçahumana e ainda suspendeu por cinco anos o veto àpesquisa sobre células-tronco extraídas de embriões.A decisão se motivou no seguinte parecer daComissão Consultiva Nacional de Ética (CNNE):“Parecer 54 - O grupo considera eticamenteinaceitável a criação de embriões a partir de dons

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de gametas em ordem à obtenção de célulasembrionárias, uma vez que os embriõessupranumerários representam uma fonte alternativadisponível. Seria prematuro criar embriões portransferência de células somáticas para resolvernecessidades de investigação sobre a terapia”.Já o Japão decidiu no dia 23 de junho de 2004permitir a clonagem de embriões humanos para finsde pesquisa, ou seja, para fins de estudos eclonagem terapêutica para salvar vidas, mas nãopara fins de clonagem reprodutiva. A ComunidadeEuropéia, por sua vez aprova pesquisas com célulasembrionárias de embriões com até 14 dias, vedando,entretanto, a reprodução humana por meio daclonagem.Assim, tem-se que Já o Japão decidiu no dia 23 de junho de 2004permitir a clonagem de embriões humanos para finsde pesquisa, ou seja, para fins de estudos eclonagem terapêutica para salvar vidas, mas nãopara fins de clonagem reprodutiva. A ComunidadeEuropéia, por sua vez aprova pesquisas com célulasembrionárias de embriões com até 14 dias, vedando,entretanto, a reprodução humana por meio daclonagem., porém não háuma prognose exata a respeito da evolução dessequadro, em nível de bioética, de pensamento elegislação internacional a esse respeito, até porqueo ritmo de transformações no plano prático, de vidae no plano teórico da humanidade está acelerado.As políticas nacionais em todo o mundo, a respeitoda clonagem reprodutiva humana, podem serconsultadas através do site: “http://www.glphr.org/genetic/genetic.htm”.A CLONAGEM REPRODUTIVA HUMANA NOBRASILNo Brasil a clonagem humana reprodutivaainda é um tema pouco explorado juridicamente ecientificamente, devido à pouca legislaçãoinfraconstitucional específica, isto porque não foramproduzidas leis que disciplinem, sequer a reproduçãohumana assistida, gênero em que se inclui aclonagem reprodutiva humana.

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A antiga Lei de Biossegurança Nacional (Leinº 8974/1995), dispunha de modo genérico a respeitodo uso das técnicas de engenharia genética e daliberação, no meio ambiente, de organismosgeneticamente modificados; além de preverprocedimentos técnicos, definia diversos tipos penaise ainda trazia diversos conceitos.Já a nova Lei de Biossegurança Nacional (Leinº 11.105, de 24 de março de 2005) autoriza arealização de pesquisas científicas com célulastroncoembrionárias e confere poder à ComissãoTécnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) paratratar da liberação do plantio e comercialização detransgênicos. Entre os seus diversos dispositivos,temos de destacar o seu artigo 3o, que conceituaclonagem como “processo de reproduçãoassexuada, produzida artificialmente, baseada emum único patrimônio genético, com ou sem utilizaçãode técnicas de engenharia genética”; além disso,conceitua a clonagem para fins reprodutivos como“clonagem com a finalidade de obtenção de umindivíduo”; clonagem terapêutica como sendo“clonagem com a finalidade de produção de célulastroncoembrionárias para utilização terapêutica”; ecélulas-tronco embrionárias como sendo “células deembrião que apresentam a capacidade de se32 Saúde, Ética & Justiça, São Paulo. 2005;10(1/2):29-37.Glina N. Principais aspectos legais e constitucionais da clonagem reprodutiva humana.transformar em células de qualquer tecido de umorganismo”.È imprescindível ressaltar que o artigo 6º domesmo diploma legal proíbe a “engenharia genéticaem célula germinal humana, zigoto humano eembrião humano”, bem como a clonagem humana.Além dos dispositivos supra mencionados, anova Lei de Biossegurança Nacional criou diversoscrimes especiais: “Art. 24. Utilizar embrião humanoem desacordo com o que dispõe o art. 5o desta Lei:Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.Art. 25. Praticar engenharia genética em célulagerminal humana, zigoto humano ou embriãohumano: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro)

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anos, e multa. Art. 26. Realizar clonagem humana:Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.Art. 27. Liberar ou descartar OGM no meio ambiente,em desacordo com as normas estabelecidas pelaCTNBio e pelos órgãos e entidades de registro efiscalização: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro)anos, e multa. § 1o (VETADO) § 2o Agrava-se a pena:I – de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), se resultardano à propriedade alheia; II – de 1/3 (um terço) atéa metade, se resultar dano ao meio ambiente; III –da metade até 2/3 (dois terços), se resultar lesãocorporal de natureza grave em outrem; IV – de 2/3(dois terços) até o dobro, se resultar a morte deoutrem. Art. 28. Utilizar, comercializar, registrar,patentear e licenciar tecnologias genéticas derestrição do uso: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5(cinco) anos, e multa. Art. 29. Produzir, armazenar,transportar, comercializar, importar ou exportar OGMou seus derivados, sem autorização ou emdesacordo com as normas estabelecidas pelaCTNBio e pelos órgãos e entidades de registro efiscalização: Pena – reclusão, de 1 (um) a 2 (dois)anos, e multa”.Assim, a clonagem reprodutiva humanapassou a ser considerada como crime peloOrdenamento Jurídico pátrio, com penas altas ediversas causas de aumento de pena,impossibilitando o acesso do agente aos benefíciosdas Leis nºs 9099/95 e 10.259/01, aplicáveis apenasaos crimes de menor potencial ofensivo (aqueles cujapena máxima é igual ou inferior a dois anos de penaprivativa de liberdade).Existem na área da clonagem vários Projetosde Lei em tramitação no Congresso Nacional, dosquais poderiam ser destacados: o PL 04319/98 (oqual proíbe a clonagem humana e o desenvolvimentode clones humanos em útero humano, ou de qualqueranimal, ou artificial), o PL 01499/99 (o qual proíbe aclonagem de células humanas com a finalidade demultiplicação de embriões), o PL 04060/98 (o qualproíbe a clonagem de seres humanos), o PL 0134/99 (o qual regulamenta o uso e a divulgação dogenoma humano), o PL 02811/97 (o qual proíbe

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experiências e clonagem de animais e sereshumanos), o PL 02822/97 (o qual define como açãocriminosa a utilização de qualquer técnica destinadaa reproduzir o mesmo biotipo humano), o PL 02838/97 (o qual veda a pesquisa e a realização deexperiências destinadas à clonagem de sereshumanos), o PL 02855/97 (o qual dispõe sobre autilização de técnicas de reprodução humanaassistida, incluindo a fecundação in vitro,transferência de pré-embriões, transferência intratubáriade gametas, a crio-conservação de embriõese a gestação por substituição), PL 02865/07 (o qualdispõe sobre pesquisas envolvendo seres humanose uso de técnicas de engenharia genética namodificação de organismos) e o PL 03638/93 (o qualinstitui normas para a utilização de técnicas dereprodução assistida, incluindo as questões relativasà fertilização in vitro, inseminação artificial e barrigade aluguel, nas formas de gestação de substituiçãoou doação temporária de útero).Contudo, a regulação da matéria atinente àclonagem reprodutiva humana vinha sendo feitaatravés dos órgãos do Poder Executivo, em especialpelas normas ditadas pelo Conselho Nacional deMedicina.Nota-se, portanto, que a vedação expressa nalegislação pátria específica, relativa à reproduçãohumana assistida, em especial a clonagem humanareprodutiva, constitui um entrave ao seu plenodesenvolvimento técnico-científico, bem como parasua difusão cultural e aplicação prática em âmbitonacional, isto porque a inviabiliadade jurídica acabapor inibir investimentos e estudos, bem como impedirsua aplicação prática, enquanto atividadeeconômica.ASPECTOS CONSTITUCIONAIS RELACIONADOSÀ CLONAGEM HUMANA REPRODUTIVAOs direitos humanos e garantias fundamentaistêm prevalência na Constituição Federal pátria e, deforma reflexiva, em todo o Ordenamento Jurídicopátrio, conforme disposto no art. 4º, inciso II daConstituição Federal, pelo que os clones, uma vezconsiderados seres humanos, deverão ter todos os

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seus direitos, respeitados, garantidos e promovidospelo Estado brasileiro. Desse modo, aplica-se àclonagem reprodutiva humana e aos clones todo odisposto na Constituição Federal, com relação aosdireitos e garantias ali fomentados, individuais,sociais e coletivos, bem como, pelo disposto no § 2ºdo art. 5º, da Constituição Federal, os direitos egarantias expressos em Tratados Internacionais dosSaúde, Ética & Justiça, São Paulo. 2005;10(1/2):29-37. 33Glina N. Principais aspectos legais e constitucionais da clonagem reprodutiva humana.quais a República Federativa do Brasil seja parte.A Constituição Federal, em seu art. 3º, incisoIV, prevê entre os objetivos fundamentais pátrios, apromoção do bem de todos, sem distinção oudiscriminação, de modo a que tanto os sereshumanos clônicos, quanto os seres humanosclonados estão englobados na proteção trazida poresse dispositivo, cuja redação é a seguinte:“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais daRepública Federativa do Brasil:(...)IV – promover o bem de todos, sempreconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade equaisquer outras formas de discriminação”.Ainda no texto constitucional há a previsão doPrincípio da Igualdade no art. 5º caput, daConstituição Federal, que prevê que “todos são iguaisperante a lei, sem distinção de qualquer natureza”,assegurando igualdade aos brasileiros e estrangeiros(residentes ou em trânsito - Vide RTJ 3/566 e STF –hábeas corpus nº 74.051-3 – Relator Ministro MarcoAurélio), dentro do território nacional.O ser clônico é um ser humano, tendo em vistaa definição de Singer3, da Universidade de Princeton,que diz que “Descrever um ser como “humano” éusar um termo que incorpora duas noções distintas:membro da espécie Homo sapiens, e ser umapessoa, no sentido de um ser racional eautoconsciente”.Nota-se que o ser clônico atende aos doisrequisitos para ser considerado ser humano, quaissejam ser membro da espécie Homo sapiens, até

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porque apresentará a mesma identidade genética ecaracterísticas que distinguem e individuam o serhumano, além de ter a capacidade de raciocinar eser autoconsciente.Assim, pela sistemática constitucional, em seconsiderando não haver distinção entre o ser humanoclônico e os demais seres humanos, ambos deverãoter os mesmos direitos, deveres e garantiasconstitucionais, pois não havendo desigualdade,deverá então haver idêntico tratamento pela MagnaCarta, bem como pelo restante do OrdenamentoJurídico.Segundo leciona Moraes4 a respeito do direitoà vida: “O início da mais preciosa garantia individualdeverá ser dado pelo biólogo, cabendo ao jurista,tão somente, dar-lhe o enquadramento legal, poisdo ponto de vista biológico a vida se inicia com afecundação do óvulo pelo espermatozóide,resultando um ovo ou zigoto. Assim a vida viável,portanto, começa com a nidação, quando se inicia agravidez. Conforme adverte o biólogo Botella Lluziá,o embrião ou feto representa um ser individualizado,com uma carga genética própria, que não seconfunde nem com a do pai, nem com a da mãe,sendo inexato afirmar que a vida do embrião ou dofeto está englobada pela vida da mãe. A constituição,é importante ressaltar, protege a vida de forma geral,inclusive uterina”.Assim sendo, os direitos e garantiasconstitucionais, previstos na Constituição Federal atodos os seres humanos no território pátrio, devemser assegurados ao clone (ser humano clônico)desde o momento em que for concebido com vida eainda, o direito constitucional à vida deverá serassegurado ao clone desde o momento em quehouver a formação do ovo ou zigoto, ou ainda doembrião, considerando-se que a vida intra-uterina éprotegida pela Constituição Federal.Frise-se que os direitos e garantiasconstitucionais dos seres humanos, inclusiveclônicos, em regra geral são vitalícios, ou seja,somente cessam com a morte, vez que oOrdenamento Jurídico pátrio não considera o ser

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humano morto um sujeito de direitos (Novo CódigoCivil, art. 6º). Desse modo, apenas com o óbitoatestado do ser clônico, deixará o mesmo de serpossuidor de direitos. A respeito dos critérios paraverificação da morte dos seres humanos adotadosno Brasil, tem-se sua aplicabilidade com relação aosseres clônicos também. Assim, aplica-se aos seresclônicos a Resolução do Conselho Federal deMedicina nº 1.480 de 8 de agosto de 1997, queestabelece os “Critérios para a Caracterização deMorte Encefálica” , em face da Lei n.º 9.434, de 4 defevereiro de 1997, a qual dispõe sobre a retirada deórgãos, tecidos e partes do corpo humano para finsde transplante e tratamento.Após a morte do ser clônico, aos seusdescendentes, ascendentes e colaterais, bem comocônjuge ou companheiro, deverão ser aplicadas asdisposições constitucionais no tocante aos seusdireitos à herança e sucessão, conforme dispostono art. 5º, incisos XXX e XXII, da ConstituiçãoFederal.Além do direito à vida e à igualdade o serhumano clônico terá todos os demais direitos egarantias constitucionais previstos na Carta Magna,considerando-se o princípio da igualdade, como, porexemplo, o direito à propriedade (art. 5º, inciso XXII,da Constituição Federal), o direito à cidadania (art.1º, inciso II, da Constituição Federal), o direito àsaúde (art. 196 da Constituição Federal) e o direito ànacionalidade (art. 12 da Constituição Federal).Na essência constitucional, como um dospilares da prevalência dos direitos humanos énecessário destacar o direito à dignidade da pessoahumana, que é um dos fundamentos formadores daRepública Federativa do Brasil, sendo um princípio34 Saúde, Ética & Justiça, São Paulo. 2005;10(1/2):29-37.Glina N. Principais aspectos legais e constitucionais da clonagem reprodutiva humana.de importância extrema, inclusive como regrainterpretativa e axiológica do Ordenamento Jurídicopátrio, encontrando-se expresso no art. 1º, inciso III,da Constituição Federal e ainda disposto como umdos objetivos fundamentais, conforme disposto no

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art. 3º, inciso IV, da Constituição Federal.Por este princípio, deve ser garantido a todosa dignidade enquanto seres humanos, devendo-seincluir nessa proteção e objetivo tanto os sereshumanos clonados, quanto os seres humanosclônicos, sendo um dever do Estado e um direitohumano a ambos de ter assegurado a dignidade nosseus tratamentos e em oportunidades, garantindoseo mínimo material necessário à vida saudável eaos seus desenvolvimentos físico e psíquico.A dignidade da pessoa humana encontra-seentre os princípios constitucionais, devendo serrespeitada, como uma das obrigações fundamentaisno Ordenamento Jurídico. Para Mello5: “Violar umprincípio é muito mais grave que transgredir umanorma. A desatenção ao princípio implica ofensa nãoapenas a um específico mandamento obrigatório,mas a todo sistema de comandos. É a mais graveforma de ilegalidade ou inconstitucionalidade,conforme o escalão do princípio atingido, porquerepresenta insurgência contra todo o sistema,subversão de seus valores fundamentais, contuméliairremissível a seu arcabouço lógico e corrosão desua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo,abatem-se as vigas que o sustém e aluí-se toda aestrutura neles esforçada”.Deve-se respeitar na clonagem reprodutivahumana, portanto, a dignidade tanto do ser humanoclonado, quanto do ser humano clônico, em todosos seus aspectos, antes, durante e após oprocedimento da clonagem, garantindo-se tratamentoadequado a ambos, bem como oportunidades e omínimo material necessário para que o clone umavida saudável, com plenidade de acesso a condiçõesque possibilitem os seus desenvolvimentos físico epsíquico, sendo inviável e inconcebível, no âmbitoconstitucional, que se proceda de modo contrário.Ainda, soma-se ao princípio da dignidade dapessoa humana o disposto no art. 5º, inciso III daConstituição Federal, cuja transcrição é “ninguémserá submetido a tortura, tratamento desumano oudegradante”, pelo que não poderão ser feitas“experiências” com os seres humanos clonados ou

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clônicos, os quais deverão ser tratados com respeitoe dignidade.Ao se fazer uma análise sistemática daConstituição Federal, considerando-se que olegislador constitucional proibiu a escravidão equalquer forma de propriedade sobre o ser humano,tem-se a impossibilidade de que o ser humanoclônico venha a ser considerado propriedade do serhumano clonado, da família do ser humano clonado,do laboratório, clínica médica ou instituição onde foiefetuado o procedimento de clonagem, ou ainda doEstado. Ao contrário, será o clone livre no mais amploaspecto de acepção de liberdade.Assim, o direito à liberdade do ser humanoclônico (art. 5º, “caput” e incisos IV, IX, XV, XLI, daConstituição Federal) está plenamente asseguradana Carta Magna e ainda vem corroborado peloprincípio da legalidade (art. 5º, inciso II daConstituição Federal), ao qual se unem a vedaçãoconstitucional à prisão perpétua (art. 5º, inciso XLVII,“b”, da Constituição Federal) e da pena de trabalhosforçados (art. 5º, inciso XLVII, “c”, da ConstituiçãoFederal).É importante ressaltar também que a todo serhumano deverá ser sempre dada a faculdade deescolher se deseja ou não ser clonado, sendo suavontade respeitada, não apenas pelo princípio dalegalidade, mas também porque vem crescendo aidéia de que a carga genética de cada ser humanointegra o seu patrimônio genético, o qual é único econstitui um direito à inexistência de outro ser com amesma identidade genética (nesse sentido, tem-sea Declaração Universal sobre o Genoma Humano eos Direitos Humanos). Se o ser humano tem o direitode ser o único a apresentar aquela identidadegenética, caso esse direito de ser único seja violadocontra sua vontade, caberá a ele utilizar-se de todosos meios juridicamente aceitáveis para impedir ouminorar seus prejuízos, ou seja, poderá utilizar osmecanismos preventivo, repressivo e indenizatório,admitidos pelo Ordenamento Jurídico pátrio.Com relação ao ser humano clônico, valedestacar também que ele será, portanto, uma

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pessoa, ou seja, um sujeito de direitos e deveres, oqual terá, pelo princípio da isonomia, os mesmosdireitos e deveres que os demais seres humanospossuem, na medida da igualdade que possuam.Assim, terá o ser humano clônico, por exemplo,de forma idêntica aos demais seres humanos, osmesmos deveres de prestar serviço militar, de votar(nos termos do art. 14 da Constituição Federal), derecolher os tributos devidos, entre outros.Neste momento, com relação ao princípio daisonomia aplicado aos direitos do ser humanoclônico, surge a questão de saber se o clone édesvinculado da família do ser humano clonado (doqual é cópia genética) ou se é equiparado a filho doser humano clonado, ou a filho dos pais do serhumano clonado, passando a integrar essa família.A conseqüência de considerar-se o clone comoparte integrante da família do ser humano do qual foiclonado, implica em garantir-lhe o acesso aos direitosSaúde, Ética & Justiça, São Paulo. 2005;10(1/2):29-37. 35Glina N. Principais aspectos legais e constitucionais da clonagem reprodutiva humana.preconizados nos artigos 227 e 229 (dever dos paisde assistir, criar e educar os filhos menores), ambosda Constituição Federal, os quais constituem deverda família, sendo que se ele for consideradodesvinculado da família, ficará sob a “tutela” doEstado, equiparando-se, enquanto criança ouadolescente, aos órfãos ou abandonados. E mais,se considerado integrante da família do ser humanoclonado, terá o clone os direitos sucessórios de formaplena, devendo ser a ele garantido o seu quinhão naherança que porventura venha a existir em algummomento, o que não ocorreria se ele não fosseconsiderado integrante da família, sendo que nãoseria herdeiro obrigatório, nos termos da ConstituiçãoFederal e legislação infraconstitucional. Se o clonenão for considerado integrante da família, portanto,não será possuidor desses direitos, estando maisdesprotegido.Em uma análise contemplativa da axiologiaconstitucional, poder-se-ia considerar o clone umindivíduo integrante da família do ser humano

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clonado (do qual é cópia genética), isto porque, naCarta Magna, os direitos humanos têm prevalência,sendo a dignidade da pessoa humana um dosfundamentos do Estado brasileiro, sendo certo quea interpretação do texto constitucional deve levar emconta os princípios e valores reconhecidos epugnados.Admitindo-se que o ser humano clônico façaparte da família do ser humano clonado, os direitosdele poderiam ser mais amplamente protegidos,como um dever não apenas estatal, masprimordialmente da família, o que se coaduna comos valores constitucionais da família e proteção dascrianças e adolescentes, e em geral com a proteçãodos direitos humanos como gênero.E mais, considerar o clone como sendointegrante da família do ser humano clonado é aaplicação do princípio da isonomia, pois se não hádistinção entre o ser humano clônico e os demaisseres humanos com relação a possibilidade e direitoà família, deverá ser aplicada a mesma regra aambos de forma idêntica, sendo dado o mesmotratamento sem distinção, ou seja, em todos os casospreservando-se o direito à família.Se de outro modo for, quem quer que considereo clone indivíduo desvinculado da família do serhumano clonado estará incorrendo eminconstitucionalidade e em ilegalidade. Na lição deSundfeld6 tem-se que: “Em primeiro lugar, a lei agridea isonomia quando não revestida de generalidadeou abstração, isto é, quando beneficia ou prejudicasujeito determinado e perfeitamente individualizadono presente. Seria o caso da lei concedendo isençãode impostos às montadoras de automóveisconstituídas no Brasil antes de 1960, e negando-aas demais. De outro lado, violenta a igualdade a leique trate desigualmente pessoas, coisas ousituações com base em fatores estranhos a essasmesmas pessoas, coisas ou situações (...)”.Assim, dando o direito à família ao ser humanoclônico, da mesma forma com que ocorre com osdemais seres humanos, existiria uma “Justiça” comrelação ao ser humano clônico, na acepção dada

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por Ulpiano “Justitia est constans et perpetuavoluntas jus suum cuique tribuendi” (A justiçaconsiste em dar a cada um o que é seu).Imprescindível deixar de citar o ensinamento domestre Kelsen7: “A fórmula de justiça maisfreqüentemente usada é a conhecida suum cuique,a norma segundo a qual a cada um se deve dar oque é seu, isto é, o que lhe é devido, aquilo a que eletem uma pretensão (título) ou um direito”.Outrossim, não há dúvidas no sentido de queo ser humano clônico pode constituir família própriae patrimônio próprio, pois, sendo um ser humano,tem pleno potencial para tanto, sem com essaafirmação ingressar-se na discussão a respeito doacesso aos meios extrínsecos ao seudesenvolvimento, como, por exemplo, acesso àeducação, entre outros.Pelo exposto, verifica-se que aos sereshumanos clônicos são aplicáveis, da mesma formaque aos demais seres humanos, todos os direitoshumanos e deveres veiculados na ConstituiçãoFederal, sejam eles individuais, coletivos ou sociais,devendo ser preservada e respeitada a suadignidade, em todos os seus aspectos, bem como adignidade do ser humano clonado. Qualquer formade discriminação fundada na forma de concepçãodos clones seria um critério injusto, inconstitucionale ilegal, bem como um atentado contra os valoresde igualdade e liberdade desenvolvidos ao longo daevolução da humanidade.DA VIABILIDADE CONSTITUCIONAL DACLONAGEM REPRODUTIVA HUMANAUma vez delineados os principais aspectosconstitucionais da clonagem reprodutiva humana,surge a dúvida sobre ser a clonagem reprodutivahumana vedada pela Constituição Federal. Surgetambém a dúvida a respeito de ser a clonagemreprodutiva humana vedada em tratadosinternacionais dos quais o Brasil seja signatário, osquais, para importante corrente doutrinária pátria,ingressariam no Ordenamento Jurídico pátrio comstatus constitucional quando veiculassem direitoshumanos. Nesse sentido Piovesan8 diz que “Em

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suma, a natureza constitucional dos tratados de36 Saúde, Ética & Justiça, São Paulo. 2005;10(1/2):29-37.Glina N. Principais aspectos legais e constitucionais da clonagem reprodutiva humana.proteção dos direitos humanos decorre da previsãoconstitucional do art. 5.º, parágrafo 2.º, à luz de umainterpretação sistemática e teleológica da Carta,particularmente da prioridade que atribui aos direitosfundamentais e ao princípio da dignidade da pessoahumana. Esta opção do constituinte de 1988 sejustifica em face do caráter especial dos tratados dedireitos humanos e, no entender de parte da doutrina,da superioridade desses tratados no planointernacional”.Na esteia desse entendimento, veio a EmendaConstitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, aqual alterou diversos dispositivos constitucionais,entre eles o artigo 5º da Constituição Federal, o qualpassou a ter seu parágrafo 3º com a seguinteredação, in verbis: “Os tratados e convençõesinternacionais sobre direitos humanos que foremaprovados, em cada Casa do Congresso Nacional,em dois turnos, por três quintos dos votos dosrespectivos membros, serão equivalentes àsemendas constitucionais”.Analisando-se a Carta Magna pátria, nota-sefacilmente que não há nenhum dispositivo que veda,ou seja, que proíba expressamente a clonagemhumana, em ambas espécies, reprodutiva eterapêutica. É fácil entender a ausência, aliás, dequalquer norma constitucional que disponhadiretamente sobre a clonagem, tendo em vista omomento histórico em que a Constituição foipromulgada, em data de 05 de outubro de 1988.Nesse momento, o quadro nacional dedesenvolvimento e o período pós-ditadura militar,além da irrelevância do tema, considerando-se quenaquele momento o acesso técnico aos meios parase proceder à clonagem humana, ou até mesmo deanimais, não permitiam ao legislador vislumbrar anecessidade regrar, de modo específico ou genérico,essa matéria.Ademais, a Carta Magna, por trazer regras

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genéricas, princípios e regras específicas, mesmoque não proíba ou permita diretamente a clonagemhumana, é fundamento de validade para a produçãode normas infra-constitucionais que veiculem essamatéria.O artigo 225 da Carta Magna delineia osprincípios constitucionais relativos ao meio ambientee impõe ao Poder Público, em seu § 1º, inciso II,“preservar a diversidade e a integridade do patrimôniogenético do País e fiscalizar as entidades dedicadasà pesquisa e manipulação de material genético”.Essa norma genérica foi o embrião da antiga Lei deBiossegurança Nacional (Lei 8.974/1995), a qualproibia a manipulação genética, prevendo-a sob aforma de um tipo penal em seu artigo 13. Já a novaLei de Biossegurança Nacional (Lei n. 11.105/2005),lastreada no mesmo dispositivo constitucional proíbea clonagem humana, prevendo tal conduta em tipopenal específico, como mencionado.Apesar da norma infra-constitucional proibir aclonagem reprodutiva humana, de forma expressa ecom sua previsão como tipo penal, a ConstituiçãoFederal não veda esse procedimento, trazendoapenas como regra geral o preceito de “preservar adiversidade e a integridade do patrimônio genéticodo País”, para cujo cumprimento o legislador infraconstitucionalentendeu por bem vedar amanipulação genética, o que não significa, portanto,que a Carta Magna trouxesse essa proibição.Considerando-se que a própria ConstituiçãoFederal tem por um de seus objetivos odesenvolvimento nacional (art. 3º, inciso II), por estaótica, a clonagem humana estaria harmonizada como interesse jurídico econômico albergado nesse textonormativo, contribuindo na produção de riquezaspara a nação.Entretanto, para que se possa desenvolver aclonagem reprodutiva humana em âmbito nacional,sob a ótica constitucional, é imprescindível que essaatividade se coadune com a prevalênciaconstitucional dos direitos humanos, de tal forma aque todos os direitos humanos constitucionalmenteprevistos e protegidos sejam preservados, tanto com

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relação ao clone, como com relação ao indivíduoclonado e terceiros que possam ser atingidos demaneira direta ou reflexiva por essa atividade.Por uma exegese simples da ConstituiçãoFederal, tem-se que, ainda que ela não permita ouproíba a clonagem reprodutiva humana, de maneiraexpressa, limita-a por meio de seus princípios eregras, em especial pelos direitos humanosfomentados, como o direito à dignidade da pessoahumana, o direito à vida e demais direitos, os quaisconstituem uma obrigação de fazer, no sentido degaranti-los e criar meios para seu pleno exercício edesenvolvimento, e uma obrigação de não fazer nadaque os prejudique (abstenção), salvo se para atendera um interesse jurídico constitucional maior, o quenão ocorre na clonagem reprodutiva humana.Assim, para que haja viabilidade constitucional,há uma necessidade de harmonização da atividadede clonagem reprodutiva humana com as regras eprincípios constitucionais, de forma a respeitar-se odisposto na Carta Magna pátria.Desse modo, existe viabilidade constitucionalpara a clonagem reprodutiva humana, porém limitadanos direitos e garantidas constitucionais, bem comonos princípios, objetivos e fundamentos da RepúblicaFederativa do Brasil.Ainda, em âmbito internacional, o Brasil não ésignatário de nenhum tratado que verse sobre aSaúde, Ética & Justiça, São Paulo. 2005;10(1/2):29-37. 37Glina N. Principais aspectos legais e constitucionais da clonagem reprodutiva humana.clonagem reprodutiva humana, de forma direta, nãohavendo integração do Ordenamento Jurídico pátriopor esta via, sendo certo que, ainda que se considereque normas que veiculem direitos humanos,advindas de tratados internacionais venham aintegrar o ordenamento jurídico com statusconstitucional, no presente momento essa integraçãoainda não ocorreu, o que não impede que no futuroo país celebre algum tratado a respeito dessamatéria, vedando ou permitindo a atividade declonagem reprodutiva humana.CONSIDERAÇÕES FINAIS

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A clonagem reprodutiva humana tem viabilidadeconstitucional, nos limites dos direitos humanosindividuais, coletivos e sociais, os quais não podemser aviltados ou atingidos, devendo todos os direitosdo clone, do ser humano clonado, da família e dasociedade ser preservados, resguardados egarantidos. Além disso, os valores e princípiosconstitucionais também devem ser respeitados.A Constituição Federal pátria não veda aclonagem reprodutiva humana, aliás, como tambémnão veda as demais técnicas de reprodução humanaassistida, limitando-se a dizer no seu art. 225, § 1º,inciso I, que incumbe ao Poder Público “preservar adiversidade e a integridade do patrimônio genéticodo país e fiscalizar as entidades dedicadas àpesquisa e manipulação de material genético”.A vedação atual à clonagem reprodutivahumana encontra-se na nova Lei de BiossegurançaNacional, na qual o legislador infra-constitucionalproibiu expressamente a clonagem humana etambém a tipificou como crime.Assim sendo, pode-se dizer que não é possívelatualmente proceder-se à clonagem humanareprodutiva no Brasil, sob pena de prática de crime,não por uma vedação constitucional expressa, maspor desígnio do legislador infra-constitucional.Glina N. Human reproductive cloning: main legal and constitutional aspects. Saúde, Ética & Justiça. 2005;10(1/2):29-37.ABSTRACT: This study aims to analyze the most important aspects of the human reproductive cloning, from the viewpoint of the Brazilian Federal Constitution of 1988. To achieve the purposed aim, the research and analysis of therecent legal and constitutional aspects which can be related to human reproductive cloning has been performed.KEY WORDS: Cloning, organism/legislation & jurisprudence. Cloning, organism/ethics. Bioethical issues.REFERÊNCIAS1. Zatz M. Clonagem humana: conhecer para opinar.Disponível em: http://www.mct.gov.br/especial/clone02_2.htm2. Cárdia LAM. Biodireito: em defesa do patrimônio dahumanidade. Disponível em: http://www.neofito.com.br/artigos/art02/ambie19.htm

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3. Singer P. Texto. In: Honderich T, edited. Oxfordcompanion to philosophy. Trad. Faustino Vaz. OUP;1995. Disponível em: http://www.amazon.co.uk/exec/obidos/ASIN/0198661320/desiderionet4. Moraes A de. Direito constitucional. 11a ed. São Paulo:Atlas; 2002. p.64.5. Mello CAB de. Elementos de direito administrativo. 2aed. São Paulo: Revista dos Tribunais; 1991. p.300.6. Sundfeld CA. Fundamentos de direito público. 4a ed.São Paulo: Malheiros; 2000. p. 169.7. Kelsen H. O problema da justiça. 3a ed. São Paulo:Martins Fontes; 1998. p.18.8. Piovesan F. Direitos humanos e o direito constitucionalinternacional. 3a ed. São Paulo: Max Limonad; 1997. p.98.9. Center for Genetics and Society. O desafio do limiardas novas tecnologias de genética humana. Disponívelem: http://www.genetics-and-society.org/portugues/desafio.html

http://www.fm.usp.br/iof/revista_2005/06_clonagem

Clonagem ReprodutivaA grande notícia da Dolly foi justamente a descoberta de que uma célula somática de mamífero, já diferenciada, como a célula da pele, a célula do coração, etc. poderia ser reprogramada ao estágio inicial e voltar a ser totipotente (isto é poder dar origem a qualquer tipo celular novamente). Isto foi conseguido através da transferência do núcleo de uma célula somática da glândula mamária da ovelha que originou a Dolly para um óvulo anucleado (óvulo sem núcleo). Surpreendentemente, este começou a comportar-se como um óvulo recém-fecundado por um espermatozóide. Isto provavelmente ocorreu porque o óvulo, quando fecundado, tem mecanismos, para nós ainda desconhecidos, para reprogramar o DNA de modo a tornar todos os seus genes novamente ativos, o que ocorre no processo normal de fertilização.

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            Ilustração de como foi a clonagem da Dolly

 

     Ilustração de como seria a clonagem humana.

Para a obtenção de um clone, este óvulo anucleado no qual foi transferido o núcleo da célula somática foi inserido em um útero de uma outra ovelha. No caso da clonagem humana reprodutiva, a proposta seria retirar-se o núcleo de uma célula somática, que teoricamente poderia ser de qualquer tecido de uma criança ou adulto, inserir este núcleo em um óvulo e implantá-lo em um útero (que funcionaria como uma barriga de aluguel). Se este óvulo se desenvolver teremos um novo ser com as mesmas características físicas da criança ou adulto de quem foi retirada a célula somática. Seria como um gêmeo idêntico nascido posteriormente.

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Dolly e a ovelha doadora do DNA.

Já sabemos que não é um processo fácil. Dolly só nasceu depois de 276 tentativas que fracassaram. Além disso, dentre as 277 células "da mãe de Dolly" que foram inseridas em um óvulo sem núcleo, 90% não alcançaram nem o estágio de blastocisto. A tentativa posterior de clonar outros mamíferos tais como camundongos, porcos, bezerros, um cavalo e um veado também tem mostrado uma eficiência muito baixa e uma proporção muito grande de abortos e embriões malformados. Penta, a primeira bezerra brasileira clonada a partir de uma célula somática morreu adulta, em 2002, com um pouco mais de um mês. Ainda em 2002, foi anunciada a clonagem do copycat o primeiro gato de estimação clonado a partir de uma célula somática adulta. Para isto foram utilizados 188 óvulos que geraram 87 embriões e apenas um animal vivo. Na realidade, experiências recentes, com diferentes tipos de animais, têm mostrado que esta reprogramação dos genes, para o estágio embrionário, o qual originou Dolly, é extremamente difícil.

O grupo liderado por Ian Wilmut, o cientista escocês que se tornou famoso por esta experiência, afirma que praticamente todos os animais que foram clonados nos últimos anos a partir de células não embrionárias estão com problemas. Entre os diferentes defeitos observados nos pouquíssimos animais que nasceram vivos após inúmeras tentativas, observam-se: placentas anormais, gigantismo em ovelhas e gado, defeitos cardíacos em porcos, problemas pulmonares em vacas, ovelhas e porcos, problemas imunológicos, falha na produção de leucócitos, defeitos musculares em carneiros. Os avanços recentes em clonagem reprodutiva permitem quatro conclusões importantes: 1) a maioria dos clones morre no início da gestação; 2) os animais clonados têm defeitos e anormalidades semelhantes, independentemente da célula doadora ou da espécie; 3) essas anormalidades provavelmente ocorrem por falhas na reprogramação do genoma; 4) a eficiência da clonagem depende do estágio de diferenciação da célula doadora. De fato, a clonagem reprodutiva a partir de células embrionárias tem mostrado uma eficiência de dez a vinte vezes maior, provavelmente porque os genes que são fundamentais no início da embriogênese estão ainda ativos no genoma da célula doadora.

É interessante que, dentre todos os mamíferos que já foram clonados, a eficiência é um pouco maior em bezerros (cerca de 10% a 15%). Por outro lado, um fato intrigante é que ainda não se tem notícias de macaco ou cachorro que tenha sido clonado. Talvez seja por isso que a cientista inglesa Ann McLaren tenha afirmado que as falhas na reprogramação do núcleo somático possam se constituir em uma barreira intransponível para a clonagem humana.

Mesmo assim, pessoas como o médico italiano Antinori ou a seita dos raelianos defendem a clonagem humana, um procedimento que tem sido proibido em todos os países. De fato, um documento assinado em 2003 pelas academias de ciências de 63 países, inclusive o Brasil, pedem o banimento da clonagem reprodutiva humana. O fato é que a simples possibilidade de clonar humanos tem suscitado discussões éticas em todos os segmentos da sociedade, tais como: Por que clonar? Quem deveria ser clonado? Quem iria decidir? Quem será o pai ou a mãe do clone? O que fazer com os clones que nascerem defeituosos?

Na realidade, o maior problema ético atual é o enorme risco biológico associado à clonagem reprodutiva. No meu entender, seria a mesma coisa que discutir os prós e os contras em relação à liberação de uma medicação nova, cujos efeitos são devastadores e ainda totalmente incontroláveis.

Apesar de todos estes argumentos contra a clonagem humana reprodutiva, experiências com animais clonados têm nos ensinado muito acerca do funcionamento celular. Por outro lado, a tecnologia de transferência de núcleo para fins terapêuticos, a chamada clonagem terapêutica, poderá ser extremamente útil para obtenção de células-tronco.

Texto adaptado de Zatz, Mayana. "Clonagem e células-tronco". Cienc. Cult., jun. 2004, vol. 56, nº 3, pp. 23-27, ISSN 0009-6725.

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http://www.sobiologia.com.br/conteudos/Biotecnologia/biotecnologia2.php

Clonagem: reprodutiva ou terapêutica?Por: Lygia V. Pereira

Até 1997 e o surgimento da ovelha Dolly, a criação de um embrião animal começava obrigatoriamente com a fusão de um óvulo com um espermatozóide. Essa fusão poderia ser natural ou assistida, como nos processos de fertilização in vitro, porém sem o encontro dessas duas células muito especiais não havia a possibilidade da geração da vida. Dolly foi a primeira demonstração de que a vida animal pode surgir de outra forma: pela clonagem, a partir, não mais de duas, mas de uma única célula de qualquer parte do corpo de um indivíduo adulto. Porém, através desse método de reprodução, ao invés de gerarmos indivíduos inéditos, misturas de seus pais, geramos um clone, uma cópia daquele doador de célula: literalmente uma "reprodução"!

Todos nós começamos como uma única célula, resultante da união de um óvulo e um espermatozóide. No momento da fecundação, é formada dentro do núcleo desta célula a receita única e inédita daquele ser humano – metade vinda do pai, e metade vinda da mãe. Esta receita é o nosso genoma, o conjunto de aproximadamente trinta mil genes, ou instruções, que dirigem a formação e o funcionamento de cada um de nós. A partir daí, esta célula inicial se dividirá em duas, quatro, oito, e assim por diante, de forma que, através de milhões de divisões sucessivas, esta única célula dará origem a um ser adulto, extremamente complexo. E cada vez que uma célula se divide, ela copia todo o seu material genético para as células filhas. Ou seja, cada uma das nossas células contém a receita completa para fazer uma pessoa.

No início do desenvolvimento do embrião, aquelas primeiras células inicialmente idênticas (ou indiferenciadas), começam a assumir características diferentes umas das outras, começam a se diferenciar. Algumas ligam só os genes de músculo, outras só os de sangue, outras ainda só os genes de pele, e assim por diante, de forma a gerarem todos os diferentes tipos celulares presentes numa pessoa. E uma vez tomada esta decisão de identidade celular, as células perdem o acesso a todo o resto de informação genética contido em seu núcleo - ou seja, a receita inteira está lá, mas a célula só consegue realizar a sub-receita específica do seu tipo celular.

Isto até 1997, quando Wilmut conseguiu que uma célula diferenciada, já destinada a ser célula de glândula mamária de uma ovelha, revertesse este processo de diferenciação, sendo assim capaz de reacessar toda a informação contida em seu genoma e dar origem a uma cópia completa daquela ovelha – a Dolly! A partir daí, já foram gerados com sucesso clones bovinos, clones de camundongos e de porcos, cada um deles com um objetivo específico - seja a produção de animais comercialmente interessantes ou a de modelos animais para pesquisa básica.

Dentro deste contexto, eu pergunto: por que clonar humanos? As razões apresentadas até hoje são as mais variadas, e vão desde as escatológicas - "Para produzir doadores de órgãos" ou "Para produzir exércitos de indivíduos superiores", reminescentes de O admirável Mundo Novo e do Nazismo - até a vaidosa e infantil "Porque podemos". Mas e se utilizarmos a clonagem como uma opção reprodutiva para casais estéreis, ou mesmo para "ressuscitar" um ente querido, argumentos mais utilizados pelos defensores da clonagem humana? De fato, estas são as razões que mais motivam pessoas a quererem gerar um clone humano. E por que não?

Qualquer medicamento ou prática médica passa por diversos testes em modelos animais para que sua segurança seja comprovada antes de ser aplicado em seres

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humanos. Este rigor existe para nos proteger de situações como a da talidomida. Descobriu-se um pouco tarde que esta droga, popular nos anos 60 entre mulheres grávidas para curar enjoo, causava o encurtamento dos membros dos fetos na barriga destas mulheres. Quantas crianças defeituosas poderiam ser normais, se a talidomida tivesse sido submetida a testes mais rigorosos antes de ser oferecida à população?

Pois bem, o mesmo se aplica à clonagem, se a mesma vai ser proposta como uma forma de reprodução humana. O que sabemos sobre este processo? Muito pouco (lembrem-se que a Dolly surgiu há somente 4 anos)! E pior, a pouca experiência que temos com a clonagem de animais é desastrosa na grande maioria das vezes. No caso da Dolly, dos 276 embriões manipulados, somente 29 sobreviveram para serem implantados em ovelhas, e destes, somente UM vingou, dando origem à Dolly. Entre os não sobreviventes estavam diversos fetos mal-formados e outros que morreram logo após o nascimento. Este quadro se repete em todas as espécies onde a clonagem foi realizada: para cada clone "normal", são gerados diversos outros com sérias anomalias. O que faremos com os clones humanos "defeituosos"? Nós estamos preparados para lidar com os subprodutos da clonagem em humanos? Como podemos propor esta modalidade de reprodução assexuada em humanos, quando a pouca experiência que temos por enquanto só nos ensinou que é uma técnica perigosa?

No entanto, a clonagem não deve ser vista como o inimigo público número um. Temos que separar o joio do trigo - existe uma distinção importante entre a "clonagem reprodutiva", que visa a geração de um indivíduo inteiro a partir de uma célula por reprodução assexuada, e a "clonagem terapêutica", ou seja, a clonagem com fins terapêuticos, com o objetivo de gerar tecidos para transplantes.

Como assim? Vamos a um pouco mais de ciência. "Célula-tronco" (CT) é uma célula que tem a capacidade de se transformar em diferentes tipos de células. Por exemplo, as CT do sangue, encontradas na medula óssea, produzem todos os tipos de células sanguíneas: os glóbulos brancos, os glóbulos vermelhos, plaquetas, e assim por diante. Uma classe muito especial de CTs são as chamadas células-tronco embrionárias. Como o nome sugere, estas células são derivadas de um embrião nos estágios iniciais do desenvolvimento e por isso ainda não assumiram identidade própria, ainda não se diferenciaram. As CT embrionárias humanas são derivadas de embriões de 5 dias, expandidas no laboratório, e lá podem ser induzidas a se transformar em células sanguíneas, musculares, hepáticas, de pele, células secretoras de insulina, e até em neurônios! Desta forma, as CT embrionárias possuem um imenso potencial terapêutico para as mais diversas doenças humanas.

Porém, em qualquer transplante de órgãos, é preciso analisar a genética do doador e do receptor para saber se eles são imunologicamente compatíveis. Caso contrário, o órgão transplantado será reconhecido pelo sistema imune do receptor como um corpo estranho, e será atacado da mesma forma que o sistema imune ataca agentes infecciosos, protegendo-nos de doenças. O mesmo cuidado tem que se tomar quando formos transplantar CT embrionárias diferenciadas em pacientes. Com o desenvolvimento das técnicas de clonagem, tornou-se possível a criação de CT embrionárias "sob medida", ou seja CT embrionárias geneticamente idênticas ao paciente. Foi exclusivamente com esse objetivo que foram criados os embriões clonados humanos. Esses não serão transferidos para o útero de uma mulher – o que configuraria a clonagem reprodutiva. Os embriões clonados serão uma fonte de CT embrionárias imuno-compatíveis com aquela pessoa de onde foram retiradas as células somáticas.

É bem possível que daqui a alguns anos, através das técnicas de clonagem, cada um de nós preventivamente tenha suas linhagens de CT particulares estabelecidas.

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Essas células ficarão guardadas congeladas em um laboratório. Ao longo de sua vida, caso você precise de algum transplante, suas CT embrionárias serão descongeladas, multiplicadas e induzidas a se diferenciarem de acordo com a sua necessidade - se for um caso de queimadura, faremos células da pele; doença de Parkinson ou Alzheimer, neurônios; cirrose hepática, células do fígado, e assim por diante. Assim, quando transplantadas, poderão regenerar aquele órgão/tecido danificado sem o risco da rejeição.

Tecnicamente, a clonagem humana se aproxima mais e mais da realidade. Temos agora que decidir o que fazer com ela. Ao longo da história, a humanidade já esteve nessa posição outras vezes. A descoberta da energia nuclear, por exemplo, nos proporcionou a tomografia computadorizada e a ressonância magnética, e ao mesmo tempo duas explosões de bombas atômicas. Aprendemos pelo menos uma lição: que todo poder deve ser usado com responsabilidade. A clonagem terapêutica revolucionará a medicina, proporcionando tecidos para transplantes que aliviarão as mais diversas enfermidades humanas. Por outro lado, a clonagem como forma de reprodução é comprovadamente um fracasso, e é consenso, na comunidade científica mundial, que não deve ser realizada em seres humanos. Devemos evitar a proibição cega, reminescente da época de Galileu Galilei, e que invariavelmente leva ao atraso da ciência e da melhora da qualidade de vida humana. Precisamos sim é de legislação e vigilância, de forma a introduzirmos o desenvolvimento das células-tronco embrionárias aqui no Brasil, sem ferir direitos nem deveres. Vamos utilizar de forma responsável os novos poderes da clonagem, com fins exclusivamente terapêuticos, para que possamos viver as reais maravilhas deste admirável mundo novo.

Lygia V. Pereira, Ph.D.Depto. BiologiaInstituto de Biociências, USP

http://www.invivo.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=5&sid=9